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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
DOUTORADO EM SOCIOLOGIA

RENATA QUEIROZ MARANHÃO

SE ALASTROU DEMAIS, FEITO FOGO EM PALHA SECA: TRAJETÓRIAS


LÉSBICAS EM UMA ZONA RURAL

FORTALEZA - CEARÁ
2023
RENATA QUEIROZ MARANHÃO

SE ALASTROU DEMAIS, FEITO FOGO EM PALHA SECA: TRAJETÓRIAS


LÉSBICAS EM UMA ZONA RURAL

Tese apresentada ao Curso de Doutorado em


Sociologia do Programa de Pós-graduação em
Sociologia da Universidade Estadual do Ceará,
como requisito parcial para a obtenção do título
de doutora em Sociologia. Área de
concentração: Sociologia.

Orientadora Profa. Dra. Maria do Socorro


Ferreira Osterne.

FORTALEZA - CEARÁ
2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Estadual do Ceará
Sistema de Bibliotecas

Maranhao, Renata Queiroz.


Se alastrou demais, feito fogo em palha seca:
trajetórias lésbicas em uma zona rural [recurso
eletrônico] / Renata Queiroz Maranhao. - 2023. 274
f. : il.

Tese (DOUTORADO ACADÊMICO) -


Universidade Estadual do Ceará, Centro de Estudos
Sociais Aplicados, Curso de Programa de Pós-
graduação Em Sociologia - Doutorado, Fortaleza,
2023.
Orientação: Prof. Pós-Dr. Maria do Socorro
Ferreira Osterne.
1. lésbicas, saída do armário, zona rural. .
I. Título.
Aos meus filhos, força motriz do meu viver.
Aos meus pais, portos seguros em minha
trajetória de vida.
AGRADECIMENTOS

Um trabalho como este é fruto de muitas parcerias acadêmicas e afetivas. Eu não seria capaz
de seguir este percurso sem elas. Agradeço:
À Profa. Dra. Maria do Socorro Ferreira Osterne, por ter acreditado em mim dando apoio e
liberdade (vigiada) na medida certa. Socorro tem o dom de acalmar e restituir nossa crença em
nós mesmos quando tudo parece estar se desmanchando. Sem essa aposta muitas vezes reiterada
por ela, talvez eu não chegasse ao fim deste trabalho.
Gratidão à Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do
Ceará (FUNCAP/CE) pelo financiamento desta pesquisa, através da bolsa de estudo concedida.
Aos professores do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual do
Ceará (PPGS/UECE), que me instigaram ao pensamento crítico e fizeram com que uma nova
paixão atravessasse minha vida: a Sociologia.
Aos funcionários do PPGS/UECE, Cristina, José e Princesa, pela simpatia, presteza e prontidão
no atendimento aos alunos do curso.
Aos membros da banca, a Profa. Dra. Ana Maria Simões Brandão, a Profa. Dra. Tereza Cristina
Bezerra, a Profa. Dra. Paula Fabrícia Aguiar Mesquita, o Prof. Dr. Roberto Marques e a Profa.
Dra. Gerciane Maria da Costa Oliveira por terem aceitado colaborar com a avaliação de meu
trabalho, me impulsionando a seguir além.
Às garotas que consentiram em me revelar suas memórias e me deixaram revelá-las aos outros
na realização deste trabalho. Utilizando-me de Leo Fressato & Omelô, quero dar vivas às
“sapatãs” desse Brasil agreste!
Ao Kasio Alves e aos seus pais, Seu Carlos e Dona Neta, pelo aconchego nas minhas estadias
no Campo.
Ao Kasio Alves (mais uma vez) e ao Marcos Andrade, por terem me indicado à estrada que
levou a essa pesquisa. Pelos nossos constantes debates também.
Aos meus colegas de turma de doutorado que fizeram com que eu pudesse estar nas melhores
aulas do mundo, dado às suas imensas sabedorias e enorme companheirismo: Cláudio Sena,
Maria Gomes, Samuel Duarte, Marcondes Brito da Costa, Fabiane Pinto e Diego Da silva
Medeiros. Gratidão especial ao Márcio Pessoa, à Camila Mota e ao Pedro Jorge Mourão, que
estiveram ao meu lado em outros espaços, que não o acadêmico. Ao Vinícius Madureira
também, nosso mestrando favorito, que muito rapidamente se uniu à nossa turma.
Aos meus colegas de colegiado do Curso de Pedagogia da Faculdade de Educação de Itapipoca
da Universidade Estadual do Ceará (FACEDI/UECE), pela minha liberação nas atividades
docentes e pela torcida para o meu sucesso.
Ao Kacyano Gadelha (em memória), que foi meu mestre enquanto fui sua professora. A
contribuição da tia Kacy na minha trajetória acadêmica é impossível de ser estimada.
Aos muitos amigos com quem pude contar nessa caminhada. Tenho uma lista muito extensa de
gente que segurou na minha mão, me incentivando a continuar. Também me atrapalharam,
naqueles dias em que pudemos estar juntos, rindo quase sem culpa e sem pensar no amanhã.
Lufadas vitais de oxigênio. Fazem parte dessa incompleta lista: Gerusa Nunes (e alguns dos
que a cercam), Cecília Medeiros, Adriana Alcântara, Nara Alencar, Theofilo Gravinnis, Pâmela
Cunha, Gabriela Maia, Mário Amorim, Ana Luísa Diógenes, Larissa Elfisia e Laís Domingos.
À minha companheira Ana Paula Rangel, pelo amor e carinho e pela paciência de estar ao meu
lado, mesmo quando eu estava tão distante.
À minha sobrinha Júlia, exemplo de organização, paciência e leveza no modo de ser.
À minhas irmãs, Andréa e Gisela. Andréa é um exemplo de inteligência aplicada à ciência.
Gisela inspira pela determinação e sábio empenho em seus propósitos.
Aos meus filhos, João e Igor, pela compreensão da ausência e pelas gargalhadas que demos
juntos. Esses instantes de alegria são os que nos fazem querer viver mais e melhor.
Aos meus amados pais, Marcelo e Graça, não só pelo fato óbvio de terem me dado a vida, mas
sobretudo pela imensidão do apoio com o qual sempre pude contar. Tive uma infância feliz e
afetuosa. Na minha adolescência, quando em muitos lugares da nossa ordem social estimava-
se a vantagem da cura guei, eles se puseram a ajudar a curar o mundo! Mesmo na vida adulta,
em todos os meus momentos de crises, fossem eles tristes ou felizes, a presença e o suporte
deles determinaram meus sucessos. Se são os últimos citados é porque sempre foram os
primeiros.
RESUMO

A pesquisa etnográfica procurou reconstruir e analisar as trajetórias de vida de quatro lésbicas,


focalizando seus processos de saída do armário ocorridos em uma pequena zona rural do estado
do Ceará. Buscou-se identificar a influência do lugar na construção de uma identidade lésbica
e na comunicação desta a terceiros. As trajetórias foram construídas a partir de inúmeros vetores
de informação: entrevistas sistemáticas, redes sociais do tipo Instagram e Facebook, conversas
pelo WhatsApp (em grupo ou de modo individual) e de observação direta em diversos espaços
de sociabilidades (tanto rurais quanto urbanos), em uma relação de camaradagem com duração
de cinco anos. Em geral, pode ser ressaltada a predominância da singularidade sobre a
regularidade, nos modos como cada uma construiu sua identidade lésbica atribuindo-lhes
significados e se oportunizando a vivenciar experiências com outras mulheres. De todo modo,
alguns ritornelos apontaram para a emergência da noção de pecado associada à descoberta de
seus desejos, a existência de conflitos familiares (e posterior arrefecimento das animosidades)
em relação às suas famílias, ao estabelecimento de relações de amizades entre sujeitos
LGBTIA+ da pequena localidade e à busca da internet como meio para de obtenção de
informação sobre “lesbianidades’ e instrumento de publicitação de suas relações homoafetivas.
A emergência de relações lésbicas no meio rural e as redes de apoio construídas nesse espaço
indicam a necessidade de rever a ideia de que a zona rural é um lugar impossível para as
homossexualidades. Em relação à revelação lésbica, em todos os casos, há uma precocidade,
uma predominância e uma determinação do outing sobre o coming out que indica que, apesar
das dificuldades da emergência da lésbica em espaços rurais, uma vez que ela emerja na zona
rural, o armário parece ser um lugar impossível. Obteve-se ainda que seus processos migratórios
foram motivados, sobretudo, pelas dificuldades de ascensão financeira na zona rural em que
moravam e que, normalmente, suas vidas na capital se desenrolam com maior isolamento social
do que quando habitavam no interior. Na pesquisa que aqui se apresenta, não foi encontrada
uma relação segura entre suas vivências urbanas e uma possível anexação política às
identidades lésbicas que as garotas construíram.

Palavras-chave: lésbicas, saída do armário, zona rural.


ABSTRACT

The ethnographic research sought to recover and analyze the life trajectories of four lesbians,
focusing on their coming out processes that occurred in a small rural area in the state of Ceará,
Brazil. It was sought to identify the influence of the place in the construction of a lesbian
identity and in its communication with third parties. The trajectories were built from different
vectors of information: systematic interviews, social networks like Instagram and Facebook,
WhatsApp conversations (in groups or individually) and direct observation in different spaces
of sociability (both rural and urban ones), in a five-year camaraderie relationship. In general,
the predominance of uniqueness over regularity can be highlighted in the ways in which each
individual experienced their lesbian identity, attributing meanings to them and giving
themselves the opportunity to have experiences with other women. In any case, some burdens
pointed to the emergence of the notion of sin associated with the discovery of their desires, the
existence of family conflicts (and the subsequent cooling off of animosities) in relation to their
families, the establishment of friendly relations between LGBTIA+ subjects from the small
location and the search for the internet as a means of obtaining information about lesbians and
an instrument for disseminating their homoaffective relationships. The emergence of lesbian
relationships in rural areas and the support networks built in this space indicate the need to
review the idea that the rural area is an impossible place for homosexuality. In relation to the
lesbian revelation, in all cases, there is a precocity, a predominance and an emotion of the outing
over the going out that indicates that, despite the difficulties of the emergence of the lesbian in
rural spaces, once they emerge in the rural area, the closet seems like an impossible place. It
was also found that their migration processes were motivated, above all, by the difficulties of
financial ascension in the rural area where they lived and that, normally, their lives in the capital
were developed with greater social isolation than when they lived in the countryside. In this
research presented here, no secure relationship was found between urban experiences and a
possible political annexation to the lesbian identities that the girls constructed.

Keywords: lesbian, coming out, rural areas.


9

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO………………………………………………..……………...… 10
2 NOTAS SOBRE O EPISTEME DO ARMÁRIO.................................….……. 40
2.1. Breve genealogia do armário: uma leitura macrossocial ….............….…....... 43
2.2 O armário na contemporaneidade: seus limites e possibilidades ..….…....…. 55
3 A EXPERIÊNCIA (INTER)SUBJETIVA DO ARMÁRIO ….……………… 68
3.1 A experiência psicológica do armário: processos de formação de identidades
homossexuais ........................................................................................................ 70
3.2 A gestão do armário diante dos outros ….………...………………………...… 83
4 O LUGAR ………………………………………………………………………. 101
5 A MACHO-E-FEME VAI CASAR: A TRAJETÓRIA DE LINA .…...........… 114
5.1 Reconhecimentos e enunciações .………………………………………………. 114
5.2 Após a revelação, de volta ao armário .………........................………………... 122
5.3 Vias fraturadas, pontes erguidas ……….……….……………………………... 131
5.4 Fuga para a cidade ……….………………………………….………...……….. 144
6 EM LUGAR PEQUENO, A LÍNGUA É MUITO GRANDE:
A TRAJETÓRIA DE BÁRBARA…………………………………………....… 151
6.1 Reconhecimentos e enunciações……………………………………………….. 151
6.2 Fuga para outra(s) cidade(s) ……....................................................................... 161
6.3 De volta ao lar, a gestão do armário ………...................................………...…. 165
6.4 Saindo do armário ……………………..........................................................….. 172
6.5 Nova fuga, para uma outra cidade …......................................................…..…. 177
7 SEMPRE APARECEU MULHER PRA MIM: A TRAJETÓRIA DE IARA . 179
7.1 Primeiras experiências, primeiras enunciações …...........................…………. 179
7.2 Vias fraturadas …………………………………………..................................... 186
7.3 A vida em uma nova cidade ……………............................................................ 187
7.4 De volta à pequena cidade, a gestão do armário ….................................……. 192
7.5 Fuga para uma nova cidade ............................…….…………………………. 198
8 OLHA, EU SOU MUITO GUEI: A TRAJETÓRIA DE SISS .....…………… 204
8.1 Reconhecimentos e enunciações ......................………………………………... 204
8.2 Vias fraturadas, pontes erguidas .…………...............................……………… 209
8.3 A gestão do armário ……………………………………………………...……. 218
8.4 Fuga para a cidade ………............................…………………………………. 234
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS………………………………………………….. 245
REFERÊNCIAS .................................................................................................. 261
10

1 INTRODUÇÃO

Em um texto intitulado Introdução a uma sociologia reflexiva, Bourdieu (2008)


afirma que a arte da pesquisa em Ciências Sociais consiste na capacidade que o pesquisador
possui de propor coisas teoricamente importantes a respeito de objetos empíricos extremamente
precisos, frequentemente menores na aparência e por vezes irrisórias. A eficácia da pesquisa,
segue afirmando, depende ou da transformação de um objeto socialmente irrelevante em um
objeto científico, ou da apreensão de grandes objetos já validados sob novos ângulos.
Uma vez que minha pretensão é a de estudar as trajetórias de vidas relativas às
saídas do armário de jovens mulheres lésbicas em uma pequena localidade rural do interior do
Estado do Ceará, estado da região nordeste do Brasil, o trabalho que aqui apresento,
aparentemente1, procura realizar um movimento que conflui para as duas direções assinaladas
por Bourdieu (idem), já que engrossa, simultaneamente, o farto caldo dos estudos sobre
mulheres (incluindo os estudos sobre as mulheres rurais), ao mesmo tempo em que contribui
para os estudos LGBTIA+ que, embora bem menos desenvolvidos que os estudos feministas,
desde o explosivo movimento de Stonewall, proliferaram e têm se desenvolvido em velocidade
crescente.
Mas, por outro lado, com esta pesquisa atuo no sentido de fazer emergir algo mal
iluminado tanto pelos estudos rurais de gênero, como pelos estudos LGBTIA+ desenvolvidos
no Brasil. E faço escolhendo um objeto socialmente irrelevante, que é a mulher lésbica rural. A
quase inexistência de considerações sobre a experiência lésbica nos estudos rurais faz parecer
que, no meio acadêmico, do ponto de vista dos estudos sobre mulheres rurais, tudo se passa do
mesmo modo como descrito por Ferreira (2008) ao afirmar que o corpo camponês, nas
pesquisas rurais brasileiras, é, em muitos casos, tratado com um corpo bíblico, casto e castrado,
devoto ao casamento e à economia doméstica, um corpo mais valia, um corpo produtivo e

1
Aparentemente, pois seguindo de perto o conceito de interseccionalidade de Creshaw (2002), é possível
argumentar sobre a possível de subsunção de uma categoria específica (lésbica), ao ser confundir com classes mais
gerais (mulher/homossexuais). Tal subsunção é operada pela simultaneidade de operações analíticas super
inclusivas e sub inclusivas realizadas acerca dos problemas que atingem grupos de pessoas que se localizam,
simultaneamente, em duas ou mais linhas de desvantagens sociais. O termo super inclusão objetiva dar conta da
circunstância em que um problema ou condição imposta de forma específica ou desproporcional a um subgrupo
de mulheres é simplesmente definido como um problema de mulheres. Ela ocorre na medida em que os aspectos
que o tornam um problema interseccional são absorvidos pela estrutura de gênero, sem qualquer tentativa de
reconhecer o papel que a homofobia possa ter exercido em tal circunstância. A subinclusão ocorre quando um
subconjunto de mulheres subordinadas enfrenta um problema, em parte por serem mulheres, mas isso não é
percebido como um problema de gênero, porque não faz parte da experiência sexual do grupo dominante. Neste
caso, se uma condição ou problema é específico das lésbicas e, por sua natureza, é improvável que venha a atingir
os gueis, sua identificação como problema de subordinação homofóbica fica comprometida. Em resumo, nas
abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que,
em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível.
11

reprodutivo. Por outro lado, em relação aos estudos LGBTIA+, a produção sobre lésbicas - que
é diminuta se comparada aquelas que tratam dos modos de vida de gueis - via de regra, parece
combinar com o pensamento de Stephanie Arc (2009, p. 94), para quem as lésbicas se revelam
mais urbanas, com nível escolar mais elevado, ocupando postos de chefia e sem filhos.
Teria justeza com a realidade a suposição presunçosa, espécie de acordo não
revelado nas pesquisas rurais, de que a sexualidade dos homens e mulheres do campo é sempre
voltada à procriação, ao matrimônio e à manutenção da família? E também seria crível que toda
experiência homoafetiva entre mulheres se realizasse entre as lésbicas urbanas e bem-sucedidas
descritas por Arc (2009)?

Pouco provável, já que desde épocas muito remotas, datada da primeira metade do
século XVI, se tem notícias sobre a possível existência de mulheres que, no interior Brasil,
desestabilizaram o olhar de Francisco de Orellana, desbravador espanhol que, vindo do Chile,
encontrou e percorreu o Rio Amazonas e afirmou ter tido sua expedição atacada repetidas vezes,
nas proximidades do que hoje é o Óbidos paraense, por uma tribo de mulheres guerreiras que,
andando nuas sob a montaria, defendiam-se bravamente com arcos e flechas. Recusando-se
casar, viviam com outras mulheres e seus filhos, gerados a partir de encontros rituais com
homens apenas para fins de procriação. Embora Mott (1987) afirme que nunca foi confirmada
a existência de uma tribo de Guerreiras Amazonas e que Swain (2007) nos indique que a
narrativa mítica das Amazonas era bastante comum e desacreditada na época do desbravador
Orellana, Trevisan (2018), que parece considerar plausível a existência dessas guerreiras, afirma
que séculos mais tarde muitos antropólogos encontraram nas narrativas míticas indígenas a
menção às “icamiabas, isto é, mulheres sem homens e sem maridos”. (Idem, p. 66).
Outro relato foi aquele feito pelo capelão inglês Robert Walsh, em Minas Gerais,
entre os anos de 1828-1829, quando este encontrou

Uma senhora e sua acompanhante. Ela vestia casaco de montar e saia de crepe da
China um grande chapéu de palha amarrado, não sob, mas através do queixo.
Cavalgava com estribos largos e montava como homem, e nos coldres um par de
pistolas. Era não seguida, mas precedida por um negro em libré, também montado,
que era seu avant courier. Apesar de não ser robusta ou musculosa, parecia forte e
despreocupada - desmontou diante de nós como um homem, sem o menor embaraço
- tomou um copo de cachaça na venda para fortificá-la contra o ar da montanha, tornou
a montar, examinou as pistolas, para ver se estava preparada para qualquer
eventualidade que se lhe apresentasse, e retomou seu caminho, sua própria protetora.
Tais figuras são muito comuns no interior. (Citado por MOTT, 1987, p. 44)

Além do mais, bem antes, ainda no século XVI, mais precisamente no ano de 1551,
Pero Correa, a serviço da missão Jesuítica, escreveu uma carta onde se observa a presença
12

comum de relações homoafetivas entre os Tupinambás, povos indígenas que hoje habitam a
costa litoral brasileira desde o Recôncavo Baiano até o atual Rio de Janeiro. O olhar do
missionário jesuíta aponta para a liberdade sexual dos indígenas e seus muitos casos de crime
contra natura, como era concebida a relação sexual entre iguais:

(…) estes Gentios em algumas cousas se parecem com Mouros, (…) e o pecado contra
natureza, que dizem ser lá mui commum, o mesmo é nesta terra, de maneira que há cá
muitas mulheres que assim nas armas como em todas as outras cousas seguem officio
de homens e têm outras mulheres com quem são casadas. A maior injúria que lhes
podem fazer é chamá-las mulheres. Em tal parte lh'o poderá dizer alguma pessoa que
correrá risco de lhe tirarem as frechadas. (Citado por LEITE, 1940. p. 97).

Eram chamadas de çacoaimbeguiras que, segundo Mott (1987, p. 10), significava


machão que não conhece homem e tem mulher e fala e peleja como homem. Um registro
semelhante sobre a existência de çacoaimbeguiras entre os mesmos povos nativos foi o
realizado pelo cronista Gandavo (citado por MOTT, idem, p. 22) no ano do Senhor de 1576:

(…) algumas índias há entre os Tupinambá que não conhecem homem algum de
nenhuma qualidade, nem o consentirão, ainda que por isso as matem. Elas deixam
todo o exercício de mulheres e imitam os homens e seguem seus ofícios como se não
fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados, da mesma maneira que os machos, e vão
à guerra com os seus arcos e flechas.

Também nos mesmos povos, e aparentemente sem ser tomado por escândalo, foram
encontrados os Timbira (ou tivira) índios que montaram tendas para prestar serviços sexuais a
outros índios (MOTT, 1987; TREVISAN, 2018). Em outros registros, mais tardios, no princípio
do século XIX, Carl Von Martius (mencionado por TREVISAN, 2018) encontra, entre índios
Guaicuru - habitantes do atual Mato Grosso do Sul - os Cudinas, índios castrados que se vestiam
como mulheres e adotavam as ocupações da tribo junto com outras mulheres. Do mesmo modo,
há registro de que, entre índios Botocudos, habitantes tanto do litoral como do interior do
Espírito Santo, não haviam homens e mulheres, mas mulheres-homens e homens-mulheres
(TREVISAN, 2018, p. 64).
É digno de observação que a presença destes registros de relações entre iguais em
nossos povos primários - inclusive entre outras etnias aqui não citadas -, mesmo que com
poucos elementos descritivos, sejam bastante informativos acerca do processo de colonização
da sexualidade em nosso país. Como diz Swain (2007), os índios do Brasil conheciam poucas
restrições sexuais e as categorias mulher/homem não eram definidas a partir do sexo biológico.
Quer parecer, portanto, que o Brasil é um lugar no qual o olhar para a sua história revela a
13

passagem de integração social à exclusão violenta de pessoas que praticavam aquilo que mais
tarde, em outro contexto, veio a ser chamado de homossexualidade. Decorridos cinco séculos
dos primeiros registros de desbravadores que revelam a liberdade sexual dos ameríndios, as
análises contemporâneas não cessam de apontar o Brasil como o país que acumula, em todo o
planeta, o maior índice estatístico de homicídios contra LGBTIA+ por motivação homofóbica.
A colonização cristã portuguesa tem muito a dizer sobre tal passagem.
Por fim, compreendendo a diacronia e o essencialismo no uso dessas narrativas para
falar da existência de lésbicas em zonas rurais - já que, como bem disse Foucault (2005), o
homossexual, seja o guei ou a lésbica, é uma figura histórica e localizada, efeito da apreensão
do discurso da sexualidade pelo domínio dos saberes psicológicos, médicos e jurídicos a partir
do séc. XIX no ocidente moderno – um salto ao contemporâneo nos revela a emergência de
grupos LGBTIA+ articulados dentro do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra - MST. Se,
em 2013, foi possível perceber uma aproximação entre estes dois movimentos um tanto
estranho um para o outro quando na conciliação da agenda em Brasília; no ano de 2014 é mesmo
a partir de dentro do MST que se vê emergir signos e pautas associadas à discussão em torno
da sexualidade na luta pela reforma agrária.
Em 2014, no Ceará, após descobrir que sua esposa tinha uma amante, um assentado
tentou matá-las e diante desta contenda, uma regional do MST organizou debates em torno da
diversidade sexual e reforma agrária com a base social dos seus acampamentos e assentamentos.
Porém, é em agosto do ano seguinte que se institui o marco do reconhecimento de tal
movimento, quando na realização do primeiro seminário “O MST e a diversidade sexual”, na
Escola Nacional Florestan Fernandes. Desde então foram constituídos grupos de estudos, rodas
de conversas, intervenções em encontros estaduais e nacionais, bem como a produção de uma
cartilha sobre sexualidades para formação da base MST, dentre outras ações. 2016 marca o ano
em que o MST inclui, em seus documentos, a referência explícita e positiva em relação à
diversidade sexual como parte da preocupação do movimento como um todo, o que dá início a
criação de um coletivo LGBTIA+ no MST. Em 2017, um dos membros do coletivo passa a
integrar a direção nacional do movimento. Comparando a primeira e a última ação nacionais
em torno de pautas LGBTIA+ dentro do MST, é possível perceber um crescimento na
participação de LGBTIA+ rurais sem-terra. O seminário “O MST e a diversidade sexual”,
realizado em 2015, contou com a participação de 35 militantes de 13 estados brasileiros. Em
2019, o “XVIII curso LGBT sem-terra” reuniu 56 LGBTIA+s provenientes de 21 estados do
Brasil (Cf. SILVA, 2015 e PAZ & MARIANO, 2018).
14

É nesse contexto que emergem lésbicas, gueis, pessoas trans e bissexuais dentre as
quais, o casal de assentadas Rose e Tina, membros do MST e referências lésbicas no
acampamento Marielle vive! onde residem (Cf. BARRETO, 2019). Elas, assim como outras
pessoas homossexuais e transexuais do MST, estão envolvidas no debate que procura articular
a liberdade sexual para todos como condição para afirmar

a luta contra o patriarcado, como estratégia para a superação da sociedade de classes,


entendendo que a igualdade substantiva dos sujeitos jamais será possível nos marcos
do capital; 5) a formação do ser humano numa perspectiva unilateral, que prioriza
suas várias dimensões como: o trabalho, a político-ideológica, cultural, estética e
afetiva é fundante do nosso projeto de reforma agrária popular, que implica na
construção de novas relações humanas e sociais (MOVIMENTO DOS
TRABALHADORES SEM TERRA, 2017, p. 30).

As várias páginas no site do MST pró-homossexualidades não deixam dúvidas do


crescente processo de visibilização, dentro deste coletivo, da existência e resistência de
LGBTIA+ em zonas rurais brasileiras. No site é possível encontrar tanto os feitos e agendas das
pessoas envolvidas na luta LGBTIA+, como também as notas de pesar e repúdio em relação à
morte de companheiros de luta não heterossexuais, vítimas de homofobia ou transfobia. A
proposição de espaços formativos no interior do movimento e a criação de caderno de formação
sobre a diversidade sexual no MST bem como a aproximação com outros coletivos de minorias
sexuais e a presença da representação LGBTIA+ do MST em marchas pela diversidade sexual,
organizadas por coletivos LGBTIA+ em várias cidades, confirmam a dupla vetorização de um
trabalho que se realiza pela transformação do espaço interno da luta pela terra e pela articulação
com organizações externas que, a despeito da terra, buscam transformar um amplo espaço social
a partir da luta pela sexualidade.
Também não restam dúvidas sobre a existência LGBTIA+ em espaços rurais alheios
aos territórios dos assentados. Atesta tal fato, as associações LGBTIA+ em cidades de pequeno
porte listadas no site da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros).
Nanuque, em Minas Gerais; Delmiro Gouveia, na Bahia; Viçosa, em Alagoas e outras tantas
integram a lista citada. Por fim, também é possível encontrar vidas LGBTIA+ em meios rurais
nos jornais de grande circulação, especialmente em páginas policiais. Tal é o caso de matérias
como a que noticiou a morte de Denise, de sua companheira Evelize e sua amiga Maria Vitória,
vítimas de triplo homicídio com o uso de arma de fogo, no dia 16 de maio de 2020 na casa em
que o casal residia, na comunidade Vila Graci, do município de Barreiras, interior do Ceará (Cf.
RIBEIRO, 2020).
15

Portanto, se desde o início do século XIX foi possível identificar muitas mulheres
interioranas que desafiavam a ordem dominante dos papéis de gênero e se hoje a
representatividade e o burburinho causado pelo movimento LGBTIA+ do MST, além das
associações rurais não relacionadas a este movimento, dentre outros aspectos, não são mais
passíveis de serem ignorados, então por que nos estudos acadêmicos, quase nada se fala acerca
de mulheres lésbicas na zona rural?
Para Eribon (2008), a ausência de estudos sobre as homossexualidades em áreas
rurais deve-se à atitude mais hostil e odiosa à vida guei encontradas nesses espaços, exigindo
uma maior discrição das relações de sociabilidades homoeróticas que colaboram a uma
tendência à inexistência de documentos (tais como certidões de casamento, queixas policiais,
atas ou produção de grupos organizados) ou vestígios que consigam servir a um trabalho de um
historiador ou sociólogo.
Contudo, crendo e mesmo apostando na criatividade e perspicácia metodológicas
associadas ao fazer nas Ciências Sociais - mais especificamente na possibilidade de realização
de pesquisas operacionalizadas a partir de documentos gerados em seu fazer (tais como as
biografias, cartografias e os estudos sobre histórias, relatos ou trajetória de vidas, para citar
alguns) - penso que a resposta dada por Eribon não explica, em totalidade, a ausência de mirada
por parte das ciências sociais em relação às mulheres lésbicas da zona rural. A existência de
alguns estudos sobre sexualidades não hétero eróticas entre homens do campo, tais como os
realizados por Ferreira (2008) e Paiva (2015) aponta para sua possibilidade. Não seria este
regime de invisibilidade um efeito da combinação de múltiplas identidades que ocupam
diversas posições de desvantagens sociais?
Crenshaw (2002, 2004) cunhou a noção de interseccionalidade como um conceito
operatório que servisse à compreensão de como a sobreposição de desvantagens sociais
promove obstáculos diferenciais para pessoas que se situam em um ponto de encruzilhada entre
duas ou mais desvantagens, sendo simultaneamente atingidas por diversos vetores
obstaculizantes. Utilizando uma metáfora de cruzamento de vias de trânsito, cada avenida
representa um fluxo de desvantagem (gênero, raça, sexualidade) de modo que, quantas mais
interseccionada for existência de um indivíduo ou de um grupo de indivíduos, mais
invisibilizada ela é e menor é a probabilidade de que este(s) obtenha(m) benefício(s) para seu(s)
desenvolvimento(s) pessoal/pessoais, incluindo o acesso a bens e serviços promovidos pelo
Estado.
Embora a interseccionalidade trate de experiências identitárias - é da mulher negra
o coração do conceito de interseccionalidade, diz Akotirene (2019, p. 19) - não é pelo viés da
16

identidade que ela deve ser compreendida. Para Crenshaw (2004), menos do que uma posição
identitária, cada avenida representa um certo tipo de circulação de poder socialmente
estabelecido que coloca indivíduos de determinados grupos em uma posição de múltiplas
desvantagens que só podem ser explicadas olhando simultaneamente para o ponto onde
convergem. Em suas palavras:

Que nome se dá ao ser atingido por múltiplas forças e então abandonado à própria
sorte? Interseccionalidade parece-me apropriado. Fui adiante e descobri que mulheres
afro-americanas, como outras mulheres de cor, como outros povos marginalizados
mundo afora enfrentam todo tipo de dilemas e desafios como consequência da
interseccionalidade. Intersecção de raça, gênero, heterossexismo, transfobia,
xenofobia, discriminação pela condição física, todas essas dinâmicas sociais se unem
e criam desafios bastantes únicos (CRENSHAW, 2016, tradução nossa)

Afetada por essas ideias, sinto-me obrigada a lançar meu olhar para os
conhecimentos produzidos tanto em relação às mulheres rurais, como em relação aos sujeitos
LGBTIA+: estariam as lésbicas rurais presentes nos campos discursivos? De que modo? E, uma
vez que não estejam, o que lhes roubam a cena, subtraindo-lhes o palco?
As mulheres tornaram-se objeto de consideração dos estudos rurais brasileiros a
partir da década de 1960. Realizando um olhar aprofundado sobre os estudos rurais de gênero
surgidos desde esta época até o início da década passada, Nascimento (2008, 2012) propõe a
identificação de três períodos distintos. No primeiro período, compreendido entre os anos de
1960 à 1980, a autora observa que as pesquisas, alinhadas a teorias marxistas, procuravam
denunciar as condições da transformação do trabalho da mulher do campo pela introdução do
capitalismo na zona rural, mostrando que, se antes de tal inserção as mulheres dividiam mais
igualmente as tarefas domésticas produtivas e reprodutivas (ainda que concentrasse a maior
parte das tarefas de cuidados reprodutivos), com a separação da unidade familiar da esfera
produtiva e a transformação do camponês em operário, as mulheres estariam em condição de
maior subalternidade no mundo do trabalho (mão de obra mais barata e com menos direitos) e
também propensas a uma dupla sujeição patriarcal: a que se realiza sob a tutela do patrão e
àquela que se faz pela presença do marido.
No segundo período, o que se situa entre os anos de 1980-2000, os enfoques se
multiplicam (marxistas, foucaultianos, dentre outros). Nesta fase, segundo a autora, há uma
certa continuidade com os estudos do período precedente, já que a ênfase se volta para as
relações de poder e subordinação das trabalhadoras rurais. As discussões giram em torno da
compreensão da intensidade e dos modos de subordinação e de resistência das mulheres
camponesas trabalhadoras, que adquirem certa autonomia financeira, participam de estratégias
17

de resistências ao violento contrato de trabalho como boias-frias, embora mantenham parca


autonomia de decisão em espaços sociais, ação reservada aos seus maridos. Um diferencial
dessa segunda leva de estudos analisados por Nascimento (2008) é o uso deliberado e articulado
do conceito de gênero, enfatizando-se os problemas relacionados às mulheres.
O terceiro período dos estudos sobre mulheres rurais compreende textos escritos
entre os anos 2000 a 2011 que, de algum modo, parecem juntar os olhares de seus antecessores.
Fala-se tanto da importância do trabalho das mulheres na vida doméstica (trabalho reprodutivo),
das suas participações em movimentos sindicais e emancipatórios em torno da reforma agrária,
bem como sobre aspectos pertinentes a suas entradas em programas sociais (microcréditos,
agricultura familiar, economia solidária, etc.), ressaltando não apenas a conquista do
protagonismo da mulher do campo na sociedade civil de seu entorno, mas também sua
participação na elaboração de políticas públicas para trabalhadoras rurais.
Nas três fases identificadas, mesmo com suas diferenças internas, dirá a autora, o
patriarcado se coloca como conceito central na interpretação das funções desempenhadas pelas
mulheres, quer seja nas atividades produtivas (ao analisar as condições de trabalho das mulheres
do campo, em contraposição àquelas vivenciadas pelos homens) bem como nas tarefas sociais
destinadas ao trabalho reprodutivo, da vida doméstica e familiar. Portanto,

Com mais ou menos nuances, grande parte dos estudos mencionados acima
corroboram com a ideia de associar o modelo da família patriarcal às relações de
gênero e à condição feminina no meio rural. Quando se fala, direta ou indiretamente,
dos estudos de gênero no Brasil rural prevalece uma dominação conceitual de “família
patriarcal”. (NASCIMENTO, 2012, p. 375)

O patriarcado, que implica um domínio do corpo da mulher pelo pai e a passagem


desse domínio ao marido, compreendido dentro das marcações de gênero, como diz Saffioti
(2015, p. 47), deve ser considerado como um regime da dominação-exploração dos homens
sobre as mulheres inclusive e principalmente no que se refere ao controle da sexualidade
feminina, de modo que a mulher se torne fiel e submissa ao marido. A partir da lente da categoria
analítica “patriarcado”, nos estudos sobre mulheres rurais, as sexualidades não heterossexuais
tendem a não serem alvos de considerações, uma vez que, nestes casos, perde-se a configuração
marido-esposa, homem-mulher. Nesse contexto, a lésbica rural é despercebida, ou percebida,
no máximo, como um exemplar da diferença humana, irrelevante ao aspecto estudado. Em
algumas obras, pode até ser mencionada a existência de lésbicas em zonas rurais, na condição
de “Etc.” Menciona-se, para logo esvanecer. E, no seu lugar, surgem mulheres às voltas com os
processos de dominação e resistência envolvidos nas relações com o estado, com seus patrões,
18

maridos e filhos e com as associações coletivas às quais pertencem (sindicatos e/ou movimentos
sociais).
Saindo dos estudos sobre as mulheres no rural brasileiro e voltando a atenção para
os estudos LGBTIA+, que pistas podemos seguir para pensar sobre o quase silêncio existente
em relação às experiências lésbicas em zonas rurais?
A história da produção acadêmica da escrita pró-homossexualidades no contexto
brasileiro possui como marco inicial os estudos realizados por Peter Fry no ano de 1974, ao
observar e inquirir gueis umbandistas em Belém do Pará. Posteriormente, o mesmo pesquisador
identificou aspectos referentes à vida guei em São Paulo, maior metrópole do Brasil. Antes de
tais estudos, resume Gontijo (2017), a literatura disponível sobre a homossexualidade centrava-
se em três grandes áreas. Em primeiro lugar, os estudos que, de modo continuado, foram
produzidos a partir das áreas biomédicas (incluindo-se a Psicologia e áreas correlatas) e que
associavam a experiência homoafetiva a identidades e corpos marcados por patologias e que
deveriam, portanto, serem tratados, corrigidos. Um segundo grupo, que o autor associa às
ciências humanas (incluindo a filosofia), considerava normais tanto as identidades como as
práticas homossexuais, embora vissem anormalidade nos processos de sociabilidade
desenvolvidos por tais sujeitos. Nestes estudos constitui-se uma associação da
homossexualidade como curiosidade das camadas populares, marginais, periféricas,
umbandistas, negras e prostituídas. Além destes dois, o último grupo de publicações era
composto pela produção literária (incluindo os ensaios jornalísticos) que abordava, quer de
modo central ou periférico, a diversidade das experiências homossexuais em contextos
específicos, ao mesmo tempo em que procuravam emitir juízos morais de cunho médico e/ou
filosófico o que contribuiu para uma visão aversiva a tais práticas.
Portanto, é com os estudos de Fry que o lugar de quem fala sobre a
homossexualidade coincide com a experiência do sujeito falante. Gontijo (2017) observa que
os estudos de Fry, bem como os que o seguiram - tais como os de Guimarães em 1977, o de
Parker em 1986, o de Heilborn em 1996 e de Costa em 1992 -, todos eles, trataram de discorrer
sobre experiências homossexuais do universo masculino e urbano, permanecendo, até hoje,
como principais personagens e contexto nos estudos LGBTIA+.
A disparidade do olhar sobre os homens em relação ao olhar sobre as mulheres não
é nenhuma novidade. Desde Beauvoir, em 1949 (Cf. BEAUVOIR, 2016) - e talvez mesmo
antes, com Simmel, em 1909 (Cf. SIMMEL, 1961) - ficou claro para o movimento feminista
que a produção discursiva sobre as mulheres a considerou a partir da oposição ao universo
masculino, em uma ótica que favoreceu à privatização da vida feminina (associada à reprodução
19

e aos cuidados com a vida doméstica, marido e prole) ao mesmo tempo em que consagrou ao
homem o lugar público da produção material da sociedade.
Os homens e seus modos de vida foram alvos preferenciais (e mesmo modelo
exemplar) das considerações dos saberes erguidos em muitos lugares de nossa cultura ocidental,
desde tempos muito remotos. E talvez por isso, tanto nas ciências biomédicas, como nas
humanas, gueis tenham sido mais mapeados, escutados e objetivados do que as mulheres
homossexuais. Sedwick (1998) aposta que a marcação histórica da divisão binária entre
homossexualidade e heterossexualidade e consequente apelo para que cada indivíduo
reconhecesse sua posição dentre essas categorias, no final do século XIX, foi mais insidiosa na
experiência homossexual masculina do que em qualquer outra manifestação da sexualidade.
Por efeito de resistência, a precocidade e a intensidade produtiva dos discursos gueis, tornam-
se justificadas.
Por outro lado, a sexualidade feminina – bem menos a lésbica - despertava pouco
ou nenhum interesse científico. E, quando considerada, sempre fora feita a partir de um saber
que não apenas não era produzido por lésbicas (sendo produzido por homens), assim como as
interpretações dadas combinavam com os anseios de uma sociedade machista e hétero centrada
para quem as experiências homoafetivas entre mulheres fazia com que elas fossem classificadas
como invertidas, falsas lésbicas, dentre outras denominações típicas do século XIX, que
construiu um olhar sobre as relações afetivas e sexuais entre mulheres, associando-as à noção
de doença.
Duplamente invisibilizada, não apenas tardou a proliferação de escritos acadêmicos
sobre lésbicas no Brasil, como também isso foi feito de modo menos sistemático e mais rarefeito
que a literatura acadêmica guei, no início do século XXI. Como fator conflitante, a própria
escassez de discursos pró-homossexualidade lésbica contribuiu ainda para que esta, quando
referida, fosse diluída em termos gerais tais como homossexualidades/homofobia, bastante
impregnados de valores e afetações referentes ao homem guei urbano. Aos poucos foi ficando
claro que, mesmo no Brasil, os estudos lésbicos não conseguiram evitar o perigo descrito por
Adrienne Rich (2010, p. 36), ao afirmar que:

As lésbicas têm sido historicamente destituídas de sua existência política através de


sua “inclusão” como versão feminina da homossexualidade masculina. Equacionar a
existência lésbica com a homossexualidade masculina, por serem as duas
estigmatizadas, é o mesmo que apagar a realidade feminina mais uma vez.
20

O reconhecimento da subsunção das lésbicas dentro do conceito de


homossexualidade foi responsável pela autonomização das mulheres lésbicas em relação ao
movimento homossexual. E somente a partir disso foi possível buscar construir uma escrita que
considerasse as especificidades do universo lésbico. Para Santos, Souza e Faria (2017), isso se
deu a partir da década de 1970, com o surgimento das ONGs lésbicas e foi intensificado na
década de 1990. Ao que tudo indica, até, foi preciso esperar o ano 2000, para que fosse escrito
o primeiro livro que tratasse exclusivamente sobre lesbianismo a partir de um olhar pró-lésbico,
realizado por uma feminista lésbica. Trata-se do livro O que é lesbianismo, de Tânia Navarro
Swain, que integrou a coleção primeiros passos, da Editora Brasiliense2. É na década seguinte,
a partir de 2010 que há um expressivo aumento na ainda diminuta literatura acadêmica lésbica,
inclusive com mais compreensão de que essa escrita procure

Situar a necessidade de se tratar a lesbianidade a partir de um olhar não impregnado


de valores e cultura masculina, colonizado, que atravessa as publicações sobre as
homossexualidades de uma forma geral, reproduzindo especificidades do universo
gay sem dar visibilidade às peculiaridades do mundo lésbico. (SANTOS, SOUZA E
FARIAS, 2017, p. 02)

Embora eu compreenda a relevância do esforço de produção de uma escrita lésbica,


posiciono-me seguindo o conselho de Sedgwick (1998) que considera o impulso separatista de
das sexualidades menos fértil que o uso responsável do conjunto de produção escrita pró-
homossexualidades. Além do mais, diz a autora, muito da produção escrita e das atividades
desempenhadas pelos movimentos sociais afirmativos à diversidade sexual foram produzidos
pela colaboração mútua – e por vezes turbulenta – na escrita e nas ações desempenhadas por
homens e mulheres homossexuais. Por fim, a própria construção histórica da categoria
homossexual, capaz de incluir tanto homens como mulheres, muitas vezes incide de modo
bastante semelhante na existência desses sujeitos, independente de seus gêneros. Dito isto,
afirmo a posição de que aqui não serão excluídas ideias que, provenientes de uma escrita pró-
homossexualidades masculinas (dentre outras sexualidades Queers), podem balizar reflexões
profícuas em relação ao universo lésbico.

2
O primeiro livro acadêmico publicado no Brasil objetivando uma escrita pró-lésbica, do ponto de vista da autoria
de uma sexualidade homossexual, foi realizado por um homem guei, Luiz Mott, no ano de 1987. Na literatura
brasileira, a estreia da lésbica emergiu oito anos antes pelas mãos de Cassandra Rios, ao escrever um folhetim que
se tornou sucesso de vendas intitulado “Eu sou uma lésbica”. Também não posso deixar de referir à coautoria
lésbica de Leila Míccolis em Jacarés e Lobisomens, livro escrito em 1983, em parceria com Herbert Daniel,
contendo dois ensaios sobre a homossexualidade, cada um deles, destinado a um gênero diferente.
21

Mas seria ainda necessário ponderar sobre a utilização, no singular, dos termos
lesbianidade e universo lésbico quando se tem por objetivo compreender as várias
possibilidades de existências lésbicas, no plural, inclusive quando se deseja considerar alguns
aspectos relacionados à diversidade dos espaços sociais nos quais se desenrolam tais
experiências. Neste sentido, ao retratar a interseccionalidade da experiência lésbica apenas pela
dupla condição de ser mulher e de experienciar a homossexualidade, acaba-se deixando de lado
outras conexões importantes para uma compreensão diversificada sobre um fenômeno que, em
si, parece ser singularmente diferente entre as mulheres que habitam em diferentes espaços,
classes sociais, raças/etnias.
E há de se considerar que um espaço é, sempre, mais do que sua geografia física e
sua delimitação territorial. Um espaço não apenas é dotado de significados, como é por eles
construído.
Nenhuma surpresa deverá causar a ideia de que as noções de campo e cidade foram
construídas como opostos binários e essencialmente excludentes. Não será muito forçoso
atentar para a existência de uma aura de inferioridade associada às pessoas do campo. Chamar
alguém de “jeca” ou “matuto” serve como qualificação depreciativa sobre alguém que, mesmo
sendo da cidade, falha nas habilidades para lidar com as exigências urbanas e modernas.
Quando o mesmo qualificativo é aplicado às pessoas provenientes do campo, normalmente
funciona de modo a justificar o ato inábil pela afirmação uma suposta incapacidade essencial
daqueles que passaram a vida “no mato”. Aos da cidade, cognominados como modernos,
alternativos, tornam-se frequentes. No imaginário social,

O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e
virtude simples. A cidade associou-se à ideia de centro de realizações – de saber,
comunicações, luz. Também se constelaram poderosas associações negativas: a cidade
como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso,
ignorância e limitação. (Willames, 1989, p. 11),

Willames (1989) refere-se à divisão estabelecida na Inglaterra, no momento em que


as forças do capitalismo avançavam e colaboraram para a diminuição do poder agrário, fruto
de uma economia colonialista e rural. Em seu trabalho sobre a invenção do Nordeste,
Albuquerque Jr (2011) nos fornece algumas pistas no sentido de identificar que uma cisão em
termos bastantes parecidos também ocorreu no Brasil, no início do século XX, momento em
que se decidia pela definição de uma nação brasileira em um contexto onde a aristocracia agrária
(especialmente a pernambucana) perdia poder e que São Paulo intensificava seu processo de
urbanização e industrialização, com a ajuda de imigrantes estrangeiros.
22

Atendendo a um dispositivo de nacionalidade que desejava instituir uma imagem da


nação brasileira, discursos surgidos em diversos campos do saber (arte, política e
intelectualidade acadêmica), num território difusamente dividido entre norte e sul, buscavam
dar a conhecer, para superar, as diferenças entre esses dois espaços. A fim de decidir sobre a
verdadeira alma do povo da nação, cada um dos lados pôs a considerar não apenas sobre suas
diferenças internas, como também aquelas que poderiam ser avistadas quando eram
comparados ou se comparavam um com o outro.
Tal divisão, dirá Albuquerque Jr (2011), foi construída a partir do pinçamento de
características existentes tanto no Norte, quanto no sul do País. Porém, a seleção foi feita
ignorando outros elementos que poderiam ser vistos sem muito esforço, realizando um
apagamento das diferenças que poderiam ser encontradas no interior do espaço que se pretendia
narrar. Ignorou-se, por exemplo, o desenvolvimento industrial da própria indústria açucareira,
nos anos de 1920, e o amplo processo de urbanização e de efervescência cultural vividos por
Recife, em muito embalados pela Faculdade de Direito de Recife, que, via de regra,
recepcionava os filhos da oligarquia agrária, que atravessava (e tentava reverter) um processo
de perda de poder, na geopolítica do país.
É nesse contexto que, 1906, Euclides da Cunha escreve seu Livro Os sertões, uma
referência discursiva que não apenas enuncia a divisão entre norte (sertão) e sul (São Paulo),
mas também organiza a cisão entre litoral e sertão. Um pouco mais tarde, em 1914, Monteiro
Lobato publica, no Jornal Estado de São Paulo, o conto Urupês que, em 1918, junto com outros
contos de sua autoria, veio a virar um livro onde o conto reaparece e dá nome ao título da obra.
O conto Urupês traz Jeca-Tatu, um caboclo rural do Vale do Paraíba, em São Paulo, que traduz
o que ele pensa ser a essência dos homens dos meios rurais, onde o estado deixa os indivíduos
relegados ao abandono. Na crítica construída por Lobato, Jeca é um sujeito preguiçoso, alheio
às mudanças para além do seu entorno e incapaz de tomar atitudes racionais para corrigir
possíveis imperfeições ao seu redor, buscando saná-las a partir da superstição que, em sua parca
concepção cosmológica, se confunde com a religião. Jeca é o protótipo do homem impenetrável
à mudança e ao conhecimento. Um tipo alheio às transformações pelas quais passavam o Brasil
e que, isolado do resto do mundo, vivia de cócoras, levantando-se diante de uma nova
informação e voltando a sentar-se sobre seus calcanhares, sem se deter na novidade, tamanha
pequenez de seu espírito, afeito à lei do menor esforço. (Cf. LOBATO, 2012).
Jeca Tatu foi um fenômeno de público que não pode ser ignorado: fez parte de outras
obras do autor, virou personagem de campanha sanitária contra o amarelão (nome popular dado
à ancilostomíase), circulou em revistas de quadrinhos e animou muitos filmes do bem-sucedido
23

ator, comediante, cantor e cineasta brasileiro Mazzaropi. Jeca tornou-se uma das mais fortes
imagens construídas sobre o homem rural, inclusive, tornando-se um vocativo para aquele que
também veio a ser chamado de caipira, de matuto.
Pouco mais tarde, no entorno de 1920, surge a região nordeste, num território que
atingiu seu ápice de poder durante o período colonial que funcionou tendo por base uma
economia agrária e que, além de alguns desses signos associados à ruralidade, acumulou outros
pautados em sua própria história. Atravessado pela simbologia da miséria e do flagelo
provocados pela seca, pelo messianismo e pelo cangaço, algumas perspectivas construídas tanto
pelo norte como pelo sul, realizaram uma imagem do nordeste como uma terra de cabra macho,
assentado em relações patriarcais, nos costumes tradicionais e fanatismo religioso, na qual a
decadência moral, incluindo o homossexualismo, só poderia ser explicada por um processo
exógeno, a partir da corrupção do camponês pelos padrões reprováveis do homem burguês.
Nesses discursos que organizam uma perspectiva dicotômica, a cidade aparece ainda como
lugar da artificialidade e da doença, enquanto que o campo se faz associado à natureza – no
caso do Nordeste, uma natureza megera e seca, à pureza e à inocência. E foi sob esta perspectiva
que muitos discursos foram (e ainda são) repetidos quando se busca tratar com pesquisas que
levam em consideração geografias não urbanas, incluindo a nordestina. Importa considerar que
esse regime de visibilidade e “dizibilidade” acerca dos espaços não urbanos faz mais do que
apenas descrever, colaborando para instituir aquilo que eles descrevem.
Dentro da literatura LGBTIA+, também é possível encontrar pensamentos que
entendam o rural e cidade como lugares opostos, em relação à vida guei e lésbica. Eribon (2008)
chega a propor que o rural seja um espaço tão odioso às pessoas homossexuais, que a principal
saída para homossexuais campesinos é a fuga de pessoas do campo para a cidade, o que ele
denomina como “Diáspora Gay”. Mogrovejo (2005) designa por exílio o autoexílio, exílio
político ou migração por opção sexual, diante das dificuldades de experiências homoafetivas
nos lugares de origem dos migrantes, incluindo as pequenas cidades.
Por tudo que foi dito, penso que a mulher-lésbica-rural é pouco ou nada visibilizada
devido à sua tripla condição de invisibilidade. Cada um desses marcadores que a atravessa
contribuiu para torná-la invisível por uma cultura arquitetada através da sobreposição valorativa
do urbano em relação ao rural, da heterossexualidade em relação à homossexualidade e mesmo
dos homens em relação às mulheres.
Por outro lado, não se pode deixar de entender que estas narrativas acerca do rural
realizam importantes distorções. Em princípio, ela parece não problematizar a própria
instabilidade da imagem monocromática criada, que desconsidera a diversidade entre os
24

espaços rurais e de cada um destes espaços em relação a si mesmos. Estariam todos os espaços
rurais sujeitos à mesma lógica de acontecimentos? E tais espaços seriam incapazes de um
processo de diferenciação interna?
É preciso ressaltar as variações de um meio rural para outro. Pode acontecer que um
meio rural contenha adensamentos urbanizados que favoreçam ao convívio com elementos
muito mais próximos do Ethos urbano do que aqueles com os quais foram qualificados o rural.
Há cidades intermediárias e há também paisagens rurais dentro das zonas metropolitanas das
grandes cidades. Os contextos rurais são diversos entre si.
Ademais, em um mundo globalizado, com ampla inserção dos meios de
comunicação de massa, a expansão geográfica pode ser realizada pela utilização de aparelhos
televisivos, computadores ou smartphones. Isso sem considerar a construção de vias férreas, e
posteriormente a multiplicação e melhoria das estradas, que, desde muito antes das tecnologias
contemporâneas, já estabeleciam o rural como um espaço comunicante. Marques (2015), em
seu estudo sobre as festas de forró eletrônico no Cariri, me faz pensar ainda no poder dos mais
ou menos ligeiros e constantes movimentos realizados pelas pessoas de pequenas cidades que
as levam para outras paisagens, outras conexões e outros espaços. Disto decorre uma constante
alteração de sensibilidades que traz como consequência a construção de novos sentidos sobre a
vida no campo e na cidade, transformando as ideias cultivadas por cada um destes espaços
acerca de si mesmo e do outro. Como disse Willames (1989, p. 17), a vida do campo e da cidade
é móvel e presente: move-se ao longo do tempo, através da história de uma família e um povo;
move-se em sentimentos e ideias, através de uma rede de relacionamentos e decisões.
Por fim, gostaria de enunciar que o paradigma do armário não é uma categoria
analítica transparente e universalmente aplicável. O armário é efeito e produtor do dispositivo
de sexualidades desenvolvido na modernidade, momento no qual foi pedido que os indivíduos
analisassem seus desejos e suas práticas sexuais a fim de decidir sobre sua orientação sexual,
situando-se em um dos lados dos pares da forma binária oferecida: hétero ou homossexual.
Mais tarde ele tornou-se um conceito central nas preocupações da militância pró-
homossexualidades, comumente atuando em cidades de grande porte. O armário também foi
tomado pela clínica psicológica, que já produziu um pequeno volume de textos, com intuito de
ajudar clientes a realizar a travessia da descoberta de si e da revelação a terceiros de uma
identidade sexualizada compreendida dentro de um dos termos binários. Falarei sobre eles
adiante. É, portanto, resultado de uma episteme moderna e urbanizada.
O conceito e as descrições da experiência do armário, na maior das vezes, fora
forjado de modo a considerar regularidades constantes nos espaços urbanos: preconizou-se que
25

o acesso a uma identidade guei ou lésbica dependeria da construção de uma rede de afinidades
em relação à cena LGBTIA+ que, por sua vez, contribuiria para que tais os sujeitos tornassem
suas identidades cada vez mais visíveis, e que, idealmente deveriam ser anexadas a uma
compreensão de pertença grupal, orgulhosa de si e politizada, em conformidade com o
pensamento de resistência à homofobia produzido pelos movimentos sociais das sexualidades.
Portanto, há de se considerar se o armário é um conceito imediatamente aplicável a
espaços não urbanos. Miguel (2019, 2021) e Tushabe (2017), por exemplo, ressaltam a
impropriedade do armário para organizar as experiências não heterossexuais de determinados
povos nativos de alguns países africanos.
Também contribuem para a sua relativização, o fato de que alguns pesquisadores,
tais como Paiva (2015) e Ferreira (2008), ao se afastarem das noções identitárias caras à política
do armário, conseguiram encontrar, nos espaços não urbanos por eles pesquisados, homens que
realizavam sexo com outros homens e que, referenciando-se e sendo referenciados como
heterossexuais, se não poderiam ser adequadamente colocados no lugar da heterossexualidade,
tão pouco poderiam estar intimamente ligados ao padrão das homo normatividades. Neste
sentido, o armário pode atrapalhar uma compreensão mais acurada de algumas experiências
não hétero eróticas nos espaços não urbanos.
Mesmo reconhecendo o poder limitante do armário, não me sinto motivada a passar
para um lado avesso às compreensões estabelecidas pelos discursos em torno dele, quando se
trata de compreender a existência lésbica em cidades rurais, especialmente quando as mulheres,
por escolha racional ou adesão consciente, se auto definem lésbicas e/ou quando são definidos
por muitos dos sujeitos que a cercam do mesmo modo. No meio rural pesquisado, entre as
meninas observadas e também entre aqueles que os cercam, o armário é parte de suas vidas. De
modo aligeirado, suponho que no solo Brasileiro, cada vez mais, o armário tem estado sujeito
a movimentos migratórios, rumo às pequenas e médias cidades do interior. Esta observação é
semelhante a feita por Gray, Collin e Gilley (2016), quando indicam que o mesmo ocorre em
solo estadunidense.
Se é impossível pensar em um rural impenetrável à história, não haveria também de
sê-lo em relação à história das sexualidades modernas e suas lutas políticas na
contemporaneidade, estabelecidas em torno do armário. Há, portanto, de se verificar de que
modo os sujeitos rurais vivenciam experiências homoafetivas, inclusive narrando-se a partir de
uma identidade da mesma natureza, nos contextos em que vivem.
Os existentes e já mencionados coletivos LGTBI+ de pequenas cidades e as eleições
de garotas gueis e as notícias sobre paradas da diversidade em pequenas localidades rurais, entre
26

outros aspectos, contribuem para minha crença em tal afirmação. E talvez não seja coincidência
o fato de que tais deslocamentos ocorram num momento onde o próprio encerramento
identitário em torno de categorias estanques do tipo homo e heterossexual começam a ruir no
tecido urbano que lhe forjou. Uma hipótese que talvez mereça investigação, a partir de novos
trabalhos.
Dito isto, creio que a energia gasta em torno da compreensão do armário, não apenas
ajudou a produzir identidades gueis e lésbicas, mas também acabou por possibilitar uma
referência relativamente eficaz para o entendimento da adesão a estas identidades, em grupos
sociais onde se espera que os sujeitos realizem tal tarefa. Abandonar o armário nas zonas rurais
pode dificultar a compreensão do que levam em consideração os sujeitos que, nestes espaços,
realizam tais passagens.
Ao utilizar estudos do armário para tratar dos modos como mulheres assumidamente
lésbicas dão significados às suas experiências homoafetivas em um contexto rural, faço isso
considerando a possibilidade de preservação de parte de seu valor heurístico para compreensão
do modo como os sujeitos se adaptam, recusam e transformam tal fórmula, a partir de
experiências singulares, dentro dos espaços pelos quais se movem. Como diz Carneiro (2012,
p. 35),

A ruralidade [é] um processo dinâmico, em constante reestruturação dos elementos da


cultura local, mediante a incorporação de novos valores, hábitos e técnicas. Tal
processo implica um movimento em duas direções, nas quais se identificam, de um
lado, a reapropriação dos elementos da cultura local a partir de uma releitura
possibilitada pela emergência de novos códigos e, de outro, a apropriação pela cultura
urbana de bens culturais e naturais do mundo rural, produzindo, assim, uma situação
que pode contribuir para alimentar a sociabilidade e reforçar os laços com a
localidade. Desse encontro podem surgir também expressões culturais singulares que
representariam a síntese ou a combinação de universos culturais distintos, mas que
sustentam noções de espaço e de tempos sociais diferentes um do outro (p. 35).

Acredito, portanto, que a zona rural, mais refratária às homossexualidades e com


características socioeconômicas que lhes são próprias, impõe obstáculos e desvantagens
específicos para a realização do desenvolvimento pessoal de mulheres lésbicas (que, desde
sempre, já se encontram às voltas com os impedimentos e desvalores associados a tal
condição/experiência). E isso não apenas no que diz respeito ao desenvolvimento de uma
autoimagem positiva e vivência plena e congruente de sua sexualidade, mas também
obstaculiza a construção de pontes necessárias para seu processo de formação pessoal,
econômico, sócio familiar, dentre outros. No entanto, creio também que, a despeito de tais
obstáculos, ou até mesmo com a ajuda de alguns deles, é possível construir alternativas e uma
27

vez que experiências lésbicas emergem nas cenas das pequenas cidades, é o próprio espaço que
vai se tornando cada vez menos evidente.
Dito isto, dado às instabilidades de cada uma das categorias contidas no objeto
“armário de lésbicas rurais”, deve ser capaz de decidir sobre limites e possibilidades
interpretativas dos textos que, não tratando deste espaço de interseccionalidade, tratam sobre
cada uma dessas categorias. A experiência da mulher lésbica rural não poderá ser compreendida
nem pela experiência da mulher rural, nem da mulher lésbica urbana, ainda que possuam traços
comuns. O mesmo pode ser dito sobre aproximações e afastamentos em relação à experiência
guei ou experiências sexuais não identificadas como heterossexuais. A migração de um
urbanizado armário para um meio rural, também deve suscitar desconfianças.
Deste modo, ao investigar a trajetória de vida envolvida no processo de saída do
armário de lésbicas em uma zona rural de parco porte de urbanização, pretendo contribuir para
a construção de concepções mais localizadas sobre a experiência lésbica, em um contexto
marcadamente diferenciado do modo narrativo como são hegemonicamente tratadas. Mais
especificamente, busquei avaliar de que modo estas mulheres vivenciaram a
descoberta/construção de suas sexualidades homoeróticas, os processos que colaboraram para
a auto aceitação e revelação delas e as transformações provocadas nas relações de sociabilidade
nos espaços sociais e institucionais do lugar em que residiam (família, emprego, igreja, lazer
público, para citar alguns). Busco ainda identificar os caminhos traçados, as pontes construídas,
na busca de uma estabilidade pessoal e social atravessadas pela experiência lésbica em uma
zona rural. Tento pensar alinhada ao conselho de Rubim, (2017, pp. 79-80) para quem

É impossível pensar com clareza as políticas de raça ou gênero enquanto elas forem
consideradas entidades biológicas e não construções sociais. Do mesmo modo, a
sexualidade é impermeável à análise política se for concebida primariamente como
um fenômeno biológico. (…). Políticas do sexo mais realistas serão possíveis quando
ele for compreendido em relação a uma análise social e histórica. Será possível pensar
a política do sexo em relação a fenômenos tais como vizinhança, padrões de
assentamento territorial, migração, conflito urbano, epidemiologia e tecnologia
policial. Essas categorias de pensamento são mais profícuas que as mais tradicionais
como pecado, doença, neurose, patologia, decadência, poluição ou ascensão e quedas
de império.

Trata-se, portanto, de propor analiticamente a importância da compreensão do lugar


na experiência interseccional de mulheres lésbicas rurais e, justo por isso, estar aberta a rasura
dos sentidos que atribuem experiência lésbica urbana como única possibilidade afirmativa das
diferenças, ao mesmo tempo em que me permito borrar qualquer compreensão de que, no meio
rural, o homossexual é uma figura impossível.
28

***

Esta pesquisa me surgiu como um presente. Em um grupo de estudos por mim


coordenado na faculdade em que ensino, no interior do Ceará, eu e meus alunos estávamos
interessados em compreender aspectos envolvidos na produção da hétero normatividade em
espaços escolares. Dentre discentes envolvidos, todos provenientes de cursos de licenciatura,
dois deles nativos e residentes de uma pequena zona rural de Trairi-CE, sinalizam, com
entusiasmo, que dois casais de lésbicas estavam saindo do armário na localidade em que
moravam. “Ainda bem de leve”, diziam, “mas estão saindo sim”. Elas eram suas amigas e
estavam começando, inclusive, a aparecer na praça da Igreja Matriz, para encontrar e estar
juntas a uma turma de meninos gueis que se reunia constantemente para conversar, paquerar ou
mesmo “fazer fechação”.
No momento do comentário, ponderei que ali poderia existir um bom objeto de
pesquisa: o sair do armário de meninas lésbicas em uma zona rural. A literatura que
estudávamos raramente falava dos problemas relacionados ao armário e quando tocava no
assunto, sempre era a partir de uma perspectiva urbana onde os guetos e as redes de amizades
organizadas nas grandes cidades serviriam de guia e suporte a uma compreensão mais positiva
de si e do universo ao qual pertencem os sujeitos cujo desejo sexual se distancia daquele
vivenciado por pessoas heterossexuais. Pedi que eles tentassem mediar um possível contato
meu com essas meninas e quinze dias depois, no encontro seguinte do grupo, meus alunos
chegaram com a notícia de que todas elas haviam concordado em conversar comigo.
As quatro jovens mulheres lésbicas que assentiram em participar dessa pesquisa, na
ocasião dos nossos primeiros encontros, formavam dois casais. As duas primeiras entrevistas,
por escolha delas e acatando a uma possibilidade por mim sugerida, ocorreram em presença da
namorada. Quatro entrevistas, sendo duas realizadas com cada um dos casais, se desenvolveram
nesses termos. Posteriormente, cada garota respondeu a uma ou mais entrevistas individuais e
muitas conversas entre nós foram realizadas através de trocas pelo WhatsApp, individualmente
ou de modo coletivo, em um grupo onde três destas garotas participavam. Em relação às
entrevistas individuais, duas garotas responderam quando já haviam se separado.
Talvez o consentimento dado por elas para a realização de uma tarefa de exposição de suas
intimidades a uma pessoa desconhecida tenha relação com dois elementos facilitadores, como
bem sinalizou Bourdieu (2008). De um lado, minha auto apresentação como lésbica pode ter
favorecido um sentimento de aproximação entre entrevistadora e entrevistadas pela pertença
29

em um mesmo grupo. A ocorrência de tal caso, dirá o autor, colabora com uma compreensão
maior do universo do entrevistado, contribuindo para o estabelecimento do diálogo e
incrementando a possibilidade de desenvolvimento do mimetismo (falar como o entrevistado,
vestir-se como ele, etc.), aspectos importantes para a fluidez da entrevista.
Outro aspecto positivo foi o fato de eu ter sido apresentada às garotas por amigos
em comum. Para Bourdieu (idem) essa situação gera um nível ótimo aproximação situado entre
o estranho (que pode levar o entrevistador a objetificar o entrevistado, ou mesmo obstaculizar
suas respostas) e o muito familiar (que pode fazer com que o entrevistador creia tudo saber
sobre o entrevistado, não explorando suficientemente suas respostas). Portanto, a pertença a um
mesmo grupo como e um nível ótimo de aproximação são contributivos para o controle da
violência simbólica do pesquisador sobre o entrevistado, na realização de entrevistas.
Creio ser importante fazer uma ressalva sobre a ideia de que o sentimento de
pertencimento necessariamente favorece à fluidez da entrevista. De fato, duas entrevistadas
diziam que nós éramos da mesma família, mas essa familiaridade logo se revelou pouco
transparente. Partindo, de modo pouco refletido, da premissa de que os diálogos seriam mais
fluidos quando mais eu me colocasse como uma lésbica, no início da entrevista, a linguagem
por mim utilizada, comum à vida LGBTIA+ urbana, chegou mesmo a atrapalhar, já que algumas
meninas pareciam não se sentir à vontade com algumas expressões por mim utilizadas (tais
como “sapatão”, “viados”, dentre outras). Este episódio não pode ser ignorado pois ele revela,
sobretudo, a distinção da experiência lésbica em um circuito urbano (com seus bares,
maneirismos e linguagens) em relação a que se desenrola em um circuito rural. Se nós éramos
da mesma família, talvez não tivéssemos o mesmo sobrenome. Ou melhor falando com
Crenshaw (2004), podíamos estar juntas em uma mesma via, mas certamente não estávamos
posicionadas no mesmo cruzamento.
Seguindo o conselho de Bourdieu (2008) e Bertoux (1980) para os quais a principal
forma de postura investigativa que se utiliza da situação de entrevistas é a escuta atenta,
empática e sensível, diante do percebido incômodo busquei corrigir minha atitude para que a
percebida pertença “à mesma família” ainda funcionasse como um facilitador da confiança
envolvida no narrar processos de suas vidas íntimas, que envolviam suas preferências sexuais,
conflitos familiares, dentre outros aspectos pertinentes.
Em princípio, eu objetivava realizar uma etnografia clássica com inserção profunda
na cidade em que as garotas residiam. Muito rapidamente, alguns inconvenientes apareceram.
Em primeiro lugar, apenas duas dessas lésbicas ocupavam, de fato, a cena pública do distrito
rural. E, por certo, faziam isso de modo menos regular que os meninos gueis da turma da praça,
30

que sempre que possível se reuniam para conversar nos bancos em frente à Igreja Matriz, ou na
pizzaria no entorno da praça. O outro casal jamais aparecia e só foi possível encontrá-lo quando
marcamos conversas que ocorreram exclusivamente na lojinha de venda de roupas da mãe de
uma delas e que era o local onde ela trabalhava. Provavelmente, para o casal mais recluso,
minha permanência na cidade não me capacitaria a olhar melhor para elas, embora esse
processo de reclusão pública não pudesse ser ignorado como informação útil.
Pensei que, enquanto não houvesse uma maior aproximação em ambientes menos
artificializados, o uso de entrevistas sistemáticas seria o principal meio utilizado para alcançar
suas histórias de vida. Para essas garotas, a aproximação em outros espaços só se tornou
possível após seus processos migratórios, onde nos encontramos algumas vezes em bares na
cidade de Fortaleza. Somado o trabalho com todas as participantes, nove entrevistas foram
realizadas e adicionalmente algumas conversas que surgiam em diversas situações sociais
foram gravadas, com seus consentimentos, quando julguei ser relevante para a compreensão do
objeto pesquisado.
O planejamento e a realização das entrevistas obedeceram ao conselho de Bourdieu
(2008), para quem estas devem ser realizadas fugindo tanto do diretivismo do questionário,
quanto do não dirigismo assente em muitas pesquisas que determinam que os sujeitos narrem
livremente sobre suas vidas, sua origem e seu desenrolar. O flexível roteiro inicial de perguntas
fez emergir aspectos importantes tais como: como começaram a se reconhecer como lésbicas,
primeiras experiências, formas de lidar com o entorno social (escola, família, amigos) e
aspectos envolvidos na revelação, pontos de ancoragem fundamentais da pesquisa. As que
seguiram procurou aprofundar, dirimir dúvidas, corrigir ausências em relação à história singular
de cada uma das entrevistadas. Portanto, as entrevistas puderam ser diferenciadas para cada
participante.
Para Bertaux (1980), a diferenciação de roteiros de entrevista é uma boa forma de
aquisição de uma visão de conjunto, facilitando, inclusive na compreensão de aspectos
macrossociais envolvidos nas falas singulares dos sujeitos entrevistados.
Nas ocasiões de minhas idas à Promessinha, no início da pesquisa, as entrevistas
foram o recurso prioritário para a interação com as garotas do casal recluso. De outro modo,
com as garotas cuja vida social era mais agitada, sem perder o valor de importância, elas
somaram-se às observações advindas de interações em espaços públicos, tais como a praça, a
pizzaria central da cidade, um dia de lazer na praia e uma festa no clube da cidade para a eleição
da Garota Gay, na qual tive oportunidade de presidir a comissão julgadora. Na ocasião da ida à
31

festa foi possível me hospedar na casa em que moravam. Todos esses ricos elementos serviram
para a composição do mosaico que se pretende formar.
Além da reclusão de duas das meninas participantes da pesquisa, outro obstáculo
surgiu algum tempo depois do início da pesquisa, quando as participantes, uma após outra,
migraram para Fortaleza. Este fator fez naufragar, de modo definitivo, a ideia de realização de
uma etnografia clássica a ser desenvolvida através da estadia prolongada/imersão no lugar
pesquisado
Acompanhando seus processos migratórios - cujo desejo fora explicitado pelas
quatro jovens lésbicas já na primeira entrevista – duas coisas me pareciam claras: em primeiro
lugar, o fato de que a saída do campo para a cidade não poderia ser separada das próprias
condições de possibilidade estabelecidas em suas vidas, que se desenrolaram em um meio rural.
Se hoje as estatísticas dos Censos indicam um envelhecimento e masculinização da demografia
campesina, a partida de jovens mulheres parece ser um dado sociológico importante que não
pode ser separado da vida social de tais garotas. Essa ideia era reforçada ao mesmo tempo que
complexificada, diante da ideia de Eribon (2008) sobre a diáspora gay, ou do sexílio de
Mogrovejo (2005), para referirem-se às migrações motivadas por fatores associados às
sexualidades não heterossexuais. Portanto, estava claro que, menos do que bagunçar a pesquisa
ou destruir a possibilidade de permanecer com o olhar voltado para a vida de mulheres lésbicas
em uma zona rural, o êxodo de tais jovens era formado do mesmo barro da vida campesina.
Adicionalmente, existiam muitas páginas escritas no caderno de campo, que
ajudaram na fixação da memória das experiências por mim vividas nas quatro estadias
realizadas na zona rural da pesquisa e que não poderiam ser descartadas. Estas notas
acumularam dados descritivos do lugar, informações obtidas por outros residentes locais,
registros de conversas informais com as lésbicas, dentre outros elementos.
Tratava-se, portanto, de procurar compreender como usar esse material e avançar na
pesquisa sem perder o jogo de um olhar etnográfico. O encontro com as ideias e os trabalhos
de Koffes (2001, 2015) e Manica (2015), assim como Guérios (2011), Bourdieu (1989, 2008)
e Bertaux (1980), dentre outros autores, apontavam modelos metodológicos interessantes que
poderiam favorecer ao trabalho com os dados já obtidos sem perder o fôlego de uma etnografia.
Na medida em que, desde o início, minha pesquisa estava centrada em uma
tentativa de compreender o trajeto de jovens mulheres rurais a partir de suas narrativas sobre
parte de suas histórias de vida relacionadas às mudanças de status que envolvia suas auto
percepções como lésbicas, às suas experiências homoafetivas e aos processos envolvidos na (s)
decisão (ões) de tornarem-nas públicas, estava claro o objetivo de realizar atos biográficos. Para
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Koffes (2015), a quem subscreve Manica (2015), um ato biográfico se equivaleria a narrativas
de vidas que podem ser consideradas para se traçar biografias, autobiografias, histórias de vida
ou trajetórias, todas consideradas como documentos etnográficos, se examinados com uma
intenção etnográfica que visa buscar uma narrativa da mesma natureza.
Biografias, autobiografias, histórias de vida e trajetórias de vida são termos que
dividem o campo semântico das teorias e das indicações práticas de pesquisas nas ciências
sociais. Por terem características relativamente comuns, sendo a principal delas o fato de que
se realiza pela coleta de histórias de vidas narradas (pelo próprio sujeito e/ou por outros)
questiona-se de que modo tais dados podem vir a revelar fenômenos de caráter social.
Parece ser claro, para muitos autores da sociologia e antropologia contemporâneas,
que essas distinções metodológicas buscam responder a uma pergunta fundamental: de que
modo as falas de (ou sobre) um indivíduo (ou ainda de um grupo de indivíduos) podem ser
capazes de informar acerca dos processos sociais sobre as quais se constituem seus enunciados?
E de que modo as considerar a fim de realizar uma pesquisa metodologicamente aceitável e
eficaz no tratar com a realidade? Ninguém tem dúvida que tais debates possuem relações
profundas com outros debates sempre ativos e não resolvidos nas ciências sociais que
circunscrevem o campo das divisões binária entre indivíduo/sociedade, subjetivo/objetivo,
local/global, macro/microssocial, dentre outros pares.
Não pretendo me aprofundar em tal discussão, mas assinalar alguns embates que
podem ser produtivos para a construção de uma metodologia aceitável quando no trato com
relatos de vida narrados por apenas quatro indivíduos. Antes, contudo, é preciso mencionar a
instabilidade desses termos: não raro, um autor discorda da terminologia utilizada por
determinado pesquisador, avaliando que a metodologia utilizada não se encaixaria no termo
utilizado pelo mesmo, sugerindo a sua troca. Exemplificando a partir de uma descrição
conceitual que interessa a esta pesquisa, Bertaux (1980) adverte ao seu leitor que muitos
pesquisadores afirmam usar como metodologia a história de vida quando, na verdade, estão
tratando com relatos de vida. Isso porque este autor entende que a história de vida é uma
metodologia que se utiliza não apenas da narrativa do sujeito que conta sobre sua vida ou parte
dela, mas também requer, necessariamente, o ajuntamento e análise de documentos
provenientes de instituições sociais diversas (fichas médicas, criminais, relatórios escolares,
dentre outros) como condição indispensável para obtenção de informações sobre aspectos sócio
estruturais com os quais se relacionam os entrevistados. De outro modo, o relato de vida
seguiria a ordem de se ater exclusivamente à narrativa dos informantes.
33

Para Guérios (2011), o ponto de vista de Bertaux indica um dos caminhos pelo qual
as ciências sociais multiplicaram sua forma de trabalho. Bertaux (1980) defende que os relatos
de vida devem ser considerados não como histórias individuais daqueles que os narram, mas
como meios para obtenção de informações sobre a realidade objetiva aos quais pertencem os
relatos, sendo dispensável a busca por outros documentos. Para considerar sua validade
científica, seria necessário atingir um ponto de saturação: quando novos entrevistados já não
são capazes de gerar qualquer nova informação. Idealmente, dirá o autor, a saturação deve
incluir pessoas localizadas em grupos diferentes que pertencem ao universo pesquisado (patrões
e empregados, homossexuais e heterossexuais, católicos e evangélicos e umbandistas, por
exemplo).
Em um movimento oposto, que também fez escola nas Ciências Sociais, estão as
pesquisas que compartilham da crítica realizada por Bourdieu (1989) às biografias e que
passaram a ser recorrentes nas pesquisas sociológicas. Para o autor, sendo elas obtidas pelos
relatos de histórias de vidas (em primeira pessoa ou narrado por terceiros) não passariam de
uma ilusão relativamente compartilhada entre o narrador e o pesquisador. Tanto um, quanto
outro aceitariam uma ilusão fundamental intrínseca à própria vida como história passível de ser
narrada. Ambos estariam concebendo-a como uma ordem linear, teleológica e perfeitamente
organizada em torno de uma unidade/identidade, um “eu”, escondendo o fato de que tanto as
histórias narradas como as identidades que a protagonizam seriam fruto não de uma realidade
tangível e completa, mas da própria situação de pesquisa que por ele é considerada como uma
coação possibilitada pelo encadeamento de perguntas realizadas pelo pesquisador em
confluência com o desejo do sujeito biografado que, por sua vez, se inventa procurando fixar
uma identidade baseada em um “eu” socialmente reforçado.
Bourdieu (1989) propõe então que, menos do que biografias, as histórias de vidas
devem levar o pesquisador a observar os mecanismos sociais que favorecem ou autorizam a
experiência comum da vida como unidade e totalidade, encontrando no hábitus o princípio
ativo, irredutível às percepções passivas, à unificação das práticas e às representações. Deve-se
então, buscar realizar a trajetória de vida dos sujeitos ou grupos pesquisados, compreendendo-
a como a sucessão longitudinal da história em relação ao espaço social no qual os relatos se
realizam. Isto é, a série de posições (disponíveis em um contexto social específico)
sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é, ele
próprio, um devir, estando sujeito a incessantes transformações. Para Guérios (2011), muitas
pesquisas realizadas sob a influência de Bourdieu geraram uma sociologia sem sujeitos, mais
34

preocupadas com a análise de documentos do que com as experiências vividas pelos atores
sociais que se desejava investigar.
Preciosismo à parte, dado que todo campo de construção discursiva é sempre um
campo em disputas, não se trata de fazer um glossário para descrever cada um desses
procedimentos metodológicos. Ao chamar atenção para as instabilidades na utilização e
descrição de tais conceitos, pretendo deixar algumas coisas em evidência. A primeira delas é
que aqui as contribuições de diversos autores, mesmo que se situando em polos compreendidos
como opostos, nortearam o trabalho desde a coleta até a análise dos dados. Em segundo lugar,
talvez o mais importante, é buscar definir, nesse emaranhado conceitual, o percurso
metodológico da pesquisa que se realizou adotando uma perspectiva a meio caminho, retirando
considerações tanto de uma, quanto de outra posição teórica.
Inicialmente, assumiu-se, com Guérios (2011), uma posição menos pormenorizada
que entende a história de vida como uma técnica de entrevistas empregadas pelo cientista social,
com a obtenção de um relato de um narrador sobre sua existência através do tempo. A história
de vida do narrador não deixará de ser considerada como uma ficção biográfica que existe, até
mesmo, em função das respostas dadas à pesquisa. Porém, acredita-se que a narrativa só existe
mediante às condições que a tornam possível sendo capazes de informar, inclusive, sobre as
transformações constantes nos espaços sociais que habitam os sujeitos que as narram, o que
indica uma aproximação em relação à meta desejada por Bourdieu.
Em segundo lugar, considerando a diferenciação opositora realizada por Bertaux
(1980), as histórias de vida foram construídas a partir dos relatos das entrevistadas e das
observações que pude realizar quando estive com elas em situações diversas. Isto parece ser
necessário, já que não existiam referências a outras documentações. Essa escolha é óbvia, a
medida em que os processos existenciais que envolvem os embates em torno de sexualidades
não heteronormativas estão bastante situados nas relações cotidianas, nas redes de sociabilidade
a quais gueis e lésbicas participam, sendo bastante improvável a obtenção de um volume (ou
mesmo de apenas um) de documentos que servisse como valor de prova para a compreensão de
aspectos sócio estruturais envolvidos nas narrativas colhidas.
Finalmente, compreendo que tais relatos não esgotam a vida dos entrevistados -
como bem indicaram Bourdieu (1989), Bertaux (1980) e Koffes (2015) - sendo apenas uma
narrativa parcelar da vida do sujeito que se desenvolve em estreita relação com o ato da
pesquisa, embora também sejam incapazes de se desenrolar alheio às formas como as
narradoras estabelecem relações com outras pessoas e instituições, com a cidade e outros
espaços que se pode chamar de extra individuais (MANICA, 2015).
35

Portanto, a partir dos relatos das histórias de vida, verifiquei o modo como lésbicas
que vivem em zonas rurais vivenciam o processo de mudança de status constante na
“descoberta” de um desejo sexual desviante, no assentir a tal descoberta pelo estabelecimento
de relações homoafetivas e no ato de revelar publicamente tal experiência. Para Born (2001),
as mudanças de status funcionam como estrutura da trajetória de vida de uma pessoa que, por
sua vez, pode ser descrita como um conjunto de eventos que fundamentam a vida de uma pessoa
(ou grupo de pessoas) submetida a instituições sociais mais ou menos comuns entre os membros
de uma mesma cultura. Sendo a sexualidade uma parte importante na construção do indivíduo
moderno, como bem disse Foucault (2005), é crível que as mudanças de status envolvidas no
reconhecimento, na experiência e revelação pública de uma sexualidade socialmente
considerada como desviante sejam fundamentais no modo como cada participante da pesquisa
dá sentido à sua existência, incluindo ao lugar onde ela se desenrola. De modo provavelmente
acertado, Manica (2015) considera que trajetórias envolvidas em questões polêmicas traz à tona
diversos processos, eventos e contextos que revelam a justaposição de cenários sociais e os
jogos de força neles envolvidos, que ficariam invisíveis em estudos mais estruturais, por
exemplo, com as pesquisas do tipo survey.
Neste sentido, a presente pesquisa objetivou compreender as trajetórias de vidas das
pesquisadas, pela exclusividade de relatos que narram sobre aspectos parciais de suas
experiências de vidas referentes às mudanças de status operadas pela descoberta e vivência
amorosas homoafetivas e de revelação de tais práticas em um contexto social específico: o meio
rural, sem deixar de considerar suas interpenetrações com relação aos ambientes urbanizados,
em uma sociedade cada vez mais globalizada.
Adotei a sugestão de Kofes (2001) ao compreender tais relatos (que a autora
denomina estórias de vida) como interpretações individuais de experiências sociais e que devem
ser considerados, simultaneamente, como fonte de informações (já que informam sobre as
condições objetivas de sua ocorrência e que ultrapassam a experiência do sujeito), como
evocação (já que transmitem a dimensão subjetiva e interpretativa do sujeito) e como reflexão
(já que contém uma análise sobre a experiência vivida pelos sujeitos). Simultaneamente estive
atenta à sugestão de Bertaux (1980), para quem os relatos servem como pretexto para descobrir
um universo social desconhecido. Através dos olhos do narrador, procurei ver o mundo, mais
exatamente o mundo de quem me narrou. E ainda com Bourdieu (2008) tomei consciência de
que as histórias aqui descritas são ficções sobre ficções de vida existentes em um ambiente
social em constante devir.
36

Por fim, é preciso compreender alguns aspectos oportunos ao modo de validação


sociológica da análise dos dados coletados por relatos de apenas quatro entrevistadas. Tanto
para Bourdieu (2008) quanto para Bertaux (1980) a validade da análise do cientista social
depende da saturação obtida através das narrativas, que se dá quando novos sujeitos
entrevistados não conseguirem mais acrescentar dados obtidos nas histórias anteriormente
narradas por outros, condição mais fácil de ser encontrada em pesquisas com muitos
participantes. Além do mais, Bourdieu, (1989) insiste na necessidade da busca por documentos
provenientes de instituições sociais às quais pertencem os sujeitos narrados. Tais documentos,
segundo o autor, garantiriam valor sociológico à análise dos dados, eliminando, ao máximo, o
efeito ilusório das biografias.
Sendo apenas quatro o número de mulheres lésbicas a serem entrevistadas, é difícil
encontrar, com segurança, um fenômeno de saturação. As repetições encontradas, podem gerar
alguma ideia nesse sentido. Ademais, estando às homossexualidades sujeitas a embates que se
desenrolam no cotidiano (incluindo com muita força o cotidiano familiar, escolar, etc.) foi
impossível encontrar documentos fora das experiências narradas pelas entrevistadas, que
atestaram o valor social de tais narrativas, como já dito. Suas vidas são vidas comuns e foi no
miudinho dos seus cotidianos que elas vivenciam os confrontos e criaram alternativas, sem que
ninguém tivesse sido capaz de registrar em outro lugar fora o das memórias das experiências
vividas.
Deste modo, seguindo sugestões de Manica (2015), busquei compreender a
trajetória das entrevistadas, me afastando de Bourdieu e sua ênfase no campo
social/institucional, mas sem abster-me da compreensão de sua importância, procurando pensá-
lo, sobretudo, a partir das narrativas lésbicas aqui apresentadas.
Dito isto, escolhi seguir duas sugestões metodológicas que podem ser úteis à análise
dos dados coletados. Primeiramente, com Koffes (2001) adotei a ideia de comparação entre
todos os relatos, objetivando identificar repetições e idiossincrasias nas trajetórias narradas.
Embora Koffes (idem), em seu trabalho tenha realizado entrevistas com um considerável
número de pessoas e tenha também utilizado documentos institucionais, tomei de empréstimo
a sua proposição de que as repetições podem sinalizar aspectos possivelmente generalizáveis
na busca da compreensão de aspectos macrossociais envolvidos nas narrativas das lésbicas
pesquisadas. Obviamente, aqui busquei indícios a serem confirmados, complexificados,
corrigidos ou expandidos em outras pesquisas sobre o tema.
Por outro lado, Com Peneff (1994, citada por GUÉRIOS, 2011) e Born (2001) e
mesmo com Bourdieu (ver discussão realizada por GUÉRIOS, idem) compreendi que um bom
37

controle para o trabalho com tais relatos foi realizado com um profundo conhecimento da época
e do meio evocados. Guérios (idem) defende, a partir dessa sugestão, que os trabalhos analíticos
a ser realizado com narrativas de histórias de vida devem ser capazes de considerar, em nível
micro, as complexidades das dinâmicas sociais, sem, contudo, desconsiderar a produção de
conhecimento histórico, político e demográfico das situações nas quais se encontram os
sujeitos. No caso da pesquisa, além de aspectos relacionados à ruralidade, atentei para
elementos históricos que se relacionam com as experiências homoeróticas mais enfaticamente
as lesbianidades e o processo do armário.
Não tenho certeza de que estes cuidados solucionaram os problemas validade da
pesquisa aqui apresentada e, portanto, assumo que as reflexões que se seguirão são provisórias,
parciais, passíveis de serem generalizadas (ou refutadas) a partir de novas pesquisas que, a
exemplo dessa, procurem gerar entendimento sobre a experiência lésbica em espaços não
urbanos. Também não é certo que as experiências aqui narradas sejam o modelo, por excelência,
da experiência lésbica rural. Nenhum grau de representatividade pode-se aferir de tal pesquisa.
Porém, se por algum motivo esta pesquisa puder ajudar na compreensão da experiência lésbica
rural e principalmente, se ela servir a uma intensificação da possibilidade de uma existência
digna para lésbicas em zonas rurais, seu objetivo já foi alcançado.
O texto que aqui apresento está dividido em três partes. A primeira delas, de caráter
teórico, foi realizada em dois capítulos onde busquei tecer considerações pertinentes em torno
do armário. Os dois capítulos desta seção foram divididos de modo a informar perspectivas
diferentes, embora adianto, estejam inequivocamente interligadas entre si. Considerei o armário
a partir de três dimensões fundamentais: macrossocial, microssocial e individual (sem abrir mão
do fato de que os indivíduos aqui tratados são, sempre, “socialíssimos”).
Dentro do referencial teórico, o primeiro capítulo, com enfoque na primeira
dimensão citada, buscou compreender o armário enquanto episteme que informa não apenas
sobre os movimentos sociais sexuais que tomou o “dar-se a conhecer” (a si mesmo e aos outros)
como importante instrumento de enfrentamento da homofobia, mas sobretudo sua relação com
o regime de conhecimento moderno acerca das sexualidades humanas, que determinou
processos de categorização e valoração dos indivíduos a partir de parte de suas atividades
sexuais. Também foram considerados os limites e as possibilidades de aplicabilidade do armário
na contemporaneidade, em diferentes espaços. Busquei sinalizar algumas implicações que esta
taxonomia moderna das sexualidades desempenhou na elaboração de outros conceitos
socialmente importantes, aparentemente não relacionado às sexualidades, focando
especialmente a relação estabelecida entre sexualidade e urbanidade x não urbanidade, com
38

vistas pensar na possibilidade de aproximação ou afastamento do armário em contextos rurais.


Considerei que, embora não seja possível descartá-lo totalmente, também não pode ele ser
plasmado na tarefa de compreender da existência lésbica em tais localidades.
O capítulo seguinte buscou dar conta das experiências dos indivíduos em torno do
armário. Principiei pelas considerações sobre os aspectos individuais referentes à adesão a uma
identidade homoerótica, que pode ou não ser revelada a terceiros e que tem ainda a possibilidade
de ser politicamente investida. Passeei por um conjunto de textos que facilmente poderia ser
reconhecido como uma psicologia do armário, embora também tenham sido produzidos, além
do âmbito da clínica e das pesquisas psicológicas, nas ciências sociais tomada pelo viés dos
estudos LGBTIA+ e que parecem buscar descrever caminhos pelos quais os sujeitos realizam
uma carreira moral – nos termos de Goffman (2017) -, indicando os percursos trilhados na
transformação das identidades de sujeitos que vivenciam experiências e/ou se declaram
homossexuais, os possíveis fatores intervenientes nas declarações públicas acerca de suas
sexualidades e alguns elementos importantes para uma anexação política a tal identidade.
Compreendi o valor heurístico desses textos, inclusive observando que, como todo regime de
dizibilidade e visibilidade, tais textos não apenas informam sobre os sujeitos com os quais eles
tratam, mas também os formam.
No segundo momento, no mesmo capítulo, busquei compreender como, do ponto de
vista de uma análise micro sociológica, os sujeitos marcados por esta identidade procuram
adaptar-se a contextos sociais adversos. Desta forma, parti então da exposição de alguns dados
referentes à homofobia no Brasil e busquei ressaltar a lesbofobia, inclusive considerando sua
maior incidência no meio rural. Posteriormente naveguei pelos esforços envidados por sujeitos
homossexuais na gestão do armário, diante das relações de sociabilidade que se desenrolam em
diferentes espaços no cotidiano. Buscando aferir aspectos microssociais, procurei pensar, com
a sociologia interacionista, como o conhecimento moderno produzido sobre a sexualidade afeta
os processos de convivência social entre todos os indivíduos a ele submetidos e, de modo
especial, os desempenhados por homossexuais, a partir do controle da informação sobre si,
diante dos outros. Elementos das geopolíticas de sociabilidades nos meios urbanos e rurais
foram considerados.
Nos dois casos, individual e microssocial, além do valor heurístico para pensar em
experiências de mulheres rurais assumidamente lésbicas, espera-se que também este capítulo
sirva para aprofundar o conhecimento sobre o processo pelo qual a episteme do armário moldou
uma identidade homossexual e os modos de sociabilidades desses sujeitos, em nossa cultura.
39

Em todos os três níveis – e aqui incluo novamente o macrossocial - foi importante estar com o
olhar antenado para a homofobia, condição necessária à própria produção do armário.
Na segunda parte da tese, trago os dados etnográficos de minha pesquisa. Ela é
composta por cinco capítulos, sendo o primeiro destinado a uma breve descrição da localidade
rural na qual viviam as jovens entrevistadas quando vivenciaram às mudanças de status
operadas na construção de uma identidade homoafetiva e na revelação desta a muitos outros
habitantes do lugar. As trajetórias de vida de cada uma das participantes da pesquisa foram
dispostas em quatro capítulos, sendo cada um deles destinado à descrição da trajetória de vida
de cada uma das garotas pesquisadas. Excetuando a protagonista da primeira história narrada,
com a qual não possuo mais contato, as demais garotas tiveram acesso ao texto produzido sobre
suas trajetórias, fazendo ajustes que julgaram necessários e liberando sua utilização neste
trabalho. Aquela que não pode ler a sua história por mim reconstruída já havia me dado seu aval
quando assinou um termo de consentimento para realização da pesquisa e publicação dos dados
encontrados.
Por fim, espero ter sido capaz de organizar algumas considerações finais da
pesquisa, que, como dito, mesmo que provisória, tenham servido à elucidação da existência
lésbica em zonas rurais de pequeno porte, matéria rarefeita nos campos simbólicos da
sociologia, nos estudos das mulheres rurais e nos estudos das sexualidades desenvolvidos no
Brasil.
40

2 NOTAS SOBRE O EPISTEME DO ARMÁRIO.

A expressão sair do armário já caiu no senso comum. De tão comum, parece quase
perder o sentido que lhe deu força. O apresentador de televisão Marco Mion, em 2016, disse ter
saído do armário assumindo-se fisiculturista. Diante da análise do sistema de cotas raciais nas
universidades brasileiras, Ribeiro (2005) estende o conceito de armário aos mestiços, avaliando
que eles devem ser capazes de se definir racialmente, em um momento no qual a bem-sucedida
operação político-ideológica do movimento negro logrou a fusão da categoria pardos com a
categoria negros. Em agosto de 2020, Sikera Júnior, apresentador homofóbico do programa
sensacionalista Alerta Nacional, anuncia que em seu programa terá um quadro inédito onde as
pessoas poderão, em rede nacional, sair do armário não só declarando sua orientação sexual,
como qualquer outra coisa que desejem confessar. Saia do armário é o nome do programa.
Embora seja possível pensar que a multiplicação de aplicações deste termo contribua para gerar
uma certa confusão e mesmo esvaziamento de seu significado, também não pode ser descartada
a hipótese de que ela seja fruto da difusão da metáfora do armário, em muitos espaços da vida
pública. Muitas pessoas, em muitos lugares do planeta, associam tal metáfora a uma revelação,
do tipo auto declaração pública, da orientação sexual homoerótica do sujeito que fala.
Entre as pessoas LGBTIA+, assim como em espaços diversos espaços de
acolhimento para este público, a metáfora do armário transitou (e ainda transita) por duas
significações relacionadas, mas atuando de modos diversos. Em sentido mais primário, o
armário estaria mais próximo de um processo de auto identificação de gueis e lésbicas, a partir
do reconhecimento (mais ou menos positivado, a depender da singularidade forjada no contexto
de cada um) de suas orientações sexuais. Assim, nas conversas existentes entre pessoas gueis
ou lésbicas, a declaração eu saí do armário na época do ensino médio poderia facilmente ser
traduzida eu me percebi guei/lésbica na época do ensino médio. Dito deste modo, a metáfora
do armário soa como uma forma de correspondência entre aquilo que o indivíduo
(supostamente) é e aquilo que ele pensa ser, condição necessária para que se revele de tal modo.
O sentido contemporâneo da experiência do armário surge provavelmente após a
segunda guerra mundial. Anteriormente, entre as décadas de 1920 e 1930, que marca um
período de efervescência da vida guei em algumas cidades norte-americanas, o armário referia-
se à entrada de indivíduos em tais círculos de convivência. Chauncey (1994), que busca postular
a historicidade do armário, diz que entre 1890 até por volta dos anos de 1920/1930, havia, na
cidade de Nova Iorque, uma complexa, bastante visível e até mesmo respeitada cultura Guei.
41

Para lésbicas desta época o armário tinha um sentido mais privativo e menos
público. Kennedy e Davis (1993, citados em MORRIS, 1997) entrevistaram mulheres que se
tornaram lésbicas nas décadas de 1930-1950 e descobriram que algumas mulheres que usaram
a expressão “being out” (saindo) significaram-na como ter uma primeira relação sexual com
uma outra mulher. De todo modo, nas décadas de 1920 e até 1950, o significado da experiência
do armário parece estar próximo de um reconhecimento de si, ou ao menos de seu desejo e da
capacidade de se alinhar com ele, na busca de relações de sociabilidade, incluindo práticas
sexuais entre iguais.
Durante o período entre 1930 até 1950, os Estados Unidos – que passaram pela
recessão que determinou a lei seca, pela segunda guerra mundial e pela guerra fria (década de
1950) – aprovaram uma série de leis que foram criadas para impedir a intensificação e
visibilização de uma efervescência guei perceptível, tolerada e até festejada outrora. Estas
investidas foram importantes ferramentas na propagação e naturalização de uma dicotomia
severa entre a hétero e a homossexualidade, naquele país. Nas décadas anteriores, era possível
que alguns homens (e talvez mulheres) tivessem relações fortuitas com o mesmo sexo, sem que
com isso fosse referido (ou se auto referisse) como homossexual. Portanto, apenas após a
segunda guerra mundial, quando esta cisão está bem marcada, o armário uma experiência
referente à decisão de um indivíduo em pautar publicamente sua identidade sexual homoafetiva,
em especial fora dos espaços de acolhimento de pessoas homossexuais. (Cf. CHAUNCEY,
1994)
Não mais (ou não apenas) o apontamento do modo como o indivíduo “descobre-se
a si mesmo”, mas, mediante consolidação de tal “descoberta”, o armário passa significar a
postura de alguém que se autor rotula como homossexual e que decide pela circulação social
desta informação. Enuncia, portanto sobre a decisão que o indivíduo que se identifica como
guei ou lésbica faz acerca de revelar ou segredar às pessoas, em seu meio de sociabilidade, a
respeito de sua orientação sexual que se ordena no sentido do estabelecimento de
relacionamentos amorosos e/ou sexuais (ocasionais ou não) com indivíduos do mesmo sexo.
Estar no armário, neste sentido, significa manter-se em segredo, sair do armário, revelar-se.
Este último modo de compreensão é hoje o principal sentido evocado quando o termo sair do
armário é utilizado.
A expressão é tradução literal da metáfora coming out of closet, bastante utilizada
no meio estadunidense. E também vem de lá, devido um acontecimento histórico preciso, a
rebelião de Stonewall, a força da ideia de que tornar visível a vida de gueis e lésbicas seria a
principal arma contra uma sociedade heterossexista e sem dúvidas, opressiva em relação à
42

sexualidade que se ergueu em torno de noções negativas tais como pecado, crime, distúrbio,
desvio, neuroses, dentre outras.
Antes mesmo do uso dessa expressão, a ideia da necessidade migração da escuridão
do armário para a ribalta da cena pública, segundo Johansson e Percy (1994), ocorreu quando
Karl Heinrich Ulrichs, em 1869, afirmou que invisibilidade dos homossexuais funcionava como
obstáculo à mudança da opinião pública. Para ele, retirando a orientação sexual - que ele tratou
de descrever, classificar e criar categorias, como bem descreveu Foucault (2005) em sua história
da sexualidade - nada mais diferenciaria um sujeito homossexual do heterossexual. Afirmação
importante, já que a análise médica da época recomendava fortemente à intervenção no sentido
da cura dos homossexuais. Por pensar deste modo, tanto Katz (1996) quanto Eribon (2008)
creem que Ulrichs pode ser considerado como o primeiro ativista guei da história.
A “hipérbole” do armário é o outing, termo que pode ser traduzido como "delação".
Neste caso, há a imposição da revelação da sexualidade de um indivíduo por alguém,
independentemente de seu consentimento e, por vezes, de seu conhecimento posterior sobre tal
feito. O termo Outing se propaga na década de 1990, mais tarde que o coming out, a partir de
uma controvertida prática institucionalizada por grupos politizados, que consistia na delação da
homossexualidade de pessoas públicas. Hoje, bem menos usado e conhecido (inclusive entre
pessoas LGBTIA+) o termo outing também informa sobre os atos de delação que ocorrem na
trivialidade da vida: a notificação, a terceiros, sobre a homossexualidade (assumida ou
presumida) de qualquer pessoa, inclusive daquelas que desejariam manterem-se em segredo.
Dito assim, parece que tais decisões (de se reconhecer como guei ou lésbica, de
assumir-se publicamente como tal ou de delatar uma pessoa que deste modo se identifique)
referem-se a uma opção puramente individual. Que não seja enganoso o uso das palavras
decisão, escolha, auto declaração. Parece e talvez cada vez mais venha a parecer, que sair do
armário é uma decisão que compete exclusivamente ao sujeito que decide a tarefa. Porém, na
realidade, esta simplificação não é correta. A metáfora guei do armário tem raízes bem mais
profundas e atuam em uma dimensão tão mais ampla, que a própria escolha do sujeito não pode
deixar de considerar que ele mesmo é socialíssimo.
Se o sujeito é socialíssimo e não pode ser pensado fora da história, o mesmo pode
ser dito em relação ao armário. Seria correto supor um armário entre os homens gregos, uma
vez que a relação erótica entre iguais era não apenas aceita, como até mesmo esperada, como
diz Foucault (2003)? Seria o armário um problema relacionado às formas de convivência entre
as çacoaimbeguiras, índias descritas pelos primeiros colonizadores na Terra Brasilis? E
43

poderiam essas pessoas serem consideradas homossexuais? E hoje, estariam presentes em todos
os confins habitados no planeta?
Ao que se é de supor, uma resposta negativa seria dada a essas perguntas posto que,
embora gênero, sexo e papéis de gênero sejam regulados em todas as culturas, os modos como
isto é feito difere enormemente, não só em períodos históricos específicos, mas também em
contextos sociais diferenciados: a antropologia e a história não cessam de indicar-lhes suas
variações.
O armário tem, portanto, uma história. Uma longa história que surge bem antes de
sua real materialização enquanto força política post Rebelião de Stonewall e consequente apelo
aos indivíduos no sentido de sua intensificação. Uma história da qual ele é parte e que explica
sua gênese, mas também que ele ajudou a construir.
É mais que um conceito descritivo, mais que a descrição dos processos pelos quais
os sujeitos são levados a revelar suas sexualidades. Ele promove efeitos que é preciso descrever.
A descrição do armário, a compreensão daquilo que ele representa, não pode ser realizada sem
que se considere as condições de possibilidade de seu surgimento e os efeitos decorrentes do
investimento em torno de tal metáfora na criação e politização da cultura guei e lésbica, bem
como da formação da identidade e na organização dos processos de sociabilidade de gueis e
lésbicas na contemporaneidade.

2.1 Breve genealogia do armário: uma leitura macrossocial.

O intenso apelo para que sujeitos homossexuais tornem visíveis e públicas as suas
preferências sexuais, como já mencionado, deriva do conhecido movimento de Stonewall,
ocorrido no dia 28 de julho de 1969, na cidade de Nova Iorque. Era tempo de recessão. A
regulação de venda de bebidas proibia a sua aquisição por homossexuais, considerados
naturalmente “desordeiros”. Se algum estabelecimento comercial fosse pego subvertendo tal
ordem, Bartenders, proprietários, gerentes (e demais funcionários, caso houvessem) eram
presos e o álcool confiscado. Essa proibição, que claramente usava a recessão como meio de
controle social dos costumes, impeliu à marginalização de gueis, lésbicas e travestis na cena
pública de diversão na cidade. Em um bairro afastado, sem água corrente - o que determinava
o parco padrão de higiene do bar Stonewall-, estes atores sociais dividiam o espaço com outros
“marginais”, tais como moradores de rua, prostitutas, boêmios, para citar alguns.
Comumente, as pessoas que frequentavam o Stonewall eram submetidas às
investidas de policiais que acendiam as luzes do bar, colocavam-nas para fora, pediam-lhes os
44

documentos e fiscalizavam suas roupas: uma pessoa poderia ser presa se não estivesse vestida
com, no mínimo, três peças de roupa “adequadas” ao seu sexo biológico. As batidas policiais
eram frequentes, mas neste dia de julho, um acontecimento inusitado que, conforme Marcus
(2019), dependeu de coisas tais como o calor da noite em questão e o atraso no horário
corriqueiro da investida policial, realizou uma importante transformação na relação de homens
e mulheres homossexuais com a cena pública.
Por ser um dia acalorado, muitas pessoas já estavam do lado de fora do bar, quando
a polícia chegou por volta de 1h20 da madrugada, deparando-se com pessoas mais alcoolizadas
do que costumava encontrar. Sem combinação prévia, os frequentadores no interior do bar
simplesmente decidiram não sair, quando foram solicitados que o fizessem, pela força policial.
Do lado de fora, uma travesti arremessou uma pedra contra os policiais e ao lado da porta de
entrada, uma lésbica resistiu à prisão. Os ânimos se inflamaram e por seis dias, policiais
tentaram, sem sucesso, encurralar e prender o grupo. O antigo bairro no qual se encontrava o
bar, com suas ruas desencontradas, favoreceu uma estratégia de fuga em que, quando as forças
táticas (que haviam sido chamadas para reforçar a operação policial) entravam por um lado da
rua, os frequentadores do bar escapavam pelo outro. Ao final de seis dias de sucessivas batidas
pouco efetivas, uma passeata clamando por reconhecimento das vidas gueis, lésbicas e
transexuais inaugurou as várias que seguiram o seu modelo, não só nos Estados Unidos, mas
também em vários outros lugares do mundo, incluindo o Brasil, com a primeira “marcha contra
a violência a homossexuais”, ocorrida na cidade de São Paulo, em 1980 (Cf. SIMÕES &
FACCHINI, 2009). A ideia central do movimento guei nascente nos Estados Unidos poderia ser
assim resumida: “saia do armário e vá para as ruas”, que funcionava consoante com o
entendimento do movimento feminista cuja máxima poderia (e ainda pode) ser observada pela
expressão “o pessoal é político”.
A barganha estimuladora à assunção homossexual cria que a revelação pública traria
pessoas heterossexuais queridas para a luta, ou, ao menos, promoveria uma mudança
generalizada do olhar sobre as relações homoafetivas Essa concepção foi retratada no filme
Milk, a voz da igualdade (MILK, 2018), onde se pode ver a fala do protagonista3, no momento
em que ele apela a seus assessores e alguns voluntários presentes em seu comitê:

3
. Harvey Milk foi o primeiro homem declaradamente guei a ser eleito a um cargo público na Califórnia, o de
supervisor da cidade de São Francisco. Exerceu o mandato por 11 meses, conseguindo aprovar uma rigorosa lei
sobre direitos homossexuais e combateu, fortemente e com sucesso, a iniciativa de John Briggs, autor da derrotada
Proposição 6 de 1978, que pedia a demissão, nas escolas, de todos os funcionários assumidamente gueis e lésbicas,
bem como daqueles que os apoiassem. Em 27 de novembro de 1978, Milk e o prefeito George Moscone foram
assassinados por Dan White, um político conservador que também havia sido supervisor da cidade e que renunciara
ao cargo, mas que desejava seu posto de volta. Interessante observar que Milk, antes de concorrer ao cargo público,
45

Se vamos convencer os 90% a se importarem conosco, os 10%, temos de fazer com


que eles saibam quem somos. Todos precisam sair do armário. Em todo o estado, não
importa onde viverem. Se vamos derrotar a Prop 6, falemos a todos eles que saiam do
armário: todo advogado, professor, médico ou apanhador de cachorro gay. Nós
precisamos sair do gueto. Precisamos fazer com que todas aquelas pessoas lá fora
saibam que conhecem um de nós. E se alguém não quiser sair do armário, nós abrimos
a porta (em MILK, 2018).

A tensão criada pelo tom ameaçador fez com que seu coordenador de campanha o
alertasse sobre o perigo da estratégia, dado o direito constitucional de privacidade. Ao que Milk
respondeu: Privacidade? Neste momento, a esta hora – não estou dizendo isso como supervisor
– a privacidade é o inimigo. E se vocês querem poder político de verdade, se é isso que vocês
querem, tentem dizer a verdade para variar! (Idem). E o tom de ameaça em tal apelo, realizou-
se de imediato, quando Milk perguntou se alguém naquela sala ainda não havia contado à
família e mediante a afirmação positiva de um dos presentes, entregou-lhe o telefone, o
conduzindo coercitivamente a tal revelação.
Stonewall, sem dúvidas, foi um potente catalisador da formação de uma cultura guei,
nos Estados Unidos e o mesmo modelo a ser seguido em outros lugares. O acontecimento fez
surgir novos coletivos (bem como melhorou a articulação dos preexistentes) destinados ao
enfrentamento da homofobia. A partir daí, foi possível, de modo mais intenso e regular,
desenvolver jornais, folders, panfletos pró-homossexuais, que circularam por bares, boates e
outros espaços de acolhimento de pessoas LGBTIA+ e que conseguiram, também, ser
divulgados em grandes meios de comunicação. Tais textos certamente serviram como matérias
fermentadoras da nascente politização da cultura guei.
O liberacionismo vivido na sociedade americana na década de 1970 deu lugar a uma
política de direitos civis baseada no orgulho guei, esperando-se que, a partir do falar de si, fosse
possível um intenso grau de visibilidade, que resultaria em uma interferência positiva dos pró-
direitos homossexuais. Na década de 1980, pode-se ver a intensificação de uns lugares gueis
em diversos lugares do mundo com o surgimento do Pink Market e seus inúmeros espaços de
sociabilidades amigáveis aos homossexuais, ao mesmo tempo em que os debates políticos
conseguiam se dar ao conhecimento público problematizando a perpetuação da homofobia

era uma pessoa que vivia, de modo conformado, dentro do armário. Foi preciso que ele vivesse o período de
efervescência cultural da década de 1960 (incluindo Stonewall), o seu processo migratório para a cidade de São
Francisco e também seu próprio progresso político para que a revelação passasse a fazer parte de sua estratégia.
46

incrustada no tecido social daquele país. O armário, cada vez mais, foi se constituindo uma das
principais estruturas para desmonte da homofobia.
O trânsito de pessoas gueis e lésbicas em coletivos politicamente articulados e em
espaços de sociabilidade favoráveis a seus acolhimentos fazia surgir uma situação na qual,
bastante provavelmente, muitas pessoas já teriam aderido à uma identidade homossexual,
embora algumas tantas ainda pudessem experienciar a dificuldade de alcançar o orgulho e em
realizar a passagem do segredo para a revelação. Nessas duas décadas, diz Hegna (2007, citada
por SAGESSE, 2009), as narrativas sobre o coming out eram descritas como renascimento,
onde as ideias de crise, segredos juvenis e guinada se faziam presentes. Também nesta época,
muitos autores apostavam na compreensão dos processos pelos quais sujeitos aderiam a uma
identidade homossexual lidando com um contexto homofóbico. Nestes casos, estimava-se
ajudar a realizar a aceitação de uma identidade homoafetiva e a passagem, com segurança, do
segredo para a revelação.
No final da década de 1980, a urgência da ruptura com armário foi tão exaltada que
gerou, sob muitas críticas, uma prática institucionalizada de outing, pela denúncia de pessoas
públicas, vivas ou mortas, como estratégia política. O Queer Nation e o ACT UP, dois coletivos
do início da década de 1990 - cujo objetivo focal era estabelecer ações diretas sobre a
visibilidade homossexual e a liberdade sexual - procuravam utilizar-se dele de modo a minar a
hipocrisia de celebridades e políticos que, vivendo sua sexualidade no armário, realizavam
declarações públicas homofóbicas ou contrárias às pautas acerca dos direitos de gueis, lésbicas
e outras pessoas não heterossexuais. Para estes grupos, a necessidade coletiva anularia o direito
à privacidade (Cf. JOHANSSON & PERCY, 1994).
No Brasil, o surgimento do movimento homossexual ocorre no final da década de
1970, período em que ocorrem o afrouxamento do regime militar, o “milagre econômico” e
também que eclodem os movimentos feminista e negro. Ao retornar do autoexílio na Califórnia,
em 1976, João Silvério Trevisan, atravessado pelo fluxo intensivo da cultura estadunidense pós
Stonewall, movimenta-se para a criação, junto a outros gueis em São Paulo, do Núcleo de
Afirmação pelos Direitos Homossexuais, que reunia cerca de 15 integrantes, nem sempre os
mesmos, e em sua maioria homens. A participação de lésbicas era rarefeita e quase nunca
ultrapassa sua estreia. Em 1978, após um importante evento na Universidade de São Paulo que
reuniu diversos movimentos sociais, o Núcleo passa a se chamar “Somos - Grupo de Afirmação
Homossexual” funcionando de modo mais fortalecido, comportando mais integrantes,
incluindo lésbicas cuja frequência se fazia de modo regular. O Somos ainda fundou o jornal
Lampião da Esquina, o primeiro jornal de teor político em relação às questões referentes à
47

homossexualidade, que enviava seus exemplares para qualquer lugar do Brasil. Em 1980, o
grupo realizou a Marcha contra a violência à população homossexual (primeira marcha no
Brasil com esse propósito).
Em 1983, as lésbicas promoveram uma rebelião no “Ferro’s bar” - ato que foi
alcunhada por Stonewall brasileiro -, ao serem impedidas de vender o jornal Chana com Chana,
produzido pelo grupo lésbico GALF: Grupo de Ação Lésbica Feminista, coletivo de lésbicas
que haviam se autonomizado do Somos, em maio de 1980, devido aos muitos embates com
integrantes gueis que eram por elas acusadas de serem machistas ao não conseguirem
reconhecer as questões de gênero envolvidas na existência lésbica. O Galf atuou dentro de
guetos lésbicos, com a venda do referido boletim, com a panfletagem de folhetos de
conscientização sobre discriminação e violência contra as lésbicas e com a divulgação das
atividades do grupo. Além disso, ele atuou fortemente contra a onda de prisões arbitrárias, de
torturas e de extorsão comandada pelo delegado José Wilson Richetti que estava empenhado
em perseguir e realizar prisões de pessoas homossexuais, como por exemplo, na prisão de
lésbicas que, sob seu comando, foram por ele levadas dos guetos sob a “acusação”: “você é
sapatão”, em 15 de novembro de 1980 (Cf. SOARES & COSTA, 2011; PINAFFI, 2015 e
FERNANDES, 2018). Na marcha de 1980, as lésbicas carregaram duas faixas com o dizeres
Pelo Prazer Lésbico e Contra a Violência Policial. O jornal Chana com Chana circulou de
fevereiro de 1981 até maio de 1987.
No início da década de 1980, portanto, vê-se um burburinho que exigia, por certo, a
revelação pública da orientação sexual de seus integrantes, que assistiam, em um período pós
“AI-5”, a uma perseguição bastante contundente à visibilização social da homossexualidade.
Se, na história pós-colonial de nosso país a homossexualidade não foi considerada crime, tão
pouco deixou de ser tratada como caso de polícia. Além da já citada prisão de lésbicas,
colaboram com a ideia, para citar algumas ocorrências, a demissão de Celso Curi e outros
jornalistas que publicavam colunas falando sobre homossexualidade e a invasão policial ao
cine-íris, frequentado com propósito de “pegação guei” (Cf. TREVISAN, 2018). Ao ser tratada
como caso de polícia, reforçou-se um “avizinhamento” da já existente associação entre a
experiência homossexual com a noção de crime e desordem social que, junto às noções de
pecado e doença alicerçaram o senso comum em relação aos indivíduos e às suas vivências
homoeróticas.
Na empiria do movimento, estava claro que sua própria manutenção e possível
ampliação, em grande medida, dependiam de um grau considerável de exposição pública de
seus membros para além dos muros dos espaços de lazer. Era esperado que pessoas
48

homossexuais pudessem aderir a manifestações políticas, mesmo que corressem o risco de


serem visibilizadas por possíveis matérias jornalísticas surgidas na grande imprensa e também
que algumas delas tivessem dispostas a se mostrar em lugares públicos de poder. Porém, nesse
contexto desfavorável, as consequências do assumir-se eram tão marcantes, que é provável que
uma decisão a seu favor não fosse tão simples e fácil.
Citando MacRae (1990, em SAGESSE, 2009), Sagesse (2009) informa que eram
bastante variáveis os graus de exposição pública que cada um dos integrantes dos coletivos pró-
homossexualidades estava disposto a se submeter. E ainda que existissem outros conflitos
políticos dentro do grupo, um dos problemas encontrados para a longevidade do Somos foi
justamente a dificuldade de encontrar pessoas que pudessem publicamente se assumir.
Aqui no Brasil a prática de outing também dividiu posicionamentos. A primeira
revista de circulação nacional voltada para o público LGBTIA+, a revista Sui Generis, em seu
primeiro editorial, no ano de 1995, que rebatia fortemente a prática de outing, afirmando que,
no contexto brasileiro, a delação seria um ato de “mau caratismo”. Apesar de tal declaração, a
Sui Generis não hesitou em mencionar um suposto caso amoroso entre o jogador de futebol
Renato Gaúcho e o então lutador de jiu-jítsu Alexandre Frota, em uma de suas edições do ano
de 1997. Também não deixou de publicar, em 1999, o outing feito por Robson Caetano ao atleta
velocista olímpico Walmes Rangel, que depois assumiu publicamente sua homossexualidade.
No mesmo ano, a revista trazia ainda uma matéria que revelava um suposto caso amoroso
homoafetivo vivido pelo piloto de fórmula I Ayrton Senna e no ano seguinte publicou as
declarações da ex-jogadora de vôlei da seleção brasileira Ana Paula, quando esta afirmou à
revista VIP que 60% das meninas do vôlei de praia seriam lésbicas. (Cf. ROSA, 2010).
Claramente defendendo a prática de outing, no ano de 1995, no dia 12 de fevereiro,
uma matéria publicada pelo Jornal Folha de São Paulo trazia as falas de Paulo César Fernandes,
presidente do Grupo Gay Atobá, do Rio de Janeiro e Luiz Mott, presidente do Grupo Gay da
Bahia, que prometiam lançar, em breve, um dossiê com parlamentares famosos cujos nomes
haviam sido ligados a práticas homoeróticas e que alguns deles, inobstante ao fato,
posicionavam-se publicamente de modo homofóbico, inclusive atuando a contramão das pautas
LGBTIA+ (Cf. FREIRE, 1995). Atrelado a uma concepção essencialista da homossexualidade,
em vários momentos Mott buscou elencar personalidades históricas famosas (tais como Zumbi
dos Palmares, Dona Leopoldina, Santos Dumont e Lampião) que ele julgava passíveis de serem
considerados como homossexuais. É possível dizer que ele nunca deixou de se preocupar com
o outing de personalidades históricas e famosos, atualizando e republicando, sempre que
possível, os nomes que integram suas variadas listas. O lançamento do Dicionário Biográfico
49

dos Homossexuais na Bahia, em 1999 e o dossiê 100 desviantes sexuais mais célebres na
História do Brasil, em 2010, pelo Grupo Gay da Bahia, coletivo que Mott preside, procuraram,
ambos, listar supostos ou assumidos homossexuais desde a história do Brasil Colônia até hoje,
incluindo alguns famosos mais contemporâneos que são publicamente assumidos. Além do
mais, em sua página pessoal (e atual) na internet é possível encontrar alguns textos que
argumentam sobre os indícios que colocam o nome de personalidades citadas no interior de tais
Dossiês.
Provavelmente a “efusividade” em torno da política do armário, inclusive a
controversa prática de delação do início dos anos 1990, não foram muito sensíveis à reflexão
sobre as possíveis consequências do estabelecimento de uma identidade social revelada,
inclusive em relação ao próprio movimento político que a incitava. Entre os ativistas
estabelecia-se uma hierarquia entre os de dentro e os de fora do armário. Ademais, preconizando
a aproximação e integração com o entorno hétero, dentro do mainstream homo, buscava-se
responder a problemática decisão sobre “o que revelar” de modo a contribuir na produção de
um padrão identitário subordinado ao modelo heteronormativo, forma assimilada de
identidades gueis e lésbicas.
Naquele contexto, meninos afeminados e lésbicas masculinizadas
(caminhoneiras/butchs) não eram bons exemplos a serem seguidos e publicitados. Quanto mais
próximos do modelo normativo heterossexual um guei ou uma lésbica fosse, quanto mais
assimilados ao mainstream hétero, supunham, mais fácil seria o processo de aceitação e
comoção social pró existências homossexuais. Por certo, caminhavam lado a lado à homofobia
que, como dizem Prado e Machado (2008, p. 76), impede que os indivíduos encontrem
legitimidade para que o esforço psíquico individual de se assumir se consolide em uma
identidade menos subordinada.
Fora do movimento e na vida privada de cada um, algumas autoras tratavam de
denunciar que também este imperativo passava por cima de possíveis consequências sofridas
pelos indivíduos após o processo de revelação. Sedgwick (1998, 2007) e Rubim (2017), por
exemplo, ponderam que, a depender do contexto no qual se situava o revelado, isto poderia lhes
custar terapias forçadas, demissões sumárias, agressões corretivas, expulsões do meio familiar,
dentre outras reações, para citar algumas consequências reais.
Passados 50 anos após Stonewall, momento em que a política LGBTIA+ e as
próprias produções em torno do armário conseguem ser mais sensíveis às dificuldades reais da
revelação, o assumir-se ainda se constitui uma moeda importante. Marcus (2019), um ativista
50

desde o contexto da rebelião estadunidense e com engajamento que existe até hoje, acredita que
a revelação do segredo é O segredo do sucesso do movimento:

A chave é seguir em frente e, para isso, é preciso dar visibilidade aos LGBTs, o que
significa se assumir sempre que puder, que não for perigoso. Este tem sido o nosso
segredo aqui nos Estados Unidos: ganhar uma pessoa de cada vez, com sua família,
com seus vizinhos, com seus colegas, se isso for possível

Uma contundente crítica feita ao armário, foi a realizada por Sedgwick (1998, 2007),
no final da década de 1990. A autora - que reconhece a eficácia da política panfletária do armário
em relação ao surgimento de uma cultura guei, bem como os avanços estabelecidos por ela,
embora compreenda os problemas associados à criação de uma forma identitária excludente e
normalizadora da existência guei e lésbica pelo movimento homossexual de então, bem como
os tortuosos efeitos sofridos por alguns indivíduos em função do ato de revelar-se ou ser
revelado-, vai além (ou aquém) dos problemas envolvidos nos efeitos da abertura da porta do
armário, o compreendo a partir de uma análise arque genealógica, atentando para sua
emergência na forma de organização do conhecimento ocidental moderno sobre as sexualidades
e estabelecendo um questionamento sobre sua eficiência como moeda política. Sua análise
considera o armário como marca indelével na vida de gueis e lésbicas durante todo o século
XX, mas não só para eles, posto que os enlaces da noção de sexualidade sobrecarregam também
os heterossexuais (ainda que de modo menos intenso que a seus supostos opostos), além marcar
outros nós críticos da cultura moderna que aparentemente não se revelariam afetados por ela.
Signatária da história da sexualidade de Foucault, Sedgwick (1998, 2007) afirma
que o surgimento do armário não pode ser confundido com os ânimos provenientes dos
acontecimentos ocorridos em julho de 1969. Segundo a autora, ele é efeito inequívoco do
próprio processo de constituição da sexualidade ocidental moderna. Para ambos, menos do que
um dado biológico da natureza, a sexualidade é uma invenção histórica, uma forma de
organização e hierarquização das condutas sexuais dos indivíduos, realizada pela articulação de
diversos campos de saberes - dentre os quais a medicina, o direito e as clínicas psicológicas e
psicanalíticas.
Em sua história da sexualidade, Foucault (2005) indica que desde o Concílio de
Trento, com sua ênfase na prática confessional, até o fim do século XIX - quando as noções de
homo e heterossexualidade mais próximas ao sentido atual se formam - o sexo foi amplamente
colocado em discurso. Se a confissão da sexualidade levou homens e mulheres praticantes do
51

crime de sodomia4 às penas da Santa Inquisição, no século XVIII, ele passa a ser “confessado”
nas clínicas de domínios psicológicos e médicos e também o é aos agentes judiciários, incluindo
às forças policiais repressivas. O acúmulo e entrelaçamento dos registros e das produções
discursivas pela criminologia, pela medicina e pelos saberes “psis” fizeram surgir uma “ciência
sexual” que organizou a ideia de uma sexualidade normal e outra desviante, que se proliferou
em uma velocidade impressionante e que tratou de examinar, agrupar, classificar e hierarquizar,

4
Muitos autores concordam com a ideia que o sodomita não pode ser equivalente ao homossexual, embora possam
ser aproximados. Enquanto o homossexual foi constituído como uma espécie diferenciada da natureza, com
inclinações próprias, o sodomita era o indivíduo que praticava um ato ilícito, o ato da sodomia, quer de modo ativo
ou passivo. O conceito de sodomia, não sem divergências, era normalmente considerado como uma espécie de
pecado/crime contranatura consumado pela penetração e ejaculação em vaso posterior, impróprio à fecundação,
isto é: o sexo anal com coito. Deste modo, a sodomia poderia ser claramente realizada pela relação entre dois
homens, como também entre homens e mulheres. Considerado como ato de profunda gravidade, era matéria de
avaliação e julgamento de todos os tribunais – o do Estado, o da Igreja e o da Santa Inquisição – que, de modo
articulado, pediam a morte pela fogueira os corpos que praticassem tais atos.
A referência à anatomia e à fisiologia masculina imprimiu algumas dificuldades à compreensão dos atos sexuais
entre as mulheres dentro do pecado/crime da sodomia, o que dificultou uma convergência na concepção de
moralistas, legisladores e oficiais em torno da aplicação da pena prevista para o crime, nestes casos. A confusão
diante incerteza da real da existência de sodomia entre as mulheres foi alvo de ampla consideração na obra De
sodomia, do teólogo Sinastrine, escrita por volta do ano de 1700. A partir do detalhamento minucioso das formas
de relações sexuais entre as mulheres e das considerações realizadas sobre elas, o tratado objetivava dirimir as
dúvidas dos que precisassem avaliar tais atos, não incorrendo em erros de julgamento.
Discordando de alguns teólogos e moralistas que acreditavam ser classificados como sodomia os atos sexuais entre
as mulheres com o uso de instrumentos viris, Sinastrine - que dizia se utilizar de todos os textos existentes que
tratassem ou mencionassem a relação entre elas – recorre às ideias de alguns anatomistas de sua época afirmando
a existência da produção de esperma por testículos encontrados no interior do corpo feminino e sua ejaculação,
via clitóris, que, em algumas mulheres, poderia alcançar o tamanho do pescoço de um ganso. A sodomia verdadeira
só aconteceria obedecendo a esses critérios e de outro modo, o ato sexual entre elas deveria ser considerado com
crime de molície. Para melhor proceder com o julgamento, adverte o moralista, é preciso que haja tanto a inspeção
do corpo da mulher acusada - verificando se o clitóris tenha tamanho suficiente para penetrar qualquer um dos
vasos (e não mais apenas o posterior já que, em todos os casos, é pecaminosa o derramamento de sêmen em vasos
não reprodutivos) – bem como a verificação de sua a narrativa sobre os acontecimentos constantes nos atos sexuais,
mesmo que obtida por força da tortura.
Um quadro disperso de referências tais com o utilizado por Sinastrine - que incluíam leis, escrituras religiosas,
códigos escritos por teólogos e moralistas, documentos advindos de processos inquisitoriais - provavelmente
conduziu a direção de trabalho da primeira visitação inquisitorial portuguesa ao Brasil, um século antes, em 1591,
quando mulheres que se relacionaram sexualmente com outras mulheres foram julgadas e condenadas por crime
de sodomia, embora ainda não houvesse nenhuma determinação oficial do tribunal da inquisição que se referisse
às relações sexuais entre mulheres como ato sodomítico. Tal acontecimento data do ano de 1640, quando o III
Regimento Inquisitorial, integra a sodomia feminina ao rol das culpas. Por outro lado a sodomia, desde as
ordenações afonsinas (1446) – e se estendendo através das ordenações manuelinas (1512) e filipinas (1603) – era
considerada o maior dos crimes sexuais, devendo-se proceder com a fogueira. Apenas a partir das ordenações
manuelinas a sodomia feminina foi claramente expressada e provavelmente referindo-se às relações sexuais entre
homens e mulheres. De todo modo, a preocupação com a sodomia masculina, inclusive a realizada pelo sexo entre
eles, resvalou para decisões sobre o que fazer com os atos sexuais entre mulheres.
Diferentemente de outros lugares onde funcionaram os tribunais da inquisição, no Brasil, as visitações do tribunal
inquisitorial português não levou nenhum(a) sodomita à fogueira. Mulheres e homens que cometeram o pecado
contranatura, tiveram seus atos expostos publicamente, foram açoitados em vias públicas, pagaram custas
processuais e, nos casos mais extremos, foram degredados. 29 mulheres foram sentenciadas ou investigadas pelo
crime de sodomia na primeira visitação realizada pelo tribunal inquisitorial de Portugal, em 1591, nas terras
brasileiras Um terço das mulheres tiveram que prestar conta, através da confissão ou da necessidade de responder
à delações, sobre atos que teriam cometido em parca idade, com cerca de 8 anos, em uma época onde elas
costumavam casar entre 12 e 15 anos. (Cf. BELLINI, 2014).
52

dentro de uma atmosfera científica, os atos sexuais dos indivíduos. Nesse contexto, as
sexualidades que foram mais amplamente investidas foram constituídas pela oposição binária
hétero/homossexual, onde o segundo termo guardou consigo atravessamentos anteriores que o
concebiam como pecado e foi ainda anexado como signo de criminalidade, desordem
moral/social e doença.5
Nas ciências sexuais, a sexualidade foi situada em um relacionamento privilegiado
com as construções mais íntimas de identidade individual, de modo a que tal orientação
revelasse a verdade sobre o ser mesmo do sujeito. Pelo acúmulo dos discursos e sua ordenação
em uma ciência sexual que anexou práticas sexuais à essência de cada indivíduo, constituiu-se
o que hoje conhecemos como sexualidade, um dispositivo construído historicamente, mas que
funciona como espécie de “natureza” diferencial entre indivíduos homo/heterossexuais.
A perspectiva genealógica de Sedgwick (1998, 2007) entende que a “escolha” por
uma sexualidade é absolutamente insidiosa na vida contemporânea, mas também bastante
frágil. A autora indica indícios da fragilidade ao notar que, apesar de parecer ao senso comum
que a heterossexualidade seja o normal da existência, ordem da natureza humana e que a
homossexualidade se configuraria como natureza desviada, no plano das ideias constituído pela
literatura médica da virada do século XIX para o século XX, o homossexual surge antes do
heterossexual, fato que marca a historicidade de ambos.
Em sua história da heterossexualidade, Katz (1995) informa que, nos Estados
Unidos, a estreia do termo heterossexual ocorreu no ano de 1892, em um artigo do Dr. James
G. Kiernan, no qual também constava a referência mais antiga do termo homossexual, na
literatura médica daquele país. Neste texto, a heterossexualidade fora considerada uma
patologia sexual, espécie de hermafroditismo psíquico, já que indicava uma inclinação do
desejo sexual para os dois sexos. Esta imagem perdurou até 1920, embora um ano após essa

5
Embora Foucault narre uma história da sexualidade europeia, ou euroamericana, creio não ser possível dispensá-
la na reflexão sobre a construção da sexualidade no Brasil. Desde os tempos coloniais, as preocupações organizadas
pela moral cristã europeia se fizeram presentes, em um trânsito de ideias e ações que partindo da determinação de
cortes portuguesas, animava o olhar de como eram tratadas as relações entre iguais no Brasil (Cf. VAINFAS, 2017
e BELLINI, 2014). Mais tarde, a circulação de textos escritos por psiquiatras e cientistas sexuais europeus e
americanos e a influência desses textos nas referências brasileiras também se fizeram de modo claro. Por exemplo,
o livro Erotologia Feminina, de autoria de médicos europeus famosos tais como Forel, Moll e Hirschfeld, teve, no
mínimo, 4 edições lançadas no Brasil, em língua portuguesa. Em 1956, Iracy Doile, no livro Contribuição ao
Estudo da homossexualidade feminina, utilizou-se do livro Homossexualidade feminina, escrito em 1954 pelo
Psiquiatra norteamericano Frank Caprio, cuja tradução brasileira esteve disponível desde 1960. Além da obra de
Caprio, Doyle utilizou-se ainda de trabalhos escritos por Havelock Ellis, Radcliff Hall, Magnus Hischfeld, Krafft-
Ebing e Freud, dentre outros autores absolutamente influentes na construção de uma noção que associou a
homossexualidade à doença. Estes são apenas alguns exemplos e não esgotam todas as referências que denunciam
as intersecções entre as ideias brasileiras, europeias e americanas sobre as homossexualidades e de modo especial,
sobre o lesbianismo.
53

publicação a sociedade estadunidense já dispusesse da tradução, em inglês, do livro


Psychopathia Sexualis, do médico vienense Kraft-Ebing. Katz (idem) assevera que Kiernan
atribuiu sua compreensão da heterossexualidade ao médico vienense. Porém, conforme sua
análise, tratou-se de um equívoco de Kiernan já que o heterossexual de Karft-Ebing tinha
disposições sexuais para o sexo oposto, embora patologicamente marcado por desejos de
práticas sexuais não reprodutivas. Para dispersar tamanho borramento, foi preciso esperar
alguns anos, inclusive a construção (e propagação) da psicanálise e o deslocamento que ela
operou ao retirar o prazer sexual como subsumido à atividade reprodutiva, para que o
heterossexual passasse a ser visto como o sexo normal e como uma experiência presumida na
vida de cada indivíduo, diz o autor.
Observando as condições históricas da emergência de cada uma dessas personagens
e o modo como foram construídas por rebatimento, ele entende que tanto a heterossexualidade
como a homossexualidade são construções de origem recente e ambas personagens estão
dialeticamente relacionados na história da sexualidade moderna: heterossexualidade e
homossexualidade significavam modos historicamente específicos de dominar, pensar sobre,
avaliar e organizar socialmente o sexo e seus prazeres (KATZ, 1996, pp 23-24).
Sedgwick (1998) também argumenta sobre a instabilidade de cada um desses
termos, quando percebe a redução operada pelo olhar que tomou em consideração um único
aspecto da prática sexual na constituição deste conceito: a escolha do gênero/sexo do objeto
sexual. Conforme sua ideia, questões como frequência do ato sexual, intensidade da
importância do sexo na vida de um indivíduo, desejo por faixas etárias específicas, número de
parceiros sexuais, práticas zoófilas, práticas de masturbação, para citar algumas possibilidades,
poderiam ter sido critérios de classificação da diversidade de orientações sexuais e que,
inclusive, estão presentes em algumas culturas. Além do mais, ao olhar por dentro das formas
como alguns indivíduos se pensam em relação às suas práticas homoeróticas, percebe que há
uma profunda variação: há pessoas que incluem práticas homoeróticas desde muito cedo em
suas vidas, outras de modo tardio e há ainda aquelas que só realizam-nas de modo eventual,
isso sem contar que há pessoas que realizam práticas homoeróticas mas não se percebem como
homossexuais, há aqueles que jamais se perceberem fora dessa chave de inteligibilidade, dentre
outras possibilidades. Embora todas essas diferenças pudessem vir a ser constitutiva da ideia de
orientação sexual, a escolha do objeto sexual (se do mesmo gênero/sexo ou de sexo/gênero
oposto) se estabeleceu como critério exclusivo para a sua determinação no fim do século XIX,
período que marca a emergência da concepção moderna das sexualidades. Obviamente estes
diversos modos de organização de prazeres e experiências homoeróticas não garantiria qualquer
54

lugar seguro e essencial em torno de uma categoria identitária como a de homossexualidade. E


nem mesmo de seu suposto oposto, a heterossexualidade.
Apesar de todas essas indefinições,

O que havia de novo no final do século passado [séc. XIX] era a delimitação de um
esquema global pelo qual, da mesma forma que todas as pessoas tinham
necessariamente sido atribuídas a um gênero masculino ou feminino, também era
necessário considerar uma sexualidade homo ou hétero, uma atitude binarizada cheia
de implicações, por mais confusas que sejam, mesmo para os aspectos ostensivamente
menos sexuais da existência pessoal (SEDGWICK, 1998, p. 12)

Gayle Rubim (2017, p. 17) cunhou o conceito de sistema de sexo/gênero para


determinar um conjunto de disposições pelas quais a matéria-prima biológica do sexo e da
procriação humana é moldada pela intervenção humana, social, e satisfeita de uma maneira
convencional, por mais bizarra que seja. Embora haja diferenças internas, quando considerada
em conjunto, via de regra, a crítica pró-homossexualidades compreende que sistema de
sexo/gênero da nossa cultura funciona sob o julgo da heteronormatividade. De modo geral, ela
pode ser definida como um conjunto de discursos e práticas que atuam no sentido de realizar a
coincidência entre gênero, sexo e sexualidade, entendendo a superioridade heterossexualidade
sobre a homossexualidade. A heteronorma estabelece também uma moral familista,
monogâmica e reprodutivista. Ela pressupõe a heterossexualidade como o ponto de partida e de
chegada da existência humana e uma vez que o erotismo entre iguais aparece, pergunta-se e
lamenta-se pelo que se fez desvio e, no limite, procura-se corrigi-lo, normalizá-lo.
Entendendo que o armário não seria o outro do poder, Sedgwick (1998, 2007)
sustentou que ele não poderia ser utilizado como uma arma para determinar a sua própria
superação. Salienta ainda que nem um ato individual (e mesmo massivo) de revelação poderá
ser suficiente para desgastá-lo ao ponto de fazê-lo sumir, contrariando as expectativas de gueis
e lésbicas que, após a explosão de Stonewall, supunham seu fim. Isto por que, já que a formação
de uma identidade homossexual necessita da afirmação opositiva da heterossexual, a promessa
política de supressão da necessidade do armário pela revelação massiva de uma identidade
homossexual, faz retornar o binarismo e os efeitos desiguais de poder com os quais foram
investidos.
Além do mais, assumir-se uma única vez, ou sempre, não resolve o problema do
indivíduo em torno do armário. A cada novo encontro, mudança de vizinhança ou emprego, ele
deve ser capaz de reavaliar os perigos de sua exposição, sem garantia absoluta de sucesso, por
55

mais que tantos já tenham feito. A figura do homossexual não pode ser considerada como o
outro da homofobia e é por ela atravessada.
Como diz Miskolci (2007, p. 61), a análise de Sedgwick revela o paradoxo universal
do armário: a tentativa de preservar-se da homofobia está sempre fadada ao fracasso. O armário
é um lugar contraditório ou impossível, pois ninguém pode estar completamente nele nem se
beneficiar da decisão de deixá-lo.
Estaríamos de fato fadados ao eterno retorno do armário ou o armário chegaria ao
seu fim? Quem de nós estaria sob seu julgo? Seria o armário um conceito ainda útil à
experiência contemporânea e pertinente à explicação dos modos pelos quais a totalidade dos
sujeitos homossexualmente orientados organizam suas existências? Tratemos a seguir.

2.2 O armário na contemporaneidade: seus limites e possibilidades

Talvez eu esteja descrevendo processos em vias de desaparecimento. O fim do


armário ou mesmo a necessidade de reavaliar seus modos de funcionamento contemporâneos
têm sido alvo de algumas indagações. Bimbi (2017) crê que profusão de imagens e o alcance
da discursividade LGBTIA+ no mainstream heterossexual fez e faz com que cada vez seja mais
fácil e natural assumir-se, o que pode indicar que o armário esteja alcançando seu triunfo e
estabelecendo seu próprio fim. As novelas televisivas, bem como as informações
disponibilizadas pelas redes sociais, por exemplo, têm servido a esse propósito. Em especial,
parece afetar a própria organização da experiência sexual entre jovens. A cada dia, mais jovens
assumem-se como não exclusivamente heterossexual. O autor defende essa ideia ao citar duas
pesquisas realizadas no ano de 2015 pela consultora YouGov, no Reino Unido e nos Estados
Unidos, que revelam alguns dados interessantes, dentre os quais o fato de que 64% dos jovens
britânicos entre 18 e 24 anos e dos jovens estadunidenses entre 18 e 29 anos revelam-se não
heterossexuais, embora nos dois países as estatísticas mudem, inflando a categoria
heterossexual, quando os entrevistados possuem apenas 3 alternativas de respostas:
homossexual, heterossexual e bissexual (Cf. BIMBI, 2017).
Para Reynolds, (1999, p. 348, tradução nossa), o embasamento dos limites
estabelecidos entre o público e o privado, especialmente o operado pelo cyber espaço, somado
à explosão das identidades sexuais contemporâneas, resultado da dispersão crítica efetivada
pela teoria Queer - que redundou em uma proposta de diversidade sexual – promoveram
subjetividades desviantes e desejos aberrantes (…) na fila pra o seu momento de saída do
armário, [e] é interessante notar com que frequência o armário é explicitamente invocado
56

nessas confissões. Menos do que a diminuição da importância do armário, Reynolds acaba


apontando para a sua multiplicação.
Enquanto ainda não é possível afirmar, de fato, que essas condições já tenham
determinado o fim do armário - a era do closet não passou, dizem Seidman, Meeks e Traschen
(1999, p. 27, tradução nossa); o armário é uma meta em vias de se fazer e a ser alcançada,
ressalta Bimbi (2017); não estou disposto a chamar um fim para a era do armário, pontua
Reynolds (1999, pág. 349, tradução nossa) - Seidman, Meeks e Traschen (1999), acreditam que
ele precisa ser melhor calibrado para que sirva à compreensão da existência de gueis e lésbicas
na atualidade. De acordo com eles, o armário foi fundamental para a criação de uma cultura
guei moderna que moldou uma identidade comum e a politizou ao transformar os homossexuais
em vítimas sociais injustiçadas.
Porém, a tensão desmanteladora das políticas identitárias fez com que os indivíduos
não heterossexuais cada vez menos incluam o armário como centralidade de suas existências.
Deslocando o sentido comumente atribuído da relação do armário com indivíduos gueis
sofredores de um destino comum em uma sociedade heteronormativa, Seidman, Meeks e
Traschen (1999) pautam a ideia de que o armário é uma estratégia de acomodação e resistência
que simultaneamente reproduzem e contestam os apelos de uma sociedade heteronormativa e
que ele se estabelece pela manutenção de uma vida dupla relativamente integrada no tecido
social, situação na qual os indivíduos escolhem onde e como revelar suas sexualidades.
E isso é feito de modo a normalizar suas condutas e dar rotina às suas existências
pela integração social em um mundo heterossexualizado, ainda que isso seja realizado de modo
incompleto. Em especial, indicam que esta prática ocorre preferencialmente com pessoas que
não organizam suas condutas em torno de uma cultura política pró-homossexualidades e que a
metáfora politizada do armário não se encaixaria em suas existências.
O armário, dirá Chauncey (1994, p. 15, tradução nossa), visa evitar riscos de
exposição não intencional [e] criam um espaço ‘protegido’ que permite que os indivíduos
formem um ‘self gay’. Tal ideia se aproxima da de Eribon (2008, pp. 67-68), quando ele diz
que:

O armário foi com tanta frequência denunciado pelos militantes homossexuais como
o símbolo da ‘vergonha’ e da submissão à opressão que acabou se esquecendo ou
negligenciando que ele também pode ser, e ao mesmo tempo, um espaço de liberdade
e um meio – o único – de resistir e de não se submeter às injunções normativas. […]
e é esse extraordinário sentimento de orgulho e de liberdade conquistada e mantida
como um segredo partilhado com vários que os gueis das gerações precedentes talvez
não encontrem mais na liberdade e no orgulho ostentados à luz do dia e que lhes
57

parecem fáceis demais, e, num certo sentido, um pouco insossos, uma vez que
perderam o jogo com o interdito.

Boe, Maxey e Bermudez (2018) também avaliam as armadilhas que podem existir
na proposição da revelação como estratégia de desmantelamento da homofobia, em especial
quando esta é requerida a pessoas que ocupam espaços interseccionais delicados. Para eles, o
armário é um conceito branco e euro-americano e precisa ser descolonizado. Ao observarem as
dificuldades decorrentes de entraves Inter étnicos encontradas por latinos que vivem nos
Estados Unidos, os autores defendem que, nesse contexto, muitas vezes a manutenção e
administração de um segredo sobre uma sexualidade estigmatizada deve ser considerado como
uma estratégia de saúde. Além do mais, não raro, esses sujeitos não conseguem encontrar lugar
nem nos movimentos LGBTIA+, que podem operar por segregações racistas e xenofóbicas, e
tão pouco nos movimentos étnicos e raciais, que podem funcionar dando sustentação à
homofobia. As dificuldades decorrentes da interseccionalidade vivida por lésbicas negras
também foram consideradas por Audre Lorde (2019), que problematizou existência de entraves
para a participação e proposição de pautas de tais mulheres dentro do homofóbico movimento
negro e do racista movimento lésbico majoritariamente branco. O armário é um conceito de
raça.
Miguel (2019, 2021) tem estudado a genealogia, ainda em curso, da
homossexualidade em Maputo, capital e maior cidade de Moçambique, fundada pela
colonização portuguesa naquele país. Para o pesquisador, embora relações entre iguais sempre
tenham existido na África, uma subjetividade homossexual só foi passível de ser estabelecida
naquele país a partir de meados da década de 1980, com as ações realizadas pelo recente
movimento LGBTIA+ em parceria com organizações internacionais de promoção de direitos
humanos na área da saúde com foco no enfrentamento da epidemia de HIV/Aids. Desde então,
em Moçambique, as ações sanitaristas que são realizadas mais fortemente nos grandes centros
urbanos têm se espalhado cada vez mais, se imiscuindo em espaços periféricos e rurais.
Ao encontrar interlocutores de zonas periféricas e/ou rurais de Maputo, Miguel
(2019, 2021) verificou que entre os negros nativos que residiam nesses espaços na década de
1950, quando eles não possuíam energia e televisão, não existia uma gramática, nem uma
experiência subjetiva capaz de ser por ela representada, para expressar algo em termos uma
subjetividade homossexual. Existiam aqueles que transitam de modo fluido entre gêneros (tal
como os/as maria-rapazes) e que não necessariamente aderiram às práticas homoeróticas e que
sequer seriam considerados nos termos da noção de sexualidade. Também encontrou o
58

etnógrafo algumas relações não monogâmicas, onde alguns de seus entrevistados, casados e
com filhos, manteriam relações homoafetivas com outros homens, podendo estas serem
realizadas o consentimento de suas esposas, que acreditavam que isto era uma espécie de
desígnio ancestral dado aos seus maridos, não lhes sendo fonte de contrariedades.
Nos espaços rurais do Sul de Maputo, dois homens morando juntos, ou duas
mulheres na mesma situação, jamais seriam postos em suspeição já que entre os locais
acreditava-se que a homossexualidade seria coisa de branco, inexistente entre os negros nativos.
Familiares não chegaram a considerar a possibilidade de que alguns de seus filhos pudessem se
relacionar com os homens com os quais moravam e até lhes facilitava a moradia conjunta. Em
um contexto de pobreza extrema, não era raro que algum estrangeiro se dirigisse aos
progenitores de algum rapaz para solicitar-lhes permissão de que o jovem fosse viver em sua
casa, argumentando o desejo de ser ajudado em suas tarefas, o que era percebido de modo
positivo pelos familiares do rapaz. Alguns de seus interlocutores lhes narraram o momento em
que foi surpreendido pelo fato de que homens poderiam namorar com homens, bem como
mulheres com outras mulheres, hipótese que jamais aventaram ser possível, embora eles
mesmos percebessem seus desejos por pessoas de seu mesmo sexo.
Miguel (2019, 2021) argumenta que a falta de uma gramática LGBTIA+ somada à
reserva com a qual os assuntos sexuais são normalmente concebidos em Moçambique, sejam
eles homo ou heterossexuais, acabariam por favorecer um olhar não treinado de muitos nativos,
especialmente os rurais, para perceber relacionamento entre pessoas do mesmo sexo, mesmo
quando eles existiam. As memórias de seus informantes narram acontecimentos ocorridos entre
a década de 1950, marcada pelo vazio simbólico, até a segunda metade da década de 1980,
momento no qual Maputo transforma este vácuo pela adesão à episteme euro-americana, com
auxílio das políticas de enfrentamento da AIDS, mais fortemente concentradas nos contextos
urbanizados daquele país.
Miguel (idem), utiliza-se da ideia de ars erótica para definir como sujeitos que
viviam em espaços não urbanos e que não sabiam sobre a existência de homossexuais se
entregavam aos prazeres com outros homens sem, contudo, se identificarem deste modo. Para
o pesquisador, menos que uma natureza diferencial específica, a emergência da
homossexualidade depende do contato com as formas institucionalizadas da sexualidade
surgidas na modernidade europeia, através de práticas e discursos prolongados no tempo e no
espaço. Em suas palavras:
59

A ideia de homossexualidade, tal como fora construída na Europa, é uma categoria do


pensamento que não está dada na natureza e, portanto, não é nem universal, nem
estática, tampouco atemporal (…). Em outras palavras, uma subjetivação
homossexual − ou seja, como contraposta à heterossexual; alguém que
costumeiramente narre seu desejo ou identidade como inato e imutável; que
frequentemente conduza suas práticas homoeróticas ao longo da vida; que direcione
seu afeto primordial ou exclusivamente a pessoas de seu próprio sexo; e/ou que
carregue consigo a tendência de aderir, mais ou menos, em sua corporeidade aos
signos do gênero oposto − não é universal, ainda que as práticas sexuais e afetivas
entre pessoas do mesmo sexo possam virtualmente ser.
Assim, para que a homossexualidade ou o sujeito homossexual (moderno) ganhe
existência social é preciso um esforço político-epistemológico ou um processo de
institucionalização − fenômeno que historicamente ocorreu em determinados
momentos e locais da experiência humana, sem que necessariamente coincidissem em
seus significados. (MIGUEL, 2021, pp. 945-946)

Embora Miguel (2019) reconheça o caráter exogênico das identidades LGBTIA+


em Maputo, o autor julgará importante não as desconsiderar no sentido de entender como elas
são acolhidas, transformadas ou rejeitadas por sujeitos que realizam sexo com iguais e que nas
tradições de suas famílias, eram explicadas e relativamente toleradas, a partir das diversas
gramáticas nativas. Mesmo compreendendo muitos problemas associados à colonização das
práticas e dos discursos nativos pelo movimento LGBTIA+ em Maputo, Miguel se considera
um entusiasta do armário e julga necessário dar continuidade aos avanços promovidos por tais
movimentos, dentro do país pesquisado.
Ainda na África, o ânimo de Miguel com o movimento LGBTIA+ não é partilhado
por Tushabe (2017) para quem, em Uganda, as práticas e os discursos associados aos
movimentos dos direitos humanos individuais no âmbito da sexualidade têm levantado debates
sobre as liberdades dos indivíduos, desde que estas sejam realizadas pelo modo do colonizador,
através do paradigma do armário, onde o descobrimento de si e a revelação são essenciais. Para
a autora, as tensões estabelecidas nos termos de uma identificação de si e dos outros dentro da
gramática do colonizador não levam em conta os epistemes locais, inscritas em tradições
ancestrais, sobre as diferentes formas de conhecimento e de ser.
Em seus estudos sobre as sexualidades de “mulheres que trocam energias eróticas
do mesmo sexo” em Uganda, que foi considerado a partir da imprensa local como o pior lugar
do mundo para ser homossexual, Tushabe (idem) sugere que a política de visibilização
LGBTIA+ foi responsável pela introdução do discurso homofóbico naquele país, inclusive na
emergência de uma derrotada proposição para instituir uma lei de criminalização da
homossexualidade, por parte dos políticos conservadores, que justificavam seus apelos a partir
de uma suposta necessidade de proteção das crianças contra abusos sexuais cometidos por
homens homossexuais.
60

Para a autora, a adesão à gramática homonormativa dos movimentos sociais pelos


direitos humanos individuais, prevista para civilizar africanos, continua a apagar sua
humanidade. Tushabe (2017) recupera o discurso nativo sobre a relação erótica entre mulheres,
entendendo que em muitos povos nativos, as mulheres que trocam energia erótica do mesmo
sexo dentro de um regime de confidencialidade sobre suas práticas, estabeleciam uma espécie
de “segredo aberto” onde as relações entre elas eram notadamente conhecidas e também
consideradas como modos de fortalecimento das relações comunitárias, pela união entre duas
famílias.
Se a homofobia se deu, em nível do estado, pela emergência do fracassado projeto
de lei com vistas a criminalizar a homossexualidade, a entrada do discurso dos direitos humanos
individuais, incluindo o direito de visibilizar-se, no nível mais molecular da família e da
comunidade, substituiu o valor simbólico e comunitário das trocas de energia erótica entre
mulheres, fazendo aparecer, em seu lugar, a lésbica e todos os problemas a elas associados.
Uma vez que no contexto nacional a lésbica tenha emergido como personagem organizada em
torno da criminalidade, a valorizada troca de energia erótica entre mulheres passou a ser
vivenciada, nas comunidades onde elas ocorriam, sob o crivo da vergonha. Tushabe (2017)
sinaliza ainda que a incitação à declaração pública da homossexualidade quebra com o valor de
reserva no trato de assuntos sexuais entre os povos nativos por ela estudado.
Aponta também que a colonização da gramática local pela gramática LGBTIA+,
imprimiu não apenas identidades e lutas por liberdade individual, mas também uma certa
heteronormatividade assentada no requerimento de práticas afetivas e amorosas nos moldes do
casamento, o que em muito diferia dos modos operatórios das trocas sexuais observadas em
muitos homens entrevistados por Miguel (2019, 2021) e em algumas experiências de mulheres
citadas por Tushabe (2017), que poderiam ser heterossexualmente casadas e ainda assim trocar
energia erótica com o mesmo sexo, com o reconhecimento velado da comunidade.
Tushabe (2017) busca recuperar os mitos e os vocativos nativos que explicam e dão
suporte à fluidez das possibilidades de orientação do desejo sexual, dentro das economias
simbólicas das culturas que os forjaram. Ela objetiva demonstrar os efeitos deletérios da
colonização das práticas locais pela episteme do armário realizada pelos movimentos direitos
humanos e termina por lançar um apelo:

Com base nas lições das experiências de mulheres que trocam energias eróticas com
o mesmo sexo, sugiro que os defensores dos direitos humanos do mesmo sexo levem
em conta as rasuras epistêmicas que a experiência colonizada vivencia, e estejam
abertos a várias estruturas linguísticas e comunitárias que criem espaços para diversas
formas de ser. (TUSHABE 2017, p. 170, tradução nossa)
61

Schweighofer (2016) também atenta para a homonormatividade do armário e sua


relação com a urbanidade. Para ela, o paradigma foi associado à ideia de uma consciência
orgulhosa de si e desejosa de admiração no meio social e reforçando a noção de vida guei como
uma luta em direção a um estilo de vida de consumo casado hétero normativamente
(SCHWEIGHOFER, idem, p. 231, tradução nossa), o que pode não ser um imperativo para
gueis e lésbicas rurais, que muitas vezes se empenham fortemente em se esconder.
A autora observa ainda o caráter metro normativo do armário, cujas teorias parecem
conceber o urbano como exterior e como sinônimo de maturidade, em oposição ao rural como
interior, sobrepondo a descrição dos processos migratórios ao movimento da criança que sai do
armário rural e atinge sua maturidade fora dele, nas grandes cidades. Uma narrativa ficcional
que contribui para a não percepção de vidas Queers existentes em zonas rurais, pondera a
pesquisadora.
Ao observar o jogo do armário na zona rural, dirá, menos que a assunção ou a
segregação de uma sexualidade e menos do que e da necessidade da pertença às cenas
LGBTIA+, há de se considerar

Outras hierarquias e dinâmicas – conexões familiares, status de classe, gênero,


conflitos locais e disputas entre vizinhos – desempenham um grande papel e talvez
possam determinar o nível gay ou lésbica aceitável, mas do que qualquer
comportamento sexual ou de gênero específico” (SCHWEIGHOFER, 2016, p. 231,
tradução nossa).

O ponto fundamental dessas observações é o fato de que o armário também é algo


territorial. Aliás, a territorialidade do armário já havia sido apontada por Sedgwick (2007), que
além de sinalizar a sua construção dentro da cultura ocidental, no momento em que vários países
estavam se constituindo como nações, também assinala que, a partir das sexualidades,
territórios diferenciados no interior de uma mesma nação puderam ser afetados por ele.
Para a autora, a constituição e as considerações sobre a sexualidade surgidas na
modernidade, em lugares onde há relações de poder entre os sexos, passou a ser um intenso
espaço regulatório que incide praticamente em todas as questões de poder e gênero e afetou a
construção de muitos outros pontos críticos do conhecimento moderno. Ressaltando que o
armário está atravessado fortemente pelos pares de opostos público/privado, segredo/revelação,
Sedgwick (2007, pp. 28-29) estende sua conexão com outros conceitos nodais, apostando que
62

Todo um conjunto das posições mais cruciais para a contestação do significado na


cultura ocidental do século XX está consequente e indelevelmente marcado pela
especificidade histórica da definição homo social/homossexual, particularmente, mas
não exclusivamente, masculina, desde mais ou menos a virada do século. Entre essas
posições figuram, como já indiquei, os pares segredo/revelação e privado/público. Ao
lado desses pares epistemologicamente carregados, e às vezes através deles,
condensados nas figuras do “armário” e do “assumir-se”, essa crise específica de
definição marcou por sua vez outros pares tão básicos para a organização cultural
moderna, como masculino/ feminino, maioria/minoria, inocência/iniciação,
natural/artificial, novo/velho, crescimento/ decadência, urbano/provinciano, saúde/
doença, mesmo/ diferente, cognição/paranoia, arte/kitsch, sinceridade/
sentimentalidade e voluntariedade/dependência.

Embora Sedgwick (1998, 2007) avalie que seja possível, como fizeram as
feministas, compreender as regulações sexuais presentes e ocultadas em cada um dos pares
conceituais que ela compreendeu como “nodais” na cultura moderna, não é isso que ela
pretende fazer. De qualquer modo, ao que aqui me interessa, é importante notar que em diversos
lugares do mundo, a sobreposição entre homossexualidade e urbanidade foi acionada com
diversas e pulverizadas intenções políticas, pedagógicas e morais.
No caso brasileiro, Trevisan (2018) nos fornece algumas pistas. Para ele, as
concepções construídas acerca das formas de relacionamento sexuais e de papéis de gênero
entre os índios teve início por volta de 1817 e perdurou seus efeitos por muitos anos. O jovem
naturalista bávaro Von Martius, que chegou ao Brasil no ano de 1817 e por três anos viveu junto
de alguns de nossos povos nativos, encontrou diversas tribos onde, de acordo com sua ideia,
eram praticados o ato nefando e a antropofagia. Segundo a sua análise, a antropofagia se
constituiu através de uma degeneração continuada por milênios (citado por TREVISAN, 2018,
p. 205). Por outro lado, o travestismo encontrado em alguns autóctones seria resultado da
corrupção moral dos índios brasileiros pelo contato com o corruptor branco, o civilizado homem
europeu.
No início do século XX, Gilberto Freyre sustentava a ideia de que a disseminação
da homossexualidade – por ele chamada de culto da Vênus Urânia, por referência ao urbanismo,
que na virada do século XIX para o século XX se constituía como um dos modos de chamar a
relação sexual entre homens - no Brasil colônia, teria sido popularizada pelos colonizadores
(portugueses, espanhóis, italianos ou mouriscos) que encontraram na moral sexual dos índios
e nas condições desenfreadas da colonização um terreno fértil para sua expansão
(TREVISAN, 2018, p. 121). Um dos argumentos utilizados por Freyre para o convencimento
do leitor em relação à sua ideia, foi ressaltar que a sodomia floresceu com liberdade na Itália,
chegando mesmo a ser chamada, na Europa, durante o nosso período colonial, de “mal italiano”.
63

Albuquerque Jr (2011) nos informa ainda que no período decorrido entre o início da
década de 1930 até o início da década seguinte, os romances regionalistas de José Lins do Rêgo
tomam o sexo como um problema considerando que a mestiçagem existente no Brasil
nordestino seria responsável por práticas sexuais em desconformidade com a natureza.
Entendendo que nos engenhos tradicionais existiam os sodomitas, considerados como seres
misteriosos e inexplicáveis, Rêgo os diferencia dos homossexuais. De acordo com Albuquerque
Jr (idem, p. 155), para Rêgo,

O homossexualismo fala da própria perda de virilidade de uma classe social e de uma


sociedade, fala da sua feminização. Sociedade que se deixou estuprar por novos
donos. Uma classe que se desmoralizava, abandonava os antigos códigos de
moralidade, para fazer parte de novas práticas vistas como degradantes. Estas práticas
remetem à imagem de um mundo fechado, marginalizado, em que as novas gerações
eram degeneradas, impotentes, dominadas, submetidas.

No final do terceiro quarto do século XX, em 1974, circulou em muitas revistas e


jornais de distribuição nacional a denúncia de que um determinado funcionário da FUNAI teria
viciado os índios da tribo Kreen-Akarore na prática de sodomia. O repórter, a fim de dar tom
de veracidade à sua matéria, citou os famosos sertanistas irmãos Villas-Boas que eram unânimes
em afirmar a inexistência da homossexualidade entre os indígenas. (Cf. TREVISAN, 2018)
Alguns anos depois, no ano de 1981, um deputado do estado do Amazonas, em tom
nacionalista, denunciava que a entrega da prospecção do petróleo a uma empresa francesa,
provocara a ruptura das tradições do povo Satere-Mawe, já que os “invasores” estavam
disseminando práticas da “cunilíngua”, uma violência à cultura de um povo “ingênuo e puro”,
gerando conflito entre casais de tal etnia. (Idem, ibidem)
Importante observar como nesses exemplos que associam homossexualidade à
desordem urbana moderna é claro o aparecimento de alguns dos binarismos elencados por
Sedgwick (1998, 2007) tais como inocência/iniciação, natural/artificial,
crescimento/decadência, urbano/provinciano e saúde/doença. Fundamental considerar que tais
pares também animaram as definições diferenciais em torno do urbano e do rural, na construção
imagética desses espaços, no solo brasileiro.
Inobstante a essas declarações, incluindo as mais recentes, em 1959, José Fábio
Barbosa da Silva, sob a orientação de Florestan Fernandes, já havia realizado o primeiro
trabalho acadêmico moderno sobre a homossexualidade no Brasil, com vistas a obtenção de um
título de especialista em um curso de especialização do Departamento de Filosofia da
Universidade de São Paulo. A monografia, intitulada Homossexualismo em São Paulo, segundo
64

seu autor, tinha a pretensão de fazer um trabalho descritivo sobre a vida de homossexuais nos
guetos desta capital, durante os anos de 1958 e 1959. Apesar da anunciada pretensão, o trabalho
realizado fez mais do que descrever. Ao descartar a ideia da homossexualidade como um
problema social, Silva (2005) acabou por contribuir na resposta sobre as condições de
possibilidade da emergência da associação entre urbanidade e homossexualidade. Isto por que,
argumenta, os processos associados à industrialização e complexificação do padrão urbano que,
por suas vezes, determinaram o enfraquecimento dos controles sociais, possibilitaram a
construção de uma base espacial, espécie de zona moral, que permite o agrupamento de
indivíduos que possuem em comum uma característica socialmente problemática, e
considerável passível de exclusão. De outro modo, sem a complexificação urbana e o
afrouxamento da vigilância, esses indivíduos permaneceram invisibilizados no tecido social. O
que a urbanidade é capaz de promover, diz Silva (2005), não é o indivíduo homossexual, mas
o homossexual como grupo minoritário e visível. O autor deixa claro que a configuração
encontrada só pode ser atribuída ao lugar onde se realizou a pesquisa e lança uma hipótese de
que se escolha realizada em relação ao lugar tivesse sido feita em uma zona rural,
provavelmente, outras conclusões seriam geradas.
Parker (2002) pode etnografar a formação de uma cultura guei no Brasil, no Rio de
Janeiro e em Fortaleza, desde o início da década de 1980, até o final da década seguinte. Ele
sinaliza que, em princípio, de modo diferente ao que acontecia em grandes cidades da Europa
ou dos Estados Unidos, não havia um mercado LGBTIA+ nas cidades observadas, sendo as
paqueras realizadas pelo comportamento de deriva, em lugares conhecidos como espaços de
pegação guei, geralmente efêmeros, tais como algum banheiro de grande uma loja de
departamento, faixas na zona litorânea da cidade, praças públicas, para citar alguns. Do mesmo
modo como ponderou Silva (2005), ele avalia que esses espaços só puderam ser construídos
devido à complexificação das grandes cidades.
Apesar de no início dos anos 1980 os movimentos sociais pró-homossexualidades
estivessem despontando e se articulando no território Brasileiro, eles possuíam pouca projeção.
Esta situação foi alterada, do mesmo modo que ocorreu na África, quando a epidemia da AIDS
tornou público os esforços do movimento LGBTIA+ no sentido do enfrentamento da
enfermidade, no final da década de 1980 até por volta do final dos anos 1990. Também na
década de 1980, tem início o Pink Market, notadamente voltado para homens gueis. Pouco eram
os espaços para mulheres lésbicas, que se reuniam em apartamentos de amigas e, segundo Pinafi
(2015) não interessavam ao empresariado, devido ao fato de que, sendo mulheres, possuíam
salários mais baixos, o que não valeria o esforço.
65

Parker (2002) sinaliza a dupla vetorização das trocas de significados entre as


sexualidades ocidentais e as sexualidades do Sul, abaixo do equador. Uma vez que no Brasil, a
incipiente cultura LGBTIA+ ainda não tivesse projeção suficiente para engessar as práticas
sexuais em termos binários do tipo hétero/homossexual, categorias como entendidos ou homens
que fazem sexo com homens poderiam ser mais comuns do que o gay. O pesquisador sinaliza
que os processos de trocas em um mundo global, acabou por colaborar com a complexificação
da diversidade sexual, que, segundo sua ideia, está mais próxima das sexualidades cacofônicas
do mundo não ocidental, do que das binarizadas sexualidades do mundo ocidental.
As inúmeras sexualidades desviantes com desejos aberrantes de Reynolds (1999) ou
as sexualidades cacofônicas de Parker (2002) vão ao encontro das ideias de Hall (2006) quando
ele afirma que o declínio das políticas identitárias, menos do que eliminar identidades,
promoveu sua multiplicação de modo a construir novas identidades regionais, efêmeras,
flutuantes e não permanentes dado o encurtamento do espaço e do tempo promovido pelo
processo de globalização. O fato de que a comissão de direitos humanos de Nova Iorque tenha,
no ano de 2016, reconhecido 31 tipos de gênero diferentes, não fez mais do que atestar a
explosão das fixas identidades do binário homo/hétero.
Portanto, não se trata de renunciar ao elo que liga a homossexualidade à urbanidade,
ou, como melhor definiram Silva (2005) e Parker (2002), à expressão daquela em função desta.
Nem mesmo negar que a ideia de homossexualidade dependa da circulação de saberes,
normalmente nas grandes cidades, e que muitas vezes são utilizados pelos movimentos sociais
representativos das minorias sociais que acabariam por aderir à gramática euro-americana.
A vida urbana, em vários lugares do mundo, promoveu a criação de pontos de
aglomerações para encontros entre pessoas LGBTIA+, dado a maior possibilidade de garantia
do anonimato, condições facilitadoras da criação de uns lugares desta natureza, que mais tarde
tornou-se politizada, notadamente pela emergência de coletivos que, em ampla medida, apelou
para a necessidade de tornar visível a diversidade sexual. Ao que tudo indica, a cidade moderna
se tornou um lugar facilitador tanto da vida de homossexuais, como da sua publicitação e talvez,
também, do esgotamento do armário pela pulverização das identidades sexuais cada vez menos
evidentes, embora facilmente notáveis na cena pública da cidade.
Isto não significa negar a existência das relações homoafetivas no meio rural. Gray,
Collin e Gilley (2016), ao pesquisar vidas Queers nas paisagens rurais estadunidense, afirmam
as possíveis dificuldades encontradas por pessoas não heterossexuais nestas localidades, mas,
sobretudo, observam como tais espaços contribuem para a consecução de modos diferenciados
de existências de LGBTIA+, quando comparados com a cidade. Na dinâmica rural, impossível
66

ignorar os processos globalizados e midiatizados que viabilizaram, mesmo que de modo parcial,
o ethos das sexualidades e alteraram o (des) conhecimento sobre a diversidade sexual entre
pessoas que habitam o campo. Como disseram Gray, Collin e Gilley (idem) essas considerações
não sugerem que a localização não importa mais, ao invés disso, trata-se de sugerir que não
podemos mais presumir de antemão o que ela significará.
Aqui no Brasil, de modo evidente, não se pode deixar de notar a inserção das ações
de grupos organizados em torno de causas LGBTIA+ em pequenas localidades. A citada lista
de organizações pró-sexualidades encontrada no site da ABGLT, nos fornece indícios da
migração do episteme do armário para cidades menores. Mesmo em lugares onde não existem
associações em atividade, é possível encontrar realizadores independentes em muitas pequenas
cidades. Uma rápida análise da divulgação dos projetos inscritos no último Edital Ceará da
Cidadania e Diversidade Cultural – LGBTQIA+, do ano de 2022, promovido pelo Governo do
Estado do Ceará para financiar ações de divulgação do universo LGBTIA+ (a partir de curtas-
metragens, peças autorais, paradas da diversidade, criação de museus, dentre outros), revela
que entre os 305 projetos enviados, 46% deles (n=165) partiram de cidades que não a capital,
obviamente incluindo as maiores cidades do Estado (Sobral, Caucaia, Juazeiro do Norte, Crato,
dentre outras), mas também de pequenas localidades, com menos de 10.000 habitantes, tais
como São João do Jaguaribe e Umari. 54 cidades diferentes da capital pleiteiam verbas para o
desenvolvimento de ação em torno da visibilização de pautas LGBTIA+, incluindo Itapipoca,
cidade de maior porte mais próxima à localidade pesquisada e Trairi, município ao qual ela
pertence (Cf. CEARÁ, 2022). Em uma de minhas idas à Promessinha, quando presidi a
comissão julgadora da eleição da Garota Gay de Promessinha, foi facilmente perceptível que
todas as candidatas, bem como a comissão organizadora, eram de fora da localidade, residentes
em cidades vizinhas, na maioria das vezes, cidades sedes, bem maiores que do lugar para o qual
a festa havia sido “importada”.
Participam das geografias rurais, pessoas como Kátia Tapety - primeira vereadora
transexual do Brasil e a mais votada nas eleições de 1992, em colônia do Piauí, região agrícola
distante cerca de 400km Teresina, capital do estado (Cf. GONTIJO, 2014) – e o bem-sucedido
presidente da associação dos pescadores de Ilha das flores em Sergipe, Célio, não binário do
sexo masculino, que mesmo sem ser pescador tornou-se uma celebridade na cidade, pela
capacidade que exibe na sua gestão. Causa admiração pública na cidade de cerca de 8.000
habitantes o fato de que a partir de seu trabalho, realizado de modo voluntário e com
competência, há a captação de um significativo volume de recursos financeiros para a
associação, bem maior do o montante conseguido por muitas outras associações no território
67

nacional. Na cidade, Célio é uma celebridade (Cf. LGBT LONGE DAS GRANDES CIDADES,
2019).
Também estão nesses territórios, homens que se apresentam publicamente como
heterossexuais, embora possam se envolver em experiências sexuais com outros homens, tais
como as relações “orgiásticas” encontradas por Ferreira (2008) em uma zona rural do Cariri, ou
ainda as experiências de troca-troca realizada por jovens homens que também não se
compreendiam gueis e que foram descritas por Paiva (2015), numa zona rural do Rio Grande
do Norte. Vale ressaltar que, nos dois casos, há um acordo tácito entre estes homens e outras
pessoas da localidade que estabelecem uma espécie de segredo de polichinelo. Isto implica em
considerar a possibilidade de integração desses sujeitos no seu tecido social onde muitos são
capazes de serem reconhecidos por realizar (ou terem realizado) tais práticas. Descrição um
tanto longe da impossibilidade de sexualidades desviantes em lugares não urbanos. Mas
também não muito aproximada da homonormatividade cuja identidade exprime o orgulho de si
e o desejo de visibilização.
Em síntese, é possível que, cada vez mais, as zonas rurais encontrem formas de
expressão marcadas pela epistemologia do armário alterando os processos de como a vida no
campo passa a significar as experiências homoafetivas. Ao mesmo tempo, é provável que a
experiência em torno do armário seja variável nesses espaços. Há que se considerar as alianças,
as resistências, as aproximações e os afastamentos que os sujeitos rurais realizam em torno do
armário, na construção de sentidos e significados referentes aos seus desejos e/ou às práticas
homoeróticas nas localidades que habitam. Como disseram Prado e Machado (2008, p. 17) para
compreender a saída do armário deve-se levar em conta que as condições de existência dos
indivíduos e de seus sofrimentos e alentos estão diretamente implicadas pela qualidade das
relações sociais e institucionais que se encontram no contexto histórico e social da vida em
sociedade (Prado e Machado, 2008, p. 17).
68

3 A EXPERIÊNCIA (INTER)SUBJETIVA DO ARMÁRIO

Desde a década de 1970, muitos modelos sobre a construção de uma identidade


homoerótica foram criados. Eles partiram de diversos lugares discursivos, no entorno de 1973,
quando aconteceu a remoção da homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de
Transtornos Mentais norte-americano, pela Associação Americana de Psiquiatria, símbolo de
uma mudança de foco anteriormente assentado na correição do “comportamento homossexual”
para ajudar gueis e lésbicas na construção de uma identidade homossexual bem resolvida,
congruente e socialmente integrada, em contextos homofóbicos.
Na sociologia, no início dos anos 1970, alguns pesquisadores alinhados com o
ativismo social pró sexualidades propuseram modelos descritivos. Tal foi o caso de Plummer,
que em 1974 descreveu a formação de identidades homossexuais e também de o Raphael que,
no mesmo ano, defendeu uma tese de doutorado observando as transformações da auto
rotulagem de 41 mulheres lésbicas participantes de um grupo de rap em uma associação de
feministas lésbicas, nos Estados Unidos, e que, embaladas pela confluência dos movimentos
feministas com o movimento lésbico, cada vez mais, deixaram de nomearem-se como
“mulheres gueis”, aderindo ao termo “lésbicas” (Cf. RAPHAEL, 2019).
Compreendendo a homossexualidade como uma variedade da sexualidade humana,
manifesta de modo singular em cada indivíduo, estes estudos, assim como as pesquisas clínicas
de Cass (1989) Sophie (1986), McCarn e Fassinger (1996) e muitas outras, emergiram e
proliferaram dentro dos saberes voltados para aconselhamentos à população homossexual.
McCarn e Fassinger (1996), Ali e Barden (2015), Coleman (2010) dentre outros,
argumentaram que os profissionais que realizam aconselhamento de gueis e lésbicas, uma vez
munidos de informações sobre o percurso constitutivo de uma identidade homossexual,
compreenderiam melhor a figura do homossexual, normalizando seus comportamentos e
deixando de considerá-los como patológicos. Além do mais, Coleman (idem) e McCarn e
Fassinger (idem), sinalizaram ainda que tais modelos podem ser ferramentas úteis aos
conselheiros na tarefa de elaboração de planos de segurança para aqueles que experimentam
tais práticas em ambientes que lhes são refratários.
De modo mais ou menos declarado, os estudos se puseram a compreender a
homossexualidade com um estigma, e o conjunto atitudes, valores e comportamentos
homossexuais como decorrente dos efeitos sócio interativos da manipulação de uma
sexualidade negativamente estigmatizada. Tratava-se de compreender um padrão normal em
torno da possibilidade de construção de uma identidade homoafetiva saudável e ajustada à
69

personalidade dos indivíduos. Em todos eles, buscou-se descrever uma carreira moral, nos
termos de Goffman (2017), e seus possíveis descaminhos.
Dentro deste normal, para muitos pesquisadores, a revelação funcionava tanto como
meta parcial do desenvolvimento identitário para si mesmo - já que a reação dos outros, poderia
ser considerada como critério a ser avaliado na possibilidade de dar seguimento ao
desenvolvimento de identidade homoafetiva, como sugeriu Coleman (2010) - bem como foi
associada a uma manifestação de marco evolutivo, derivado de um estágio de aceitação de si e
possível superação dos conflitos em torno de uma autor referência dissonante do padrão social
heteronormativo.
Ali e Barden (2015) defenderam, por exemplo, que a revelação de uma identidade
homossexual a outras pessoas promove melhoria na qualidade de vida, redução dos níveis de
angústia, ansiedade e depressão e demais sofrimentos psicológicos, além de ajudar no
fortalecimento de uma identidade positiva que melhora a resiliência e a saúde mental geral.
Além do mais, é comum que a pessoa que se assume sinta-se mais autêntica e honesta consigo
mesmo e com os outros. Assumir-se também parece promover melhoria das habilidades sociais
nas relações interpessoais pela criação de limites mais saudáveis (a depender das reações
obtidas no ato da, ou após a, revelação) além de favorecer ao ajuste de novos relacionamentos,
bem como o aprofundamento ou exclusão de relações anteriores, argumentam os autores.
Coleman (2010) garantiu que sua experiência clínica com aconselhamento
psicológico para pessoas em processo de formação de identidade homossexual demonstrou que
a quantidades de sessões de terapias diminui em função da quantidade de tempo que os
indivíduos permanecem com sua sexualidade de modo velado, colaborando para a noção de que
assumir-se é uma condição para a diminuição do sofrimento causado pelo eterno o investimento
de ocultação, para si e para os outros, de uma sexualidade homoerótica.
Mas também se considerou os problemas associados a uma sexualidade
estigmatizada. Ali e Barden (2015), por exemplo, identificaram o medo relativo à aceitação, o
bullying (assédio, intimidação, insegurança e opressão) e experimentação de sentimentos
negativos: espécie de discórdia interna que se não resolvida pode levar à solidão, desconexão,
confusão, tristeza, vergonha, raiva, medo, vulnerabilidade e depressão, podendo gerar
comportamentos autopunitivos e autodestrutivos ou ideações e atos suicidas.
Nesse jogo de observação sobre a formação identitária das homossexualidades e os
processos associados aos atos de revelação, a psicologia do armário contribuiu para normalizar
a construção de uma identidade homoafetiva “saudável”, onde o indivíduo que a mantém,
permanece congruente consigo mesmo e com seus outros próximos. Observando cada um dos
70

modelos os quais consultei, é facilmente observável que, apesar das diferenças internas entre
eles, a maioria deles entende que o percurso do armário inicia com um processo crítico vivido
por sujeitos para quem emerge a possibilidade de desejos homoeróticos, que desencadeia uma
situação de confusão e isolamento a ser resolvido através da aproximação com uma cultura
LGBTIA+ (simultânea a uma ruptura com valores heterossexuais) que contribui para a
construção de uma autoimagem e de uma imagem de grupo positivas e que, de modo ideal,
pode facilitar o processo de revelação da homossexualidade a terceiros e que também pode
colaborar com o desenvolvimento de atitudes politizadas acerca das relações diferenciais das
sexualidades na contemporaneidade. A entrada nos grupos de iguais é descrita como um
momento onde é vivida uma alienação do mundo heterossexual, que só será resolvida no ápice
da maturidade identitária, quando o sujeito é capaz de estar suficientemente integrado consigo
mesmo e com os outros sociais, tomando a sexualidade como apenas uma dentre outras
características que lhes são próprias.
Obviamente, mais do que descrever um processo de formação identitária (eles de
fato organizam dados da realidade observada), esse cruzamento entre saberes
psicológicos/psiquiátricos, sociológicos e as práticas e saberes organizados pelos movimentos
sociais, acabaram por propor modos de visibilidade e dizibilidade sobre as identidades guei e
lésbica, colaborando para a construção de um “normal homossexual”, um padrão
homonormativo. Como diz Hall (2006, p. 100) as identidades têm a ver

Com a questão da utilização dos recursos da história, da linguagem e da cultura para


a produção não daquilo que somos, mas daquilo no qual nos tornamos. Tem a ver não
tanto com as questões “quem somos nós” ou de onde nós viemos, mas muito mais
com as questões “quem podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e
“como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós
próprios”

3.1 A experiência psicológica do armário: processos de formação de identidades


homossexuais

Um dos primeiros modelos construídos que teve uma certa pregnância social foi o
de Plummer (citado por WEEKS, 1997), em 1974. De acordo com Weeks (1997), Plummer
descreveu quatro “estágios característicos” e necessários pelos quais um homossexual teria de
passar até sua “aceitação total”. O primeiro deles refere-se à “sensibilização”, quando o
indivíduo identifica a possibilidade de ser diferente; no segundo há a “significação”, quando
ele atribui um sentido de desenvolvimento a essas diferenças; no terceiro momento há um
71

processo de “subculturalização”, no qual há o reconhecimento subjetivo a partir do


envolvimento com outras pessoas homossexuais e, finalmente, ocorre a “estabilização”, estágio
em que os próprios sentimentos e um modo de vida “alternativo” seriam plenamente
reconhecidos. Na mesma época, outros teóricos emergiram para dar conta da construção de uma
identidade homoafetiva, tais como o de Schafer, em 1976 e os estudos de Hencken & O'Dowd
e os realizados por Lee, ambos em 1977 (Cf. CASS, 1979).
Também parte dessa história o trabalho de Raphael que, em 1974, propôs a
existência de cinco estágios no processo de formação identitária lésbica, em um momento no
qual o movimento lésbico ganhava força no solo norte-americano, fazendo com que as mulheres
que se relacionavam com iguais deixassem de se considerar mulheres gays e passassem a se
reconhecer como lésbicas. A autora propôs cinco estágios: (1) conscientização, (2) teste, (3)
entrada na comunidade de pares, (4) compartimentalização e (5) descompartimentação.
Indicando o percurso pelos quais as lésbicas estudadas tomavam consciência de seus desejos;
exploraram a possibilidade deles; associavam-se a grupos de iguais, isolando-se das relações
com heterossexuais e, retomavam tais relações, de modo mais integrado (Cf. RAPHAEL, 1974)
Intensamente pregnante foi o modelo criado por Cass (1979). O modelo de Cass,
que eu considero como um dos mais detalhados em torno do armário, espécie de tipo ideal, foi
fundamental para uma leva de outros que se puseram a complementá-lo, reformulá-lo e
relativizá-lo. Como diz a autora, ele foi construído de modo independente, em anos de trabalho
clínico com 227 homossexuais na Austrália, o que lhe garantia um considerável aporte
empírico. Cass (idem) não alterou muito o curso dos modelos anteriores, embora tenha realizado
um maior detalhamento de como um indivíduo constrói uma identidade homossexual.
Apesar de que seus sujeitos tenham sido em sua maioria homens gueis, de acordo
com ela, este modelo serviria para explicar o processo vivido tanto por homens como por
mulheres homossexuais. Após sua proposição, um conjunto de pesquisas que se debruçaram
sobre o mesmo problema tomou este modelo de modo parcial ou integral, o que denota sua
pregnância.
Compreendendo que a identidade é um lugar de estabilidade e mudança que
dependem das transformações e estabilizações do sentimento de congruência e incongruência
dentro do ambiente interpessoal do indivíduo, ela propõe a existência de seis etapas, cuja
diferenciação entre elas resulta das transformações na percepção do indivíduo sobre a imagem
que possui de si, do seu próprio comportamento e das ações (incluindo reações de outros) que
surgem em decorrência dessas transformações percebidas. A mudança de um estágio a outro
(que pode ser interrompida em alguns deles) é funcionalmente ativada como forma de resolver
72

incongruências presentes em uma matriz intrapessoal, que pode ser compreendida como o
resultado da interação entre a percepção de um indivíduo sobre uma característica presente nele
mesmo, a percepção que ele possui sobre seus comportamentos (voluntários ou não, tais como
as respostas fisiológicas) que podem ser associados a tal característica e o modo como este
indivíduo compreende a visão de outra(s) pessoa(s) sobre a característica em questão. Cada um
desses elementos possui conteúdos cognitivos (pois um valor lhe será atribuído) e afetivos
(negativos ou positivos). Uma pessoa é tão mais congruente, quanto mais há convergência entre
os três elementos de modo que tanto o comportamento do indivíduo como o valor que ele pensa
que os outros atribuem a seu comportamento estejam de acordo com a sua própria percepção
sobre as características em questão e sobre o que ele pensa em relação ao que os outros pensam
sobre elas.
Tomando a matriz interpessoal como unidade básica de seu modelo, Cass (1979) faz
uma refinada descrição, em cada estágio, das variadas e combinadas formas como estes
elementos podem se apresentar de modo incongruente e também dos caminhos/estratégias que
os sujeitos costumam acessar para resolver tal situação problemática, sinalizando a influência
de fatores cognitivos e afetivos envolvidos em cada decisão tomada, bem como as diferenças
encontradas entre os gêneros. Os caminhos incluem a transformação ativa pelo sujeito de um
ou mais desses elementos, de modo a alterar sua matriz intrapsicológica, em um percurso cada
vez mais estável de auto identificação como homossexual, de aceitação de suas experiências
como tal e da capacidade de estabelecer interações sociais sem que a unidade de congruência
com sua autoimagem seja ameaçada ou perdida.
Neste percurso, uma série de estratégias de gestão de estigma são acionadas pelo
sujeito, como modo de administrar e diminuir a incongruência afetiva e cognitiva entre os três
elementos presentes na sua matriz interpessoal. Para Cass (idem), a gestão do estigma, que pode
incluir a transformação do ambiente interacional ou o isolamento e a alienação, dá ao sujeito
um tempo de moratória para avaliação de uma evolução que pode seguir um curso ascendente,
estabilizar em um determinado estágio ou mesmo naufragar, quando o sujeito, de modo mais
ou menos bem-sucedido, consegue eliminar sua identidade homossexual. Em todos os casos,
objetiva-se a redução em níveis administráveis ou, de maneira ótima, a supressão da
incongruência que determina o curso desse processo.
Essa trajetória, de acordo com Cass (1979), se inicia quando um indivíduo sente que
sua matriz interpessoal heterossexual - presumidamente assumida por outros e possivelmente
pelo próprio indivíduo – que atuava de modo congruente, é ameaçada. Ao perceber que seu (s)
comportamento (s) - sejam eles abertos, tais como beijos, ou brincadeiras eróticas; ou fechados,
73

tais como pensamentos e respostas fisiológicas - podem estar associados à homossexualidade,


o estágio de confusão de identidade é iniciado. Caso o indivíduo avalie que seu comportamento
é correto e aceitável, é provável que ele acate mais facilmente a possibilidade de ser
homossexual, mudando a forma como pensa a si mesmo.
Um outro caminho pode ser tomado, diz ela. Este ocorre quando, mesmo que o
sujeito aceite que possa ser homossexual, ele não atribui um bom valor a tal experiência e deseja
eliminar seus comportamentos. Tratará, então, de inibir comportamentos que lhe coloquem
diante de uma situação de reflexão sobre o assunto, evitando informações sobre o mesmo ou
situações sociais em que possíveis eventos deflagradores de tal perturbação possam ocorrer.
Também é possível que os sujeitos minimizem a relevância dos comportamentos percebidos,
numa espécie de negação. Esse momento, descrito como uma moratória, pode levar o sujeito
ao êxito de supressão do comportamento, restaurando uma matriz heterossexual e eliminando
uma identidade homossexual. Caso não seja bem-sucedido, uma vez que o valor cognitivo
associado a tais comportamentos sejam considerados negativamente, o sujeito pode efetivar
uma mudança da matriz heterossexual para homossexual, atravessado por um ódio de si,
intensificando o isolamento, realizando uma apresentação pública da identidade como
heterossexual ou assexuada.
Por fim, há casos que não apenas a homossexualidade como característica possível
de ser auto atribuída, bem como comportamentos associados a ela, sejam, ambos, considerados
indesejáveis e incorretos pelo indivíduo que o percebe. Isso fará com que ele busque se auto
definir como não homossexual. Tais são os casos de presidiários que se envolvem em relações
sexuais entre iguais, embora não as considerem desse modo e nem a si mesmo como tal. Do
mesmo modo, pelo mecanismo de negação envolvido, aqui pode haver uma supressão da
construção de uma identidade homossexual.
Cass (1979) encontra uma diferença nos processos de negação que envolve as
lésbicas e os gueis que ela atendeu em sua trajetória na Psicologia clínica. Ela entende que,
enquanto os homens tendem a negar a experiência sexual como indício de homossexualidade
(dizendo tratar-se só de uma brincadeira, uma ocasião ou necessidade), as mulheres tendem a
reconhecer a homossexualidade pela atividade sexual, ignorando como tal os aspectos
relacionados à fortes elos emocionais em sua relação de amizade com outra (s) mulher (es).
Uma vez que um indivíduo não consiga resolver a confusão de identidade pelo
reestabelecimento de uma matriz heterossexual, ele chega ao segundo estágio, o de comparação
da identidade, com uma aceitação potencial de um self homossexual, momento no qual percebe
que há congruência entre tal compreensão de si em relação a seus comportamentos, diminuindo
74

a tensão estabelecida na fase anterior, ao mesmo tempo em que toma consciência da alienação
social que surge, tornando-se incongruente em relação ao modo como lida com outros, sejam
eles hétero ou homossexuais. Ele sente-se diferente e acredita não pertencer a sociedade em
geral e nem a subgrupos específicos, tais como família e pares. A participação em grupos pode
aumentar (grupos religiosos aversivos às homossexualidades) ou diminuir (grupos políticos
receptivos à homossexualidade, mesmo que não formados em torno deste marcador) a alienação
social.
Quatro são as estratégias desenvolvidas para superar o sentimento de alienação
vivido nessa fase. A primeira delas é reconhecer positivamente a diferença vivida,
compreendendo que a matriz heterossexual anterior não lhe pertence mais e nem cabe em seu
futuro, aceitando mais fortemente uma identidade homossexual bem como os comportamentos
que lhes são correlatos e diminuindo o grau de importância que atribui aos outros. Um segundo
caminho é tomado por aqueles que tendem a reduzir a imagem de si como homossexuais,
embora mantenham seus comportamentos enquanto atribui-lhes um valor de irrelevância e
provisoriedade. Tais pessoas podem acreditar que suas atitudes se desenvolvem como um caso
especial (é só com esta pessoa) ou evento passageiro (“posso alterar isso a qualquer momento”,
sou “ambissexual”). Outra forma de diminuir o peso negativo que uma imagem de si
homoafetiva pode carregar para alguns sujeitos é os a utilização da estratégia de inocência
pessoal, quando estes se recusam a reconhecer as suas responsabilidades sobre a autoimagem
homossexual que construíram (“nasci assim”). Em todos os casos, os indivíduos usam
estratégias de acobertamento, passando-se por heterossexual a fim de evitar situações que
revelem a incongruência social, podendo chegar a compartimentar a identidade sexual
percebendo-a como separada e não relacionada a outros aspectos de suas vidas.
Um caminho diferente é o tomado por aqueles que reconhecendo sua identidade
homossexual avaliam-na de modo negativo, bem como os comportamentos a ela associados.
Uma forma de resolução é a inibição de comportamentos abertos e talvez, dos encobertos. Isso
pode levar o sujeito a exclusão de uma identidade homossexual. Não conseguindo realizar tal
exclusão, o sujeito pode intervir em seu ambiente, reduzindo o impacto que os outros podem
ter na construção de uma percepção mais benevolente em relação a si e a seu comportamento.
Mudança de cidade, ruptura com grupos religiosos, são parte comum dessas estratégias.
Por fim, há os que avaliam como indesejáveis um self homoafetivo, bem como os
comportamentos a ele associados. Neste caso, a meta é tanto inibir os comportamentos, como
mudar a imagem de si. Muitas vezes estes indivíduos pedem ajuda de profissionais dispostos a
75

realizar uma “cura guei”. Se tais estratégias não lograrem êxito, a permanência de sucessivos
investimentos frustrados pode levar a adoecimentos graves, incluindo o suicídio, avalia a autora
Caso a resolução das incongruências no estágio anterior tenha levado o sujeito a um
estado de maior integração de um self homossexual, passa-se à fase de Tolerância da
identidade, momento no qual o indivíduo aumenta seu comprometimento com uma identidade
homossexual, reconhecendo suas necessidades emocionais, sociais e sexuais. Ao mesmo tempo,
esse reconhecimento pode gerar uma exacerbação da alienação em relação aos outros
(heterossexuais, no caso). Provavelmente neste estágio, os indivíduos, a partir de uma busca
ativa, consomem informações de textos, vídeos ou pessoas que possam lhes fornecer elementos
de aprendizagem na construção e gerenciamento social e pessoal de uma imagem homossexual.
A experiência com grupos de iguais pode ser vivenciada de modo positivo ou
negativo. Para Cass (1979), este último caso ocorre mais facilmente quando o sujeito possui
precárias habilidades sociais, timidez, baixa autoestima e medo de exposição. Se contatos
posteriores repetirem essa fórmula, a autoimagem será vivida como detestável, podendo se levar
a termo, mais uma vez, uma inibição de comportamentos que, se for exitosa, poderá realizar a
exclusão da identidade homoafetiva.
Ao fim deste estágio, o sujeito que não realizou a exclusão identitária é capaz de
afirmar-se como homossexual. As respostas que buscavam responder a “Quem sou eu? A qual
mundo pertenço?”, já haviam sido realizadas. Isso faz com que o indivíduo chegue no quarto
estágio, o da aceitação da identidade. Neste momento, os indivíduos intensificam seus contatos
com outros iguais e validam para si mesmo o impacto de uma cultura que valoriza e normaliza
a identidade homossexual.
Neste ponto, diz a autora, é possível que passem a viver mais intensamente com
grupo de iguais, abandonando seus grupos primários e não se interessando em compor novos
grupos com heterossexuais. O contato com iguais, além dos benefícios envolvidos na
aprendizagem de gestão do estigma, pode gerar uma experiência positiva que lhe favoreça
também ao reconhecimento de diversos modelos identitários e a real possibilidade de encontrar
parceiros que satisfaçam suas necessidades. A forma como lidar com outros, fora do grupo,
permanece como uma questão.
Deste modo, duas alternativas surgem. Ou o sujeito se revela, passando mais
facilmente ao próximo estágio, ou mantém uma vida dupla, ativando estratégias de controle de
informações sobre si que incluem o acobertamento – passando-se por heterossexual em
situações sociais mistas, limitando os contatos heterossexuais e selecionando aqueles que
podem ter acesso à sua identidade. Neste último caso, geralmente, os sujeitos escolhem pessoas
76

heterossexuais significativas. Muitas vezes, afirma Cass (1979), os sujeitos permanecem nesse
estágio, vivendo, por muito tempo ou para sempre, uma vida dupla.
Porém, para alguns, a existência da vida dupla mantém uma situação de
incongruência, pelo reconhecimento de suas diferenças em relação a outros que podem rejeitá-
lo. E é esta tensão que os move em direção ao quinto estágio, o do orgulho da identidade. Neste
nível, os sujeitos passam a se referenciar de modo muito intenso como homossexuais, chegando
mesmo a diminuir a importância da heterossexualidade. Os homossexuais são vistos como
“meu grupo”, “meu povo” ou como a real fonte de companheirismo, enquanto que os
heterossexuais, bem como suas instituições, são percebidos como exterioridade (“eles”, “os
outros”) negativada. Por sentirem-se orgulhosos, há uma tendência de revelação a terceiros que
contribui para apoiar a visão que o sujeito possui de si mesmo como homossexual, além de
promover um alinhamento entre a identidade individual/privada e a pública.
A tendência separatista identificada na radicalidade levada a termo na fórmula
nós/outros, tende a ser reduzida no último estágio, o da síntese de identidade, momento no qual
o indivíduo consegue compreender a sua sexualidade como apenas um aspecto de sua
identidade global e não como o aspecto mais essencial da mesma. A esta altura, sua experiência
de vida já o fez perceber que alguns desses “outros” são pessoas legais e mesmo importantes e
também que outros tantos desses “nós” podem ser assim considerados, ou não. Deste modo,
com mais clareza e habilidade social, manejam de modo mais consciente a escolha de amizades,
chegando a um equilíbrio entre número de pessoas hétero e homossexuais com os quais
interagem e seguindo mais capazes de avaliar sobre e a revelação e/ou ocultação de sua
sexualidade em ambientes específicos.
Algumas críticas foram realizadas ao modelo de Cass (1979) e Plummer. Weeks
(1987) relativizou o modelo de Plummer acreditando que talvez ele esteja enganado ao supor
uma progressão automática entre esses estágios. Para Weeks (idem), a transição de um estágio
a outro depende tanto da sorte (como será recebido pelos outros de seu círculo social) como de
uma decisão consciente. Além disso, este autor não crê que um “auto aceitação" seria
necessariamente o “destino final”. Do mesmo modo, Ferdoush (2016) e McCarn e Fassinger
(1996) criticaram o modelo de Cass ao dizer que ele parecia descrever uma formação identitária
linear e progressiva e com um objetivo final a ser alcançado.
Coleman (2010) criticou ainda o modelo de Cass por sua compreensão aproximada
aos pressupostos evolucionistas da sócio psicanálise de Erickson, que entende que o
encadeamento entre os estágios dependerá da resolução linear dos problemas encontrados em
estágios anteriores. Em sua prática com aconselhamento psicológico para homossexuais, ele
77

propôs a existência de cinco etapas (pré-coming out, coming out, exploração, primeiros
relacionamentos e integração) nas quais alguns sujeitos podem estar resolvendo problemas do
último estágio, mesmo que não tenha conseguido se focar na resolução dos conflitos presentes
nos anteriores. Coleman (idem) observa ainda que a revelação a terceiros é passível de ocorrer
em qualquer um dos estágios a partir do qual os sujeitos sentiram-se provocados a considerar
sua sexualidade, diante da percepção de desejos homoeróticos. Uma vez que no pré-coming out
o sujeito ainda não possui consciência de seu desejo sexual, desde o momento em que o sujeito
passa a identificar e reconhecer seus desejos sexuais, (durante o coming out), um indivíduo
pode se assumir com vistas a compreender a plausibilidade de efetivação de uma identidade
homoerótica, diante dos outros que lhes são próximos.
Ferdoush (2016) utilizando-se dos estágios de Cass, procurou identificar os
procedimentos de gerenciamento de estigma encontrados (ou não) em cada uma das fases
vividas pelas Kotis 6 , em Bangladesh, país predominantemente muçulmano, com punição
prevista para o crime de sodomia, compreendido como ação realizada pelo sexo anal e oral. Ao
aplicar o modelo de Cass entre as Kotis, ela não foi capaz de perceber elementos relacionados
ao orgulho de suas identidades homossexuais, o que indicou a inexistência dos dois últimos
estágios do processo de saída do armário descrito pela pesquisadora australiana. O estudo de
Ferdoush (idem) contribuiu para pensar como um contexto fortemente homofóbico pode
impedir a realização de uma identidade reflita que orgulho e atitudes politizadas e que, nestes
ambientes, ela é dificilmente revelável.
Algumas pesquisadoras procuraram construir modelos a partir de informações
colhidas exclusivamente por mulheres lésbicas e bissexuais, enfatizando uma diversidade de
aspectos diferenciais em relação às pesquisas precedentes que geralmente voltava-se para
homens gueis ou grupos mistos com predominância deles.
Em 1986, Sophie fez uma ampla pesquisa empírica com mulheres que se relacionam
com mulheres. A pesquisadora utilizou-se de seis modelos precedentes do processo de coming
out - sendo dois deles baseados em experiências clínicas com homens e mulheres (incluindo o
de Cass), dois provenientes de estudos não clínicos com mulheres e dois de estudos não clínicos
com homens - agrupando alguns dos estágios descritos pelos mesmos e propondo um modelo
geral, um tipo de modelo ideal que servisse de guia de comparação de respostas obtidas por 14

6
As Kotis, cujo corpo biológico masculino é pensado como uma prisão para um psiquismo feminino, vivem como
mulheres, agem como mulheres e fazem sexo exclusivamente no papel receptivo, quando estão com seus parceiros
masculinos. Muitas delas vivem uma vida dupla, assumindo uma identidade pública masculina, podendo casar-se
e ter filhos.
78

lésbicas universitárias, nos Estados Unidos, em repetidas entrevistas realizadas em um estudo


longitudinal. Também tais respostas foram comparadas com as encontradas com cada um dos
modelos utilizados.
Deste modo, Sophie (1986) construiu um modelo geral (espécie de tipo ideal) com
4 estágios definidos pelo agrupamento das características expressadas nas referências que lhe
serviram de base, são eles: 1. Primeira conscientização, que se inicia na tomada de consciência
da relevância, para si, de sentimentos homossexuais ou do fenômeno da homossexualidade,
antes mesmo do contato direto com outros gueis e lésbicas, levando o indivíduo, inicialmente,
ao isolamento de si e posteriormente de outros; 2. Teste e exploração, momento no qual não há
uma identificação como homossexual, embora o indivíduo comece a buscar a comunidade
homossexual. Neste momento há pouca, ou nenhuma, revelação da sexualidade para pessoas
heterossexuais, que tornam-se cada vez mais alienadas em relação àquela que está explorando
a possibilidade de ser homossexual. Via de regra, os modelos por ela utilizados afirmam que
nesse estágio de exploração não há relacionamentos homoafetivos. 3. Aceitação da identidade,
momento em que se expande o contato com gueis e lésbicas e que a identidade homossexual
passa a ser aceita, embora um autoconceito negativo ainda possa persistir. Nesse estágio, a
revelação aos heterossexuais continua diminuta e, 4. Integração da identidade homoafetiva
positivamente aceita, sem pretensão de mudança, integrada com outros aspectos da identidade
do indivíduo. Tal integração ocorre entre sujeitos que superaram a divisão do mundo em hétero
e homossexual, quando cultivam um sentimento negativo para o primeiro deles e positivo para
o segundo. Para muitas pessoas, nesta fase a divulgação ocorre com mais (ou até mesmo
bastante) facilidade.
O modelo ideal sintetizado por Sophie (1986) - que parecia prever uma estabilização
que se movimenta da tomada de consciência de um desejo lésbico integração social plena,
atravessando períodos marcados por isolamento em relação ao heterossexual e aproximação
entre iguais e posterior experimentação e ideação positiva da lesbianidade – encontrou muitas
diferenças nas histórias narradas pelas participantes da sua pesquisa, em todos os estágios por
ela sintetizados.
Poucas histórias narradas mostravam mulheres que, de fato, se perceberam lésbicas
antes de qualquer contato com outras iguais e quase nenhuma teve sua trajetória em
conformidade com a ordem idealizada. Algumas mulheres, por exemplo, tiveram sua primeira
relação lésbica sem que, contudo, isso fosse suposto anteriormente. A maioria delas passaram
a tomar consciência e aceitar uma identidade lésbica durante ou mesmo após o estabelecimento
da primeira relação. Outras construíram alternativas que retardaram ou impediram o
79

desenvolvimento de tal consciência, utilizando-se de justificativas do tipo “caso especial”,


afirmando ser uma experiência singular e passageira ou procedendo pela identificação com a
bissexualidade que, no futuro, poderia ser ou não substituída por uma identidade lésbica. Além
do mais, Sophie (1986) encontrou casos em que mulheres que já tinham construído para si uma
identidade lésbica voltaram ou passaram a estabelecer relações heterossexuais sem, contudo,
apresentar as motivações descritas no modelo de Cass (1979).
Isto por que o isolamento não pareceu ser importante na experiência lésbica, fato
observado pela ausência de respostas que colaborassem com a ideia de uma cisão em mundos
hétero e homossexuais, com valores negativos atribuídos ao primeiro e positivos ao segundo e
pela revelação da experiência e/ou sexualidade lésbica para heterossexuais em todas as fases.
Do mesmo modo, não foram significativas as respostas que pudessem sustentar a ideia da
experimentação de sentimentos negativos em relação aos comportamentos e identidade de
lésbicas, embora esta identidade só pudesse ser formada pela superação de tais sentimentos,
quando encontrados (o que geralmente se resolve muito facilmente). Para Sophie, (1986),
portanto, o retorno ou a passagem para uma existência heterossexual, nos casos encontrados,
não poderia ser analisado sob a perspectiva do sofrimento incongruente, tal como propôs Cass
(1979).
Em sua perspectiva, tais dados refletem a mudança histórica da posição ocupada
pelas mulheres, inclusive por aquelas que ela entrevistou. Para ela, a visibilidade e as conquistas
advindas dos movimentos homossexuais e feministas, na esfera pública, teriam sido
responsáveis pelo fato de que, mesmo antes da aceitação de uma identidade lésbica, esta não
fosse vivida de modo problemático, tão pouco a heterossexualidade. Via de regra, a inserção
em movimentos sociais de gênero (ou reconhecimento do debate que provocam) pareceu
desempenhar funções importantes na auto aceitação e autoestima e na revelação de uma
identidade lésbica, ocorrendo estas de forma mais fácil e rápida, o que indica a interferência de
componentes históricos e contextuais no processo de formação identitária. Para Sophie (idem),
estes resultados indicariam a necessidade de repensar a noção de orientação sexual rumo a uma
concepção mais fluida da sexualidade e do desejo sexual.
Em 1997 Chapman e Brannock (Cf. CHAPMAN E BRANNOCK, 2015)
propuseram um modelo de cinco etapas, construído a partir da resposta de 197 mulheres -
residentes nos (ou nativas dos) Estados Unidos, sendo 96% delas auto identificadas como
lésbicas - a um questionário com 42 perguntas. Embora, como todos os modelos, tenham
encontrado algumas variações nos elementos mais constantes associados ao desenvolvimento
de uma identidade lésbica, os autores procuram destacar a existência da consciência do desejo
80

lésbico antes mesmo que as mulheres pudessem reconhecer (ou mesmo nomear) a
incongruência entre os seus sentimentos e aqueles vividos por mulheres não lésbicas. Acreditar
que sempre foi lésbica, mesmo que não soubesse nomear-se como tal, foi a resposta encontrada
em 82,4% da amostra pesquisada. Diante de tais resultados, concluem os autores, é preciso
afirmar a diferença entre orientação sexual e auto rotulagem, sendo a primeira delas, na maior
parte das vezes, bem anterior e uma condição necessária para ocorrência da segunda. Os
autores, claramente, chegam a uma ideia oposta à da fluidez sexual, defendendo que a
orientação sexual seria condição anterior e necessária à formação de uma identidade lésbica
assumida.
A partir de processos descritos na formação de identidade étnicas, raciais e de
gênero, McCarn e Fassinger (1986) apresentaram um modelo bipartido de formação de
identidade lésbica, propondo duas vias relativamente diferenciadas: uma que contribui para
construção de uma identidade pessoal lésbica e outra, sociopolítica, que auxilia construção de
uma identidade lésbica referenciada como grupo minoritário.
Os autores propuseram a existência de quatro fases onde dois ramos paralelos de
desenvolvimento (pessoal e consciência grupal) continuamente e circularmente se afetam sem,
contudo, se confundirem e sem, necessariamente, ocorrerem em simultaneidade de modo que é
possível que alguém esteja vivenciando processos referentes ao terceiro nível no
desenvolvimento grupal, sem ter conseguido ultrapassar o segundo no desenvolvimento
pessoal. A circularidade ocorre já que, a cada novo relacionamento, novas questões sobre
identidade surgem e do mesmo modo, diante de contextos antes não explorados, novas questões
sobre a pressão de grupo podem surgir. McCarn e Fassinger (1996) não se importaram com o
processo de revelação, posto que compreenderam que apelar para a revelação como nível de
superioridade do desenvolvimento da identidade guei e lésbica, em contextos homofóbicos,
pode levar o sujeito a ser agente de sua própria vitimização.
No modelo por elas construído, a primeira fase, onde ocorre a conscientização, no
plano individual, diz respeito à percepção de desejos ou sentimentos por outras mulheres. Do
lado da construção sociopolítica, tem-se o início da consciência da existência de um grupo de
pessoas que podem ser consideradas homossexuais e/ou lésbicas. Posteriormente, há a
exploração, onde entra em jogo um exame ativo das questões surgidas anteriormente, com a
exploração de sensações sexuais (mesmo que sem chegar às relações sexuais) com outras
mulheres. A exploração na formação da identidade grupal leva a mulher a considerar o
reconhecimento/distinção de gueis e lésbicas (tanto de suas atitudes, como de sua filiação), em
relação aos heterossexuais. Posteriormente chega-se a uma fase de
81

aprofundamento/compromisso com a construção de uma identidade homoerótica. É possível


que, neste momento, muitas mulheres adotem (para algumas provisoriamente) uma postura
bissexual, situação também idealizada por Cass (1979). Para a linha que segue o curso da
construção de uma identidade lésbica, dizem as autoras, do ponto de vista de uma compreensão
grupal, as mulheres se envolvem em coletividades politicamente referenciadas, tomando
consciência da opressão sofrida por iguais e das consequências de suas escolhas. Por fim, há o
processo de internalização/síntese identitária onde, no plano pessoal, há a vivência do amor
pelas mulheres e uma integração da identidade lésbica a outros aspectos da identidade. Na
perspectiva de uma identidade social, comunitária, a mulher lésbica se identifica como membro
de um grupo minoritário, em diversos contextos. Para McCarn e Fassinger (1996) essa
progressão na consciência grupal estaria de acordo com os dados encontrados por Sophie (1986)
para quem tal consciência só será desenvolvida quando as lésbicas forem capazes de superar os
sentimentos negativos em relação ao lesbianismo, que geralmente ocorre de modo mais intenso
durante a fase de exploração e que nem sempre se apresenta, a depender dos grupos aos quais
pertencem e da quantidade de homofobia aprendida/sofrida no contexto em que cada uma delas
vive. De todo modo, ponderam, apesar de que algumas lésbicas possam ter consciência da
opressão vivenciada pelo grupo a qual pertencem, isto não significa dizer que elas venham a se
alinhar ativamente com grupos politicamente organizados em torno do enfrentamento
superação de diferenças de poder entre as sexualidades constituídas.
Também enfatizando a centralidade das da influência dos fatores contextuais no
desenvolvimento das identidades lésbicas, Faderman (2008) propôs verificar a interferência da
participação em movimentos sociais feministas na organização da experiência e identidade
lésbicas. Ao escutar mulheres que se tornaram lésbicas dentro do referido movimento, a autora
encontrou uma quase inversão da ordem de aparecimento dos estágios descritos no processo de
coming out, em modelos tais como o de Cass e Coleman, entre outros. Dentro do movimento
feminista radical, que acredita na potencialidade bissexual (ou polimorfa) desde a infância, o
lesbianismo pode ser uma escolha voluntária e consciente contra as formas de dominação
masculina (diferenciando-se da noção de que a lesbianidade é uma questão diferencial da
natureza da orientação sexual dos indivíduos). Pela via do engajamento feminista, as mulheres
aprendem que as normas sociais podem ser criticamente avaliadas, sendo a heterossexualidade
compreendida como cerceamento da liberdade das mulheres, operação que ocorre, muitas
vezes, antes do contato genital entre elas. Deste modo, as atividades sexuais entre elas não são
tomadas como identidade, mas como atividade sexual. Além do mais, uma vez que a
experimentação de relações homoeróticas tenha sido realizada pela decisão ocorrida no interior
82

de um movimento grupal que a apoia, também não foi possível encontrar processos de
isolamento e alienação tais como amplamente descritos em outros modelos. Embora a
experiência lésbica pareça ser vivida sem muitas tensões, a pesquisadora encontrou que as
relações homoafetivas por elas vivenciadas eram reveladas dentro dos grupos feministas, mas
não em demais situações sociais de convivência com heterossexuais.
Como pode ser percebido, nesses modelos, além da formação identitária, há uma
curiosidade atenta à revelação da sexualidade no cotidiano das pessoas não heterossexuais,
parte importante da política de visibilidade assentada na saída do armário como estratégia para
o desmonte da homofobia. Embora a preocupação com a formação da identidade guei ou lésbica
no Brasil não tenha gerado modelos do processo de saída do armário, a preocupação com a
revelação pública das sexualidades foi alvo de consideração dos articulados movimentos sociais
pró-homossexualidades.
Aparentemente, no Brasil, cada vez mais pessoas se assumem. Pesquisas realizadas
por membros e membras do CLAM (Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos
Humanos) nas Paradas do Orgulho LGBTIA+ indicam um número bastante alto de pessoas que
responderam serem assumidas em, no mínimo, um dos contextos listados na questão que
procurava identificar tal característica. No ano de 2003, no Rio de Janeiro, encontrou-se que
7,7% entre os entrevistados mantinham-se completamente no armário, não tendo se revelado a
ninguém. No ano seguinte, na mesma cidade, este índice caiu para 3.5%. Em São Paulo, 3,5%
dos entrevistados afirmaram manter suas sexualidades em segredo e em Recife, 3,9%
encontram-se da mesma forma. Os baixos números de pessoas que não se assumira para
ninguém, encontrados por essa pesquisa, não podem ser indicativos de um quadro geral já que
os respondentes estavam participando de um ato organizado pelos movimentos sociais
LGBTIA+s, em um evento que aglutina uma multiplicidade de pessoas que estão lá, muitas
vezes, para visibilizar a existência de sexualidades não heterossexuais. A idade parece ser um
fator importante na revelação, sendo mais frequente a assunção de pessoas na faixa etária entre
30 e 39 anos, e menos frequente entre jovens de 18 anos e também entre adultos acima dos 40
anos de idade. (Cf. CARRARA & RAMOS, 2004)
Nas pesquisas onde foi realizado o cruzamento da identidade sexual em relação ao
ato de assumir-se, é possível perceber que as lésbicas preferencialmente se assumem para
amigos e família (79,2% e 75,5%, respectivamente, nas respostas encontradas no Rio de
Janeiro, em 2003 e 93,1% e 80,5%, naquelas encontradas na mesma cidade, no ano seguinte).
83

O lugar que encontram mais dificuldade para assumirem-se são os lugares de trabalho e a
escola/faculdade7 (Cf. CARRARA & RAMOS, 2004).
Em resumo, muitos modelos foram realizados para dar conta dos processos de
formação de construção de identidades e experiências lésbicas. Inúmeras correções foram feitas
aos modelos que o precederam sem, contudo, jamais esgotar as diversas possibilidades da
constituição de uma experiência ou identidade lésbica, certamente vivenciada, sempre, de modo
singular. Vários modelos discordaram sobre a idade do processo de auto percepção como
lésbica, sobre a necessidade de que tal auto percepção seja condição anterior às primeiras
experiências, sobre processos de divulgação associados a cada fase e sobre a própria natureza
das fases (se linear, progressiva e necessárias ou, por outro lado se cíclica, com possibilidades
de concomitância entre elas). Discordam também sobre uma possível natureza essencial da
identidade lésbica, entendendo que, para algumas mulheres, por diversas circunstâncias, é
possível, de modo consciente, o abandono da experiência lésbica e a adoção de experiências
sexuais heterossexuais, sendo verdadeiro que também isso é passível de acontecer na direção
inversa, por decisões, por exemplo, mais da esfera da política do que de um desejo impossível
de se combater.
Por mais que portem diferenças internas, os debates em torno do processo de saída
do armário contribuíram para efetivar uma leitura homonormativa da experiência homossexual
e da compreensão dos processos de construção de uma identidade homoafetiva “saudável”,
onde o indivíduo que a mantém, permanece congruente consigo integrado em seu tecido social
e que estas condições favorecem a revelação de uma sexualidade estigmatizada que, no topo,
deve ser pensada dentro de uma referência politizada, normalmente adquirida através do acesso
ou avizinhamento à cena LGBTIA+.

3.2 A gestão do armário diante dos outros.

O armário é o duplo da homofobia, sentimento complexo que pode ser expresso


tanto por aversão ao homossexual como à própria homossexualidade enquanto fenômeno social
(BORRRILLO, 2010). No Brasil ela se apresenta de forma estrutural, entendida como
discriminação, aversão ou ódio, de conteúdo individual ou coletivo (incluindo as esferas do
trabalho e do Estado) baseados na inferioridade das pessoas LGBTIA+ em relação à

7
Carrara e Ramos (2004) advertem que o baixo índice relacionado a pessoas que se assumiram em contextos
escolares pode ser explicado pelo fato de que menos da metade dos entrevistados frequentavam escolas.
84

heteronormatividade (Cf. MENDOS, 2019). Prado e Machado (2008) nos mostram a dimensão
política aí envolvida: através do preconceito contra homossexuais, é possível fazer valer a
diminuição de status social e político de gueis, lésbicas e pessoas trans, redundando em uma
supressão de direitos sociais para este grupo e em uma maior possibilidade de se expor à
agressões e violências psíquicas e corporais. Os mecanismos que sustentam a homofobia,
dizem, são tão mais efetivos quanto mais ocultados e naturalizados forem. Por outro lado, os
três autores apostam que o reconhecimento e a análise dos aspectos constitutivos e
mantenedores da violência homofóbica acabam por revelar a artificialidade e as relações de
poder constantes nas diferenciações, classificações e hierarquizações diversidade sexual
humana. Uma vez revelados, podem instrumentalizar transformações sociais no sentido da
diminuição das hierarquias em jogo.
Certamente o reconhecimento desses mecanismos, suas revelações e as denúncias
de seus efeitos, muito favorece à transformação, ainda longe de se completar, do lugar ocupado
pelas homossexualidades. No Brasil, muitos avanços - conquistados pelos esforços de uma
cultura guei politizada - foram promovidos na legislação no sentido da diminuição das
diferenças entre pessoas LGBTIA+ e pessoas que designam a si próprias como heterossexuais.
A súmula vinculante que estendeu o direito de casamento entre pessoas homoafetivas, a adoção
de criança por casais de gueis e lésbicas, a alteração do nome social para pessoas trans e mais
recentemente a criminalização da homofobia por equiparação ao crime de racismo, dentre
outros, demonstram tais avanços. Além do mais, cada vez mais a mídia inclui personagens e
personalidades homossexuais em suas programações, ao mesmo tempo que nas redes sociais
explodem a diversidade sexual e seus grupelhos mais ou menos organizados.
Porém, a despeito de tais mudanças, o Brasil ainda é um lugar inóspito para se
assumir guei ou lésbica e provavelmente o mais letal do mundo contra a vida de transexuais.
Estima-se, não sem controvérsia, que aqui ocorre cerca de 44% da soma de todos os crimes por
motivação transfóbica ocorridos no planeta. O relatório População LGBT morta no
Brasil/2018, do Grupo Gay da Bahia, em parceria com site Homotransfobia Mata, afirma que
a cada 20 horas uma pessoa LGBTIA+ morre de forma violenta, vítima da LGBTIA+fobia, o
que faz do Brasil o país o campeão mundial de crimes cometidos contra as minorias sexuais.
Segundo o mesmo documento, mata-se muito mais no Brasil do que nos 13 países no Oriente e
África onde há pena de morte para os homossexuais (Cf. MICHELS, MOTT e PAULINO,
2018). No ano de 2021, pela 13a vez consecutiva, o Brasil permaneceu no topo do ranking entre
países onde ocorrem a contagem de homicídios por motivações homofóbicas (Cf. MOTT e
OLIVEIRA, 2022).
85

No ano de 2017, Peres, Soares e Dias, pesquisadoras integrantes do grupo


Lesbocídio - as histórias que ninguém conta, vinculado à Universidade Federal do Rio de
Janeiro, lançaram o Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil de 2014 até 2017. Embora seja
reconhecida a dificuldade de avaliar a correspondência entre os números informados e os
acontecimentos da realidade, nos dois dossiês citados, os dados neles disponibilizados nos
fornecem importantes aspectos sociológicos sobre o fenômeno da homofobia e lesbofobia e sua
consequente aniquilação de vidas LGBTIA+ e não possuem substitutos. ‘
Em relação à lesbofobia durante os anos de 2014 a 2017, 126 lésbicas foram mortas
ou atentaram, com sucesso, contra a própria vida. A maioria dos 93 casos de assassinatos, bem
como das 33 ocorrências de suicídios cometidos por lésbicas, foi registrada nas cidades do
interior, que concentram 71% dos atos suicidas e 63% dos homicídios registrados em todo
Brasil. Via de regra, as mulheres assassinadas são masculinizadas (66%), entre 20 e 24 anos
(33%) e brancas (54%). São Paulo lidera o número de casos de assassinatos (19), seguido por
Minas Gerais (7) e Ceará (6). O Nordeste é a segunda região mais letal contra lésbicas (30%),
com uma pequena diferença percentual negativa em relação à região Sudeste, que acumula 33%
dos casos de homicídios lesbofóbicos, durante o período, no Brasil. (Cf. PERES, SOARES e
DIAS, 2017)
Seus agressores, na maior parte homens (83%), conheciam as suas vítimas, isto por
que 34% deles possuíam forte vínculo afetivo com elas, sendo os agentes familiares ou ex-
maridos ultrajados, e 30% as conheciam, embora não tivessem vínculos afetivos. Porém, se
considerarmos de modo isolado cada uma das categorias computadas no relatório, 36% dos
casos foram realizados por desconhecidos, o mais alto valor entre as três categorias. 72% dos
crimes foram cometidos em espaços públicos, contra 28% nas residências das vítimas.
Preferencialmente, foram utilizadas armas de fogo (47%), seguidos por facadas (23%).
Tais estatísticas nos revelam alguns dados interessantes. Em princípio, chama-me
atenção o fato de que o maior número de atentados bem-sucedidos contra a vida de lésbicas
ocorra fora das grandes cidades. Além do mais, as estatísticas apontam que nem o espaço
público, nem o privado, garantem a segurança de lésbicas. O perigo que correm vem de toda
parte, incluindo o seu meio familiar.
De todo modo, a lesbofobia expressa nos dados revelados sobre as mortes daquelas
que desejam, apaixonam-se e relacionam-se (ou não) sexualmente com outras mulheres, nos
dão indícios de que a lesbianidade e a sua revelação ainda são escolhas arriscadas. Se estes
dados dão conta da cruel brutalidade de que no Brasil (e em outros lugares do mundo) matam-
86

se pessoas por serem homossexuais, eles não conseguem alcançar estatísticas do banal da vida
guei e lésbica, permeado de muitas violências que não se destinam à morte.
Medir o banal do cotidiano nas vidas e corpos gueis e lésbicos jamais será uma tarefa
justa. A despeito disso, algumas pesquisas, realizadas por grupos pró-homossexuais, procuram
realizar alguma contabilidade a esse respeito. As pesquisas realizadas pelo CLAM nas paradas
do orgulho LGBTIA+ nos anos de 2003 e 2004 no Rio de Janeiro, em 2004 na cidade de Porto
Alegre, em São Paulo no ano de 2005 e em Recife no ano seguinte, indicam um número não
desprezível de pessoas homossexuais que declaram ter sofrido algum tipo de agressão ou
discriminação homofóbica de diversos níveis em diferentes ambientes de sociabilidade (Cf.
CARRARA & RAMOS, 2003; CARRARA & RAMOS, 2005; CLAM, 2005; CARRARA,
FACCHINI & RAMOS, 2006, CARRARA, RAMOS, LACERDA, MEDRADO & VIEIRA,
2007). Observando todas essas pesquisas, foi possível determinar que um número entre 58,5 %
(no Rio de Janeiro em 2003, mais baixo índice encontrado) e 72, 1% (em São Paulo, maior
percentual encontrado) dos LGBTIA+ entrevistados declaram ter sido, pelo menos uma vez,
vítimas de algum ato de violência e ou discriminação em função de suas sexualidades. As
estatísticas indicam que as agressões geralmente, são provenientes de pessoas desconhecidas
(com percentual mais alto, 49,7%, encontrado no Rio de Janeiro em 2004 e percentual mais
baixo, 35,6%, encontrado em Pernambuco) e em espaços públicos (com percentual mais alto,
58,5 % das agressões declaradas entre os participantes entrevistados no Rio de Janeiro, no ano
de 2004 e mais baixo, 50,2%, encontrado na mesma cidade, no ano anterior).
Embora pareça que sim, talvez não seja possível concluir que as ações
discriminatórias e ou agressivas contra pessoas LGBTIA+ geralmente são desferidas por
pessoas desconhecidas, bem como é provável que seja duvidosa a ideia de que os espaços
públicos sejam mais propícios à ocorrência de tais acontecimentos. Apesar de que as opções
“espaço público” e “pessoas desconhecidas” tenham sido marcadas mais vezes, em questões
que envolviam resposta com múltiplas escolhas, procedendo com o agrupamento de uma
diversidade de categorias constantes nas perguntas sobre o lugar/contexto da ocorrência da
agressão/discriminação, bem como nas que pretendiam obter informações sobre o grau de
proximidade entre os agressores e suas vítimas, a posição de importância a ser dada para as
categorias “espaço público” e agentes “desconhecidos” pode ser reconfigurada. É facilmente
agrupável, sob a égide “lugares de rotina”, não importando se público ou privado, espaços tais
como escolas, ambiente familiar, vizinhança e espaços de prática religiosa, que foram tratados
isoladamente. Do mesmo modo, categorias de agressores, tais como vizinhos, chefes/colegas
de trabalho, professor/colega, parceiros/ex-parceiros, amigos/colegas e familiares poderiam ser
87

facilmente agrupados pela ordem “pessoa conhecida”. Deste modo, é possível encontrar, em
Recife, um percentual que indica que 71% dos agressores eram conhecidos de suas vítimas.
Fora estes grupos, também foi possível encontrar agressores entre os agentes policiais e
prestadores de serviço de saúde, funcionários de empresas públicas e privadas.
Do mesmo modo, as discriminações e as agressões, via de regra, também parecem
acontecer com facilidade nos lugares de rotina dos indivíduos (variando entre 29,9% a soma
dos lugares de rotina registrados pelos participantes do Rio de Janeiro em 2004 e chegando a
mais de 100% a soma dos lugares de rotina elencadas pelos participantes de São Paulo, em
questão que envolvia múltipla escolha). Além destes lugares/contextos citados, os relatórios
identificaram também que estas ocorrências acontecem em espaços comerciais e de lazer e em
lugares procurados para a aquisição de serviços tais como os realizados por agentes policiais
ou pelos prestadores de serviços de saúde.
Observando apenas os dados obtidos a partir das respostas dadas por lésbicas nestas
pesquisas é possível afirmar que a maior parte das entrevistadas disseram ter sido agredidas ou
discriminadas, pelo menos uma vez, em função de sua sexualidade. Em relação às
discriminações e às agressões sofridas por lésbicas em todas as pesquisas onde foi considerado
separadamente a orientação sexual lésbica em relação ao lugar de suas ocorrências, a casa é,
sem dúvida, o espaço de maior incidência. Isso demonstra, por certo, confrontos familiares
diante da sexualidade lésbica.
Vale lembrar que esta característica de desajuste familiar, na perspectiva de
Sedgwick (1998, 2007), tem uma importância fundamental no processo de anexação do armário
à exclusividade da experiência homossexual. A despeito da citada ideia de Ribeiro (2005) sobre
o armário mestiço, Sedgwick (idem, idem) atenta para o fato de que a experiência de sociofobia
racial ou étnica, por exemplo, é vivida por toda família (ou parte dela) não se constituindo um
problema intrafamiliar. A revelação da homossexualidade, sempre, ou quase, promove uma
ruptura da expectativa da heterossexualidade o que pode vir a se tornar um peso problemático,
tanto para aquele que sai do armário, como para todos ou alguns membros da família. Isto por
que a revelação na família mostra o poder de contágio do armário: ao tomar conhecimento de
que um de seus membros se afirma como homossexual, cabe à família iniciar sua própria gestão
na revelação/ocultação dessa informação no seu círculo social mais amplo (família extensiva,
vizinhança, relações de trabalho). Diante da revelação de um de seus membros, a família entra
no armário, pondera a autora.
Nascimento e Scorsolini-Comin (2018), ao realizarem uma revisão integrativa da
literatura científica acerca da revelação de homossexualidade na família publicada entre o
88

período de janeiro de 2006 a maio de 2016, nos dizem que, via de regra, as famílias reagem de
modo negativo à comunicação sobre a homossexualidade por um de seus integrantes, embora
possam, elas próprias, realizarem seus processos evolutivos no sentido de uma maior aceitação
e integração da homossexualidade de seus membros. Coleman (2010) observa que, geralmente,
essa travessia no sentido de uma maior integração familiar tende a ser bastante demorada.
Dentre as agressões sofridas por lésbicas, também em todas as pesquisas, há uma
maior incidência de agressões verbais, sendo a mais alta estatística a que determina que foram
vitimadas 52,4% das lésbicas entrevistadas no Rio de Janeiro no ano de 2003 e cujo menor
índice, 45%, foi encontrado nas respostas dadas pelas lésbicas na marcha pela diversidade
sexual acontecida em Recife. Em segundo lugar, estão relatados casos de chantagens e em
terceiro violência física. Via de regra, lésbicas dificilmente são vitimadas por “boa noite
Cinderela”, não aparecendo nenhum número desta violência nos dados informados nos
relatórios referentes ao Rio de Janeiro nos anos de 2003 e 2004 e em Porto Alegre no ano de
2004. Em média, os dados estatísticos de todas as pesquisas que organizaram as agressões em
função da orientação sexual lésbica, o golpe boa noite Cinderela foi desferido contra 1,8% das
lésbicas entrevistadas, número menor que o associado à agressão sexual, presente em todas as
pesquisas, vitimando uma média de 2,9% entre todas as lésbicas entrevistadas pelo CLAM e
seus associados.
Apesar do baixo índice estatístico referente às violências sexuais relatadas por
lésbicas nessas pesquisas, em 2019 o site Gênero e Número fez um levantamento sobre a
incidência de estupros corretivos sofridos por lésbicas durante o ano de 2017, a partir de dados
obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN, Ministério da Saúde) e
chegou a algumas conclusões. Em princípio, obteve-se que aproximadamente 10% dos casos
de estupro contra mulheres registrados em tal sistema foi motivado pelo desejo de correção da
sexualidade lésbica de suas vítimas. Estima-se que este número pode até mesmo ser maior, já
que muitas vezes tais casos são notificados apenas como estupro, sem mais detalhes. Os 2.379
casos de estupros corretivos identificados – que comumente é acompanhado de dizer es do tipo
“para que você aprenda a gostar de homem”, “para que você deixe de ser lésbica”- ocorrem, na
maior parte das vezes (61%), dentro de casa e no meio familiar. Enquanto que 20% dos casos
ocorrem em cenas públicas. Os homens aparecem como autores em 96% das agressões sexuais,
enquanto apenas 1% delas são realizadas por mulheres. A maioria das vítimas são lésbicas
negras (58%), seguida das brancas (35%). Em último lugar, em 1% dos casos, as vítimas se
autodeclararam indígenas e amarelas (Cf. SILVA, 2019). No texto por mim consultado não há
referências aos territórios onde eles aconteceram.
89

Uma lufada de ar nesse breve resumo estatístico, envolve o recente resultado de uma
longa querela envolvendo a pauta da criminalização da homofobia, desde 2001 - com a
proposição Projeto de Lei 5003/2001, que depois transformou-se em um Projeto de Lei da
Câmara -(PLC 122/06) que propunha a criminalização da homofobia - até 2019, momento em
que ele foi aprovado de modo equiparado ao crime de racismo, conquista parcial do movimento
LGBTIA+ brasileiro. Fazem parte do arejamento na política de estado, outros ganhos ocorridos
durante este longo período em que a criminalização da homofobia lentamente tramita, presa na
burocracia “ubuesca” do estado. O entendimento do Supremo Tribunal Federal a favor da
adoção de crianças por casais homoafetivos, em 2015 e o Decreto Nº 8.727/2016 que
determinou o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas
travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e
fundacional, são partes dessas conquistas.
A aprovação de uma legislação que criminaliza a homofobia, poderia até ter sido
resolvida antes, caso fossem considerados os ânimos da população. Em uma pesquisa telefônica
conduzida pelo DataSenado em 2008, com 1120 pessoas de todas as cinco regiões do Brasil,
com vistas a compreender como a população se posicionou em relação ao pleito dos
movimentos sociais, foi contabilizado que 70% dos entrevistados eram a favor da
criminalização da homofobia no país. A aprovação ampla, em quase todos os segmentos,
considerando cortes por região, sexo e idade. Até mesmo o corte por religião mostrou uma
aprovação de 54% entre os evangélicos, 70% entre os católicos e adeptos de outras religiões e
79% dos ateus. (Cf. DATASENADO, 2008).
Porém, apesar dos ânimos favoráveis à aprovação da criminalização da homofobia,
o percurso do processo foi marcado por uma acirrada disputa entre as partes envolvidas no
processo, com cada vez mais integrantes dado às constantes adesões de grupos e entidades
cristãs, de um lado e pró-homossexualidades de outro. Em 2014 o Senado arquivou o PLC cujo
pedido só veio a ser resolvido no Supremo Tribunal Federal - STF, no ano de 2019, após as
provocações feitas pela ABGLT - ao impetrar, em 2012, um mandado de injunção com vistas a
obter a criminalização específica de todas as formas de homofobia e transfobia, especialmente
(mas não exclusivamente) das ofensas (individuais e coletivas), dos homicídios, das agressões
e discriminações motivadas pela orientação sexual e/ou identidade de gênero, real ou suposta,
da vítima – e pelo Partido Popular Socialista - ao impetrar a Ação Direta de
Inconstitucionalidade por Omissão, em 2013, alegando a inércia do Congresso Nacional no
julgamento e aprovação da pauta.
90

Mesmo com a aprovação da lei, houve poucas mudanças no cenário de mortes


violentas contra pessoas LGBTIA+ no Brasil que, em 2021, continuou a figurar como o país
que mais ceifam vidas trans do mundo, pelo 13º ano consecutivo, como já mencionado. Neste
ano, 316 mortes violentas aconteceram contra pessoas LGBTIA+ no solo brasileiro, sendo 285
o número de pessoas assassinadas, 26 o de pessoas que atentaram, com sucesso, contra a própria
vida e 5 por outras causas. Não houve registro de suicídio entre lésbicas e as 12 mortes
registradas decorreram de ações homicidas. Via de regra, considerando a população geral, a
maior parte dos homicídios foram cometidos com o uso de facas, seguido pelo uso de armas de
fogo e normalmente eles ocorreram dentro das casas das vítimas. No que se refere às lésbicas,
o relatório cita a predominância de mortes causadas por familiares ou ex-companheiros
ultrajados, o que poderia ser subentendido nos relatórios anteriores, embora não diretamente
mencionados. Para os organizadores do relatório, apesar dos avanços legais, é preciso perceber
os retrocessos e desinvestimentos no enfrentamento à violência de gênero, o que faz com que
as conquistas que foram alcançadas até aqui tenham sido insuficientes para frear os recorrentes
casos de violações de Direitos Humanos e a quantidade de assassinatos de pessoas LGBTIA+.
Segundo suas ideias, estas circunstâncias colocam o Brasil como um dos países mais violentos
do mundo para pessoas dissidentes da norma cis-hétero-normativa (Cf. MOTT e OLIVEIRA,
2022).
Esse panorama que envolve avanços legais, mas também mantém adversidade na
quase totalidade dos espaços onde transcorre a vida dos indivíduos comuns (família,
escola/faculdade, trabalho, vizinhança) leva a crer que Sedgwick (1998, 2007) tem razão ao
afirmar que o armário é a estrutura de opressão dos homossexuais no século XX e que, talvez,
nem mesmo a pessoas mais assumidamente guei e lésbica esteja livre dele. Como já dito, a cada
novo emprego, a cada nova relação social, em vários contextos, gueis e lésbicas decidem se
podem ou não revelar aquilo que foi constituído como uma sexualidade a ser segregada,
invisibilizada, excluída da vida social e não se pode ter certeza sobre as consequências advindas
de tal ato.
Desde o século XIX, quando a sexualidade foi cindida em termos contrários e
quando um desses termos foi sendo construído como um amálgama, jamais superado, composto
por pecado, crime e doença, na revelação sobre tais desejos, sempre corre-se o risco de ter que
lidar com consequências.
Como disse Rubim (2017), com sorte, os sujeitos que revelam são confrontados com
um especial tom de espanto diante da revelação, podendo mesmo serem questionados sobre a
duração desse desejo: “não seria uma fase?”, lhes interrogam, descaracterizando a real
91

possibilidade dessa perspectiva, uma espécie de eco retardado da pessoa que se assumiu. A
autora menciona inda o não menos cruel “eu já sabia”, indicativo de uma possível e inerte
audiência do receptor da informação a um sofrimento vivido solitariamente por aquele que
realizou a emissão da declaração, outra forma de apagamento da possibilidade da existência
homossexual. A depender da circunstância, os mais azarados podem vir a lidar com terapias
forçadas, extradições compulsórias, xingamentos, ofensas, violências corporais (que podem
culminar na morte do indivíduo), estupro, perda de oportunidades diversas, mesmo no interior
de suas famílias.
Deste modo, o armário é um modelo de gestão da vida em torno das sexualidades
binarizadas e hierarquizadas onde uma delas, a homossexualidade, funciona de modo
socialmente estigmatizado. Goffman (2017) entende que o estigma é um valor atribuído a um
sujeito ou um grupo de sujeitos que possui uma marca ou sinal desviante (comportamentos,
sistemas de crença, vestimentas, dentre outros) em relação ao que se considera normal em uma
sociedade. Aquele que porta o estigma, é investido de um poder diferencial em relação aos
demais, os não estigmatizados. Se associado a um valor positivo, o estigmatizado é investido
de poder; se irmanado com um valor depreciativo, o oposto ocorre. Embora o que seja
considerado como estigma e o valor atribuído a ele varie no tempo e no espaço, em todas as
culturas um estigma funciona como ponto de diferenciação e hierarquização entre os
indivíduos, sendo um conceito relacional. Para Goffman, a homossexualidade é um estigma
negativo, considerado como “culpa de caráter individual”, percebida como vontade fraca,
paixões tirânicas e não naturais, desonestidade, dentre outros qualificativos igualmente
atribuídos aos viciados, aos desempregados, aos marginais e aos suicidas, para citar alguns
grupos sobre os quais recaem a mesma pecha.
Ao estigmatizado, especialmente os associados a estigmas negativos, cabe à
formação de uma carreira moral, isto é: a sequência de ajustes realizados por pessoas que
passam a se compreender como estigmatizadas e que produzem efeitos na identidade e no
esquema de imagens utilizados pela pessoa em seu juízo sobre os outros e acerca de si própria.
O estigma é reflexivo e corporificado, ou seja, passa a ser um elemento central na organização
cognitiva, afetiva e corporal dos sujeitos.
Muito do que foi dito na análise psicológica do armário (o luto, a vergonha, a busca
de conhecimento, o isolamento em relação aos “normais” e a associação entre iguais e a
construção de vidas paralelas, a aceitação de si a integração com os outros e os possíveis
investimentos em uma identidade afirmativa) estão incluídos na descrição de uma carreira
moral por Goffman (2017). Sendo bem-sucedida, diz o autor, uma carreira moral é o percurso
92

construído para a consecução de um equilíbrio estável que se fez possível pela superação da
vergonha de possuir um estigma e pela aceitação da posse de seu estigma, por si próprio e por
aqueles que lhes são próximos. Observa ainda que para muitos indivíduos, como foi sinalizado
por muitos modelos do armário, a construção de uma carreira moral talvez nunca chegue ao
fim.
Com a noção de estigma de Goffman (idem) é possível compreender os processos
microssociais de controle da informação, por parte do estigmatizado, da posse de um estigma
negativamente marcado e que, uma vez revelado, aquele que o portar pode vir a ser considerado
desacreditado. Desacreditado, posto que um estigma tende a se corporificar de uma forma tão
totalizadora, na existência dos que os possuem que, em encontros sociais, que ele pode apagar
todas as demais habilidades do estigmatizado, reduzindo-o ao desmerecimento de seu estigma.
Do lado daquele que possui um estigma, há duas possibilidades. Se o estigma foi imediatamente
perceptível, o estigmatizado colabora para dar ao seu interlocutor os motivos pelos quais pode
vir a ser considerado desacreditado. Tal é o caso dos que possuem armário de vidro que, não
sendo capazes de ocultar sua homossexualidade, se põem a gerenciar as tensões provocadas a
cada situação social devido à incerteza a respeito do valor que tem para o outro a informação
imediatamente visível. Para os homossexuais capazes de esconder suas preferências, os
estigmatizados, trata-se de controlar a emissão da informação determinando o que, o quanto,
como, a quem, e em que circunstâncias a revelação deve ocorrer, jamais sendo capaz de saber,
com segurança, se eles passarão da posição de não acreditável, para desacreditados. Nas
palavras de Goffman (2017, p. 51):

Uma possibilidade fundamental na vida da pessoa estigmatizada é a colaboração que


presta aos normais no sentido de atuar como se a sua qualidade diferencial manifesta
não tivesse importância, nem merecesse atenção especial. Entretanto, quando a
diferença não está imediatamente aparente e quando não se tem dela um conhecimento
prévio (ou, pelo menos ela não sabe que os outros a conhecem), quando, na verdade,
ela é uma pessoa desacreditável e não desacreditada, nesse momento é que aparece a
segunda possibilidade fundamental em sua vida. A questão que se coloca não é a da
manipulação da tensão gerada durante os contatos sociais, e sim da manipulação de
informações sobre seu defeito.

Os modos como se estabelece o controle da informação, pode ser muito descritivo


da episteme do armário no que se refere ao eterno retorno das passagens do segredo para
revelação das identidades (ou apenas das práticas) homossexuais diante dos outros
(especialmente os não homossexuais). No sentido de favorecer a ocultação do estigma, diz
Goffman (2017) há duas formas de controle: o encobrimento e o acobertamento. Encobrir um
93

estigma significa estabelecer uma apresentação de si que procura, ao máximo, esconder o


estigma, fazendo com que o interlocutor não o perceba. Trata-se, inclusive, de falsear
informações, buscando desenvolver comportamentos que façam com que os não estigmatizados
acreditem que os estigmatizados sejam seus iguais. Estratégias de “encobrimento” comuns
entre pessoas homossexuais, para citar alguns exemplos, incluem a criação de mentiras públicas
tais como “fazer a linha”, que consiste em arranjar uma pessoa do sexo oposto para se passar
por par romântico em determinados eventos sociais.
O acobertamento do estigma homossexual consiste na estratégia de assimilar-se à
forma do mainstream heterossexual sem uso de artifícios falsos, buscando não denunciar a
presença do estigma, mesmo diante de um público que reconheça sua existência. Não
manifestar afetos em lugares públicos, na presença de determinadas pessoas, inclusive quando
estas são cônscias de sua sexualidade e não se expor com a presença de amigos que possuem
armário de vidro, dentre outras estratégias, são formas de acobertamento. Procura-se passar por
um “normal”, embora seja compartilhado entre todos ou alguns o reconhecimento de que a
“normalidade” não se aplica ao sujeito que assim procede (Cf. GOFFMAN, 2017). O
acobertamento e o encobrimento são espécies de acordos tácitos em cláusulas de convivência
entre as partes envolvidas e não estão livres de tensão, como descreveram Elias e Scotson,
(2000).
O manejo da ocultação ou revelação de uma sexualidade estigmatizada depende
também da realização de mapas corporais, definindo a auto apresentação em função do
ambiente e das pessoas nele presentes, determinando em quais espaços pode-se “soltar a franga”
e em quais deve-se deixá-la guardada (Cf. MURASKY & GALHEIGO, 2016). Este critério (de
cuidado com o denunciar-se) estende-se, inclusive, à escolha das amizades e a limitação da
circulação pública com as mesmas. Ter amigos cujo armário é de vidro e incorporá-lo em seu
ciclo social mais amplo pode funcionar como elemento revelador do estigma que se pretende
esconder.
Goffman (2017) sugere que o estigmatizado tende a buscar apoio em dois grupos de
indivíduos, aqueles que portam o mesmo estigma, os seus iguais, e aqueles que sendo
“normais”, podem ser considerados “informados”, ou seja, os que cuja situação especial levou
a provar intimamente da vida secreta do indivíduo estigmatizado e a simpatizar com ela e que
gozam, ao mesmo tempo, de uma certa aceitação ao clã (GOFFMAN, 2017, P. 37). Pecheny
(2015), que também compreende a homossexualidade a partir da noção de estigma, encontra
três padrões de laços de sociabilidade entre os sujeitos homossexuais e aqueles que o cercam:
94

aqueles que não sabem de nada, aqueles que, sendo normais, estão cônscios da posse do estigma
e os iguais.
De todo modo, mesmo com todos os cuidados, uma pessoa estigmatizada nunca
estará segura de que não vá ser denunciado, inadvertidamente, em situações corriqueiras. O
controle total da informação não depende de sua (instável) vontade. Um encontro fortuito com
alguém que pode vir a revelar seu estigma é sempre um acontecimento arriscado. Por isso, outra
estratégia usada na gestão da informação, é a divisão dos lugares que passam a ser avaliados
em uma escala entre o proibido e o liberado. Neste último caso, trata-se de “lugares retirados”
(GOFFMAN, idem), onde o sujeito pode ser capaz de arrefecer em relação ao controle de
informação e expor mais livremente seu estigma. Os guetos, bares, residências de iguais, bem
como outros serviços prestados à população LGBTIA+ - tais como cruzeiros/excursões
LGBTIA+, igrejas inclusivas, dentre outros – são lugares retirados onde homossexuais podem
mostrar-se mais livres dos controles. A carreira moral ensina às pessoas homossexuais uma
maestria na organização do modo de permanência em diferentes espaços, adaptando seus
comportamentos em função do controle da informação, fazendo-as viver uma vida dupla, o que
pode trazer algumas consequências, dentre as quais, o sentimento enganar aqueles que lhes são
caros e próximos, embora também seja uma estratégia muitas vezes utilizada para o benefício
da possibilidade de construção de identidades homossexuais.
Uma escolha bastante arriscada, mas também possível, é a própria revelação da
posse de um estigma. Para Goffman (2017) ainda que a revelação torne a fragilidade de uma
condição marginalizada mais evidente, ela desloca o sujeito de um papel submisso para uma
posição que o torne senhor de si. Para Miskolci (2016) a revelação da homossexualidade é um
ato de resistência já que implica na vantagem do controle da informação da vida íntima daquele
que a revela, diminuindo a intensidade com que esta possa vir a ser usada contra seu revelador,
em uma situação de chantagem. Obviamente, mesmo nessa ação, há que se medir e avaliar os
riscos e os ganhos envolvidos, inclusive o fato de que, como ponderou Pecheny (2005), um
segredo contado sempre corre o risco de ser divulgado (pela prática do outing) e talvez até
mesmo seja esperado que assim se faça.
Alguns elementos parecem ser condicionadores e/ou facilitadores da saída do
armário. Em princípio, a visibilidade de gueis e lésbicas, como bem sugeriu a explosão em torno
do imperativo da saída armário pelo movimento LGBTIA+, parece ser fundamental, embora
seja necessário conhecimento da “gramática” LGBTIA+, para que um sujeito se declare deste
modo.
95

Uma vez que essa gramática se encontre socialmente disponível, não


necessariamente a sua visibilidade é garantia de sucesso, pois ela pode depender do modo como
é realizada. Por exemplo, é crível supor que - devido ao fato de a mídia (especialmente a mídia
impressa) ter associado as homossexualidades às páginas policiais, e também já que muitas
vezes o modo como gueis e lésbicas foram personificados, de modo caricato, em programas
televisivos -, determinados modos de visibilidade contribuam para reforçar o armário. Brandão
(2010), estudando o processo de formação identitária de lésbicas da cidade de Porto, em
Portugal, mostra como garotas em processos de construção e reconhecimento de desejos
homoafetivos, em especial entre as mulheres de cidades pequenas, consideraram sentimentos
negativos em relação a seus desejos, por não terem sido capazes de se reconhecer nos modelos
disponibilizados pela mídia e por não possuírem exemplos atuais na vida cotidiana.
Ao que tudo indica, a aproximação com um universo de referência que porte uma
multiplicidade de modos de ser lésbica ou guei facilita o processo de negociação do indivíduo
com ele mesmo, acerca dos modos de experienciar uma identidade estigmatizada. Brandão
(idem) e Sagesse (2009) nos mostram como a fuga para cidades maiores e a formação de uma
rede de sociabilidade nos centros urbanos são narrativas comuns na descrição da saída do
armário, incluindo o processo de auto aceitação entre gueis e lésbicas provenientes da zona
rural e das pequenas cidades de interior. Segundo os autores, a diversidade de modelos de
lésbicas, normalmente ausentes no meio rural, permitiria que uma mulher que sente desejos por
outras mulheres pudesse vir a experimentar várias formas de construir uma identidade lésbica
mais ou menos singularizada e congruente com uma autoimagem pretendida.
A existência de cenas LGTBIA+ e o anonimato das grandes cidades parecem ser
condições ideias para a aproximação com este universo que, conforme Prado e Machado (2008),
possibilita trocas de experiências contributivas ao processo de ressignificação dos caracteres
negativos atribuídos aos homossexuais na cultura comum, tornando o processo de assumir-se
mais reflexivo e assertivo (Cf. MURASKI & GALHEIGO, 2016). Silva Filho e Rodrigues
(2012), em estudo sobre o coming out em Belém do Pará, nos mostram como a sociabilidade
guei marca também a entrada no campo da linguagem guei, espécie de código relativamente
restrito e cifrado, que pode vir a funcionar no controle de informações do que se deseja esconder
ou propagar.
Daí, mesmo diante da ambiguidade de sua existência, a importância dos guetos e
dos espaços de sociabilidade. Nestes espaços - que reafirmam a segregação social e que também
contribuem para a formação de um mercado LGBTIA+ - há a possibilidade do encontro de
parcerias sexuais, da experimentação identitária, da facilitação na construção de um sentimento
96

de pertença grupal, além de se constituir como uma zona democrática de expressão da


sexualidade, portanto, um espaço protegido diante da intolerância que persiste no meio social.
Como disse Pollak (1987, p. 68), em defesa dos guetos,

Em período de repressão anti-homossexual aberta e há na ausência de uma


possibilidade de conceber a elaboração de uma visão homossexual da
homossexualidade, a minoria parece ser um dos únicos meios adequados para se
manter uma identidade de grupo. Mas, nesta identidade de grupo, que antes de mais
nada reflete a humilhação, formou-se a solidariedade como condição da emancipação
futura.

Apesar de reconhecer a oportunidade possibilitada pelos centros urbanos para a


construção de identidades homoeróticas, isso não significa dizer que a cidade é a Meca guei
e/ou lésbica, pois muitas violências são registradas nos espaços públicos urbanos, tais como o
rapaz que, em novembro de 2010, teve seu rosto acertado por uma lâmpada antes de ser
espancado depois por quatro rapazes, na avenida Paulista, uma das principais ruas de São Paulo,
ou do vendedor de balas morto por defender uma travesti na estação de metrô Pedro II, em
2016, na mesma cidade.
Se, mesmo que impossível de ser considerada como um espaço de liberdade, a
cidade grande e seu burburinho é constantemente narrada como lugar que favorece à existência
e à visibilidade guei e lésbica, pelo contrário, meio rural especial o nordestino, tende a ser
considerado como um lugar onde as sexualidades não heterossexuais encontram poucos
espaços;
Estima-se que a dificuldade de anonimato nas pequenas cidades, facilita a
propagação de fofocas que, como sugerem Elias e Scotson (2000), funcionam como
instrumento de valoração e inferiorização de grupos minoritários e reafirmação do lugar de
poder dos integrantes de grupos hegemônicos. As fofocas são percebidas, portanto, como um
perigo adicional dado à velocidade e facilidade de propagação em um lugar, como diz Paiva
(2015) onde as relações sociais entre todos são intensas e diárias e se estabelecem entre pessoas
que se conhecem de modo profundo e geracional, em contraposição às relações superficiais que
parecem dominar os modos de sociabilidade em outros contextos. Para Santos (2020, p. 109)
“isso faz com que exista certo conhecimento sobre as particularidades dx outrx, ou seja, são
notadxs, apontadxs e expostxs gostos, as manias e os credos alheios com precisão”8.

8
A reprodução da citação obedece à forma de escrita de seu autor, que declara experimentar a escrita do texto
em uma linguagem Queer, buscando desconstruir os binarismos de gênero e sexualidades.
97

Ademais, nas zonas rurais, a vida social das famílias acontece em torno da
frequência aos cultos religiosos, geralmente cristãos e das atividades promovidas pelas igrejas
(ou templos) (Cf. RODRIGUES, 2012). O atlas da Filiação Religiosa e Indicadores Sociais no
Brasil, realizado por Jacob, Hess, Vaniez e Brustlein (2003), indica que a maior parte dos
católicos brasileiros estão ligados à agricultura, sendo, portanto, moradores nas zonas rurais,
em especial no Nordeste, tendo o Ceará como lugar de destaque. Também o mesmo relatório
mostra uma ampla faixa de atuação de igrejas evangélicas na faixa litorânea que se estende do
Ceará ao Espírito Santo. O nordeste rural, incluindo Promessinha, que se situa na faixa litoral
da costa brasileira, é cristão. Em espaços rurais, como dizem Frazão e Rosário (2008), a
homossexualidade pode ser pensada como uma prática contra a natureza (reprodutiva) e,
portanto, colaborativa para a destruição da família e da comunidade.
A inexistência de espaços de sociabilidade – e, portanto, de referências reais sobre
diversas formas de ser guei ou lésbica, dado à possível permanência no armário -, a
religiosidade nas zonas rurais e a medo diante da dificuldade do anonimato são considerados
como elementos contributivos para a invisibilidade homoafetiva em tais espaços. Colaboram
tanto para o retardamento (e talvez até mesmo supressão) da construção de uma
identidade/singularidade guei e lésbica, como também para manutenção da paisagem de
invisibilidade relativamente constante nesses lugares.
Adicionalmente, na medida em que estes espaços parecem ser refratários à
diversidade sexual, é plausível supor ainda uma dificuldade de superação deste quadro por meio
do estabelecimento de uma representatividade política disposta à transformação de tal situação.
Apesar da eleição de Kátia Tapety e da representatividade política de Célio na colônia de
Pescadores de Ilha das flores, é difícil imaginar que um possível candidato a cargos de
representatividade política (vereadores ou prefeitos) teria apoio à sua candidatura, com uma
pauta que mencionasse ações nesse sentido. Mais provável supor que tal pauta traria a perda de
eleitores.
Estima-se que, por conta dessa atmosfera de sufocamento e solidão, não raro,
homens e mulheres que sentem desejo pelo mesmo sexo tendem a migrar para cidades maiores
onde consigam viver com maior liberdade (Cf. SAGESSE, 2009 e BRANDÃO, 2010, para citar
alguns). Como disse Eribon (2008), a fuga para a cidade é a diáspora gay. Uma vez na cidade,
os problemas referentes ao próprio processo migratório se entrelaçam com as dificuldades
relacionadas ao gênero e a sexualidade de mulheres lésbicas.
Mas nem todas as pessoas conseguem migrar. É provável que, uma vez que desejos
homoeróticos normalmente emerjam em uma idade na qual os sujeitos ainda não são capazes
98

de realizar seu próprio sustento, é crível que o processo de desenvolvimento de uma carreira
moral pautada numa identidade homoerótica tenha início e se desenrole nos lugares onde estes
indivíduos vivem com suas famílias. E há também aqueles que desejam permanecer por lá. Isso
sem considerar o fato de que é plausível que alguém pode vir a decidir migrar para a zona rural,
mesmo depois de saber-se guei ou lésbica.
Portanto, quem não escapa da zona rural (por desejo ou impossibilidade) precisa
construir alternativas, reorganizar o espaço geográfico, encontrando lugares possíveis para seus
desejos. E preciso, mais uma vez, ressaltar que não se pode confundir as práticas sexuais
homoeróticas com a homossexualidade, seja guei ou lésbica. Uma vez que as
homossexualidades se tornaram emergentes nos contextos urbanos e apenas mais tardiamente
em contextos rurais, é provável que, embora a relação entre iguais possa existir na totalidade
de espaços onde seres humanos habitam coletivamente, para a emergência de gueis e lésbicas
rurais, é necessário aderir à gramática interpretativa da homossexualidade que não
necessariamente coincide com aquela adotada por uma comunidade local. Em alguns casos, é
possível que sujeitos reconheçam seus desejos, e até envolvam-se em situações que possam a
eles aceder, mas não se reconheçam dentro de uma identidade homossexual.
Tanto Paiva (2015), como Ferreira (2008) descrevem situações onde homens que se
auto referem como heterossexuais, alguns dos quais casados, podem vir a ter encontros fortuitos
com outros homens ou garotos da cidade, em espaços inventados - tais como as moitas onde
eram realizadas as orgias gueis descritas por Ferreira (idem) -, sem que sejam questionadas as
suas sexualidades. Paiva (idem) mostra ainda como esses espaços de liberdade parecem ser
comuns na vida rural adolescente, sem se constituir como determinante nas escolhas sexuais
futuras daqueles que se envolveram em “troca-troca”, como era referida tal prática na zona rural
potiguar por ele pesquisada. Nos dois casos pode-se perceber, também, que os desejos
homoeróticos, tornam-se realizáveis, muitas vezes, com um certo consentimento da população
que finge sua inexistência. Santos (2021) mostra que as festas de paredão de som ocorridas na
zona rural de Promessinha, dão aos garotos gays da localidade a possibilidade de encontros
sexuais com alguns homens que são publicamente reconhecidos como heterossexuais, apesar
de suas eventuais parcerias homoeróticas. Ademais, o fato de ser possível realizar essa pesquisa
certamente indica que o desejo lésbico no meio rural também encontra suas alternativas.
E talvez, em zonas rurais, com o passar dos anos, cada vez mais torna-se mais fácil
assumir-se guei ou lésbica, uma vez que a própria gramática identitária constituída pelo regime
ocidental moderno e tomada como força política pelos movimentos sociais sexuais parecem
penetrar nestes os espaços, alterando os sentidos das experiências dos que neles vivem. Daí que
99

uma forte contribuição para a construção de alternativas à possibilidade assentimento ao desejo


homoerótico e à construção de uma identidade sexual homoafetiva pode emergir da presença
dos movimentos sociais nas cidades do interior, que hoje é uma realidade inconteste. Também
não se pode deixar de lado as redes sociais que, de acordo com Sagesse (2009), informam aos
sujeitos rurais sobre as discussões animadas pelos movimentos pró-sexualidades em seu quase
desordenamento, funcionando como uma espécie de ativismo político difuso. O mesmo pode
ser dito em relação à grande mídia televisiva que cada vez mais dá espaço para debates em
torno de pautas pró-homossexualidades, quer seja em matérias jornalísticas, propagandas,
programas de auditório, novelas, filmes e documentários, para citar alguns artefatos úteis à
“globalização das homossexualidades”, termo usado por Parker (2002).
Neste sentido, muitos caminhos são construídos dentro do próprio espaço geográfico
em que se habita. No dia 03 de outubro de 2019 o programa da rede Globo de televisão
intitulado “Profissão Repórter”, levou a jornalista Mayara Teixeira até São Miguel do Gostoso,
pequena cidade do Rio Grande do Norte, onde encontrou uma espécie de abrigo guei agenciado
por Márcia, mulher trans de 17 anos que resolveu alugar uma casa para acolher aqueles que,
em sua cidade, se encontravam com problemas dentro de sua família. No mesmo programa, o
repórter Belarmino Guilherme cobriu a parada da diversidade realizada em Salto, estância
turística do interior do estado de São Paulo, cidade com pouco mais de 100 mil habitantes. A
festa foi organizada pela AQUEND - Associação Queremos Nossos Direitos, localizada na
cidade de Indaiatuba, distante cerca de 18 km de Salto e cuja população ultrapassa 260 mil
habitantes (LGBT LONGE DAS GRANDES CIDADES, 2019).
Em resumo - e aqui será a perspectiva adotada, o armário deixa de ser uma vergonha
ou fardo e passa a ser um modo de organização estratégico de acomodação e resistência das
existências gueis e lésbicas, onde o silêncio e a revelação entram em um jogo de restrições e
liberações que permitem experienciar a construção de uma identidade guei ou lésbica.
Compreende-se também que as dificuldades e facilidades encontradas nessas estratégias
dependem das condições associadas a fatores sociais, históricos, econômicos e geográficos,
para citar alguns, que podem variar ao longo do percurso de construção de sua carreira moral.
Entende também que a zona rural é um ambiente mais claustrofóbico para a
homossexualidade e que a dificuldade do anonimato e da privacidade estabelece tensões nas
relações de sociabilidade de sujeitos homoafetivos, especialmente em um momento onde as
organizações pró-direitos sexuais atingem, cada vez mais, muitos espaços do planeta,
instituindo um processo globalizado de produção de conhecimento sobre as
homossexualidades. Toda essa situação, que depende da intersecção entre fatores biográficos,
100

locais e globais, interfere nos modos pelos quais os sujeitos que gostam de pessoas do mesmo
sexo organizam suas carreiras morais, construindo e alterando significados em relação a si
mesmos, aos outros e aos lugares onde vivem. Neste sentido, não é difícil supor que, mesmo de
modo diferenciado, para muitos gays e lésbicas rurais, talvez a maioria, o armário ainda mereça
ser investigado.
101

4 O LUGAR

Promessinha é um distrito do semiárido norte cearense, pertencente à microrregião


de Itapipoca e situado nos pré-tabuleiros litorâneos da cidade de Trairi-CE. Seu acesso é
realizado por duas rodovias CE, sendo uma delas a que liga à sede do município, com distância
de aproximadamente 14 km entre as duas localidades e outra pela qual os viajantes acessam
Itapipoca9, distante cerca 47 km, cidade mais desenvolvida da região. Tais CE se prolongam
para dentro da pequena zona urbana da localidade, se constituindo em duas, das únicas três ruas
que possuem piso asfáltico. As demais ruas são feitas de uma mistura de barro de tabatinga com
areia das dunas que margeiam a localidade, o que dá ao chão da cidade uma tonalidade rósea,
por vezes pigmentadas por paralelepípedos de quartzo maldispostos ao longo das vias, que
possuem baixa circulação de veículos motorizados. Boa parte dessas ruas são becos, alguns sem
saída que, não raro, abrigam casas cujos vizinhos são parentes entre si.
O último Censo do IBGE, realizado em 2010, contabilizou um total de 12080
pessoas, sendo 6278 homens e 5802 mulheres que habitam seu território, a maioria delas,
vivendo em zona rural (10.121 pessoas). A maior parte das 1959 pessoas restantes vivem em
um pequeno zoneamento urbano, com aproximadamente 0,51 Km2, cujo centro comercial se
desenrola ao redor da praça da Igreja Matriz, a Paróquia de São José, nome que homenageia o
padroeiro da cidade. Quanto mais afastadas desse centro comercial, mais as residências tornam-
se rarefeitas, chegando à zona rural.
De acordo com um historiador da localidade, embora Promessinha tenha sido
reconhecida como um distrito apenas em 1986, a história do povoado inicia bem antes, durante
o período colonial, provavelmente próximo aos anos 1860, quando um casal de descendentes

9
Itapipoca é a maior cidade da região, sendo a 10ª colocada entre os municípios mais ricos do estado do Ceará
e a 7ª colocada entre os municípios mais populosos do estado. Em 2021, o IBGE estimava sua população
total em 131.687 habitantes. Com área total de 1.614.682 km2, seu território produz algodão, milho, feijão,
banana, café, mamona, carnaúba, leite, queijo, coco, além da produção de gados e derivados do leite e da
extração de peixes e frutos do mar. A cidade possui ainda algumas indústrias e o maior comércio da região.
No ano de 2012 ela contava com 119 escolas de ensino pré-escolar, 123 eram o número de escolas de ensino
fundamental e 12 escolas de ensino médio. Seus moradores, bem como aqueles que moram em cidades
vizinhas, são oportunizados à educação de ensino superior gratuito, através do ingresso na Universidade
Estadual do Ceará, no pólo destinados à educação à distância pela Universidade Aberta do Brasil (UAB) –
cujos cursos são geridos e ofertados pela Universidade Federal do Ceará (UFC) em parceria com o Instituto
Federal e Tecnológico do Ceará (IFCE). Este último também possui um campus na cidade, onde ocorrem
cursos presenciais e híbridos. Além de universidades públicas, há um número considerável e crescente de
instituições particulares de ensino superior, que pode ser cursado de modo presencial, híbrido ou à distância.
A cidade possui ainda a mais ampla oferta de serviços de saúde na região, contando com hospitais,
maternidade e uma Unidade de Pronto Atendimento com capacidade para atender cerca de 300 pacientes por
dia. Na cidade, há uma efervescência cultural importante, notadamente na área de música e dança, sendo um
dos lugares onde ocorre a bienal internacional de dança do Ceará.
102

de portugueses decidiu expandir a economia canavieira presente em Trairi para povoados e


comunidades próximas. Em seu engenho, o casal utilizava-se de mão de obra escrava. Narra o
historiador que devido à devoção da senhora de engenho aos princípios cristãos, ela sempre se
conduzia à paróquia de uma localidade vizinha, levando junto consigo sua família e seus negros,
para assistir à missa. Mais tarde ela recebeu anuência de um padre de Trairi para que pudesse
angariar dinheiro e construir uma capela no povoado. Como muitas cidades rurais, o
desenvolvimento do núcleo urbano se deu no entorno da capela, construída no início da década
de 1870.

Figura 1- Vista aérea de Promessinha

Fonte: Elaborada pela autora. Google Earth mostrando a área urbana de Promessinha - Ceará.

Este momento expansionista ocorreu quando a população indígena de Trairi estava


submetida a um processo de invisibilização organizado por um estado colonizador no qual, em
1863, o presidente da província do Ceará, José B. C. Figueiredo Júnior, declarou a inexistência
de índios aldeados ou bravos, dentro de sua jurisdição. O documento afirmava que, entre os que
aqui habitavam, uma parte teria sido dizimada e outra parte teria migrado ou se
descaracterizado. Algum esforço na tentativa de trazer a história de Trairi, tal como o realizado,
pela historiadora Maria Pia Salles, indica que o povoado de Trairi teve início em l608, com a
chegada dos Potiguaras às margens do rio Trairi e foi habitada inicialmente pelos indígenas
Anacés (frutos da união de Potiguaras com Tremembé) e Tabajaras (Cf. MAPAS DE
CONFLITOS, INJUSTIÇA AMBIENTAL E SAÚDE NO BRASIL, s/d, e LUCAS Jr. e
103

SANTIAGO, 2020). Atualmente, o site do Governo do Estado do Ceará não indica a presença
oficializada de índios neste município (Cf. RODRIGUES, 2019).
O núcleo urbano de Promessinha hoje abriga alguns equipamentos de destaque, tais
como: 02 escolas municipais que atendem do Ensino Infantil até o Ensino Fundamental I e II,
01 escola estadual, contemplando o Ensino Médio, 01 posto dos Correios, 01 posto de saúde,
01 igreja católica e muitos templos evangélicos, 01 cemitério, campos de futebol, 01 praça, 01
mercado público, um clube social pode vir a ser alugado para realização de eventos, além de
provedor de internet e outros equipamentos de infraestrutura. Algumas, mas nem todas,
companhias de telefonia celular fazem a cobertura da região, de modo que a maior parte das
pessoas, em especial as mais jovens, estão conectadas à rede mundial de computadores, mesmo
que através desses aparelhos. O sistema de abastecimento de água do distrito é realizado
majoritariamente através da instalação de poços profundos ou cacimbas nas residências.
Grande parte das residências é dotada de quintal. Os frutos de suas árvores, das
pequenas plantações e a criação de animais de pequeno porte são parte do consumo da família.
Normalmente os cuidados necessários a este ambiente são realizados com a participação da
família e sob a tutela da dona da casa. Aqui é a horta da mãe, me diz Carlos, cuja família me
abrigou durante a maior parte de minhas estadias na localidade. As principais fontes de renda
da cidade, além de benefícios governamentais, se realizam por esta agricultura familiar na
produção de feijão, milho, mandioca, batata-doce, caju, cana-de-açúcar, coco e hortaliças. Para
quem possui um terreno nas proximidades é possível um cultivo de maior monta, normalmente
sob a tutela do marido, que viabiliza um comércio rentável. Parte do excedente da agricultura
familiar também pode vir a ser vendido em lojas destinadas ao comércio de produtos não
alimentícios (tais como boutiques), alocados em expositores de ofertas que podem ser de
fabricação caseira, a partir da composição de caixotes de taipas, colocados sobre uma mesa
qualquer.
A economia familiar pode ser complementada com a renda de bilros, atividade
bastante comum em Trairi, município reconhecido como “Terra da renda de bilros”. Por sua
vez, Promessinha dá suporte a tal desígnio, possuindo algumas rendeiras oficialmente
reconhecidas como “mestras da cultura”. Nos dois casos, os títulos foram fornecidos por
iniciativa pública estadual através da Secretaria de Cultura do Governo do Estado do Ceará.
Deste modo, é bastante comum, caminhando nas ruas avermelhadas, observar, nas
casas de muros baixos ou naquelas cercadas por estacas de madeira que sustentam fios paralelos
de arames farpados, mulheres sentadas com sua almofada de bilros entre as pernas, geralmente
acompanhadas de outras, a tecer suas tramas.
104

Para estas mulheres, o bilro funciona como complementação de renda doméstica, ou


ganho pessoal cuja decisão com o gasto lhe compete integralmente, vantagem importante em
uma cidade com poucas ofertas de emprego, especialmente em relação à possíveis vagas a
serem ocupadas por mulheres. Também servem como meio de entretenimento, socialização e
politização – através da participação na associação de agricultores e artesãos de Promessinha –
e de ligação Inter geracional (já que implica um processo de transmissão da técnica a cada
geração em uma mesma família), dentre outros aspectos não citados. Não raro, ao deixar a
almofada em um canto qualquer da casa, a artesã responsável pela obra ganha a ajuda de um
dos membros de sua família que tomam para si, por algum tempo, a continuidade do trabalho.
Quando estive na casa de Mark, este mesmo se ocupou de continuar a renda de bilros
que estava sendo tecida por sua avó. Por certo, um borramento nos papéis de gênero já que,
como me disse Carlos, ao ser por mim perguntado se seria capaz de reproduzir o ato de seu
amigo nas almofadas de sua mãe, respondeu-me:

Eu não sei fazer e isso se dá ao fato da renda ser muito restrita ao universo feminino.
Criou-se uma cultura de que homens que faziam renda de bilro não eram tão homens
assim. E as mulheres e mães de filhos homens não repassavam esse ensinamento
porque podia "desmunhecá-los". No final de contas, ainda assim, sou “viado” e não
sei fazer renda (risos). Minha irmã faz [renda], assim como outras mulheres da minha
família.

A parte mais populosa de Promessinha se encontra no entorno da Igreja Matriz, que


possui uma ampla praça na sua parte frontal. E também neste quadrante que se desenvolve a
zona comercial da cidade. Nos bairros mais afastados, os estabelecimentos comerciais situam-
se de modo disperso. No comércio central é possível encontrar uma diversidade de lojas tais
como uma ótica, um cartório, papelaria, boutiques, açougues, lojas de material de construção e
loja de variedades, dentre outras. Muitas vezes os estabelecimentos situam-se no térreo e seus
proprietários moram no andar superior, com suas famílias. Há também edificações
exclusivamente destinadas ao comércio ou à moradia.
A zona comercial de Promessinha é mais ativa no início da manhã onde,
normalmente, as donas de casa saem para adquirir a provisão do almoço e aproveitam para
visitar seus familiares que não foram encontrados durante as compras. Muitos homens também
circulam no local. Homens e mulheres dividem os postos de trabalho. Em dias de fim de semana
o encontro com familiares pode servir também para combinar em qual casa todos deverão se
reunir para o almoço em família, bem como a apresentação do cardápio e a realização do acordo
sobre os demais itens a serem ofertados, em especial os que levarão as visitas.
105

Esta rotina de compras para as refeições do dia, ocorrendo em um lugar no qual 33%
das pessoas vivem em situação de extrema pobreza (segundo dados do IBGE/SIDRA) talvez
coincida com o entendimento de Valla (2000) sobre as diferenças do modus operandi de classes
populares que, em sua concepção, se ordenam muito mais em torno da provisão do que da
previsão. É o “de hoje” que se adquire nessas compras e não mais. Além do mais, mesmo para
os mais abastados, ou menos empobrecidos, a saída para a rua é também momento de
socialização e intensificação da vida em comunidade, o que valoriza positivamente a peleja
diária.
A proximidade de todos com todos, o conhecimento de todos por cada um, faz com
que estas compras sejam realizadas de modo que, muitas vezes, a dona de casa pague por
mercadorias e saia do estabelecimento comercial com as mãos vazias, já que os produtos
adquiridos serão deixados em suas casas por algum funcionário do comércio, podendo tal
desfecho se desenrolar antes mesmo de seu retorno ao lar. A zona rural é um espaço de relações
de interconhecimento e é impossível não notar que as pessoas se encontram diariamente, se
cumprimentam e conversam sobre assuntos comuns, dentre os quais, o preço das mercadorias,
a programação da paróquia ou do templo, alguma notícia que envolve melhorias ou dificuldades
na cidade bem como a “vida alheia”: estado de saúde, mortes, idas e vindas nos deslocamentos
para outras cidades, dentre outros assuntos.
É também no entorno da igreja e de sua praça frontal que a parte “oficial10” da vida
social noturna se desenrola. Não raro, durante a noite, alguns grupos de jovens se dirigem à
praça, para desfrutar um pouco da vida com seus amigos. Nos dias de missa, o número de
pessoas se avoluma, já que muitos permanecem na praça, após o rito cristão. Para quem tem
algum dinheiro de sobra, ou por esforço em alguma ocasião especial, é possível sentar-se em
uma das cadeiras da Pizzaria situada na rua lateral da igreja, o ponto mais badalado da
localidade. Por vezes, uma seresta anima o lugar.
Os não têm o que gastar, sentam-se nos bancos da praça garantindo a oportunidade
para socialização. Não raro, quando, sob o olhar do padre, o comportamento de alguns jovens
naquele espaço público é considerado inadequado, ele se torna alvo de considerações morais na
homília proferida na missa da semana seguinte.
Quase todas as pessoas estão às voltas com seus aparelhos de telefonia móvel. Em
Promessinha, as tecnologias disponibilizadas pelo uso de aparelhos celulares são bastante

10
Andrade fez a etnografia das festas de paredão ocorridas no entorno da cidade, onde a juventude parece
possuir mais liberdade do que quando se encontra no espaço central de Promessinha.
106

utilizadas entre os jovens, embora não seja possível ignorar de um dos meus informantes, jovem
guei da cidade, quando este me disse: você não sabe o que as pessoas daqui são capazes de
fazer com estes aparelhos, Renata. Tentando identificar a quem ele se referia, retruquei-lhe com
uma pergunta: os jovens, ao que ele me respondeu negativamente, não, todos, os adultos e
velhos também. Você não é capaz de imaginar. De fato, ao buscar informações na internet sobre
um lugar com tão pouco investimento público e comercial - a se considerar que localidades
praianas vizinhas possuem forte investimento turístico enquanto que o mesmo não ocorre em
Promessinha, apesar de sua aproximação com uma pequena faixa litorânea onde se pode
apreciar a beleza do encontro de um rio com o mar margeado por dunas – é possível perceber
um intenso uso de redes sociais, por exemplo, pela Igreja Matriz, que atualiza diariamente,
algumas vezes por dia, suas atividades em uma página do Facebook, no momento em que a
pandemia mantinha os fiéis afastados de suas sedes. Também é possível encontrar pinos
localizadores de comércios locais no Google Mapas, muitas vezes estando estes na zona rural
da localidade. Além do mais, nas histórias narradas pelas participantes da pesquisa, foi
claramente perceptível a presença de muitos membros da família, incluindo seus pais, em redes
sociais como o Facebook.
Na praça, os grupos se formam por afinidades, dentre as quais, os referentes à
sexualidade. E lá que se encontrava o Vale, uma turma composta por alguns meninos gueis e
meninas lésbicas da localidade, que normalmente se reuniam durante a noite e com certa
regularidade. O Vale não tinha dia certo para se reunir. Por vezes, deixavam de se encontrar por
algum período. Os encontros e a intensidade de sua frequência dependiam das ocupações de
seus membros que poderiam estar envolvidos atividades fora da localidade tal como ida à
universidade, apresentações cênicas em cidades vizinhas, processo migratório para outras
cidades ou dos compromissos desenvolvidos na própria localidade.
Os encontros do Vale necessitam da combinação da presença de um certo número
de membros e de suas disponibilidades. Não raro, o acordo teve início no fim da tarde, a partir
da comunicação via grupo de WhatsApp. “Hoje tem praça? ”, alguém perguntava e aguardava
a resposta para saber se a disponibilidade dos amigos realizaria o quórum necessário para que
se encontrassem. O Vale, termo por eles utilizado como auto referência e comum no vocabulário
LGBTIA+ para designar espaços onde é possível encontrar outros homossexuais, é composto
majoritariamente por meninos gueis, embora também transite entre eles as lésbicas pesquisadas.
Não todos os jovens gueis da cidade, pois como me disse Mark, nós somos os gueis
discriminados por outros gueis, pois possuímos cultura, nos interessamos por pensar na nossa
condição de homossexuais. Existem outros gueis, mas eles não se misturam conosco. O vale é
107

composto, portanto, por um número variável de jovens entre 6 ou 10, com maior presença de
meninos, embora também sejam parte social da vida das lésbicas estudadas. Entre os meninos,
em 2010, ano em que os conheci, alguns, ou frequentavam a universidade, ou já haviam se
formado. Considerando os dois gêneros, todos eles estavam, ou já teriam estado, envolvidos
com práticas cristãs, alguns a partir de posições de liderança que se desenrolaram em torno da
pastoral católica, outros dentro das atividades desenvolvidas em suas igrejas evangélicas.
Quando na praça, os meninos observavam quem passava. Se algum homem lhes
dirigia o olhar, era provável que recebessem uma cantada gritada aos quatro ventos. O escândalo
como forma de afirmação se fazia. Nada incomum que alguns deles noticiaram, em tom de
fofoca, suas aventuras sexuais com alguns destes rapazes e homens que, na vida pública,
assumiram-se heterossexuais. Nesse aí já fiz um boquete, alguém confessou. Tal ocasião servia
para que outros dissessem que o mesmo aconteceu, ou para que mais algum homem da cidade
fosse citado pela participação em situação semelhante. Se o nome citado no outing não pudesse
ser imediatamente referenciado pelos ouvintes, logo referências alternativas eram acionadas: é
o filho de fulana, alguém diz. Aquele que trabalha no comércio de sicrano, chega a galope o
complemento. Casos envolvendo relações perigosas também emergiram. Diante da aparição de
um adolescente, um dos meninos comentou: este aí é polícia na certa. Lhes perguntei o motivo
e obtive a resposta: ele é de menor. A conversa se desenrolou chegando-me a informação de
que tal jovem tinha a prática de se colocar disponível às relações sexuais com garotos e
posteriormente seu patrão prestava queixa policial contra o guei publicamente reconhecido
como tal, acusando-o de estupro de vulnerável. Eis a história a mim narrada.
Estando na praça, Adauto, guei com armário de vidro, resolve provar que faz o bate-
cabelo melhor que ninguém, apesar de seu cabelo de corte rente ao couro cabeludo. Abre suas
pernas e flexiona os joelhos, dispensa cada uma de suas mãos em um deles, posiciona seu tronco
e cabeça em angulação paralelos ao chão e inicia um frenético movimento de rotação de
pescoço, enquanto diz haja pescoço, viado! Levanta-se meio tonto, rindo e senta dizendo isso
é que é um bate-cabelo. Naquela praça, lugar público onde as pessoas que por ali passam
observam e são observadas, essa espécie de desordem fazia irromper, à fina força, as
sexualidades desviantes. O movimento dos meninos e meninas do Vale provocam
transformações que desinformam a ideia da heterossexualidade campesina e devem ser
pensados como realidades socioculturais “produzidas por indivíduos sempre situados, mas
operando em um jogo de luz e sombra, tencionando imagens de si e os limites de ação sobre o
mundo que imaginam/acreditam estar”, como bem disse Marques (2011, p.31).
108

Conversas em torno da sexualidade sempre retornavam ao grupo. A função da praça,


para essas pessoas, parecia ser evidente: a oportunidade de um programa, para alguns meninos
que lá se encontravam; as trocas do grupo em torno de assuntos que resvalam em suas
homossexualidades, de onde se deduz a formação de uma rede de apoio, e um certo
enfrentamento à moral pública, marcando deliberadamente a existências de corpos desviantes
na esfera pública da localidade, em especial pelo uso estratégico do escândalo, embora Mark
tenha me confidenciado que eu as vezes acho que o escândalo nos atrapalha mais do que ajuda.
Apesar do grupo se formar por afinidade determinada pela sexualidade, neste
momento da praça, ocasião em que se vê e se é visto, muitos dos que por ali passavam, mesmo
que auto referenciados como heterossexuais, eram chamados por alguém do Vale, ou
simplesmente se aproximar para tratar de algum assunto com um dos membros da turma. Isso
implica o fato de que o lugar onde meninos gueis e meninas lésbicas se encontram normalmente,
compondo um movimento de turma que faz emergir, no espaço público, as sexualidades
desviantes, fratura a suposição relativamente monótona de que no meio rural a
homossexualidade é algo impossível e/ou inaceitável. Os corpos sabidamente desviantes
pavoneiam o tecido social e o torna menos evidente.
Muitas pessoas que se aproximavam da turma da praça possuíam idades semelhantes
às de seus amigos do Vale. É provável que o conhecimento Inter geracional efetivado tenha sido
fortalecido pelo processo de escolarização em Promessinha. Em princípio, pode-se deduzir que
as poucas ofertas de instituições de ensino facilitam o (re)conhecimento de muitos habitantes,
desde a infância, em uma trajetória de extensa convivência e relativa aproximação, que é própria
da vida escolar em nossa sociedade. Além do mais, no período da adolescência, onde
geralmente emergem questões mais pautadas em interesses sexuais, cabe observar que há o
afunilamento de oferta de instituições educacionais que, sem qualquer possibilidade de escolha
para os jovens do ensino médio, cria uma situação na qual esses círculos de relações sociais
sombreiam a totalidade da juventude que persiste nas escolas. Todos que se encontram em tal
situação permanecem juntos com seus colegas de infância e adquirem novas possibilidades de
convivência entre aqueles que vieram da outra escola.
Outras vezes as trocas são Inter geracionais, podendo ser alguma amizade
organizada pela frequência à mesma igreja, pelos laços parentalidade ou vizinhança, ou ainda
devido a possíveis relações comerciais. Em todos os casos, é claramente perceptível a
dificuldade do anonimato e a intensidade do conhecimento e intercâmbio de todos por todos,
bastante comum dentro de cidades de pequeno porte. Além do mais, aponta para o fato de que,
na zona rural, bem como muitas vezes em grandes cidades, muitas vezes as relações de
109

sociabilidade dependem muito menos da orientação sexual dos indivíduos do que de outras
afetações que podem ter sido construídas mesmo antes da emergência de uma experiência
sexual desviante.
Dentre as lésbicas pesquisadas, apenas duas meninas se juntavam à turma da praça
com certa regularidade. Por vezes passavam um tempo ausente, mas depois retornavam.
Durante minhas estadias na cidade, em todos os dias em que lá estive, elas compareceram. Da
primeira vez em que estive com elas na praça, as garotas tentavam se assimilar ao mainstream
hétero, acobertando atitudes que demonstrassem que ali havia um casal. Desde a segunda vez
que eu estive no lugarejo, foi possível vê-las caminhando de mãos dadas e sentando-se
próximas, coladinhas uma com a outra. O braço de uma delas, atravessado sobre o ombro da
namorada, por vezes se movimenta no sentido da realização de algum carinho nos cabelos da
companheira. Nenhuma ação radical, tão pouco a claustrofobia com a qual o rural costuma ser
referido.
As outras duas garotas juntavam-se com o Vale de modo tão raro que não pode, em
nenhum momento, estar com elas nessa situação. Por vezes obtive notícias de que elas estavam
frequentando a praça, embora logo decidiram por realizar um movimento contrário. Em minha
pesquisa, colhi indícios de que não apenas a sexualidade das garotas, mas também a pertença
ao gênero feminino tenha trazido maiores limitações à circulação das pesquisadas na cidade.
Sob forte vigilância da família (e do marido, para aquela que foi casada), as mulheres tendem
a ser solicitadas à maior presença na vida doméstica, quando comparada com os meninos gueis.

Também é nesta praça que se concentra a maior festa da localidade, a festa de São
José, padroeiro do distrito. A festa de São José tem duração de 10 dias, iniciando no dia 09 de
março e terminando no dia 19 do mesmo mês, dia associado ao santo homenageado. Durante
esse período parte das ruas que margeiam a praça da Igreja matriz é fechada e neste lugar é
instalado um parquinho com carrinhos bate-bate, roda gigante, brinquedos infláveis e outros
destinados ao divertimento de crianças e jovens que por ali transitam. Na praça é também
possível encontrar barracas de vendas de comidas e bebidas, de artigos religiosos, artesanatos
e roupas, para citar alguns.
Os festejos finais envolvem a realização de uma procissão que se inicia em um bairro
afastado, podendo variar de local a cada ano. No fim tarde, no lugar marcado e anunciado
publicamente, durante todo dia, através da circulação de um carro de som na localidade –, os
fiéis que lá se encontram saem em direção à Igreja Matriz, em uma caminhada de poucos
quilômetros. A frente da procissão, o carro de som guiado por um motorista leva quatro
110

mulheres como passageiras. Do lado de fora do automóvel, uma velha senhora marca o
compasso da caminhada, com um microfone na mão, determinando os momentos alternados
que se constituem pela oração do rosário, por mensagens cristãs que buscam falar da
importância de São José e pelos louvores cristãos que procuram homenageá-los. Nos cânticos,
a decisão da música é entoada em primeira voz por esta senhora e as segundas vozes são
realizadas por aquelas que se situam com um microfone, no interior do veículo. Logo em
seguida ao carro de som, um grupo de mulheres, vestidas com camisas iguais que possuem a
imagem do santo homenageado, ajudam a puxar o coro do cortejo que segue imediatamente
atrás delas. Mais próximo ao fim do cortejo, um andor carregado por homens e mulheres traz a
imagem de São José. O pároco da Igreja vai mais atrás, situando-se aquém do andor e não é
difícil que se desloque para fora da margem imaginária da procissão, a fim de cumprimentar
fiéis ou conhecidos, pessoas que, como muitas outras que moram no trajeto por onde passa a
procissão, colocam-se na calçada para visualizar o espetáculo da festa da fé. Muitas destas
pessoas, à medida em que a procissão passa em suas caçadas, aderem à caminhada, o que faz
com que a procissão chegue ao seu local de destino com um volume de pessoas bem maior do
que aquele encontrado no momento de sua partida.
Muitos cristãos que integram a caminhada portam terço nas mãos e é facilmente
perceptível uma grande quantidade de pessoas, às vezes famílias inteiras, de bebês a idosos,
algumas das quais carregando velas acesas e protegidas por garrafas PET que, tendo o fundo
cortado e sendo posicionada com a tampa para baixo, funciona como castiçal com capacidade
protetiva contra o vento.
A procissão instaura uma certa tensão perceptível entre o sagrado e o profano,
observável pelo que acontece para aqueles que estão do lado de fora. Saindo de um bairro
afastado, longe dos centros urbanos, é possível identificar alguns bares na via que se desenrola
tal acontecimento. Em todos eles, apenas homens estão presentes. Ao me aproximar de um
desses bares, me foi possível ouvir: Rapaz, eu não acredito em santo. Só em Deus mesmo, em
santo nenhum. Ao que o outro retruca: Quer dizer que se tu tiver aperreado, tu não vai chamar
por um santo? E lhe vem a resposta: Pode dizer o que quiser, mas só Deus mesmo, em santo
não acredito.
Por outro lado, também entre aqueles que não aderiram à procissão, é possível
identificar os que possuem fé. Algumas pessoas contribuem com o festejo armando pequenos
altares com imagens de São José na calçada de suas casas. Uma pequena mesa, coberta de tecido
branco, algumas flores e uma vela acesa próxima à imagem do Padroeiro procura enriquecer a
festa e a fé no sagrado intentada pela ação cristã.
111

Quando a procissão chega na praça da matriz, muito mais pessoas que aquelas que
a finalizaram estão à sua espera. Algumas delas sentadas nas cadeiras destinadas ao público da
missa campal. As duas primeiras filas de assentos estão reservadas e ninguém ocupa suas
cadeiras. Em frente a elas está o altar preparado para tal evento. Do lado esquerdo do altar, há
uma tenda que abriga uma banda musical que, ao identificar a chegada do cortejo, passa a entoar
o louvor puxado pela velha senhora e seus acompanhantes.
Durante o período festivo, as missas acontecem de duas em duas horas, sempre na
parte da tarde - horário escolhido provavelmente para adesão de mulheres que, na parte da
manhã, estão envolvidas com afazeres domésticos, tais como as compras da provisão diária e a
execução da alimentação e cuidados da casa - e de modo campal. No dia da procissão e com a
sua chegada, o padre sobe no altar para a realização da última missa referente aos festejos. O
primeiro ato do pároco, que neste intenso período recebe a ajuda de um padre convidado, é
chamar as pessoas para quais as cadeiras das fileiras frontais estavam reservadas. Sendo assim,
o convite à alocação dirige-se a um cortejo composto por algumas poucas dezenas de crianças
das duas escolas de ensino fundamental da localidade. Ao pedir uma salva de palmas para os
alunos que adentram o espaço da missa, nomeia cada um se seus diretores, lhes fazendo elogios
enquanto lhes dirige um apelo: quero parabenizar os professores e o diretor fulano, da escola
de ensino fundamental X e os professores e o diretor Sicrano, da escola de ensino fundamental
Y pela presença destas crianças aqui hoje. Sempre foi minha vontade que as escolas
participassem. Próximo ano gostaria de ver mais crianças aqui. As palavras ecoavam
publicamente, sem qualquer constrangimento, aparentando desconhecimento a respeito de um
amplo, vivo e intenso debate sobre a laicidade do Estado brasileiro, ao mesmo tempo em que
demonstrava uma certa naturalização da aliança entre igreja, famílias e escolas.
Do lado de fora da missa campal, muitos passeiam pelas barracas de comidas e
artesanais diversas instaladas no chão da ampla praça. Ao fim da missa, a banda de música
passa a animar a festa, incluindo em seu repertório forrós, funks, música popular brasileira,
sertaneja escolhendo alguns hits do momento e outras músicas mais antigas amplamente
divulgadas por grandes aparatos midiáticos e bastante conhecidos.
O último dia de festejo, sem dúvidas, é o mais concorrido. É o dia do santo e em sua
homenagem é realizada esta quermesse que envolve a presença não apenas daqueles que moram
na cidade, bem como das pessoas de regiões vizinhas e daquelas que, sendo nativas da
localidade, já não mais habitam-na, por terem migrado para outras localidades.
A festa é um intenso espaço de socialização, onde a tradição católica cristã é apenas
uma característica diante de muitas outras, alheias ao espaço do sagrado. Hora de reencontro
112

com aqueles que agora moram distantes. É momento de paquera. Ocasião para investir num
visual adequado às trocas afetivas. As roupas são bem escolhidas, maquiagens são feitas e
corpos pavoneavam em uma festa que contém muitos elementos de outras festas encontradas
em espaços comuns das grandes cidades: bebidas alcoólicas, casais se beijando, pessoas
dançando, música ao vivo e pessoas LGBTIA+ transitando entre seus integrantes.
No dia da festa, momento em que eu estava hospedada na casa da família de Carlos,
pude vê-lo escolher vestir-se com uma camisa colorida, uma bermuda jeans bastante apertada
e sair de sua casa usando gloss, brilho labial normalmente usados por mulheres, para juntar-se
com outros meninos do vale, circulando na festa com sua turma guei11.
Impressionou-me o quão solicitado era Adalto, espécie de celebridade na pequena
localidade. Adalto quase não conseguia interagir com seus amigos do vale, pois estava sempre
respondendo a alguma solicitação de algum, normalmente heterossexuais, que por ele passava
e para quem que ele fazia questão de responder, com a utilização de marcadores ressaltados
para afirmar a sua sexualidade guei, tais como o afetado tom da voz, uso de linguagem guei,
movimentos corporais feminilizados, como agia de costume. Passados quatro anos, tive a
notícia de que ele havia se convertido a um templo evangélico, estando noivo de uma garota,
em busca da cura guei.
Na festa de 2018, muitas pessoas pararam para conversar com os meninos do Vale.
Pessoas cujas idades eram aproximadas às deles e que já haviam migrado, detinham-se por mais
tempo no grupo. Muitas vezes foi perceptível que algumas pessoas tentavam demonstrar
aprovação diante de uma identidade homossexual. Por vezes, ressaltam sua própria
heterossexualidade. Carla, uma jovem que já havia migrado para Fortaleza há cerca de dois
anos, quando foi a mim apresentada, tratou de dizer que até então ela não havia sentido nenhum
desejo por mulheres, embora estivesse aberta caso viesse a sentir.
A praça, porção mais central e zona de maior sociabilidade no pequeno distrito, é
sem dúvida, um espaço no qual, como disse Carneiro (2012), a síntese ou a combinação de
universos culturais distintos sustentam noções de espaço e de tempos sociais diferentes um do
outro dado a reapropriação dos elementos da cultura local a partir de uma releitura possibilitada
pela emergência de novos códigos. Na praça da igreja, misturam-se o sagrado e o profano, a
homossexualidade com a heterossexualidade, estabelecendo, simultaneamente, relações de
tensão, conflitos, acordos tácitos, afirmação, rapina, troca de fluxos e movimentos que não

11
. No ano em que estive na festa, em 2018, as meninas que costumavam se juntar ao vale na praça já haviam
migrado para Fortaleza e não apareceram na festa. Embora ainda morassem em Promessinha, as garotas mais
reclusas também não apareceram, o que me fez estar na festa exclusivamente com os garotos.
113

necessariamente dependem das grandes cidades e que contribuem alimentar a sociabilidade e


reforçar os laços com a localidade.
Se na praça, lugar público e central, ocorrem as socializações oficiais dentro do
lugarejo, no entorno do zoneamento urbano, em lugares mais afastados, a juventude parece
circular com maior liberdade. As festas de paredões que foram inclusive etnografadas por
Santos (2021) indicam que neste espaço, jovens possuem maior liberdade, não apenas nas
questões que envolvem sexualidade (espaço de paquera e pegação), mas também em relação ao
consumo de álcool e outras drogas, para citar algumas liberações ocorridas nesse espaço
oficioso de diversão.
É preciso, portanto, fazer uma observação. Embora na zona rural pesquisada os laços
de amizade mais sólidos tenham sido formados entre alguns gueis e lésbicas, isto não foi uma
regra para todos os casos avaliados e nem mesmo a homossexualidade daqueles que assim
compuseram suas relações de sociabilidade foi um critério restritivo às suas socializações.
O fato de que quando na praça, nos momentos festivos ou na persistência do
cotidiano, muitos dos garotos do vale se oportunizassem às trocas sociais com outros da
localidade, não levando em conta, nessa escolha, as orientações sexuais de suas amizades,
indica que os processos de socialização da juventude rural tendem a não intensificar a separação
por grupos a partir de critérios de sexualidade, tais como a que ocorre nos guetos das grandes
cidades. As socializações mistas também se dão nas serestas e nas festas ocorridas no clube
social, inclusive na festa da eleição da garota Gay, cujo público majoritário era composto por
pessoas heterossexuais. O mesmo ocorre nas festas de paredão observadas por Santos (2021).
Em pequenas localidades, onde há a ausência de guetos, as parcas ofertas de lazer, estão
disponíveis a todos, indistintamente. Mais uma vez, observa-se a necessidade de calibragem do
armário construído metro normativamente.
114

5 A MACHO-E-FEME VAI CASAR: A TRAJETÓRIA DE LINA

5.1 Reconhecimentos e enunciações.

Lina nasceu nos anos iniciais da década de 1990. Mulher grande, de rosto redondo,
seios fartos e um pouco acima do peso, trazia um cabelo longo e liso, tingido através da
aplicação de luzes que a fazia se apresentar como loira. Às sextas-feiras, Lina costumava fazer
uma "escova no cabelo”, segundo ela, para ficar bonita para sua namorada.
Nona criança de uma família composta por pai e mãe agricultores e seus 12 filhos -
sendo sete homens e quatro mulheres -, ela viveu sua infância e início da adolescência numa
fazenda na zona rural de Promessinha. Entre as mulheres, Lina é a caçula, tendo três irmãos
mais novos que ela. A fazenda na qual a família residia era da mãe de Lina, que, de acordo com
suas palavras, era agricultora e “ajudava” o marido: ajudava na criação, cuidava, dava alimento
pros animais. Todo mundo entrava na onda. A Família vivia da criação, venda e troca de alguns
animais tais como ovelhas, cavalos, jumentos, dentre outros.
Quando na fazenda, desde bem pequenas, as crianças colaboraram no trabalho com
o trabalho campesino. A narrativa de Lina sobre a participação de sua mãe e de todos na lida
com os animais da fazenda deixa transparecer um certo embasamento em relação à ideia de
Valadão (2019, p. 252) para quem, no campo, “os papéis que compreendem a mulher [são] o
cuidado com a casa, as/os filhas/os, a horta e ao homem o trabalho com as máquinas, com a
roça, e quem lida com os animais”. Na fazenda rural em Promessinha haviam divisões sobre
aquilo que era da ordem masculina e aquilo que era da ordem feminina e Lina situava-se a meio
caminho entre essas duas ordens, posto que, de acordo com ela,

Meu pai era agricultor, trabalhava com animais. Eu também me envolvi, eu sempre
gostei desse negócio de trabalhar com... Tipo... não como homem, mas eu fazia coisas
que não eram de menininha, entendeu? Não é que a gente queira separar uma coisa da
outra, eu sempre gostei de ajudar meu pai, desde de criança, andava de cavalo, cuidava
de animais, eu sempre fui assim, entendeu, eu sempre gostei de ajudar meu pai. Aí
houve a época da separação que a gente já tava envolvido com o meu pai, que na
época eram três, os três mais novos eram muito envolvidos com o meu pai e a gente
sofreu muito na época da separação.

Lina não se recorda com qual idade passou a se juntar com o bando masculino de
sua família, porém, tendo a separação ocorrida quando tinha 07 anos de idade, esta narrativa
refere-se a uma idade ainda menor. Por não gostar de estar com meninas e nem das atividades
que elas desempenhavam, exibia predileção pela companhia de seus irmãos, em especial os
115

mais próximos de sua idade e os acompanhava em cavalgadas e outras atividades mais


enérgicas.
Conforme sua narrativa, a separação de seus pais foi motivada pelo fato de que sua
mãe passou a frequentar cultos em uma igreja evangélica em Promessinha, o que desagradou a
seu marido, cuja trajetória estava associada ao cristianismo católico. Embora separados, a
fazenda continuou a tocar suas atividades, que foi declinando com a saída de seu Pai – que
passou a desenvolver atividades como negociante de imóveis (corretor), na cidade-sede do
município onde se localiza Promessinha - e também de sua mãe, que passou a ser empregada
doméstica na casa do Pastor da Igreja que frequentava. Hoje a fazenda está parcialmente
improdutiva e loteada entre todos os filhos do casal. A maior parte dos seus irmãos estão fora
de Promessinha, pelo menos 6 deles moram em Fortaleza e uma de suas irmãs mora na sede do
município, mesmo lugar onde seu pai reside.
Durante sua infância, mesmo antes da separação de seus pais, a garota ganhou um
apelido que circulou por todo o seu meio social e mesmo para além daquele que ela reconhecia
como tal. Sem saber ao certo de onde surgiu, na localidade na qual morava, em muitos lugares
nos quais ela chegava, era noticiado a presença da “macho-e-feme”. Mesmo por pessoas com
as quais ela não interagia diretamente e que ela sequer seria capaz de nomear, era reconhecida
deste modo. Na escola, nos comércios locais, na igreja e na vizinhança era frequente tal
referência à sua pessoa. Em suas palavras:

Eu sempre fui assim… antes eu era meio menino, entendeu? De uma certa forma, eu
me achava assim meio menino, aí o pessoal me via também como um homem.
Antigamente eu tinha um apelido: macho-e-feme, antigamente. Todo mundo, a
maioria das pessoas diziam: olha aí a macho-e-feme. Se lembra? Antigamente não
tinha isso? Pois é, aí era isso: a macho-e-feme não sei o que…”.
………………………………………………………………………………………..
Na escola. Eu recebi muito [o apelido] na escola. Lá eu também era vista como macho-
e-feme. Eu não gostava, era um insulto. Era como se a gente sofresse bullying. Eu me
senti… antigamente eu não sabia o que era bullying, eu não entendia o que era o
bullying. Eu me sentia ofendida, mas eu não sabia. Eu sofri muito”.

De algum modo, a história de Lina se aproxima de outra colhida no mesmo distrito.


Certo dia, quando eu estava caminhando na cidade com alguns meninos gueis, perguntei a um
deles: E você, Mark? Quando se descobriu? A resposta, embora menos permeada de detalhes,
em muito se parece com a narrativa descrita pela lésbica entrevistada. Disse-me ele: “sabe
Renata, eu nunca pude ser outra coisa. Por ser afeminado, sempre fui colocado nesse lugar. Eu
nunca precisei me descobrir, sempre fui guei e pronto”.
116

O desacordo das atitudes de Lina e Mark com os esperados papéis de gênero,


explodidos no tatear infantil a respeito de como desenvolver suas tarefas em (des)conformidade
ao que se supõe ser adequado ao sexo biológico, nos contextos em que vivem, os colocavam
em uma posição de destaque, podendo, mais facilmente, serem narrados a partir de tais
características. A precariedade na gestão do estigma, pelas suas incapacidades de compreendê-
lo, reconhecê-lo, nomeá-lo, em uma idade muito precoce, ressalta obstáculos adicionais no lidar
com tais narrativas que pareciam vir de todos os lados, nos diversos espaços de sociabilidade,
a partir de pessoas reconhecidamente conhecidas, mas também por pessoas que sequer faziam
parte de suas relações mais imediatas.
Interessante observar, na narrativa de Lina, um certo acúmulo histórico, uma marca
indelével da constituição histórica da lésbica, tanto na Europa, como no Brasil (através das
traduções e difusão dos textos europeus). Personagens surgidos na virada do século XIX para o
século XX, acreditava-se que entre os invertidos sexuais, aqueles e aquelas que apresentavam
predisposição inata, seriam uma espécie de mulher-homem, no caso delas, ou de um corpo de
um homem habitado pela alma de uma mulher, no caso deles. Em ambos os casos, afirmava a
medicina de então, tal essência invertida se mostraria clara desde a infância.
No livro A questão sexual, Forel (1929, p.250) descreve a mulher invertida inata:
ela “sente-se homem". A ideia do coito com homens lhe causa um horror. Gosta de tomar
hábitos, costumes e trajes masculinos”. Inquestionável foi o sucesso nas vendas deste livro, que
inaugurou o intenso mercado editorial das ciências sexuais surgido no Brasil no início da década
de 1930. De modo que esta ideia foi repetida em outras publicações, inclusive um livro de
ensaios escrito pelo autor em questão, em parceria com outros médicos onde, após a repetição
literal da citação reproduzida acima, a “mulher-homem”, como nesta obra é referida, é descrita
como aquela que nasce, geralmente, com gostos masculinos. Já de menina não tem afeição
senão por jogos violentos e ruidosos; desdenha as meninas e admira com veemência os homens,
sobretudo os homens maduros” (Forel et alii, S/D, p. 63).
É difícil avaliar se houve e em que medida ocorreu a penetração social dessas ideias
médicas em uma zona rural que, há trinta anos atrás, certamente possuía nível médio de
escolaridade ainda pior do que o baixo índice existente hoje. Talvez ela venha de antes, das
línguas dos povos indígenas nativos (Tremembés, Potiguar e Anacés) ou dos escravos que
colaboram para sua construção e que o olhar colonizado do historiador que me informou sobre
a história de Promessinha não foi capaz de suprimir a invisibilidade as quais esses povos foram
submetidos no recontar oficial da história do município de Trairi.
117

De uma ou outra maneira, não importando a origem, observa-se que Lina fora
designada através de uma representação circulante entre os nativos, uma representação que
existia naquele tempo, de antigamente, momento no qual provavelmente os sujeitos com os
quais convivia, durante sua infância na zona rural de Promessinha, talvez ainda não possuíssem
o léxico encontrado hoje no discurso dela, que se auto intitula lésbica e de Mark, estudante
universitário engajado em estudos pró-homossexualidades, que narrou-se guei. Vale considerar
que este termo é bastante aproximado daquele dado à Soninha quando ela era uma criança: a
mulher-homem. Soninha foi a assumida lésbica pesquisada por Passamani (2015), em uma zona
rural de Corumbá.
É possível observar algumas semelhanças entre a história de Lina e Mark e as
narrativas que Schweighofer (2016) encontra em Farm Boys de Will Fellos, uma coleção
etnográfica de histórias de homens identificados como gays que cresceram em fazendas de
vários tamanhos no meio-oeste estadunidense, tendo vivenciado a adolescência entre 1940 e
1980, em diferentes estágios de vida na época de suas entrevistas. Nas histórias dos meninos
rurais de Fellow, diz Schweighofer (idem), quando comparada com pais e irmãos e outros
parentes, as mães pareciam prestar mais atenção ao comportamento de gênero e à identidade
sexual potencial de seus filhos. Muitos dos meninos rurais de Fellow acreditavam que suas
mães sabiam que eles eram gays muito antes de eles próprios se conhecerem. Eles se lembram
de terem sido tratados de forma diferente dos irmãos. Mães e avós costumam encorajar meninos
que elas suspeitavam serem gays a explorar atividades tradicionalmente femininas, como
jardinagem, costura ou tricô, ao mesmo tempo em que costumavam agradecer a ajuda adicional
no trabalho doméstico; algumas mães até criavam tarefas para manter um menino
particularmente afeminado perto dela, em vez de mandá-lo para o grupo de pais, tios e irmãos
mais velhos do sexo masculino que trabalhavam nos campos.
As histórias de Lina e de Mark indicam um esgarçamento da ideia de que o rural
deve ser qualificado como um não-lugar para gueis e lésbicas. As narrativas de Lina sobre a
lida da fazenda e a renda de bilros de Mark também indicam algum tipo de suporte familiar,
posto que, em suas famílias, esses corpos desviantes passaram a ser conectados ao domínio do
trabalho que normalmente estava associado ao gênero que eles não pertenciam.
Não há, contudo, nessa afirmação, nenhum interessem em supor uma essência
lésbica ou guei e nem mesmo que esta seja capaz de ser apreendida através do corpo.
Compreendo, junto com Le Breton (2016, p. 7 e p.15), que
118

(…) a existência do homem é corporal. E o tratamento social e cultural de que o corpo


é objeto, as imagens que lhes expõe as espessuras escondidas, os valores que os
distinguem, falam-nos também da pessoa e das variações que sua definição e seus
modos de existência conhecem, de uma estrutura social a outra.
(…)
O corpo é uma construção simbólica e não uma realidade em si.

Não apenas a possível proteção familiar em relação a um corpo dissidente, mas a


própria fofoca sobre os corpos errantes de Lina e de Mark refletem claramente o
reconhecimento de suas existências e o borrado que eles provocam. Se a estrutura de divisão
sexual do trabalho social na família rural estabelece a divisão dos trabalhos dos menininhos e
das menininhas, o corpo infantil e masculinizado da pequena Lina borrou tais evidências,
remontando, ao seu modo, outra forma de ocupação na vida diária da família.
Penso em Beauvoir (2016) quando ela pondera que muitas meninas escolhem
atividades masculinas por elas representarem uma tomada de poder da mulher sobre o seu
próprio corpo mutilado, impedido, numa sociedade na qual ela emerge como objeto do domínio
masculino. Por conta disso, não creio em alguma relação necessária entre a auto definição de
Lina como lésbica e a preferência por atividades enérgicas, desde a infância, que em sua família
era associada ao universo masculino.
Se nenhum desígnio natural ou biológico se coloca nas preferências da pequena
Lina, também elas não ocorrem ao acaso e nem estão livres dos ensinamentos adquiridos
organização binarizada dos gêneros e das sexualidades tais como expostas nos pares
homem/mulher homo/heterossexual. E é na rede de fofocas a seu respeito que isso se exprime
de modo relevante. Dado o fato de que as comunidades rurais, como disse Wanderley (2004),
são sociedades de interconhecimento, na qual todos se conhecem e as relações sociais são
bastante densas, é também pela via do reconhecimento dos outros que a menina começa a
perceber. Portanto, longe de querer argumentar sobre qualquer essencialismo lésbico, é
impossível ignorar os possíveis atravessamentos que esse contexto repetidamente afirmado
pode ter tido na sua biografia. Para ela, os outros representavam, com este apelido, a forma
como ela própria se via, pois, como disse-me, sentia-se como um menino e queria sê-lo até por
volta dos 11 anos de idade e todo mundo era capaz de perceber isso.
Difícil avaliar, embora seja plausível crer na probabilidade que esta situação por ela
vivida tenha favorecido a germinação de uma performatividade lésbica, ainda durante sua
infância, momento no qual foi capaz de reconhecer (e performar) o desejo de que suas relações
afetivas e amorosas se dessem através do apaixonamento por mulheres. Entre todas as garotas
119

entrevistadas, Lina é a única que narra o início de sua homossexualidade desde muito cedo ou
mesmo desde o sempre. Afeita aos gostos e gestos masculinos, seu

Corpo informa e se comunica por diferentes meios, seja pelo vestuário, por seu
formato anatômico (curvas, volumes, estatura etc.) e por padrões estéticos. Ele está
sujeito a regimes de olhar e de dizer da sociedade que criam condições de
possibilidade para a sua própria existência e aos modos de atuação social, cultural,
estética e política; com isso, reserva-lhe condições de existência para ocupar certas
posições e não outras (VALIM, 2017, p. 25).

Na escola, engajava-se em atividades com os meninos e não gostava da companhia


das meninas. E nem em outros espaços. Seu interesse por garotas, surge atravessado pela
curiosidade sexual, passando a existir por volta dos seus 13 anos de idade, após seu segundo
beijo lésbico, momento no qual ensaiava uma consciência ainda mais nítida de seu desejo por
meninas. Na verdade, mesmo antes, quando na ocasião de um beijo que deu em uma sobrinha
numa brincadeira de crianças, aos 09 anos de idade, passou a se perguntar: será que é isso
mesmo? De acordo com sua narrativa, ao percorrer sua história de vida, pareceu fácil encontrar
uma resposta: eu nunca quis que não fosse, eu sempre quis que fosse. Não tem essa não. Eu
nunca disse assim: não quero! Porque é uma coisa que eu sempre quis.
Aos 13 anos de idade, Lina já tinha conhecimento da existência de relações
homoafetivas, através das fofocas que circulavam em sua família e entre seus vizinhos, a
respeito de alguns casais homoafetivos da região. Também lembra de ter sido informada a partir
da programação televisiva, em especial, as novelas da Rede Globo de televisão, que costumam
trazer em sua trama alguns personagens homossexuais. Durante sua adolescência, momento no
qual sua mãe a proibiu de ver a novela “Em família”, ela fugia para a casa de vizinhos para
acompanhar, ao máximo, a história de Clara e Marina, o primeiro casal homossexual
protagonista da televisão brasileira, vivido pelas atrizes Giovanna Antonelli e Tainá Müller. Não
apenas Lina, mas todas as garotas nasceram e cresceram em residências que possuíam televisão.
Em relação às referências locais, Lina traz na memória o espanto e a ojeriza sentido por aqueles
que, ao fofocarem sobre os outros da cidade, diziam serem incapazes de avaliar sobre o quão
feio era um homem beijar ou cheirar outro homem e do mesmo modo quando se referiam a
relação entre duas mulheres.
Elias e Scotson (2000) declaram, a respeito das fofocas, que elas não podem ser
consideradas como fenômenos independentes ou aleatórios. Os autores ressaltam que tudo o
que é digno de fofocas em uma comunidade depende diretamente das normas e crenças
coletivas que emergem nas relações cotidianas. Além do mais, dizem eles, uma fofoca
120

depreciativa tem a função simultânea de estabelecer o que seria elogiável e o que seria
repreensível, uma espécie de marco declaratório constante que estabelece a divisão entre nós e
os outros. Em cidades pequenas, ou em pequenos aldeamentos, assinalam os autores, os
mexericos servem para manter as coisas no lugar, estabelecer e reativar o domínio da moral
coletiva. Além do mais, continuam, a própria facilidade de transmissão de fofocas depende das
condições hábeis à sua receptividade. É preciso saber com quem fofocar. Uma comunidade
mais unida e com maior capacidade intercomunicativa encontra caminhos mais fáceis para a
realização dos mexericos do que nas comunidades onde seus membros são mais desunidos.
Os autores apontam que a dinâmica da fofoca elogiosa serve para garantir a adesão
do indivíduo a um grupo que considera a si próprio como superior. A comunicação sobre as
pessoas que se relacionam com o mesmo sexo, por via dos mexericos acerca dos vizinhos não
heterossexuais e dos qualificativos depreciativos associados aos seus atos, marcava a
superioridade do falante, “um dos nossos”, em comparação com a inferioridade dos falados
“aqueles sujos, feios”; os outros. Como consequência, Ellias e Scotson (2000, p. 20), creem que
a injúria, realizada por indivíduos superiores diante daqueles que são considerados inferiores,
“pode fazer com que os próprios indivíduos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de
virtudes – julgando-se humanamente inferiores”. O mesmo disse Goffman (2017) a respeito da
tomada de consciência de um estigma.
De todo modo, não seria correto acreditar que a fofoca depreciativa, neste caso, teria
se encerrado na função repressiva ao comportamento de Lina. Sua fala indica que, ao contrário,
há uma brecha aberta por uma falha no processo comunicativo dos comentários que deveriam
se erguer a serviço do distanciamento do ouvinte em relação ao objeto narrado e foram tomados
por Lina como alvos de apreciação. Como diz Butler (1997), a medida em que os sujeitos são
constituídos na e pela linguagem e também na medida em que todo ato de linguagem opera uma
possibilidade aberta ao inesperado, os atos injuriosos dirigidos contra alguém já marcado,
através das ações da linguagem, tal qual a que comunica a existência de uma macho-e-feme,
pode resvalar justamente no sentido contrário ao pretendido pelo falante:

Uma pessoa não é simplesmente fixada pelo nome pelo qual é chamada. Ao ser
chamado de nome injurioso, a pessoa é depreciada e rebaixada. Mas o nome também
oferece outra possibilidade: ao ser chamado de nome, a pessoa também é,
paradoxalmente, dada uma certa possibilidade de existência social, iniciada em uma
vida temporal da linguagem que excede os propósitos anteriores que animam aquela
chamada. Assim, o endereço injurioso pode parecer consertar ou paralisar aquele que
ele chama, mas também pode produzir uma resposta inesperada e capacitadora. Se ser
endereçado é para ser interpelado, então o chamado ofensivo corre o risco de
inaugurar um sujeito na fala que passa a usar a linguagem para contrariar o chamado
ofensivo. (BUTLER, 1997, p. 02, tradução nossa)
121

Por mais que a observação de Butler (idem) tenha como referência a agência
realizada por gueis, lésbicas e outros sujeitos que tomaram para si as injúrias contra eles
cometidas e buscaram dar novos significados aos nomes e por mais que as injúrias observadas
por Lina tenham sido dirigidas a outras pessoas que estabeleciam relações homoafetivas em
Promessinha, em num ambiente com reduzidas possibilidades do encontro com a existência
homoafetiva, as fofocas dirigidas aos gueis e lésbicas da cidade são tomadas por Lina em rapina
e passam a funcionar de modo contributivo à compreensão de si mesma a partir da observação
desses outros que, sem as fofocas, provavelmente continuariam invisibilizados e isto pode ser
percebido quando ela me disse que

Eu já tinha ouvido e foi disso mesmo que veio minha curiosidade. Ouvi alguém falar
ah, fulano e fulano vive com tal pessoa. Antigamente, na minha época de 10 anos, já
existia casal em Promessinha; eu ouvia falar deles e eu olhava para eles como casal
homem-homem e mulher e mulher e isso instigava, de uma certa forma, meu instinto,
entendeu? Eu comecei a procurar isso.

A rapina realizada por Lina mediante a fofoca injuriosa constituiu-se em um jogo


entre a ilusão do narrador que pretende ajuizar negativamente o objeto e no limite, fazer com
que ele desapareça, e a alusão, para o ouvinte, da existência desse próprio objeto ao qual ela
pode percorrer a partir de então. Portanto, apesar as fofocas sobre os casais homoafetivos de
Promessinha que a garota conheceu em sua infância tivesse por função garantir que o sexo
feminino produzisse a mulher heterossexual, acabou por posicioná-la em mais vantagem do que
a encontrada entre as mulheres entrevistadas por Brandão (2010) que residiam em pequenas
cidades do território português, cerca de 50 anos atrás e que não possuíam referências (sequer
referências televisivas capazes de lhes parecerem boas) para dar apoio à objetivação de uma
existência lésbica, em conformidade com o desejo que sentiam por outras mulheres. Neste
sentido, diz a autora, a inexistência social da lésbica colabora pra

Essa impossibilidade de objetivação (..) [e] implica, ao mesmo tempo, à ausência de


confirmação social da validade daqueles sentimentos, pois, do ponto de vista
simbólico, o silêncio, a ausência do nome, corresponde à ausência e, sobretudo à
ausência de legitimidade, da coisa. (IDEM, IBIDEM, p. 90)

No período que Lina realizou o seu primeiro beijo lésbico em uma brincadeira
infantil aos nove anos de idade, ela passou a considerar fortemente a possibilidade de se
relacionar afetiva e sexualmente com outras garotas. Neste momento, ela já participava dos
122

cultos evangélicos na companhia de sua mãe. Segundo ela, aos 7 anos de idade aceitou Jesus,
embora pudesse exprimir um certo ar de revolta mediante o fato de que, ainda muito nova, aos
12 anos, tenha sido pressionada pela igreja para oficializar tal aceitação através do rito do
batizado, o que foi feito.
A memória do beijo da infância lhe acompanhava, ao mesmo tempo que seus laços
com a igreja se tornavam mais sólidos, a se considerar o batismo. Por volta dos 13 anos, com o
radar já afinado com o foco nas sexualidades homoeróticas na região, e munida de alguns
significados alternativas à discursividade religiosa local, Lina encontrou uma mulher lésbica
com quem conversar:

Foi quando eu consegui me abrir, foi com ela. Foi a primeira pessoa que eu falei sobre
o que eu sentia. Eu desabafava, porque eu não queria dizer pra ninguém o que eu
sentia. Foi com treze anos. Ela tinha 25 anos, tinha vindo de fortaleza pro interior e
tinha deixado o ex-marido porque o ex-marido gostava de homem e ela de mulher e
eles casaram pra cobrir os dois. Tiveram uma relação de 3 anos. Ela me contou né e
isso, com ela me contando eu comecei a falar de mim pra ela. E ela começou a me
explicar como era, as duas, e eu fui me interessando, me interessando e aí eu fui olhar
pras meninas da igreja de uma forma diferente...

Este olhar diferenciado para as meninas fez surgir sua segunda experiência de
contato físico/sexual, também aos 13 anos, quando se envolveu em beijos com outra garota,
num pequeno flerte cuja duração foi em torno de um ou dois dias. Essa experiência, que na sua
narrativa aparece como um momento performativo de compreensão ainda mais acurada de seu
desejo sexual, chega aos ouvidos de sua mãe - pela via da fofoca no interior da igreja - que lhe
dá uma surra de pau de vara que lhe rasga as costas. Também apanhou de sua irmã mais velha,
pessoa com o maior status social e econômico de sua família, posto que médica e cuja
autoridade é reconhecida pela totalidade de seus membros. Embora Lina não tenha confirmado
para sua mãe e nem para sua irmã as suspeitas que elas possuíam em relação a sua
homossexualidade, a partir deste marco que Lina entende que seu segredo havia sido revelado,
como um armário que fora escancarado pelo lado fora e por alguém despossuído da chave de
sua tranca. E também a partir daí que uma nova dinâmica na sua vida familiar, em parceria com
membros da igreja, começa a se estabelecer.

5.2 Após a revelação, de volta ao armário.

O batismo de Lina lhe permitia avançar na vida comunitária da igreja, pois


funcionava como uma espécie de demonstração de compromisso com a fé no trabalho
123

evangélico e na aceitação de Jesus. Tendo desenvolvido habilidades com instrumentos de corda,


tocando violão e contrabaixo, ela passou a reger a banda de música do coral da igreja – também
retirando suas notas deste último instrumento citado-, o que a fazia estar no templo com outros
fiéis em seus momentos de ensaio, além das idas semanais ao culto e de sua participação em
eventos festivos, incluindo alguns fora do templo que frequenta, bem como da frequência em
grupos de oração.
No templo, sua mãe assumia a direção de determinadas tarefas e segundo Lina, era
muito conhecida por este trabalho. Com a chegada dos 15 anos de Lina, idade em que sua mãe
passa a se preocupar com a ausência de namorados de sua filha, que se aproveitou de sua rede
de relações entre os membros da igreja, para montar um estratagema no sentido de suprir a falta.
E obteve sucesso em sua empreitada, já que, conforme a fala de Lina,

Eu comecei a arranjar o primeiro namorado na Igreja, entendeu? Praticamente foi


minha mãe que arranjou. Depois de 15 anos, começou a aparecer pretendentes em
minha casa. Por que minha mãe fazia questão. Aí pronto, eu ia conhecer o rapaz. Eles
eram convidados pela minha mãe para almoçar no domingo, para almoçar com a
gente. Chegava só o rapaz. Em primeiro, passava por ela (a mãe), né? Aí depois ele
começou a vir praticamente todos os domingos lá pra casa e foi dado pelo povo como
“o namorado da Lina”. E eu comecei a namorar o rapaz por que minha mãe
pressionou.

Ao mesmo tempo, outros membros da igreja preocupavam-se com o possível


descaminho de Lina, chamando-a para conversas que incluíam a receita de orar para afastar-se
da má conduta e fortalecer-se em seguir os desígnios divinos.
Portanto, o processo de coming out vivido por Lina, onde as portas do seu armário,
então, foram abertas pela prática do outing (delação) comunicada nas fofocas a respeito de
acontecimentos envolvendo seu contato com outra garota, motivou sua mãe e outros membros
da igreja que, munidos sobre os preceitos da aceitação de jesus - que, via de regra, deve ser
entendida como levar a vida segundo os princípios d’Ele, longe dos pecados e resistindo às
tentações – procederam rumo à sua recuperação.
A partir desse estratagema arquitetado por sua mãe, cerca de 10 rapazes lhes foram
apresentados, tendo ela se consentido do namoro com quatro deles. Por vezes as relações
duravam 3 ou 4 meses, outro relacionamento chegou a durar 9 meses, mas ela não se sentia
envolvida e nos 3 primeiros casos, os relacionamentos naufragaram. Nesta época, ela estava
empenhada em fazer dar certo o plano de sua mãe, tendo abandonado suas investidas com as
garotas, numa espécie de retorno ao armário.
124

Aos 17 anos, ela está no último dos seus quatro namoros agenciados desta forma. A
pressão de sua mãe sobre a necessidade de casá-la aumenta e isso ajuda no seu consentimento
em experimentar a superação do medo que sentia ao encostar em um homem já que, de acordo
com ela, os homens eram facilmente excitáveis, o que fazia com que ela não desse liberdade a
eles. Nessa idade, o pretendente da vez também lhe pressionava para que tivessem relações
sexuais. Segundo ela, mediante a confluência da promessa de compromisso feita pelo namorado
com a urgência que sua mãe atribuía em relação ao seu casamento, ela cedeu à pressão:

Ele disse: “ah eu vou ficar contigo pra sempre. Se a gente tiver um filho eu vou
assumir, eu quero ter um filho com você”. Na primeira relação sexual ele já queria
que eu engravidasse, esse pai do Arthur (filho do casal). E aí minha filha, foi tão cheio
de pressão, inclusive da minha mãe, que eu acabei cedendo. Assim... não por a minha
vontade... foi tipo assim... uma coisa estranha, a minha primeira vez, entendeu?
Porque eu não queria e eu tava ali, de uma certa forma, obrigada. Aí a gente transou
aí com um mês depois eu confirmei que estava grávida. Aí a minha mamãe se alarmou
e depois ela veio dizer... aí não sei o que, você tem que casar.

Em outro momento, Lina confessou-me também que sentia uma certa curiosidade
em saber como seria esse ato sexual. Mesmo que não sentisse desejo pelo seu namorado, intuía
ser interessante a realização do ato para entender melhor a direção do seu desejo. Se tudo
corresse bem, talvez ela resolvesse os conflitos que se ergueram em torno de sua sexualidade
dissidente. Mas não foi isso que aconteceu.
Ainda sua irmã mais velha, médica e residente em fortaleza tivesse, antes da
gravidez, lhe ofertado apoio para que a garota fosse estudar na capital, Lina declinou do convite
devido ao medo que possuía de não cumprir a determinação de namorar e casar com este
namorado, como desejava sua mãe. A gravidez apressou o casamento que ocorreu no quarto
mês de gestação.
Além de todo esquema montado por sua mãe e seus irmãos em Cristo para fazer
com que Lina renunciasse ao seu pecado e continuasse com os passos determinados para uma
vida cristã, que inclui o matrimônio e a procriação, mais uma vez é impossível não observar a
recuperação histórica do tratamento dado às lésbicas pelos discursos médicos que a construiu.
Muitos manuais médicos da virada do século XIX para o século XX indicavam que pela via de
um casamento heterossexual e amoroso, uma mulher poderia voltar à sua inclinação natural,
destinada ao matrimônio e à procriação. Forel et Alii (sd) chegam mesmo a propor o casamento
entre invertidos, como forma de adaptação de ambos ao padrão da natureza. Em 1927, Havelock
Ellis via com reserva esta forma de resolução das homossexualidades, considerando os
125

possíveis efeitos deletérios na geração de crianças invertidas (Cf. ELLIS, 2013). De todo modo,
estava em pauta a cura dos invertidos pelo acordo matrimonial entre sujeitos de sexos opostos.
A respeito da política social de regulação de gêneros, Butler (2018) observa que uma
performance de gênero contrária à expectativa social esperada para este mesmo gênero promove
punições mais ou menos óbvias, ao mesmo tempo em que evidencia a artificialidade das
posições de gênero que os sujeitos ocupam, na maior das vezes, sem serem capazes de
questionar seus falsos pressupostos de naturalidade. De acordo com sua ideia

O gênero é feito em conformidade com um modelo de verdade e falsidade que não só


contradiz a sua própria fluidez performativa, mas serve a uma política social de
regulação e controle do gênero. Performar o gênero de modo inadequado desencadeia
uma série de punições ao mesmo tempo óbvias e indiretas, e performá-lo bem
proporciona uma sensação de garantia de que um sentimento de angústia tome
facilmente o lugar dessa garantia, e que a cultura castigue ou marginalize prontamente
quem não consegue representar a ilusão de um gênero essencialista, deveria bastar
como sinal de que, em algum nível, existe o conhecimento social de que a verdade ou
a falsidade de gênero são apenas socialmente impostas, e de modo nenhum
ontologicamente necessárias. (BUTLER, 2018, pp. 13-14)

Se o próprio namoro deveria servir para punir e ao mesmo e restabelecer os


esperados papéis de gênero de Lina, também não foi deixado de fora o fato de que tal
performance de gênero, associada ao modelo cristão, deveria incluir o controle de seus impulsos
sexuais, mesmo que este fosse direcionado ao sexo oposto. Em especial, tal expectativa é
alimentada pelo contexto da igreja evangélica que defende a supressão de atos sexuais entre
casais antes do matrimônio. Naturalmente a embaraçosa situação da gravidez prematura chega
ao conhecimento do pastor que seria o responsável por realizar o rito sagrado da união conjugal.
Tendo sido comunicado sobre a relação sexual ocorrida antes da bênção divina, o pastor optou
por acessar o ritual vexatório que utilizava para tratar com os pecadores:

Foi assim uma explosão dentro da igreja. Por que antigamente, na igreja, não sei se...
Até hoje tem! Não podia ter relação antes de casar. Era pecado, era proibido, tinha
uma punição. Eu até recebi a punição. Foram seis meses de disciplina: não podia tocar
[contrabaixo], não podia receber oportunidades…não podia nada, só sentar lá atrás,
como uma pecadora. Para eles eu era uma pecadora. E aí fui eu e ele lá pra trás. A
gente recebeu a disciplina na frente da igreja inteira, em peso… o pastor simplesmente
disse que eu tinha pecado. Aí a igreja ficou assim: transaram… É, na mente do povo
era “transaram”. Pecaram, transaram... é e a gente foi lá pra trás. Foi lá pra frente os
dois receber a disciplina, foi horrível, foi muito difícil e a gente recebeu a punição, e
aí ficou 6 meses lá atrás.

Lá atrás, em sua fala, referia-se à última fileira de assentos na Igreja, destinada aos
pecadores, espécies de réus confessos. A reprimenda pública realizada pelo pastor diante de
126

todos da Igreja e a quarentena expiatória deveria servir tanto para (re)colocar os pecadores no
caminho de Jesus, quanto para dar o exemplo para a plateia que os acompanhavam. Se com a
promessa de voltar para os caminhos de Jesus recusando as tentações lhe deu alguma vantagem
provisória em relação a suspensão do ato sexual até o momento do casamento, o próprio ritual,
que, de algum modo, objetivava fazer envergonhar-se sobre seu pecado, a fez sentir vergonha
e, em sua narrativa, um dos fatores que levou a garota a experimentar tal sentimento, deveu-se
a que sua entrega tenha sido feita para um homem:

Foi muito difícil porque era uma coisa que não era por que eu queria. Era uma
vergonha pra mim. Por que todo mundo via que eu não tinha comportamento de
menininha, todo mundo sabia que eu não queria, a maioria das pessoas: ah, a Lina está
namorando com um rapaz e ficou grávida? Teve relação? E eu entendia, por que eu
sempre fui assim…. Antes eu era meio menino, entendeu? Pois é, aí era isso: a macho-
e-feme vai casar...

Antes que isso acontecesse, Lina resolve inverter a fórmula já usada anteriormente:
busca encontrar uma mulher com a qual pudesse avançar para além de beijos, a fim de saber
como se daria essa experiência e de que modo isso influencia em seu casamento. Eu tinha que
ir lá, eu tinha que conhecer né, antes de me casar com um homem, eu precisava saber”.
Através das redes sociais, no caso o Facebook, ela conheceu uma menina com a qual
estabeleceu uma amizade promissora. Uma menina bem “machuda”, conforme sua
qualificação, com a qual ela teve um namorico de um ou dois dias. Essa experiência, de acordo
com ela, serviu para, mais uma vez, indicar-lhe onde ela melhor se reconhecia. Porém, grávida,
pressionada por uma vida atravessada pela igreja (minha vida foi dentro da igreja, disse-me) e
pela adesão de sua mãe aos princípios desta, acedeu ao casamento. Tendo se casado, Lina passa
a morar no núcleo urbano de Promessinha.
Ao ser perguntada se em algum momento o ato sexual com seu marido havia lhe
gerado algum tipo de prazer, se havia sido bom, ela me respondeu: se eu lhe disser que foi bom,
Renata, eu estou mentindo. As pessoas me perguntam, Lina, como é que tu passou 7 anos com
um homem e nunca sentiu prazer? E eu não me sentia... eu me sentia, de certa forma,
violentada. A ideia de ter sido violentada aparece ainda em dois outros momentos, tais como
em uma resposta dada à Mark, durante uma entrevista, e quando estava na praça, junto aos
amigos:

Eu simplesmente fazia por fazer. Eu me sentia uma boneca, na verdade. Pra mim isso
ali era uma violência. Por que ir pra cama com alguém e ser um objeto, as vezes eu ia
por que ele, tipo, me obrigava a fazer sexo. É, me obrigava: vamos fazer sexo que eu
127

quero dormir! Vamos fazer sexo que eu quero sair! Vamos fazer sexo que…. Isso,
entendeu? Era isso, eu me sentia violentada.
…………………………………………………………………………………..……
Eu fui estuprada por sete anos, eu fui estuprada por sete anos. Era um estupro. Foi
muito difícil, fui estuprada por sete anos.

Além da insatisfação nos atos sexuais com o marido, a relação entre os dois
também foi marcada por diversas violências. O marido por vezes lhe batia e a tratava
grosseiramente com certa frequência, além de controlar seu acesso às redes sociais, impedindo-
lhes o uso de internet a partir de seu telefone e, deste modo, lhe barrando a comunicação via
WhatsApp e a criação de perfil em redes sociais tais como o Facebook e Instagram. O controle
das amizades também se fazia presente na ordenação dos espaços que sua esposa estaria apta a
circular, sendo bastante restritivo aquilo que lhe era permitido:

Eu não tinha esse lazer de ir pra praça, ficar com os amigos. Aliás, nem amigos eu
tinha, né, porque ele não deixava. Era só igreja, casa, sogra ou minha mãe. Era só pra
ele. Eu era a mulher dele, era escrava, era tudo. Aí eu não tinha lazer, entendeu?

Embora Lina diga que não tinha amizades e que tal lacuna seria alimentada pela
posse do marido sobre seus percursos na cidade e suas relações de sociabilidade, em outros
momentos ela se contradiz, já que me informa que justamente por conta do casamento, ela pode
se aproximar de algumas meninas da igreja, dentre as quais umas que lhes interessavam
sexualmente, beneficiando, ainda que de “modo platônico”, os seus desejos. Em sua narrativa,
sem o atestado de boa-fé heterossexual e pelo valor da mulher casada, as aproximações com as
meninas de sua igreja não teriam sido possíveis. O casamento, resultado de uma precipitação
condenada pelo credo cristão, havia levantado suspeitas sobre um possível engano coletivo a
seu respeito, podendo lhe favorecer a novas amizades. Após se casar, obteve a possibilidade de
passar tardes inteiras nas casas de suas amigas da igreja, deitando-se na cama com elas para
conversar, momento no qual ela dizia sentir-se atraída e apaixonada por algumas, mas que se
contentava com essa aproximação física que lhe provocava excitação sexual, embora tivesse
que disfarçá-la. Algumas vezes teria sido questionada por essas amigas sobre sua sexualidade,
a qual respondia ser heterossexual.
É preciso ter justeza em relação à forma como a juventude rural se relaciona com a
igreja. Uma vez que é parte da configuração dinâmica da vida das famílias das pequenas
cidades, a participação de muitos jovens em atividades nas igrejas se constitui como espaço
fundamental de socialização da juventude rural. Os garotos gueis de Promessinha pesquisados
por Santos (2021) a maioria deles (se não a totalidade) estão ou estiveram, desde muito cedo,
128

agenciados em tarefas religiosas, que eram parte de sua cultura familiar, mesmo antes de seus
nascimentos.
Obviamente, não se pode deduzir daí que os fiéis sejam integralmente assimilados
pelos princípios prescritivos da Igreja. Entre os garotos de Santos (idem), por exemplo, há um
tutor do curso de formação de coroinhas que prefere controlar possíveis traços distintivos de
sua sexualidade, ocultando-os, ao mesmo tempo em que sente desejo de revelá-la ao padre da
localidade. Do mesmo modo, muitos jovens religiosos entrevistados por Silva, Paiva e Parker
(2013. p. 104), mostram que, a despeito da prescrição que parte da Igreja,

A religiosidade viva tem uma dinâmica bem mais complexa. As religiões, como se
sabe, estão entre as instituições que promovem discursos para a socialização,
fornecem parâmetros para organização das sociedades e funcionam como orientadoras
da vida cotidiana, além de constituírem redes de relações sociais. Alguns estudos têm
indicado, entretanto, que os brasileiros têm grande abertura para negociar com a
regulação religiosa dogmática na qual foram socializados ou à qual aderiram, e que
suas convicções orientadas pela religião incidem nas decisões no âmbito privado com
razoável autonomia.
…………………………………………………………………………………………
A adesão religiosa marca a socialização, mesmo que isto não signifique,
necessariamente, obediência total aos ditames doutrinários. É o ethos privado,
também definido a partir do sistema religioso, que engloba a vida afetiva, conjugal,
reprodutiva e erótica, que tem sido pano de fundo das negociações dos sujeitos entre
linhas de força mais tradicionais e mais modernas.

Portanto, se a igreja é parte tão intensa da sociabilidade de crianças e jovens em


Promessinha, ela se constitui como espaço habitado, reinventado por aquele que lá se encontra.
No discurso de Lina, é possível perceber como a Igreja foi um espaço extremamente importante
para o desenvolvimento de sua identidade homossexual. “Menina, eu tive “namoricos” dentro
da igreja!” falou-me certa vez. Além do mais, a própria colaboração que ela dava à igreja com
o seu contrabaixo, funcionava como fonte de obtenção de privilégios no seu trato com meninas
que lhes interessavam:

Eu saí beijando uma, dando um “agarrãozinho” em outra, por que eu era da banda e
as meninas ficavam impressionadas, né? Uma mulher dessas né? Eu tocava
contrabaixo, e dava uma batidinha aqui, batia ali e tal, aí eu dizia assim, essa daí eu
quero sair, eu quero, eu quero, eu quero, entendeu? Engraçado, por que se olhasse pra
mim e olhasse demais, eu batia logo o olho. Casadéééérrima.
………………………………………….……………………………………………
Foi dentro da igreja que tudo começou. Foi dentro de lá que eu comecei. Foi muito a
banda também. A banda que eu tocava na igreja me ajudou muito a querer ser quem
eu sou, porque assim, eu sempre tive uma “posturazona” de durona e tal e tal, aquela
bichona toda, aí eu usava uma jaquetazinha, uma sainha apertadinha, contrabaixo,
aquela coisa toda… Aí quando eu fui pra banda, pronto! As meninas começaram a
pirar, né? Eu saia pra tocar fora também, aí as meninas ficavam, poxa, essa menina
parece que é… aí eu comecei a dizer assim, o que é isso? Parece que é? Parece que é
129

o que? Aí eu pensei… parece que é o que? Aí eu comecei a paquerar, a me abrir. Me


ajudou muito a igreja. Me ajudou muito, eu comecei dentro da igreja.

Apesar dos meus repetidos esforços em tentar determinar o nível de aproximação


física e sexual de Lina com as meninas da sua igreja terem naufragados, não sendo eu capaz de
saber ao certo a amplitude dos contatos físicos estabelecidos nessas amizades (há depoimentos
contraditórios por parte de Lina sobre terem existido beijos e sobre amizades que se
desenrolaram exclusivamente de modo platônico), parece certo que a utilização deste lugar pela
sexualidade dissidente de Lina se fez, mais uma vez, como modo de rapina, como quebra de
interlocução. É no altar de um espaço proibitivo à existência lésbica que ela exerce sua paquera
com pessoas do seu mesmo sexo. Como dito, a experiência do armário entre LGBTIA+ nas
zonas rurais, torna os espaços habitados cada vez menos evidentes.
Embora a preocupação com a sexualidade seja bastante visível dentro de muitas
igrejas evangélicas, o discurso avesso à homossexualidade se faz, na maior das vezes, de “modo
silencioso”. Lina me disse que nunca havia ouvido o pastor de sua igreja mencionar algo sobre
homossexuais, em qualquer momento que tenha estado em sua presença. A regra foi confirmada
pela outra garota evangélica que entrevistei. Por outro lado, esse discurso era eventualmente
trazido pelos fiéis que, diante de suspeitas sobre sua homossexualidade, lhe perguntavam sobre
a veracidade desta suspeição e mesmo que Lina a negasse, por vezes a conversa seguia com
conselhos da força da oração para seguir afastando-se das tentações do demônio.
Essa espécie de “silêncio narrativo” sobre o sexo, próprio da estrutura confessional
que lhe deu forma (FOUCAULT, 2005) aparentemente ganha a função de “deixar claro que,
mesmo que não se fale”. Impedido o debate, resta a prescrição, espalhada por todo corpo social,
sobre o que fazer com “aquilo que não se ousa dizer o nome”. O silenciamento a respeito das
sexualidades desviantes pelos dirigentes de sua igreja mostrado pela fala de Lina coincide, não
por acaso, com os ruídos que estabelecem entre os demais fiéis acerca do mesmo tema. Do
centro do poder, fala-se pouco. Entre aqueles que sofrem seus efeitos, fala-se baixo e em
segredo, para que se possa falar de modo eficaz.
Há algo que é preciso considerar. A nascente literatura sobre sexualidades rurais nos
estudos do Brasil, tem se debruçado sobre homossexualidades masculinas e deixa transparecer
a criação de espaços de socialização coletiva que podem ser acessados por homens que fazem
sexo com outros homens. Durante toda a minha pesquisa, me afligiu, com certo desespero, o
fato de que, entre as minhas entrevistadas, eu não conseguisse um material que me fornecesse
uma explicação “espetacular” sobre a possibilidade lésbica na zona rural, tal como o feito por
130

Ferreira (2008) com sua etnografia sobre os frequentes encontros sexuais entre muitos homens
nas matas de uma zona rural no Ceará, ou mesmo as festas de paredões de som frequentadas
por jovens gueis de Promessinha que foram recentemente etnografadas por Santos (2021).
Terminei meu contato com as garotas sem ser capaz de identificar qualquer lugar
explosivo que permitissem a experimentação mais livre de suas homossexualidades em vias de
ser reconhecidas por elas, ou já reconhecidas, quando residiam na localidade rural. A discrição
como forma positivamente organizada em relação às suas sexualidades se fez regra, até mesmo
nos casos onde se dizia desejar fazer o contrário. É provável que a limitação da liberdade de
circulação na cidade, mais sentida pelas mulheres do que pelos homens em zonas rurais,
interfira de modo interseccionado em relação à formação de grupos e espaços onde lésbicas
possam vir a circular como tal. A vigilância de seus pais e mães (e posteriormente, talvez,
maridos) sobre sua circulação na cidade, a preservação de sua moral na cena pública, dentre
outras regras morais que apontam para o universo feminino, podem colaborar para a
obstacularização de acesso a eventos sociais periféricos onde as associações homossexuais
entre elas poderiam vir a existir. Com um tempo fui percebendo que as linhas de fuga que essas
garotas tiveram que traçar para que pudessem consentir com seus desejos sexuais eram muito
mais da ordem de uma microscopia das relações cotidianas do que da macroscopia dos grandes
eventos.
Neste ponto, ao observar a trajetória de Lina, é justo afirmar que desde os 10 anos
de idade, ou mesmo antes, ela estabelece uma forma de perverter, o que aqui estou chamando
de rapinar, os comandos contrários que lhes são ofertados em relação às sexualidades
homoafetivas. É pela via do apelido que recebe que ela pode se analisar como pertencente a um
outro gênero que não o associado a seu sexo biológico. O mexerico maldoso que aponta a
existência da homossexualidade em Promessinha, lhe serve para o reconhecimento pessoas que
podem ter algumas semelhanças com ela, passando a observá-los. Ironicamente também, é pela
via do casamento, que Lina passa a ser autorizada a frequentar a casa de algumas de suas amigas
da igreja e deitar-se com elas em suas camas, experimentando relações mais platônicas que
carnais, mas não menos importantes. E também é na igreja e a partir da posição de destaque
que ocupa, que ela, mesmo casada, experimenta suas primeiras paqueras homoeróticas juvenis.
A trajetória de Lina, cujo armário foi aberto de fora para dentro, como dito, a recolocou no
armário e somente por brechas por ela criadas a partir de seu interior foi possível a construção
de uma identidade lésbica que culminou em experiências afetivas da mesma natureza.
131

5.3 Vias fraturadas, pontes erguidas

Aderir aos namoros que sucederam à investida de sua mãe e o consequente


casamento provocado pela gestação, colocou Lina de volta ao armário, forçadamente. De todo
modo, tal retorno permitiu-lhe uma certa quarentena que lhe possibilitou estabelecer pontos de
fuga, de brechas abertas para que ela organizasse sua identidade sexual, diminuindo conflitos
familiares e sociais. Seu casamento durou sete anos, tendo se separado quando possuía 25 anos.
Quando casada, Lina arranjou um emprego que consistia em realizar rápidos exames
oftalmológicos para determinar a adequação da necessidade de seus clientes ao grau dos óculos
que vendia a pessoas que moravam distante do centro urbano de Promessinha. Lina possuía
uma moto que lhe garantia autonomia para realizar suas vendas. Mas não só, pois como disse
Marques (2015) a posse de um transporte em cidades pequenas é um signo de poder e,
acrescento, também pode vir a se constituir como um instrumento com o qual os indivíduos se
comunicam, através dos movimentos realizados e de alterações produzidas em termos de
velocidade e ruídos, para citar alguns elementos.
Foi pilotando sua moto nos arredores da praça, que ela identificou, no Vale, uma
menina que havia passado a compor o grupo. Algumas vezes, antes de se conhecerem, Lina
pilotava em baixa velocidade a fim de buscá-la com o olhar e uma vez que a tivesse visto,
acelerava de modo brusco, do mesmo modo como vi fazerem os rapazes que por ali passavam
e que eram alvo das investidas em tom de galhofa realizada por algum dos meninos gueis que
compunham a turma.
Esse movimento de Lina determinou as especulações dos membros do Vale a
respeito da sexualidade da garota. Sabia-se que Lina era casada e tinha um filho, mas seu jeito
masculinizado e o teatro sob rodas colocavam em questão a sua heterossexualidade. Não
precisaram de muito tempo para certificar-se de suas suspeitas, já que Lina passou a frequentar
a loja de roupas infantis na qual Sissi, a novata da turma, trabalhava.
Insistindo em apresentar-se como heterossexual e feliz em seu casamento, buscava
compreender a viabilidade de uma paquera no instante em que a tecia. A amizade entre as duas
estreitava-se, de modo que poucos dias depois elas trocaram acesso ao número telefônico uma
da outra. A comunicação entre as duas se fazia prioritariamente via SMS, espécie de brecha na
“lei do isolamento” imposta pelo seu marido, durante a noite, enquanto ele dormia. Além de
combinar o fato de ser uma tecnologia que transmite informações escritas e de modo silencioso
e/ou silenciado adequada à discrição diante da presença adormecida do marido, a comunicação
via SMS lhe dava um espaço mais amplo de liberdade no diálogo com sua pretendida namorada,
132

já que longe do escrutínio de seu olhar. Via telefonia celular, as conversas avançaram de modo
mais direto e quando Lina perguntou a Sissi se esta gostava de alguém, a resposta que obteve,
depois de certo arrodeio, foi a de que Lina seria o alvo de seus sentimentos apaixonados. Lina
afastou-se de Sissi por dois ou três dias e quando a via na rua, novamente a dança sob rodas:
fingia não lhe conhecer, acelerava sua moto ao avistá-la, chamando sua atenção, de modo
contraditório, inclusive para o fato de que a ignorava. A performance motorizada como
instrumento de flerte ocorreu durante três dias e terminou quando, via SMS, Lina pede Sissi em
namoro e ela aceitou o pedido.
A situação de Lina exigia discrição máxima sobre o que estava acontecendo: “ela
era casada, era da igreja e tinha um filho e eu não podia tá expondo esse tipo de coisa, né?”,
disse-me Sissi, recordando do início do seu namoro. A tentativa de se manter com máxima
discrição, colocou as garotas em algumas situações embaraçosas, tais como fingir que não se
conheciam caso se encontrassem por acaso, em um comércio da localidade. Seus encontros
aconteciam na loja em que Sissi trabalhava, quando não havia mais ninguém perto.
A duplicidade de relações de Lina era vivida com desgosto pelas duas Garotas. Sissi
imaginava-se em desvalia, sendo apenas uma pessoa a participar da trama de um casal em crise,
podendo ser deixada a qualquer momento, quando eles se acertassem. Lina passou a recusar as
investidas sexuais do marido, pois não achava justo trair sua namorada. Além do mais, via que
esta era uma oportunidade de experimentar viver o que havia desejado durante muito tempo em
sua vida, que, na maioria das vezes, se desenrolou num sentido contrário. Essa situação de
duplicidade de relações teve duração de cerca de três meses e terminou quando Sissi exigiu uma
tomada de posição por parte de Lina, que chamou seu marido e comunicou-lhe o desejo de
separar-se.
Na comunicação com seu marido, Lina não chegou a mencionar seu envolvimento
com uma mulher. Disse para ele que não aguentava mais viver ao seu lado por conta do mau
relacionamento onde por diversas vezes havia sofrido violência. Tal manobra de ocultação foi
inútil, pois seu próprio ex-marido comunicava aos outros o fim do casamento por ter sido
deixado por uma mulher. Aliás, em nenhum momento no discurso de Lina há menção de
qualquer aconselhamento de terceiros para deixar seu marido. Não foi possível obter
informações se alguém sabia do que ocorria entre o casal. De todo modo, supondo que a falta
de privacidade existente nas zonas rurais não possa ser seletiva, creio que os adensamentos das
relações, a aproximação física das casas e a existência de um filho que presenciava essas
situações se fizessem vazar as ocorrências para além do espaço doméstico. Intuo fortemente
que o caráter sagrado do matrimônio tenha relação com o fato da falta de conselhos para romper
133

com sua relação conturbada, em um ambiente eminentemente cristão e cuja vida se desenrolava,
no mais das vezes, em torno da igreja evangélica. Além do mais, no caso de Lina, o matrimônio
funcionava como uma espécie de compromisso para a cura guei, o que provavelmente poderia
ser considerado tão mais importante que sua própria integridade física e psicológica, ameaçada
por um casamento violento.
É possível notar, pelas narrativas de Lina, que a existência de uma mulher em sua
vida certamente serviu como álibi para seu marido não ter que prestar contas públicas de seus
próprios atos. E muitos dos moradores de Promessinha parecem ter seguido tal regra. Entre a
relação lésbica e os maus tratos impetrados pelo seu marido, a escolha coletiva foi de culpar a
mulher lésbica, uma clara forma de obstáculo determinado pela condição interseccional por ela
vivida. A dedução (pro domo) a qual o marido chegou sobre o fim do casamento fora a mesma
da cidade, ao perceber o aumento da intensidade das visitas de Lina à loja que Sissi trabalhava,
o que fez com que a informação da relação romântica, mesmo antes que acontecesse de fato o
compromisso realizado pelo pedido de namoro, já tivesse sido presumida por moradores locais.
Pouco tempo depois de ter se separado do marido, sua ex-cunhada a encontrou na rua, parada
sob sua moto e aproximou-se xingando-a e a empurrando, enquanto perguntava-lhe por qual
motivo ela havia deixado seu irmão por uma mulher. Lina não confirmou as suspeitas de sua
ex-cunhada, mesmo assim, apanhou (e bateu) por conta disso.
A ideia do alastramento semelhante a um fogo em palha seca é, de fato, um efeito a
ser ressaltado no ambiente dos zoneamentos urbanos em localidades rurais. O conhecimento de
uma sexualidade desviante, por dedução ou informação, provoca um momento rápido de
transmissibilidade, pela via da fofoca, que é sentido pelas meninas, como tendo ampla eficácia
ao ponto de não sobrar mais pessoas desinformadas. Uma espécie de efeito dominó que segue
menos a lógica de um enfileiramento linear de peças, do que a da multilinearidade da ação
transmissora dos impulsos de uma pedra a outra num espetáculo de queda de dominós, no qual
um único ato propulsor (a derrubada da primeira pedra) rapidamente se multiplica e se alastrou
por várias linhas de transmissibilidade de impulsos, que funcionam ao mesmo tempo ou em
momentos próximos e que, ao cabo de poucos minutos, nenhuma pedra reste de pé. Entre o
início das visitas de Lina à loja de Sissi e a sensação de reconhecimento público sobre o namoro
das duas por parte da maioria da cidade, não foi preciso esperar muito. Muito rapidamente, a
maior parte do espaço social passa ser vivido como potencialmente perigoso e poucos espaços
sinalizam a sensação inversa. É preciso destacar a singularidade dessa ocorrência em zonas
rurais onde a velocidade da transmissão da informação, em um espaço bastante pequeno de
tempo, recobre a quase totalidade dos espaços sociais que lhes são permitidos.
134

O fim do casamento, bem como os aspectos constantes na motivação para tal


ruptura, foram elementos importantes para o afastamento de Lina com as atividades da Igreja.
Lina sentia que não seria mais aceita pelos membros da Igreja pois isso só seria possível se você
é a pessoa perfeita, se você segue as regras da forma que eles ditam, o que não era mais viável
no seu caso. Adicionalmente, repugnava-lhe fazer parte do mesmo ambiente que seu ex-marido
e nem estaria disposta a passar mais uma vez pelo ritual de exposição destinado ao pecador,
penalidade que, diante da separação, foi novamente imposta a ele, que permaneceu atrelado ao
templo. Após a ruptura do casal, Lina foi uma ou duas vezes à igreja, cedendo ao convite do
seu filho que sempre ia aos cultos com o pai. Em suas palavras:

Os irmãos me viam como eles veem os gueis, né? Me viam como um demônio, por
que pra eles eu era um demônio, né? Aí eu ainda os cultos algumas vezes, mas não me
sentia bem porque os irmãos olhavam pra mim de cara feia, aí eu fiquei… às vezes eu
ia porque meu filho me convidava: - Mãe, vamos pra igreja? Por que ele também vai
pra igreja com o pai dele.

Ao sair da casa onde morava com o marido, Lina ocupou a casa alta de uma
edificação de sua família e cuja casa baixa abrigava um de seus irmãos. Para acessar a casa que
morava dispunha de uma escada independente, o que lhe garantia certa liberdade de trânsito.
Sissi, sua namorada, morava com sua mãe - que perdera a capacidade de andar devido a um
acidente – e alguns de seus irmãos. Posteriormente, sua mãe se muda para outro distrito do
mesmo município e além de seus irmãos, um de seus primos passa a morar com eles. Dentre os
moradores da casa, apenas Sissi trabalhava e recebia dinheiro para o custeio com as despesas.
Pela sua intensidade na participação na dinâmica da casa, Lina ajudava financeiramente a
mantê-la. Porém, quando um dos garotos trouxe seu namorado para morar junto com eles na
casa, Lina e Sissi sentiram-se economicamente exploradas e resolveram morar juntas,
definitivamente, na casa de Lina. Quando seu irmão, vizinho do andar de baixo, compreendeu
que ali estava despontando uma situação de união estável entre o casal, elas passaram a ser alvo
de sua atenção e objeto de mexerico visando alimentar a intriga da família com a garota:

Ele escutava tudo. Ele disse que tinha escutado umas coisas estranhas entre eu e ela e
foi tacar na boca da mãe. Aí chamou minha casa de templo de satã, como ele é
evangélico, né, e não sei o quê... que eu tava com a Sissi, incomodando o sono dele,
que tava um barulho lá em cima, disse que escutou tudo.
135

Apesar de jamais ter concretamente enunciado a sua mãe ou a qualquer de seus


irmãos que ela era lésbica, eles sabiam e desde esse reconhecimento há uma ruptura com parte
dos membros de sua família que, de acordo com ela, foi sustentada pela sua própria mãe:

Família é foda! Família, quando eu me assumi, a primeira que se afastou de mim foi
minha mãe. Foi total, total. Não me apoiou em nada. E aí foi a primeira pessoa que
começou a se afastar e depois veio os irmãos. Uma irmã ainda falava comigo, mas de
uma certa forma eu me sentia rejeitada, entendeu? Aí começou a ter natal e ano novo
só eles, eu não era convidada, eu fiquei de fora, entendeu, a ovelha negra da família,
não vamos convidar a Lina, porque se a Lina vier eu não venho, alguns irmãos diziam
isso… se a Lina tiver presente eu não vou… e aí, mãe? A senhora vai preferir quem,
fulano ou fulano? [E a mãe respondia] não, a minha casa está de porta aberta, mas de
certa forma eu sentia rejeição por parte dela, entendeu? Antes Renata, eu chorava
muito por causa da rejeição da minha mãe. Eu não conseguia nem falar como eu tô
falando agora, eu não conseguia nem falar… quando eu tocava no nome de mãe eu
chorava, por que eu sentia falta, entendeu? Ai pronto, ela começou a me isolar de tudo,
minha própria mãe… meus irmãos. Ela começou a influenciar que eu não tivesse
amizade com meus irmãos, por causa da minha opção, entendeu? Isso foi muito
doloroso pra mim, muito!
Ela via eles se afastando e não dizia nada. E aí ela sempre teve esse afastamento total,
entendeu? Sempre falou comigo, mas assim…. Oi, dá benção e pronto. Depois disso,
né? Foi muito difícil pra ela também. Eu entendo né? Por que eu era um projeto. E aí
foi uma decepção pra ela. Ainda hoje ela me vê como uma decepção pra família. Ainda
hoje eu não sou convidada pra nada na família, até hoje. Aqui, meus irmãos moram
tudo aqui nas redondezas, eu posso ir a pé pra casa de alguns, só que eles não me
convidam. Minha mãe vem, vai pra casa deles. Eu nem sei que a minha mãe tá aqui
em Fortaleza, por que ela não me diz, entendeu? Aí de um tempo pra cá e passei a
ligar o foda-se pra minha família… eu não dependendo da minha família pra mim
querer ser o que eu quero ser, entendeu? Eu não vou depender de família não, eu vou
lutar sozinha, viver, entendeu? Eu tenho alguém que me ajuda, eu tenho base, eu tenho
estrutura pra fazer isso, digamos, né? E liguei o foda-se pra família. Ninguém me
procura, ninguém liga e estou bloqueada no WhatsApp de todo mundo. De 11 irmãos,
não tem um que eu não esteja bloqueada no WhatsApp dele. Tem um grupo da família
que alguns disseram que se eu entrasse, ia sair, aí eu fiquei. Tu acha que eu tenho uma
família? Pra mim dizer que eu tenho uma família? Eu acho que corre aqui ó
(apontando para as veias do braço). A família é quem está no presente, quem tá
ajudando, quem tá dando apoio, entendeu? E eu não tenho isso. É eu e eu de novo,
entendeu?

Ressalto que, até nosso último encontro, tal fratura jamais havia sido superada por
completo. Em todos os nossos encontros, Lina ressentia-se da perda do convívio ou do mau
convívio com seus irmãos em especial daquela cuja idade lhe é próxima e que foi seu parceiro
mais chegado desde os tempos de ajuda na fazenda e que também foi seu associado no trabalho
com venda de óculos, sendo responsável pela parte de cobrança. O tempo decorrido entre o
início de sua relação com Sissi e o estabelecimento de sua ruptura com a família não demorou
3 meses; em compensação, as fraturas com seu núcleo familiar, determinadas por motivações
homofóbicas, existiram desde um ano e meio antes de eu iniciar minha pesquisa e persistiram
136

durante nossa convivência de cerca de quatro anos de duração, perfazendo um espaço de tempo
de mais de 5 anos.
Quando estavam em presença de Lina, as pessoas de sua família buscavam saciar
sua curiosidade sobre o sexo lésbico. Suas irmãs, sua mãe e mesmo seu pai, por vezes lhes
faziam perguntas indiscretas e sob forma de chacota, acerca do modo como o casal realizava o
ato sexual, ao mesmo tempo que indicava que este só poderia se realizar sobre o signo da falta:
“você não sente falta de levar uma pombada não? Quem é o homem da relação? Usam algum
brinquedo de plástico?”, foram perguntas a ela dirigidas.
Lina tomava tais questionamentos como afronta, já que muitas vezes foram
realizados diante da presença de pessoas que não eram da família, o que para ela atesta a
agressão dos comentários que tinham por função estabelecer um ato vexatório. Além do mais,
Lina intuía que tais comentários funcionavam como uma certa forma de blindagem da família
em relação a um possível diálogo sobre sua trajetória lésbica. Essa sensação era especialmente
dolorosa quando acontecia com sua mãe, posto que, de acordo com ela:

Às vezes eu sinto a necessidade de conversar com a minha mãe, pra ela entender. Eu
não quero dizer pra ela: “mãe eu sou sapatão!” Eu não quero dizer isso pra ela, porque
magoa, mas conversa abertamente. Às vezes a minha mãe vem com uma pergunta tão
absurda pra mim, Renata, que eu fico assim… como é que eu vou conversar sobre isso
com a minha mãe?
Ela diz assim: minha filha, como é lá na hora? O que é que você faz com a mulher?
Quem é o homem? É tu que é o homem, ou é ela que é o macho?
Aí eu fico assim... mãe não é assim que começa uma conversa! Ela nunca deu espaço
pra conversar sobre o que foi que aconteceu comigo, entendeu? Ela sempre me dizia
assim ó: como é que você transa com uma mulher? Aí não tem como eu dar espaço
pra “mim” contar como foi que aconteceu.

Talvez Eribon (2018) tenha razão ao alertar sobre a preocupação das pessoas em
relação ao sexo homossexual, mais do que questões relacionadas à homossexualidade em si. E
é provável que Lina tenha razão ao dizer que esta preocupação serve como forma de barrar uma
discussão mais importante, que seria aquela sobre a possibilidade mesmo da existência de
relações apaixonadas entre pessoas do mesmo sexo. Fala-se do que há de mais íntimo, em tom
de escárnio e espanto, para que não seja possível falar do que aparece na superfície, a olhos
vistos por qualquer um que resolva enxergar. Ressalta-se que a curiosidade em torno dos atos
sexualizados das meninas por parte de suas mães aparece em três, entre as quatro trajetórias de
vida pesquisadas. E ela não se restringia apenas aos membros da família, já que as meninas
puderam flagrar seu vizinho, mais de uma vez, escondido, espiando a vida do casal.
Uma das coisas importantes na fala de Lina acerca da impossibilidade de
privacidade visível no olhar curioso e na língua afiada de seus vizinhos mais próximos ou
137

distantes, é que mesmo que ela não tenha sido capaz de controlar a revelação de seu segredo e
que tenha sofrido as consequências da ruptura com o papel social heteronormativo, ela
encontrou meios de negociar consigo mesmo algum valor positivo em tal situação: a revelação
da sexualidade desviante feita à revelia do sujeito que vive em zonas rurais, de algum modo,
pode vir a se beneficiar-lhe, o livrando da necessidade de prestar contas de sua vida a cada
encontro, ou de viver no armário, diminuindo a intensidade do mal-estar causado pela
necessidade estratégica de gestão de ocultação de sua sexualidade desviada e a libera para a
construção de novas paisagens. Sobre os boatos que correram após o fim de seu casamento,
disse:
Eu não vou esconder o que realmente eu quero: eu quero é viver com uma mulher.
Isso, ó, há tempos eu quero isso. Aí eu peguei e deixei se alastrar (…). Eu me sentia,
por causa da minha família na Igreja, um pouco envergonhada, entendeu? Só que aí
eu fui me entrosando com os meninos...

Os mexericos da cidade a seu respeito acabaram por criar uma situação na qual não
seria mais possível negar o que estava acontecendo e esta espécie de liberação facilitou sua
ampliação de amizades que deram algum tipo suporte e sentimento de pertença. Aqui penso em
um texto de Daniel Lins, a respeito do surf e do “jogo ideal” que o surfista estabelece com as
ondas. Em suas palavras, o surfista

Brinca de brincar com a onda excedendo os limites da própria onda e de suas regras
não estabelecidas. Sua ação poderá superar a chegada da onda, fazendo dos limites o
lugar de transmutação da conformidade e da violência da calma da própria onda.
Superar regras e limites é o que Deleuze nomeia O jogo ideal e que, pessoalmente,
chamo um movimento louco para um jogo ideal.
Jogar para além do acaso, no acaso das próprias ondas, é uma arte, um conhecimento
de seu corpo e do corpo da onda: gorda ou magra, ela tem um corpo, um corpo sem
órgãos, uma leveza ativa, que é a própria leveza do ser em devir. Um limite vale tanto
pelo que contém quanto pelo que rejeita, e marca a sedentaridade do surfista à espreita
da boa onda. Se o surfista é o “sedentário do esporte”, é parado que ele se movimenta
mais: parar é ter o corpo em movimento, em articulações e namoro com a onda. (LINS,
2009, s/n)

É, portanto, de modo quase inerte que Lina deixa a onda de fofocas se espalhar e é
também em torno dessa onda que se torna possível o movimento de integração de Lina em
relação ao Vale, conforme indicado na fala acima e também em outros momentos de conversa:

Minha primeira amizade assim, de amigos, era o Mark. Ele era o amigo carne e unha
da Sissi. E o Mark, ele sempre foi assim, completamente aberto e aí ele falava mesmo,
dizia mesmo. Aí quando eu comecei a ser amiga do Mark, veio os outros meninos e
aí eu comecei a me sentir mais dentro. Eles falavam da forma como eles se sentiam,
entendeu? Pra “mim” se sentir também, que isso não era uma vergonha pra mim, que
138

era uma coisa minha, que eu tinha que colocar pra fora, mas não era daquela forma
depravada, era de uma forma mais social. A gente sempre tentou viver de uma forma
que não chamasse muita atenção da sociedade, entendeu? Tinha uma hora que a gente
era mais depravada, tinha uma hora que a gente era mais social e essa convivência
com ele. Tipo... eles fortaleceram a minha sexualidade, a aceitar o que eu era. Era
aquilo que eu queria, aquele meio ali, era o lugar onde eu tava que eu me sentia bem,
quando eu tava com eles eu me sentia eu mesmo, entendeu? Eu não consegui me ver
assim quando eu tava só, eu não conseguia me ver como eu me sinto. Mas quando eu
me encontrava com eles, eu me reunia, eu já me sentia mais, entendeu, eu já me
sentia... Tava nem aí, podia falar podia dizer… Tipo o irmão, porque antigamente eu
frequentava a igreja, né? O irmão podia passar, podia falar e eu assim... foda-se!
Quando eu tava com eles eu me sentia mais assim, mais solta, entendeu?

Como demonstrado em sua narrativa, esta aproximação dependeu da negociação de


universo organizado em torno de um ethos religioso em contato com uma outra forma de
organização coletiva de subjetividades. Portanto, tal aproximação não foi feita sem
estranhamentos ou por adesão imediata:

Eu fui criada, desde os sete anos de idade na igreja, eu não sei o que é outra coisa na
minha vida e até pra se adaptar aos meninos foi muito difícil. Hoje eu sou totalmente
rasgada, entendeu? Antigamente os meninos diziam assim…. Vá dar seu cú! E eu
ficava assim, meu deus mandou eu dar o cu, eu ficava assustada.
………………….……………………………………………………………………
E eu dizia não vou, ficava com raiva, vinha embora, deixava eles na praça, eu não
quero palavrão. Eu pegava muito né? De uma certa forma, no começo era muito, muito
possessiva com essa criatura (referindo-se à Sissi) né? Muito, até falar nome feio com
os meninos eu ficava com ciúme. Aí teve essas coisas tudo e ela suportou até hoje pelo
amor de Deus, mas no começo eu ficava muito... eu tinha muito medo. Aquela coisa
era nova pra mim, hoje não, hoje não, hoje eu mando todo mundo ir dar o cu se for
possível, mas naquela época eu era assim, eu tinha medo. Eu venho trazendo uma
criação diferente, é só aquela coisa que tudo vai dar certo, que Deus é que tá na frente
de tudo, só Deus quem faz isso. Eu sei que é só Deus que faz, certo? Mas tem as
vontades da gente né? Tem a gente, tem as vontades, os desejos. Ai hoje não, hoje eu
sou rasgada mesmo.

Outra importante ponte que foi erguida para lhe dar suporte a sua existência lésbica
foi o próprio relacionamento com sua namorada, que se sabia lésbica e tinha o Vale como seu
principal apoio. Sua relação com Sissi também foi fundamental para que ela pudesse estar
melhor consigo mesma, na condição de mulher lésbica:

Ela [Sissi] já tinha vivido algumas coisas só que era às escondidas, né? Aí ela já tinha
beijado outras meninas, mas nunca assumiu pra sociedade. Ela dizia que a sociedade
deduzia o que ela era, por que ela andava com os meninos, que eram, pra sociedade,
viados e ela era sapatão. (…). Aí quando a gente se conheceu foi a época que era
aceitação, era nós duas. Nós tínhamos que sair do armário. Aí ela disse que foi uma
época que eu ajudei ela, a ela sair do armário, a aceitação do que ela é hoje né, de se
aceitar mais, de se assumir. Assim... tanto ela me ajudou, quanto eu ajudei ela, a gente
enfrentou a sociedade e isso a gente nunca vai esquecer que eu sei que não, a gente
enfrentou a sociedade juntas. (…). Esse processo de aceitação foi muito importante
pra mim, porque ela me ajudou muito. Ela dizia assim, Lina, você é assim, você é
139

assim e tal, você tem que ser assim e foda-se quem acha que não deve. E vamos viver
e pronto. Antigamente ela tinha até medo, né? … quando começou. Eu queria andar,
pegar de mão e ela não queria porque tinha medo da sociedade. Eu não, antigamente
eu já queria andar de mão dada. Era foda-se mesmo, entendeu? Vamos andar de mão
dada! Mas começou só assim…. Eu lembro.

Adicionalmente, a sua imersão no universo lésbico foi bastante facilitada pelo uso
de redes sociais na Internet. Lina frequentemente solicitava amizade virtual de garotas que
encontrava no Facebook, em uma busca ativa dentro do seu universo de contatos. As relações
de amizade com as amigas de seus contatos nas redes sociais, por vezes evoluíam para a troca
de números telefônicos e se estendiam ao WhatsApp e uma vez que conseguisse acumular um
certo número de amizades, Lina combinava a criação de um grupo onde estas amigas pudessem
chamar outras para integrá-lo. Pude tomar parte em um desses grupos, composto por mulheres
lésbicas de vários lugares do país. O ritual de entrada no grupo determinava que cada garota se
apresentasse, dizendo seu nome, sua idade e o lugar onde moravam, junto ao envio de uma foto.
A conversa era livre e relativamente esporádica. Se uma menina narrasse suas desventuras de
amor, as outras se punham a dar conselhos. Uma vez encerrado o debate, um período de inércia
se seguiu. Num destes momentos de calmaria, Lina abandonou o grupo: tava fraco demais,
disse-me. Permaneci por mais algumas semanas no grupo, antes de me retirar e observei que,
apesar do decréscimo nas trocas comunicativas quando comparada à explosão de trocas
comunicativas estabelecidas no princípio da formação do grupo, muitas vezes as garotas
tornaram a falar entre elas, pedindo conselhos a respeito dos problemas amorosos pelos quais
passavam. Apesar da deserção de Lina em relação ao grupo por ela criado, difícil ignorar o fato
de que foi ela, vivendo em uma zona rural do nordeste do Ceará, que, em algum momento,
compôs e administrou um grupo de lésbicas que, vindas de diversos lugares do Brasil,
permaneceram se comunicando-se entre si, a despeito de sua ausência.
Para ela, estas relações funcionavam como uma rede de suporte que ela não
conseguia encontrar em outro lugar. Em sua percepção, entre as garotas que passou a conhecer,
muitas delas precisam de atenção e que, quanto mais atenção a gente der, melhor. Sissi, sua
namorada, confirma a positividade de tais amizades, entendendo que nestas relações é possível
ter alguém que converse, né? Não só pela paquera. E Lina continua:

Pra desabafar, muitas meninas chegavam pra mim pra desabafar.


…………………………………………………………………….…………………
Eu me comunico com muitas delas, mas separadamente, eu desfiz o grupo, porque aí
começou aquela coisa de ficar fraco, não sei o que, aí hoje eu converso mais
individualmente. Converso com umas aí. (…). De tanto conversar, de tanto eu ouvir
elas, isso eu acabo trazendo pra mim também, pro meu relacionamento, entendeu?
140

As meninas dizem assim, ah eu passei por isso, aí eu fui traída, por que ninguém quer
ser traída, eu não quero. [Elas dizem] Eu já fui traída, eu fui decepcionada e eu começo
a conversar. Isso ali eu tô passando, isso que eu tô vivendo, entendeu? É como se eu,
assim... eu tô vivendo isso E aí eu vou passar para elas, entendeu?

Como disse Miskolci (2017), para pessoas de cidades médias, pequenas e rurais, as
plataformas digitais estenderam o circuito de sociabilidade homossexual criando condições de
sociabilidade para aqueles que não conseguem acessar guetos, ou outros espaços de
sociabilidades LGBTIA+ e Lina, morando em uma zona rural nordestina, organizava grupos de
ajuda, enquanto se ajudava. Para Lina, a rede foi uma possibilidade ativa em seu processo de
socialização lésbico. Sua atitude ajudou a promover a mesma oportunidade a outras garotas de
muitos lugares do Brasil, muitas das quais residentes em capitais ou cidades bem maiores das
que ela habitava. Se seu namoro e sua amizade com os meninos da praça não lhes supria a
carência de informações sobre a existência lésbica isso foi suplantado e por ela inflado, a partir
de contatos virtuais (e bastante reais), que, além da troca de experiência, lhes indicou outros
elementos atuantes no percurso de construção de sua identidade. Vale notar o seu desejo de
transformação estética, já que pretendia ter o cabelo raspado do lado, como o usado por muitas
lésbicas que ela observava e conversava através do Facebook. Não tendo coragem de aderir ao
Look estando em Promessinha, a transformação estética aguardava o momento da esperada
migração para a capital.
Apesar de que Lina constantemente tenha se narrado rasgada - cuja tradução
significa assumir-se publicamente e não se utilizar de estratégias de ocultação de estigma -, na
realidade, sua vida desenrolava-se de modo diferente. Quando na ocasião de nosso primeiro
encontro, embora todos da cidade soubessem de sua relação, durante sua permanência na praça,
na pizzaria ou na praia, procedia de modo a acobertar a sua homossexualidade, suprimindo de
qualquer sinal indicativo de uma relação amorosa, tal como abraçar, acarinhar ou beijar sua
namorada. Exprimia reserva também diante de seu filho que, sob a influência do pai, chegou
diretamente a lhe perguntar se ela era sapatão, recebendo uma negativa como resposta,
estratégia clara de encobrimento de sua relação amorosa. E, como dito, reservava-se até mesmo
na escolha do corte de cabelo, alternativa ao modelo almejado.
Todos os avanços no sentido de uma assunção lésbica dependeram de negociações
bastante sutis de Lina consigo própria e com seu entorno social. As múltiplas forças as quais
estava submetida: a influência de sua religiosidade; a homofobia de muitas pessoas na cidade e
a necessidade de permanência em seu emprego; os conflitos familiares; sua maternidade e o
medo de perder a guarda de seu filho, apesar do avanço no campo dos direitos; dentre outras,
141

determinavam a bitola entre seu desejo de mais expressividade e a sua assimilação/integração


nos diversos espaços sociais nos quais circulavam.
No início do namoro das garotas, as duas chegaram a fingir que não se conheciam
quando se encontraram em um comércio da localidade. Tempos depois de terminado o efeito
dominó que revelou à maioria dos moradores a relação entre as garotas, elas conversaram sobre
a possibilidade de caminharem de mãos dadas, tendo sido capaz de realizar tal feito, de modo
paulatino e progressivo, durante o segundo ano de namoro. Lina narrou essa história mais de
uma vez, exibindo bastante orgulho em tê-la vivido: no início foi só com o dedinho mindinho,
depois foram esses dois dedos, - falou-me mostrando o dedo anelar e o mínimo, enquanto os
outros permaneciam recolhidos na palma de sua mão - aí depois esses três, - disse-me ao
mesmo tempo em que estendia o dedo médio junto aos outros dois e, em seguida, trazendo o
dedo indicativo junto aos demais… e hoje são esses quatro.
Na segunda vez que Lina me contou essa história, eu havia dormido em sua casa
após o retorno da festa da Eleição da garota Gay de Promessinha. Na manhã seguinte, Lina
estava comemorando o ato que para ela, na ocasião, foi considerado como uma atitude de
grande ousadia na cena pública da localidade: um selinho que deu em sua namorada enquanto
atravessamos a praça no retorno da festa para sua casa, no início da madrugada. Na ocasião,
após o beijo, a garota me chamou atenção e disse: Renata, você presenciou o meu primeiro
selinho na Sissi, aqui nas ruas de Promessinha. Naquele instante, olhei para os lados e não vi
ninguém além de nós, ali, naquela praça.
Talvez sua comemoração revelasse uma prestação de contas consigo própria, ou
talvez comigo, tentando me mostrar uma ousadia que poderia ser cara à minha pesquisa. De
todo modo, no dia posterior, ao relembrar a alegria do avanço em sua liberdade, lhe questionei
se as mãos dadas, por mim já observadas, não seriam mais ousadas do que o rápido beijo da
noite anterior. Em uníssono, Lina e Sissi responderam com um prolongado e entusiasmado
“siiiim!” que se seguiu à narrativa de Lina sobre a evolução do caminhar de mãos dadas. Entre
a alegada “rasgação” e a discrição, havia um meio termo que dependia da negociação com sua
rede de relacionamentos, incluindo o que estaria disposta à sua namorada, que idealizava uma
vida mais discreta.
Que não se possa acreditar que antes dessa aparição mais ousada na cena pública da
cidade a vida lésbica de Lina seguia em segredo. Após a separação de seu marido, a garota pode
ter acesso às redes sociais e a partir de seu uso manifestava o de fato de namorar com outra
mulher, tornando-se, de certo modo, protagonista de sua própria história (Cf. MISKOLCI,
2017). O uso de redes sociais como plataforma na qual poderia tornar visível sua vivência
142

amorosa foi um dos artifícios usados por Lina (bem como por todas as outras lésbicas
entrevistadas).
Lina narrou que, normalmente, nesta rede social, as mensagens eram de apoio ao
casal, embora percebesse que, na rua, permanecia uma atmosfera de olhar crítico em relação à
sua homossexualidade. Obviamente, nem todos da cidade agiam da mesma forma e Lina chegou
até a receber elogios de uma amiga da Igreja, pela coragem de largar o casamento com o pai de
seu filho e assumir uma relação com outra mulher.
No dia em que a conheci, Lina disse-me que as vendas que ela realizava no seu
trabalho estavam indo bem, apesar dos riscos determinados pela sua separação e pelos boatos
que a seguiu. Demonstrou ar de orgulho e surpresa ao narrar que seu patrão, evangélico, nunca
tinha tido atitudes discriminatórias a seu respeito. Ao contrário, de acordo com ela, se ela lhe
pedisse, ele lhe emprestaria a sua casa para seus encontros românticos, posto que diversas vezes
o casal havia sido convidado para compartilhar alguma refeição com o dono da ótica e sua
esposa. Apesar da benevolência em relação à sexualidade de Lina, não se pode deixar de lado
o fato de que o montante de dinheiro que ele pagava à garota era sempre variável e dependia,
exclusivamente, de um percentual preestabelecido na venda de cada óculos. O percentual ao
qual Lina tinha acesso não se tratava de um adicional a um possível salário-mínimo, já que este
sequer existia.
Com o tempo, seus clientes lhes fecharam as portas, diminuindo significativamente
a quantia de dinheiro que recebia, afetando, inclusive, a própria “saúde financeira” da ótica, o
que a fez se desligar do emprego. Desempregada, Lina passou a fazer bicos como mototaxista
e eventualmente ganhava algum dinheiro quando conduzia o ônibus escolar. A pensão que
recebia do ex-marido, motorista de caminhão de entrega de loja de departamentos, somava-se
o seu lucro diário de cerca de R$10,00, R$ 15,00 julgado por ela como inadequado a seu
sustento e insalubre, já que feito sob o sol escaldante do litoral cearense. Apesar de maltratante,
mantinha tal atividade, para colaborar com sua companheira nas despesas da casa já que Sissi
era a única que estava empregada, ganhando menos de meio salário-mínimo. Importante atentar
para a situação de salários abaixo do que mínimo determinado por lei, encontrada em todas as
garotas entrevistadas que trabalharam em algum comércio em na localidade.
Diante de seu desemprego, crescia o seu desejo de ir para Fortaleza, vontade
declarada desde o nosso primeiro encontro. Enquanto realizava bicos, permanecendo em
Promessinha, buscava encontrar um trabalho remunerado na capital, através de conhecidos que
residiam na capital, ou por anúncios que ela encontrava na internet. A existência de seu filho
lhe obstaculiza uma viagem prolongada à Fortaleza para que essa busca fosse realizada de modo
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presencial e com a dispensa de possíveis intermediários. Onze meses se passaram e o emprego


não surgia, nem mesmo em Promessinha.
Porém, surge uma oportunidade concreta quando uma amiga de sua mãe, membro
da igreja que ela havia frequentado, a chamou para ficar um tempo em sua casa em Fortaleza,
até que arranjasse um emprego. A oferta da amiga da família contrastava claramente com o
silêncio e o distanciamento de seus irmãos residentes na capital. Certo dia, quando eu lhe
perguntei sobre quantos eram eles e onde moravam, ela queixou-se do fato de que, tendo 06
irmãos residindo na capital, nenhum havia lhe estendido a mão quando precisou de apoio em
relação ao seu desejo de ir para Fortaleza tentar procurar um emprego, algo que teria sido feito
por alguém que, naquele momento, ela considerava um anjo em sua vida e que não fazia parte
de sua família ou, sendo mais precisa, era uma parente distante, prima em segundo grau de sua
mãe.
Lina deixou seu filho sob os cuidados do pai dele, porém, duas semanas depois ou
pouco mais, o garoto tem uma forte gripe e o pai dele ordena que ela volte, argumentando que
quem deve cuidar do filho doente é a mãe. O sonho de empregar-se na capital fica adiado.
Um mês após seu retorno à Promessinha, tendo seu filho se curado, sua irmã mais velha reativa
o convite de ajudá-la, sob esta condição: Lina passará a morar em sua casa, sendo babá de seu
sobrinho, durante o período diurno, por um salário de R$ 600,00 (cerca de 60% do mínimo
previsto por lei à época), somado ao valor total de um curso técnico de auxiliar de enfermagem,
cujo desenrolar se daria por três anos, durante os finais de semana, ao custo de 250 reais por
mês. A irmã de Lina determinava também que a garota estivesse disponível aos cuidados de seu
filho durante suas noites de plantão no hospital, não importando qual dia fosse.
O acordo estritamente verbal, em princípio, pareceu a Lina uma grande
oportunidade. No momento em que conversamos, quando ela esteve em minha casa, ela
entendia, conforme dissera sua irmã no momento da oferta, que se tratava de uma ajuda mútua.
Para ela, este convite seria um reflexo da benevolência de sua irmã, ao ver sua situação de
desemprego que a fazia ficar pedindo a um e a outro. Lina via a capital como

Como uma oportunidade de crescer profissionalmente, de crescer como pessoa, de ser


reconhecida, entendeu? Ter uma profissão. Eu coloquei isso na minha cabeça no final
do ano, que eu queria ser começar o ano sendo outra pessoa, tendo outros gostos,
querendo evoluir.

Seus planos pessoais incluíam aceitar a oferta de sua irmã em relação ao curso de
auxiliar de enfermagem e ao emprego proposto, podendo este último ser descartado caso ela
pudesse vir a conseguir melhores condições financeiras. Tendo aceito a proposta de sua irmã,
144

Lina mudou-se para Fortaleza, passando a morar e trabalhar na casa de sua irmã, em agosto de
2017.

5.4 Fuga para a cidade.

Com aulas previstas para janeiro de 2018, no mês seguinte, o curso de auxiliar de
enfermagem ainda aguardava a abertura das aulas, adiada por falta de matrículas. Passados sete
meses na capital, Lina ainda não havia conseguido se empregar formalmente e continuava sob
o regime de trabalho imposto por sua irmã. Sua folga quinzenal permitiu-lhe que fosse visitar
seu filho e sua namorada Sissi, que permaneceu morando em sua casa, aguardando o momento
em que Lina conseguisse um emprego que lhe permitissem ficar juntas em Fortaleza.
Nos primeiros cinco meses, seu filho ficou sob os cuidados de sua mãe que, após
algum tempo, passou a demonstrar descontentamento com a responsabilidade dos cuidados da
criança, lhe cobrando uma solução ao mesmo tempo em que apontava para sua resolução ao
dizer: Lina, esse menino tem pai. Lina tinha razão ao dizer que se mudar para Fortaleza foi um
processo muito complicado por causa do filho, porque quando a gente é mãe, tudo é mais
complicado. Com quem vai deixar o filho? Mesmo que não fizesse parte de seus planos iniciais,
após o declínio da ajuda por sua mãe, ela conseguiu o consentimento do ex-marido sobre a sua
responsabilidade nos cuidados com a criança até que ela pudesse se organizar, levando o
pequeno Arthur para morar com ela em Fortaleza. Causava-lhe nervosismo a possibilidade de
que o pai de seu filho o tratasse com violência.
Se o desejo de ter o filho ao seu lado em Fortaleza sempre esteve de pé, o mesmo
não aconteceu em relação ao seu namoro. No mesmo período que Arthur mudava-se para a casa
de seu pai, também começavam a mudar os planos de Lina e Sissi: a distância imposta pelos
encontros quinzenais e a moradia na casa de sua irmã pouco afeita à homossexualidade de Lina,
imprimiu uma dinâmica com a qual o casal não conseguiu lidar. As brigas entre as meninas
tornaram-se frequentes, em especial as motivadas por ciúmes - já que, segundo Lina, Sissi
acreditava que na capital Lina poderia ter as mulheres que quisesse – que se somaram aos
conflitos em relação às expectativas de cada uma delas sobre sua moradia conjunta em Fortaleza
que, pelo desejo Sissi (e ainda de acordo com Lina), não deveria incluir Arthur. Tais
circunstâncias determinaram o fim de sua relação.
Na casa de sua irmã, por vezes encontrava os membros de sua família. Certa vez,
um de seus irmãos pediu-lhe o telefone emprestado para que pudesse falar com a sua namorada.
O namoro de seu irmão com a garota não foi adiante, mas a amizade de Lina com sua ex-
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cunhada, sim. Lina havia salvo o número telefônico em sua agenda e passou a procurar sua ex-
cunhada para que pudessem conversar de vez por outra. E a amizade das duas evoluiu para um
namoro, segundo ela, aproximados 15 dias após o término com Sissi.
Lina dizia que os problemas de relacionamento com sua irmã estavam superados e
que, neste momento, o convívio era muito bom. De acordo com a garota, sua irmã até estava
contente com sua nova relação amorosa. A opinião da irmã mais velha, pessoa mais bem-
sucedida de sua família, influenciava a todos os outros membros. No carnaval do ano de 2018,
Lina chegou até mesmo a levar sua nova namorada, Olga, para Promessinha, apresentando-a a
seu filho e aos membros de sua família que lá se encontravam.
Pouco tempo depois, a boa relação entre as irmãs começa a se esgarçar quando Lina
passa a querer organizar um horário de trabalho que lhe permitisse algum turno de folga. Sua
pretensão seria a de poder sair durante a noite, quando seu sobrinho estava sob o cuidado de
seu pai e de sua irmã mais velha, após ela ter passado o dia cuidando da criança e das tarefas
domésticas de manutenção da casa de sua irmã, que não haviam sido previstas no contrato
verbal estabelecido por ambas, mas que lhe foram exigidas. As saídas à noite para a casa da
namorada começavam a tornar-se problemáticas e em suas folgas quinzenais, tinha que se
dividir entre dar-lhe atenção ou ir à Promessinha visitar seu filho. Mesmo que sem o
consentimento de sua irmã/patroa, em algumas ocasiões em que esta estava em casa, Lina
ousava sair para encontrar sua namorada. A repetição da atitude insubmissa fez com que sua
irmã lhe dispensasse do serviço, inclusive deixando de pagar pelos dias trabalhados antes da
dispensa e escusando-se ainda de acertar possíveis valores proporcionais referentes a férias ou
o 13º Salário, em um contrato que jamais teria previsto tal quantia, posto que, desde sempre, em
desconformidade com o mínimo exigido para a obtenção dos serviços de um trabalhador e
alheio a qualquer direito estabelecido por lei. A ruptura na relação de trabalho com sua irmã
piorou sua relação com os demais membros de sua família. O desenrolar dos episódios de fim
de contrato, foi por ela assim descrito:

[O rompimento com o trabalho na casa da minha irmã foi] por que a noite eu não
queria ficar na minha irmã. À noite eu queria ficar com ela [a namorada]. Era meu
relacionamento, eu não podia trabalhar a noite, a noite eu não queria, era meu
descanso. À noite, eu tinha um quarto na minha irmã, que eu saia a hora que eu
quisesse... ela queria que eu ficasse com meu sobrinho. Ele tinha família, tinha pai e
tinha irmã. Só que eles queriam que eu ficasse, eles queriam me prender lá. Só que eu
não era empregada, eu era irmã. Eu podia sair a hora que eu quisesse. Eu tava ajudando
eles durante o dia, mas à noite eu tinha minha liberdade, as vezes que eu queria dormir
aqui com ela, antes de a gente se juntar, aí isso foi desgostando ela também, a minha
irmã. Aí eu peguei e foda-se também… não vou viver presa por causa de uma família
que não tá nem aí pra mim por causa de merreca de 600 reais não, eu vou atrás de
outra coisa, aí foi quando eu saí de lá, entendeu?
146

…………………………………………………………………………………………
[Minha namorada me disse] Lina, tu não vai ficar sendo humilhada pela tua família.
Vem pra cá morar comigo. Quando ela disse “vem morar comigo”, pra mim foi
assim… foi uma boa pra mim, entendeu? Então além da minha família me rejeitar, eu
ainda tava sendo rejeitada pela minha irmã, sofrendo pra ajudar ela e ela não me
recompensava como eu era pra ser compensada. Queria que eu fosse escrava dela, eu
não queria.

Ao ser perguntada sobre ter voltado a se encontrar com sua irmã após a ruptura com
ela, Lina me respondeu que:

Não, porque ela não quis me pagar o mês que eu trabalhei lá. Aí eu me revoltei com
ela, disse que ia colocar ela na justiça. Já que ela me tratava como empregada
doméstica, eu ia colocar ela na justiça. Aí a família toda soube, entendeu, aí foi que a
revolta veio pra cima de mim mesmo, né? Por que ela é vista como a chefe da família,
por que é quem distribui pra família inteira. Ai eu tô precisando de alguma coisa, vai
lá na Lena que ela dá, aí outro… eu tô precisando disso e daquilo, vai lá na Lena que
ela te dá…. Só que eu nunca fui assim, Renata, eu nunca gostei. Nunca gostei que
ninguém me dê nada não, eu prefiro trabalhar. Eu até trabalhei como empregada
doméstica pra ela, porque eu fazia tudo, cuidava do filho e cuidava da casa. E eu era
o que? Pra ela eu era uma empregada, por que ela me tratava como empregada e eu
tratei ela como patroa. À noite eu queria sair, pronto. Se você me quiser, bem, se não
quiser eu vou atrás de outra coisa
Porque eu era irmã, porque eu era irmã, ela queria fazer isso. Aí eu, aí é? Tu quer me
tratar como empregada? Então vou lhe tratar como patroa, a noite eu não quero está
aqui, por que a noite eu não trabalho. Aí começou a se desgostar né, aí simplesmente
disse que eu não fosse mais. Aí você vai me pagar o mês que eu trabalhei e os meus
direitos como empregada doméstica, como você me tratava. Aí ela se revoltou, disse
que eu fosse na justiça, não sei o que… aí ela espalhou na família inteira que eu ia
botar ela na justiça e até hoje a família é revoltada comigo por causa disso, por que eu
mexi na abelha rainha da família.

Embora dissesse não gostar de depender da ajuda de outras pessoas, a saída da


situação de exploração imposta por sua irmã só foi possível com a ajuda de sua namorada, que
a acolheu em sua casa e que, três meses depois, consentiu que seu filho também fosse morar
com elas.
Nesta época, Lina havia terminado o curso de cuidadora de idosos. Ela havia
abandonado o curso de auxiliar de enfermagem que finalmente havia começado optando por
um curso com menor carga horária, que, em sua ideia, lhe favorece mais rapidamente a sonhada
autonomia financeira. Apesar de suas expectativas, ela pouco exerceu a profissão devido às
fortes dores que sentia na coluna, em muito ocasionadas pelo peso dos seus seios, passando
apenas três meses empregada e pedindo demissão, para cuidar de sua saúde.
Após essa experiência, apenas eventualmente conseguia acompanhar, por uma ou
duas noites, algum idoso internado em um hospital da cidade. Desempregada, passou a viver
com o salário de sua namorada junto com a pequena quantia enviada por seu marido, para gastos
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com Arthur. Não raro, o marido deixava-lhe de enviar a pensão alimentícia, determinada por
acordo verbal e quando ela lhe cobrava, ele aproveitava para lhe desqualificar e lhe xingar.
Desempregada, impossibilitada de cuidar de idosos e sob influência e a proteção financeira de
sua namorada, ela passou a estudar para concursos. Até nossa última conversa, em meados de
2021, esta era a situação de Lina, que, em 2020 mudou-se para uma outra cidade, Itaitinga,
distante aproximadamente 30Km de Fortaleza e cidade na qual situava-se a empresa em que
Olga, sua namorada, trabalhava como secretária.
Via de regra, a literatura sobre o armário compreende a ideia de que entre sujeitos
provenientes de pequenas cidades, o processo de aceitação e valoração positiva da
homossexualidade depende de seu processo migratório para cidades maiores, onde são capazes
de construir uma rede de relações de sociabilidade LGBTIA+. Eribon (2008) indica a deserção
dos soldados gueis rurais ao aportar nas grandes cidades. Sagesse (2009) narra que a
autoafirmação dos homens gueis provenientes de pequenas cidades por ele entrevistados
dependeu de sua inserção em um universo LGBTIA+ disponível nos grandes centros urbanos e
lhes favorecendo à construção performática das suas sexualidades em torno de um engajamento
total ou parcial com o discurso presente nos movimentos sociais em prol da diversidade sexual.
Na trajetória de Lina é claramente perceptível um processo oposto ao esperado por
tais narrativas. No momento de sua chegada, o subemprego determinado por sua irmã/patroa
que ordenava sua forma de moradia e do tempo livre, somaram-se a outros obstáculos. Quando
seu filho morava em Promessinha, sua folga quinzenal servia para ir visitá-lo. Estando na
capital, a dificuldade com transporte e as relações de amizades lésbicas, que permaneciam mais
virtuais do que presenciais, também a mantinha longe da vida LGBTIA+. Isso sem considerar
que para ela, estando em uma relação de namoro, ela deveria se manter afastada desses espaços
e da companhia de suas amizades lésbicas.
Foi algumas vezes a shopping centers e saiu uma vez com uma de suas amigas para
um bar não destinado ao público guei, bem perto de onde morava. Na época em que namoravam,
quando Sissi esteve por aqui, foi com ela ao cinema. Sua narrativa deixa transparecer a ausência
de inscrição na cena LGBTIA+ da cidade e até mesmo poucas aventuras na cena urbana da
capital, mesmo aquela não direcionada ao público. Ao ser perguntada pelo melhor programa
que havia feito até o momento do nosso segundo encontro depois que ela havia migrado -
ocorrido num café anexado a um supermercado no bairro periférico Vila Velha, próximo à casa
onde ela morava -, Lina respondeu ter sido a audiência de um show de música sertaneja no
aterro da Praia de Iracema, lugar amplamente utilizado pelo poder público do estado do Ceará
e da cidade de Fortaleza para a realização de eventos culturais e esportivos, dentre outros,
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abertos ao grande público, geralmente de modo gratuito. No mais, pouco circulou, durante os
primeiros seis meses que habitou em Fortaleza enquanto morava na casa de sua irmã. E o
mesmo sucedeu nos meses seguintes nos quais passou a morar com Olga e seu filho.
Relato um tanto distante daquele que, seguindo a trilha metronormativa do armário,
indica a cidade como lugar de acesso e liberdade entre aqueles que, sendo provenientes da zona
rural, encontrariam na cidade. Como bem sinalizou Brandão, 2010, p. 91 e p. 92, a vinda para
a cidade e as incursões nas cenas urbanas favoráveis (ou não) ao público LGBTIA+

Está, todavia, ligada a seu poder econômico. Isto é, a possibilidade de conseguirem


manter um espaço próprio e de sobreviverem através de seus próprios rendimentos.
Assim, se a cidade oferece a muitas mulheres a possibilidade de escapar da vigilância
familiar e da vizinhança, ela implica que elas sejam pelo menos relativamente
independentes do ponto de vista econômico.
………………………………………………………………….……………………
A cidade pode, portanto, representar uma libertação desde que existam recursos
econômicos que permitam sustentá-la. (BRANDÃO, 2010, p. 91 e p.92)

Mas não apenas questões de ordem econômica. Olga, namorada de Lina, nunca
havia tido uma relação com outra mulher. A partir da narrativa de Lina, foi possível identificar
que Olga utilizava a fórmula descrita por Cass (1979) como “caso especial”, não afirmando-se
lésbica, mesmo que envolvida numa relação desta natureza. No início do namoro, Lina chegou
a postar uma foto com sua namorada declarando o seu amor no seu perfil do Facebook. Sua
amada, porém, aconselhou-lhe a discrição como forma de vida e Lina foi, cada vez mais,
assimilando sua aparição de modo assexuado. Seu Facebook, por exemplo, foi silenciado ao
ponto de não mais existir, e antes de sua extinção, na página do seu perfil só era possível
encontrar postagens, poucas, que não portavam qualquer sinal denunciador de seu romance e
sequer de sua sexualidade. Em sua página pessoal, era possível ver mensagens com frases
motivacionais ou de felicitações propagadas pela internet, e quase nenhuma de cunho pessoal.
Além do mais, havia diminuído seus contatos de amizades virtuais, posto que sua preocupação
residia no desejo de aprovação em um concurso público, o que lhe tomava seu tempo em estudos
realizados dentro de casa e em um cursinho que ela havia se matriculado para facilitar-lhe a
meta. Ao lado de sua nova namorada, o universo LGBTIA+ passou, cada vez mais, a lhe ser
indigesto. Segundo ela me disse:

Eu me tornei outra pessoa. Digamos, sabe por que… Vamos chegar na parte que eu
disse que tinha mudado, hoje não, vamos pra antigamente. Quando eu me aceitei, que
eu pá… eu me senti de uma certa forma que eu tinha que fazer…. Que eu tinha que
viver, que eu queria me depravar, eu queria me mostrar pra sociedade que eu podia,
que era aquilo que eu queria e de certa forma eu me depravei. No momento de
149

aceitação, eu me depravei. Eu me depravei por que eu achava naquela época que era
depravação… os meninos às vezes diziam, ei sapatão…. Eu achava isso ali lindo,
lindo, pra sociedade, pra mim… Era uma afronta pra sociedade, eu queria afrontar a
sociedade e eu dizia assim… “ah viado, sapatão”…. No meio da rua! Tudo bem, isso
ali pra mim era uma glória. Aí eu comecei a beber com os meninos, saia pra beber no
final de semana com os meninos, porque eu deixava meu filho com o pai dele. Tinha
final de semana que era com o pai dele e tinha final de semana que era comigo.
Quando era comigo, eu tinha que ser mãe. Era meu final de semana de mãe, eu não
saia. Ai na época que eu saí, né, eu queria me depravar, eu achava que era depravação
naquela época. A pessoa acabou de sair do armário e já tá desse jeito? Por que as
pessoas falavam, fulana já está em tal canto pra beber, né? Fulana tem um filho e é
assim… e eu disse assim: foda-se! É minha vida e eu quero viver.
………………………………………………………………………….……………
Agora assim, quando, depois de tudo isso, depois que eu vim pra cá pra fortaleza,
parece que mudou minha mente, entendeu? Eu mudei de preocupação com meu filho,
de correr atrás, de relacionamento. Por que esse meu relacionamento aqui mudou
muita coisa também, por que ela é uma pessoa totalmente diferente de todas as pessoas
que eu conheci, porque ela era hetero, entendeu? Me conheceu e a gente se envolveu.
Ela sempre gostou de homens, nunca tinha tido relacionamentos com mulheres. A
primeira mulher que ela se relacionou fui eu, então, ela tinha outra perceptividade de
vida que eu comecei a mudar junto com ela. Hoje eu me sinto uma pessoa diferente.

Além da (ou somando-se, ancorando-se e ao mesmo tempo amparando a)


perceptividade de sua nova namorada sobre a vida, Lina também justificava sua atitude de
acobertamento público de sua sexualidade tendo em vista a proteção da imagem diante de seu
filho. Para ela,

Por que eu, como mãe… assim, eu me vejo, de uma certa forma, proteger meu filho,
ou ser mais mãe. Teve uma época que eu sou muito mãe. Acho que essa época, porque
meu filho sofreu muito com o pai dele. Teve uma época que ele apanhava e foi na
época que eu fui buscar, entendeu. Ele tava matando meu filho batendo. Eu esqueci
tudo, tudo, tudo. Meu relacionamento deu uma conturbada, meu relacionamento se
deu por causa do filho, mas se modernizou, entendeu? Eu fui buscar meu filho, tive
uma época só de ser mãe, ser mãe, por que eu não tinha oportunidade de ser mãe,
como eu sou agora, nunca tive e eu estou tendo e é justamente isso que tá me mudando,
entendeu? Não a minha, minha origem, né? Mas meu filho e esse relacionamento.
Então é uma pessoa diferente.

Ao chegar na cidade grande, como dito, a trajetória de Lina parece ter se


desenvolvido de modo contrário ao percurso preconizado pela ascese disponível na literatura
armário. Sua situação de desemprego, somada ao contágio (no sentido dado por Tarde [2007]
como matéria-prima da formação de subjetividades) das ideias de sua namorada, mostrou um
fértil terreno para a desaparição da lesbianidade de Lina na cena pública (mesmo que virtual),
a colocou em um lugar de maior isolamento do que o vivido na zona rural, fazendo cessar,
inclusive, os contatos virtuais que lhes garantiam algum referencial sobre a existência lésbica.
A segregação de Lina também pode ser observada a partir da perda de contato com seus amigos
de Promessinha. Logo que se mudou para a capital, frequentemente Lina conversava com Mark,
150

o único com quem manteve amizade. Porém, durante o primeiro ano da Pandemia, Lina já havia
desativado seu perfil no Facebook e alterado seu número telefônico, não o divulgando a
ninguém do Vale.
Adicionalmente, é bastante evidente que a diminuição das redes de sociabilidade
LGBTIA+ ocorre em simultaneidade a um “regresso” da compreensão que a própria Lina dava
a importância de um enfrentamento social e político das manifestações da sexualidade em
espaços sociais mistos. Se, quando na zona rural, isto era feito através de uma certa empiria,
pouco refletida por Lina, mas motivada pelo fato de não querer esconder-se e orgulhosamente
comemorada por ser capaz de fazê-lo; a migração para a capital acabou por organizar uma outra
pessoa (conforme sua narrativa) cuja personalidade passa a reproduzir o discurso homofóbico
que procura varrer as homossexualidades do tecido social, submetendo-as exclusivamente ao
domínio privado. Um movimento inverso ao esperado por certa literatura do armário, que
pretendeu sinalizar que no topo mais alto do desenvolvimento de uma identidade homossexual
estaria uma certa compreensão acerca das políticas de sexo e gênero constantes em nosso tecido
social e que seria passível de ser acessada com a inserção em espaços de convivência
LGBTIA+, normalmente ofertado nas grandes cidades.
Passados mais de dois anos desde que ela havia decidido vir para a capital, a situação
de desemprego permanecia o que fez com que ela vendesse sua casa em Promessinha, como
forma de obtenção de algum dinheiro para permanecer junto à sua namorada. A última notícia
que tive de Lina, através de Carlos e Mark, dizia que ela não havia mais retornado à cidade e
que, embora eles não tivessem mais tido contato direto com a garota, eles haviam ficado
sabendo, meses antes dessa nossa conversa, que Lina estava morando em Paracuru, praia do
litoral cearense distante 91 km de Fortaleza e 77 km de Promessinha, situando-se a entre essas
duas localidades, lugar no qual Olga nasceu e onde estava a família dela.
151

6 EM LUGAR PEQUENO, A LÍNGUA É MUITO GRANDE: A TRAJETÓRIA DE


BÁRBARA

6.1 Reconhecimentos e enunciações.

No dia do meu primeiro encontro com Bárbara, no ano de 2016, ela possuía 27 anos
de idade. De pele muito branca, de cabelos longos, pretos e ondulados, ela é uma mulher de
temperamento muito tímido e no início de nossas conversas falou-me que estava tão nervosa,
que se sentia trêmula. Única filha mulher de uma família com três filhos, seus irmãos, um mais
novo e outro mais velho, nessa época, moravam em Fortaleza e trabalhavam como segurança.
Seu pai é carpinteiro, o que o faz ter algum ganho apenas quando contratado para realização de
serviços, e sua mãe é agente de saúde, cargo obtido por via de concurso público com todas as
vantagens a ele associadas, tais como renda mensal fixa de cerca de um e meio salário-mínimo12
e certa garantia de continuidade no emprego, pela estabilidade assegurada para servidores
concursados que realizam atividades essenciais para a população em geral. Do ponto de vista
socioeconômico, a estrutura familiar de Bárbara é chefiada por sua mãe.
Desde antes de seu nascimento, sua família frequentava a Igreja Evangélica
Assembleia de Deus o que, de acordo com suas palavras, a fazia participar de uma família
religiosa evangélica, que é bem dura e que determinou algumas características de sua vida, tais
como frequência aos cultos e a organização estética de seu vestuário, posto que, como me disse:
eu nasci na igreja, assim cristã, crente, ia para a igreja, usava sainha e tal, era bem
padronizado. Sua vida em Promessinha, durante sua infância e adolescência, era bastante
organizada em torno da igreja.
Quando perguntada sobre ter sofrido algum processo de exclusão no período escolar,
disse-me que jamais isto teria ocorrido. A memória mais marcante de sua vida estudantil reside
no fato de que suas principais companhias eram meninas que, assim como ela, gostavam de
jogar futebol. A parceria sequer considerava qualquer aspecto sobre sexualidade. A vida escolar
de Bárbara, portanto, não pode ser considerada como uma vida lésbica armário13. Desde os 12

12
De acordo com o Site vagas.com.br, “no cargo de Agente de Saúde se inicia ganhando R$ 1.178,00 de salário e
pode vir a ganhar até R$ 1.605,00. A média salarial para Agente de Saúde no Brasil é de R$ 1.435,00. A formação
mais comum é de Ensino Médio (2º Grau).” considere-se que o valor atual do salário-mínimo é de R$ 1.100,00.

13
Posto que não julgo produtivo pensar em qualquer essência, forma resultante da natureza, para explicar uma
experiência lésbica, a menos que isso faça sentido para a própria pessoa, o que determinaria o valor social que
entra em jogo nas suas construções identitárias.
152

anos de idade até cerca dos 16, ela alimentava a ideia de que se casaria com um homem e é
dentro dessa chave de referência que ela estabelece suas relações de sociabilidade.
As lembranças de Bárbara sobre o processo de aquisição da informação a respeito
da existência de pessoas que se relacionavam com iguais remetem-lhe à sua infância, momento
no qual as pessoas da rua e da sua igreja fofocavam sobre aqueles que era suposto que agissem
de tal modo, considerado como impróprio:

As pessoas da rua ficavam falando muitas coisas, muitas coisas ruins, né? Aí a gente
pensava assim, em qualquer momento que a gente sentisse, a gente pensava, não, isso
tá errado, não posso sentir isso. Era isso. Também por que eu era da igreja né? Eu era
evangélica e tal, eu sou do berço evangélico e tinha esse pouco de preconceito. As
pessoas falavam…. Ai essa daí é não sei o que lá. Esse tipo de comentário que a gente
ouve mesmo, normal. Mas quando a gente é criança, a gente tá formando nossa
identidade ainda, né? A gente fica meio assim… se as pessoas estão falando isso, será
que é certo?

Foi somente entre os 17 e 18 anos de idade, talvez um pouco antes, que Bárbara
iniciou suas primeiras percepções conscientes acerca de seu desejo por outras meninas:

Eu lembro até o momento, eu lembro que eu tava na praça e eu sentia certo tipo de
atração. Eu tinha o que? Uns 17, 18. Eu ainda tava na Igreja, eu ainda usava saia e
tudo. Eu já sentia, mas eu guardava pra mim, eu não posso sentir isso. Eu demorei
muito pra me descobrir, sabe? Eu sempre fui assim, muito calada, muito na minha.

Quando Bárbara percebe seu desejo sexual em relação a pessoas de seu mesmo sexo,
ela passa a avaliar que suas companheiras de esporte, todas ou muitas delas, também seriam
lésbicas, posto que os seus “jeitos” e suas preferências por um esporte predominantemente
masculino as delatavam. Apesar de suas suspeitas, a garota não se sentia encorajada a
compartilhar-lhes o que estava lhe acontecendo. Como me disse:

Eu sentia, mas eu guardava pra mim: eu não posso sentir isso! Eu já me senti atraída
por muitas meninas, mas nunca deixei acontecer, nunca ia atrás. Eu sabia o que estava
acontecendo dentro de mim, mas não tinha essa coisa de ficar falando, de ir atrás. Eu
tinha medo, vergonha. Eu achava que poderia levar um fora e guardava tudo pra mim.
Eu só escrevia né? Que, às vezes, quando a gente tem alguma coisa, às vezes, a gente
escreve. Eu escrevia, às vezes, eu compus músicas.

Eribon (2018, p.27) sinalizou a importância da injúria na moldagem da


personalidade dos indivíduos, nos modos pelos quais os sujeitos passam a se relacionar consigo
próprio e com os outros, sendo ela um componente ativo nos processos de construção de timidez
153

e vergonha. Realçando os efeitos dos atos injuriosos acometidos contra pessoas homoafetivas,
o autor entende que

“Viado nojento” (ou “sapata nojenta”) não são simples palavras lançadas “en passant”.
São agressões verbais que marcam a consciência. São traumatismos sentidos de modo
mais ou menos violento no instante, mas que se inscrevem na memória e no corpo
(pois a timidez, o constrangimento, a vergonha, são atitudes corporais produzidas pela
hostilidade do mundo exterior). E uma das consequências da injúria é moldar a relação
com os outros e com o mundo. E, por conseguinte, moldar a personalidade, a
subjetividade e o próprio ser de um indivíduo.

Mas talvez não haja necessidade de que tais sentimentos tenham sido construídos
por uma ofensa direta. Axia (2003, citada por Esteves, 2012), por exemplo, entende que os
principais componentes da timidez são o medo, o embaraço e a vergonha, sendo o primeiro
deles derivado do olhar que o sujeito lança para seu entorno social e os dois últimos resultam
da forma como o sujeito observa a si próprio, tomando como referência os significados sociais
produzidos no mundo em que ele vive. Oliveira (2019), por sua vez, observa o caráter formador
das situações sociais das quais o sujeito participa - sem que necessariamente este tenha sido
alvo de injúrias – e que se constitui como momento de aprendizagem dos valores sociais de seu
entorno. De acordo com ele, nas situações de interação social e contextos político-culturais:
sentir vergonha perante alguém, compartilhar de vergonha coletiva ou de vergonha alheia, são
formas de afirmação de vínculos sociais que implicam compartilhamento de identidade e
valores (OLIVEIRA, idem, p. 150).
Bárbara foi ensinada a compartilhar da vergonha coletiva reproduzida pela injúria
desferida contra terceiros supostamente homossexuais. E foi sob a luz desse sistema de
classificação pertencente às referências dominantes em seu contexto que ela realizou as
primeiras tentativas de atribuição de sentido ao seu próprio homo erotismo. O modo como a
garota pode olhar para si diante de tais desejos foi atravessado pelo medo e pela vergonha.
Neste sentido, não se pode supor que sua história em torno do armário tenha se iniciado no
momento em que ela foi capaz de perceber seus desejos por outras garotas, guardando para si
os seus sentimentos. Claro que muitas histórias de homens gueis e mulheres lésbicas obedecem
à fórmula descrita por Bimbi (2017) quando este diz que alguém entra no armário no exato
momento em que se descobre homossexual. Mas entrar no armário não significa que o armário
não tenha sido construído antes de tal “descoberta”. A gênese do armário não coincide com o
momento da percepção e consideração do desejo por iguais, embora ele só possa ser
organicamente vivido a partir dela:
154

Não há uma primeira vez para entrar no armário; já nascemos lá dentro. Quando ainda
não sabemos (…), já há um armário construído à nossa volta.
A suposição é o ponto de partida. Supõe-se que esse bebê com genitália masculina um
dia será um homem; que aquele com genitália masculina será uma mulher; que esse
futuro senhor terá uma esposa; que esta futura senhora será a esposa a esposa de algum
senhor. (…) A suposição se transforma num destino com que assumimos como meta,
aquilo que vamos ser quando formos grandes.
O bullying homofóbico começa bem antes de poder entendê-lo (BIMBI, 2017, p. 13-
14).

Atravessada pelo medo e vergonha aprendidos desde a infância, durante sua


adolescência em Promessinha, Bárbara passou a ficar com meninos. Segundo sua narrativa, não
muitos, posto que ela não se interessava por namoros, tanto quanto se interessavam suas amigas.
Embora sua narrativa exibisse um padrão mais assexuado do que interessado em práticas
sexuais, ela gostava de ficar com eles, mas não conseguia manter-se em uma relação mais longa.
De algum modo, ela tinha consciência que estava respondendo às expectativas sociais. Segundo
a garota:

Porque assim, na nossa infância… eu acho que até tu também começou com homem.
Eu acho que é mais assim, do natural, a pessoa sentir atração. Mas eu dizia assim:
‘não, isso é errado, não pode não, tem que ser… mesmo se a pessoa não quer, tem que
ser com homem. Mas no meu caso eu gostava de ficar, com os que eu fiquei, assim…
mas namorar, eu acho que eu namorei uma vez e foi pouco tempo. Duas vezes. A
primeira vez demorou uma semana, que eu terminei, que eu não conseguia, sabe, era
uma coisa…. E o outro também, foi 4 meses, mas também foi uma coisa assim…, sem
ter aquela conexão, sabe? A gente andava na rua e agia como namorado, mas era uma
coisa assim, sei lá, estranha.

Nenhuma surpresa em sua fala já que iniciar experiências de namoro com pessoas
do sexo oposto é relativamente comum em trajetórias de muitas pessoas que, posteriormente,
se assumem homossexuais. A expectativa, em nossa cultura, de que as relações
heterossexualizadas sejam o ponto de partida e o destino natural de todas as pessoas, muitas
vezes contribui para que, em princípio, os namoros se estabeleçam entre homens e mulheres,
mesmo quando se percebe um desejo pelo mesmo sexo.
Por vezes tais relações podem servir como busca de neutralização de desejos
homoafetivos: eu também estava tentando não ser o que eu queria ser, disse-me. Em outros
casos, pode acontecer de que alguém jamais tenha percebido um desejo por alguém do mesmo
sexo e segue vida a lhe colocar em outros trilhos. Além do mais, em ambos os casos, não se
pode deixar de lado os benefícios adquiridos por uma apresentação social validada e reforçada
de modo contínuo. Nenhum desses motivos tem o poder de necessariamente excluir a diversão.
155

Bárbara, portanto, se divertia na companhia de alguns garotos, embora não se relacionasse


demoradamente com eles.
Brandão (2010) sinaliza que os mecanismos de negação, pela via da autocensura; da
inibição dos sentimentos, da vivência assexuada ou da imersão em relacionamentos
heterossexuais são respostas possíveis à instauração de uma crise identitária iniciada em muitas
pessoas que passam a reconhecer, em si próprias, desejos homoeróticos. Tais mecanismos
defensivos entram em jogo como facilitadores de uma espécie de moratória, período no qual se
avaliam as possibilidades de mudança na posição identitária assumida no binômio hétero/homo.
Assumir-se homossexual - ou apenas se dar a possibilidade de viver uma experiência
homoafetiva - requer, na maior das vezes, senão a superação, pelo menos a administração de
sentimentos negativos experimentados por pessoas que desejam outras do seu mesmo sexo e
cujo valor negativo foi aprendido mesmo antes da percepção de seu próprio desejo, que uma
vez reconhecido, passa a ser vivido como um segredo.
Em um pequeno relato sobre sua história de vida, a “lesbofeminista” Norma
Mogrovejo, indica-nos a dificuldade que sentiu de encontrar outras mulheres que, como ela,
desejavam pessoas de seu próprio sexo, na cidade de Arequipa, segunda maior cidade do Peru,
para onde havia migrado com seus pais aos 14 anos de idade, e mesmo em sua cidade natal,
Puno, um lugar ainda menor do que o que ela residira durante sua adolescência, localizado no
alto das serras peruanas. Em sua narrativa, Mogrovejo (2015) mostra como a solidão acabou
por ser o destino de muitas mulheres lésbicas das pequenas cidades onde morou, avaliando que
este fenômeno se constituiu como efeito de um exitoso de programa de silenciamento
instaurado em cada uma das lésbicas que perceberam seus desejos sexuais e que, diante disso,
passaram a se autocensurar, adaptando-se a viver de modo oculto.
De acordo com ela,

Desde que eu me dei conta de como era importante para mim me relacionar com outras
mulheres, não houve retorno. Então comecei a procurar outras lésbicas na minha
cidade, sem sucesso. Certamente, aquelas que eram ou se aceitavam como tal, não
viam, assim como eu, nem mesmo um lampejo para onde sair do isolamento e da
solidão (Mogrovejo, 2015, p. tradução nossa)

A situação de Bárbara não parece diferir muito da vivida pela ativista Peruana.
Ambas perceberam seus desejos, de modo mais orgânico, durante a adolescência. Nos dois
casos, não encontraram com quem compartilhar suas emoções e fantasias, embora fosse
provável que outras garotas vivessem do mesmo modo. Na trajetória de Bárbara, bem como na
de Mogrovejo (2015), uma das coisas que é possível perceber é que, para muitas garotas e
156

garotos que sentem desejo por pessoas do seu mesmo sexo, a zona rural pode ser um ambiente
onde eles podem vivenciar a mesma dor, ao mesmo tempo e em um espaço compartilhado,
embora de modo solitário. Se Bárbara tiver razão ao supor que muitas de suas amigas do futebol
seriam lésbicas, a situação de invisibilidade generalizada vivida por elas parece tender a colocá-
las, cada uma delas, diante de um pan-óptico (Foucault, 1999) movido pelo medo e pela
vergonha compartilhados, ainda que na solidão.
Encontrar-se com outros, ter a possibilidade de se conectar com a multiplicidade das
experiências lésbicas é um elemento facilitador da construção de uma subjetividade mais
congruente consigo próprio, incluindo sua sexualidade. Brandão (2010) afirma com clareza a
importância da zona rural na obstaculização da objetivação de leituras alternativas ao modo de
compreensão das narrativas sobre as lésbicas nestes ambientes, quando comparados com a
profusão de possíveis modelos lésbicos e o anonimato presente nas grandes cidades. A partir do
contato com outras mulheres que amam mulheres, vamos compondo nossas formas (sempre
cambiantes) de nos tornarmos lésbicas. Poder acessar iguais (mesmo na infância, quando talvez
nem supuséssemos que um dia nos tornamos iguais), como disse Miñoso (2007, pp. 150 e 151),
pode nos munir, de

Histórias simples [que] podem nos levar a pensar nós mesmos e pensar sobre nossos
processos de nos tornarmos lésbicas, assim como era importante para cada um
encontrar uma referência, uma imagem, uma possibilidade que abriria a porta para
esse outro modo de desejo, que em muitos casos já sentimos.
……………………………………………………………….………………………
Em cada caso, a experiência de "conhecer" ou de "conhecer-se", esse processo que vai
da intuição à consciência, da admiração à abertura, da descoberta externa à busca
interna, ou vice-versa, envolveu pelo menos duas questões fundamentais: uma porta
externa e fechada que se abriu e nos mostrou o que estava escondido, e uma
possibilidade interna de abrir bem os olhos para ver isso para o que não estávamos
preparadas.

Embora Bárbara desejasse manter seu segredo, sentia-se impulsionada a confessá-


lo, atendendo ao apelo do dispositivo moderno que criou a ideia de uma sexualidade desviada
que deve ser simultaneamente dada em segredo e confessada (Cf. FOUCAULT, 2005 e
SEDGWICK, 1998 e 2007). Obviamente, a confissão impulsiona de modo especial os sujeitos
que quebram as expectativas de uma trajetória heterossexual (há pouquíssimo sentido em pensar
numa declaração de que se é hétero, em tom de segredo, para terceiros). Nesse contexto bastante
ritualizado em torno de um segredo a ser confessado, o próprio prestar contas de sua
sexualidade, em um sistema que determina que assim seja feito, como disseram Ali e Barden
157

(2015), faz com que aquele que cede à tal apelo sinta-se mais autêntico e honesto consigo
mesmo e com os outros que lhes são próximos e pelos quais se nutre sentimentos.
Bárbara não percebeu muitas pessoas com as quais podia falar de seus sentimentos.
Suas relações de amizades mais orgânicas não se encontravam entre suas amigas da escola que,
conforme intuía, poderiam ser lésbicas. No seu contexto mais imediato de referência, possuir
uma paixão comum por um esporte que praticavam não deveria ser o critério definidor para tal
escolha. Certo dia, enquanto estávamos em um bar em Fortaleza, ela me disse que já tinha visto
sua namorada Iara nas ruas de Promessinha, mas que, devido ao fato da Iara ser católica, a
amizade entre as duas jamais teria sido possível, posto que, de acordo com ela, desde a infância,
havia aprendido que crente não podia ser amiga de pessoas católicas.
É, portanto, entre suas amigas do grupo de jovens da Assembleia de Deus que
Bárbara tenta buscar apoio em relação aos seus sentimentos homoeróticos que lhe traziam medo
e vergonha. Mais uma vez, embora em sua igreja não existisse alguma elaboração discursiva
sistematizada em torno da impropriedade dos sentimentos e das relações homoeróticas, os fiéis
sabiam exatamente como deveriam reagir a tal impropério. Os conselhos de sua amiga, que
indicavam o caminho da oração para a sua cura, também a posicionou num trabalho semelhante,
destinado ao mesmo motivo. Como ela me disse:

Aos 16 eu comecei a sentir atrações né? mas assim, eu não queria pra mim, eu até
conversava com as pessoas lá da minha igreja do grupo jovem e eu até cheguei a
falar... e aí a pessoa falava, ah, Bárbara ora! Por que lá tem essas coisas de orar e blá
blá blá... Aí eu falei, não! Quando eu vejo a pessoa já sinto essas atrações, já sinto
vontade. Só que eu me segurava. Assim, até de olhar para o olho da pessoa a gente já
sente vontade, entendeu?! Aí, ela, não Bárbara, eu vou orar por ti. Mas eu continuava,
né?
……….………………………………………………………………………………
…………
Eu tinha uma amiga e eu falei pra ela, né? Eu disse assim, olha Ana Maria, eu acho
que tô sentindo isso e isso. Aí ela disse assim: Bárbara vamos orar. Ai eu: vamos né?
Por que tu sabe como é o movimento das coisas. Aí tá! Mas nunca passou esse
sentimento, essa vontade, mas só que eu guardava pra mim, uma coisa meio assim,
né? Depressiva. (…) eu me sentia triste.

Diante da sua narrativa, que entoava uma memória associada à tristeza e à ausência
de parcerias reais para partilhar seus sentimentos, perguntei-lhe se tais maus afetos seriam
acompanhados por sentimento de solidão. Embora tenha negado expressamente tal associação,
posto que tinha boas amigas, o modo como explica sua tristeza acaba por revelar que, mesmo
que ela não tivesse só, também não pode estar acompanhada de alguém que pudesse lhe atribuir
um valor positivo, ou, no mínimo, indiferente em relação àquilo que ela estava vivendo.
Conforme me falou:
158

Não é questão de solidão, é questão de querer falar uma coisa, e tipo assim… eu falei
pra aquela menina, ela ouviu, mas não deu aquela coisa. Ah, Bárbara isso e isso…
Mas aí eu tinha medo, sabe. Eu tinha medo. Todo mundo tem, né, no começo? Tem
medo, e quem é assim, do nosso jeito, que a gente sente, sabe o que cada um passou,
o que cada um sentiu no momento.

O primeiro recurso utilizado por Bárbara para sanar este abismo entre seus
sentimentos e uma possível aliança com outras pessoas que seguramente partilham de sua
experiência, foi a busca pela internet. A garota me disse que seu avizinhamento com imagens
lésbicas foi obtido por vídeos disponíveis na rede mundial de computadores. Ao ser questionada
se após a revelação à sua amiga e diante da reação da mesma ela havia buscado algum outro
tipo de apoio, ela me contou que procurava vídeos, não das pessoas falando, mas eu procurava
vídeos de mulher se beijando. Mas procurar ajuda, não. Que eu me lembre, não.
À época em que Bárbara começou a perceber sua homossexualidade, o Vale ainda
não figurava pelo espaço público de Promessinha. Mark disse-me que os encontros desse grupo
de amigos tiveram início por volta de 2010, quando alguns meninos e uma menina, Iara, se
reuniam na praça após seus trabalhos na Pastoral da Juventude Cristã, segmento da Igreja
católica bastante atuante em Promessinha. Conforme a cronologia descrita por Bárbara, nesta
época ela morava em Brasília. Ao que tudo indica, mesmo que a garota por lá morasse, as
amizades católicas eram, no mínimo, proibitivas. Além do mais, não se pode deixar de lado o
fato de que a pertença a este grupo, para qualquer um, poderia ser mais denunciativa de seus
desejos do que facilitadora de um quadro de segurança acerca da manutenção velada de uma
sexualidade desviante, já que ocorria em um espaço público e dos mais acessados a todos os
moradores da localidade.
A impossibilidade de acessar lugares retirados (Goffman, 2017) e seguros, a
dificuldade (ou o risco) de encontrar pessoas que tornem públicas suas relações homoeróticas
em Promessinha, o controle das amizades em torno de afiliações religiosas e a própria
religiosidade das pessoas em seu entorno, em um lugar onde os indivíduos parecem ser mais
mapeados e observados por muitos outros que coabitam uma pequena localidade são aspectos
que não podem ser desconsiderados, quando observamos a importância do lugar na sua
experiência homoafetiva.
A trajetória de Bárbara em torno de sua prática evangélica, durante sua infância, se
deu quase sem resistência. Porém, mesmo antes que ela fosse capaz de pensar-se lésbica, ao
chegar na adolescência, incomodava a compulsoriedade estabelecida em relação ao uso de saias
abaixo do joelho e camisas de mangas e sem decote, como era determinado pelo templo em
159

relação às vestimentas das suas fiéis. Em suas falas, diversas vezes foi possível perceber tal
incômodo. Em nosso primeiro diálogo, ao se apresentar como sendo uma pessoa que nasceu no
berço evangélico (Cf. fala acima), a referência que Bárbara trouxe foi justamente o fato de que
ela usava sainha e tal, era bem padronizado. Mais adiante, quando questionada sobre os ganhos
obtidos com a migração para Itapipoca e posteriormente para Brasília, fui por ela informada
que neste primeiro lugar ela podia usar shorts e que no tempo de Brasília era uma liberdade
que eu tinha, o estilo de roupas que a gente podia vestir…
De acordo com Martinez (2015), muitas religiões preocuparam-se com o controle
da indumentária de seus fiéis, posto que tal consideração aparece em vários livros do novo
testamento. O uso da burca nas sociedades islâmicas e a determinação de uma vestimenta
relativamente padronizada por algumas igrejas evangélicas, dentre outras, atestam tal assertiva.
Via de regra, tal prescrição é mais marcante em relação às mulheres e isto pode ser percebido
em Pedro (3:2,3), para quem as mulheres cristãs devem utilizar véus; em Coríntios (11:6), que
determina que elas se vistam com modéstia, e também em Timóteo (2:9,10) que recomenda,
além da modéstia, a proibição do uso de roupas masculinas, indecorosas e/ou indecentes por
mulheres (em MARTINEZ, idem).
De acordo com a autora, a preocupação com a modéstia no modo de auto
apresentação está presente no site da Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil
(CGADB) onde é possível encontrar à menção aos ‘Sadios Princípios estabelecidos na Palavra
de Deus – a Bíblia Sagrada – e conservados como costumes desde o início desta Obra no
Brasil’, que que determina que: os homens não podem ter cabelos crescidos nem cortes
extravagantes (baseando-se em 1 Coríntios 11:14); as mulheres não devem usar roupas que são
peculiares aos homens e vestimentas indecentes e indecorosas, ou sem modéstias (1 Timóteo
2:9,10); é proibido à elas o uso exagerado de pintura e maquiagem – unhas, tatuagens e cabelos
(Levíticos 19:28; Reis 9:30), bem como o uso de cabelos curtos em detrimento da
recomendação bíblica (1 Coríntios 11:6,15). Embora muitas igrejas já tenham ou afrouxado ou
declinado de tais costumes, Martinez (2015, pp. 25 e 28) lembra que

As igrejas Congregação Cristã e Assembleia de Deus, precursoras do Pentecostalismo


no Brasil, são as que mais carregam estas marcas, fazendo uso destes costumes até os
dias atuais
………………………………………………………………………………………
(…) [já que estas creem] que o corpo humano seja o templo e a morada do Espírito
Santo, portanto deve-se manter este templo em humildade, simplicidade e modéstia
para receber e acolher o Espírito Santo em sua vida. (Idem, ibidem, p. 25 e 28).
160

Martinez (idem) e Alves (2016) sinalizam o valor que tal forma de apresentação
estética representa, posto que, no entendimento evangélico, uma vestimenta (excessivamente)
sensualizada seria indicativo da própria sensualização daquela que assim se veste. Portanto, é
possível compreender que o uso das vestes módicas preconizadas por algumas igrejas
evangélicas inscreve no corpo mais do que um gosto estético, organizando uma adesão a um
código moral distintivo em relação às mulheres que possuem liberdade nas escolhas de suas
roupas. Tal diferenciação, diz Alves (2016), realiza o distanciamento entre a “mulher de Deus”
e a “mulher do mundo” e, neste sentido, são propositivas de um signo de pertença social.
O fato de que a resistência de Bárbara em relação ao uso das vestes tenha surgido durante sua
adolescência, não pode ser ignorada. Alves (2016), que estudou os códigos morais e o juízo
estético entre evangélicos de diversos templos no Rio de Janeiro, sinaliza que a adesão a um
vestuário que demonstre a modéstia cristã parece ser mais difícil entre mulheres solteiras, por
estarem competindo no “mercado amoroso” e enfrentando grande concorrência. Bárbara, que
afirma ter nascido na igreja Assembleia de Deus, provavelmente intuía que, ao abrir mão de
suas vestes poderia ser melhor posicionada no mercado amoroso, mas ao mesmo tempo,
também estaria sendo colocada na condição de mulher mundana, incompatível com os
desígnios de servir ao Senhor, conforme o credo que lhe foi ensinado durante toda sua vida e
que era bastante valorizado no interior de sua família.
Se a organização estética foi um importante motivador para o afastamento de
Bárbara em relação à Assembleia de Deus, ele não foi o único. O arremate final, seguramente,
se deu quando ela foi capaz de tomar consciência de seus desejos lésbicos. Como ela me disse,

Aí eu comecei a sentir atração, eu tava na adolescência né? Eu tava assim, querendo


sair da igreja, sabe? Eu continuava né? mas esfriando já da igreja, da Igreja Evangélica
Assembleia. Já esfriando... passava o tempo aí ia esfriando, esfriando. A igreja ia se
afastando de mim e eu me afastando da igreja, entendeu?! Eu ia domingo, domingo
sim, passava duas semanas sem ir e a mãe só em cima: “Bárbara, vai para a igreja!”.
E eu: “Não, não estou com vontade”, não ia mais.

Apesar de ter iniciado sua deserção à Igreja, Bárbara permaneceu sem buscar, em
Promessinha, qualquer garota com quem pudesse vir a ter algum romance, mesmo que
ocasionalmente. Eu nunca fiquei com ninguém aqui em Promessinha, disse-me. Foi preciso sair
do lugar onde havia nascido, crescido e reconhecido seus primeiros sentimentos lésbicos para
que ela, de fato, pudesse ter iniciado suas primeiras aventuras homoeróticas.
161

6.2 Fuga para outra(s) cidade(s).

Morar em Promessinha, portanto, foi vivido como um fator impeditivo para que
Bárbara pudesse buscar garotas com quem se relacionar. Isto porque, embora suspeitasse que
algumas garotas, assim como ela, seriam lésbicas que viviam no armário, em lugar pequeno
tem muita... a língua é muito grande, independentemente de qualquer pessoa. A pessoa não
pode nem conhecer a família ou a pessoa, mas sempre está falando, está dando palpite.
A primeira cidade que decidiu morar ao sair de Promessinha foi Itapipoca, onde,
conforme sua fala, eu comecei a esfriar mais ainda [da igreja], comecei a usar shorts, essas
coisas que não pode na igreja, não pode usar short. Nesta época, ela tinha terminado o ensino
médio e contava cerca de 19 anos de idade. Em Itapipoca, enquanto sua relação com a igreja
esfriava ainda mais, ela pode conhecer algumas garotas pelas quais se sentiu atraída, mas o
medo que se interpôs em relação à sua homossexualidade permaneceu, apesar da mudança dos
ares no novo lugar. Ela me disse: Eu conheci uma menina lá em Itapipoca, só que eu tinha medo
né, eu tinha vontade, mas eu tinha medo de chegar na pessoa e conversar, fazer toda aquela
coisa.
Vencer o medo e debutar na experiência lésbica foi um ato que se estabeleceu de
modo bastante acautelado. Ao conhecer outra garota pela qual se interessou e certificando-se
que essa também seria lésbica, decidiu encontrar-se com ela na praça da Igreja Matriz de
Itapipoca. Neste encontro ficou claro o interesse mútuo, mas Bárbara não conseguia realizar
qualquer ação no sentido de efetivar uma aproximação física, estando ali, no banco da praça em
que se encontravam. Para ela, uma vez que Itapipoca era uma cidade das mais acessadas pelos
moradores de Promessinha e que pessoas de sua família moravam por lá, ela corria o risco de
ser vista por alguém, o que lhe traria problemas. Como solução, decidiram ir a um banheiro de
um comércio próximo do lugar em que estavam. Portanto, foi em um banheiro de um
supermercado situado próximo à praça da Igreja Matriz de Itapipoca que aconteceu o primeiro
beijo de Bárbara com uma garota, por volta de seus 19 anos de idade. Durante sua permanência
em Itapipoca, que me pareceu ser um lugar que ainda lhe seria indigesto às suas aventuras,
nunca mais ficou com alguém.
Sua moradia nesta cidade teve duração entre um e dois anos e quando perdeu o
emprego que lhe garantia sustento, voltou para casa de seus pais, mantendo sua intenção de um
dia poder sair de lá. O que não tardou muito.
Estando desempregada, ao receber um convite de sua tia para que ela fosse para
Brasília ajudá-la a procurar um emprego, aceitou-o de imediato. Nessa época, ela possuía 20
162

anos de idade e em sua ideia, apesar de ter ficado com essa menina, ninguém da minha família,
ninguém, ninguém suspeitava, ninguém sabia de nada.... Estava tudo ok, tudo normal, eu estava
no padrão.
Seu desejo de sair de Promessinha rumo à capital federal, era o de fugir da língua
grande das pessoas da cidade e deixar de ver as mesmas caras e conhecer outras pessoas.
Bárbara viveu por seis ou sete anos em Brasília. Inicialmente morou nesta cidade com sua tia e
posteriormente mudou-se para a casa de seu irmão, que residia em uma cidade-satélite do
interior de Goiás, distante duas horas da Capital Federal, lugar no qual permaneceu amplamente
conectada pelo trabalho e por algumas amizades que por lá conquistou.
Por mais que ela não tenha expressado claramente seus desejos sexuais como uma
das motivações na ida para uma nova cidade, conhecer novas pessoas que não participavam do
regime social de interconhecimento e fofocas constantes em Promessinha, certamente
possibilitou à Bárbara uma maior aproximação com um universo ao qual ela considerava
explorar. Como disse Parker (1999, p. 242),

Dentro dos padrões mais amplos de deslocamentos, o movimento contínuo de


populações de áreas rurais para áreas urbanas, de pequenas para as grandes cidades e
assim por diante, é difícil definir o papel exato que desempenha a sexualidade – a que
ponto a migração e o movimento sexual motivados por interesses ou preocupações
sexuais podem existir como fenômenos distintos(…) Ao mesmo tempo, também é
inegável que a sexualidade, e talvez a homossexualidade em particular, seja um fator
dentro da equação migratória num grau muito maior do que tem sido frequentemente
percebido (…) em ambientes como o Brasil contemporâneo.
Em certo nível, isso não deve nos surpreender muito. Na medida em que a vida urbana
é construída dentro do imaginário social como um local de relativa liberdade e
oportunidade, como uma alternativa à característica opressiva da vida do interior ou
nas pequenas cidades, talvez deva-se esperar que estas imagens se traduzam em
liberdade sexual.

Portanto, apesar de a garota não ter diretamente sinalizado sua homossexualidade


como elemento motivador para a saída da zona rural em que havia nascido e na qual vivia sua
família, em Brasília lhe ela pode experimentar alguma liberdade sexual, quando mudou
definitivamente o seu estilo de roupas, em um lugar no qual se liberou para conhecer muitas
garotas e se relacionar, ainda que brevemente, com algumas delas. Na trajetória de Bárbara,
seguramente, a grande cidade lhe favoreceu a incursão em experiências que, no lugar onde
nascera e crescera, lhe parecia impossível.
Ao chegar em Brasília, através da Internet, buscou mapear lugares amigáveis ao
público LGBTIA+ bem como conhecer algumas garotas. Normalmente, as garotas entravam
em sua vida via solicitação de amizades pela rede social Facebook. Com um visual mais
163

adequado à competitividade no mercado amoroso, ela marcou um encontro com uma garota
que conheceu através desta rede social. Combinaram de ir ao cinema, em um shopping da
capital federal. Nada aconteceu entre as duas, o que gerou em Bárbara o desejo de desistir das
meninas e o início de um namoro com um rapaz, segundo ela, era pra tentar não ser aquilo que
eu queria ser. Também não foi possível permanecer com namorado, pois ela não conseguia se
conectar com ele. Depois dessa experiência, sua última com o sexo oposto, Bárbara resolve “ser
ela mesma” (segundo sua ideia) e passa a ficar com várias garotas em Brasília, onde estavam
muitos amigos que ela acompanhava nas baladas, embora não compusesse com eles um
movimento de turma, como pode ser percebido a partir de um de nossos diálogos:

Bárbara: Lá em Brasília, eu fiquei com muitas pessoas. Eu ia para as festas, eu saía


muito. Eu tinha amigos gueis. Lá em Brasília tem muitas pessoas gueis né? Eu saia
pra balada, essas coisas.
Renata: Como foi que você acessou o mundo guei de Brasília?
Bárbara: Eu acho que foi pela internet. A primeira [garota]. Eu acho que todo mundo
começa assim na internet.
Renata: Na minha época não tinha. Então minha primeira namorada, eu tinha quinze
anos e foi até os dezessete, mas nada do mundo guei. Nem existia internet e nada de
mundo guei, porque nem eu e nem ela tínhamos vivências gueis. Aí a minha segunda
namorada, quando eu tinha dezessete anos, ela já andava em todos os bares gueis da
cidade, aí eu conheci todos os bares, aí comecei a fazer minha turma guei né?
Bárbara: Só que eu não tinha uma turma guei, eu saía e tal, mas não tinha essa turma
guei não.

Após um período na casa de sua tia, Bárbara sai de Brasília e passa a morar com um
de seus irmãos, no interior de Goiás. Seu irmão era casado e, no início da moradia conjunta, a
garota nutria amizade por sua cunhada, compartilhando algumas de suas conquistas nas baladas,
sem fazer muita questão de esconder que estas tinham por alvo pessoas do seu mesmo sexo.
Com o passar do tempo, a moradia comum fez com que uma sequência de brigas existisse entre
as duas possibilitando que sua cunhada pegasse uma rixa contra ela e decidiu telefonar para a
mãe de Bárbara e dizer-lhe o que estava acontecendo com a sua filha:

Ela ligou pra mãe e falou. Eu não sei o que ela falou, se ela falou alguma coisa a
respeito disso, não sei bem as palavras que ela falou. A minha mãe me retornou, me
ligou, e falou: “Bárbara, é verdade?” E ela não falou o resto né? [Eu respondi], “O
que mãe, que é verdade?” [E ela repetiu] “É verdade, Bárbara?” Aí eu me toquei: ah
meu Deus, ela contou, ela falou! A mãe já estava querendo chorar, chorando no
telefone e eu falei: “É verdade!” Só que eu não queria que essa dita indivídua contasse,
que ela tivesse contado, porque eu queria contar, entendeu?! Não era a hora ainda. Aí
ela contou e a mãe falou: “Bárbara, essa é a pior notícia que eu recebo, preferia que
você tivesse morrido, preferia ver você morta” Ela falou assim, uma coisa assim,
enfim... Eu fiquei meio assim, parada no tempo, por que assim, a pessoa escolher que
eu tivesse morrido do que… Ela falou assim: “eu acho isso nojento Bárbara, eu
preferia você morta”.
164

Ao ser questionada sobre como ela reagiu ao telefonema, ou sobre como se sentiu
diante das frases injuriosas de sua mãe, Bárbara disse-me que a primeira coisa que lhe passou
pela cabeça foi uma sensação de arrependimento de ter escolhido sua homossexualidade,
porém, ao mesmo tempo, entendia que isto não poderia ser encarado como uma escolha.
Passado o impacto do outing cometido por sua cunhada, Bárbara decidiu não esquentar com a
opinião de sua mãe e seguir adiante. Em suas palavras:

Na hora que minha mãe falou isso, eu senti arrependimento de ter escolhido isso. Não,
porque a gente não escolhe, mas é de ser isso, tipo... é que ela sentiu nojo, preferiu
que eu morresse, tivesse morrido e tal, entendeu? Aí, enfim, eu não me esquentei com
isso não, aí eu segui e tal, comecei a namorar, a trabalhar e tal.

Penso ser importante considerar que a situação migratória alinhada ao apoio de seu
irmão e de sua cunhada resultou numa extensão de comunicação direta com sua mãe, fazendo
com que, de certo modo, naufragasse a fuga das relações de interconhecimento presentes em
Promessinha, em especial no que se refere ao controle parental sobre sua vida. A migração de
uma jovem mulher lésbica com formação escolar média e sem experiência de empregos
“válidos”, muitas vezes, parece possível apenas quando há alguém de sua família que ofereça
suporte no destino para o qual deseja migrar. Por certo, um obstáculo diante de uma
possivelmente pretendida autonomia na gestão da vida afetiva e sexual de garotas lésbicas que
migram da zona rural para cidades maiores.
A despeito de tais obstáculos, ela migrou e obteve benefícios sexuais em sua
migração. A intensa vida de baladas, com alguns amigos gueis, a fez ter vários relacionamentos
fortuitos com outras garotas, até o momento em que encontrou Iara, uma conterrânea que
também havia migrado para Brasília.
Nas suas ativas buscas por amizades através do Facebook, Bárbara encontrou a
página de perfil de Iara, garota que ela já havia visto algumas vezes enquanto morava em
Promessinha, embora não tivessem estabelecido qualquer elo de amizade, inclusive pelo fato
dela ser católica. Como suas preocupações em torno da igreja evangélica já não faziam mais
tanto sentido, Bárbara pode lhe solicitar amizade virtual, o que foi consentido pela sua
interlocutora. As duas passaram a conversar pelo Messenger, e posteriormente evoluíram para
o WhatsApp, aplicativo com o qual costumavam se comunicar via chamadas telefônicas. Muito
rapidamente, ainda nos primeiros dias as meninas revelaram-se mutuamente sobre suas
preferências sexuais. A conversa entre as duas parecia acontecer de modo mais fluido e mais
165

familiar do que as conversas que elas haviam realizado com outras garotas em Brasília. De
acordo com Bárbara,

Nossa conversa foi ótima, parecia que a gente se conhecia há um tempão. Comecei a
conversar e tal, vinha “papo daqui, papo dali”. Conversou, conversou… vamos se
encontrar? Pronto! Já marcamos de se encontrar. Aí a gente ia resolver umas coisas
do meu trabalho, que eu tinha saído do trabalho e tinha que resolver umas coisas no
RH, e eu falei: “olha, vamos comigo?” E ela disse: “vamos sim” (…) Aí a gente tocou
na mão. Nossa, parecia que eu conhecia ela há muito tempo. Toquei assim e não tive
mais vontade de soltar a mão dela. E aí a gente ia caminhando, tranquilo, conversando
até chegar lá no lugar. Ela é muito tímida, mais do que isso aqui, né Iara? Aí eu tentei
brincar pra ela e ela nada… toda não sei o que, tão tímida… tenho medo.

A experiente Bárbara, que segurou na mão de Iara e caminhou com a liberdade


adquirida na grande cidade, tentou beijar a garota ali mesmo, em um lugar público, como estava
acostumada a fazer com outras garotas que havia encontrado. Para ela, em Brasília isso não
seria um problema posto que em uma cidade grande, as pessoas... ninguém conhece ninguém…
é tudo grande, muita gente… ninguém conhecia a gente e a gente se sente mais livre. (…) todas
as pessoas sabiam, por que ninguém me conhecia. Recusando-lhe a oferta, Iara permitiu-se
apenas o caminhar de mãos dadas – comportamento que pode vir a ser desvinculado de uma
relação romântica, já que socialmente aceito entre mulheres. Mais uma vez o acesso a um
ambiente privado, um banheiro de um supermercado próximo, foi acionado para que fosse
possível um primeiro beijo entre as duas.
A relação vivida com Iara, que permanece até hoje, foi a primeira longeva em sua
trajetória. Nos primeiros 18 meses, ela se desenrolou nas idas e vindas entre Brasília e Goiás,
mas a situação de desemprego que alcançou Bárbara forçou seu retorno à casa dos pais, em
Promessinha. Iara ainda levou alguns meses para seguir os passos de sua namorada, tendo
permanecido na Capital Federal.

6.3 De volta ao lar, a gestão do armário.

Retornar à Promessinha após o outing cometido por sua cunhada coloca Bárbara em
uma situação bastante diferente daquela que ela vivia em Brasília. A diferença tornou-se mais
proeminente depois do retorno de Iara, momento no qual sua mãe acirrou o controle sobre ela
e sobre sua circulação na cidade.
Igual ao ocorrido entre Lina e Sissi, em princípio, elas chegaram a fingir que não se
conheciam, quando se encontravam em algum comércio da cidade. Porém, muito rapidamente,
166

esta ação se torna insustentável. Não possuindo espaços de privacidade, constantemente as duas
eram vistas juntas, mesmo que de passagem, na cena pública da cidade.
Quando Bárbara chegou em Promessinha, sua mãe não havia contado ao marido
sobre a sexualidade dela. Porém, mais uma vez, a delação, via fofoca, ampliou o alcance da
informação, alterando a situação de desconhecimento de seu pai. Certo dia, quando Bárbara e
Iara estavam conversando no banco da praça da Igreja Matriz de Itapipoca, alguém de
Promessinha as viu e entendeu, provavelmente por já ser sabido, que ali se tratava de um casal.
Segundo elas, o fato de serem faladas na cidade facilitava a conclusão de que aquela amizade,
na verdade, era mais do que isso. Pouco tempo depois de ter sido vista com sua namorada,
chega ao pai de Bárbara a informação de que ela estaria beijando a boca de outra mulher na
Praça de Itapipoca, sem qualquer constrangimento. Se a mãe de Bárbara havia decidido, em
relação ao seu marido, manter segredo sobre a sexualidade de sua filha, a língua grande – e, ela
acrescenta, mentirosa – de um de seus vizinhos, faz naufragar este plano. Bárbara informou-me
que:

Chegaram lá em casa contando isso, foi a maior briga. Porque esse cara que disse que
tinha visto a gente se beijando lá na praça. Chegou lá para o meu pai no serviço dele
e falou que eu e a Iara estava se beijando lá na praça. Aí o pai chegou lá em casa
quebrando a porta e tudo, literalmente...Mas no caso era mentira, que a gente nem
estava se beijando, só estava perto no banco, aqueles banquinhos da catedral que tem
ao redor, aí o cara viu a gente lá na praça chegou lá no meu pai e falou e meu pai
chegou louco da vida quebrando a porta, querendo saber e chorando, eu preferia minha
filha uma prostituta, não sei o que blá blá blá.

O conhecimento, por parte do pai de Bárbara, acerca da sua sexualidade fez piorar
a convivência familiar. Se antes sua mãe possuía alguma reserva para falar com Bárbara sobre
aquilo que ela julgava ser um sério problema, após a revelação para o seu marido, nada mais a
impedia de falar a respeito do tema. E o mesmo acontecia em relação a ele. Como ela me disse:
agora o que é que você acha, você morar numa casa e toda hora ouvir piadinhas sobre…
aquelas piadinhas mais baixas, é horrível né? É o meu cotidiano.
Neste clima, para sair de casa a fim de encontrar-se com Iara, Bárbara dirigia-se a
um lugar previamente estabelecido entre as duas e distante da casa onde morava com sua a
família. Dentro de sua estratégia, ela esperava que seus pais se recolhessem para poder sair ao
encontro de sua namorada: para sair à noite, era uma burocracia tão grande. Tipo eu deixava
todo mundo entrar lá dentro de casa e só abria o portão e saia, meio fugida. Quando eu chegava
era uma confusão.
167

Porém, a depender do horário de um evento qualquer que participariam (ida ao


circo, aniversário de alguma amizade em comum), por vezes, a intenção de sair após seus pais
terem se recolhido fracassava. Nestas ocasiões, Bárbara informava para sua mãe qual seria o
seu destino, omitindo informações sobre sua companhia. Na maioria das vezes, quando isto
acontecia, sua mãe iniciava seus diálogos ofensivos que incluíam um jogo de culpa e ameaça
constantemente reiterado em outras situações cotidianas: o fato de não estar empregada ou
mesmo as doenças de seu pai, tais como a diabetes e a pressão alta que lhes diminuem a saúde,
ambos, de acordo com a narrativa acusatória de sua mãe, tinham por motivo a sexualidade de
Bárbara. Em algumas destas ocasiões, ela pode escutar sua mãe lhe dizer que rezava para que
o demônio saísse do seu corpo; outras vezes, pode ouvi-la afirmar seu desejo que sua filha
pegasse uma doença qualquer, desejando-lhe a morte.
Muitas vezes, o falatório de sua mãe incluía uma descrição, em tom reprovativo, do
que ela supunha que sua filha fosse fazer, do ponto vista sexual, com sua namorada. Importa
considerar, mais uma vez, a curiosidade ofensiva em relação aos atos sexuais estabelecidos
entre pessoas do mesmo sexo, tal como sinalizou Eribon (2008). Do mesmo modo como ocorreu
com Lina, era constante o fato de que as brigas com sua mãe girassem em torno de suas
atividades sexuais. Em uma de nossas conversas, Mark desejou entender o motivo pelo qual
sua mãe dissera sentir nojo de sua filha, no momento em que falavam ao telefone, pela primeira
vez, sobre o fato de que a garota seria lésbica:

Mark: Teve um momento, Bárbara, quando tu disse que se assumiu pra tua mãe pelo
telefone que ela chegou a dizer que tinha nojo de você, não é?!
Bárbara: Tenho nojo disso.
Mark: Tu acha que esse nojo é por causa que ela imagina sobre as práticas sexuais?
Bárbara: Eu acho que ela já olha pela prática da relação mesmo, eu acho que já vem
na cabeça dela, eu acho que é isso…
Iara: Até piadas ela já soltou né, em relação a isso.
Renata: Tipo?
Bárbara: Tipo coisas que é impossível falar né, Iara?

Nem mesmo seu pai, pessoa que ela descreveu como sendo tímido e que ela associou
sua própria timidez a uma herança genética ou comportamental adquirida através desse lado da
família (todos do lado do pai são assim, tímidos), foi capaz de conter sua curiosidade:

Teve uma vez que eu tava lá e meu pai disse assim: Bárbara, como é que vocês
namoram? Eu me senti tão ofendida... eu fiquei assim... Eu respondi, pai, como é que
o senhor namora? Não sei se eu fui grosseira, mas eu falei isso, por que eu me senti
tão mal, assim do jeito que ele falou… por que eu acho que se fosse um homem, ele
iria perguntar isso? Bárbara como é que tu namora com tua namorada? Eu dei essa
resposta e sai, mas um pouco… me sentindo ofendida. É pior do que ouvir alguma
168

pessoa na rua falando, olha a sapatão, olha não sei o que, é pior do que isso por que é
uma pessoa que você convive 24 horas.
Eu acho uma coisa ofensiva. É uma coisa íntima da pessoa. Você vai lá perguntar pra
um casal: “você coloca o pênis na vagina dela? Você faz fio terra?” É uma coisa
íntima, não vê o externo, só vê um interno, o que pode acontecer entre quatro paredes.
……….………………………………………………………………………………
Por que assim, eles olham pra mim e veem exatamente o ato sexual. Não olham a
forma com que a outra pessoa trata a outra. O que a outra pessoa transmite pra outra
pessoa pra deixar a pessoa mais feliz. É tipo assim Renata, você vê um casal hétero e
olhar só o sexo dele. Essa era uma questão que me perturbava e me fazia sentir
exatamente aquilo que ela estava dizendo, porque realmente as palavras têm poder,
né? Podem matar.

Bárbara normalmente não respondia às ofensas proferidas por seus pais, em especial
por sua mãe que as realizava de modo mais frequente e sobretudo quando intuía que sua filha
iria se encontrar com Iara:

Se eu enfrentasse eles e dissesse assim “eu sou isso, eu sou aquilo”, eu acho que ia ser
mais difícil enfrentar tudo isso. Eu nunca me coloco. Eu sempre... Tipo, tô pronta pra
sair e digo que vou pra casa de uma amiga. Aí minha mãe diz: “você vai fazer isso e
isso.” Aí fica julgando uma coisa que eu não ia fazer e eu me sinto aquela pessoa que
ela tá falando. Só que ela fala com uma linguagem diferente, você vai fazer aquilo e
aquilo outro e eu no caso, eu me sentia aquilo que ela tava falando. Aí eu acabava
fazendo o que? Tirava a roupa.

Diante das constantes ofensas vividas no interior de sua casa, Bárbara buscava um
equilíbrio entre a enunciação afirmativa de sua sexualidade e o estabelecimento de um nível
discricionário ótimo na presença do público: entre membros de sua família nuclear, o nome de
Iara nunca era falado, e suas amizades mais próximas eram com pessoas heterossexuais (a tia
de sua namorada e o namorado dela), preferindo estar com eles em ambientes privados, fazendo
um cineminha, jogando dominó ou compartilhando um churrasco na casa de alguns.
Normalmente, quando decidiam ir a algum lugar de acesso público a fim de se divertirem,
Bárbara e Iara se dirigiam a bares e restaurantes na sede de Trairi, com estas amizades. Outro
recurso era o distanciamento dos garotos e garotas do Vale, preferindo estar com eles apenas
em eventos ocorridos em ambientes privativos, na casa de algum deles ou de uma amizade em
comum.
Apesar de todos esses cuidados, as garotas acreditavam que todos da cidade sabiam
sobre o relacionamento entre as duas e tal conhecimento, paradoxalmente, parecia ter sido ser
viabilizado justo por conta do acautelamento por elas organizado e, obviamente, da transmissão,
pela via das fofocas, que ocorria no lugarejo. Ao serem por mim questionadas sobre o fato das
pessoas do distrito terem conhecimento sobre a relação de namoro entre elas, disseram-me:
169

Bárbara - Eu acho porque uns suspeitam acolá, outros falam, ou então porque, não
sei te falar...
Iara – Eu acho que é por boato de alguma coisa, aí um vai passando para o outro, aí
vai identificando (...) porque assim, desde sempre né, desde alguns tempos é... tipo te
chamavam daquilo, que tu gostava de mulher, entendeu? Aí tipo, se sabe que eu gosto
de mulher e se sabe que a Bárbara gosta de mulher, se a gente anda juntas, se eu não
vou na casa dela, porque eu não pego ela lá na casa dela, é lógico que a gente tem
alguma coisa, entendeu?!

É preciso observar que esta história, bastante aproximada daquela contada por Lina
sobre o início de seu namoro com Sissi, revela uma característica bastante evidente no armário
rural e que parece se dar de modo oposto à ideia de que na zona rural não há lugar para as
sexualidades homoeróticas existirem fora do armário. Diante das histórias por mim coletadas,
sugiro que, ao contrário, o fato de que as relações de sociabilidade numa zona rural se deem
tendo por base o compadrio e a vizinhança e que a privacidade parece ser matéria rara, parece-
me que, independente do esforço do sujeito para ocultar suas experiências homoeróticas, uma
vez que uma relação entre iguais é estabelecida (ou mesmo apenas presumida), logo ela entra
no domínio público.
Por conta disso, quando já não é mais sustentável o encobrimento da relação entre
iguais, aqueles e aquelas que dela participam, podem declinar de tentar encobri-la, buscando
manter, no espaço público, uma apresentação assimilada à ordem de uma passabilidade. Para
Iara e Bárbara, bem como para Lina e Sissi, entendendo que suas relações amorosas eram
sabidas por todos, o acobertamento servia como uma forma de acomodação e resistência, que
lhes permitiam viver seus romances, ao mesmo tempo em que buscavam garantir, ao máximo,
a sua inserção no espaço comunitário.
Bárbara e Iara raramente abraçavam-se ou trocavam carinhos, nunca se beijavam
diante dos outros, mesmo quando se encontravam em algum lugar privado e na companhia de
amigos que, embora heterossexuais, apoiavam o casal. Nos espaços públicos, por vezes, podiam
de modo rápido, passar a mão nos cabelos uma da outra. Outras vezes, as trocas de carinho
ocorriam de modo escondido, tal como um alisar de dedinhos por debaixo da mesa do
restaurante onde estavam com esses amigos. Quando permaneciam em companhia das meninas
e meninos do Vale, geralmente quando estes se encontravam em ambientes privados, as trocas
de carinho poderiam se prolongar sem, contudo, alterar as formas. Raramente se juntavam a
eles na praça.
O controle de sua aparição no espaço público de uma cidade pequena servia-lhe
também como forma de se proteger dos ataques vividos em seu ambiente doméstico, marcado
pela religiosidade de sua família. Como ela me disse,
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Nós não vamos muito à praça, mais por causa de mim. Por que assim, por que eu era
mais retraída, entendeu? E tem a família também. Eu ficava pensando na minha
cabeça, quando a gente fica com vários pensamentos, a gente fica, tipo morrendo pela
cabeça. Por que assim, Renata, a gente já passou por muita coisa pra ficar juntas, muita
coisa. Tanto eu como a Iara e a gente quer fazer tudo direitinho pra não ser tachada de
alguma coisa ruim, entendeu? Ainda mais numa cidade pequena.
…………………………………………………………………………………………
A nossa situação é diferente das outras meninas, as outras meninas eu não sei, acho
que é mais liberal e tal, vai para a praça e tal. Eu, assim, mesmo não fazendo nada de
errado, ainda tem falatório lá em casa, sabe? Falatório! E se eu ficar lá na praça, aí
começou, “ah, olha lá com um monte de viadinho e sapatão”, aí fica lá em casa o
falatório, aí é chato né? ficar ouvindo essas coisas…

Além do mais, mesmo que ela não mais frequentasse a Assembleia de Deus e que já
não organizasse suas vestimentas em conformidade com a determinação que era destinada ás
mulheres, pesava-lhe sua afiliação religiosa:

Isso [a religião] pesa mais:


- Olha, é crente... Olha é não sei o que agora!
Sempre tem esse falatório:
- Era crente e agora tá não sei o que!

Em Promessinha, o controle da manifestação de sua sexualidade era uma constante,


quando saiam da cidade e se dirigiam à Itapipoca, se permitiam um maior afrouxamento da
vigilância auto infligida, sendo capazes de, por vezes, trocar afetos em público, tais como
caminhar de mãos dadas e abraçarem-se de modo carinhoso, sem, contudo, realizar qualquer
ato que evidenciasse, sem resto de dúvidas, que ali se tratasse de um casal de namoradas e não
apenas um par de amigas. Nesta cidade, chegaram até mesmo a responder que eram um casal,
quando foram perguntadas por um vendedor de uma grande loja de departamentos se elas
seriam irmãs, ou primas. Em suma, após o seu retorno para sua cidade de origem, diante dos
outros, diferentemente do modo como havia agido quando morou em Brasília, a regra que
Bárbara impôs a si própria foi a de nada de agarramento e beijar. Eu acho que é até
constrangedor para a pessoa que tá vendo. Sei lá… (…) quando tem um casal hétero se
beijando em minha frente eu também fico constrangida, só não fico se eles tiverem bem longe.
Há de se perceber que se, na cultura ocidental moderna, as relações homoafetivas
foram lançadas para o espaço privado, na vida campesina, a escassez de espaços de intimidade
é um dos elementos obstaculizadores de uma experiência desta natureza, como disse
Schweighofer (2016). Esta característica também deve ser considerada junto a aspectos
referentes ao gênero e condições socioeconômicas dos envolvidos. Desempregadas (ou
subempregada, no caso de Iara) e tendo Bárbara sob a tutela vigilante de sua família, era difícil
171

para o casal estar a sós. Por vezes, elas dependiam dos favores de alguém que lhes cedesse uma
casa sem a presença de seus donos. Em outras, utilizando-se da moto do pai de Iara, se dirigiam
a uma Praia pertencente a um distrito vizinho onde, acelerando para longe da colônia de
pescadores até o ponto de que nutrissem a certeza de que ninguém estaria por perto, se
permitiam namorar com mais liberdade. Algum tempo depois, uma onda de assalto nesta praia
lhes retira essa alternativa.
A possibilidade de intimidade em condições de segurança e de modo mais autônomo
só surgiu quando um inquilino que alugava um apartamento do lado da lojinha da mãe de Iara
o deixa vago e a partir de então, por vezes, elas passam a ficar lá, durante suas tardes, sem ter
preocupações com o olhar de terceiros.
Entre o narrar-se e o esconder-se, o modo como Bárbara encontrou para ser capaz
de permanecer sob os cuidados da família, em um momento no qual não tinha recursos para
viver de outra forma, foi gerenciar a sua aparição pública: se dar menos aos olhares atentos de
seus vizinhos, ao mesmo tempo em que, sendo cônscia de que isto se constituía uma meta
inalcançável, cuidar para que, quando sob tais olhares, fossem capturados o menos possível de
qualquer traço de sua homossexualidade, sem contudo, ter aberto mão dela. Não se tratava de
negar o que era sabido, mas de se apresentar de modo “adequado” às pessoas do ambiente e se
beneficiar da imagem de um casal estável. Como disse Rubim (2011), estar em uma relação
estável e “comportada”, mesmo que se dê entre iguais, é se posicionar em um modelo mais
palatável ao corpo social. Uma vez mais palatável, supunha, evitaria um possível falatório no
ouvido de seus pais, diminuindo a probabilidade de incremento das injúrias vividas em sua casa.
É bastante difícil avaliar o quanto suas atitudes discricionárias assimiladas ao
mainstream heteronormativo podem ter sido capazes de contribuir para o arrefecimento das
provocações e xingamentos que recebia, quase diariamente, em sua família nuclear. De todo
modo, a cada encontro nosso, ela me dizia que as relações familiares estavam melhor. Talvez
ela tenha razão ao pensar que é o tempo que faz as coisas, já que se hoje fosse igual ao começo,
eu ia te falar aqui chorando, mas hoje está tudo mudado. Não teria sido a conclusão à qual
chegaram Nascimento e Scorsolini-Comin (2018), quando verificaram que, via de regra, a
família também tem seu tempo de gestão em relação ao seu próprio armário?
A melhoria nas relações familiares, por certo, fez com que ela pudesse se liberar um
pouco mais em relação a sua circulação, junto com Iara, na cena pública da cidade, chegando
ao ponto em que fosse possível permanecer com ela, sentada no banco da praça, conversando,
mesmo que buscando se manter, como me disse, longe da “muvuca”, o que me pareceu
significar longe da turma do Vale. A construção de mapas de segurança - saber onde ir, com
172

quem estar, de que modo se apresentar (Cf. MURASAKI e GALHEIGO, 2016) - foi algo
bastante presente em sua vida, mais do que na de qualquer outra, dentre as garotas pesquisadas.
Do mesmo modo, e talvez isto justifique o cuidado, as provocações injuriosas que a atingiam,
dentro de sua casa
Todo avanço que conquistou no sentido de experimentar uma maior liberação na
socialização que realizava em Promessinha, dependeu tanto da diminuição das contendas
familiares, como de sua própria evolução sobre o que fazer com o que ela acreditava ser o
pensamento dos outros:

Hoje tá melhor, não tá como naquela outra entrevista, entendeu? Antes, por exemplo,
eu não poderia estar aqui, que ia ser uma história, entendeu? Ia pensar coisas que eu
não estaria fazendo. Aí eu penso que estou fazendo aquilo mesmo, entendeu? Ai por
isso que às vezes eu evitava ir pra praça, essas coisas. Eu fiquei tipo reprimindo,
entendeu?
…………………………………………………………………………………………
Lá em casa não tem mais ofensa, aquela agressividade... de ficar em só em casa,
trancada, com medo de todo mundo, como era antes, né? Eu tô pouco me importando.
Eu acho que todo mundo sente isso no começo… fica triste, fica depressiva, com medo
das falas das pessoas… do que é que as pessoas vão falar, vão pensar… hoje pouco
me importa. Eu mando todos irem pra puta que pariu, com a mente.

6.4 Saindo do armário.

A narrativa contida na secção anterior pode levar àquelas e àqueles que leem essas
páginas à ideação de uma garota extremamente reclusa e imbuída em fazer desaparecer a sua
existência lésbica em seu meio social. Talvez isto se aproximasse da verdade, caso não fosse
considerado o intenso movimento em sentido oposto dentro do universo virtual. Nas
plataformas de relacionamento social, em princípio o Facebook e posteriormente utilizando-se
também do Instagram, qualquer um de seus amigos virtuais, sem necessidade de esforço,
poderia saber que Bárbara namorava uma mulher. E isto era possível de ser acessado mesmo
antes do momento em que fomos apresentadas, o que significa dizer que, enquanto que na cena
pública a garota era movida pela discrição, no mundo virtual o desejo móvel seria o de
revelação.
Na web, era possível que suas amizades virtuais acompanhassem, mês a mês, a
evolução do tempo de vida do casal. A comemoração, a cada mensário, trazia imagens do casal,
ou dos presentes trocados, caso houvessem alguns. O texto escrito sempre era iniciado por um
número que pode ser representado na forma de X Y, onde X referia-se à quantidade de anos e
Y à quantidade de meses vividos dentro dessa relação. Desde o último aniversário de Iara, para
173

qualquer pessoa que entre nas suas redes sociais, é possível encontrar uma foto de sua
namorada, associada aos seguintes dizeres:

Minha princesa, hoje é o dia mais importante e mais especial do ano inteiro, pois foi
nesta data que você chegou ao mundo e o tornou mais rico. Feliz aniversário, meu
amor!
Você é linda, carinhosa, perfeita até na imperfeição. Você mudou meu mundo, trouxe
significado e transformou minha vida em uma permanente alegria. Meu amor por você
não conhece limites ou barreiras, e meu objetivo diário é fazer você feliz.😍😍😍

Em princípio, Bárbara mantinha seus pais no rol de amizades virtuais, porém, como
as postagens servem como munição para os comentários injuriosos de sua família, logo eles
foram excluídos do seu Facebook e jamais foram adicionados à sua página do Instagram
posteriormente criada. Muitas pessoas de Promessinha - incluindo sua família extensiva, tais
como primos, tios e agregados - seguiram-na e eram por ela seguidas, o que poderia denotar
uma certa ambiguidade entre a pretendida discrição e a revelação pública de sua sexualidade,
na localidade em que morava
Entre o casal, Bárbara iniciou as postagens declaratórias no Facebook, marcando
sua namorada. Iara reprimia, temendo as costumeiras censuras que partiam de sua família.
Vencida pela insistência da namorada, posteriormente a própria Iara passou a postar mensagens
da mesma natureza. Portanto, não se trata de oposição entre revelar ou esconder o que todos já
sabiam e nenhuma contradição ou ambiguidade se estabelecia entre o comportamento social de
reclusão e a explosão da mensagem nas redes sociais. Mais uma vez, a questão não é o revelar,
mas sobre o que revelar e como revelar:

Iara: Não tem essa de esconder nada não. Eu acho que o que pega mais é o ver (…)
como vamos pegar mais pesado em relação ao beijo entre duas mulheres na praça?
Bárbara: Sim, a boca das pessoas ia cair em cima: - “Ela tava beijando na rua!”, como
a gente ouve de vez em quando, quando acontece esse tipo de coisa né? Não que seja
ruim ou errado, também não acho errado isso, só acho um pouco de muita exposição,
mas não que aquele ato seja errado. (…) eu não tenho desejo de me expor assim.

No espaço físico da cidade o fato de estarem juntas era o suficiente para lembrar a
todos que ali existiam duas mulheres que namoravam. Nas redes sociais, como disse Turkle
(em Casalegno, 1999, p. 119) “a vida on-line retoma um aspecto da vida cotidiana para elevá-
lo a um nível superior”. A superioridade da declaração explícita e reiterada, que coloca Bárbara
no lugar de uma pessoa que narra a si mesmo como alguém que se relaciona amorosamente
com outra mulher, não foge do aspecto cuidadoso com que, no mundo concreto, combinava a
174

declaração de um suposto desvio e um certo cuidado asséptico: as postagens não tem maldade,
é só carinho, amor, afeto (…), são só declarações.
A própria existência de uma relação de namoro estável não pode ser ignorada,
quando se pensa no desejo de comunicar aos outros sobre o que ocorre em sua vida íntima.
Oliveira (2019), que pesquisou as revelações que lésbicas faziam para sua família acerca de sua
sexualidade, encontrou que a experiência de namoro é um elemento bastante motivador para a
saída do armário. O namoro existe como “algo para ser visto” e não tem relação necessária com
alguma crença na importância política da revelação em si. Trata-se de um desejo de poder
desfrutar das mesmas garantias destinadas às relações heterossexuais, tornando visível aos
outros as suas próprias experiências emocionais. Um namoro estável, diz o autor, torna o
armário mais claustrofóbico. E Bárbara desejava que as pessoas com as quais conviviam (e não
apenas sua família, lócus investigativos da pesquisa de Oliveira [idem]) tivessem conhecimento
de sua experiência afetiva. O espaço virtual surgia como possibilidade de efetivar seu desejo já
que, segundo ela,

Por que [nas redes sociais] a gente consegue se expor assim. A rede social é um veículo
muito rápido que a gente mesmo falando um A, todo mundo vai saber que eu falei um
A. E eu preciso falar que amo ela.
…………………………………………………………………………………………
…………
Eu não consigo falar assim pra pessoa, por que você é discriminada e no Facebook
você não é discriminada, entendeu?

Nas redes sociais, Bárbara se sentia

Mais livre, [pois] todo mundo pensa igual e a gente pode falar o que quiser (...), as
pessoas vão poupar as palavras. E eu vou meio que me expondo assim sem querer
falar pra ninguém, mas todo mundo vai saber (...) antigamente a gente vivia escondida,
na escuridão, o único escape que a gente tinha era só o Facebook. É tipo um escape
pra gente.

A possibilidade de realizar estas declarações, motivada pelo desejo de partilhar com


os outros a sua experiência emocional, era garantida por uma “virtuosidade” desenvolvida no
uso constante das redes sociais (Cf. TURKLE in CASALEGNO, 1999): retirar seus pais e
manter o restante da família, postar apenas coisas que não são impactantes (como me disse
certa vez) e centrar-se em manifestação de atitudes afetuosas tomou parte dessa estratégia que
buscou continuar a imagem de um bom casal. Adicionalmente, poderiam lhes servir como fiel
da balança os próprios comentários postados em resposta às suas publicações. Tendo constatado
175

que todos eles traziam mensagens positivas, Bárbara acabava por intuir que sua estratégia a
colocava na medida certa na equação esconder-se/revelar-se.
Como dito antes, é difícil avaliar com precisão o impacto de tais atitudes nas
relações que ela estabelecia com as pessoas com quem interagia no “resto de vida”. Turkle (em
Casalegno, 1999) utiliza-se do termo “resto de vida” para afirmar a continuidade entre a
apresentação no mundo virtual e no mundo físico. De acordo com a autora, é perceptível que
as interações na rede funcionam como catalisador ou retratador de relações que se estabelecem
em outros espaços (no resto de vida). Nesse movimento de avaliar a receptividade das pessoas,
Bárbara foi capaz de perceber, por exemplo, a forma como sua família extensiva seria capaz de
conviver com a revelação de sua sexualidade, chegando mesmo a apresentar sua namorada para
alguns de seus parentes, como me disse: Todos de minha família sabem. A família do meu pai
não diz nada, já até levei ela [Iara] lá. Ela já falou com meu avô, a maior conversa e com a
minha tia, com todo mundo. Só as quatro pessoas lá de casa que não tem tanto diálogo assim.
Vale lembrar que foi a partir das delações que sua família nuclear ficou sabendo que
Bárbara namorava uma mulher. Tanto na delação feita para sua mãe, como naquela que teve
por alvo o seu pai, em nenhum momento a garota pretendeu faltar-lhes com a verdade,
afirmando sua experiência lésbica. Posteriormente, via redes sociais, é ela quem comunica sua
aventura sexual a todos os outros que podem acessá-la por este meio. No fim das contas, é
possível crer que a delação seja vivida como oportunidade, posto que, uma vez que sua família
passe a saber que ela é lésbica e que ela passa a assumir tal revelação no mundo virtual, ocorre

Uma libertação, é uma libertação é tipo você ter um segredo muito grande que você
não pode contar, tem que guardar pra você e só você tem que sentir. Aí você não tem
que se esconder como antes, no começo né? Que aí você tinha que se esconder, tinha
que ir pra outros países né? Pra não dizer outros lugares pra poder ficar mais à vontade.

Essa libertação foi sendo construída no tecer das redes sociais com a vida física no
lugar onde habitava e, durante o tempo de desenrolar de minha pesquisa, assisti a uma crescente
integração da sua sexualidade em seus diversos espaços de sociabilidade, ainda que sempre de
maneira incompleta: pouco antes de sua migração para Fortaleza, Iara já a buscava e a deixava
na porta de sua casa quando saiam juntas e até mesmo cumprimentava os familiares de sua
namorada, embora jamais tivesse construído uma oportunidade de diálogo com eles; elas
passaram a frequentar a praça, disponibilizando-se ao olhar de qualquer um, ainda que
acobertando comportamentos sexualizados e distante dos garotos do Vale, e puderam
permanecer juntas até o final da festa de São José, acontecida alguns anos depois do início de
176

minha pesquisa, sem que esse movimento gerasse o jogo de culpa e acusação de outrora, motivo
pelo qual não teria ido ao evento festivo no ano em que o acompanhei.
Apesar das melhorias, o desejo de sair do lugarejo se mantinha porque, sendo
incompleta a integração social, de acordo com Bárbara e Iara, elas não poderiam de fato ficar
juntas, todos os dias, se não saíssem daquela cidade. A cidade não lhes oportunizou um bom
emprego e nem mesmo lhes parecia ser possível que o casal vivesse junto em uma mesma casa,
caso permanecessem por lá.
No ano de 2017 Iara migrou para Fortaleza onde realizou um curso de vigilante
conseguindo, com a ajuda de um deputado, empregar-se em uma empresa de segurança na qual
trabalhava um dos irmãos de Bárbara. O fato de Iara estar empregada, se constituiu em mais
um motivo para o arrefecimento do desafeto da mãe de Bárbara contra sua namorada, já que a
imagem de Iara como uma garota responsável alterava um pouco a ideia negativamente
construída sobre ela. A família de Iara não imprimia tantos problemas em relação às duas e
quando, na ocasião de sua saída para a capital, foi Bárbara quem a substituiu na “lojinha”,
recebendo a “ajuda” financeira pela prestação dos serviços na loja da mãe de sua namorada.
Também neste ano, Bárbara conseguiu ingressar na universidade: ela havia tentado,
com sucesso, o curso tecnólogo em hotelaria disponibilizado pelo IFCE (Instituto Federal do
Ceará) de Itapipoca e cujas aulas aconteciam de modo virtual, embora fosse-lhe determinado a
sua presença física no polo que abrigava o curso, todos os sábados. Quando Iara alugou um
apartamento que lhe permitiu morar sozinha em Fortaleza, as duas consideraram a possibilidade
de Bárbara acompanhá-la. Porém, o fato de que em Fortaleza ela estaria desempregada e
necessitaria de dinheiro para os constantes deslocamentos para as reuniões presenciais de seu
curso, adiaram o desejo que há muito nutriam. Decidiram esperar para quando Bárbara estivesse
formada.
Vez por outra ela se dirigia à Fortaleza, a fim de passar alguns dias com Iara. Em
um desses momentos se oportunizou à realização de um curso de comissária de bordo em uma
escola de aviação de Fortaleza, alcançando um desejo antigo e certamente renovado pelo curso
de hotelaria em andamento. No período em que pode contar com a hospedagem de Iara e ao
mesmo tempo se beneficiar dos frutos colhidos pelas políticas de fixação de pessoas nas zonas
rurais, da qual a de interiorização das universidades federais e estaduais tomam parte, entre as
idas e vindas à Fortaleza, Bárbara jamais se conectou com o universo LGBTIA+, tendo focado
sua atenção para estar com sua namorada e, ao mesmo tempo, resolver um problema narrado
desde o dia em que a conheci, quando estava desempregada e não tinha de onde retirar recursos:
na verdade eu me cobro [trabalho] também, porque é muito ruim a gente viver na casa dos pais
177

ainda né, não tenho nenhum recurso de nada, porque aliás, aqui em Promessinha é meio que
pra baixo disso.
Quando de passagem pela capital do estado, a limitação financeira nunca permitiu
grandes voos na cena urbana de Fortaleza. No Réveillon de 2017, por exemplo, as duas ficaram
em casa, fazendo uma ceia íntima e decidindo não ir à festa pública no aterro da Praia de
Iracema, devido ao alto valor cobrado pela corrida de carro dentro do aplicativo Uber, neste dia.
Migrar é caro, mesmo que seja de passagem.
Se a ideia das duas garotas era esperar que Bárbara se formasse para que viesse
morar junto com Iara, o surgimento da pandemia de COVID-19 e as restrições de circulação
impostas pela política de lockdown adotada pelo Governo do Estado do Ceará sinalizou a
possibilidade da precipitação da sua vinda para a capital, quando foi determinada a suspensão
das aulas presenciais em seu curso tecnólogo. Ademais, fortaleceu às circunstâncias um
desentendimento com seu pai, quando na ocasião do sumiço de um dinheiro que ela havia
ganhado trabalhando na loja de sua sogra. E Bárbara finalmente migrou.

6.5 Nova fuga, para uma outra cidade.

Bárbara chegou em Fortaleza pouco antes de sua conclusão do curso de hotelaria,


restando apenas a conclusão de seu TCC – Trabalho de Conclusão de Curso - para colar grau e
receber o diploma, o que foi feito. Ao chegar na capital, seguiu os passos da sua companheira,
realizando um curso de vigilante. Pouco tempo depois, empregou-se na empresa em que Iara
trabalhava, lugar no qual as duas permanecem trabalhando até hoje.
O regime de trabalho, que determina um dia de trabalho para um dia de folga, impõe
dificuldades às suas idas à Promessinha, para rever a sua família. Quando isto ocorre, por vezes
fazem de modo a passarem apenas um dia. Em seus deslocamentos rumo à zona rural, o casal
utilizou-se da moto que Iara adquiriu com recursos próprios. Em 2021, quando tiveram mais
que um dia de folga, puderam repetir o retorno para a cidade natal, aproveitando para curtir as
praias que já haviam sido importantes lugares de acolhida, em tempos mais difíceis.
Relativamente aos tempos em que viviam em Promessinha, a vida financeira de cada
uma delas melhorou consideravelmente. Se a cidade lhes indicava a possibilidade de acesso
financeiro e de moradia conjunta, ela lhes suprimiu os seus desejos, tanto no caso de Bárbara,
como no de Iara.
178

Porém, vir para a cidade não lhes determinou uma adesão à cena LGBTIA+ e nem
mesmo à discursividade política dos movimentos sociais em torno da visibilidade e seu papel
como resistência à heteronormatividade compulsória de nossa cultura (mesmo quando talvez
ela já nem seja mais tão compulsória assim). Aliás, muitas continuidades foram estabelecidas,
a considerar o fato de que elas pouco saíam de casa e quando isto ocorria, na maioria das vezes,
faziam no sentido de acompanhar as velhas amizades heterossexuais de Promessinha, a tia de
Iara e seu namorado, que costumavam se hospedar na casa das garotas, quando vinham para a
capital.
No momento em que Bárbara esteve por aqui realizando um curso na escola de
aviação, no início do ano de 2020, combinei com elas uma programação noturna. Iara sugeriu
irmos para alguma pizzaria na cidade, ao que respondi-lhe deixando que elas escolhessem entre
ir para uma pizzaria ou para um bar amigável ao público LGBTIA+ que funcionava atendendo
às pessoas sentadas ao redor de mesas dispostas ao ar livre em uma praça do Benfica, bairro
que abriga o Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará, considerado o mais
guei de Fortaleza. Elas escolheram a pizzaria.
Creio que a primeira passagem pela porta de um bar cujo público prioritário era
composto por pessoas LGBTIA+ tenha sido possibilitada por uma renovação do meu convite
ao bar anteriormente recusado, que estava funcionando sob novo endereço, com nova
arquitetura em um grande prédio gradeado, ainda que no mesmo bairro. O consentimento
também foi motivado pelo fato de que Sissi, uma das participantes de minha pesquisa que
também iria nos encontrar, tenha afirmado seu gosto pelo endereço proposto. Tivemos todas
juntas neste mesmo bar em duas ocasiões e, ao menos em minha presença, jamais alteraram a
forma como se conduziam como um casal, do mesmo modo que faziam quando estavam em
Promessinha.
Suspeito que o ato discricionário de Bárbara tenha relação com os limites
estabelecidos dentro de sua relação de namoro. Se estando em Brasília Bárbara se permitia dar-
se ao olhar dos outros visibilizando uma experiência lésbica, em Fortaleza, estando com Iara,
isso não seria possível, pois como esta disse-me: a gente sai do interior, mas aquilo não sai de
dentro d’agente.
As histórias de Lina e de Iara indicam que é preciso mais - ou menos, ou ainda outra
coisa - do que o acesso à cidade para que seja possível uma transformação da epistemologia do
armário na vida de muitas lésbicas e gueis que migram para a capital. Uma delas é a
disponibilidade das parcerias românticas em proceder com atitudes mais reveladoras em
espaços de acesso público, mesmo que eles sejam menos restritivos.
179

7 SEMPRE APARECEU MULHER PRA MIM: A TRAJETÓRIA DE IARA

7.1 Primeiras experiências, primeiras enunciações

De pele morena, com longos cabelos lisos e pretos, Iara é a filha mais velha de uma
família reconstituída. Da união de seus pais nasceram três filhas, sendo Iara a primogênita.
Antes de se casarem, seu pai havia tido um filho que ficou aos cuidados de sua primeira esposa,
e sua mãe tinha uma filha, criada por sua avó materna e que atualmente mora em Brasília. Seu
pai é agricultor, possuindo um sítio na zona rural de Promessinha, onde produz cocos e bananas
e cria algum gado com vistas à comercialização. Entre as filhas do casal, Iara era a única que,
quando criança, se interessava em acompanhar seu pai na lide com a terra, montada num cavalo
ou num jumento e por vezes indo sozinha deixar o jumento no cercado, narrou, exibindo um
certo orgulho da proeza ao embaralhar os esperados papéis de gênero: na minha infância eu ia
muito lá, andava de jumento, cavalo. Eu fazia muita coisa ali. Eu ia demais com meu pai, toda
vida ele me levava, eu já fui deixar jumento sozinha no cercado. Era mais divertido. Minhas
irmãs não participavam muito não, era mais eu.
Além da produção agrícola, sua família possui também um mercadinho que
funciona na frente da casa de seus pais, sendo administrado por sua mãe. Parte do que se vende
nele é produzido nas terras da família. Adicionalmente, o pai da garota possui um outro imóvel
com unidades comerciais e residenciais que se destinam aos aluguéis e que abriga a lojinha, um
pequeno comércio de sua mãe para venda de roupas, num bairro mais afastado do centro da
cidade.
Nosso primeiro encontro, em setembro de 2016, se deu na lojinha, lugar onde Iara
passou a trabalhar após sua chegada de Brasília, onde morou por dois anos. Fazia
aproximadamente um ano de seu retorno. Ela estava com 20 anos de idade e a renda que ela
possuía, dada por sua mãe pelo seu trabalho na loja, era alguma coisa, pois é um trabalho de
família embora, sempre que precisasse, seus pais lhes disponibilizassem a quantia almejada. Na
ausência de clientes ou visitas, Iara usava seu tempo livre estudando para o iminente concurso
público para agente penitenciário do estado do Ceará. O sonho de Iara era exercer alguma
profissão com farda. No ano em que a conheci, em 2016, ela inscreveu-se e realizou provas do
concurso da Polícia Militar do Ceará, não obtendo sucesso neste pleito. Na ocasião de nosso
primeiro encontro ela estava na presença de sua namorada Bárbara, mulher com a qual mantém
um relacionamento por mais de 8 anos, os dois últimos em Fortaleza, onde passaram a morar
juntas.
180

Seus pais eram católicos e Iara também seguiu seus passos, dedicando muita atenção
à igreja durante sua juventude e mesmo quando jovem adulta. Resumindo sua longa e ativa
trajetória na paróquia de Promessinha, disse-me: sempre participei de grupo de oração, fui
coroinha, fui da pastoral da juventude e ainda fui coordenadora da pastoral da acolhida.
A trajetória de Iara em torno do armário tem início na passagem da sua infância para
a adolescência, a partir de brincadeiras sexuais infantis vividas com outras garotas e que não
foram imediatamente significadas por ela como indício de uma homossexualidade que a
definisse. A construção de uma identidade lésbica por Iara dependeu de um longo processo,
levado a cabo por alguns anos, nos quais vários elementos entraram em jogo: a repetição de
suas experiências com garotas; seu encontro com os meninos do Vale, em um momento onde
todos estavam se descobrindo; sua revelação a terceiros sobre suas aventuras com meninas, e o
modo como tal confissão foi acolhida contribuíram para que ela pudesse, em vários momentos
e cada vez mais, afirmar-se como lésbica, tanto para si, como diante dos outros.
Em Promessinha, aos 12 anos de idade, ou menos, quando beijou uma de suas
amigas em uma brincadeira infantil, até o momento em que foi para Brasília, com 16 anos de
idade, ela pode ser capaz de vivenciar diversas experiências com outras garotas pois, como me
disse:

Sempre aparece mulher pra mim. A primeira menina, eu tinha doze anos, ou menos.
Foi num natal na casa da vizinha, mas não foi com a vizinha ainda, foi com a prima
dela. Eu fiquei apaixonada por essa menina que eu beijei. Todas férias ela vinha, que
era pra a gente ficar, né? Ela vinha mais pra isso. Foram três anos mais ou menos
assim… A gente não namorava e foi por isso que eu peguei a outra, a prima dela. Não
me lembro como foi que isso começou, mas começamos sempre assim, deixando né?
Elas vinham, beijavam, a gente ficava. Eu acho que eu já dei um beijo em outra menina
que ninguém imagina, mas ela que veio atrás de mim. E na igreja, fiquei com uma que
tinha namorado, quase um marido… aí depois veio a Gerlândia. Ela ficava com os
meninos e queria ficar comigo. Aí tem essa Malú. A gente já se conhecia. Sabe aquela
pessoa que tem aquela rixa, mas se quer? Aí uma vez a gente viajou pra Pentecoste,
que a gente foi jogar lá e aí começou a ter um carinho, um toque diferente em mim e
aí eu já… Eu era do time de handebol, a gente tinha uma “rixazinha”. Aí ela me deu
um beijo lá em Pentecoste e aí eu deixei. Antes de eu ficar com ela, ela tinha acabado
com o namorado. (...) aí foi o tempo em que eu conheci a Luciana, que é essa do
colégio, ela estudava em outra sala.

No início, ela era muito nova e suas primeiras experiências com garotas, entre seus
12 e 14 anos, emergiram em situações nas quais ela brincava com suas vizinhas de casinha ou
médica, nos quintais das casas delas, em lugares estrategicamente escolhidos para que
permanecessem escondidas. Esses jogos sexuais possibilitaram que Iara ficasse com algumas
de suas amigas, repetidas vezes e com ao menos uma delas, por cerca de 3 anos. Nenhum
compromisso existia ali, nem consigo própria, nem mesmo com a manutenção de suas
181

amizades, o que lhe possibilitou estar alternadamente com algumas dessas amigas, em um
mesmo período. Segundo Iara, neste momento de sua vida, seus jogos sexuais com as meninas
eram experiências que não a definiram e que simplesmente aconteciam: sempre apareciam
meninas pra mim. (…). Sabe quando você é criança e tem coisa que você entende e tem coisa
que você só vai entender depois, né? Aí depois a pessoa vai crescendo e vai sabendo o que é
que gosta e o que eu que não gosta. Pois é, aí aconteceu.
É provável que naquela localidade, durante suas primeiras experiências, a idade na
qual elas ocorreram tenha contribuído para a ausência de auto definição por parte da garota.
Iara sabia que existiam viados e sapatões, posto que, desde criança, vez por outra, ela ouvia,
mais de pessoas mais velhas, na igreja e na rua, que viado e sapatão não iam pro céu. Embora
ela soubesse da existência de “viados” e “sapatões”, ela não dispunha de informações suficiente
para fazê-la se situar entre elas, já que ela e talvez algumas de suas amigas, impossibilitadas de
encontrar alguns espelhos para o que estava lhes acontecendo, passeavam por um “certo vazio
simbólico para lidar com um desejo erótico que descobriam em si e para o qual suas famílias,
sua língua e sua cultura não reservavam até então detida dedicação” (MIGUEL, 2021, p. 947).
Estas primeiras “amizades” foram estabelecidas com as meninas da vizinhança, já
que seus pais não deixavam ela ir para muito além das cercanias de sua casa. Apaixonou-se por
muitas dessas garotas, mas não dispunha de uma referência clara em relação ao que estava
vivendo. Penso que nesse momento de sua vida, por negação moratória ou por impossibilidade
de referenciar-se, suas atitudes estavam mais próximas de uma Ars erótica. Talvez esse detalhe
tenha contribuído para que a garota se permitisse a se dar ao prazer de estar com suas amigas,
sem ter que se responsabilizar sobre o seu destino no céu, junto aos outros pecadores.
Mesmo que não atribuísse para si qualquer rótulo, cada vez mais Iara passava a
considerar que atitudes não tinham aprovação social especialmente por se tratar de um pecado.
Iara buscou responder ao que dela esperavam, ao mesmo tempo em que desejava reverter a
orientação de seus desejos. Disse-me que, por volta dos 14 anos,

Na escola, eu ficava com os meninos porque as meninas empurravam. Eu já tinha esse


pensamento né? Só que eu não queria e como eu não queria… é clichê da gente fazer
essas coisas, né? Aí você pega e vai ficar com menino.
Tem menino que a gente até gosta e aí a gente pensa que vai dar jeito. Mas aí eu...
gostei, mas não, quero mais não. Aí as meninas ficavam empurrando pra mim e pra
eu não passar de não querer e tal, eu dizia: “eu quero, eu fico”. Eu já conheci muitos
meninos legais, sim, só que não tinha um… mas as meninas, eu já ficava com o
coração... [neste momento, cerra o punho da mão direita e leva ao lado esquerdo do
peito, batendo sucessivas e rápidas vezes na altura do coração, indicando a aceleração
ocorrida em seu ritmo cardíaco]
…………………………………………………………………………………………
182

E aí eu fiquei com os meninos, entendeu? É, mas por, por pressão, entendeu? Tipo,
todo mundo fica, aí você vai ficar também pra ser igual, entendeu? Tipo assim, você
força, você acaba fazendo coisas para as outras pessoas pensarem que você não é
aquilo. Você faz né? Para as outras pessoas mesmo, entendeu? Pra saber que você é
aquilo que elas querem que você seja. Mas, aí sempre acontecia de aparecer meninas,
entendeu? Que você acaba gostando, e acaba acontecendo, só que você não quer
aquilo, né?! Por não ser da aceitação da sociedade, né?!

Foi durante o ensino médio, por volta de seus 16 anos, ou um pouco antes, que Iara
passou a compreender-se lésbica, dando importância a essa hipótese, considerando, inclusive,
a impossibilidade de mudança de seu desejo. Ela possuía intenso laços de amizade com Santos,
primo de Sissi, que também estava processando seu armário guei, com o qual a garota não só
estudava, mas também participava de atividades na paróquia. No final deste período escolar, as
conversas com seu amigo lhe favoreceram à construção de uma chave de inteligibilidade para
o seu desejo, o que a fez sair de uma posição mais passiva de aceitar estar com meninas que a
procuravam, passando a investir de modo mais engajado em tais amizades. Santos foi a primeira
pessoa com a qual a garota falou sobre seu desejo por meninas e desde então foi ficando mais
clara (e menos pesarosa) a ideia de que ela poderia ser lésbica: A primeira pessoa que eu tive
essa abertura, foi o Santos, né? E aí ele falou pra mim sobre a orientação sexual dele, aí eu
também falei pra ele, né? Já que ele tinha falado pra mim, eu também falei pra ele. E foi a
partir daí que tudo foi ficando mais leve, mais claro pra mim.
Nesse período em que começava a avaliar uma possível orientação sexual
homoafetiva para o seu desejo, ela certamente se envolve ativamente para a obtenção de uma
relação mais estável com uma garota (e não mais os encontros ligeiros com algumas amigas
que a procuravam a fim de ficar com ela de modo descomprometido). Interessou-se por
Gerlândia e

Mandava carta pra ela, só que eu não mandava com intenção assim. Eu não sabia…
mas vai que ela queria, né? Porque naquela época era tudo escondido e a gente não
podia se abrir demais…. Aí eu mandava um bombom, umas coisinhas assim… aí ela
se tocou né? Eu acho que ela se tocou. Aí uma vez ela me mandou uma carta, mandou
pôr alguém, dizendo que queria ficar comigo. Aí pronto, meu coração foi a mil, pois
era tudo o que eu queria, mas eu não queria dar o passo inicial, eu queria que ela
falasse e foi então que ela deu. Aí ela pediu pra eu ir lá na casa dela. Aí na casa dela
tinha uma espécie de construção… aí de vez em quando eu ia pra lá.

Seu romance com Gerlândia não foi adiante, posto que a pretendida ficava com
meninos e havia lhe proposto a continuidade da relação desde que elas pudessem manter
namoros com o sexo oposto. Para Iara esta situação lhe colocava em sofrimento e, além do
183

mais, ela própria já não se interessava em ter um relacionamento com algum rapaz. A relação
foi desfeita.
Pouco tempo depois, a partir de um estratagema organizado por uma amiga que
sabia que Iara gostava de meninas, embora ela jamais lhe tenha dito, ela se interessou por
Luciana, com a qual iniciou um namoro:

Aí foi o tempo em que eu conheci a Luciana, que é essa do colégio, ela estudava em
outra sala. Eu não lembro quem falou dela pra mim, não sei se foi a Islândia, uma
vizinha minha… que era vizinha minha e depois ela foi morar lá no alagadiço… ela
comentou eu acho. Ela sabia que eu era, mas eu não queria dizer por que ela é aquelas
“meninazinha” boquinha né? Que gosta de espalhar as coisas… por isso que eu não
queria dizer. Ela disse que a Luciana era e ela disse assim: “A Luciana quer falar
contigo. Aí eu: “tá bom”. Ela disse isso pra mim e disse isso pra ela. Aí eu morrendo
de medo de não ser verdade… vai que era mentira? Aí eu peguei e disse assim pra
Luciana… “ei a Islândia me disse que tu falou pra ela que tu queria falar comigo”. E
ela me respondeu: "não, ela disse que era tu que queria falar comigo. Ficou nessa
putaria “réa”. Aí a gente começou a conversar e começou a se perguntar, né, se era…
se foi… aí foi acontecendo…

A trajetória de Iara mostra claramente que o meio rural pode ser um lugar difícil,
mas não impossível, para a relação entre iguais. Além das muitas situações onde ele pode se
envolver com garotas, as participações de amigas heterossexuais para a efetivação de alguns
desses momentos não deixam dúvidas a esse respeito. A troca de cartas com Gerlândia mediada
por pessoas em comum e ajuda sua amiga de Islândia que lhe favoreceu o romance com Luciana
e que jamais tinha sido diretamente informada por Iara sobre sua preferência sexual, indica a
possibilidade de aceitação do desejo entre iguais dentro de uma pequena localidade, mesmo
entre aqueles que não compartilham do mesmo modo de desejar.
Também, na mesma época, começou a ser informada pelos meninos do Vale, que
eles estavam se assumindo para sua família. A partir das histórias narradas por seus amigos,
Iara foi fortalecendo a ideia de que não precisaria tentar e sequer desejar reverter a orientação
de seu desejo: Aí aconteceu que o Carlos conversou com a família dele sobre a sexualidade
dele, o Raul… quando os meninos começaram a conversar com a família deles, isso também
foi abrindo minha mente né? E foi clareando o que realmente eu tava sentindo, né?
Junto com seus amigos, mas segura do que sentia, Iara motivou-se a revelar para sua
mãe acerca de sua sexualidade. Em verdade, duas foram as versões contadas por Iara a respeito
do que determinou o momento em que decidiu realizar seu processo de revelação. Num
primeiro momento, a garota me informou que alguém da cidade a flagrou com outra garota e
que, diante desse incidente, ela teve receio de que outra pessoa fosse comentar com sua mãe.
Em uma segunda versão, repetida por duas vezes, Iara me informou que talvez não tivesse
184

havido flagrante, mas, na cidade, os comentários a seu respeito se avolumavam e poderiam


chegar até sua família. Nas duas narrativas utilizadas por Iara para descrever sua motivação
para a revelação, estava em questão seu posicionamento diante de fofocas que poderiam
determinar que, dentro de sua família, ela não fosse a portadora da notícia sobre sua
sexualidade, coisa que lhe parecia importante. Mais uma vez, observa-se a força propulsora da
fofoca no contexto rural, auxiliando para que a garota passasse a se posicionar afirmativamente
como lésbica. Em suas palavras:

Já aconteceu uma situação e que... uma pessoa viu, entendeu?! E devido a isso eu
fiquei com medo dessa pessoa contar. Aí acabou que eu disse, “não, se for pra essa
pessoa contar ou contar para outras pessoas e acabar chegando na boca da mãe, então
é melhor eu contar”. Aí aconteceu toda coisa, aí eu acabei contando pra ela.
…………………………………………………………………………………………
Não sei se pegaram não. Mas já tava rolando bafafá demais. O pessoal já falava e eu
não queria que chegasse pela boca de outra pessoa. Só que eu não aguentava mais né?
Aí acabou que, por motivo de uma pessoa poder contar para minha família, eu disse:
“não, se for para acontecer isso, que seja da minha boca, né?” Aí acabou que eu contei.

De todo modo, a tensão delatora estabelecida pelas fofocas, em conjunto com as


decisões tomadas por seus amigos gueis, determinaram um clima ótimo para que a garota viesse
a conversar com sua mãe sobre o que estava lhe ocorrendo: eu me senti mais à vontade pra
falar com minha mãe sobre minha orientação sexual, depois que os meninos, o Carlos, o Raul,
conversaram com as mães deles, né? Aí isso ficou mais fácil pra mim, tanto na minha cabeça,
como na liberdade de poder falar com a mãe.
Em princípio, sua mãe pareceu compreensiva, mas com a continuidade dos diálogos,
ela foi mudando de tom, especialmente quando passou a idealizar a reação do pai de Iara.
Segundo ela:

No início ela disse assim: “não, Iara, isso aí é normal, não sei o que, não sei o que.”
Aí depois foram acontecendo as coisas e ela foi começando a chorar, aí disse que “aí
o teu pai vai não sei o que, não sei o que mais lá”, com medo da reação dele,
entendeu?! Por ele ser uma pessoa muito séria, não sei se eu posso dizer agressiva.
Não sei se eu posso dizer isso.

Durante a primeira semana após a revelação de Iara, situação provavelmente


atravessada por intenso estresse, a pressão arterial de sua mãe sobe de modo excessivo e jovem
a leva para o hospital, a fim de que ela obtivesse os cuidados necessários. Lia, filha mais velha
de sua mãe que morava em Brasília, veio, junto com seu marido, visitá-la e ajudá-la nesse
momento. Tendo sido informada sobre o fato de que sua irmã estava namorando uma mulher,
185

ela passa a afirmar que o estado de saúde de sua mãe teria sido ocasionado pela notícia da
sexualidade de Iara:

Aconteceu tudo isso e a mãe ficou doente. Eu tive que levar ela para o hospital. A
minha irmã veio e aí aquele peso todo em cima de mim, entendeu? A minha irmã lá
de Brasília disse: “ah isso que está acontecendo com a mãe é culpa tua”, essas coisas,
entendeu? Todo mundo jogando culpa em cima de mim e tudo mais.

Se a mãe de Iara teve medo de contar para o seu marido sobre a sexualidade de sua
filha, sua irmã e seu cunhado fizeram este serviço. Pretendendo dizer ao marido de sua mãe que
o aumento de pressão arterial se devia ao que ocorria com Iara, Lia e seu marido inventaram
uma história que foi desmentida por Iara, ao perceber a oportunidade de falar a verdade para
seu pai:

Depois disso [do adoecimento da mãe] contaram outra história para o pai. Não foi a
mãe que contou, foi o marido da minha irmã e a minha irmã que contaram. Inventaram
uma história, disseram que o que estava acontecendo era que uma menina estava me
forçando a namorar com ela, entendeu? E contaram essa história pra ele. Aí certo dia
aconteceu que ele me chamou e me perguntou sobre essa história. E eu disse que não
era verdade, que não era desse jeito. Aí ele perguntou né? Fez a pergunta se estava
acontecendo alguma coisa assim. E eu disse: “sim, sim”. Aí ele ficou nervoso e isso
era o meu maior medo né? Mas lá na hora eu não sei o que aconteceu comigo e eu
acabei contando tudo pra ele. Ele falou que ele não ia fazer nada comigo e ele acabou
falando “aí o que os vizinhos vão falar de mim?”

Sedgwick (2007) avalia o poder de contágio do armário em um ambiente social


homofóbico. O adoecimento de familiares, bem como a construção de um armário pela família
são resultantes dos desvalores sociais atribuído às pessoas cuja sexualidade não se dá de modo
heterossexualizado. Ao ser revelada uma sexualidade desviante no ambiente familiar, são os
membros da família que passam a administrar seu próprio armário, diante de parentes mais
distantes, vizinhos ou amigos íntimos. A doença da mãe de Iara e o medo dos vizinhos indicam
o poder do contágio do armário e os malefícios vividos por todos aqueles que circulam ao lado
do homossexual revelado, em um contexto social desfavorável. Para Sedgwick (2007, p. 39):

Quando pessoas gays se assumem em uma sociedade homofóbica, por outro lado,
talvez especialmente para os pais ou cônjuges, é com a consciência de um potencial
de sério prejuízo provavelmente nas duas direções. O próprio segredo patogênico até
pode circular contagiosamente como segredo: uma mãe diz que a revelação de seu
filho adulto para ela a mergulhou, por sua vez, no armário em sua comunidade
conservadora. Na fantasia, mas não só na fantasia, contra o medo de ser morto (ou
desejado morto) pelos pais numa tal revelação, é provável que ocorra a possibilidade,
muitas vezes imaginada com maior intensidade, de que a revelação os mate.
186

Se a revelação de Iara não provocou a morte de sua mãe, tampouco deixou de lhe
causar prejuízos. Diante do conhecimento de seu pai a respeito da sexualidade de Iara, para não
ter que lidar com os vizinhos, ele diz que não vai bater-lhe, mas resolve que sua filha deve sair
da cidade para muito longe, pensando talvez em um lugar que ela pudesse se manter distante
por um longo período:

Ele disse que não ia me bater e nem faria essas coisas, mas que eu teria que sair daqui,
que eu iria embora. E eu pensei… “não, pai, não quero ir pra Fortaleza”. E ele me
disse “não, você não pode ficar em Fortaleza, você vai embora para sua irmã [em
Brasília]” e aí ele tipo me ameaçou, me fez tipo uma ameaça, entendeu?! Aí eu disse
“então tá, eu vou, eu vou, pode deixar que eu vou, pode deixar que eu vou embora”.

7.2 Vias fraturadas.

Iara não queria morar em nenhum dos dois lugares mencionados na conversa.
Naquele momento, com 16 anos de idade, ela estava envolvida com Luciana e desejava
permanecer em Promessinha, onde tinha vivido durante toda sua vida. Porém, o medo que
sentiu ao ser ameaçada por seu pai fez com que ela acabasse assentindo com a ideia da partida.
Iara entendia que diante da determinação de seu pai não lhes restavam muitas alternativas. Ela
sabia que iria para Brasília, mas em nenhum momento foi chamada a participar do planejamento
de seu futuro próximo. Seguindo a ordem determinada por seu pai, sua mãe e sua meia-irmã
trabalharam, em surdina, para efetivar a deportação forçada de Iara que, na concepção de
Bárbara, se estabeleceu como uma cena de cinema. Iara concordava:

Eu fui forçada a fugir, entendeu?! Assim, foi uma cena totalmente de cinema. Uma
cena mesmo, entendeu? Foi tudo já marcado sem eu saber, carro já alugado, passagem
já comprada, tudo, tudo, tudo. Só o “falamento”… e nem foram eles que falaram pra
mim, e sim minha tia Mariana, né?

O senso comum informa que a família é uma unidade básica de proteção, em


especial a proteção dos mais jovens pelos mais velhos. Um pai negro protegerá seu filho negro
das injúrias raciais que ele pode vir a sofrer ou ter sofrido. Provavelmente muitos ensinamentos
sobre como lidar com sua origem racial em uma sociedade racista serão aprendidos em casa. O
mesmo modo aplicar-se-ia a uma criança judia, em um contexto na qual ela precisasse de
proteção. Por outro lado, a emergência de um guei ou lésbica, que constantemente têm sido
narrados como destruidores da família, acaba por determinar a extinção da proteção familiar,
pois
187

As famílias têm papel crucial no reforço da conformidade sexual. Muito da pressão


social é trazida para suportar a negação aos dissidentes eróticos dos confortos e
recursos que a família possui. A ideologia popular sustenta que não se espera de a
família produzir ou acolher a não conformidade sexual. Muitas famílias respondem
tentando reformar, punir ou exilar membros que sejam ofensores sexuais. Muitos
migrantes sexuais foram expulsos de casa por suas famílias, e muitos fogem da
ameaça da institucionalização. (RUBIM, 2017, p. 103)

Pouco tempo depois que seu pai se tornou cônscio de que a filha estava namorando
uma menina, para um carro na porta de sua casa e Iara é conduzida a entrar nele. O carro a levou
para o aeroporto, onde Iara entrou num voo com destino à Brasília.

7.3 A vida em uma nova cidade.

Ao chegar em Brasília, Iara foi acolhida na casa do seu tio Jader, irmão de seu pai.
Neste endereço e diante das pessoas que lá moravam, possuía certa liberdade. Algum tempo
depois mudou-se para casa de sua irmã Lia, lugar na qual ela se sentia

Presa, por que ela tentava me dominar, entendeu? De certa forma, ela queria me
dominar, me pondo pra cima de quem eu não queria, entendeu? Esse tipo de situação
me deixou muito chateada. Ele sempre ficava me apresentando homens. Sempre,
demais. E ficava dizendo um monte de coisas, um monte de besteira então aí eu não
gostei.

Não tendo se adaptado à moradia com sua irmã, que almejava conformar a
sexualidade de Iara ao padrão heterossexual a partir de considerações homofóbicas que
ocorriam de modo simultâneo à oferta de possíveis namorados, Iara procura seu tio e pede para
que esse possa recebê-la mais uma vez. Nessa época, ela namorava Luciana e não passava pela
sua cabeça encontrar qualquer outra pessoa, mesmo que fosse outra mulher.
Seu tio Jader, definido por Iara como sendo gente boa, meu segundo pai, uma
excelente pessoa, aceitou recebê-la. Depois de algum tempo, ele também abriu as portas e deu
guarida para a irmã dele, Mariana, tia de Iara que havia participado de seu processo de
deportação, comunicando-lhe sobre o que havia sido tramado e que estava em vias de ocorrer.
A tia Mariana havia ido para Brasília para encontrar-se com uma paquera, o
Fernando, um homem mais velho que era gente boa, um homem de alma feminina, descreveu
Iara. Distante do plano piloto, o namorado de sua tia possuía uma chácara onde, por vezes, eram
realizadas sessões espíritas e atendimento espiritual para pessoas em busca de conselhos. Iara
188

ainda estava muito machucada com tudo o que tinha acontecido e sua tia Mariana a aconselhou
a conversar com seu namorado, que costumava ouvir e direcionar pessoas, na condição de guia
espiritual. Fernando lhe fez diretamente o convite e Iara aceitou:

Tudo começou assim, ela ficou com o Fernando e me apresentou a ele. Ele participa
da religião espírita e perguntou se eu queria falar com ele, por que ele faz sessão né?
Esse tempo eu tava muito magoada, muito machucada com tudo o que tinha
acontecido. E aí ele tem uma chácara lá, onde ele faz as sessões. E ele conversou muito
comigo. Aí ele chegou lá, conversou sobre algumas coisas… perguntou… enfim, acho
que o principal ponto foi que ele pediu pra conversar com a minha tia e eu não tinha
falado nada pra minha tia. Eu não tinha falado mais sobre isso, até porque quando
tudo aconteceu ela tinha ajudado, então eu tinha medo por que ela ajudou e meu
pensamento era que ela pensava a mesma coisa. Então, eu acho que o convívio com
ele mudou muita coisa na cabeça dela, né? Foi ela quem me pediu pra eu falar com
ele e ele falou assim: “você pode falar com Mariana, ela vai entender você, confie em
mim”. Então foi aí que eu acho que eu desabrochei. Depois ele me pediu pra eu falar
com a tia e eu falei. Então, tudo começou aí e eu comecei a me sentir acolhida. Eu
contei pra ela, aí clareou mais ainda que eu podia confiar e que eu podia me assumir
para as pessoas, só que eu deveria ter calma né, em relação a isso e aí ela foi me
ajudando

Para Iara, sua permanência em Brasília promoveu uma revolução em sua vida, não
só devido ao fato de que lá ela pode encontrar-se com Bárbara - pessoa que já havia conhecido
em Promessinha, embora nunca tenham tido amizade-, mas também porque ela pode vivenciar
o acolhimento por parte de membros de sua família, mesmo quando eles sabiam que ela era
lésbica.
Muitas pessoas da família de Iara moravam em Brasília. Com a chegada da tia
Mariana, cinco era o número de tios que moravam na capital federal, além do Flávio e sua
família, um vizinho de Promessinha que era irmão da esposa do Tio Jader, com quem Iara
morava. Algum tempo depois de ter chegado, sua tia alugou uma casa em Taguatinga, cidade
satélite, deixando a casa de seu irmão.
Sua vida social era basicamente circunscrita à sua ambiência familiar. Embora nem
todos familiares participassem, eram frequentes os encontros de seu tio Jairo com a família de
sua esposa e Iara sempre participava desses encontros. Como ela me falou,

Eu não costumava sair de casa muito não, só festa em família. Tinha muita
reuniãozinha. Tinha muita festinha na casa do Flávio e tinha a família do Flávio, que
é lá do interior também, que mora ali perto da vó. A irmã do Flávio é casada com meu
tio. Quem sempre se reunia era o Flávio e o meu tio, que eu morava com ele. Na
verdade, eu nunca gostei de sair não, mas eu gostava da nossa reuniãozinha, que a
gente bebia e tal. Foi lá que eu comecei a beber e não parei mais.
189

As inserções de Iara em outros contextos de socialização dependeram do seu


encontro com Bárbara, que lhe solicitou amizade através da rede social virtual Facebook. Fazia
cerca de um ano que Iara se encontrava na Capital Federal e nesta época ela havia tomado
conhecimento de que sua namorada Luciana estava ficando com outra(s) pessoa(s). Em suas
primeiras conversas com Bárbara, onde as duas revelaram-se mutuamente a respeito de suas
orientações sexuais, Bárbara pergunta se Iara estava envolvida com alguma pessoa e ela
responde-lhe que não existia ninguém, já que, embora houvesse, naquele momento estava em
um processo de ruptura com a namorada que tinha permanecido em sua cidade natal. Diante da
resposta de sua pretendida, Bárbara convidou-o para um encontro que teria início no momento
em que ela fosse ao RH da empresa na qual trabalhou, para resolver alguma pendência neste
setor.
Iara não sabia se deveria ir ao encontro com Bárbara já que, a gente já se conhecia
aqui em Promessinha, só que nunca tinha trocado nada, nenhuma palavra. Para decidir sobre
este encontro, ela procurou sua tia Mariana, em quem confiava, no sentido de que lhe
aconselhasse sobre a proposta de sua nova amiga. Mariana, que conhecia Bárbara, falou-lhe
que ela era gente boa e a motivou para que ela fosse encontrá-la. Sentindo-se mais segura, Iara
foi ao encontro de Bárbara, no lugar estabelecido entre elas.
Quando se encontraram, sentiram-se atraídas uma pela outra. Bárbara toma-lhe a
mão e sai com ela de mãos dadas, para o destino almejado. Tendo resolvido suas pendências,
senta-se com Iara em algum lugar público e tenta beijá-la ali mesmo, onde estavam. Iara Recua.
Segundo Bárbara, ela era muito tímida, mas do que isso aqui né, Iara? Muito tímida. Aí eu ria
e tentava brincar com ela e ela nada… tão tímida, tinha medo. Tinha tanta vergonha… por que
ela não tem coragem não.
A resolução do impasse foi organizada através do acesso a um banheiro de um
supermercado próximo de onde se encontravam, fórmula já utilizada por Iara, quando iniciou
seu namoro com Luciana pois, como me disse: na verdade, as duas pessoas que eu já namorei,
no começo da relação, eu beijei só em banheiro.
Mesmo estando em Brasília, para Iara não era possível proceder de outro modo. As
aprendizagens que realizou em sua cidade não lhes permitiram agir de modo diferente ao que
já havia construído, enquanto estava em Promessinha:

- A gente foi saindo, eu fui vendo, no começo que eu conheci ela eu não conseguia
tipo assim... Lá é muito liberal em relação a essas coisas e a Bárbara queria que eu
fizesse coisas que aqui eu não podia fazer, entendeu?! Tipo beijar em público, assim
né, onde tinham pessoas distantes, mas eu não conseguia, entendeu, eu não conseguia,
190

eu não... mesmo lá em Brasília. A realidade de lá é... tipo isso de, de se soltar, de se


tocar...mas eu não conseguia, porque aqui em Promessinha é outra realidade né?
- Isso está preso dentro dela, [complementou Bárbara].

Iara continuava morando com seu tio e, desde que havia chegado em Brasília,
Bárbara foi a pessoa com quem ela pode estabelecer outros programas, sem a presença de sua
família. Iara sentia-se incomodada com o fato de que continuava a esconder de seu tio aquilo
que lhe acontecia e temia por mentir para ele sobre onde ia e sobre sua companhia, já que, deste
modo, não poderia ser socorrida ou encontrada caso ela ou alguém de sua família precisasse.
Sua tia Mariana a incentivou para que revelasse o motivo de sua partida de Promessinha e o
que lhe estava ocorrendo naquele momento. Disse-me:

Depois da tia Mariana, eu contei para meu tio, da casa onde eu morava né? Porque eu
não tinha falado ainda pra ele e ele não sabia o que realmente tinha acontecido comigo
pra eu ter ido pra lá. Aí eu acabei contando e ele disse aquelas coisas de pai né: “que
se fosse meu filho, era lógico que eu não iria querer Iara, mas como eu conheço você,
sei que você é uma boa pessoa”. Ele me disse que eu não mudasse meu jeito de ser,
essas coisas né, foi isso, foi isso. E aí acabou que eu fui me soltando mais, não em
relação a se soltar e dizer pra todo mundo aquilo que eu sou, mas sim, na minha cabeça
né, dizer que eu gosto mesmo disso, entendeu?!
…………………………………………………………….…………………………
…………
Eu não gosto de mentira, sabe? Eu não gosto de mentir e aí foi o tempo que eu
conversei com ele. Foi a tia que pediu pra eu conversar com ele e eu disse assim, tia
eu também tô achando que preciso conversar com ele, por que eu não quero tá saindo
e dizer que eu vou pro canto sem eu tá nesse canto. Vai que acontece alguma coisa, e
aí? E foi nesse dia que eu cheguei pra ele e conversei, contei. Eu que eu não queria
mentir pra ele, eu queria sair e eu queria que ele soubesse pra onde eu ia, porque eu já
tava com romancezinho com a Bárbara, aí já disse e tal.... Aí pronto ele entendeu e
disse que bom que eu falei pra ele e falou tudo aquilo que eu já te falei, sobre que nada
iria mudar sobre o sentimento que ele sentia por mim, que eu era igual a uma filha.

Como dito, as narrativas de Iara em torno de uma construção identitária lésbica


indica um lento progresso determinado sobretudo por quatro aspectos. O primeiro deles
marcado pelas repetidas experiências com outras garotas. O segundo refere-se à enunciação,
para terceiros, sobre sua preferência sexual. Também entrou em jogo sua amizade com meninos
que passavam a avaliar seu próprio desejo em torno da adesão à categoria homossexual. Por
fim, pesou-lhe bastante a aceitação dos seus ouvintes (e de modo mais importante quando estes
pertenciam à sua família) diante da revelação que os fazia. Muitas foram as passagens onde Iara
narrou que a percepção do que sentia e do que realmente queria e era teria sido iniciada no
momento em comunicou e/ou foi acolhida em sua comunicação. A identidade lésbica, menos
do que uma natureza, é um compromisso reiterado pelas mulheres que assim se definem. Tudo
começou quando ela conversou com Santos, que lhe confessou ser guei. Mas esse início também
191

existiu quando ela ouviu as histórias dos garotos do Vale que se assumiram para as suas famílias
e decidiu fazer o mesmo. Mais tarde outros inícios se deram nas conversas com Fernando, com
seu tio Jairo e com sua tia Mariana. Também há um início quando começa a ter aventuras
sexuais com algumas garotas e mais fortemente quando engata seu namoro com Bárbara. Em
todos esses eventos, compreendidos como inícios por Iara, o que acontecia era uma maior
clareza de que ela era exatamente aquilo que ela estava se tornando: uma mulher lésbica. Tenho
a impressão de que na vida dela e provavelmente na de outras pessoas, quanto mais ela dizia
aos outros que gostava de meninas e não de meninos, mais ela ia se posicionando deste modo,
já que mais clareava a minha mente de que eu era e de quem eu sou, como me disse diversas
vezes, trocando apenas algumas palavras, embora garantindo o mesmo sentido.
Neste ponto, me vem à ideia uma provocação de Miñoso (2007) para quem a
identidade, longe de ser um lugar para o qual se chega, é o lugar de onde se parte, em uma
cultura que constrói possibilidades binárias, rebatidas uma na outra e mutuamente excludentes
de identificação: se sou hétero, não posso ser homossexual e se eu houver de ser alguma coisa,
tenho que escolher entre essas duas. E se, porventura, eu escolher a diferença, tenho que ser
capaz de lidar com o fato de que ela foi erguida para dar conta daquilo que não se pode ser. Em
suas palavras,

O sistema de construção binária de identidades tem operado em detrimento da


possibilidade de escolha das pessoas, em detrimento da necessidade de buscar e
construir diferentes, múltiplas subjetividades. Tem sido uma camisa de força para a
expressão do capital e respeito à diversidade, pois apenas certas identidades pré-
determinadas pelo sistema são aceitas e permitidas. Digamos assim, as diferenças
lutam para emergir dentro de um sistema que não as aceita, que não reconhece sua
existência. A constituição de identidades de gênero, raça, etnia, etc., torna-se um
verdadeiro exercício de repressão, regulação e sujeição dos sujeitos (Miñoso, 2007, p.
29)

Durante o ano em passaram namorando enquanto estavam em Brasília, Bárbara e


Iara não acessaram lugares LGBTIA+ e buscavam se encontrar no Parque da Cidade ou passear
em algum shopping, onde poderiam assistir algum filme em cartaz em uma sala de cinema.
Seus momentos mais íntimos se davam na casa que a Tia Mariana havia alugado em Taguatinga,
onde por vezes dormiam juntas. Para Iara, o principal benefício que Brasília lhe deu, além de
ter se encontrado com Bárbara, foi o fato de que lá ela pode ser quem ela era e ainda receber o
apoio de seus familiares, o que era por ela considerado como algo de extrema importância. Ao
sair de Promessinha para esse novo destino, as decisões tomadas por seus pais haviam feito
com que ela acreditasse ser impossível a concomitância de uma experiência lésbica e uma boa
192

relação familiar, porém, os parentes com os quais conviveu na capital federal lhes indicavam
melhores possibilidades.
Ao final deste ano, Bárbara permanecia desempregada e decidiu voltar a morar com
os pais, em Promessinha. No mesmo período, Iara finalmente havia conseguido um emprego,
porém, diante da partida de sua namorada, resolve seguir os passos, retornando para a cidade
onde nasceu e viveu, até ter sido forçadamente deportada.

7.4 De volta à pequena cidade, a gestão do armário

Ao retornar para Promessinha, seu namoro já completava mais de um ano de


existência. No dia em que chegou de volta ao lugarejo, ela quis ver sua namorada, momento no
qual entendeu que o seu trânsito pelas cercanias da casa dela era algo proibitivo. Com seu amigo
Santos, foi ter com Bárbara em sua casa. Ao chegar lá, lá foi por ela repreendida e solicitada
que fosse embora, pois o seu pai estaria em casa e ele não poderia vê-la.
Iara voltou para a praça, onde os meninos do Vale se encontravam e se juntou a eles.
Pouco tempo depois, Bárbara apareceu por lá. Seus amigos se organizaram para dar um suporte
nesse tão esperado reencontro:

Aí nós fizemos todo um movimento de eu me encontrar com ela lá na casa de moenda,


todos nós. Eu disse pros meus amigos: eu tenho que falar com ela, vamos fazer alguma
coisa. E eu fui lá na casa dela. Só que ela tinha medo do pai dela e da mãe dela ver,
né? Que eles já sabiam, né? Aí ela disse que o pai dela estava em casa e aí eu fui
embora. Aí quando eu mal chego na praça, que tava todo mundo reunido, eu acho que
tava a Sissi, o Santos eu não sei se o Carlos estava. Eu sei que tinha umas pessoas lá,
tava umas turminhas… aí vamos fazer alguma coisa? Sei que foi todo mundo nesse
beco, fomos lá por cima que era pra despistar, pra ninguém perceber. Aí fizemos um
plano e aí foi todo mundo pra casa de moenda. Quando passava uma moto, todo
mundo fingia se beijar. E eu tava lá pra dentro com ela, né? Por que lá passava moto
e às vezes dava pra ver, né? Aí os meninos ficavam lá só vigiando, pastorando e às
vezes, dependendo de quem passasse, eles se escondiam. Foi engraçado demais esse
dia, eu tô me lembrando aqui.

O namoro entre Bárbara e Iara operou uma transformação no modo como Iara
passou a estar na cidade. A família de Iara não impunha tanta dificuldade para sua circulação
na cidade, embora tenha me dito que quando mais jovem, sua mãe não a deixava permanecer
longe de casa por mais de 10 minutos. Naquele momento, ela até se beneficiava da moto que
seu pai lhe emprestava, facilitando seu trânsito aos lugares aos quais desejava ir. Antes de ir
para Brasília, ela costumava permanecer com os meninos do Vale, nas reuniões que ocorriam
na praça. Após seu retorno, devido aos problemas que Bárbara enfrentava diante da homofobia
193

de sua família, esses encontros e permanência foram se rarefazendo. Elas não poderiam estar
juntas na praça, pois os familiares de sua namorada tomavam essas amizades (bem como sua
aparição pública junto à Iara) como motivo para desferir comentários homofóbicos contra
Bárbara e o casal tentava agir com discrição.
Nos primeiros dias após o retorno das duas, elas chegaram a fingir que não se
conheciam: ao passar pela praça, onde Iara estava com os meninos do Vale, Bárbara os viu e
não cumprimentou a nenhum deles, para não revelar sua amizade com aquelas pessoas que não
se importavam em esconder que seriam homossexuais. Buscando não aparecer juntas na cidade,
quando saíam, iam para bem longe, para algum lugar onde não pudessem ser vistas, tais como
uma praia do mesmo município, próxima de onde moravam.
Posteriormente, não foi mais possível sustentar essa farsa já que, aos poucos, a
cidade tomava conhecimento da amizade entre as duas que, apesar (ou por conta) dos cuidados
tomados, foram vistas juntas por diversas vezes. Como dito antes, até mesmo a estratégia
encontrar-se com Bárbara em um lugar distante da casa onde ela morava acabou por levantar
suspeitas, entre os locais, sobre a verdadeira natureza da relação entre elas. O fato de que sua
partida para Brasília tenha se dado em um momento onde os comentários acerca de sua
sexualidade já estavam se alastrando pela cidade também contribuiu para arrematar a certeza
de seus vizinhos de que ali, na verdade, existia um namoro.
Embora a família de Iara tenha reagido de modo extremado diante do conhecimento
de suas relações homoeróticas, ao retornar de Brasília isso não foi mais constituído como um
problema de grande monta. Iara assistia, de longe, os insultos que Bárbara recebia de seus pais
e irmãos. Em sua casa, sobre sua orientação sexual, imperava o silêncio e ela percebia isso
como vantagem, já que deste modo não teria que, a todo instante, prestar conta de sua vida
afetiva, atitude que talvez a colocasse em situações constrangedoras. Ao retornar de Brasília,
ela percebia que, em sua casa,

Tá tranquilo, normal. Lá em casa é assim oh “ninguém toca no assunto, ninguém


toca”. Pronto, acabou, morreu. Ninguém toca e tipo se alguém falar alguma coisa pra
mãe a mãe não vai me perguntar, se surgir alguma conversinha sobre isso, a mãe não
comenta. É assim, ninguém comenta sobre, ninguém fala sobre essas coisas, mas é
tranquilo… quando Bárbara vai lá em casa é tranquilo, eles se cumprimentam e
pronto. Não tem aquela conversa e tudo, mas cumprimentam e pronto, é assim. Eu
acho que é até melhor do que tocar no assunto, por que às vezes eu acho que vai ferir
ou a parte deles ou a minha parte, né? Então isso eu acho bom, porque não tem isso
não.
194

Na família de sua namorada os insultos continuaram, mas Bárbara conseguia


estabelecer uma resistência passiva, ao mesmo tempo em que se permitia a uma maior
circulação pela cidade, estando na companhia de Iara. Na casa de Iara, depois de algum tempo,
Bárbara passou a ser convidada para todas as reuniões familiares.
Tia Mariana, cuja amizade havia se solidificado desde o tempo de Brasília quando,
dentre todas as pessoas, foi a que mais apoiou o casal à época, havia voltado para Promessinha.
Com seu retorno, a fórmula de socialidade emergida em Brasília se prolongou em sua cidade
natal. Preferencialmente, as duas meninas escolhiam estar em reuniões com familiares de Iara
e quando buscavam se divertir em espaços de acesso público, era com a tia Mariana e seu atual
namorado, além de outras pessoas heterossexuais, que elas costumavam sair, normalmente para
localidades vizinhas:

Iara: às vezes a gente vai pro Trairi, às vezes a gente vai nas pizzarias aqui de perto.
Às vezes a gente fica aqui fora da lojinha conversando. A gente faz tipo, churrasco,
né? A gente faz as vezes ali em casa e às vezes na casa da tia. Aí vai todo mundo, vai
a mãe e vai a germana, que é quase vizinha e que me viu crescendo. Em relação a sair,
ultimamente a gente tá saindo mais com essas pessoas.
Bárbara: Antes a gente saia, mas era mais às escondidas.

Quando circulavam em qualquer espaço público, procuravam se portar como duas


amigas. Para Iara, isso representava um sinal de respeito à sua família e aos outros moradores
da cidade. Em sua ideia, esse também seria o melhor modo de obter respeito: respeitar para ser
respeitada. Em suas palavras:

Eu sou muito assim, de respeitar muito o ambiente quando eu tô com meus pais né?
Ou quando eu estou muito exposta na rua. Eu e a Bárbara, a gente anda na rua como
se a gente fosse duas amigas, entendeu? Porque eu penso assim, é o que eu penso,
porque a gente vive numa cidade com pessoas que ainda tem um pensamento muito
ruim desse relacionamento. Então eu converso muito com a Bárbara e eu falo que é a
melhor atitude. É a gente agir assim, respeitando, entendeu? Não se expondo muito…
não expondo é o que? Não expondo a ficar abraçada demais, não ficar beijando, aquele
beijo, por que eu, particularmente eu não gosto. Se fosse lá fora, eu nunca teria essa
preocupação de me expor, até porque, todo mundo desconhecido, eu me sentia mais
livre. Mas aqui, eu costumo respeitar tanto a minha família quanto as outras pessoas,
entendeu? Devido a isso, a eu querer esse respeito, eu me posiciono desse jeito,
entendeu? De ser mais… de me privar de alguma coisa, entendeu? E às vezes a gente
não se expõe desse jeito e ainda tem aqueles olhares, ainda tem aquelas…

Sendo de domínio público a informação que entre as duas existiam um namoro, Iara
buscava administrar seu armário de vidro, espécie de consequência compulsória que tem que
lidar quem possui uma relação homoafetiva em uma pequena localidade rural. Menos do que a
incapacidade de deixar de exibir trejeitos masculinizados, o armário de vidro lésbico, nas
195

pequenas localidades, surge da inevitabilidade das fofocas. Se, quando mais nova, Iara não
dispunha de um episteme clara para organizar seus desejos diante de uma chave binária de
inteligibilidade, neste momento de sua vida, sabia que jamais teria como fugir do lugar de
lésbica.
Para aferir o grau de respeito dos outros em relação à sua pessoa, sua tia Mariana
funcionava como uma espécie de fiel da balança em relação às ideias dos habitantes da
localidade sobre o namoro das meninas. De acordo com ela, sua tia, que trabalhava em um lugar
onde as pessoas gostavam muito de falar da vida dos outros, sempre lhe dizia que eram bons os
comentários de seus colegas a respeito do casal e Iara, que procurava manter-se “em alta” na
percepção popular, julgava a discrição como a melhor fórmula possível para perpetuar sua boa
imagem:

Porque eu procuro sempre conversar com a minha tia, né? E eu converso muito sobre
isso e ela me fala muito o que as pessoas falam em relação a essas pessoas que são.
Ela trabalha com um monte de pessoas que fofocam demais sobre a vida dos outros,
então ela já tem bem claro, sobre o que as pessoas pensam.
…………………………………………………………….…………………………
Mas também eu acho que é muito por mim mesmo, entendeu? Eu também não sinto
essa necessidade de tá se beijando, entendeu? Até mesmo lá fora né? Era legal, era
bom, mas também não tinha essa… não tinha também esse negócio de… aí, porque
nós estamos aqui, nós vamos nos expor mesmo. Era bom, era legal, porque a gente
podia andar junto, assim, de mão dada. Mas a gente sempre procurava um lugar mais
reservado para a gente trocar carinho, entre a gente. Então eu não acho necessidade
de ser outra pessoa, uma pessoa mais exposta, em relação àquilo que eu sou. Porque
eu não acho necessidade não, de me expor, expor a nossa relação diante das pessoas.

Apesar de não desejar exposição sobre seu relacionamento nos espaços públicos de
Promessinha ou mesmo lá fora, na internet Iara não fazia muita questão de discrição. Bárbara
começou a postar fotos do casal com pequenas declarações de amor através da rede social
Facebook. Iara pedia que ela não fizesse, temendo que a exposição realizada piorasse a situação
de sua namorada com seus familiares, já que serviam como elemento motivador para os
comentários maldosos contra Bárbara dentro da casa dela. Chegaram a brigar diante da
divergência de opiniões, mas Iara acabou cedendo e ela própria passou a realizar postagens na
qual as duas emergiram como casal. De acordo com ela, isto seria uma forma de demonstrar
reciprocidade e alinhamento entre o casal:

Muitas das vezes, antigamente, eu falava com a Bárbara que não era legal, que eu não
achava legal, devido a exposição demais, né? No começo eu não queria, não queria
isso, sabe? Pela exposição. Porque as pessoas podem… porque eu sempre priorizo a
família dela, entendeu? Por conversinhas e por coisas que talvez possam me
prejudicar. Só que assim, hoje em dia é mais tranquilo né? Nos brigávamos muito por
196

causa disso, porque eu não gostava, mas hoje em dia eu sou mais tranquila em relação
a isso. A gente ia conversando sobre isso e eu acabava deixando, né?
……………………………………………………………….………………………
Eu acho que posto porque é muito recíproco, de ela expor o sentimento dela por mim,
então eu acabei fazendo do mesmo jeito, em prol de que eu gostava também,
entendeu? Às vezes eu fico meio assim, por que tem pessoas que são maldosas,
entendeu? E eu não gosto de coisa muito pública em relação ao Facebook. Não que
eu tenha problema com isso, mas é porque eu não gosto, eu gosto das coisas mais
privadas, acho que isso é desde sempre. Eu não sou muito de postar coisas no
Facebook, só em relação à Bárbara, algumas coisas, uns pinguinhos ali. Eu sou mais
de olhar e curtir. Eu não sou muito de interagir em redes sociais, nem em grupos de
WhatsApp, nem nada.

Nem o pai nem a mãe de Iara possuíam contas em redes sociais e certamente isso
facilitava seu trânsito pelas plataformas de relacionamentos online. Além do mais, para ela, nas
postagens trocadas com sua namorada, é uma coisa mais saudável do que a gente fala. Diante
de minha provocação, ao argumentar que nas redes sociais elas estariam se afirmando lésbicas
perante de seus conterrâneos, Iara pondera:

Eu acho que o que pega mais é o ver, né? O gesto de você ver a pessoa se beijando, se
abraçando de outra forma. Por que no Facebook a gente fala coisas saudáveis, né?
Apesar da gente tá se expondo, falando o que a gente sente uma pela outra. Mas em
relação à rua… eu acho que as pessoas pensam diferente, né? Porque vai tá vendo a
gente se… daquela outra forma, que eles não conseguem compreender. A gente se
expõe, mas é tipo assim, de uma outra maneira. Como vamos pegar mais pesado em
relação ao beijo entre duas mulheres na praça?

Quando saíam com seus amigos, ou mesmo quando circulavam sozinhas pela
cidade, não demonstravam nenhum tipo de carinho. Por vezes, quando sentiam vontade de
realizar alguma atitude mais carinhosa, seus dedos mindinhos se encontram por debaixo da
mesa, espécie de ato simbólico estabelecido entre elas.
Com o avançar do tempo, a família de Bárbara arrefeceu em relação ao controle que
antes era estabelecido sobre ela e as duas iam conquistando mais liberdade para estarem juntas
na cidade. Ao combinarem alguma saída, puderam até deixar de lado a estratégia de
encontrarem-se distante da casa de Bárbara, que passou a ser buscada no endereço no qual ela
morava junto com seus pais e irmãos. Por vezes escolhiam se juntar aos meninos da praça,
embora na maior parte das vezes em que se encontrassem nesse espaço, permanecessem
conversando sozinhas em um dos bancos situados longe da muvuca, como sinalizou Bárbara.
Apesar das melhorias, as duas mantinham aceso o desejo de migrarem para
Fortaleza, manifestado por ambas desde o primeiro dia em que as conheci. A falta de
oportunidade de emprego e o desejo de estarem juntas todo dia motivaram-nas. Usando uma
197

reflexão recorrente na família de Bárbara, Iara e Bárbara consideravam a dificuldade de


permanecer na localidade pelos efeitos combinados do reconhecimento dos moradores sobre
suas sexualidades com a constante ausência de ofertas de emprego no distrito. Ao serem
perguntadas sobre como se sentiam diante do fato de não possuírem a possibilidade de adquirir
uma renda que lhes dessem mais autonomia, o casal estabelece o seguinte diálogo:

Bárbara: Na verdade eu me cobro [um emprego] também, porque é muito ruim a


gente viver na casa dos pais ainda né? Eu não tenho nenhum recurso de nada, porque
aliás, aqui na Promessinha é meio que pra baixo disso.
Iara: Eu vou usar uma frase que o pessoal lá na casa dela já usa né, que “a gente vale
aquilo que a gente tem”. E eu não tenho nada, eu não valho nada, principalmente
quando a gente é desse jeito, entendeu, a gente é guei…
Bárbara: Você está passando por isso [desemprego], você não consegue isso
[emprego] porque você é isso [lésbica] entendeu? São essas as palavras que eles [seus
pais] falam.

Além da possibilidade de melhoria financeira, Iara e Bárbara alimentavam o desejo


de morar juntas. Permanecendo na cidade, isto lhe parecia impossível e penso que esta
impossibilidade era percebida não apenas do ponto de vista econômico, mas também
emocional, já que seria uma escolha que, diante dos outros, talvez fosse percebida como
inadequada. Para Iara, esta seria sua principal motivação. Ao ser perguntada sobre os motivos
que a fazia querer ir para a cidade, ela responde que seu desejo era devido mais a essa liberdade,
pra gente poder tá juntas. É mais em relação a tá juntas mesmo. Porque hoje a gente já pode
sair, hoje em dia tá muito melhor pra gente, sabe?
Em janeiro de 2017 Iara dirigiu-se à capital para fazer um curso de vigilante, tendo,
durante o curso, se instalado no alojamento da empresa formadora. Após a conclusão do curso,
retorna para sua cidade e para seu trabalho na lojinha de sua mãe.
Desde que havia retornado de Brasília, apesar de ter diminuído sua presença nos
grupos de oração e sua frequência às missas, Iara continuava associada à paróquia. No início
de 2017, além de ter trabalhado com ensino de matemática para crianças necessitadas, a partir
da Pastoral Católica - o que lhe garantia uma renda a mais pelo recebimento de uma bolsa de
trabalho-, assumiu a coordenação da Pastoral da Acolhida, quando sua mãe a colocou como
vice coordenadora desta, em uma reunião na qual ela não compareceu. Nos dois casos, Iara fez
por gosto:

Não que eu tenha me afastado completamente da igreja, mas eu diminuí as minhas


idas à missa e ao grupo também. Depois eu fui voltando, né? Teve uma reunião que
eu não fui e me colocaram como vice coordenadora. Ai a mãe falou, disse que tinha
colocado. Aí me deram essa responsabilidade. Mas eu fui, eu gosto (...) agora que a
198

gente está reerguendo as nossas acolhidas, por que tava muito pra baixo. Agora que a
gente tá voltando a cantar no coral, tá voltando a receber as pessoas na porta na hora
da missa. Essa parte aí a gente tá mais ou menos. E agora a gente ficou com essa parte
de artigos religiosos, as blusas, essas coisas…

De modo diferente de todas as outras meninas entrevistadas, Iara não acreditava que
sua sexualidade ganhasse qualquer relevância (negativa ou positiva) entre as pessoas com as
quais convivia na paróquia. Em sua concepção isto não existia, pois, a paróquia abrigava muitos
de seus amigos gueis. Como me disse: na minha igreja não tem isso não. Até porque muitas
pessoas de lá são. Não tem esse negócio de olhares, eu não me sinto muito excluída em relação
a isso não. Quando ensinou matemática para criancinhas, fez isso ao lado de Santos, Eli e
Washington, os dois primeiros integrantes do Vale.
Em meados de 2018, Iara permanecia sem conseguir se empregar como vigilante.
Certo dia, estando em Promessinha, encontrou um deputado estadual na pousada do distrito e
foi ter com ele, para pedir-lhe que a indicasse para alguma empresa de segurança. Após
assegurar uma forma de contatá-lo posteriormente, tornou-se a procurá-lo insistentemente para
cobrar-lhe o favor que ele havia se comprometido em realizar. Pouco tempo depois, através
deste contato, Iara consegue emprego em uma empresa de segurança na capital, onde passou a
morar desde então.

7.5 Fuga para uma nova cidade.

Ao chegar em Fortaleza, em junho de 2018, Iara passou a morar na casa de uma tia.
Seu regime de trabalho, que determinava expediente em dias alternados, a impedia de voltar à
Promessinha, por períodos prolongados. Normalmente utilizava-se da motocicleta que havia
comprado para ir visitar sua família e também Bárbara, que permaneceu por lá, ocupando as
funções que anteriormente estavam sob sua responsabilidade, na lojinha de sua mãe. Nestas
ocasiões retornava para Fortaleza no mesmo dia. Algumas vezes Bárbara foi recebida na casa
de sua tia, hospedando-se por lá, quando vinha ver sua namorada ou realizar algum curso.
Em relação à sua mãe e seu pai, Iara já havia deixado de lado as amarguras do
passado e avaliava ter os melhores pais do mundo. Após um período em Fortaleza, sentia-se
carente e queixava-se da falta que eles faziam em sua vida. A dissipação das mágoas recebeu a
ajuda de sua sempre presente tia Mariana que, em uma conversa que tiveram, falou-lhe que sua
mãe havia desabafado com ela, dizendo-se arrependida do que havia feito anos atrás. Sua tia
lhe recomendou superar a mágoa que sentia em relação ao fato ocorrido, argumentando que, no
199

fim das contas, os acontecimentos tinham servido mais à aproximação entre mãe e filha do que
ao distanciamento. Sob a influência do olhar de sua tia, Iara entendia que o que havia acontecido
no passado:

Foi um ensinamento pra todo mundo. Lá em casa, hoje em dia, eu acho que me
aproximou tanto da minha mãe, como do meu pai. Hoje em dia o meu pai tá… Ave
Maria! Ele não é muito de falar, sabe? Ele não é muito de se comunicar comigo, mas
hoje em dia ele tá… não sei, não sei se é por velhice, por ele está mais carente, eu
sinto. É uma carência… às vezes a mãe diz, “tá falando com quem?” E ele responde:
“com a Iara”. E a mãe diz: “aí não quer mais falar comigo, não?”…. Sabe eu sinto
uma carência dele também. Ele está mais próximo de mim, eu sinto. Tanto a mãe,
quanto o pai.

Na conversa que Iara teve com sua tia Mariana, ela também foi comunicada de que,
naquele momento, sua mãe não desejava que sua filha se afastasse da namorada, mas apenas
avaliava que não existia clima financeiro para que Iara pudesse receber Bárbara em Fortaleza,
já que sua namorada ainda estava desempregada e necessitava se deslocar periodicamente de
uma cidade para outra, a fim de obter créditos para a conclusão de seu curso universitário. Iara
concordou.
Enquanto esperava a vinda de Bárbara para a capital, em meados de 2019, Iara pouco
saía e sentia o peso da solidão em sua vida na grande cidade, longe de seus pais e de sua
namorada. No momento em que tivemos essa conversa, em julho de 2019, um ano após sua
vinda para a capital, Iara me diz:

Eu tô bem, mas tô carente. A Bárbara entende. Eu sou nova e acho que eu não
aproveitei a minha vida. Porque eu sempre fui muito presa. A minha família, é assim…
eu vou ali, com 10 minutos eu já tinha que voltar pra casa, porque a mãe estava me
chamando. Eu sinto que eu não aproveitei, mas eu também sinto que… às vezes eu
não sinto necessidade. Mas eu acho bom encontrar uma pessoa pra gente conversar,
pessoas que a gente possa beber, pois eu gosto demais de beber. Só não achei as
pessoas certas, pessoas que eu me sinta à vontade como eu estou me sentindo aqui,
entendeu? Mas tô aqui, tô tomando cuidado, tentando equilibrar as coisas da minha
vida. Apesar de muitas coisas me atormentando, eu tô tentando focar nos estudos,
porque há uma necessidade, por que eu sinto necessidade mesmo.

Nesta época, lhe atormentava o fato de que Bárbara ainda passasse por conflitos
dentro de sua casa. Pouco tempo antes de nos encontrarmos, um desentendimento entre Bárbara
e o pai dela havia intensificado o desejo das duas de que Bárbara pudesse sair da casa de seus
pais, se dirigindo à Fortaleza. Esperavam, ansiosas, o fim do curso universitário para que seus
planos fossem concretizados.
200

Na ideia de Iara, provavelmente acertada, ela entendia que as contendas entre sua
namorada e os familiares dela sinalizavam para conflitos nascidos no cruzamento de duas vias
interseccionadas: a ausência de dinheiro e a sexualidade lésbica. Em sua análise:

Eu vou dizer a verdade, mas eu acho que…. Não sei porque, mas isso interfere muito.
A sexualidade dela interfere demais, demais, demais, demais. É visível… é visível
demais. Isso é visível, a gente sente que é isso. Eu vejo cada coisa acontecendo lá e
eu digo, essa pessoa fez isso e nada? São duas coisas que eu acho que é: a sexualidade
e a vida financeira. São duas coisas. Hoje em dia, pra maioria das pessoas, você vale
aquilo que você tem. Então se você não tem nada, você não vale nada. Aí você coloca
esse ‘não tem nada” e mais a sexualidade, aí pronto. Eu penso dessa forma. E é o que
eu vejo.

Embora a discussão de sua namorada com os pais dela tenha intensificado o desejo
de que Bárbara pudesse migrar para Fortaleza, avaliando os conselhos recebidos por sua mãe,
através de sua tia e posteriormente de modo direto, Iara continuava morando na casa de sua tia.
Durante todo esse período Iara estava trabalhando, mas considerava mais confortável estar junto
de sua família, algo que pra ela era de extrema importância. Cerca de um ano após ter migrado,
um desentendimento com o marido de sua tia determinou que ela resolvesse sair de casa,
alugando um pequeno apartamento no Jardim América, muito próximo ao lugar onde morava
com sua tia e distante cerca de 2,5 km do bairro do Benfica. Apesar da proximidade, até o meu
convite para nos encontrarmos em um dos muitos bares amigáveis ao público LGBTIA+ deste
bairro, ela não os alcançava.
Pouco tempo depois de ter alugado seu próprio espaço de moradia, diante da
Pandemia de Covid-19, como já dito, o Governo do Estado do Ceará implementou a política de
lockdown, determinando que o curso universitário de Bárbara passasse a ser realizado
integralmente na modalidade online. Esta determinação acabou por oportunizar a vinda de
Bárbara, que passou a morar junto com Iara.
Ao chegar em Fortaleza, Bárbara seguiu os passos de Iara, realizando o curso de
vigilante e empregando-se na mesma empresa na qual Iara trabalhava. Financeiramente, a vida
lhes oferecia melhores condições. Apesar de tal fato, até hoje Iara permanece estudando para
algum concurso público na área de segurança (agente penitenciário ou agente da AMC –
Autarquia Municipal de Trânsito e Cidadania de Fortaleza). Para ela, estudar é uma coisa que
ela gosta e que lhe faz bem, sendo indispensável em sua vida.
Desde o tempo em que estava em Promessinha, Iara costumava dizer que não
gostava muito de sair. Vir para Fortaleza não lhe alterou os ânimos. Nem mesmo a chegada de
Bárbara, que estando em Brasília frequentava muitas baladas, determinou o acesso de Iara a
201

bares e restaurantes da cidade. Raramente as duas saíam e quando isso acontecia, normalmente
iam para algum shopping center. O acesso a bares e restaurantes, bastante raros, geralmente era
motivado pela presença da visita de tia Mariana e seu namorado, que, quando vinham à
Fortaleza, costumavam ficar hospedados em sua casa. Nestas ocasiões, gostavam de ir à Beira-
mar, tomar algum drink e beliscar alguns tira-gostos em um dos quiosques disponíveis no
calçadão.
Às vezes, embora raramente, elas acessavam algum restaurante estando sozinhas,
sem qualquer consideração sobre o tipo de público que os frequentavam. O bairro em que
moravam ficava a poucos quilômetros do Benfica, mas os bares amigáveis ao público
LGBTIA+ lhes escapavam.
Julgo ser importante considerar que não apenas sua tia e seu novo namorado
costumavam se hospedar na casa em que as meninas moravam, mas também sua própria mãe,
quando ela veio para Fortaleza. Como dito por Nascimento e Scorsolini-Comin (2018), o
impacto, geralmente negativo, sofrido pela família ao tomar conhecimento de que um de seus
membros possui uma sexualidade desviante, tende a se desintensificar, dissipando-se, em maior
ou menor medida, com o tempo. As hospedagens de sua mãe na casa em que ela mora com sua
companheira, sem dúvidas, indicam o valor da assertiva.
Na capital, a vida de Iara jamais foi agitada. Ela possui poucos amigos e sair de casa
para algum ambiente de diversão é bastante raro. Uma das últimas vezes que conversamos,
cerca de três anos após ter migrado, Iara estava começando a fazer novas amizades. Um dos
critérios estabelecidos para estas amizades era a aceitação de sua homossexualidade, por parte
de seus novos amigos:

A gente só gosta de sair mais pra cinema, shopping. Quando a minha tia vem, a gente
vai pra beira-mar que tem aquelas barraquinhas ali. Mas eu não sou muito de sair não.
Teve um certo tempo na minha vida que eu deixei de fazer amizade. Acho que foi por
que eu quebrei muito a cara, então…. Faz pouco tempo que eu conheci uma menina
daqui também. Ela é hétero, mas super gente boa. Sabe aquelas meninas que tem só
amizade sapatão? Ela foi até madrinha de casamento de umas. Tem também meu ex-
treinador de funcional, que sabe da minha relação também, super gente boa. Só fica
quem aceita. Quem não aceita a gente dá um chute.

A primeira vez que Iara esteve um bar amigável ao público LGBTIA+ foi em minha
companhia, quando a convidei, junto com Bárbara e Sissi, para o Paraíba Bar que, como dito,
se situa no bairro do Benfica, quadrante que abriga a maioria dos bares amigáveis a tal público.
Fomos a esse mesmo bar duas vezes e embora neste endereço seja possível ver casais
homoafetivos demonstrando carinhos em público, Iara jamais se permitiu a algo nesse sentido.
202

Na segunda vez em que estivemos neste bar, uma banda musical, cujo repertório exibia pagode,
axé e sertanejo, por vezes instiga a participação do público realizando um convite: agora quero
ver os LGBTs tirarem o pé do chão. No fim da noite, quando já estávamos nos despedindo,
brinquei com Iara provocando-lhe: mais mulher, tu não se solta nem aqui, né? Iara virou-se
para mim e disse: a gente sai de lá, mas isso não sai da gente.

Figura 2 - Lugares de Iara em Fortaleza – CE

Fonte: Elaborada pela autora

Na cidade, suas poucas amizades não a faziam movimentar-se bastante. Iara não
transformou muito o modo como procedia em relação à sua sociabilidade: desde Brasília e mais
tarde em Promessinha e do mesmo modo na capital, a tia Mariana era seu principal motivador
para o acesso a alguns lugares de diversão cuja escolhas não seriam motivadas pela
possibilidade de ser um espaço retirado. Após a migração, quando retornava à Promessinha, era
pra casa de sua tia que ela se dirigia a fim de divertir-se.
Quando sua tia Mariana vinha para a cidade, além dos espaços de lazer e diversão,
costumava acompanhá-la à missa, posto que, como me disse, eu acho que a oração é algo muito
importante. Iara chegou a me perguntar sobre a existência de Igrejas inclusivas, dizendo ter
vontade de conhecer alguma. Entreguei-lhe o endereço de uma que eu tinha conhecimento e
que era bem próxima à sua casa, mas até o momento ela não chegou a ir. Com a vinda para a
capital, a intensidade do envolvimento de Iara com a igreja diminuiu, embora jamais tenha sido
plenamente interrompida.
203

Ao observar a trajetória de Iara em torno do armário, torna-se evidente o


distanciamento de sua narrativa em relação ao que poderia ser esperado diante dos modelos
teóricos que avaliam a cidade como um espaço de libertação e formação de vínculos entre iguais
e a zona rural como um ambiente claustrofóbico. Este modelo não parece ser capaz de ser
aplicado à vida de Iara. Em princípio, devido ao fato de que, em sua trajetória no interior do
estado, Iara tenha conseguido se relacionar com muitas meninas, inclusive com a ajuda de
amigas heterossexuais, que trabalhavam na organização de seus encontros com algumas
garotas. Também fazer parte de uma turma de gueis foi algo que ela acessou apenas enquanto
residia no interior. Isso afasta a noção de que, no meio rural, a homossexualidade é um
acontecimento impossível. A trajetória Iara se afasta da perspectiva metro narrativa do armário.
Passar a viver na cidade grande não a fez estabelecer novas relações de sociabilidade e nem
buscar lugares onde poderia arrefecer sobre a necessidade de ocultação de seu estigma. Claro,
a cidade possibilitou que esta pudesse ter seu próprio sustento e viver em uma união estável
junto com sua amada. Porém, a manutenção das antigas amizades, a baixa intensidade de
criação de novas amizades, as poucas investidas em espaços de sociabilidade, juntas, indicam
que a vida vivida na cidade, para Iara, foi mais fortemente marcada pelo isolamento do que pela
associação.
204

8 OLHA, EU SOU MUITO GUEI: A TRAJETÓRIA DE SISSI.

8.1 Reconhecimentos e enunciações.

Em julho de 2016, quando a conheci, Sissi possuía 21 anos de idade, havia concluído
o ensino médio e tinha por meta graduar-se em Educação Física, porém, alguns problemas
burocráticos na escola em que estudou impedem de receber os documentos comprobatórios do
fim do ensino médio, atrasando sua concorrência em alguma instituição de ensino superior.
Uma mulher alta, um pouco acima do peso, de cabelos longos e ondulados. Em Promessinha,
no dia do nosso primeiro encontro, ela trabalhava numa papelaria e assim como todas as outras
meninas, recebia um salário bastante inferior ao determinado pela lei como o valor mínimo a
ser pago ao trabalhador, menos que metade deste, embora fosse maior que o de seu emprego
anterior, como vendedora de uma loja de roupas infantis. Seu expediente na papelaria, onde
também funcionava um serviço de lan house, iniciava-se às 7 da manhã, se estendendo até 12
horas depois, com intervalo de uma hora.
Sissi foi criada por sua tia-avó, com a ajuda de sua avó. Ela era a quarta filha de sua
mãe biológica que, ao todo, gerou 13 filhos, dois dos quais não sobreviveram, tendo morrido
pouco depois de nascidos. O irmão mais velho de Sissi nasceu quando sua mãe possuía 15 anos
de idade e morava em Fortaleza, lugar para onde havia se mudado com vistas a realizar seus
estudos, trabalhando como empregada doméstica. Nessa época, ela havia se juntado com um
rapaz que, além do primogênito, deu-lhe uma filha. Após a separação, o irmão mais velho de
Sissi foi destinado aos cuidados de sua avó paterna, enquanto a menina foi encaminhada para a
casa da avó materna, que já criava alguns netos deixados sob sua responsabilidade por outros
de seus filhos: na minha família é assim, o povo tendo filho e dando pra vó criar, disse-me.
O relacionamento da mãe de Sissi com o pai de seus dois primeiros filhos acabou e
ela conheceu um outro rapaz em Promessinha, juntando-se com ele e gerando mais uma criança.
De modo diferente ao que havia feito com seus outros filhos, a mulher decide cuidar desta filha.
Pouco tempo depois, ela separa-se do rapaz e retorna à Fortaleza, trabalhando mais uma vez
como empregada doméstica. Em um feriado de carnaval que passou em Promessinha,
reencontrou seu ex-companheiro, tornando a ficar com ele durante o período festivo. Após
chegar em Fortaleza, descobre-se mais uma vez grávida, mas resolve não comunicar ao pai da
criança. A criança em questão era Sissi, que nunca conheceu seu pai biológico, tendo visto uma
única foto dele e não sendo capaz, hoje, de relembrar qualquer traço da imagem do homem que
viu naquela ocasião.
205

Sissi nasceu em Fortaleza. A situação financeira de sua mãe biológica fez com que
ela, durante a gravidez, avaliasse a possibilidade de doar a bebê para uma vizinha, por não
considerar justo encaminhar mais uma criança aos cuidados de sua atarefada mãe. Esta, por sua
vez, interveio, persuadindo sua irmã a criar a sobrinha-neta para que, em sua velhice, ela tivesse
companhia. A tia-avó aceita a oferta, desde que a bebê permanecesse na casa da proponente,
enquanto não fosse possível se organizar de outro modo. Neste momento, apenas as despesas
com a criança ficariam sob sua responsabilidade. Após o seu nascimento, Sissi muda-se de
Fortaleza para Promessinha para dar início ao cumprimento do trato realizado entre sua avó,
sua tia-avó e sua mãe biológica, passando a morar com a primeira dentre estas.
Pouco mais de um ano depois, sua mãe biológica se envolveu em um rápido romance
e engravidou mais uma vez. Nasce Lineu, o irmão imediatamente mais novo que Sissi, que
também não sabe de quem é filho. Lineu hoje tem 26 anos e desde há muito assumiu-se guei.
Quando Lineu era bebê, sua mãe biológica inicia um outro namoro com alguém de Promessinha
e passa a morar nesta localidade. Seu casamento gerou mais oito filhos, dois dos quais faleceram
com pouco tempo de vida. Seus outros seis irmãos nascidos desta união, quatro mulheres e dois
homens, foram criados pelo casal, que permanece unido até hoje. O filho mais velho desse
casamento, Fábio, também auto se define como guei. Além dele, uma de suas irmãs, em algum
momento, narrou-se bissexual, mas sua aproximação com a igreja fez com que ela passasse a
se posicionar de modo heterossexualizado, livrando-se do pecado, de acordo com a ideia que
ela possuía.
Sua tia-avó trabalhava em Fortaleza como empregada doméstica, em uma casa onde
também morava. O vínculo de emprego nesta residência teve duração de 40 anos e em algum
momento dessa trajetória, quando Sissi estava com quatro anos de vida, ela conseguiu que sua
patroa autorizasse que ela trouxesse a sua filha para morar com elas. Sissi mudou-se para
Fortaleza onde passou a morar com sua mãe de criação – termo algumas vezes usado por Sissi
para mencioná-la, alternando esse com o uso da palavra mãe, modo com o qual passo a referi-
la a partir de agora, já que predominante em sua fala livre - até cerca de 12 anos de Idade,
quando retornaram à Promessinha, devido à perda de emprego de sua mãe, com a morte da
patroa dela. Três anos após chegar na localidade, sua mãe se casou e elas foram morar em
Moitas, uma praia do município de Amontada, cidade da microrregião de Itapipoca e distante
cerca de 73 km do lugar da partida, lugar onde morava seu marido e a família dele.
A mãe de Sissi era bastante religiosa e, desde o tempo em que a garota veio para
Fortaleza, ela a levava semanalmente às missas de domingo e também aos ritos de adoração
que aconteciam nas quintas-feiras. Mais tarde, com mais idade e autonomia, em todos os lugares
206

onde Sissi morou, sua frequência às missas dominicais somava-se à participação em outras
atividades nas paróquias tais como grupos de oração e grupos de jovens, para citar algumas. De
acordo com ela, minha mãe sempre teve uma caminhada muito grande na igreja. Eu sempre fui
educada na religião, na igreja católica e tudo. Essas coisas, sabe?
Durante os anos que passaram em Promessinha, Sissi e sua mãe costumavam
participar ativamente dos festejos da festa de São José. Quando moravam em Moitas, os festejos
da paróquia sempre as traziam de volta. Certa vez, enquanto seguia a procissão, sua mãe levou
uma queda que lhe provocou graves danos, retirando-lhe a possibilidade de locomoção.
Após o acidente, ela decidiu morar em Promessinha para ser cuidada por sua irmã,
avó de Sissi, e ela a acompanhou. Aos 17 anos de idade, Sissi e sua avó dividem as tarefas
necessárias aos cuidados de sua mãe. Cerca de um ano depois, sua mãe finaliza a construção de
sua casa própria, para onde se mudaram, momento no qual Sissi passou a ser a principal
responsável pelos cuidados diretos com ela, que permaneceu sem ser capaz de andar durante o
resto de sua vida, ceifada pela COVID-19, no ano de 2021.
A primeira experiência de Sissi com uma garota ocorreu quando ela beijou uma de
suas primas aos 10 ou 11 anos de idade, naquilo que ela considerou como uma brincadeira
inocente, não estabelecendo relação entre este momento e sua atual experiência lésbica. Suas
primeiras experiências de namoro ocorreram com meninos, alguns dos quais ela gostava
bastante. Porém por volta dos 16 ou 17 anos de idade, quando ainda morava com sua mãe em
Moitas, Sissi percebeu seus desejos por meninas:

Quando eu tinha 15 anos minha mãe casou e eu fui morar com ela em outra cidade,
mas ainda continuo esse percurso todo da Igreja. Indo para a Igreja. Depois eu voltei
pra Promessinha, pra morar com minha avó. Eu estava com 17 anos quando eu voltei
a morar com minha avó e eu comecei a frequentar o grupo de oração, só que quando
eu tinha 17 anos eu já tava meio que sentindo assim… atrações, sentindo coisas.
Assim, por que uma garota desse interior que eu morava, apesar de eu namorar com
um rapaz que eu gostava bastante, ela me despertava coisas, entendeu? Eu continuei
namorando com ele e as coisas que eu sentia por ela, eu reprimia. Eu achava que isso
não era normal.

A percepção de que uma atração por pessoas do mesmo sexo não era normal havia
sido construída desde criança, quando seus familiares costumeiramente ressaltavam o pecado
de uma de suas tias, que deu ao conhecimento de seus parentes a relação amorosa que possuía
com outra mulher. Do mesmo modo, nas igrejas que ela frequentou, costumava-se mencionar o
pecado de quem se envolve nesses tipos de relação. Disse-me ela que, quando criança
207

Eu ouvia falar. Por que a minha tia, que ela hoje diz ser ex-lésbica e frequenta a igreja
- e desculpe eu falar, mas ela é sexualmente reprimida -, ela era bem abertamente
[lésbica] e todo mundo sabia sobre ela. Então eu sempre vi, não é que eu sempre vi,
mas eu sempre ouvi as pessoas comentarem pelo fato dela namorar com uma mulher,
mas sempre falando de uma forma que isso era errado, que isso era pecado. Eles
sempre falam como uma forma de impor medo a você: ah você vai pro inferno porque
você tá pecando, você é homossexual. Então sempre foi muito isso de impor medo e
de reprimir desejo. Sempre foi. Desde a minha infância, até parte da minha
adolescência, sempre ouvi isso, tanto de pessoas da minha família, como na minha
Igreja. Na igreja, ela nunca teve preparada pra falar sobre essas questões das famílias
terem filhos, terem netos homossexuais, então sempre foi a questão de reprimir.

Mais tarde, durante sua adolescência, quando participava de modo autônomo dos
grupos de trabalho na Igreja, ela lembra que:

Sim, na igreja era falado, eles falavam de homossexualismo, por que tem muitas
pessoas da igreja que ainda fala dessa forma né… as formas como eles falavam, eles
pregavam muito que seria o pecado. Era sempre baseado naquele trecho bíblico que
dizia que homem não deitará com outro homem como se fosse uma mulher… tipo,
sempre foi o mesmo diálogo, que isso era pecado, que isso era uma coisa abominável.
Nunca teve uma pessoa entendida que fosse falar não pontuando questões religiosas.
E até mesmo no grupo de oração era falado que a gente tinha que renegar, por que era
pecado, que tudo era permitido pra gente, mas que realmente a gente poderia ser, mas
que não era conveniente, então eu sempre ouvi mais dentro da igreja, um… de
reprimir, de reprimir a sexualidade, de você lutar contra aquilo que você queria, contra
o desejo que você sentia, sempre foi assim. Eu ouvi muitas vezes o padre lendo a
passagem de Paulo, na leitura do evangelho.

Durante sua adolescência, no momento em que passa a descobrir seus desejos


homoeróticos, a Igreja Católica estava sob o pontificado de João Paulo II, que assinou o texto
do Catecismo Católico após a realização do Concílio do Vaticano II, em 1997. A partir de 2015,
enquanto iniciava seu namoro com Lina, emerge o pontificado do Papa Bento XVI, que em
nada alterou o cenário de animosidade em relação às pessoas LGBTIA+. Hoje, apesar da maior
(embora reticente) abertura do Papa Francisco à diversidade sexual, o catecismo católico
aprovado em 1997 ainda figura como texto oficial e nele é possível encontrar a retórica
homofóbica que foi ensinada à Sissi:

A homossexualidade designa as relações entre homens ou mulheres, que


experimentam uma atração sexual exclusiva ou predominante para pessoas do mesmo
sexo. Tem-se revestido de formas muito variadas, através dos séculos e das culturas.
A sua gênese psíquica continua em grande parte por explicar. Apoiando-se na Sagrada
Escritura, que os apresenta como depravações graves 14, a Tradição sempre declarou
que «os atos de homossexualidade são intrinsecamente desordenados» 15 . São

14
Neste ponto do texto há uma referência à nota de fim de texto onde é indicado: Cf. GN 19, 1-29; Rm 1, 24-27;
1Cor 6, 9-10; 1Tm 1, 10.
15
Idem: Congregação da Doutrina da Fé, Decl. Persona humana, 8: AAS 68 (1976) 95.
208

contrários à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida, não procedem de uma
verdadeira complementaridade afetiva sexual, não podem, em caso algum, ser
aprovados.
Um número considerável de homens e de mulheres apresenta tendências
homossexuais profundamente radicadas. Esta propensão, objetivamente desordenada,
constitui, para a maior parte deles, uma provação. Devem ser acolhidos com respeito,
compaixão e delicadeza. Evitar-se-á, em relação a eles, qualquer sinal de
discriminação injusta. Estas pessoas são chamadas a realizar na sua vida a vontade de
Deus e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que
podem encontrar devido a sua condição.
As pessoas homossexuais são chamadas à castidade. Pelas virtudes do autodomínio,
educadoras da liberdade interior, e, às vezes, pelo apoio duma amizade desinteressada,
pela oração e pela graça sacramental, podem e devem aproximar-se, gradual e
resolutamente, da perfeição cristã. (CONCÍLIO DO VATICANO II, 1997, pp. 662)

E quando Sissi passa a reconhecer seus desejos, é pela inteligibilidade do pecado


que ela passa a atribuir valor ao que está sentindo, buscando afastar-se dele, de modo sacrificial,
enquanto administrava sua vergonha: A questão religiosa, ela é muito complicada... como eu
tive a educação na igreja muito grande, eu também me senti um pouco envergonhada, sabe,
porque dizia que é pecado, né. Eu também sentia vergonha do meu pecado, por isso que eu
tentei tanto...
Scheff (2013) estabelece uma diferenciação entre a vergonha do dia a dia, espécie
de vergonha cotidiana que não carrega nenhuma ofensa, sendo uma parte necessária ao
equipamento de uma “pessoa correta”, e a vergonha-vergonha, vivida como desgraça e afronta.
Sendo impossível de serem compreendidas como uma experiência individual, nos dois casos, a
vergonha sempre pressupõe um medo de quebra de vínculo social. Koury (2017, pp. 34 e 35)
aposta que, em comunidades de adensamento das relações de sociabilidade, tais como os que
ocorrem nas relações de vizinhança, compadrio e aproximação de todos por todos, a vergonha
cotidiana é o elemento emocional mais importante da ordem moral, regulando as emoções e a
expressividade dos indivíduos no contexto em que vivem. Diante da percepção dos seus
desejos, Sissi experimenta uma situação-limite vivendo a vergonha-vergonha diante da
anormalidade, atestada pela sua natureza pecadora. Mais tarde, quando percebeu que não teria
como retornar a uma existência heterossexualizada, a vergonha cotidiana se constituiu como
fiel da balança para suas decisões sobre o modo de sua aparição no espaço social.
De certo modo, já que o rural jamais pode ser pensado monoliticamente, apesar das
associações negativas construídas desde sua infância e reiteradas em sua prática religiosa que
constantemente emitem chamados para que ela realizasse o “sacrifício da cruz do senhor” como
prova de vida cristã, Sissi pode acessar outros discursos, ao estabelecer relações com pessoas
que, assim como ela, buscavam determinar um valor e uma viabilidade para o amor entre iguais.
E não precisou ir muito longe. A existência de seu irmão Lineu, bem como a de seu primo
209

Santos, ambos gueis, sinalizavam para possibilidades reais de ter experiências congruentes com
seus desejos.
Com cerca de 18 anos, Sissi chegou a beijar uma menina, sem mais consequências.
Posteriormente, durante a festa de São José, ao reencontrar uma jovem nascida na mesma
localidade, mas que havia migrado para Fortaleza, interessa-se por ela. A garota, amiga de
Santos, fora por ela acessada através do WhatsApp, quando seu primo lhe encaminhou os dados
do contato e a partir daí ocorre a primeira experiência de namoro lésbico na vida de Sissi:

Foi um primo meu que conhecia ela, aí me passou o WhatsApp. A gente começou a
conversar, sabe. Mas a gente não chegou a se encontrar não. Nós mantivemos um
relacionamento à distância só pelo aplicativo. Só que acabou que não deu certo. Mas
eu gostava dela, sofri demais e tal, aquela coisa.

Um namoro à distância certamente não determinaria, para Sissi, uma necessidade


de gestão do armário. Até um possível dia em que sua namorada resolveu visitá-la, coisa que
nunca aconteceu, a aparição pública da orientação sexual de Sissi seguiria tão invisível como
antes, já que incapaz de revelar seu namoro com uma mulher. Porém, apesar de distante, seu
relacionamento homoafetivo era real e contribuía para o seu processo de construção de uma
identidade lésbica. Como diz Turkle (em CASALEGNO, 1999, p. 119), ao buscar superar as
diferenças entre relações reais e aquelas que se estabelecem pelo uso das tecnologias
informacionais de formação de redes, as relações reais são aquelas em que as pessoas se sentem
suficientemente ligadas para dar-lhes real importância. São essas relações que determinam a
maneira pela qual cada um se percebe, se passou um bom ou mau dia, ou o modo pelo qual vê
a sua própria capacidade de relacionar-se com os outros.
Diante de sua auto percepção lésbica e seguindo o conselho de sua mãe, que lhe
pedia o compartilhamento dos acontecimentos de sua vida, Sissi contou para ela sobre o seu
romance. Sua mãe costumava narrar-se como uma pessoa sem preconceitos, avalizando tal
posicionamento argumentando que “o amor seria livre”, porém, apesar da costumeira narrativa
de sua mãe, após ter tomado conhecimento dos desejos de sua filha e para a surpresa da mesma,
ela passou três noites chorando.

8.2 Vias fraturadas, pontes erguidas.

Na época em que iniciou seu namoro com a menina que jamais se encontrou fora do
espaço virtual, Sissi participava de grupo de oração na paróquia de Promessinha e avaliava a
210

possibilidade de se comprometer com outras dinâmicas por lá desenvolvidas. Diante de sua


efetiva atuação, os próprios membros da igreja lhe imprimiam certa pressão nesse sentido e ela
ponderava sobre a oportunidade. De acordo com ela:

Quando você começa a adentrar no grupo, quando começa a ficar um pouco mais
sério, a gente vai se engajando em certos grupos que tem lá, chamados de ministérios:
ministérios de pregação, de oração, de canto. Quando a gente começa a ficar mais
sério, eles têm uma preparação com a gente pra gente poder entrar nesse ministério.
Só que eles pedem, não obrigam, mas pede, pra gente abdicar de certas coisas: ir pra
festa, beber, sabe? Eu ia começar uma preparação para entrar no ministério de música.

Porém, a concomitância de seu namoro com as atividades na igreja, a colocou em


uma crise:

Porque a gente foi criada num berço muito religioso, aí eu tinha aquela cobrança
comigo, de dizer eu tô pecando demais. Então não adiantava pra mim estar lá no grupo
de oração e quando eu saia de lá eu ia pro meu celular, falar com a menina, ou desejar.
E aquilo se tornou uma pressão psicológica muito grande pra mim, porque na época
eu não tinha tanto contato com os meninos.

Fora os meninos de sua família, Sissi conhecia outros garotos do Vale desde o tempo
da escola, embora não tivesse sido amiga próxima da maioria deles. Dentre todos, o que ela
mais possuía intimidade era seu primo Santos, que ela desconfiava ser guei, do mesmo modo
como acontecia com ele em relação a ela. Foi conversando com ele pelo “Messenger”,
aplicativo de troca de mensagens privadas entre contatos disponíveis no Facebook, que ela
acabou por revelar-lhe seu desejo por meninas e que ele também lhe confirmou a suspeita que
ela possuía sobre a sexualidade dele.
Santos era amigo de Carlos e costumava encontrar-se com ele na praça. Aos poucos,
ela passou a se aproximar dos meninos, compondo um movimento de turma que,
posteriormente, se auto rotulava como Vale. Em princípio, os assuntos não giravam em torno
da sexualidade deles, posto que todos buscavam organizar sua trajetória permanecendo dentro
do armário,

Mas depois a gente foi conversar, a gente foi se abrir um pro outro, né, conversar. E
depois foi entrando mais, né. Os meninos conseguiram arrastar o Mark. O Mark
frequentava a igreja evangélica na época, aí o Santos começou a puxar ele pra um
grupo de jovens que ele participava na igreja (católica) e ele começou a ir, começou a
se engajar e a frequentar o nosso grupo. Aí só veio agregar um pouco mais, veio o
Rodrigues e o Arthur, o Adalto foi o que veio por último.
211

Sissi tinha uma gratidão especial por Carlos, que costumava lhe dizer: Olha Sissi,
não é assim, você não precisa se sentir dessa forma e tal. Estar com os meninos, para ela, foi
bastante libertador. Foi libertador ter tido eles na minha vida durante esse processo. Por que
muitas pessoas passam por esse processo aí sozinhas e é bastante doloroso. Não sei como
suportam passar por esse processo de aceitação sós.
Encontrar-se com pessoas que, assim como ela, desejavam outras de seu mesmo
sexo fez com que eles fossem aliviando mais o meu psicológico, disse-me. Ao mesmo tempo,
sua presença junto aos meninos, alguns dos quais bastante afeminados e por vezes se
conduzindo pelo escândalo, determinou que as pessoas da igreja começassem a lhe colocar sob
suspeita, devido à sua sexualidade: as pessoas do grupo de oração me rejeitavam, olhavam pra
mim meio assim, por que eu comecei a andar mais com eles. Aí eu deixei o grupo de oração e
fui seguir, fiquei com os meninos mesmo, decidiu.
A efervescência do Vale na vida de Sissi, portanto, acabou por fazer com que,
rapidamente e cada vez mais, ela se posicionasse de modo a não abrir mão de sua
homossexualidade, o que ajudou na decisão sobre o dilema ético vivenciado junto à igreja já
que, ao sair de suas atividades na paróquia, buscava falar com sua namorada, através do
WhatsApp. Para agir de modo congruente, ela procurou resolver tal incômodo com um ajuste
do nível de envolvimento e engajamento com as atividades religiosas, sem abrir mão de suas
amizades:

Quando eu entrei no grupo de oração, foi quando eu passei esse período de descoberta
da minha homossexualidade. Foi uma coisa bem reprimida por que eu tava indo pro
grupo de oração e tal. Então eu frequentava grupo de oração pra passar essa parte de
negação, de não me aceitar. Em contrapartida, eu me aproximei dos meninos, a gente
começou a descobrir um do outro e começou a conversar. Eu fiquei bastante dividida
entre estar ainda frequentando o grupo de oração e estar com eles, até porque eu
achava: “meu Deus, é um pecado!”. Eu já tinha tido experiência de ter ficado com
uma menina, então eu tive que tomar uma decisão: ou eu assumia realmente o que eu
era, ou eu continuava indo, não dava pra fazer as duas coisas. Por que assim, eles
pregavam muito que a gente não podia seguir dois senhores, que no caso seria o meu
pecado. Era como eles falavam. E estar indo pra a Igreja… Aí eu disse assim: “tá, eles
não aceitam o fato de eu ser guei e continuar frequentando, mas eu vou frequentar; eu
vou continuar ficando com meninas, por que eu não vou reprimir meu desejo mais do
que eu já tinha reprimido”. Então eu acabei saindo do grupo de oração e eu firmei
mais minha amizade com aquele grupo de meninos, naquele meio que a gente cresceu
e amadureceu conhecimentos juntos.

Prado e Machado apostam que o grupo contribui para o processo de ressignificação


dos caracteres negativos sobre os homossexuais produzidos na e pela cultura. Tal argumento
reforçado por Muraski e Galheigo (2016, p. 67) quando eles consideram que “processos de se
212

assumir homossexual mais reflexivos que são resultantes da sustentação proporcionadas pelas
trocas de experiências dentro de grupos”. Tal foi o caso ocorrido com Sissi, que não precisou
se deslocar para uma grande cidade para amadurecer conhecimento ou formar uma rede de
apoio com outros homossexuais.
Em Promessinha existiam outros grupos de gueis que eram considerados
“inculturalizados” pelos meninos e meninas do Vale já que a história de vida deles é dar o cu
para o máximo de pessoas possível, disse-me Mark, mas estes não se juntavam com lésbicas.
Ao nomear os outros gueis de menos “inculturalizados”, Mark claramente apontava
para uma diferenciação do valor que ele atribuía às pessoas do seu grupo que se reuniram na
praça para discutir coisas mais profundas, como me falou. Em sua maioria, os meninos do
grupo estavam envolvidos com atividades culturais: quer fossem acadêmicas, pois alguns
entraram na universidade; quer artísticas, posto que haviam membros que participavam de
grupos de dança; ou mesmo pelos seus engajamentos na igreja católica, onde alguns exerciam
posição de liderança junto a outros que participavam comprometidamente das atividades da
Pastoral da Juventude Católica, além de outros grupos de trabalho da paróquia.
É evidente que boa parte do Vale se movia pelo saber e pela cultura. Eles se viam
deste modo e viam uns aos outros como tal. Orgulhavam-se quando um deles entrava na
faculdade ou levava o produto de sua arte para outros espaços. Mais tarde, quando pude
conhecer alguns destes meninos, uma espécie de currículo resumido foi o modelo tomado por
Mark para me situar sobre quem era cada um deles. O mesmo fez Carlos. Em uma das vezes
que eu estive em Promessinha e encontrei com Lucas, coroinha da paróquia que também
participava de um grupo de bailarinos, ele mesmo tratou de comunicar aos outros que, em seu
curso de educação física, estava estudando corpo e dança e naquele momento tinha alguns
projetos para o trabalho que desenvolvia com os jovens em uma escola onde atuava. Na ocasião,
ao felicitá-lo pelas suas ideias, ele disse-me que até já tinha feito algumas oficinas de corpo
onde problematizou estereotipias de gênero presentes em nossa cultura e que buscava avançar
nas suas ideias. Mark e Carlos participavam do grupo de estudos sobre homofobia nas escolas,
sob minha coordenação e costumavam, além dos textos propostos, encontrar novas referências.
Eram aplicadíssimos. As coisas mais profundas que eram conversadas na praça, certamente
passaram a incluir questionamentos sobre as políticas de gênero e sexo presentes em nossa
cultura, pela qual a noção de pecado passeia, contribuindo para dar-lhe forma.
A relação entre o Vale e a igreja católica não pode ser descartada. Em princípio, pelo
fato de que seus primeiros integrantes, todos eles, estavam envolvidos em atividades, algumas
das quais uns com outros, dentro da paróquia. Esta seria sua ligação mais óbvia. Mas há algo
213

mais sutil, e por certo inusitado, que merece ser considerado: a aprendizagem adquirida por
muitos desses garotos, no momento em que ocupavam posições de liderança e militância em
torno das atividades da Pastoral da Juventude. Conheci Lucas antes mesmo de conhecer Carlos
e Mark, alunos que me indicaram a estrada que me levou a essa pesquisa. Lucas era uma das
pessoas que estavam sentadas na plateia de um auditório da faculdade em que leciono, no ano
de 2103, na ocasião em que eu dispensei algumas palavras sobre juventude(s) e sociedade em
um evento para marcar o lançamento da campanha da Fraternidade promovida pela CNBB no
mesmo ano, cujo tema e lema foram: “Fraternidade e Juventude: Eis-me aqui, envia-me!”. Ao
fim da palestra, fui convidada por Lucas para repetir minhas ideias em um Encontro Regional
da Pastoral da Juventude, ocorrido em Itapipoca, sob sua coordenação e que levou um grupo de
jovens de diversas cidades da região a se reunirem para debater sobre a maioridade penal, em
um momento no qual a grande mídia televisiva propagava argumentos contra e a favor
(provavelmente mais este que aquele) à implementação de uma lei que a reduzisse de 18, para
16 anos. Este foi o tema sob o qual organizei minha fala desde o auditório da faculdade,
argumentando junto aos contrários à proposta.
Neste sentido, as aprendizagens para o protagonismo possibilitadas pela militância
nas participações dos movimentos sociais da Pastoral da Juventude Católica me parecem
importantes. Na Pastoral, alguns meninos do Vale se organizavam em torno de pensamentos
mais à esquerda, através de práticas alinhadas com as ideias progressistas e politizadas da
Conferência Nacional do Bispos, a CNBB. Suas atividades na paróquia faziam com que eles
estivessem empenhados em tarefas de lideranças, realizando eventos, fomentando debates,
construindo e gerindo equipes e ponderando, na profundidade do tamanho de seus fôlegos,
assuntos importantes tais como sistemas políticos, organização do poder, hierarquias sociais,
para citar alguns temas.
Desse contexto surge uma turma composta por gueis e lésbicas que passam a se
reconhecer e se apoiar, mudando tanto o curso das trajetórias de cada um deles em torno da
aceitação relativamente empoderada de uma identidade sexualmente desviada, bem como do
fluxo intensivo da cidade, já que todos eram reconhecidos como tal e o modo preferencial de
sociabilidade se dava a olhos vistos, na praça mais central do lugarejo onde moravam.
Provavelmente essa ousadia não pode ser dissociada das tarefas coletivas desempenhadas
dentro da própria igreja que, a todo instante, traz o apóstolo Paulo para dizer que eles são
pecadores e que devem abdicar de seus pecados. Se o rural não pode ser pensado
monoliticamente, o mesmo pode ser dito sobre a movimentação dos jovens de Promessinha em
214

torno da paróquia e o sobre a maneira de como esses garotos aproveitaram-se de suas


aprendizagens nesse espaço, realizando

Uma produção, uma poética – mas escondida, porque ela se dissemina nas regiões
definidas e ocupadas pelos sistemas de produção (…) e por que a extensão sempre
mais totalitária desse sistema não deixa aos consumidores um lugar onde possam
marcar o que “fazem” com os produtos. A uma produção racionalizada, expansionista
além de centralizadora, barulhenta e espetacular, corresponde “outra” produção,
qualificada de consumo: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se
insinua ubiquamente, silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos
próprios, mas nas “maneiras de empregar” os produtos impostos por uma ordem (…)
dominante. (CERTEAU, 2005, p. 39)

Foi nos bancos da praça da igreja matriz de Promessinha, com seus amigos cristãos
e gueis, que Sissi se viu em um grupo de semelhantes e pode acessar ideias alternativas à noção
de pecado com as quais tinha sido formada desde a infância. Como disse Marques (2015, p. 18)
“o mundo rural se transforma em redes outras que não somente o urbano”. O fluxo intensivo
que atravessou o Vale jamais dependeu diretamente do acesso às grandes cidades, embora tenha
colaborado, dentre outros fatores, os pequenos deslocamentos realizados por alguns deles para
municípios próximos, seja pelo acesso à universidade, seja pela participação em movimentos
sociais politizados dentro da igreja, ou ainda pelos grupos artísticos e/ou acadêmicos aos quais
estavam integrados.
Adicionalmente, através de seus smartphones e computadores eles podiam acessar
a Web e Sissi buscava mover-se no sentido da obtenção de conhecimentos sobre os debates
contemporâneos em torno das sexualidades:

Eu tenho acesso à internet. Eu sou curiosa. Eu pesquiso sobre tudo, assisto vídeos,
leio algumas coisas.
……………………………………………………………………………………….
Depois que tu fez essa pesquisa com a gente, depois que os meninos começaram esses
projetos que eles participam sobre gênero e sexualidade, aí eu comecei a me interessar
e pesquisar. Eu assisto muitos documentários sobre essas questões aí eu até comento.
Eu assisti a um documentário sobre sexualidade e direito de envelhecer. Eu até
repassei pros meninos, dou um toque: “olha tem aquele documentário lá! Assiste, é
legal! Dou dicas de filmes…

Além do claro aporte emocional e político ofertado por seus amigos, sua presença
quase que diária na praça, dentro daquele grupo, lhe favoreceu os olhares de Lina, que passou
a paquerá-la.
Sissi achava incrível o fato de não a ter conhecido antes, numa cidade tão pequena.
Talvez Sissi não tenha atentado para o fato de que a infância daquela que viria a ser sua amada
215

tenha se passado na zona rural da localidade e que a sua própria infância e início da adolescência
tenha se desenrolado entre a capital e Moitas. Se não trocaram conversas no momento anterior,
na verdade, já tinham se visto. Quando calhava, Lina passava de moto ao redor da praça, para
tacar o olho em Sissi, mesmo que “casadérrima”, como fui por ela informada, e em um desses
momentos, um dos garotos do Vale sinalizou: olha como aquela mulher casada é muito sapata!
Todos desconfiavam.
Poucos meses depois de vê-la na praça, dois ou três, Lina passa a comprar roupas
na loja em que Sissi trabalhava à época, como forma de iniciar uma amizade bastante
interessada. Seu namoro virtual já havia terminado e a tristeza que sentia foi se dissipando
quando Lina começou a frequentar bastante a loja, disse-me Sissi. Durante essas compras, os
laços de amizade foram se estreitando e as visitas, que passaram a ser diárias, já não eram mais
motivadas pela aquisição de qualquer item. Lina pede o telefone de Sissi e as duas passam a
trocar mensagens via SMS, único recurso de comunicação escrita via celular acessado por Lina,
diante da proibição de seu marido acerca de qualquer aplicativo que pudesse incrementar seus
relacionamentos sociais:

A gente começou a trocar mensagens, ela começou a se abrir mais, né? A mandar
mensagem diferente. Todo dia de manhã ela mandava mensagem para mim e aquilo
foi me acostumando. Aí aquilo foi me despertando, sabe aquela atenção, aquele
carinho que ela tinha comigo? Todo dia de manhã acordar e ter aquela mensagem,
saber que uma pessoa gosta de você, que lembra, é sempre bom, né? E isso foi me
envolvendo, sabe? Me envolvendo com ela, que chegou um ponto mesmo que a gente
já tava meio que trocando mensagens mais... eu ainda não tava entendendo como era
aquilo, sabe? Aí um dia, especialmente, ela tinha ido à noite. Dificilmente ela ia à
noite, porque ela frequentava a igreja. Aí ela foi e eu não sei como foi, só sei que ela
olhou pra mim diferente, eu senti que ela olhou pra mim diferente e eu fiquei me
perguntando o porquê. Só que o que mais me pegava é que ela dizia pra mim que
amava o marido dela, que gostava da vida de casada e tal. Só isso que eu não entendia,
porque ela dava abertura e dizia que queria alguma coisa, mas que depois voltava
atrás. Aquilo me perturbava demais.

É bastante provável que esse jogo contraditório na apresentação de si estabelecida


por Lina diante de Sissi - que deixava transparecer uma divergência pronunciada entre, de um
lado, as expressões emitidas por linguagens não verbais, tais como olhares interessados,
frequência de visitas à loja e constantes trocas de mensagens carinhosas por meio de
comunicação virtual e, de outro, as expressões transmitidas verbalmente e de modo fraudulento
(através de declarações que Lina sabia serem falsas, mas verossímeis, sobre a felicidade em seu
casamento) - tenha contribuído para que conversas mais íntimas fossem surgindo. Como disse
Goffman (2002), aquele que recebe a informação tem sempre uma superioridade em relação à
decifração de mensagens, já que, em um só tempo, tem à sua disposição as expressões verbais
216

e não verbais disponibilizadas pelo emissor. Ao observar o conjunto dos elementos apresentados
por Lina, Sissi intuía que o que estava despontando seria mais do que uma amizade.
O fato de que parte de suas conversas tenha ocorrido através de tecnologias online,
ajudaram a Sissi em seu ímpeto de, interessadamente, decifrar as mensagens contraditórias de
Lina pois, como Disse Suler (2004, p.321) no mundo virtual as pessoas sentem-se mais
desinibidas, elas

Se soltam, se sentem menos contidos e se expressam mais abertamente [e parte dessas


expressões] pode surgir como uma tentativa de compreender-se e desenvolver-se
melhor, para resolver problemas interpessoais e intrapsíquicos ou explorar novas
dimensões emocionais e experienciais à própria identidade.

O autor, que não descarta características personalísticas dos sujeitos envolvidos nos
diálogos desinibidos, chama atenção para alguns fatores disponibilizados pelo próprio
ciberespaço que interferem, de modo positivo, no processo de desinibição. Dentre eles, Suler
(idem) cita a invisibilidade operada pela supressão das trocas comunicativas presenciais, que
faz com que os sujeitos envolvidos na interação comunicativa não tenham que lidar nem com a
sua própria aparência no momento da emissão de uma informação e nem mesmo com os
possíveis sinais inibidores que poderiam surgir por parte do receptor de uma mensagem, tal
como ocorre em uma interação face a face. Outro elemento favorecedor da desinibição online,
continua, é a assincronicidade constante nas trocas de mensagens por texto. É possível ler uma
mensagem e não a responder, deixando para fazer em um momento oportuno e, por certo, sujeito
a mais cálculos do que o ocorre em uma conversa imediata. Além do mais, observa, há de se
considerar as predisposições individuais, onde a intensidade dos sentimentos, às necessidades
e o nível de motivação subjacente da pessoa entram em jogo no processo de desinibição.
Através das trocas de mensagens via SMS, Sissi agarrou a oportunidade de “jogar-
se no escuro”, dando o passo decisivo para o início do namoro:

Aí, eu ainda não tava entendendo como era aquilo, sabe? Aí até que um dia ela me
perguntou se eu gostava de alguém, se eu tava namorando. Eu disse que não tava, mas
que eu gostava de uma pessoa. Aí ela perguntou quem era. Eu sei que nessa de
perguntar passou mais de uma hora eu enrolando pra falar que era ela. Eu sei que eu
falei. Aí eu ficava com medo de falar, porque eu não sabia qual era dela, se ela queria
ser minha amiga ou se ela queria alguma coisa a mais. Eu tinha medo de perder a
amizade dela, que eu gostava muito dela. Aí eu fui mesmo me joguei no escuro: falei
mesmo que gostava dela e tal, só que ela não deu resposta de nada. Aí ela passou por
mim e não falou, passou voada na moto e eu pensava que ela tinha ficado com raiva
e ia se afastar. Eu sei que ficou normal. Aí depois de um dois ou três dias ela foi e me
pediu em namoro. E eu fiquei confusa com aquilo, porque ela tava casada e ela me
pediu em namoro. Aí foi o primeiro beijo que a gente teve depois que eu falei pra ela.
217

O primeiro beijo ocorrido entre as meninas, aconteceu no provador da loja em que


Sissi trabalhava, pois, um beijo entre duas mulheres não poderia acontecer a olhos vistos em
algum lugar de acesso público, especialmente em uma pequena localidade.
Apesar dos esforços de ocultação, no dia seguinte ao beijo, a dona da loja comunicou
a Sissi a sua demissão. Lina acreditou que alguém pudesse ter visto elas entrando no provador,
mas Sissi ponderou, provavelmente de modo mais acertado, que

As pessoas já estavam comentando. Porque ela frequentava muito a loja e ela tinha
muito fama de lésbica. Eu acho que as pessoas não desconfiavam tanto de mim porque
eu não dava muita pinta, porque naquela época eu tava mesmo era dentro da igreja,
no grupo de oração e tal. Aí as pessoas começaram a fazer especulações sobre a gente.
A minha patroa não falou o motivo dela ter me despedido, mas foi esse o motivo: por
causa dela. Porque as pessoas estavam comentando e ela não queria que a loja dela
ficasse mal falada. Aí ela foi e me demitiu.

Louro (2000) sinaliza o medo do contágio homossexual, quando observa o processo


de isolamento vivido por muitos de meninos gueis e meninas lésbicas nas escolas. Estar
próximo a algum homossexual, observa a autora, faz com que a sexualidade daquele que se
aproxima seja posta em suspeição. No caso de Sissi, tornava-se claro, para sua patroa, que se
ela constantemente recebia a macho-e-feme em sua loja, ambas seriam lésbicas, o que acabaria
por determinar o afastamento de seus clientes, ao perceberem a própria lesbianidade de Sissi.
Um contágio que, de algum modo, se estende às próprias coisas nas quais Sissi toca. Ao ser
presumida a sua homossexualidade, pela aproximação daquela que até um dia antes de sua
demissão era apenas sua amiga, sua patroa passa a perceber nela uma espécie de “anti-Midas”.
Presunção da causa, posto que a demissão surge no dia seguinte ao primeiro beijo entre as duas,
em um lugar reservado e provavelmente sem qualquer audiência. E também de uma possível
consequência, pela ideia de contágio entre Lina e Sissi e que se estendeu às próprias coisas. O
desligamento do emprego, portanto, não deve ter sido determinado por algum fato que, sem
dúvidas, a colocasse no lugar de lésbica. A decisão de sua chefe provavelmente se deu antes
mesmo de que seu namoro tivesse iniciado e o fato de que isso tenha se efetivado apenas um
dia após o início do seu namoro me faz crer que tal ocorrência não tenha interferido nessa
decisão. Uma das reflexões possíveis sobre o meio rural é que nas pequenas localidades, o
armário parece ser um lugar impossível, ao mesmo tempo em que é um lugar de onde não se
deve sair.
218

Sissi sabia que sua homossexualidade havia lhe custado o emprego, porém jamais
ponderou reverter sua aproximação com sua namorada, ainda que buscasse manter bastante
discrição na cena pública da cidade. A discrição era muito necessária até mesmo pelo fato de
Lina ser casada. Apenas seu irmão Lineu sabia do que ocorria entre as duas e embora ela tenha
anteriormente conversado com sua mãe sobre seus desejos por outras garotas, ela resolveu
ocultar-lhe a sua relação. Agiu do mesmo modo com os seus amigos da praça que, cientes de
sua preferência sexual, seguiram sendo informados de que entre as duas havia apenas uma
amizade.
Com o passar do tempo, aproximados três meses, a situação da duplicidade de
relações vividas por Lina passou a incomodar Sissi, que pediu que sua namorada tomasse uma
decisão no sentido de escolher em qual relação permanecer. Como dito antes, Lina separou-se
do marido e logo após tal acontecimento passou a frequentar, junto com Sissi, às reuniões do
Vale, nos bancos da Praça. Se desde o momento em que visitava Sissi na loja o burburinho
especulativo sobre a natureza da relação entre duas já ocupava a mente e a boca dos locais,
depois que Lina aderiu à turma da praça a acertada suposição de que eram namoradas se
alastrou demais, como se fosse fogo em palha seca, ponderou Sissi.

8.3 A gestão do armário

Na época em que conheceu Lina, Sissi morava com sua mãe. A perda de seu
emprego determinou que o único dinheiro da casa fosse obtido pela aposentadoria por invalidez
recebida por sua mãe que, de acordo com Sissi, era insuficiente para as duas. Frequentemente
Lina, que passava o dia circulando sob sua moto em busca de clientes para comprar-lhes os
óculos que vendia, parava na casa de Sissi e de sua mãe para tomar uma água ou partilhar uma
refeição qualquer. Por vezes, Lina comprava os mantimentos e Sissi cuidava da culinária. A
mãe de Sissi sempre pedia favores a quem estava pela casa e Lina empenhava-se em realizá-
los, como forma de agrado. Em princípio, a mãe de Sissi a acolhia com bons tratos.
Posteriormente, quando passa a desconfiar que entre as duas existia algo mais do que uma
amizade, a situação muda de figura e surgem alguns incômodos em relação à presença constante
de Lina em sua casa.
Sua mãe, cônscia da sexualidade de sua filha, pergunta-lhe sobre o que se passava
entre elas e Sissi nega, afiançando a veracidade da falsa informação ao tomar como álibi o
casamento de sua “amiga”. Apesar da negativa, a certeza nutrida por sua mãe seguia sem ser
dirimida e, ao contrário, reforçava-se quando, posteriormente, ela acompanha o desenlace
219

matrimonial de Lina em um momento no qual, na cidade, a informação sobre esta relação já se


dava ao conhecimento público, inclusive dentro de sua própria família:

Eu tenho uma tia, que é minha madrinha… ela mudou da água pro vinho comigo. Ela
falava comigo e era toda espontânea. Agora, ela olha pra mim como se eu fosse... sei
lá, uma qualquer. Ela fala comigo, mas a gente vê que não é como antes. Tá
entendendo? E isso já aconteceu várias vezes, eu me sentia muito excluída.
Teve uma época, acho que foi ano passado, foi uma época em que eu queria ir embora
daqui, que eu me sentia excluída. É como se eu não existisse naquela família. Uma
vez eu cheguei lá, estava todo mundo reunido e tal, eu entrei e saí e ninguém falou
comigo. E o que eu ainda faço aqui? Porque, se a minha família me trata desta forma,
o que eu ainda continuo fazendo? Não sei, na época a mãe ainda não tinha ido embora,
só tinha ela aqui e mesmo assim eu me sentia rejeitada. Antigamente não era assim,
porque que agora é?
…………………………………………………………………………………………
Teve uma vez que eu tinha tido uma discussão com meus familiares e eu tava vindo
pra cá pra casa dela. Eu vinha na contramão e vi uma moto vindo, antes de chegar ali
no quebra-molas. Ela vinha e eu não desviei e ela aparentemente não vinha desviando,
eu fechei o meu olho. Eu não me importava se eu tivesse morrido naquele momento,
eu tava tão passada, tão transtornada, que se a moto tivesse batido e eu tivesse morrido
naquele momento, acho que pra mim teria sido um certo alívio por estar passando por
aquela pressão. Eu fechei meu olho e ele desviou. Ai, nesse dia que eu vim conversar
com a Lina, eu cheguei e contei toda a minha vida pra ela, tudo, tudo, tudo, tudo. Eu
revelei uma Sissi que eu não tinha revelado pra ninguém. Eu chorei e a Li chorou
comigo a minha vida.

Antes de seu namoro com Lina, receber amigos em casa nunca havia sido problema:
ela [sua mãe] ficava no quarto e eu dizia: mãe, vão vir as pessoas pra cá. Ela deixava, ela nunca
se opôs a isso, sabe? Mas com Lina foram sendo erguidos obstáculos: E foi aí que começou
toda uma história da mãe reclamar que a Lina ia lá pra casa, que era muito espaçosa. Ela chegou
até a dizer para uma tia minha que tinha medo da Li, não sei por que. Aí todo mundo começou
a ficar contra mim.
Algum tempo depois, Sissi consegue empregar-se na papelaria e a vida fora de casa
lhe apresentava muitas ofertas: o trabalho, que se iniciava pela manhã e se estendia até as
primeiras horas da noite; o encontro com os amigos na praça e também as idas à casa de Lina,
lugar onde poderiam se encontrar com maior possibilidade de intimidade. O tempo de
permanência junto à sua mãe diminuía, enquanto essa aumentava a cobrança em relação à sua
presença, dizendo sentir-se abandonada pela filha: a partir do momento que eu me desliguei
mais dela, ela começou a entender que eu tava abandonando. Ela disse que estava se sentindo
só, que tava abandonada, narrou.
Durante esse período, o marido de sua mãe propõe que elas retornem à Moitas e sua
mãe aceita a oferta, esperando que Sissi a acompanhasse. Com esta partida, evitando qualquer
conflito direto, a mãe de Sissi poderia favorecer seu desejo de que sua filha se separasse da
220

namorada. Tanto no momento no qual a mãe de Sissi passa pedir a sua permanência em casa
sem a presença de sua namorada, como quando esta pede que a filha lhe acompanhe na sua ida
à Moitas, nos dois casos, sua mãe objetivava diminuir a presença de Lina na vida de sua filha.
Para as duas garotas estava claro que a mãe de Sissi considerava como uma impropriedade do
namoro a obstaculização da participação de sua filha no ambiente doméstico: por que ela acha
que a Sissi abandonou ela por causa de mim, né? Ponderou Lina.
O convite realizado pelo marido de sua mãe estabeleceu um alvoroço na família que,
mesclando o estado de saúde da mãe com a sexualidade da filha, procurava determinar as
vantagens e as desvantagens em sua partida. Neste momento, as pessoas se oportunizaram a
encadear ideias no sentido de difamar Sissi pela sua sexualidade, atribuindo algum valor à lista
de motivos pelos quais ela deveria ficar, ou pelos quais ela poderia seguir, com tranquilidade,
os passos do marido.

Minha mãe disse que trabalharam muito o psicológico dela contra mim, sabe? As
pessoas começaram a colocar na cabeça dela, a falar pra ela que realmente eu tava
com a Li, começaram a falar coisas e aquilo foi aumentando, aumentando. E ela tinha
aquela carência, de não querer estar sozinha e dizer que eu tava abandonando ela e
surgiu a proposta dela ir embora com o marido dela e ela aceitou. Todo falatório, toda
aquela coisa… foi um escândalo na família. Mais os irmãos dela e na minha família.
[Eles diziam] como é que ela vai sair da casa dela, pra ir pra uma terra estranha?! Ela
tinha uma casa, tinha uma filha pra cuidar dela. As pessoas veem ainda hoje que é
uma obrigação de eu cuidar da minha mãe. Ela cuidou de mim no momento que eu
mais precisava e eu tinha o dever de ajudar ela no momento que ela mais precisou.
Isso todo mundo falava pra ela, tanto lá da família do marido dela, como da nossa
família (…) a partir daí a minha família começou a me ver como monstra, a ficar
contra mim.

Apesar de toda pressão - há muito exercida e piorada com a possibilidade aberta no


sentido de seguir os rumos de sua mãe -, Sissi decide ficar em Promessinha. Ela estava com
cerca de 19 ou 20 anos de idade e avaliava que, por bastante tempo durante sua adolescência, a
vida havia se desenrolado de modo muito centrado nos cuidados com sua mãe e muitas
experiências haviam lhe sido suprimidas:

Eu era uma adolescente, eu tinha 16, 17 anos… eu passei a ter uma responsabilidade
gigantesca de cuidar de uma pessoa. Aí aquilo que me retraiu, por que eu tinha vontade
(...) uma adolescente tem vontade de sair de ter liberdade e aquilo foi tirado de mim
por que eu tinha responsabilidade. Eu não podia dormir fora de casa, não podia viajar,
não podia ir à festa porque eu não podia deixar ela só. Aquilo foi me acostumando e
me prendendo, me prendendo, eu me sentia presa, porque eu não podia realizar aquilo
que eu desejava. Eu fui viver minha adolescência, com 19, 20 anos.
221

Morar só não se constituiu em uma tarefa fácil, pois muito do que precisou aprender
sobre gestão doméstica ocorreu em um momento de intenso desgaste com sua família extensiva.
Neste período, alguns de seus familiares sequer lhes dirigiam palavras. Para Sissi

A saída da mãe foi bastante dolorosa pra mim por conta da pressão da família me
culpando. Ela disse que ia e aí foi. Me deixou em casa ao Deus dará. Porque eu tava
começando a ter uma responsabilidade comigo, ela deixou tudo nas minhas costas. A
responsabilidade de cuidar da casa, de fazer compras, de pagar, de começar a assumir,
de pagar as contas. Aí isso gerou um certo medo pra mim. E eu me senti abandonada,
tanto pela minha mãe, quanto pela parte de minha família. Por que as pessoas acham
que eu abandonei minha mãe e ainda hoje eu não acho, por que, se a gente for colocar
na balança, quem abandonou quem? Ela me deixou (…) ela entendeu de ir e ela foi.
A escolha foi dela.

Estar só era um incômodo: eu acho que nunca vou me acostumar a morar só, disse-
me. Na tentativa de resolver seu desconforto, seu irmão Lineu foi convidado a morar com ela.
Posteriormente, foi a vez de seu outro irmão, Fábio, que morava em Paracuru, juntar-se aos dois
na casa. Sissi não tinha muito contato com Fábio, mas o fato de que ele era seu irmão e estaria
tendo problemas em seu emprego por ser guei fez com que a ela consentisse com a sua
permanência no espaço. Algum tempo depois, Fábio convida seu namorado que passa a pousar
na casa de modo intermitente, assim como fazia Lina, quando não estava com seu filho.
Mesmo que não tenha exatamente sido essa a intenção, a casa passou a funcionar
como uma espécie de abrigo, um espaço retirado para um grupo de gueis e lésbicas que por lá
residiam ou para os que costumavam visitá-los; um espaço de solidariedade e acolhimento,
como disse Mark:

Porque entre nós existem redes de solidariedade, por exemplo, esse espaço aqui só
existe por causa dessa rede de solidariedade. Não foi à toa que o Lineu veio de
Fortaleza pra cá, que o Fábio veio de Paracuru pra cá. É porque já tinha alguém
ofertando esse laço de solidariedade pra oportunizar que eles permanecessem aqui em
Promessinha. Porque o nosso principal objetivo é ir embora, ir pra fora.

Com arquitetura típica do interior, a casa de volumetria paralelepípeda era localizada


em um terreno demarcado por uma cerca de arame farpado. As janelas e portas eram de fichas
e o seu telhado vermelho com queda em duas águas tipo cangalha era capaz de ser visto também
por quem estava em seu interior, já que não tinha forro no teto. Pelo lado de fora, na branca
parede frontal da casa, uma inscrição pichada informava que ali existia a “Casa da Paz”. Entre
seus integrantes, era chamada de Fraternidade.
222

Embora a inscrição contida na parede e o nome dado por seus integrantes sinalizasse
o desejo de um convívio pacífico, os problemas financeiros que eles enfrentavam determinaram
a emergência de alguns conflitos. Apenas Sissi recebia algum dinheiro e por mais que Lina
colaborasse também, as contas não batiam. Fábio permanecia desempregado e sempre trazia
um hóspede que também não colabora financeiramente com o lugar que o acolhia. Lineu, que
realizava trabalhos pela Pastoral da Juventude, aguardava algum benefício na forma de bolsa,
no momento em que a igreja pudesse obter um financiamento a partir de verbas destinadas às
paróquias que procedessem com realizações de projetos sociais. Via de regra, muitos jovens
que se envolviam no trabalho com a Pastoral sabiam da incerteza em relação a um possível
pagamento pelos seus serviços, mas mantinham-se nas atividades, por falta de melhor
oportunidade e/ou por acreditar na importância do serviço prestado. Algumas vezes, Sissi
recebia ajuda de sua mãe, que lhe dava dinheiro ou alimentos.
Cinco meses após a partida de sua mãe, uns documentos referentes à casa ficam
prontos e Sissi resolve ir deixá-los em Moitas, aproveitando a oportunidade para fazer-lhe uma
visita de fim de semana e aceitando a oferta de Lina para que fossem juntas, sobre sua moto.
Lá, hospedaram-se na casa de uma amiga, filha do marido de sua mãe biológica, tendo dormido
nesta casa por uma noite. Nesta ocasião, a mãe torna-lhe a questionar sobre o que ocorria entre
as duas e mais uma vez, Sissi respondeu-lhe negando qualquer envolvimento amoroso entre
elas: eu não estava preparada naquela época, disse-me.
A ida das garotas para Moitas reacendeu o falatório do marido de sua mãe, bem
como de seus cunhados, que buscavam a informar a obviedade da relação amorosa entre as duas
ao mesmo tempo em que aproveitavam para opinar negativamente sobre namoros como este.
Em lugares de intensa sociabilidade, qualquer movimento pode fazer retornar os mexericos e a
ida do casal funcionou para tal finalidade. Se sua mãe jamais havia conseguido acreditar na
mentira sucessivamente afirmada por Sissi, essa visita aumentou-lhe sua certeza, bem como seu
incômodo sobre o fato.
Poucos meses após esse encontro, em um momento no qual Sissi estava passando
por uma forte dificuldade financeira, ela telefonou para sua mãe a fim de pedir-lhe algum
dinheiro. Nessa ocasião sua mãe disse-lhe

Que tinha vergonha, que as pessoas perguntavam se eu tava com uma mulher, as
pessoas perguntavam quem era o homem da relação. Ela disse que tava cansada
daquilo, que aquilo tava consumindo ela, por que ela é muito... extremamente
religiosa. Ela falou absurdos pra mim, que me deixou magoada. Eu chorei demais pelo
que ela disse. Ela falou que a Li não era bem-vinda lá, que ninguém de lá gostava da
Li. Que não era mais pra a Li ir lá. Da outra vez ela tinha me dado umas coisas pra eu
223

trazer. E ela disse que enquanto eu tivesse com a Li, não ia me dar mais nada, não ia
sair mais nada de lá. Ela disse que tinha vergonha de mim e isso foi o que mais doeu.
Eu falei umas coisas pra ela também. Disse que enquanto eu tivesse força pra
trabalhar, eu não ia pedir mais nada pra ela, que não precisava mais da ajuda dela. A
gente se magoou, na verdade, e eu passei quase um ano sem falar com ela.

Diante da sanção econômica de sua mãe, ela

Disse pra Li: “enquanto ela tiver me dando a gente vai usufruindo no momento que
ela não quiser dar, a gente não vai se importar”. Eu não vou deixar a Li pra ela
aparentemente me sustentar, por que a gente já passou dessa fase, ela não me sustenta
mais. Mas eu refleti com a Li. Não é que a gente pede, é que as pessoas deixam de
nos doar as coisas por conta que a gente é sapatão.

Depois dessa ruptura, a situação de moradia na fraternidade tornou-se ainda pior.


Sissi dizia que não se importava com a falta de colaboração financeira de Lineu, pois este estaria
se movimentando em algum tipo de trabalho e talvez pudesse vir a colaborar no futuro e,
ademais, a sólida relação de amizade entre eles faria com que ela procedesse da mesma forma,
mesmo se ele estivesse agindo de outro modo. Por outro lado, Fábio e Sissi possuíam laços
consanguíneos, mas não de amizade. Além do mais, seu namorado, sempre presente e jamais
colaborativo, somava um problema a mais para que o afeto entre os irmãos pudesse transformar
o sentimento de relativa indiferença em um laço positivo. Por se sentirem exploradas, muitos
conflitos passaram a surgir, em especial entre Lina e seu concunhado, espécie de penetra diante
do contexto. Foi uma época difícil e a fraternidade não era capaz de garantir o básico para seus
integrantes.
Em um lugar com poucas ofertas de empregos, geralmente marcadas pelos contratos
de salários abaixo do mínimo calculado para uma (pobre) existência, os problemas financeiros
enfrentados na moradia compartilhada acabaram por fazer com que Sissi se retirasse dela, indo
morar definitivamente com Lina na casa onde morava com seu filho, deixando o espaço da
fraternidade sob cuidados dos seus dois irmãos. Posteriormente, quando esta situação ficou
insustentável para os que lá permaneceram, o que restou da pequena comunidade foi desfeita.
Sissi, então, aproveitou para alugar a casa, usando o dinheiro do aluguel como renda
complementar ao salário recebido na papelaria, a fim de manter o casal já que, nesta época, sua
companheira estava desempregada e contava apenas com a pequena pensão recebida de seu ex-
marido, para pagar as necessidades de seu filho.
Mudar para casa de Lina, por certo confirmava a expectativa de muitos habitantes
do lugarejo sobre o fato de que naquele espaço vivia um casal de lésbicas. A curiosidade dos
224

vizinhos, atestada pelos flagrantes das garotas em relação a um dos vizinhos que sempre
buscava espiar o que ocorria dentro da casa em que elas viviam e pelos comentários maldosos
feitos dentro da família de Lina por parte de seu irmão, que residia no andar de baixo, sobre o
que ocorria dentro do, por ele considerado, “templo de satã”, confirmam o rebuliço provocado
pela mancebia das garotas.
Embora as fofocas alimentassem o domínio público sobre a relação das duas e ainda
que a cada dia essa ideia fosse confirmada pelas escolhas que faziam e apesar de que, entre
todas as garotas pesquisadas, Sissi fosse a única que, devido a sua curiosidade, tivesse usado
seu tempo para conhecer coisas mais profundas sobre as sexualidades nos politizados diálogos
do Vale e em suas buscas ativas pela internet, ela buscava conter o ímpeto de sua namorada,
que gostaria de ter uma aparição “mais rasgada” do que a que ocorria entre elas nos espaços de
acesso público em Promessinha:

Assim, o que falei pra ela: “não tinha necessidade da gente chegar e afirmar pra pessoa
que a gente tava namorando. Vão espalhar pra cidade inteira que a gente tá
namorando, deixa eles pensarem o que eles quiserem, eles não têm nada a ver com a
vida da gente. Eles não têm o direito de dizer quem eu devo namorar ou não. Se as
pessoas falam, deixa elas falarem. Não que saia pela boca minha e dela. As pessoas
sabem, por conta que vê muito a gente juntas, aí deixa elas pensarem o que elas
quiserem.

De dentro de sua turma, partia um apelo para que elas se revelassem: os meninos
dizem assim, ah se eu fosse vocês, eu beijava na boca mesmo, eu não tava nem aí. Vocês são
muito retraídas, contou-me Sissi. Mas ela, que já havia transformado sua vergonha-vergonha
em vergonha cotidiana, intuía que a atitude transgressora ultrapassa a situação de vergonha
cotidiana, ao recolocá-la novamente em uma situação de vergonha, vergonha, especialmente

Por causa da família mesmo. Por que assim, é família e tal. Vamos dizer que a família
é Torres, no caso a minha. A família da dona Rita. Os meus avós são pessoas bastante
conhecidas, sabe. Aí tem aquela coisa do falatório. Aí eu penso, realmente, em não
passar por aquele constrangimento que alguém diga: a Sissi tava lá na rua, beijando
tal pessoa na Promessinha”. Por isso que eu evito mais.
………………………………………………………………………….……………
A sociedade daqui ainda não tá preparada não. Eu levo mais pro lado do respeito,
porque as pessoas daqui são muito religiosas e as coisas que elas veem, elas falam…
elas acham uma coisa tão absurda. Se elas falarem pra minha mãe vai gerar uma certa
vergonha. Se alguém chegar e falar que essa coisa aconteceu com um dos filhos dela
que é homossexual, vai gerar vergonha. Mas dentro de casa talvez ela não se importe.
É tanto que o meu irmão e o namorado dele estavam lá, passaram o final de semana
lá. Mas que… se já partiu mais pra fora, gera um pouco de constrangimento pra ela.
225

Sobre o episteme da sexualidade, Sissi havia aprendido que sua sexualidade


desviante deveria permanecer no âmbito privado, longe do olhar dos outros. Sobre a episteme
do armário na convivência social em uma pequena localidade, a garota havia aprendido que o
olhar dos vizinhos, de certo modo, funcionaria como olhar no interior de sua própria família.
Isto por que, nas pequenas cidades, as relações afetivas e solidárias – embora tensas, porque
recheadas de pequenas disputas morais – existentes entre pessoas e famílias em convívio de intensa
pessoalidade [são] como uma forma de ampliação da rede de parentalidade local16 (KOURY, 2018, p.
15).
Um movimento que provavelmente se estabelece por

Desconfiança de que o outro a exponha enquanto narrativa de fracasso, de escárnio,


de jocosidade e de transgressão moral, [que] é um elemento basilar nas sociabilidades
urbanas de pequeno porte. Este medo de ser exposta, seja pelas mais banais das razões
e pelos mais insignificantes descuidos, (…) [foi por ela] administrado pelo
gerenciamento constante de impressões e de expressões em situações públicas entre
parentes, amigos e vizinhos. (KOURY, 2017, p. 36 e 37)

No início de seu namoro, as garotas chegaram a fingir que não se conheciam, no


momento em se encontraram casualmente na padaria da cidade. Para ela, fingir não reconhecer
sua namorada

Foi muito constrangedor. Era tão constrangedor aquilo, que afetou muito a gente.
Magoou, mesmo e mesmo que a gente não tenha brigado por isso, a gente resolveu
que ia deixar rolar, não ia mais pensar no que as pessoas iam falar. Mas quando a gente
passa, quando a gente anda, não só eu e ela, mas quando tá a galera reunida, as pessoas
falam, sabe. A gente sente que as pessoas falam. O olhar também fala muito. O olhar
de julgamento, às vezes algumas pessoas fecham a cara, já olham com a cara ruim pra

16
As ideias de Koury contidas nessa passagem, referem-se às relações interpessoais desenvolvidas em
comunidades de afetos. As comunidades de afetos são grupos de vizinhanças ainda menores do que o que ocorre
em uma zona rural. Normalmente, uma comunidade de afeto é formada por indivíduos que escolheram viver
próximos uns dos outros, especialmente por possuírem algumas características comuns e que desenvolvem sólidos
laços, ao longo da convivência. Um abrigo para idosos pode constituir uma comunidade de afeto. No caso da
etnografia de Koury (2018), a sua investigação se debruçou sobre os moradores da Rua X, que passaram a morar
em sistema de vizinhança quando, após terem migrado de suas cidades de origem, resolveram ocupar um terreno
vago e construir suas casas. Para ele (idem, p. 15) uma comunidade de afeto envolve uma rede de solidariedade e
histórias comuns de pertencimento [e] pode ser vista como uma ampliação de laços de parentesco (…). As relações
afetivas e solidárias – embora tensas, porque recheadas de pequenas disputas morais – existentes entre pessoas e
famílias em convívio de intensa personalidade, são vistas como uma forma de ampliação da rede de parentalidade
local. (…) A noção de parente não se restringe, nesses nucleamentos, aos laços de consanguinidade. (…) A relação
entre os moradores é de intensa pessoalidade”. Em outro momento, Koury e Barbosa ( 2017), ao etnografar a
receptividade de um acidente tomado como escândalo em uma pequena cidade da paraíba, afirmam que a intensa
pessoalidade é uma característica central nas formas de sociabilidade nas pequenas cidades. Essa pessoalidade, diz
Koury (2017 e 2018), é o que determina a rede de fofocas que garante o controle moral dos indivíduos pertencentes
às pequenas cidades. Assumo aqui o ônus do deslocamento, por ampliação de sua extensão, da noção de
parentalidade sem consanguinidade de um contexto a outro, entendendo que, via de regra, o medo que as meninas
possuíam em relação à vizinhança, em última análise se referia ao medo que sentiam de que suas famílias fossem
informadas, pelos seus vizinhos, sobre uma possível má conduta, no seu modo de lidar com a fachada social.
226

gente. Às vezes a gente vê o olhar de julgamento das pessoas, a gente sabe que as
pessoas falam da gente. E aí as pessoas são tão falsas que ainda falam com a gente.
Mas a gente ignora isso.

Se houve algo bastante evidente nas narrativas que pude acompanhar foi o fato de
que, entre todos os habitantes da localidade onde moravam, a família, em especial seus pais,
representava o maior perigo de todos diante de suas sexualidades tidas como desviantes. Mesmo
o medo que possuíam dos indivíduos da localidade, em última análise, referia-se ao perigo de
que alguém pudesse comunicar algum acontecimento para as suas famílias. A se considerar os
efeitos sofridos a partir da revelação, pode se dizer que seus medos eram justificáveis. A ruptura
de Lina com sua mãe e seus irmãos, os constantes ataques sofridos por Bárbara no interior de
sua família, a deportação forçada de Iara e a sanção financeira imposta pelas famílias de Lina e
Sissi, são alguns dos elementos aqui narrados que dão força ao argumento. Portanto, enquanto
que para pessoas de grandes cidades pode ser fácil livrar-se do olhar da família, nas pequenas
localidades o gerenciamento constante de todos por todos, determinam a ausência de espaços
seguros.
Mas não só a família, já que as garotas tinham que lidar também com ofensas diretas
e ameaças realizadas por pessoas da localidade, em especial as mais velhas, que reagiam de
modo negativo às suas presenças e, de acordo com Sissi, tais reações eram mais intensas quando
ela era vista ao lado de Lina. Sua ideia a respeito dessa negatividade não era baseada apenas
em uma leitura sobre os comportamentos emitidos através de olhares que eram por ela
considerados como reprovativos e nem mesmo sobre supostas falas maldosas que ela intuía
existir. Sissi pode avaliar o descrédito através dos comentários depreciativos que por vezes
escutava a respeito de sua sexualidade e, embora não tenha me descrito o fato ocorrido, chegou
a ser fisicamente ameaçada pelo irmão de sua namorada, quando estava junto com seu irmão
Lineu:

Sissi: no começo do nosso namoro tinha muito comentário mesmo. Já chegaram… já


me chamaram de vagabunda. Às vezes têm pessoas descaradas que falam: olha lá a
sapatão! A gente escuta, mas chegar na cara e falar... as pessoas não tem coragem.
Muitas vezes eu sozinha ou com ela, eu escuto as pessoas ‘olha lá a sapatão’, não sei
o quê sapatão (…) a gente sofre mais agressões verbais mesmo, porque chegar a bater,
isso não chega a tanto não.
Lina: Dá vontade de jogar a moto por cima.
Sissi: Uma vez ela foi me deixar lá no trabalho e tinha um cara que trabalhava no
depósito da frente e ela passou e eu entrei. Quando eu voltei, ele tava falando não sei
o quê sapatão. Ele tava falando dela. Deu vontade de eu sair lá fora e falar um bocado
de coisa pra ele, mas só que a gente vê que ele é uma pessoa tão ignorante que não ia
fazer diferença, que ele não ia entender o que eu ia falar pra ele. Então eu preferi ficar
calada mesmo. Mas chegar a bater… só algumas ameaças da parte da família do
marido dela...
227

Lina: Você já foi ameaçada pelo meu irmão. Você e o Lineu.


Sissi: É verdade.

Menos do que lutar contra qualquer narrativa que a colocasse no lugar de lésbica, já
que todos sabiam e a garota buscava afetar-se o mínimo possível com tais comentários, a garota
optou por escolher uma fachada socialmente válida, administrando sua apresentação pública.
Claro, a própria existência de Sissi e Lina na praça ou dela com seus amigos tencionava o espaço
social, por ser de domínio público suas sexualidades desviantes Talvez Elias (2000, p. 37) tenha
razão ao afirmar que em uma relação comunitária, quando os outsiders realizam tácitos acordos
de convivência, o fazem dentro de tensões e conflitos com os estabelecidos e tais atitudes, no
fundo,

São lutas para modificar o equilíbrio do poder; como tal, podem ir desde os cabo-de-
guerra silenciosos que se ocultam sob a cooperação rotineira entre os dois grupos,
num contexto de desigualdades instituídas, até as lutas francas pela mudança do
quadro institucional que encarnam esses diferenciais de poder que lhes são
concomitantes. Seja qual for o caso, os grupos outsiders (enquanto permanecem
totalmente intimidados), exercem pressões tácitas ou agem diretamente no sentido de
reduzir os diferenciais de poder responsáveis por sua situação inferior.

Sem ser capaz de avaliar ao certo o quanto Sissi compreendia, naquela época, o
poder de resistência que a simples aparição pública de um reconhecido casal lésbico junto a um
grupo de amigos gueis imprimia na pequena localidade, anos mais tarde, depois de já ter
migrado para Fortaleza, ela me disse: de certa forma sem ao menos perceber, essa foi nossa
forma de resistência e ocupação. Tratava-se, portanto, de uma tensão criativa de [uma]
individualidade reciprocamente monitorada e em movimentos de “mostrar-se”, de “esconder-
se” e de “revelar-se” em conformidade com a ordem moral vigente e mesmo de renová-la
mediante a administração de escândalos e situações limites. (KOURY e BARBOSA, 2020, pp.
57-58)
Paulatinamente, as atitudes mexeriqueiras e curiosas sobre a vida do casal tendiam
a diminuir sua intensidade no corpo social, ou ao menos se fazia sentir de modo menos intenso
na vida de Sissi. Há um ponto de saturação no burburinho da cidade em torno das garotas,
embora qualquer atitude possa contribuir para reacender comentários, alguns até mentirosos,
apesar de verossímeis, como na ocasião em que foi falado que garotas tinham sido vistas
beijando-se em espaço público, sem qualquer pudor (conforme a opinião dos fuxiqueiros). E a
garota, que pode até se divertir com alguns comentários, costumava brincar com sua namorada,
dizendo incomodar-se com o silêncio das pessoas da localidade: no começo era aquele falatório
228

todo. E agora eu cheguei para ela e falei assim: ‘amor, as pessoas não tão mais falando da gente. Às
vezes a gente sente falta, a gente tem que fazer alguma coisa, que a gente não pode perder a mídia’.
E fizeram. Um ano e três meses após o início de seu relacionamento, em junho de 2016, Sissi
aproveitou a ocasião do dia dos namorados para lançar, no Facebook, uma foto das duas,
associada a um texto que dizia um brinde a todos os namorados e namoradas. Essa postagem
inaugurou uma entre tantas outras, que se seguiram em suas redes sociais. Do mesmo modo
como o que ocorria com o outro casal, as mensagens que surgiram em resposta às suas
publicações, só tiveram comentários positivos, tipo lindas, fofas e tal. Felicidades, teve gente
que postou isso, disse-me a garota.
Na maioria das vezes, as mensagens positivas vinham de seus amigos. Porém, para
a sua surpresa, alguns bons comentários partiram de pessoas que ela não esperava: teve pessoas
também que a gente se surpreendeu pela questão da reação e do comentário. Pessoas que são
daqui e que a gente não… Tipo assim, pessoas hétero. Héteros, casados e que têm filhos. A
monitoração de seus contatos virtuais também se fazia de modo constante. Ao observar que
alguns deles postaram mensagens homofóbicas na rede, mesmo quando as postagens eram
dirigidas a outras pessoas, ela os excluía, pois eu não preciso estar passando por isso, disse-
me.
A motivação para a assunção pública de seu namoro nas redes sociais, além da
desinibição online, também foi ajudada pela fórmula acessada por Carlos, um dos garotos do
Vale, que tornou pública sua sexualidade dentro da rede social Facebook:

Engraçado uma coisa do Carlos. Por que há um tempo atrás, não lembro exatamente
os anos, ele postou no Facebook que era guei. Ele assumiu na rede social que era guei.
E um ano depois ele chegou pra gente e disse assim: “hoje estou comemorando um
ano que eu saí do armário na internet”. Com o passar dos anos, ele contava. Era como
se fosse uma vitória pra ele ter falado na rede social que ele era assumido. E desde aí
ele não negava pra ninguém ... [ele dizia] “sou mesmo”. As pessoas chegavam pra
perguntar e ele nunca negava.

Além do mais, houve também influência dos garotos do Vale no sentido de inclinar
Sissi para uma afirmação mais positiva de sua sexualidade, incluindo em seu consentimento
diante do pedido de Lina que falou com ela sobre o desejo que possuía de poder caminhar pela
cidade de mãos dadas. De acordo com Sissi, diante dos constantes apelos de seus amigos para
que demonstrem seus afetos em público, foi a partir desse comentário dos meninos que a gente
passou a se soltar mais.
O caminhar de mãos dadas começou:
229

No dia 31 [de dezembro] do ano passado [2016]. A Lina foi me pegar e eu fechei mais
cedo a 'lan house'. Aí ela disse assim: amor, vamos andar de mãos dadas, só o dedinho?
E aí eu disse: “tá certo”. Mas deu aquele medo, porque eu nunca tinha feito isso e
ainda mais aqui na cidade. A gente ficou com um pouco de vergonha e a gente foi
levando. Depois disso, quando a gente se reunia com os meninos, a gente passou mais
a se abraçar a se cheirar, a fazer um carinho.

Talvez Sissi tenha tido alguma vantagem pelo fato de sua mãe morar distante e
mesmo pela ruptura estabelecida entre as duas. Difícil afirmar com certeza. Em meados de 2017
o problema desencadeado com sua mãe estava próximo a completar um ano e ela sentia muita
falta do convívio que possuíam. Sempre buscava saber informações a partir de outras pessoas,
evitando telefonar-lhe para falar diretamente com ela.
Durante uma de suas férias, decidiu dirigir-se sozinha à Moitas, para ter com sua
mãe. A decisão de ir dependeu de ter transformado seu próprio entendimento sobre a
homossexualidade e parte dessa transformação provinha do tempo investido em filmes e
documentários que costumava acessar sobre o tema e das conversas com seus amigos na praça.
Nesta época

Eu trabalhei bastante meu psicológico pra ir. Até falei pra Lina que eu iria conversar
com o padre, ter uma conversa com ele pra me preparar mais meu psicológico, tanto
baseado na religião, quanto baseado na minha sexualidade, só que eu acabei não indo.
…………………………………………………………………………………………

Aí chegou, eu tava no automático, quando eu tava indo pra lá dessa vez. Eu acho que
eu vim sair do automático quando eu tava voltando pra casa, eu ainda não entendi
como foi essa minha ida. Era como se fosse… ligou o robô e foi. Por que eu acho que
pra mim eu ainda não tava preparada, mas meu psicológico tava bem resolvido na
questão da minha sexualidade. Eu sou assim, eu não vou mudar. Eu comecei a ver não
tanto pela questão da religião, comecei me afastar mais da religião, do pecado, da
sexualidade ser pecado. E eu fui. Quando cheguei lá, ela reagiu bem, estava calma,
estava tranquila, não chorou, ela sempre foi bastante chorona, eu até achei estranho
que ela não chorou. A gente se abraçou e começou a conversar…
Aí antes disso, a Li já tinha perguntado, "Sissi, se a tua mãe perguntar de novo, tu vai
afirmar?” E eu disse: “Vou lá, dessa vez eu não vou mais esconder pra ninguém que
eu tô contigo, doa a quem doer”. Ela não achava que eu iria ter coragem de falar
porque… aí ela perguntou, “E aí como é que essa sua vida?” E eu disse: “Mãe, tá na
mesma” e ela não perguntou mais nada. Eu disse que tava na mesma e acho que ela já
tinha entendido. Aí depois ela retornou a perguntar, depois de um tempo… “Tu ainda
tá com aquela mulher?”. Aí eu disse assim: “Tô, tô”. Eu mesma não me reconheci
naquele momento. Ela disse assim: “E a casa?”. E eu disse assim: "Mãe eu não tô
morando mais lá na minha casa, eu tô morando com a Li, eu aluguei a casa”. E ela
disse assim: “Com a permissão de quem?”. “Com a minha permissão, a casa tá na
minha responsabilidade, eu tava precisando de dinheiro, eu aluguei a casa”. Eu não
sei da onde eu tirei tanta força, pra enfrentar mesmo. Eu acho que, eu acho que, de
uma certa forma, era isso que ela tava esperando de mim, sabe, essa posição, essa
maturidade.
…………………………………………………………………………………………
Eu fiquei três dias lá e a gente conversou bastante. Quando foi no penúltimo dia, à
noite, ela chegou pra mim e disse assim…”Sissi qual desejo que tu sente de beijar
mulher?” Aí eu disse assim… “ai meu Deus, chegou a hora de eu falar pra ela!”. Aí
230

eu comecei com uma explicação, eu disse que o beijo não era diferente, que se você
fechasse o olho e um homem te beijasse, ou uma mulher te beijasse, você não ia
distinguir quem era... eu comecei a explicar a questão dos sentimentos, eu falei de
gênero com minha mãe [proferindo esta última frase em tom enfático]. Eu expliquei
pra ela: "Mãe, é assim dessa forma”. Eu comecei a mostrar o meu mundo pra ela,
comecei a explicar e isso assim: “Você tá entendendo?" E ela disse: “Eu to
entendendo”. Eu disse: “Mãe eu não te julgo porque a sua criação é dessa forma, seu
pensamento não vai mudar, essa é a questão”. E ela realmente confirmou que era
assim, mas que ela começou a falar de novo que ela não tinha preconceito, que o amor
era livre, mas que ela sentia um pouco por mim, por essa questão… ela leva muito
pela questão religiosa, por essa questão. Aí eu comecei a falar como era, como eu via
agora o mundo.

O modo como a garota via o mundo estava mudando e sua mudança era atravessada
pela aproximação com discursos acadêmicos e/ou politizados pró homossexualidade que
conseguiam fazê-la reconhecer, com mais clareza, aspectos relacionados à homofobia, inclusive
a que ela mesmo possuía, transformando ou eliminando ideias anteriormente concebidas. De
acordo com sua ideia, ela havia começado

A ver o mundo de modo diferente. Eu acho que a minha sexualidade me tornou uma
pessoa diferente. Se eu não fosse homossexual eu seria uma pessoa mais
preconceituosa. A minha sexualidade, ela me transformou em uma pessoa
praticamente… certo que a gente nunca deixa de ter preconceito de certas coisas, mas
ela me levou a pensar sobre muitos conceitos. Eu achava feio um homem vestido de
mulher, eu ainda tinha esse preconceito, mas eu comecei a entender, entender a
mentalidade. E eu não comecei a ver a pessoa não pela sexualidade, mas sim como
um ser humano, o que se passava, por que todos tinham uma história. Todos têm uma
história, assim como eu tive uma história triste por conta da minha homossexualidade,
eles também tiveram, talvez, pior que a minha, mais dolorosa que a minha e eu
comecei a entender. Isso me transformou num ser humano totalmente diferente. Eu
até já comentei com um dos meninos. Eu acho que isso me transformou como pessoa.
E aí foi isso que eu quis passar pra minha mãe, que eu tava diferente, que eu era uma
pessoa diferente, que não era mais aquela, que eu não era mais uma adolescente, sabe?

Importante considerar o fato de que as aprendizagens em torno de gênero e


sexualidade na vida de Sissi, que contribuíram para o enfrentamento do preconceito de sua mãe,
não dependeram de deslocamentos para grandes cidades. O processo de auto aceitação e mesmo
do início de sua compreensão politizada acerca das relações de poder entre os gêneros e as
sexualidades dependeram dos fluxos intensivos estabelecidos nas reuniões da praça e pela busca
ativa de conteúdos disponíveis na internet sobre o tema. E se a zona Rural é refratária às
sexualidades desviantes, de todo modo, ela não se constitui como obstáculo intransponível. Se
a literatura do armário chega a postular que este processo indica uma maturidade normalmente
adquirida após o contato com a vida urbana, não se pode crer que a trajetória de Sissi venha a
corroborar com este argumento.
231

Sissi soube trilhar seus caminhos, tornando possível que sua própria mãe pudesse,
não sem resistência, arrefecer em relação ao castigo de outrora, que determinava a falta de apoio
à filha por ela namorar uma mulher, situação talvez inexistente se a determinação do sexo fosse
outra. Há ainda que se considerar o tempo, a maturação das ideias e as transformações de sua
mãe diante de seus valores e atitudes em relação à sua filha. Nessa visita,

A gente conversou, conversou e começou a conversar e ela disse assim: “Olha eu


queria lhe pedir perdão, pelo dia da ligação, por eu ter sido tão bruta com você”. Era
como se não fosse ela falando, que ela tava um pouco pressionada por conta do marido
dela também e das pessoas que ainda fuxicavam pra ela. Ela disse que passou por um
processo muito grande de aceitação, de começar a me entender como é que era, mas
que ela ainda sofria, mas não tanto como antes. Acho que ela entendeu que se ela não
começasse a aceitar, ela iria me perder. Acho que ela começou a entender dessa forma.

Sua família extensiva também passou a minimizar a animosidade estabelecida


outrora. Ao reatar a proximidade com as pessoas que antes havia lhe imposto certo
distanciamento, algumas vezes a garota pode ouvir conselhos que buscavam informar sobre o
triste destino dos homossexuais, ao mesmo tempo em que lhe indicavam possíveis caminhos
para o restabelecimento de sua heterossexualidade, condição sine qua non para a segurança
(incluindo uma provável solução financeira) de uma mulher:

A minha mãe biológica... uma vez ela soltou meio que uma indireta. Assim, dizendo
que eu poderia arranjar um homem mais velho que me bancasse. A minha família tem
muito disso, sabe? E uma tia, que é a minha madrinha, conversava muito sobre isso e
ela me perguntou por que eu não procurava me relacionar com um rapaz. Ela sempre
tem um diálogo de dizer que a vida homossexual na velhice é uma vida muito triste,
muito sozinha, se era isso que eu queria pra minha vida. Aí eu disse que
independentemente de estar com alguém ou não, não ia mudar nada, mas que eu não
sinto atração por homem, eu quero que vocês entendam que eu gosto de mulher. Se
eu me relacionar um dia com um homem, ficar, tudo bem, mas não rola, eu não quero,
mas eu gosto de ficar com mulher e quero que vocês entendam e respeitem isso.

De certo modo, a compreensão de que a lésbica é fruto de um erro de escolha é uma


característica bastante presente em nossa cultura. As investidas da mãe de Lina nos almoços de
domingo nos quais ela convidava rapazes para apresentar à sua filha; as sucessivas tentativas
da irmã de Iara ao insistir em lhe apresentar alguns garotos que pudessem colocá-la de volta à
heterossexualidade e as conversas da mãe biológica de Sissi e de sua madrinha para que ela
considerasse a possibilidade de se relacionar com homens indicam à avaliação da lésbica como
uma má decisão. Todas essas pessoas parecem ignorar o fato de que, como aconteceu com todas
as garotas pesquisadas, elas próprias puderam experimentar relações com pessoas do sexo
oposto sendo motivadas, inclusive, pelo desejo de se livrar da homossexualidade. Como disse
232

Rubim (2017) esses conselhos, que acabam por sinalizar a impossibilidade da existência
lésbica, soam como um eco retardado dos problemas vivenciados por essas meninas, no
momento em que ensaiavam pensar em tal possibilidade para seus desejos.
Apesar do arrefecimento e das posteriores colaborações por parte de sua mãe e da
reaproximação com alguns membros de sua família, a vida em Promessinha seguia com
bastante dificuldade. Lina permanecia desempregada e o dinheiro recebido com a soma do
aluguel da casa e do seu emprego na papelaria não era suficiente para o custeio da vida do casal,
que em determinado momento abriu as portas para receber Lineu que passou a morar com as
garotas e com Arthur, filho de Lina. O emprego de Sissi, marcado pelo parco salário e pelo
excesso de horas, imprimia força ao seu desejo de migrar para a Fortaleza em busca de

Oportunidade de emprego. Porque os nossos horários são... os delas nem tanto, porque
ela sai cinco horas, mas o meu ainda se estende e isso é muito cansativo pra mim. Eu
não tenho tempo de estudar, eu quase não tenho tempo pra Lina. A gente chega em
casa, toma banho, come, assiste um pouco de televisão e dorme. Como ela conseguiu
comprar uma moto, a gente tá tirando o sábado, o domingo, na verdade, porque a gente
trabalha até sábado, a gente tá tirando o domingo pra gente, pra gente! Porque até
então a gente não tinha. Era só trabalho, trabalho e trabalho. Aí não tinha tempo pra
gente. A gente mal tinha tempo pros meninos também.

O desejo de migrar era compartilhado pelos três adultos da casa. Sendo impossível
que todos pudessem sair juntos rumo à capital, combinaram que um deles seguiria na frente e,
uma vez trabalhando, os outros dois lhes acompanhariam os passos. Nesta época, eu tava
recebendo muito pouco e não tava dando pra a gente se sustentar, disse-me.
Lineu foi o primeiro a migrar e recebeu o apoio de sua tia que o recebeu em sua
casa. Pouco tempo depois foi a vez de Lina, que conseguiu ajuda para estar em Fortaleza,
conforme descrito anteriormente. Entre o casal, ela estava desempregada e o dinheiro referente
à pensão de seu filho não seria alterado em virtude de sua partida. Para Sissi, o oposto ocorreria,
já que sua diminuta renda dependia de sua permanência na localidade. Além do mais, Lina havia
recebido uma oferta de acolhimento, uma oportunidade que não poderia ser desperdiçada. Sissi
permaneceu morando na casa de Lina. Sete meses após a partida de Lina, a independência
financeira dos que haviam migrado não era alcançada e Sissi permanecia aguardando sua vez
de ir.
Durante esse tempo de distanciamento entre o casal, a relação foi ficando muito
desgastada, por brigas por causa de ciúmes. Quando conversei com Lina logo após sua chegada
em Fortaleza, ela chegou a comentar que Sissi se sentia insegura pois acreditava que a cidade
poderia oferecer mais possibilidades para que ela se envolvesse com outra pessoa.
233

Provavelmente o descompasso na migração das garotas acabou por colaborar para que novos
problemas surgissem entre o casal, somando-se a alguns antigos, fazendo com que Sissi, por
vezes, tenha tentado interromper a relação. Lina não aceitava e as duas seguiam juntas.
Para Sissi, cada vez mais a importância da presença de Lina no lugar onde ela
pudesse ser acolhida na capital ia diminuindo. Estar presa às possibilidades de sua namorada,
que já havia passado pouco mais de um semestre na capital sem conseguir se livrar de muitas
das mesmas dificuldades que enfrentava em Promessinha (trabalho excessivo, com salário
vergonhoso), representava um obstáculo a mais para aquilo que havia dito, em nossa primeira
de tantas conversas, sobre a principal motivação que a traria para a cidade que, além de um
emprego melhor e da fuga da situação de pobreza, incluía o objetivo de entrar numa faculdade.
Poucos meses após migrar, ela disse-me que ao sair de Promessinha para Fortaleza, sua intenção
era

Ter minha vida só. Era o contexto pra mim… Crescimento, tanto crescimento pessoal,
como conseguir alguma coisa, fazer faculdade, arrumar um emprego melhor na minha
vida, realmente, por que por muitas vezes, muitas vezes, eu e meu irmão a gente foi
tipo almoçar, tomar café na casa da minha mãe [biológica] por que a gente não tinha
em casa. Muitas vezes a gente recebeu ajuda de pessoas, de terceiros a gente chegou
ao ponto de a gente ter o que comer hoje, só que amanhã a gente não fazia ideia de
como é que a gente ia... de onde a gente ia tirar pra gente almoçar.

Um novo edital de vestibular com ofertas para o pretendido curso de Educação


Física foi lançado e este fato incrementou sua determinação de partir para a capital. Além do
mais, o fato de que sua tia havia apoiado seu irmão, lhe indicava um possível caminho:

Aí eu pensei: “se eu não tomar uma decisão e não vier, eu vou passar muito tempo
esperando e a vida tá correndo”. Aí eu cheguei pro meu antigo patrão e falei pra ele
que eu ia ficar com ele até novembro, pra ele arranjar alguém, que eu vinha. (…) aí
eu liguei pro meu irmão, fiquei tentando falar com ele e pra ele ir preparando o terreno
pra minha tia. Por que até então, morava ela, outro rapaz e ele. Aí ele conversou e me
disse assim: mas tu que tem que falar com ela. Só que eu tinha vergonha de pedir pra
ficar na casa dela e tal… e foi esse período todo correndo o mês e eu nada de falar
com ela, nada de falar com ela. Eu sei que chegou um dia que eu vim-me embora.
Vim-me embora no domingo, porque tinha prova de vestibular e já era tipo assim um
incentivo pra eu vir. Aí eu arrumei as coisas, fechei a casa e vim simpaticamente sem
nada. Aí eu vim e ele [Lineu] disse assim: olha, eu não falei nada com ela ainda, tu
tem que falar com ela. Aí eu disse, tá, tudo bem e eu tava com vergonha de chegar pra
ela e falar. Mas aí eu fui fazer a prova e quando eu voltei à noite, cheguei pra ela e
falei… se ela aceitava eu lá, não tinha problema eu dormir no sofá ou em qualquer
lugar, que eu iria arranjar um emprego e ajudar a minha tia a dividir as dívidas das
contas. Aí ela chegou pra mim e falou que era até uma boa porque ela já tava querendo
que o menino saísse da casa dela, que ela não queria mais dividir aluguel com ele e
que eu podia ficar lá de boa.
234

No final do ano 2017, época em que sua tia lhe deu abrigo, ela mudou-se para
Fortaleza, cidade na qual mora até hoje.

8.4 Fuga para a cidade.

Os exames de vestibular que a trouxeram para a capital ocorreram em duas fases


e ela havia realizado, com sucesso, a primeira dessas etapas. Enquanto aguardava o resultado,
Sissi havia retornado à Promessinha e trazido suas coisas para se instalar em um quarto
privativo disponibilizado por sua tia, na capital.
Ao chegar na cidade grande, Sissi pouco sabia sobre seus traçados, bem como sobre
os possíveis deslocamentos dentro deles. Porém no terceiro dia de estadia na capital, uma amiga
lhe telefonou dizendo que na loja em que ela trabalhava havia uma vaga de emprego e estavam
realizando entrevistas. Muito rapidamente, a sua inabilidade na locomoção urbana foi posta à
prova: eu não sabia ir para nenhum lugar, a única coisa que eu sabia era sair do terminal e ir
pra casa da minha tia. Pronto. Aí eu fui lá, ai meu Deus, vou me perder! O que vai acontecer?
Eu perguntei a não sei quantos motoristas onde era pra mim parar e eu sei que eu cheguei ao
meu destino.
Ao final da entrevista, Sissi soube que seria contratada. Em sua ideia, Lina não
recebeu de modo positivo a notícia de seu emprego e sua namorada havia ficado meio estranha,
porque ela já estava aqui há um bom tempo e não tinha conseguido nada e eu tinha
praticamente acabado de chegar em Fortaleza e já tinha um emprego. Durante suas primeiras
semanas na capital, Sissi chegou a se encontrar com Lina duas vezes. Duas semanas após a
mudança de Sissi, Lina lhe comunicou sobre seu desejo de finalizar a relação e Sissi não impôs
resistência, já que ela mesma já havia realizado essa proposta.
Entre a primeira e a segunda fase do vestibular, muitas coisas estavam acontecendo:
o fim de uma relação, a mudança para uma grande cidade e um novo emprego, com uma
dinâmica que jamais ela estava acostumada: avaliando seus funcionários a partir da noção de
resultado, a empresa exigia-lhes a compreensão (na prática) de que o empregado, ao ser
contratado, deveria se disponibilizar para eventualmente desenvolver suas funções em qualquer
loja da rede, mesmo que diferente daquela que lhe destinou a vaga, mantendo alta a sua
produtividade, avaliada pela capacidade de alcance das metas almejadas. E a entrada na
universidade acabou por esperar:
235

E tudo aconteceu tão rápido que eu não me preparei pra segunda fase. E nesse período
eu já estava sendo bastante pressionada por que eu era novata, tinha que mostrar
serviço e eu me preocupei muito com o trabalho e deixei o estudo de lado. Quando eu
fui fazer a prova, eu não estava preparada pra fazer… aí eu não consegui. Eu tava no
período de três meses [referente ao estágio probatório]. Nesse período eu não conhecia
ninguém, eu não conversava com ninguém. Eu tava praticamente vivendo pro trabalho
e era muito cansativo, muito estresse. Eu vivia muito estressada porque eu não tinha
noção do que era. A gerente que tinha me contratado saiu e entrou um novo gerente.
Quando ele chegou, tipo assim… eu dava resultado em muitas coisas, menos no
principal que eles queriam. Então eu tinha que melhorar bastante, senão ele não iria
me contratar. Assim, por que eu sempre estava acostumada… porque assim… Eu
tinha tudo muito no meu controle, lá no interior, era tudo na minha mão. Só que
quando eu cheguei aqui eu já vi que era totalmente diferente. Tipo assim, tudo era…
“você tem que fazer, você tem que dar resultado!”… Tudo era voltado ao resultado,
tudo e isso me estressou bastante. E quando tinha alguma coisa, a gente era mandada
pra outras lojas E sempre ele me mandava pra outras lojas, outras lojas… cheguei a ir
duas vezes pra Aldeota e também fui para a que eu estou, na loja atual agora, que é na
serrinha, perto do Castelão. Aí [o vestibular foi] justamente no período dos três
primeiros meses. Chegou a um ponto de eu dizer assim, não, não quero, quero logo
que termine logo esse estágio, não quero ficar aqui, isso não é pra mim… mas queria
ficar porque nessa época eu já tava dividindo aluguel, o menino já tinha ido embora e
eu tava dividindo aluguel com minha tia e meu irmão ainda ganhava como estagiário.
Então eu tinha que melhorar bastante, senão ele não iria me contratar. Eu já tinha
experiência, algumas pessoas tinham me dado dicas de coisas, aí eu fiz o que eu sabia
fazer. Aí deu certo.

Após sua contratação, foi possível que a vida começasse a apontar para a
possibilidade de uma rotina: Sissi passou a trabalhar em uma única loja, mesmo que dependesse
de dois ônibus, com “baldeação” em um terminal para acessá-la, num trajeto de cerca de uma
hora e meia. Apenas algumas vezes era destinada para outros endereços.
Na loja em que trabalhava, eram todos velhos, casados e com filhos e não dá pra
chamar pra sair, de modo a que suas amizades no trabalho, raras vezes, prolongavam-se com
a convivência em espaços de lazer. Em uma das lojas onde havia trabalhado, havia feito uma
amiga, mas nunca conseguiam sair juntas, apesar de diversas tentativas. Através desta amiga,
conheceu um outro funcionário da empresa, no dia em que sua amiga marcou um cinema com
os dois e não compareceu, fazendo com que a assistência ao filme por Sissi tenha se dado ao
lado desta nova companhia. A amizade dos dois se tornou mais estreita e por vezes, em sua
folga, Sissi ia até a loja dele para visitá-lo, momento em que conversavam sobre coisas do
trabalho. Não houve muitos outros prolongamentos.
Fora do trabalho, em sua vida social, Sissi permanece ao lado de antiga e bastante
familiar amizade de seu irmão Lineu:

A única pessoa que eu saia era meu irmão, por que eu não me interessava de ir
conhecer uma boate, sair pra boate pra conhecer alguém… eu não tava me
interessando no momento.
…………………………………………………………………………….…………
236

Meu irmão disse assim… tu não vai ficar com ninguém não? Tu não vai sair, tu não
vai fazer nada? Aí eu disse assim, mas tá tão bom sair contigo, porque eu sempre saio
com ele. A gente foi pro cinema, aí eu disse assim… prefiro gastar dinheiro contigo e
ele amava porque eu saía com ele e sempre pagava tudo, ele ficava todo besta.

O programa favorito de Sissi era ir ao cinema em algum shopping próximo da casa


onde morava. Para ela, o cinema era um “rolê” que ela não deixava de fazer, por gosto e por
economia, já que era mais barato que sair para algum bar. Durante o primeiro semestre na
capital, apenas duas vezes eles foram num barzinho que tem perto de casa, que meu irmão diz
que é o bar da sapatão. Certo dia, tentaram até mudar de endereço,

Só que a gente viu, tipo assim… não é o ambiente da gente, eu sei lá… as pessoas são
muito padrão, muito tradicional, aí a gente foi, e a gente bebeu lá, só que ele olhou
pra mim e disse: não, vamos lá pro bar da sapatão. E eu disse vamos. A gente foi umas
duas ou três vezes pra lá só beber de boa. Só que nada de eu conhecer ninguém, porque
as pessoas de lá são todas casadas. Lá é tudo normal. Eu gosto de lá por que tem
muitos casais hétero que vão pra lá, assim é bem legal lá, a diversidade, por que vão
casais hétero. Vão de boa, mas lá é frequentado mais por mulheres, mas muitos casais
gueis também vão. As mulheres se beijam, lá é tudo normal.

Lina não foi a pessoa que lhe apresentou o bar da sapatão que, na verdade, chama-
se “Spettus Mix”. É possível até mesmo que o inverso seja verdade. Nas duas primeiras vezes
que Sissi esteve por lá, ela foi levada por sua tia que a acolheu e que, à época, se considerava
lésbica. A primeira vez aconteceu mesmo antes de ter conhecido a namorada Lina.
Posteriormente, em uma outra vinda à Fortaleza, durante o período de seu namoro, retornou ao
mesmo bar, com a mesma companhia.
O bar, assumidamente LGBTIA+, era frequentado de modo misto, com frequência
predominante de lésbicas. A frequência a esse bar não lhe trouxe novas amigas pois, de acordo
com ela, todas lá estavam na companhia de suas namoradas. Seu irmão estranhava o fato de
Sissi não buscar novas amizades e costumeiramente ele lhe recomendava que ela baixasse
aplicativos de relacionamentos com a finalidade de conhecer alguma garota. Sissi relutava e
dizia se sentir bem em sua companhia, não desejando entrar em um novo relacionamento. Seu
irmão insistia aconselhando-a e ela assentiu com a sugestão:

O meu irmão me dizia: “baixa tal aplicativo”. Aí eu ia lá e baixava, mas eu não me


interessava muito, [o aplicativo] é muito besta e eu baixei um específico, que eu já
tinha baixado uma vez e tinha chegado a conversar com algumas pessoas… Eu não
gostei muito do Tinder, eu usei o Badoo e tinha um… ele é inglês, é ‘Spicy’, uma
coisa assim o nome dele… Esse é mais amplo, tinha mais gente. Eu conversei, não
cheguei a conhecer, mas conversei com muitas meninas e muitas delas eram a mesma
coisa: elas não queriam nada, só queriam curtição e eu não queria, eu não queria. No
começo eu até queria, só que não faz o meu estilo só curtição. Aí sempre era a mesma
237

coisa… ah coisa besta…. Aí eu ia lá e desinstalava. Aí passaram uns meses e aí batia


a saudade de conversar com as meninas e eu ia lá.

Via aplicativos, Sissi passou a conhecer e encontrar com algumas garotas, sem,
contudo, ultrapassar o único bar LGBTIA+ da cidade que já havia conhecido e que ficava
próximo, pouco menos de 1Km, de onde morava. Nem seus encontros às cegas se davam em
lugares públicos amigáveis a pessoas LGBTIA+. Uma de suas investidas, essa naufragada, a
assistência a um filme no cinema de um shopping foi o programa escolhido para o encontro
com sua nova “amizade”. Outra vez recebeu sua paquera virtual em sua casa, convidando-a
para que pudessem assistir a um filme juntas, em seu quarto. Sua tia não imprimia resistência à
presença das “amigas” de Sissi e naquele espaço ela experimentava alguma privacidade.
Passado algum tempo, em meados de 2018, ali existia um namoro.
O tempo que possuíam para estar juntas era limitado. A maior parte do tempo de
Sissi voltava-se para o cansativo dia de trabalho. Sua namorada tinha muitos amigos, mas Sissi
tinha dificuldade em conhecê-los, porque horários em comum não eram possíveis. O namoro
seguia já que sua namorada, disse-me, ia para minha casa em praticamente todas as minhas
folgas. A liberdade de possuir um quarto e a facilidade de dividir um apartamento com uma tia
que não lhe impunha impedimentos em receber uma garota em casa, por certo ajudava. Por
vezes, iam à praia ou passeavam no shopping. Ao conhecê-la, Sissi passou a ter vontade de
conhecer algumas baladas da cidade, mas o pouco tempo livre, com única folga semanal, lhe
obstaculiza a realização de seu desejo.
Embora Sissi não pudesse estar presente nos guetos, sua “descolada” namorada, que
se apresentava como DJ, tinha intimidade com a cidade e se conduzia de modo afirmativo
dentro dela. As atitudes de sua namorada lhe colocavam novamente as questões que já havia
tentado responder quando estava em Promessinha, no momento em que precisou considerar
seus modos de aparição na cena pública da cidade. Diante dos ousados convites de sua então
namorada, aderiu a algumas das proposituras que lhes foram realizadas, no sentido de
demonstrar publicamente a relação entre elas.
De acordo com Sissi, em parte, o terreno que a possibilitou escolher mais facilmente
pela liberação de algumas demonstrações de afetos em espaços públicos havia sido cultivado
antes já que, reconhecia a garota,

Boa parte foi quando eu ainda tava com a Lina. Eu tinha muita vergonha de sair de
mãos dadas lá no interior e de fazer algum tipo de forma de carinho. Só que quando
eu tava com a Lina, ela meio que foi me destravando. Só que eu ainda tinha muito
receio. Quando eu comecei a namorar novamente, ela já é totalmente desprendida
238

disso, ela chegava e beijava … dane-se qualquer pessoa, a gente beija mesmo! Aí uma
vez eu tive vergonha, porque ela tentou me beijar – isso a gente tava perto de casa,
estava indo no mercantil - aí eu recuei. Ela perguntou se tinha algum problema e eu
disse… “Sei lá, vergonha”. E ela falou: “Não tem que ter vergonha, não tem porque
ter vergonha”. E isso eu devo muito a ela, muito destravante mesmo. A gente anda de
mão dada, a gente troca carinho, a gente tipo… no shopping… em qualquer lugar que
a gente ande.

Em Fortaleza, isto parecia mais fácil, pois o ambiente da cidade é diferente. Algumas
pessoas aqui ainda são bastante preconceituosas, mas elas não ligam pra vida de ninguém.
Elas seguem a vida delas normal. A vinda para a cidade, por certo lhe disponibiliza algumas
liberações na apresentação de si quando estava com sua namorada, diante de “anônimos e
desprovidos de parentesco”, que lhe parecia não se importar com seus atos, não ligar para a
vida de ninguém. Sissi sabia que eles seriam incapazes de lhe colocar, mais uma vez, em uma
rede de fofocas, com consequências em suas relações familiares.
Neste momento de sua vida, Sissi pouco tinha acessado os espaços de lazer e jamais
qualquer tipo de coletivo político LGBTIA+ (coisa esta que nunca fez de modo direto) o que
indica que, provavelmente, sua decisão em acatar um modo de apresentação de si mais
afirmativo em relação à sua experiência lésbica, se ancorou em aprendizagens anteriores que se
prolongaram quando estava na grande cidade: seu principal grupo de referência continuou a ser
os meninos do Vale, a garota permaneceu acessando filmes e documentários sobre diversidades
sexuais, continuou a ler textos encontrados na web, muitos dos quais, portadores de discursos
associados aos coletivos organizados. Menos do que uma rede de relações construída nos guetos
e espaços afins, o que a cidade lhe deu foi a possibilidade de encontrar, no espaço virtual, uma
garota “descolada”, emissora de um discurso empoderado e defensor da visibilidade lésbica e
que lhe propôs radicalizar uma experiência que ela já havia iniciado anteriormente, em um
contexto mais proibitivo.
Obviamente, houve uma possibilidade de aprendizagem de formas de apresentação
de si na nova cidade. Porém, penso que menos do que aquisição de uma nova informação que
pudesse alterar radicalmente um processo em curso - tal como seria o caso da gênese de uma
política afirmativa da sexualidade -, a cidade lhe deu uma oportunidade de experimentar, de
modo mais liberto, o que já havia iniciado antes. Estar solteira e se disponibilizar aos aplicativos
de relacionamento fez com que ela pudesse encontrar a pessoa certa, no lugar perfeito.
Até o contexto macro político contribuiu para esta tomada de posição por parte de
Sissi. Durante o período em que ela namorou essa garota, no poder público, estávamos vivendo
o polarizado período eleitoral para a presidência da república que, em 2018, elegeu o candidato
239

de extrema direita conhecido por suas numerosas declarações de teor homofóbico, repetidas
durante sua campanha eleitoral. Nesse momento, muito se veiculou e discutiu sobre a
homofobia e a representatividade no poder público. A fim de posicionar-se, suas postagens no
Facebook encaminharam conteúdos de velhas amizades, tais como alguma da Pastoral da
Paróquia de Promessinha, convidando a população da localidade para a panfletagem que tinha
como lema: “Promessinha é Haddad", candidato de esquerda filiado Partido dos Trabalhadores,
principal opositor do vencedor do pleito, aquele que veio a se tornar presidente da república,
Jair Bolsonaro. Neste momento, também foi eliminando de seu Facebook aqueles que apoiavam
o candidato homofóbico, inclusive membros de sua família. Para ela, ter familiares que o
apoiavam era uma forma de ferir sua existência.
Toda essa experiência, vivida na cidade, mas com ancoragem profundamente
assentada no mundo globalizado acessado pela internet e nas suas amizades passadas, fez com
que, cada vez mais, Sissi pudesse se posicionar politicamente como parte de um grupo, devendo
responder, individualmente, àquilo que seus iguais esperariam que fosse o correto fazer:

O que parece é que pra gente é resistir, resistir e voltar àqueles tempos onde a gente
tinha que sair nas ruas pra a gente ter o direito da gente existir. É como eu já ouvi
muitas vezes a frase “tempos sombrios estão por vir”. E eu não esperava que seria tão
rápido. A gente fica é bem desanimado, porque todos os planos que a gente faz, que a
gente fez ´parece que vai por água abaixo, eu não sei. Um dia, eu tava conversando
com minha namorada e ela disse assim: a gente tem que aproveitar, aproveitar pelo
menos esse ano pra poder a gente expressar nosso amor, tipo assim, no ônibus ou em
qualquer lugar, pra poder a gente ser a gente perante toda a sociedade. Porque ninguém
sabe o que é que vai acontecer mais pra frente. A gente vai ter medo até de sair de
casa, por conta disso. A gente tem que aproveitar agora pra sair com nossos amigos.
Porque é muito triste, a gente vê que a gente vai perder nossa liberdade por conta que
as pessoas não aceitam a gente como a gente é. Eles não tem nada a ver com a vida
da gente, por que não deixam a gente em paz?

No dia em que tivemos essa conversa faziam cerca de 9 meses que Sissi havia se
mudado para Fortaleza. Em agosto de 2018, o tão desejado sonho de acessar a universidade
permanecia vivo, aguardando um momento oportuno. A garota esperava

Deixar passar o restante do ano pra eu me estabilizar e vou começar a ajeitar minhas
contas, vou começar a ajeitar… planejar algumas coisas pra mim. Por que eu cheguei
aqui com nada, eu não tinha nada, mas agora eu vou planejar algumas coisas e algumas
coisas que eu quero fazer futuramente.

Seu plano inicial, que incluía a formação em Educação Física, já havia se


transformado e o desejo de ter um emprego melhor na vida fez com que a escolha do curso
universitário, o curso de Recursos Humanos, tenha organizado uma certa fixação e
240

aperfeiçoamento na área de atividades em torno da empresa na qual ela havia conseguido o seu
primeiro emprego na capital e que, até mesmo, já tinha pensado em desistir. Muitas vezes, como
diz Vala (2000), nas classes populares, a vida pede pressa. A mudança de direção surge quando
ela encontra um gerente de loja que lhe disse:

“Tu não tens interesse em fazer em alguma área que seja pro teu crescimento aqui?
Por que a gente não é tão voltada para o que tu está trabalhando agora”. (…) E eu
comecei a amadurecer esse pensamento, comecei a pesquisar e conversei com o Mark
sobre o curso de RH que ele tinha feito e ele disse que era muito bom, que se eu fosse
fazer era uma escolha muito boa que eu estava fazendo, por conta também das
especializações, de várias áreas que a gente podia trabalhar e ele perguntou se eu tava
interessada e eu disse assim:, tô bastante interessada e acabou que eu mudei de ideia,
eu comecei a amadurecer, comecei a pesquisar… Quando olhei algumas listas que sai
na internet, sempre aparece quinto e sexto lugar o tecnólogo de RH. Aí eu disse pronto,
é uma boa área aí comecei a pesquisar e me interessei (…) é pago, mas é pouco tempo.
São dois anos e vai me trazer um benefício.

A escolha da faculdade dependeu das visitas que Sissi realizou em algumas


universidades dentro dos trajetos percorridos entre sua moradia e o seu trabalho. Tendo sido
capaz de cumprir seus novos planos, em 2019 a garota entra na faculdade de Recursos
Humanos, onde todos com os quais ela convivia sabiam que ela era lésbica. Como disse Rubim
(2017), normalmente, “apesar das sérias limitações, a informação sobre comportamento sexual
na maioria das faculdades e universidades é melhor do que em todos os outros lugares”.
No local trabalho, reconhecido pela literatura que gira em torno do armário e da
homofobia como o pior lugar para afirmar-se homossexual, ela cuidava para que sua
sexualidade não fizesse parte daquele ambiente, embora tenha revelado sua orientação sexual
para algumas pessoas com as quais tinha maior proximidade. Independente das diferenças entre
a capital e o interior, nos dois casos, a dizibilidade depende dos espaços relacionais e nunca se
sabe os efeitos de uma revelação desse tipo.
Quando o ano de 2019 chegou, o namoro de Sissi já havia acabado e ela estava na
pista, como me falou. Estando solteira, Sissi pode expandir um pouco mais suas aventuras na
cidade. Raramente aconteceu, mas neste ano ela chegou a ir a algumas boates, na companhia
de Santos, que estava morando em Fortaleza e que, de acordo com ela, era o seu amigo de
balada, termo utilizado para referir-se às boates, em diferenciação aos barezinhos. Também foi
com Santos à “Parada da Diversidade Sexual”, neste mesmo ano. De modo mais constante, ela
continuava ao lado de seu irmão, indo para cinemas e shoppings e, embora menos
frequentemente, também ia com ele a bares próximos de onde moravam. A pista onde ela
transitava na condição de solteira, na maior parte do seu tempo, era forjada nos aplicativos,
241

onde mantinha conversa com algumas garotas e com as quais se encontrava na casa onde ela
morava com sua tia, ou em algum lugar cuja escolha não considerava a necessidade de ser
retirado.
Em resumo, durante seus dois primeiros anos na cidade, embora Sissi tivesse
experimentando um pouco mais de liberdade financeira, ela raramente acessava a cena
LGBTIA+. Parte do seu salário estava empregado em seu curso universitário e ainda precisava
dividir despesas de moradia. Ela já havia namorado algumas garotas, ficado com outras,
conhecidas através de aplicativos e apesar desses contatos, os guetos raramente lhes
alcançavam. É preciso ter dinheiro para acessá-los e quando não se tem muito, o acesso é
dificultado. O fato de morar em um bairro distante, ainda significava um maior gasto com o
pagamento de motoristas de aplicativos de mobilidade urbana do tipo “Uber”. Para os que não
possuem tantos recursos, o conhecimento da cidade e o entrosamento com seus habitantes pode
favorecer a escolha, quando possível, de lugares retirados possíveis dentro do orçamento. E até
os primeiros meses de 2020, Sissi pouco havia ampliado sua rede de amizades ao ponto de
poder descobrir e frequentar alguns destes lugares. O acesso mais frequente de Sissi a um bar
LGBTIA+ dependeu, sobretudo, da sorte de ter conhecido algum estabelecimento perto de sua
casa, na periferia onde morava. Parte do ano de 2021 foi vivido em Promessinha, lugar
escolhido para passar o período de lockdown, durante a pandemia de Covid-19, momento no
qual ela passou a trabalhar de modo online. Ao retornar para a capital, no mesmo ano - e diante
da progressiva abertura dos espaços públicos, em um momento no qual pandemia mostrava
decréscimo em seus estragos -, estando na companhia de sua prima e de suas novas amizades
(ou de seu primo), por vezes ela convidava seu novo amigo para estar junto com sua(s)
companhia(s) mais frequente(s). Mesmo que algumas de suas novas amizades fossem pessoas
heterossexuais, eventualmente estas lhe acompanharam na ida para bares amigáveis ao público
LGBTIA+, onde ela pode ficar com algumas garotas:

As minhas saídas estão sendo assim, às vezes eu saio mais com minha prima, as vezes
a gente vai com um barzinho próximo lá de casa ou a gente sai com as vizinhas, que
é a Gilda e a Ceiça. A Ceiça também é lésbica e tem uma namorada. Às vezes a gente
sai juntas. Teve um dia que eu fui pro Barraquinho. Estava meu primo Santos e um
colega de trabalho. Lá tem um espaço que é tipo uma boate, o Barraquim Vip. Meu
Deus, foi uma loucura! A gente começou a beber e as pessoas ficaram se esfregando
na gente, né? Aí eu lembro que eu tava de costas e uma menina estava passando e ela
pegou na minha mão, só que eu não entendi. Aí quando ela voltou do banheiro, ela foi
e pegou na minha mão de novo. Aí quando ela pegou na minha mão, eu peguei na mão
dela e virei. Aí quando eu virei ela veio me beijar, e a gente começou a se beijar e tal.
Aí meu amigo, ficou: “ei caralho, aí porra, essa é mesmo sapatão!”, gritando no meio
de todo mundo e a música troando. Aí como a gente estava próximo à fila do
banheiro… e a fila do banheiro feminino é muito propícia né (risos)? Aí uma menina
começou a conversar comigo e tal, quando a gente tava indo embora, ela tava voltando
242

pra fila do banheiro de novo e aí eu disse assim: “ei, eu já vou e tal”. Aí ela: “valha,
tu já vai?” Aí ela pum… me beijou. Tipo loucura aquele dia… e a gente começou a se
beijar. Quando eu saí, pra pegar o Uber, ela estava lá fora com o namorado. E eu fiquei
assim… “geeeente, tô passada, meu Deus do céu!”

Passaram-se cerca de três anos para que Sissi pudesse passar a acessar de modo mais
frequente os lugares LGBTIA+ da cidade, deslocando-se para além do entorno de sua moradia,
que neste momento está situada uma mais próxima e com maior facilidade de acesso ao bairro
do Benfica. A cada dia cresce seu desejo de ampliar seu conhecimento acerca de barzinhos e
lugares de baladas retirados.
Durante o ano de 2021, Sissi passa a sair com uma garota pela qual nutria o desejo
de namoro. Elas costumavam se encontrar no bar Paraíba, no Benfica, lugar onde eu havia
marcado de encontrá-la uma vez e que passou a ser o seu principal endereço para estar com sua
paquera. Outro lugar escolhido para ir com seus amigos foi uma “hamburgueria” no mesmo
bairro que, de acordo com ela, é um ambiente bem legal, tem muita sapatão, tem muito viado.
Gostei bastante. O Benfica é muito guei.

Figura 3 - Os lugares de Sissi em Fortaleza - CE

Fonte: Elaborada pela autora

Entre todas as garotas pesquisadas, sem dúvidas, Sissi é a que mais se aproxima dos
modelos teóricos descritos em torno do armário. Ela foi a única que, estando na capital, passou
a se utilizar de fórmulas constantes nas formas políticas de visibilidade LGBTIA+. Porém, uma
243

observação mais atenta deixa transparecer que o que pode ser visto em sua trajetória é uma
aproximação, mas não um encaixe, aos modelos preconizados.
A tão propalada rede de solidariedade entre gueis e lésbicas, compostas por novos
amigos, normalmente encontrados nos guetos ou lugares retirados, parece não fazer parte de
sua vida. Algumas incursões por estes espaços dependeram de sociabilidades muito mais
antigas, construídas desde antes em Promessinha e mesmo no interior de sua família. Raras
vezes fez amizades no trabalho e apenas uma vez, com um homem hétero e informado, ela
ultrapassou os limites da empresa rumo a um espaço retirado. Suas novas amizades, algumas
das quais lésbicas, dependem enormemente das relações de vizinhança e dos aplicativos de
relacionamentos. As amizades e namoros organizados através desta ferramenta, tinham alguma
duração, vindo a deixar de existir algum tempo depois. A vida na cidade depende enormemente
de possibilidade financeira e provavelmente a formação de uma rede de amizades em torno da
sexualidade seja mais facilitada pelo acesso aos lugares frequentados pelo público LGBTIA+.
Nem sempre era possível estar nos bares da cidade, já que isto representava uma quantia de
dinheiro que muitas vezes não dispunha. Os aplicativos oportunizaram alguns romances, novas
experiências na cidade, mas não uma turma. Sua turma ainda é a mesma de antes, com alguns
morando em Promessinha ou em outras cidades de interior, enquanto outros mais moram em
Fortaleza, sem que, contudo, fossem capazes de se juntar com facilidade na capital, sendo maior
a probabilidade de reencontrá-los durante seus retornos à Promessinha.
Como dito antes, menos do que a cidade, a afirmação positiva de uma sexualidade
pode depender de outras coisas. Na trajetória de Sissi, o desenvolvimento de uma atitude de
politização de sua sexualidade alinhada à política de visibilização requerida pelos movimentos
sociais depende enormemente do que ela já havia sido capaz de realizar estando na zona rural,
junto com seus amigos da praça e devido aos conteúdos acessados pela internet e do
prolongamento dessas relações que se mantêm constantes até hoje em sua vida. A vinda para a
cidade e sua situação de “solteirice” que possibilitou encontros com garotas urbanas, somou-se
às fontes de informação e politização de outrora e, o que a cidade lhe deu a mais, não foi uma
consciência politizada anteriormente inexistente, mas a possibilidade real de viver novas
experiências que lhe fez e faz experimentar, em muitas circunstâncias, o revelar de sua
sexualidade, assumida desde antes de sua migração e que agora aparece mais livremente, já que
longe dos problemas que poderiam causar se ela estivesse no pequeno distrito onde morou.
Menos do que uma consciência politizada em torno da importância da manifestação de uma
sexualidade desviante, o que a cidade lhe ofereceu foi a possibilidade de agir de modo
244

congruente com o que acreditava ser mais próximo de um ideal de vida, distantes dos escrutínios
de seus vizinhos, tomado como extensão de suas relações familiares.
Obviamente, não se trata de supor que a cidade não tenha lhe acrescentado novas
aprendizagens ou complexificado aquelas já existentes. De todo modo, a gênese e o
desenvolvimento da maneira como a garota se porta atualmente não pode ser creditada
exclusivamente à sua relação com a urbanizada capital.
Ao visitar seu passado, mediante os ganhos do presente, resta a Sissi a certeza de
que, para ela, o que ela conseguiu em termos de uma política afirmativa de sua sexualidade,
não há retorno:

Se a gente for parar pra analisar uma mulher lésbica, no interior super pequeno onde
tudo o que acontece todo mundo sabe então eu ainda tinha muito “aquela mente
fechada” de “ah, tudo bem eu ficar com alguém, mas que seja escondido, que não seja
tão escrachado pra todo mundo!”. “O que é que minha família vai pensar, o que é que
a minha mãe vai dizer?” Mas a partir do momento que eu saio, me desligo lá de
Promessinha e venho pra Fortaleza, é um mundo totalmente diferente aqui. Aqui a
gente consegue ser a gente mesmo, do jeito que a gente quiser. Então… hoje eu sou
muito mais aberta pra ser a Sissi É como… uma vez eu falei assim pra menina: “olha
eu sou muito guei. Se você prestar atenção na minha foto do Instagram, tem uma
bandeira; na minha foto do WhatsApp, tem uma bandeira; o meu chaveiro é LGBTQ+
e eu tenho uma bandeira em casa. Então, quando eu chego na Promessinha, eu não
escondo de ninguém. Eu vou vestida o mais sapatão possível, encontrar os meninos e
a gente fazer aquela baderna. E isso foi construído com o tempo, foi destruir conceitos
e reconstruir, então essa foi minha caminhada, essa minha trajetória foi muito disso.
245

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste momento procuro tecer alguns apontamentos que, menos do que serem
conclusivos, podem servir como ferramentas úteis a uma reflexão contextualizada sobre
experiências lésbicas em zonas rurais. O modo como escolhi para tratar do tema foi recorrendo
à noção do armário que, por sua vez, está relacionado com o estabelecimento de um processo
de construção identitária em uma organização social sexual que impelem sujeitos a se definirem
dentro de uma ordem binarizada em torno do par homo/heterossexual (com ampla supremacia
de poder do segundo termo em relação ao primeiro), sendo determinado que tenha aquele que
tenha se posicionado ao lado da homossexualidade saia do armário, realizando uma
apresentação de si a partir da assunção pública de uma identidade homossexual, ação
supostamente requerida como estratégia de enfrentamento da homofobia.
O encontro com dois casais de lésbicas que viviam numa zona rural e que
publicamente se assumiram como tal contrastava com minhas ideias de que um pequeno lugar
rural no nordeste do Brasil seria pouquíssimo favorável às experiências homoafetivas. Para
mim, era crível estas relações existiam, mas de modo tão velado que o assumir-se como tal em
lugares como Promessinha seria bastante improvável.
Contribuía para minha intuição inicial não apenas uma ideia aligeirada sobre o sertão
nordestino como também a escassez de literatura sobre o tema, quer meu olhar tivesse sido
orientado pelos estudos de mulheres em contextos campesinos, ou caso ele se voltasse aos
estudos sobre sexualidades lésbicas. Em ambos os casos, cada um ao seu modo, uma repetição
do mesmo. Para o primeiro grupo de estudos, as mulheres eram sempre marcadas pela noção
de patriarcado que limitou o olhar para as mulheres considerando-as dentro da resistência ou da
submissão ao domínio masculino nas relações de reprodução (tendo a família como eixo
norteador) ou de produção (na análise das relações que estabeleciam com seus patrões e/ou com
os sindicatos) as quais pertenciam. Em relação aos estudos das sexualidades, as lésbicas
retratadas, normalmente, encontravam-se na cidade.
Apesar da quase ausência de literatura acadêmica brasileira sobre a relação entre
elas no meio rural, algumas produções já haviam iniciado o processo de lançar luzes sobre
práticas sexuais homoafetivas, especialmente as vivenciadas por homens, em espaços como
estes. Os estudos de Paiva (2015) e de Ferreira (2008), para citar alguns, trouxeram à tona as
peripécias de alguns homens rurais que, apresentando-se como heterossexuais, encontraram
parcerias para realizarem sexo com outros homens sem, contudo, se autor rotularem gueis. O
trabalho etnográfico de Passamani (2015), que versam prioritariamente sobre o envelhecimento
246

de sexualidades masculinas, trouxe um quadro relativamente diverso, que predominantemente


apresentou as trajetórias de vida de homens não jovens (acima de 50 anos) com “condutas
homossexuais” (termo usado pelo autor, para igualar a diversidade de comportamentos sexuais
por ele pesquisada, dentre os quais, mulheres trans, homens gueis, e homens gueis que já
haviam experimentado a travestilidade) e que viviam em cidades pantaneiras, no interior do
Mato Grosso do Sul. Posteriormente, Soninha, única interlocutora mulher de sua pesquisa, uma
assumida lésbica residente em uma zona rural de Corumbá/MS, virou tema de um de seus
artigos (Cf. PASSAMANI, 2015).
Ao encontrar garotas rurais que se permitiram a viver e tornar públicos os seus
romances, evidenciava-se um contraste em relação ao comum regime de dizibilidade
proveniente do campo dos estudos das sexualidades quando eles tratam ligeiramente ou se
detém centralmente sobre as sexualidades rurais. Neles, normalmente o rural foi concebido
como espaço de extrema solidão (MOGROVEJO, 2005) ou como lugar no qual a efetivação de
práticas sexuais entre iguais tendem a existir com mais facilidade quando os envolvidos se
organizam a partir de uma vida dupla: apresentando heterossexualmente no espaço das
pequenas cidades, embora mantendo relações com outros homens em eventuais encontros nos
lugares onde moram (PAIVA, 2015; FERREIRA, 2008), ou quando as realizam em rápidos
deslocamentos para cidades maiores (MISKOLCI, 2017). No limite, a mais eficaz alternativa
para a obtenção definitiva de maior liberdade seria realizar a diáspora gay, fugindo para a
grande cidade (ERIBON, 2008). Por certo, esses estudos, acabam por não dar muitas
alternativas para as homossexualidades nos espaços rurais.
Vale o aviso: em hipótese alguma trata-se de, por exemplo, negar a solidão vivida
por Mogrovejo (2005) nas zonas rurais peruanas. Nas trajetórias pesquisadas, a solidão vivida
por Bárbara, indica sua real efetividade. Tampouco se quer negar que a vida dupla pode ser a
principal estratégia de muitas pessoas que, vivendo no campo, conseguem dar vazão aos seus
desejos homoeróticos. Fui informada que muitas outras garotas de Promessinha também seriam
lésbicas, mas não assumiam e viviam em duplicidade. É crível que as diferenças entre os
sujeitos, os lugares nos quais habitavam e a época em que viviam, tenham muito a informar
sobre as diferentes experiências vividas e narradas nesses textos sobre as sexualidades rurais. É
provável que as garotas aqui pesquisadas tenham tido mais sorte que a adolescente Mogrovejo
(2005) e suas contemporâneas quando elas viviam no alto de uma serra peruana ou em uma
pequena cidade em seu sopé, em décadas passadas, momento no qual o acesso à rede mundial
de computadores talvez não fizesse parte da experiência popular da zona rural daquele país.
247

De todo modo, um dos presentes que as trajetórias de vida dessas meninas poderiam
dar aos estudos das sexualidades rurais é o de abrir uma alternativa a um conjunto de
perspectivas que parecem promover a ideia de que a vida LGBTIA+ no campo é impossível ou,
na melhor das hipóteses, só se torna possível pela experiência da farsa.
Nas trajetórias pesquisadas, todas garotas observadas construíram seus próprios
caminhos e respostas para se pensar/significar lésbicas e para se darem a chance de vivenciar
suas experiências sexuais com outras garotas e revelá-las publicamente. Para citar alguns
elementos, entre elas variaram: as idades em que se reconheceram como tal; a necessidade de
anterioridade do estabelecimento de relações homoafetivas para que se concebessem como tal;
a possibilidade de se dar ao estabelecimento dessas relações no lugar onde moravam; a
aproximação com o grupo de iguais, a duração, a intensidade e a natureza (se virtual ou real)
da “presentificação” dos iguais em suas vidas; o intervalo de tempo entre a percepção e a
relativa aceitação de uma sexualidade homoerótica e o estabelecimento e a duração de uma
crise e as consequências dela advindas; a presença de isolamento em relação aos heterossexuais
de suas convivências e, a anexação política a uma identidade lésbica. A despeito de alguns
modelos teóricos que intentaram dar suporte a uma ideia normativa e universal da construção
de uma identidade lésbica e apesar de que, em muitos momentos, suas experiências tenham se
aproximado parcialmente das narrativas constantes nesses modelos, as trajetórias aqui descritas
mostraram, sobretudo, suas singularidades - única possibilidade para as construções
identitárias.
Mas também não se pode supor uma ausência de chão comum, como se tais garotas
fossem seres desencarnados e sem qualquer relação com o tempo e o espaço em que habitavam.
Espaço com características específicas que, por vezes, não se dão à escolha dos sujeitos que
irão ter de lidar com elas e que certamente, caso venham a considerá-las (por opção ou
imposição), às responderão de modo singularizado ainda que suas particularidades sejam
constituídas a partir de territórios compartilhados. Por conta disso, muitas vezes, nas trajetórias
pesquisadas, surgiram espécie de ritornelos, cuja aparição relativamente comum nas
experiências das garotas indicou algumas regularidades importantes de serem realçadas na
compreensão da experiência lésbica rural.
Em princípio, suas trajetórias podem ser aproximadas (e jamais igualadas) quando
cada uma das garotas atendeu ao apelo de identificar-se como lésbica, situando-se em um dos
polos sexuais de nossa cultura. Lina e Sissi costumavam-se narrar como lésbicas ou sapatões,
enquanto que Bárbara e Iara evitavam a utilização de rótulos referindo-se a si próprias com
248

expressões do tipo “quem é do nosso jeito”, embora quando diretamente perguntadas sobre
como se auto rotulam, tenham se referido como lésbicas.
Corpos lésbicos não pavoneavam na zona rural em que elas habitavam. Mas também
não eram inexistentes. Nas quatro histórias pesquisadas, constituir-se como lésbica dependeu
de um trabalho ativo de rapina, de observação atenta e de busca de informações sobre lésbicas,
fazendo com que elas próprias fossem capazes de transformar o quase silêncio e/ou as
concepções dominantes em seu espaço social em possibilidades afirmativas. Nas narrativas
estabelecidas por Lina foi possível identificar a transformação da macho-e-feme na mulher
lésbica e naquelas realizadas por Iara, as práticas sexuais incapazes de possuir nome e de
nomear aquelas se nelas se envolviam foram substituídas pela construção de sentido de um
namoro entre lésbicas.
Em relação às trajetórias investigadas, as narrativas de todas elas trazem a memória
de que suas primeiras referências para significar a relação entre iguais ocorreram durante suas
infâncias, normalmente nos diálogos ouvidos entre pessoas da rua ou da igreja, ocasião nas
quais eram faladas coisas muito ruins a respeito de vizinhos que se supunham viver uma relação
romântica com alguém de seu mesmo sexo. O momento com qual foram socializadas com as
opiniões direta de seus familiares acerca das homossexualidades variou entre elas, embora, via
de regra, em suas casas, as possíveis considerações em torno das práticas homossexuais
tenderam a surgir especialmente quando seus parentes ponderavam sobre a possibilidade, ou a
real existência, da homossexualidade entre seus membros. Em algumas destas ocasiões, elas
próprias foram alvos de suas atenções. Em todos os casos, a produção discursiva sobre a lésbica
ocorreu seguindo a fórmula de que sua emergência no ambiente familiar promoveu a simultânea
a aparição de discursos homo/lesbofóbicos.
Normalmente, independente das fontes citadas, as pessoas ao seu redor se punham
a considerar sobre a atitude pecadora daqueles que amam iguais e sobre o consequente
impedimento ao reino dos céus. A leitura da sexualidade como pecado estabelece-se de modo
marcante nas trajetórias rurais investigadas, em muito organizadas em torno das instituições
cristãs. Nenhuma surpresa que todas elas tenham se colocado às voltas com as consequências
(variadas) ao modo como foram tocadas pela importância dada à ser fiel ao Senhor.
Dentro de suas Igrejas, comumente a informação sobre a impropriedade do pecado
de Sodoma não partia do centro do poder. Em especial, quando se tratavam das igrejas
evangélicas. Lina e Bárbara, de filiação evangélica, bem como a católica Iara, não se recordam
de terem ouvido os dirigentes dos templos que frequentaram tecer considerações negativas
sobre as relações entre iguais. Na maior das vezes, as considerações sobre relações
249

homoeróticas partiam dos fiéis que avaliavam os atos de alguém que era presumido como tal e
merecedor dessas injúrias. Por vezes, nestas considerações esteve em avaliação o desejo delas
próprias, que eram aconselhadas a orar para se afastar das más condutas.
Esta memória não coincide totalmente com a que hoje guarda Sissi, que frequentou
paróquias católicas em diversas cidades nas quais morou e que traz à lembrança de muitas
missas proferidas no mês de Paulo, onde a passagem bíblica sobre Sodoma e Gomorra foi
utilizada para que o padre pudesse falar do pecado das relações impróprias. Ademais, estas
indicações eram bastante reiteradas nos grupos de oração que ela participou, onde ela foi levada
a pensar sobre seus desejos a partir do livre arbítrio daquele que poderia vir a escolher a qual
senhor seguir, se a Deus ou ao pecado, devendo, aqueles que elegessem o primeiro, serem
chamados à castidade e, em um nível ótimo, ao compromisso com o casamento heterossexual
e a procriação da espécie.
Nas histórias colhidas, a aliança entre família e igreja estabelecida quase sem
resistência, resulta na construção de uma moral social fortemente marcada por uma moral cristã
heteronormativa e aversiva às homossexualidades, colaborando para que as relações entre
iguais sejam mais fortemente associadas ao pecado, quando comparado com qualquer outro
elemento histórico que foi associado a este conceito, tal como as noções de doença e/ou
criminalidade.
Mas também desde suas infâncias e durante todo o curso de suas vidas, as garotas
puderam encontrar alternativas à narrativa cristã. Em princípio pela quebra da intenção do ato
ilocutório, como nos casos em que a injúria contra terceiros foi tomada em rapina e passou a
funcionar como de farol iluminador para aquilo que se pretendia ocultar. Outras vezes elas
puderam acessar alguns debates e/ou modelos disponibilizados na grande mídia televisiva e
parte delas foi capaz de acompanhar novelas associadas a temáticas homossexuais, inclusive
algumas nas quais lésbicas ganharam relevância. Isso sem contar com a possibilidade de que,
em suas famílias, nem sempre os discursos homofóbicos soaram de modo uníssono: Sissi pode
encontrar-se com as ideias de sua mãe que, em defesa da assumida sobrinha lésbica, costumava
repetir sobre a importância da liberdade de amar. Mais tarde, durante a adolescência, a internet
também lhes garantia possibilidades de aproximação com ideias mais favoráveis à existência
do amor entre elas e da identidade lésbica a ele associada. O mesmo papel teve o relacionamento
com seus amigos gueis que também viviam no distrito em que moravam, muitos dos quais
introduzidos nos debates acerca das políticas de sexo e gênero em nossa cultura.
Embora a noção de pecado tenha marcado as primeiras formas de atribuição de
significados em relação às condutas ou ao desejo homoerótico, para ao menos três garotas, a
250

igreja que elas frequentavam jamais pode ser pensada como um ambiente que funcionou
exclusivamente a partir da vetorização da repressão. Dentre as quatro garotas pesquisadas,
apenas Bárbara trouxe relatos que sinalizaram exclusivamente a sensação de sufocamento
vivido na Assembleia de Deus, organização evangélica que ela participava As outras meninas,
subvertendo o espaço e reinventando modos de habitá-los, conseguiram obter vantagens das
ligações que possuíam com suas igrejas, um dos seus principais espaços de sociabilidade.
Lina usou altar do templo evangélico que frequentava buscando beneficiar-se de seu
possível status de “pessoa interessante” devido às suas habilidades musicais, ao tocar seu
contrabaixo e reger o coral. Sendo uma das atrações no culto, disponibiliza-se ao olhar de todos
na plateia, ao mesmo tempo em que, estando frontalmente diante deles, seria capaz de decidir
sobre se aproximar de algumas meninas que, a depender do modo como olhavam para ela, lhe
pareciam indicar possibilidades de romance.
Iara e Sissi, sem dúvidas, se beneficiaram das amizades do Vale, turma de amigos
gueis que permaneciam juntos, na praça da igreja Matriz, após os trabalhos que realizavam na
Pastoral Católica que, em grande medida parecem ter contribuído para uma formação
protagonista e alinhada a pensamentos mais à esquerda, dentro desta igreja. Lina também
reconhece a importância do Vale no suporte de atribuição de significados e vivência efetiva de
sua experiência lésbica. Após seu retorno da capital Federal, até Bárbara pode contar com a
ajuda dos meninos para estar em alguns momentos com sua namorada sem ser vista por outros
da cidade.
A despeito de qualquer benefício obtido, todas elas se afastaram das atividades
religiosas, embora tenham mantido a fé cristã. As vantagens, que foram inventadas pela
subversão do espaço, não foram suficientes para determinar suas frequências em um lugar onde,
para algumas delas, muitas pessoas pareciam considerá-las desacreditadas. Talvez Sissi tenha
expressado o que, no final das contas, todas elas passaram a ponderar: eu comecei a ver não
tanto pela questão da religião, comecei me afastar mais da religião, do pecado, da sexualidade
ser pecado.
Quer por observação direta das vidas vividas na localidade ou pelas imagens e
histórias consultadas através de pixels e cores, nota-se a presença LGBTIA+ nas pequenas
localidades colaborando para que todas as garotas tenham se reconhecido como lésbicas,
mesmo antes de seus processos migratórios. Neste sentido, por mais que algumas dessas
garotas, quando crianças, não tenham sido intensamente socializadas com a gramática
relativamente globalizada das homossexualidades e embora elas vivessem em uma zona rural,
mais cedo ou mais tarde, com o foco voltado para a compreensão e/ou experimentação de seus
251

desejos, cada uma delas pode acessar discursos onde essa gramática estava disponível,
incorporando novos valores, organizando uma releitura dos elementos da cultura local e global
e aderindo, aos seus modos, aos códigos modernos da organização da sexualidade, da qual elas
nunca tiveram alijadas.
Se, em princípio, as fofocas acerca de vizinhos supostamente gueis ou lésbicas
colaboraram para tornar parcialmente visíveis as relações estabelecidas por pessoas que
desejavam mantê-las no armário, mais tarde, quando as garotas que já eram capazes de
reconhecer seus desejos sexuais e quando elas próprias haviam se tornado o alvo das fofocas,
os mexericos serviram também como propulsores da afirmação das suas sexualidades para as
suas famílias e no espaço público. Uma vez que no lugar em que habitavam, as pessoas
começavam a suspeitar e comentar sobre seus possíveis romances, quando a informação sobre
elas chegou (ou foram percebidas como em vias de chegar) ao conhecimento de seus familiares,
todas determinaram-se pela confirmação (ou antecipação da revelação) do teor dos boatos. Nas
trajetórias pesquisadas, foi possível perceber que, numa zona rural, uma espécie de armário de
vidro compulsório é organizada pelas fofocas. Menos do que uma corporalidade masculinizada,
o armário de vidro rural é estabelecido pelo conhecimento coletivo acerca das relações
homoeróticas vividas por quem as estabelecem.
Antes mesmo que Lina e Sissi pudessem certificar-se de que entre as duas poderia
existir um namoro, a cidade já comentava o romance. Os cuidados da má afamada Iara (que
havia sido extraditada por seu desejo lésbico, notadamente reconhecido por muitas amizades
na escola) para encontrar-se com Bárbara num lugar distante dos olhos de seus pais, davam
margem às acertadas fofocas sobre o que ali acontecia. Confirma a ideia de que as fofocas
colaboram para o estabelecimento de um armário de vidro o fato de que todas se envolveram
em situações onde mentiras (acerca de beijos em praças públicas) foram utilizadas para garantir
a veracidade daquilo que não era mais passível de ser negado. Impossível não crer que no
período em que lá viveram elas mesmas serviram, mesmo sem saber, como prováveis âncoras
para outras garotas que, diante da fofoca sobre elas, poderiam avaliar seus próprios desejos.
É bastante crível que as fofocas, que talvez tivessem por função determinar a
diferença entre o “nós” e os outros (que no limite deveriam ser banidos), acabaram por
converter-se em uma brecha útil à afirmação lésbica. No momento mais intenso a que estavam
submetidas às fofocas, a maioria das lésbicas pesquisadas já estavam suficientemente enredadas
por diversos discursos pró-homossexualidades, inclusive a partir das amizades do Vale que,
cada vez mais, assumem-se dentro de suas famílias. Dentro desse contexto, menos do que tentar
reverter o imaginário coletivo a respeito de suas sexualidades, as garotas perceberam na fofoca
252

uma possibilidade de afirmarem-se diante dos outros. Estranho paradoxo da injúria que torna
visível aquilo que ela pretende exterminar.
Inevitavelmente, acabaram por ter que lidar com as consequências da revelação,
mais fortemente sofríveis dentro de seus núcleos familiares. Embora Sissi tenha encontrado o
apoio de seu primo e de seu irmão, gueis, normalmente os membros de suas famílias receberam
negativamente a notícia de que as garotas seriam lésbicas e todas elas tiveram que lidar com a
homofobia emergida em suas casas, em muito embalada pelo signo do pecado. Iara foi
forçadamente extraditada para Brasília e Bárbara, durante todo o tempo que morou com seus
pais, foi submetida a diversos xingamentos e constrangimentos dentro da casa em que viviam.
Lina e Sissi perceberam o peso do abandono da ajuda familiar em relação, senão à retirada total,
mas à diminuição do provimento de mantimentos ou de qualquer valor financeiro que pudesse
amenizar a situação de insegurança alimentar que estavam vivendo. Na zona rural, bem como
na urbana, a família pode ser um dos piores lugares para se assumir-se lésbica. Impossível não
identificar algumas aproximações da experiência rural com a vida urbana, o que traz
desconfiança à ideia de que estes espaços são distintamente opostos.
Apesar das reações negativas, as famílias tendem, não sem avanços e retrocessos,
ao arrefecimento das animosidades diante da vivência sexual das garotas pesquisadas: outra
característica que parece ser compartilhada nas duas geografias. Até sair da cidade, Bárbara
ainda sofria, embora cada vez menos, nas relações de sociabilidade com seus pais e irmãos.
Hoje ela avalia ter os melhores pais do mundo. A família de Iara, desde o tempo em que elas
ainda estavam em Promessinha, já havia acolhido Bárbara como agregada. Após seus processos
migratórios, a mãe biológica de Sissi e seus irmãos vieram para sua festa de formatura, onde
puderam vê-la ostentar uma bandeira com as cores do arco-íris enquanto atravessava o púlpito
diante da plateia, e Lina pode retornar à cidade natal com sua namorada Olga, durante um
período de carnaval, hospedando-se com ela na casa de sua mãe.
Para todas, por mais que tenham tido que lidar com as punições familiares e
comunitárias, a revelação funcionou como uma espécie de liberação. O fato de que seus pais
sabiam, somados à sensação de que o mesmo ocorria em relação a todos da pequena localidade,
de certo modo as liberou para que elas pudessem se posicionar de modo afirmativo, escolhendo
as plataformas digitais para que tais declarações fossem feitas em primeira pessoa. Nas redes
digitais, os comentários realizados a partir das presunções dos moradores locais eram
publicamente validados por cada uma delas, desejosas de comunicar aos outros sobre suas
experiências de namoro. Realizando um manejo para organização de uma bolha virtual, aqueles
253

que pudessem se utilizar das postagens para desferir ataques homofóbicos, eram eliminados de
seus contatos.
Claro, não possuíam a ingenuidade de acreditar que esta exclusão determinaria o
controle da informação em relação aos que foram retirados de suas redes sociais ou qualquer
outra pessoa da localidade, mas esta manobra garantia maior sensação de segurança para que
seguissem com suas revelações. As postagens, sempre determinadas a declarar a felicidade e
estabilidade do casal, ainda acabavam por instar o comentário de muitos de seus contatos
virtuais, geralmente pessoas conhecidas da cidade que, em todos os casos, manifestaram suas
avaliações positivas em relação aos casais publicitados desta forma. E o espaço rural vai se
tornando, cada vez mais, menos evidente.
De todo modo, uma vez que a excitação pública de revelação de um segredo ia
perdendo a importância, quando elas próprias publicaram seus romances em suas redes sociais,
elas também puderam assistir ao arrefecimento (embora nem sempre total) dos moradores da
cidade. A diminuição da tensão pelo fim do segredo também lhes favoreceu ao livramento do
apelo heteronormativo que as faziam ficar com homens, cujas relações lhes pareciam insossas
ou violentas (como no caso de Lina).
Vale considerar que esses elementos aqui citados talvez tenham relação ao fato de
que as garotas estavam em uma relação estável e monogâmica. É provável que se eu tivesse
observado lésbicas solteiras, os resultados fossem outros.
Em todos os casos, por mais que fosse sabido por todos que as garotas eram lésbicas,
quando se encontravam na cena pública da cidade, elas buscavam apresentar-se com discrição,
comportando-se com o máximo de passabilidade possível, embora sem utilizarem-se de
estratégias de falseabilidade e acobertamento de suas preferências sexuais. Não se tratava de
negar o que parecia ser de conhecimento público, mas apenas gerenciar o modo de aparição
diante dos outros, no chão da cidade, a fim de reduzir as tensões nas trocas sociais de quem
vive em um armário de vidro, não sendo capaz de ocultar seu estigma e preocupando-se com
incerteza a respeito do valor que tem para o outro a informação, se não imediatamente visível,
certamente cognoscível.
Iara e Bárbara jamais tentaram se dar ao público, apresentando modos de interação
semelhantes aos que fazem duas amigas. Para Iara, esta era uma forma de respeito mútuo entre
ela, sua família e os habitantes da cidade. Procuraram ainda estabelecer alguma distância dos
garotos do Vale, como modo de evitar possíveis comentários homofóbicos na família de
Bárbara.
254

Lina e Sissi ainda ensaiaram aparições mais ousadas e caminharam por vias mais
próximas daquelas que consideravam a visibilidade como um ato de importância política. E
talvez por estas atitudes mais arrojadas, entre os dois casais, elas foram a que mais se depararam
com comentários e atitudes homofóbicas na cidade, reiteradas com os avanços na liberação do
manejo de ocultação de suas reconhecidas sexualidades estigmatizadas. Mas também se
impuseram limites: apesar de andarem de mãos dadas, jamais beijaram-se em qualquer lugar
diante de algum público, atitude percebida por Sissi como uma possível afronta à sua família,
que certamente viria a saber do ocorrido pela via da fofoca e que poderia intensificar os conflitos
vividos com sua mãe, que ainda estava viva na época.
Penso ser necessário observar que, mesmo na vida urbana, muitas pessoas
assumidamente gueis e lésbicas decidem por proceder de modo assimilado diante dos muitos
de seus parentes e de outras pessoas conhecidas, organizando uma estratégia de integração
social que garante, simultaneamente, o reconhecimento da existência da homoafetiva, sem
provocar ou intensificar processos de quebra de vínculos familiares e/ou comunitários, quando
avaliam não ser vantajoso viver sem eles. A homofobia está presente nas duas geografias.
Porém, dado o anonimato e a possibilidade de acesso à lugares retirados, o espaço
urbano oferece a possibilidade de vivência da homossexualidade e manutenção de vínculos
sociais pela oportunização de uma vida dupla relativamente integrada, a depender da
capacidade de assimilação e acobertamento realizado pelos sujeitos. Talvez o estabelecimento
de uma vida dupla seja cada vez menos importante, mas ainda é para muitas pessoas, inclusive
as que habitam no espaço urbano e pode até ser mais ainda em um espaço rural, onde uma ética
cristã homofóbica recobre as relações estabelecidas na quase totalidade dos espaços habitados.
Via de regra, nas literaturas sobre homossexualidades, na observação de homens que
fazem sexo com homens em ambientes rurais, costuma-se trazer a ideia da existência de uma
vida dupla, em pequenos atos de fuga para cidades maiores, onde alguns vão ter com rapazes.
Mas, em lugares onde a pobreza relativamente generalizada se encontra com a concentração de
renda em mãos masculinas, dificilmente agenciar-se por constantes deslocamentos pode vir a
ser uma alternativa organizada por uma jovem mulher lésbica que, geralmente, é incapaz de
garantir seu próprio sustento, dado os vergonhosos salários recebidos em contratos de “ajuda”.
Para aquelas que desejam manter seus laços de solidariedade, sem abrir mão de sua sexualidade
e sem utilizar-se de falsos artifícios (que no limite faria com que a identidade lésbica fosse
somada à noções tais como a da mentira ou dissimulação), a preocupação com a manutenção
da discrição parece ser justificável. Dado o desconhecimento do público e do privado, do
255

familiar e do comunitário (em muito alimentado pelas fofocas) a aparição assimilada tende a
ser dada a rotina em todos os momentos e espaços.
Desde que as conheci, sair da zona rural era uma meta a ser alcançada. É difícil
avaliar em que medida a sexualidade influenciou seus desejos de migração para a grande cidade,
embora pareça que ela tenha alguma influência na perda de oportunidades de trabalho na
pequena cidade e nenhuma no desejo de morar em um lugar onde fosse possível viver com mais
liberdade. A rotina da vida assimilada não era vivida como um problema.
Apesar da não centralidade dos ganhos sexuais nos seus desejos de morar na capital
do estado, todas sabiam que poderiam se beneficiar sexualmente com a saída da pequena
localidade. A tímida Bárbara, que só se permitiu sair com alguma garota estando livre da língua
grande das pessoas da pequena cidade em que morava, muito desejava afastar-se dos constantes
conflitos familiares por motivação homofóbica. Iara, que sempre teve envolvida em namoricos
com garotas da cidade e cuja família não impunha mais tantas dificuldades, entendia que a
autonomia financeira e o afastamento da pequena cidade seriam condições necessárias para que
ela e sua namorada pudessem vir a morar juntas, como pretendiam. Também desejava fugir do
seu sofrimento, diante da sofrível relação familiar de sua namorada. Lina e Sissi, buscavam,
sobretudo, superar a pobreza por elas vivida. Por certo, para todas elas, a autonomia financeira
era algo que lhes parecia impossível caso vivessem naquele lugar. Na trajetória das garotas
pesquisadas, menos do que algum sentimento de restrição em suas vidas sexuais, a dificuldade
em conseguir emprego e os baixos salários pagos tornavam a vida rural um tanto indigesta.
Os conselhos ouvidos por Sissi indicam que para muitas mulheres que permanecem
em pequenas cidades, normalmente a saída da casa dos pais se dá pela via do casamento cujo
sucesso, para algumas delas, dependerá das possibilidades econômicas do marido. Migrar,
obviamente, lhes favorecia pela possibilidade de tornarem-se independentes sem cumprir o
destino matrimonial vivido por muitas mulheres de suas famílias que deixaram a casa dos pais,
para se tornarem tuteladas pelos seus esposos. Aliás, a fuga deste destino parece comum entre
as jovens mulheres campesinas que, independentemente de suas orientações sexuais, colaboram
com a masculinização e envelhecimento do campo quando se recusam ao casamento com os
homens de suas pequenas cidades, migrando para cidades maiores a fim de obter maior
capacidade educacional ou técnica com vistas a garantir meios econômicos para seu sustento
fora dos espaços rurais (Cf. STROPASOLAS, 2002).
Obviamente, as garotas observadas não estavam refratando possíveis romances
locais, já que todas eram comprometidas com alguém que, como elas, viviam no lugarejo. E
talvez até por conta do compromisso romântico, suas principais motivações para migrarem
256

jamais incluíram a entrada no universo urbano de sociabilidade LGBTIA+ para conhecer


garotas com quem se relacionar amorosamente ou para socializar-se com iguais. A vinda para
a cidade significava a viabilidade de autonomia financeira e somente na condição de
consequência a possibilidade de obtenção de benefícios em suas vidas sexuais, tal como
continuar com suas companheiras mantendo ou estabelecendo uma relação de uma mancebia
indiferente ao jugo moral de seus vizinhos. Apenas Lina e Sissi teceram algumas considerações
sobre a possibilidade de maior revelação na cena urbana sem que, contudo, esse possível desejo
tivesse importância em suas decisões de vir para a capital e sem que tivesse de fato ocorrido.
Como dito antes, na primeira vez que foi para uma grande cidade, tendo migrado
para a capital federal, Bárbara de fato pode experimentar uma certa liberação na apresentação
de si. Porém, ao se encontrar com Iara – que nunca viu positividade no ato de expor-se
publicamente, entendendo a discrição como fonte de obtenção de respeito –, teve que rever seus
métodos, passando a se portar de modo discricionário e chegando a afirmar que esta discrição
seria a forma correta de qualquer aparição pública de um casal, seja ele homo ou heterossexual.
Em nenhum momento, após migrarem juntas para Fortaleza, passaram a ponderar sobre a
possibilidade de manifestações públicas, mesmo quando estavam em algum gueto. Antes de
conhecer Bárbara, Iara se juntava ao Vale, tendo diminuído enormemente sua presença nessa
turma, após o estabelecimento do seu namoro. Até hoje, Bárbara e Iara, que vivem em união
estável, pouco se interessam pela cena Queer da cidade e saem para passear, inclusive, com as
mesmas amizades heterossexuais que possuíam em Promessinha.
Lina, por sua vez, descontinuou sua prática afirmativa ao chegar na grande cidade.
No pequeno distrito em que morava, se deu ao olhar público quando caminhou de mãos dadas
com Sissi, tentou fazer mais do que isso e foi contida por sua namorada. Estando em
Promessinha, as redes sociais tornavam pública a sua vida amorosa e ela chegou a morar junto
com a sua namorada, movimentando o olhar dos curiosos de plantão. Na cidade grande, ao
começar um relacionamento com uma mulher que se narrava heterossexual, passou a entender
que sua atitude de outrora demonstrava uma depravação que jamais deveria ser repetida, caso
ela desejasse se tornar uma pessoa melhor, mais evoluída que antes. Para alcançar sua meta,
eliminou qualquer referência pública que pudesse demonstrar sua homossexualidade e afastou-
se dos amigos LGBTIA+ que deixou em Promessinha e que foram importantes em sua trajetória
de vida.
Embora o acesso à cena LGBTIA+ da cidade grande não tenha sido a motivação
principal da migração de Sissi para a capital, entre todas as garotas pesquisadas, ela foi e é a
única que, alternando entre compromissos de namoro e a vida “na pista”, está envolvida com
257

amizades homo e heterossexuais, algumas vezes escolhendo diversão em espaços “liberados”.


Embora Sissi tenha gostado de ir com seus amigos para lugares de público LGBTIA+, suas
escolhas de amizades e lugares a conhecer não inclui centralmente avaliação do critério da
sexualidade. Vale lembrar ainda que conhecer bares, boates e restaurantes requer dinheiro. A
vida de Sissi na capital não se organiza em torno das festas.
Muitos autores descrevem que o mercado LGBTIA+ no Brasil se desenvolve
prioritariamente com o foco nos espaços de sociabilidades masculinas enquanto que,
normalmente, as lésbicas tendiam a se socializar com amigas em espaços privados. É estimado
que, dado as piores condições financeiras das mulheres, a organização de lugares de
sociabilidade para lésbicas, parece não atrair o mercado. Na cena Lésbica de Fortaleza, Souza
(2019) observa o baixo número de espaços destinados prioritariamente à sociabilidade lésbica,
ao mesmo tempo em que aponta o fato de que, na maioria das vezes, ela se dá em espaços de
acolhimento de pessoas com gêneros e sexualidades distintas (homens e mulheres
homossexuais ou não) e que, nos espaços retirados, a frequência de gueis se sobrepõe sobre a
de lésbicas. Em uma pesquisa realizada através do Google, visando encontrar espaços para elas
em Fortaleza, a quase totalidade dos endereços me encaminhou para espaços de sociabilidade
LGBTIA+ cuja frequência é predominantemente masculina, quando não exclusivamente (tais
como nas saunas gueis, onde nenhuma mulher pode entrar).
As vidas dessas garotas na capital, marcadas pela pouca sobra de dinheiro, pela
organização de relações estáveis ou pela busca de novos relacionamentos a partir de aplicativos
de paquera me faz crer que, dentro dos textos que versam sobre o desenvolvimento de
identidades homoafetivas, a ideia de que a vinda para a cidade oportuniza o acesso a guetos -
onde se faz possível estabelecer laços de solidariedade e sociabilidade e encontros sexuais com
pessoas que também desejam o mesmo sexo - tenha mais importância na diáspora guei do que
na trajetória lésbica rural. Nas narrativas das garotas por mim pesquisadas, eles só foram
acessados (e não muito) por Sissi que, em muitas ocasiões estava solteira, competindo no
mercado amoroso.
Ela também foi a única que passou a, cada vez mais, exibir um discurso politizado
em relação à visibilidade homoafetiva como estratégia de enfrentamento da homofobia. Em
suas redes sociais, as fotos escolhidas para o seu perfil constantemente eram associadas a temas
LGBTIA+. Em Fortaleza, não se importava em ser vista acarinhando ou beijando a sua
namorada, quando estava em um namoro. Sissi tomou para si a tarefa de revelação como ato de
importância política para o desmonte da homofobia e parece desejar se relacionar apenas com
pessoas que, como ela, tendem a exibir um orgulho lésbico. Porém, do mesmo modo como
258

Bárbara e Iara, suas principais amizades são provenientes de relações muito mais longevas e
bastante rurais: seu irmão e primo gueis e sua prima heterossexual com quem passou dividir
uma moradia. Após quatro anos vivendo na capital, as novas amizades urbanas, por vezes
marcadas pela brevidade, ainda estão em processo embrionário.
Com uma vida social mais intensa, entre todas as garotas pesquisadas, ela foi quem
mais se aproximou da ideia de que o sucesso de uma carreira moral, associado a uma identidade
orgulhosa de si, dependia da grande cidade. Mas mesmo no caso desta orgulhosa lésbica,
parece-me injusto creditar exclusivamente à urbanidade tais conquistas. Desde muito antes de
sua vida na pista LGBTIA+, ela sabia que os diálogos com seus amigos do Vale – que
colaboraram para suas buscas ativas na internet –, bem como o desejo irreverente que sua então
namorada possuía em andar de mãos dadas no pequeno lugar onde moravam tinham-lhe
iniciado os passos de suas experiências publicamente assumidas. Mesmo que considerasse
pouco viável organizar uma apresentação de si completamente “rasgada” naquele lugar, foi
estando em uma área rural que ela buscou leituras politizadas em relação ao universo LGBTIA+
e permitiu-se a algumas ousadias. Na sua empiria, ela e sua namorada contribuem para fraturar
as evidências do lugar, embora também buscassem equilibrar as tensões estabelecidas nessa
fratura, procurando determinar um nível ótimo entre a revelação e a ocultação de traços
distintivos de suas reconhecidas homossexualidades.
Vale considerar também que durante o período em que estavam na zona rural e que
estavam buscando definir uma identidade sexual, três garotas se oportunizaram a uma intensa
rede de amizades LGBTIA+ e o mesmo não ocorrendo entre três (não necessariamente as
mesmas) das quatro trajetórias investigadas, após o processo migratório para grande cidade. Ou
seja, na maioria das histórias pesquisadas, a cidade grande não se configurou como o lugar por
excelência das sociabilidades entre iguais que, para a maioria delas, ocorreu de modo mais
intenso durante o período em que viveram na pequena localidade, quando estavam com amigos
que também descobriram-se gueis e ponderavam sobre isto.
Em suma: do mesmo modo que na cidade grande, o armário rural pode ser
compreendido como estratégia de assimilação e resistência ao mainstream heterossexista de
nossa cultura. As zonas rurais não estão separadas das transformações globalizadas da vida em
sociedade e em diversos aspectos, as histórias aqui narradas se aproximam bastante de muitas
daquelas colhidas dentro dos modelos urbanizados de organização de uma identidade
homoafetiva e/ou lésbicas contidos naquilo que eu chamei de “psicologia do armário”. Embora
de modo variável e nem sempre linear e progressivo, as meninas viveram o estabelecimento de
um período crítico diante da constatação de seus desejos, organizaram pontes e associações
259

entre iguais que favoreceram a aceitação de uma identidade homoafetiva, deram-se ao


conhecimento público e buscaram integrar-se dentro do tecido social em que viviam.
Porém, as carreiras morais construídas pela psicologia do armário (até mesmo as
que sinalizaram possibilidades bem flexíveis) não se encaixam com perfeição às trajetórias dos
armários lésbicos rurais, pelos menos os aqui observados. Especialmente quando elas se põem
a considerar sobres os atos de revelação: momento no qual os sujeitos decidem sobre os espaços
e as pessoas que podem ser comunicadas sobre suas sexualidades.
De modo diferente, nas trajetórias pesquisadas, diante da oportunidade de uma viver
uma relação romântica estável que logo se dá ao conhecimento público, é improvável que os
sujeitos consigam ponderar por muito tempo sobre a ocultação de suas homossexualidades,
mantendo uma vida dupla. Dado a dificuldade de privacidade e a facilidade da comunicação
intersubjetiva realizada pela via da fofoca em um lugar onde há a proximidade das relações de
todos com todos, a notícia da existência de um casal de lésbicas rapidamente recobre todo o
tecido social, estabelecendo um compulsório armário de vidro. Em pequenas localidades,
parece bastante claro que há uma forte predominância do outing sobre o coming out, podendo
inclusive ser determinante para a existência deste.
Incapazes de negar a existência de seus romances, e sem desejar manter de modo
falseado no espaço público, nas redes sociais (que não garante a eleição de pessoas/espaços por
onde a informação deve circular) as fofocas realizadas sobre elas são afirmadas em primeira
pessoa. Resta-lhes o trabalho de manter a integração social a partir do manejo de identidade
reconhecidamente estigmatizada e que, por isso, normalmente, aparece de forma assimilada. A
aparição da lésbica assimilada na cena da cidade não deixa de tornar visível a existência lésbica
no espaço rural, funcionando como modo de quebra de continuidade e resistência à
heteronorma.
Neste sentido, proponho a possibilidade de uma suspensão do sentido da
claustrofobia dada ao armário rural e penso que, apesar de algumas dificuldades, em um lugar
onde a exigência identitária e panfletária do armário se encontra com baixa densidade
demográfica e a intensa relação de vizinhança que determinam a facilidade da vigilância de
todos por cada um e do alastramento de informações pela via da fofoca, uma vez que um casal
homoafetivo passe a ser reconhecido na vida pública da cidade, o armário (como lugar
protegido para a vivência de um segredo) parece ser um lugar impossível.
Advogo que pensar o rural como um armário claustrofóbico parece combinar com
a noção de uma ruralidade imutável, que, como Jeca Tatu, leva a vida de cócoras, sem estar
atento às transformações do mundo. As histórias narradas revelam que as garotas estavam
260

submetidas à episteme moderna das sexualidades, devendo se decidir sobre uma identidade
sexual, como também tiveram que responder ao paradoxal comando que determina
simultaneamente o ato de fazer segredo e a confissão daqueles que amam o mesmo sexo.
Revelam também que, mesmo estando em uma pequena localidade rural, elas encontraram
suportes necessários para se assumirem como tal, quer eles fossem acionados através do
ambiente virtual ou no resto do mundo, a partir de amizades homo ou heterossexuais.
Em segundo lugar, parece ser importante compreender que a fuga lésbica para a
cidade talvez seja determinada muito mais por questões de gênero do que de sexualidade. A
baixa empregabilidade, os parcos salários e a dificuldade de autonomização financeira de uma
mulher em uma zona rural parecem ser propulsores mais fortes do que qualquer tipo de busca
de liberdade sexual, especialmente quando elas estão vivendo uma relação amorosa.
Em terceiro lugar, é preciso avaliar que a vinda para a cidade não determina que um
desses benefícios seja a integração à cena LGBTIA+, podendo ela ser organizadora de um
processo de isolamento social maior do que o vivido nas pequenas cidades rurais em que
viviam. A saudade sentida daqueles que por lá ficaram e a continuidade das amizades que por
lá foram estabelecidas indicam que o anonimato das grandes cidades, onde as pessoas parecem
não se importar com a vida dos outros, pode colaborar para o estabelecimento de relações bem
mais superficiais do que as adquiridas em seus lugares de origem. Embora os aplicativos de
relacionamentos tendem a nutrir os encontros com paqueras, é provável que estar disponível no
mercado amoroso concorra para um maior desejo de acesso aos guetos urbanos. Em qualquer
um dos casos, as possibilidades financeiras, estabelecem os limites e as possibilidades de acesso
aos lugares de sociabilidades.
Ainda em relação a esse metro normatividade do armário, também é importante
perceber que a migração não foi um passo necessário à anexação política a uma identidade
estigmatizada, outra ideia que ajuda a conceber o rural como o lugar da inércia e, neste caso, da
ignorância. Nas histórias por mim pesquisadas, apenas uma das trajetórias aproximou-se da
idealidade constituída em tais narrativas. E, ressalto, isso se deu de modo aproximado já que,
embora a cidade grande tenha oferecido a possibilidade de que uma garota passasse a exibir um
discurso cada vez mais politizado, a gênese de suas ideias foi um acontecimento surgido antes
de sua migração, quando ela ainda vivia na pequena localidade.
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