Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
INTRODUÇÃO
Soprado pelo Vento para chamar passarinhos e esticar os
horizontes
FÁBIO HENRIQUE NUNES MEDEIROS
TAIZA MARA RAUEN MORAES
A tradição viva
AMADOU HAMPÂTÉ BÂ
LINGUAGEM
Explicação
RUBEM ALVES
Palavra muda
ZEBBA DAL FARRA
PROCESSOS
LINGUAGENS
Teatro e contação de histórias
AUGUSTO PESSÔA
PROCESSOS
VERBETES
JÚLIO DE LÓ (SP)
LELIS (MG)
AGRADECIMENTOS
SOBRE OS ORGANIZADORES
SOBRE OS AUTORES
APRESENTAÇÃO
Contar histórias é uma arte ancestral, cujo fascínio sobre o ser humano
permanece, ao longo do tempo, colaborando para a consolidação do
imaginário coletivo e enredando narradores e ouvintes em uma mesma
trama. Desde a infância e por toda a vida, ela faz parte da construção da
identidade e da afetividade. Nesse sentido, a fabulação nos possibilita
experimentar o prazer de perceber o mundo e a existência por meio de
representações que nos levam a conhecer outras realidades, e a re letir,
transcender e desenvolver uma acuidade sobre o real, nos habilitando a
percebê-lo sob um olhar renovado.
Ainda hoje a arte da narrativa oral permanece extremamente viva
em culturas de povos como os indígenas, africanos, asiáticos e árabes. Esse
aspecto ressalta o papel capital que os contadores de histórias sempre
ocuparam na formação das sociedades, uma vez que, detentores da
sabedoria coletiva, eram e são os porta-vozes da memória, das tradições e
do imaginário dos grupos nos quais se inserem.
Walter Benjamin relata, no ensaio O narrador, que este retira as
histórias que conta da própria experiência ou da narrada pelos outros, e as
incorpora à experiência dos ouvintes. Em As mil e uma noites, clássico árabe
da literatura universal, as vidas de Sherazade e de outras mulheres do
sultão Shariar eram garantidas noite após noite à medida que as histórias
da rainha fascinavam o marido e carrasco, adiando sua sentença de matar
cada esposa após a consumação das núpcias. Obras seminais como essas
nos mostram, de diferentes modos, como o contar está intrinsecamente
ligado ao viver.
Pensar a contação de histórias sob diferentes perspectivas –
tradição, poética e interfaces – é a proposta deste livro. Nele, especialistas,
escritores e contadores de histórias provenientes de variados contextos
socioculturais oferecem suas re lexões, dentre as quais se destacam as de
Ariano Suassuna, Amadou Hampâté Bâ e Rubem Alves. O livro reúne,
ainda, relatos de experiências modelares e verbetes sobre o tema.
Sobretudo, Contação de histórias registra o empenho de contadores e
educadores na defesa de uma relevante causa social, visto que essa arte
comporta uma função política fundamental para a formação crítica do
indivíduo, possibilitando o despertar do interesse pela narrativa, pela
leitura e pelo livro. Soma-se a isso o empenho do Sesc no fomento da
contação em suas unidades, seja por meio do estímulo aos contadores, que
encontram espaço para desenvolver seu trabalho, seja ao proporcionar a
crianças e adultos a chance de conhecer narrativas de diferentes origens,
desfrutando da criatividade, do repertório e do encantamento que uma
história bem contada pode suscitar.
– Meu Pai, fiquei ouvindo o Vento contar uma história. Perdi a hora.
– Uma história? – interessou-se o Tempo, sempre em busca do que lhe fizesse menos
pesada a eternidade, droga de eternidade! – Conta-me e, se for realmente uma boa
história, não só te desculparei como te darei uma rosa azul que medrou há muitos
séculos […].
Senta-se a Manhã aos pés do Mestre, agita as fraldas do vestido de claridade, começa a
contar. No meio da história o Tempo adormece, mas a Manhã não se interrompe, pois
ao debulhar a narrativa parece-lhe escutar a voz cariciosa do Vento, vê a expressão de
súplica nos olhos. [JORGE AMADO]
Para ser lido com lupa: parêntesis: (A história que a Manhã contou ao Tempo para
ganhar a rosa azul foi a do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá; ela a escutara do
Vento, sussurrada com enigmática expressão e alguns suspiros – a voz plangente. Eu a
transcrevo aqui por tê-la ouvido do ilustre Sapo Cururu que vive em cima de uma
pedra, em meio ao musgo, na margem de um lago de águas podres, em paisagem
inóspita e desolada. Velho companheiro do Vento, o eminente Sapo Cururu contou-me o
caso para provar a irresponsabilidade do amigo: desperdiça-se o Vento em fantasias em
vez de utilizar as longas viagens pelo estrangeiro para estudar comunicação, sânscrito
ou acupuntura, assuntos de nobre proveito. O Sapo Cururu é doutor em Filosofia,
catedrático de Linguística e Expressão Corporal, cultor de rock, membro de direito,
correspondente e benemérito de Academias nacionais e estrangeiras, famoso em várias
línguas mortas. Se a narração não vos parecer bela, a culpa não é do Vento nem da
Manhã, muito menos do sapiente Sapo Cururu, doutor honoris causa. Posta em fala
de gente não há história que resista e conserve o puro encanto; perdem-se a música e a
poesia do Vento.) [JORGE AMADO]
Contar histórias é uma prática onipresente, assim como a leitura. Essas
práticas estão em todos os segmentos da humanidade por serem filhas da
comunicação, o elo perdido entre o homem e o animal. Contamos porque
lemos e lemos porque contamos, em um movimento circular. As histórias
só existem porque há quem as conte e quem as leia, dentro da tríade
mínima da comunicação: emissor, mensagem e receptor. Obviamente, as
expressões ler e contar não estão em um sentido restrito de um sistema de
decodificação alfabética, ou seja, entende-se ler como o ato de interpretar
os signos transmitidos, construindo um sentido comum. A expressão
“comunicação” deriva do latim e significa tornar comum, partilhar,
voltando, assim, à ideia de círculo, de ir e vir. Contudo, além desse grau de
familiaridade com a comunicação, o ato de contar histórias é também filho
da arte, que não deixa de ser comunicação, embora esta não seja a sua
principal característica, uma vez que a arte tem como princípio a estética.
Do ponto de vista das artes, a contação de histórias fica em uma
esfera difícil de observar, por constelar a arte do tempo. Qualquer tentativa
de falar de uma arte efêmera é apenas o início do fio do novelo que se
desenrolará na mente do leitor. E um livro, por mais robusto que seja, não
tem como contemplar todas as qualidades da arte efêmera, sobretudo por
ser ela arte do tempo presente.
Certa vez, Bartolomeu Campos de Queirós disse:
Mandei fazer uma casa de farinha, bem maneirinha que o vento possa levar
Oi passa o sol, oi passa a chuva, oi passa o vento
Só não passa o movimento do cirandeiro a rodar16.
[…] Quando a criança nascia e a parteira cortava o umbigo, o pai era chamado
pela comadre parteira, para enterrar o parto e logo depois fazer o cachimbo de
aguardente com mel para servir aos visitantes da parturiente.
Minha avó era uma boa contadora de histórias. Só que ela não contava as
histórias, ela as vivia. Ou melhor, talvez as histórias ganhassem vida na
vida que ela vivia. Era assim mesmo, um pouco claro e muito confuso.
Meus primos e eu não conseguíamos definir o que ela era. E quando a
víamos sorrateiramente sair rumo ao mato ficávamos atentos, pois
sabíamos que haveria algo novo para conhecermos naquele dia.
Vovó era muito estranha. Parecia um duende dos mundos mágicos.
Ou talvez uma fada. Ou talvez um gnomo. Meu avô a chamava de
“mistério” (Iba’arem ma buk). Quando perguntávamos o porquê, ele
desconversava dizendo que um dia iríamos saber. Eu ficava pensando que
mistério era o nome do meu avô, pois ele era muito esquisito, talvez mais
que a vovó.
O fato é que minha avó tinha alguns segredos que ela não permitia
que ninguém soubesse, e quem os conhecia não deveria contar nada,
jamais. Isso nos enchia de curiosidade. Meninos que éramos, queríamos
mais é conhecer as coisas de nossa família, por isso não desistíamos nunca
de querer saber. A gente sentia que vovó sabia de nossos movimentos e das
perguntas guardadas. Sempre que nos via, ela ria.
Vovó era muito estranha, já disse isso. Ela não falava com quase
ninguém. Ouvia todo mundo, mas poucas pessoas conseguiam tirar de sua
boca algumas palavras. Ela vivia em silêncio, mas parecia que vivia falando
com um ser invisível que habitava sua cabeça ou seu coração. Raramente a
víamos triste ou sem seu famoso sorriso de Mona Lisa nos lábios. Era
diferente, sedutor, enigmático para seu metro e meio de altura. E era por
isso que eu a seguia sempre que podia.
Estava eu, em uma ocasião, próximo ao igarapé. Brincava de pescar.
Subia e descia da canoa de meu pai que estava ancorada ali. Minha mãe
batia roupa mais adiante, sempre observando minha brincadeira. Algum
tempo depois vi um vulto que passava entre as árvores. Eu, no fundo, sabia
que era a vovó, mas fiquei com os pelos do corpo eriçados. Do alto dos
meus 9 anos, a curiosidade falou mais alto e segui meus impulsos de
menino-quase-homem e fui averiguar de quem se tratava. Fiz um sinal para
mamãe insinuando que iria subir mais um pouco para fazer xixi. Ela fez
apenas um sim com a cabeça, abrindo o caminho para a aventura. Deslizei
rapidamente em direção ao vulto. Abri espaço entre os galhos das árvores
baixas para não me deixar notar. À minha frente, a figura continuava
andando. Vez ou outra parava, olhando para as árvores, como se
conversasse com elas. Nessa hora eu queria ser uma abelha só para me
aproximar e ouvir aquele diálogo travado em uma língua estranha. Olhava
admirado para o semblante de vovó, que continuava sereno como sempre.
Um barulho despertou a minha atenção. Havia mais alguém por ali.
Quase me deitei no chão a fim de não me fazer notar. O segundo vulto foi
se aproximando de vovó. Fiquei pensando se devia gritar ou não para
avisá-la. A prudência me mandou ficar quieto e observar a cena.
Quem se aproximou da velha anciã não pude ver com certeza. Não
parecia gente, mas tinha forma de gente. Fiquei tremendo de medo e tratei
de voltar para perto de minha mãe. Quando cheguei lá ela perguntou se eu
tinha visto um fantasma. Respondi que sim, e ela apenas riu de minha
resposta. Continuou batendo roupa enquanto eu fiquei brincando de pescar
histórias.
Dois dias depois do ocorrido fui pego de surpresa. Mamãe falou que
minha avó queria me ver. Fiquei matutando sobre qual seria o assunto.
Tentei indagar a minha mãe, que apenas deu de ombros e ignorou minha
preocupação. Minha mãe também era estranha.
Quando cheguei à porta da casa de vovó estava um pouco nervoso.
Além de estranha, ela tinha o hábito de passar um tempão dentro de casa.
Quando eu ia visitá-la com meus pais via seu fogão de lenha todo cheio de
panelas de barro. Elas estavam sempre cozinhando alguma coisa que
parecia apetitosa. Vovó era excelente cozinheira e tinha sempre um
gostoso caldo de peixe para oferecer às visitas. Naquele dia, porém, eu
estava sozinho. Ali, na porta da frente, aguardando convite para adentrar.
Não demorou muito e minha avó pôs o lindo rosto para fora. Disse
simplesmente:
– Encontre-me hoje à tarde na curva do rio.
Uau! O que será que iria acontecer? Por que vovó fazia tanta
cerimônia para conversar comigo? O que ela me diria? Foram perguntas
que imediatamente surgiram na minha cabeça após aquele misterioso
convite.
Passei o resto da manhã em uma expectativa danada. Minha mãe até
notou que fiquei um pouco alheio aos meus afazeres, como se estivesse
com a cabeça na lua. Ela até me perguntou o que havia, e eu simplesmente
respondi que ia me encontrar com vovó.
Quando a hora chegou – e ela sempre chega –, corri para a curva do
rio. Sabia que aquilo era um modo de minha avó se referir ao lugar onde
havia uma pequena cascata na qual sempre nos reuníamos para tomar
banho, brincar ou simplesmente conversar.
Vovó já estava lá, sentada sobre uma pedra. Ao me ver, sorriu. Nada
disse, apenas indicou um lugar para eu me sentar e, quando tentei
perguntar algo, ela colocou o dedo sobre a boca e pediu que eu mirasse
para o lado do rio. Apenas isso. Passados alguns minutos, virou-se para
mim e disse:
– Meu neto está querendo saber sobre meus mistérios?
Fiquei assustado com a pergunta dela. Como sabia disso?
– Meu neto é curioso, e isso é bom! Os curiosos sempre encontram o
que procuram, e hoje vou dar um pouco para você. Não será muito, mas o
bastante para que meu neto consiga caminhar sozinho.
Era muita coisa para um menino-quase-homem – entender o que
estava se passando naquele momento. Deixei minha avó falar.
– Nosso povo sabe de onde veio. Sabe para onde vai. Tudo isso está
escrito na tradição de nossa gente desde o começo dos tempos. Não
precisamos saber ler as letras escritas da cidade. Tudo está escrito na
natureza. É preciso apenas saber ouvir.
– Minha avó tem palavras boas – eu disse, tentando me fazer de
entendido.
– Estou dizendo que é preciso saber ouvir. Meu neto precisa
aprender a ouvir também. As palavras precisam sair de nossa boca depois
de terem conversado com a natureza. É assim que vivo, meu neto. Por isso
você me vê muitas vezes saindo para a loresta. Vou lá aprender coisas que
ainda não sei.
– Você parece já saber tudo. Como faço para aprender também?
Vovó se ajeitou na pedra. Olhou para o igarapé que corria à sua
frente como se estivesse conversando com ele. Depois se voltou para mim e
disse:
– Não sei. Cada pessoa aprende o que precisa para viver bem. Aos
poucos você será conduzido aos conhecimentos de que precisa. O que
posso dizer agora é que meu neto precisa ser criança. Só isso. Tem que
treinar seus sentidos ouvindo os sons da tradição. Só isso. Tem que ouvir
as histórias de antigamente. Só isso. Tem que saber fazer silêncio. Só isso.
“Só isso?”. Quis perguntar, mas entendi que ela não falaria mais. Já
tinha dito tudo o que queria dizer, e eu havia ouvido o que precisava ouvir.
Só isso.
Minha mãe também contava histórias. Seu método era diferente. Ela
gostava de catar piolhos em minha cabeça. No começo achei que era
apenas um cuidado materno. Mas não era. Com o passar do tempo fui
entendo que ela me contava histórias enquanto perseguia meus piolhos
com seus dedos ágeis e certeiros.
Tudo acontecia de um jeito muito simples. Toda vez que eu
aprontava alguma travessura – briga com os colegas, desobediência a um
adulto ou desrespeito a alguém mais velho – invariavelmente ela me
pegava para tirar piolhos. Algumas vezes eu dizia que já não os tinha, mas
ela insistia. Bem mais tarde é que consegui juntar os pontos e atinar para
um fato comum: não havia mesmo piolhos. Aquilo não passava de uma
estratégia materna para “puxar minhas orelhas” por ter feito algo não
adequado. O legal desse “castigo” é que eu ficava ouvindo tudo aos
sussurros, porque minha mãe jamais alterava o timbre de sua voz ao falar.
Aquele momento era como ouvir música entoada por uma grande cantora
de ópera.
E que histórias ela me contava? Normalmente eram aquelas em que
alguns ancestrais de nosso povo haviam sido transmutados em seres
inferiores por terem quebrado regras ou desobedecido ao Criador. Foi
assim que surgiram as serpentes, as capivaras, os urubus, todos os que
haviam sido castigados por sua desobediência. Ela dizia:
– Quando fizer algo, pense sempre no seu grupo; pense no Criador,
que nos fez este mundo tão bonito; pense nos antepassados, que nos
deixaram tudo isso como herança. Não vamos desperdiçar o esforço deles,
não é mesmo?
Depois disso, dava duas palmadas em meu bumbum e me
dispensava para ir embora.
Mamãe gostava sempre de falar dos antepassados. Desde muito
pequeno ela repetia um dizer que muito me agrada hoje. Quando nos via –
meus irmãos, primos, cunhados – cansados ou cabisbaixos, por causa de
algo ruim que estávamos vivendo, ela nos dizia:
– Nenhum de nós tem o direito de desistir. Somos filhos de nosso
povo. Nossos antepassados penaram muito para que chegássemos até
aqui, e não podemos desrespeitar a coragem e a luta deles. Os jovens de
nosso povo têm que ser fortes e continuar essa história.
Acho que nunca tinha ouvido um discurso político tão bem
elaborado e verdadeiro. Minha mãe sempre teve uma opinião contundente
e firme, porque elaborada no convívio com as outras mulheres da
comunidade, que se reuniam constantemente para traçar os passos dos
filhos e dos maridos. E, mesmo que eu ainda fosse uma criança, nunca era
deixado de lado nessas conversas. Fazia parte do jeito de educar de nossa
gente permitir que as crianças participassem de todas as atividades e
conversas comunitárias. Ainda que não entendesse metade do que
falavam, podia ouvir, ver, constatar e até opinar quando conviesse.
Parte do que sei hoje sobre contar histórias aprendi no colo de
minha mãe. Talvez me lembre pouco das histórias contadas porque era
comum adormecer nos primeiros acordes de sua voz, mas a metodologia
que me ensinou, enquanto eu dormia, ficou dentro de mim, e talvez hoje a
pratique enquanto crio e conto minhas próprias histórias.
Embora tenha crescido em uma aldeia, não foi nela que morei desde
sempre. Minha primeira infância foi vivida em comunidade, e, sob um céu
de estrelas ainda possível de contemplar, recebi minhas primeiras
instruções, minhas primeiras lições.
Um pouco mais tarde fiquei entre a aldeia e a cidade. Tinha de
estudar, segundo as orientações da época. Eram tempos militares, e havia
uma política pública segundo a qual todos os indígenas – e as demais
crianças – tinham de ir para a escola aprender a ser alguém, o que significava
“aprender a ser gente civilizada e abandonar o estado selvagem”. Ou seja,
entrar na fôrma.
Fui para a escola na cidade grande. Lá encontrei pessoas que tinham
a mesma cara que a minha. Muitas delas já eram civilizadas. Elas tinham de
me ensinar a ser assim também. Não gostei da escola. Pensei que ali eu
poderia continuar sendo eu mesmo. Engano. Eu tinha de ser outro. Só
percebi isso quando meus colegas civilizados passaram a curtir com a
minha condição de selvagem. Nunca mais gostei de ir à escola. Obrigado,
fui todos os dias. Talvez minha sorte tenha sido estudar em uma escola que
era muito grande, com espaços enormes que me permitiam matar a
saudade de casa.
Por muito tempo tentei resistir, lembrando as palavras de minha
mãe. Era muito difícil. Um dia capitulei. Resolvi tornar-me civilizado para
fugir dos apelidos, da violência, dos maus-tratos, da falta de amizade que
me torturava. Foi um grande engano. Foi também minha salvação.
Nas férias escolares eu voltava para a aldeia. Eram meses de muita
alegria e satisfação. Brincava, corria na mata, nadava no igarapé, saía para
o roçado, ia ao mangue tirar caranguejos, subia nas árvores, vivia histórias
imaginadas. Era a minha recaída. Eu gostava de pensar que eu era dois: o
menino da cidade e o curumim da mata. Duas roupas, duas pessoas, duas
gentes. Todo mundo da aldeia achava que eu estava bem na cidade, pois
nada dizia contra a minha estada por lá. No entanto, dois olhos me
observavam de longe e logo decifraram a minha escrita invisível: meu avô.
Foi assim. Eu estava próximo ao igarapé quando ele se aproximou.
Olhou para mim e convidou-me para tomar banho. Estranhei o convite,
mas o segui por um caminho que não conhecia bem. Levou-me até um
local que não conhecia e mandou que eu me sentasse sobre um tronco de
árvore caída. Obedeci sem pestanejar. Era assim que tinha aprendido. Ele
me olhou fixamente e disse que eu deveria escutar as palavras sábias do
rio. Não entendi nada, mas obedeci. Fiquei por algum tempo
contemplando as águas cumprindo o seu destino. Elas não retrocediam,
apenas avançavam para algum lugar que eu não conhecia.
Depois de alguns instantes ele me perguntou o que o rio me havia
dito. Respondi que não tinha ouvido nada. Ele não se impacientou.
Simplesmente mandou que eu continuasse a ouvi-lo por mais algum
tempo. E assim o fiz. Não adiantou. O rio ficou mudo para mim. Meu avô,
no entanto, garantiu-me que ele havia conversado comigo. Perguntei o que
ele havia dito. Vovô passou a mão em minha cabeça e fez o seguinte
discurso:
– O rio falou com você, meu neto. Ele sempre fala com a gente. Só
que para ouvi-lo é preciso estar vazio de pensamentos e preocupações.
Sinto que sua cabeça não está concentrada nas palavras do rio, mas precisa
saber o que ele disse a você.
Fiquei esperando, com certa desconfiança.
– Você já viu o rio ficar parado quando ele encontra alguma
dificuldade? Já viu o rio ficar chorando porque encontrou uma árvore caída
em seu leito? Nunca viu e nunca verá. E isso acontece porque, dentro dele,
tem uma voz que fica lembrando que, se ele parar diante das dificuldades,
jamais cumprirá sua missão nesta vida. E qual é a grande missão do rio?
Encontrar-se com o Grande Rio e mergulhar em suas águas. Somente
nesse momento o rio se realiza. Mas, se ele ficar se lamentando diante das
agruras da vida, o que restará a ele? Frustração, fraqueza, pânico. Isso tudo
vai fazê-lo apodrecer e perder o que ele tem de mais precioso: a pureza que
atrai as pessoas para o seu leito, traz os animais para beber água e dá
alegria a todas as formas de vida. Será que isso é motivo suficiente para o
rio continuar a sua jornada?
Sabia que o meu velho avô não queria uma resposta. Aquele era seu
jeito de falar. Eram perguntas retóricas para prender a atenção. Ele
sempre conseguia. Esse era o momento da pausa em que ele olhava para o
público (nesse caso, eu) para se certificar de que sua mensagem estava
sendo bem entendida. Eu já sabia disso e fiquei esperando que ele
continuasse.
– Meu neto está sofrendo as dores da cidade grande. Está
aprendendo que lá o sistema é muito diferente do nosso. Lá todo mundo só
pensa em si mesmo, tornando cada pessoa uma inimiga. Para elas
ninguém é bom, ninguém é feliz se não for igual a elas. Pense, meu neto,
que pessoas assim são como o rio que apodrece. Quem vai querer estar em
um rio podre? O que meu neto precisa aprender é a lição do rio: ir sempre
em frente, enfrentar os obstáculos, não esquecer quem é e de onde veio.
Isso cria na gente um sentimento de gratidão e de pertencimento. Isso
ajudará você a encontrar sua própria história, aquilo que o move neste
mundo.
Dito isso, ele se jogou nas águas do rio e me convidou a fazer o
mesmo. Depois desse dia nunca mais fui o mesmo na escola. Havia
decidido ser um rio vivo, aquele que corre sem medo dos desvios ou dos
obstáculos.
Meu avô me contou muitas histórias ainda. Convivemos juntos
alguns anos antes de ele partir e se juntar à nascente do Tapajós. Acredito
que ele foi a síntese perfeita e existencial do que significa pertencer a um
povo, ainda que em outros ambientes e lugares. Sua lembrança ainda me
comove, alimenta e inspira.
1 Texto publicado no livro Das coisas que aprendi, Lorena: Uka Editorial, 2014.
O contador de histórias tradicionais:
velhas e novas formas de narrar
EDIL SILVA COSTA
SABER E CONHECIMENTO
[…] branca, octogenária ama da casa do meu Pai, e até falecer, na minha
companhia. Nascida e criada na faixa litorânea do Rio Grande do Norte, de
onde nunca saiu, descendente de lavradores, sem saber ler e escrever, nem
mesmo “assinar o nome” como o fazia Sancho Pança, representa fiel e
legitimamente a tradição oral na autenticidade do fidelismo mnemônico.
Ouvi-la é pesquisar as permanentes da literatura popular, identificar o que
existe, nos processos modificativos das variantes e acréscimos locais. […]
Outro aspecto será constatar a percentagem dos contos indígenas,
africanos e europeus na confidência dessa Sherazade humilde e analfabeta. A
região em que ela nasceu e viveu as primeiras décadas foi terra dos indígenas
Tupis e devia possuir boa in luência negra a deduzir-se pela proximidade do
vale do Ceará-Mirim, zona dos engenhos de açúcar, com vasta escravaria
durante o Império8.
Com esses limites, a pesquisa dos contos como folclore cria uma
interdição quanto ao estudo do presente da sua enunciação, uma vez que
passa a ser desinteressante o contexto da performance. Recorrendo a H. R.
Jauss, Paul Zumthor37 reafirma, contudo, a necessidade de “pressupor
sempre, na medida do possível, as perguntas a que a obra respondia em
seu tempo, antes daquelas que lhe fazemos hoje”.
Tendo em mente a provisoriedade histórica do texto, esta leitura
reconhece o caráter moralizante do conto e o seu vínculo com uma
universalidade estabelecida na cultura ocidental, mas procura sentidos
que possam advir das circunstâncias históricas. Com essa perspectiva,
cria-se uma tensão originada no confronto entre tradição e modernidade,
peculiar de uma sociedade ainda presa a tradições coloniais enraizadas na
Idade Média e, ao mesmo tempo, já sob o domínio do mundo da escrita e
urbano.
No texto do conto coletado, o narrador apresenta os fatos e
arremata-os com a moral da história. Mas é aos estudantes, por força da
iniciativa da interlocução, que cabe a mediação que possibilita o
entendimento das circunstâncias históricas. Esses representantes do
mundo urbano, da escrita, veem com estranhamento a relação entre a voz
e a gestualidade que a representa – uma relação absolutamente aberta,
determinante da imprevisibilidade de significados.
O espanto dos estudantes tem origem na racionalidade estabelecida,
em princípio, no mundo da escrita, em que os significados têm limites,
ainda que dentro de um amplo leque de possibilidades. Mas a vitória do
leiteiro abre uma fenda nesse mundo já todo convencionado e aponta para
um passado apenas imaginável, não necessariamente universal. Entre a
imaginação criadora e o registro das formas residuais da tradição, assim
como graças à sua atualização por meio da performance, abre-se, portanto,
um método de colaboração crítica às formas de construção permanente do
patrimônio cultural brasileiro.
1 Jerusa Pires Ferreira, “Posfácio”, in: Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura”
medieval, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 293.
2 Paul Zumthor, Histoire littéraire de la France médiévale (VIe-XIV e siècles), Paris:
PUF, 1954.
3 Jerusa Pires Ferreira, “Posfácio”, in: Paulo Zumthor, op. cit., pp. 288, 290 e 295.
4 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1984.
5 Idem, Seleta, Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
6 Américo de Oliveira Costa, “Perfil de Luís da Câmara Cascudo”, in: Luís da
Câmara Cascudo, Seleta, op. cit., pp. VI-X.
7 Luís da Câmara Cascudo, Trinta “estórias” brasileiras, Lisboa: Portucalense, 1955.
8 Idem, Seleta, op. cit., pp. 39-40.
9 Ibidem, p. 40.
10 Ibidem, p. 41.
11 Em vários momentos da sua vasta obra, o intelectual Câmara Cascudo deixa
transparecer que a posição social privilegiada permitiu-lhe a apresentação de
elementos para a construção da sua própria biografia, que é usada como
ponto de apoio para reafirmar uma tradição na qual se insere a sua vida
pessoal. Cf., a esse respeito, Humberto Hermenegildo de Araújo, “‘Um Brasil’:
perspectivas de Câmara Cascudo e de Gilberto Freyre”, in: Leituras sobre
Câmara Cascudo, João Pessoa: Ideia, 2006, pp. 27-36.
12 Luís da Câmara Cascudo, Seleta, op. cit, pp. 41-3.
13 Ibidem, p. 45 (grifo meu).
14 Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval, op. cit., p. 17.
15 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit., p. 17.
16 Ibidem, p. 29.
17 Paul Sébillot, Littérature orale de la Haute-Bretagne, Paris: Librairie Orientale et
Américaine, 1913.
18 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit., p. 24.
19 Idelette Muzart F. dos Santos, Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e
o movimento armorial, Campinas: Unicamp, 1999, p. 16.
20 Paul Zumthor, Introdução à poesia oral, São Paulo: Hucitec, 1997.
21 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit.
22 “Em 1910, Antti Aarne publicou Verzeichnis der Marchentypen, traduzido e
ampliado pelo norte-americano Stith Thompson, em 1928: The Types of the Folk-
Tale, A Classification and Bibliography”. Segundo Câmara Cascudo, Antti Aarne
reuniu 2.399 motivos-tipos (os assuntos que eram os enredos dos contos mais
conhecidos na Europa). Stith Thompson fixou, pelos cálculos cascudianos,
24.260 elementos. Cf. Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit.,
pp. 243-4.
23 Luís da Câmara Cascudo, Contos tradicionais do Brasil, São Paulo: Global, 2000.
24 Idem, Os melhores contos populares de Portugal, Rio de Janeiro: Ediouro, 1969.
25 Câmara Cascudo discorda da classificação de Sílvio Romero, que se orientava
pelas possibilidades de origem étnica: “Dizer que tal conto pertence a tal raça
é impossível. Os contos são tecidos cujos fios vieram de mil procedências.
Cruzam-se, recruzam-se, combinam-se, avivados, esmaecidos, ressaltados na
trama policolor do enredo”. Cf. Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no
Brasil, op. cit., p. 257.
26 Ibidem, p. 255.
27 Ibidem, p. 242.
28 Luís da Câmara Cascudo, Seleta, op. cit, p. 43.
29 Ibidem, p. 44.
30 Os elementos enumerados a seguir, no parágrafo, têm por base o texto de
Andreas Pfersmann, “O debate sobre a prosa em notas: fragmentos de uma
teoria da observação”, in: Seplic – Seminário Permanente de Literatura Comparada,
Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, n. 8.
31 Ibidem, p. 13.
32 Luís da Câmara Cascudo, Seleta, op. cit., p. 44.
33 Ibidem, pp. 45-6.
34 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit., p. 239.
35 Ibidem, p. 242.
36 Idem, p. 248.
37 Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval, op. cit., p. 23.
A Compadecida e o romanceiro nordestino1
ARIANO SUASSUNA
Em 1947, escrevi minha primeira peça, que era, também, a primeira ligada
ao Romanceiro Popular Nordestino: Uma mulher vestida de Sol. Ganharia,
com ela, um concurso instituído pelo Teatro do Estudante de Pernambuco.
E, saindo publicado o resultado do concurso no começo do ano seguinte,
1948, dei, à Folha da Manhã, do Recife, uma entrevista na qual, entre outras
coisas, afirmava:
Saliento todos esses fatos para mostrar como minhas ligações com o
Romanceiro são bastante antigas e, ao mesmo tempo, como mantive,
nisso, uma certa coerência desde o tempo dos 20 anos até agora. Cito mais
dois fatos, para corroborar a afirmação. O primeiro é de 1958, quando
escrevi para uma certa “Coletânea da Poesia Popular Nordestina” –
publicada pela revista Deca em 1964 – uma introdução2 na qual propunha o
estudo do Romanceiro, dividindo-o em dois grandes grupos, o da Poesia
improvisada e o da Literatura de cordel – nome mais popularizado e
melhor do que aquele proposto no meu ensaio, por in luência de Gustavo
Barroso (Poesia tradicional, ou de composição literária). O que ainda hoje
considero válido, nessa introdução, é a tentativa de distribuir e classificar
os folhetos e romances nordestinos em seis ciclos principais – o ciclo
heroico, trágico e épico; o ciclo do maravilhoso; o ciclo religioso e de
moralidades; o ciclo cômico, satírico e picaresco; o ciclo histórico e
circunstancial; e o ciclo de amor e fidelidade3. Não sou um erudito nem
tenho espírito muito sistemático. Não é, portanto, por pura vaidade que
empreendo essa distribuição, de valor meramente didático. O que aí está é
somente uma sugestão, da qual poderemos partir, todos nós que nos
interessamos pelo assunto, para uma sistematização dos estudos sobre o
Romanceiro. Eu mesmo parti, aliás, de uma ideia de Gustavo Barroso,
exposta, se não me engano, em Ao som da viola, ideia que acredito ter levado
um pouco adiante, estando pronto a reformular qualquer coisa diante de
sugestão melhor. Creio, porém, ainda hoje, que, no todo, Gustavo Barroso
tinha razão e estava em caminho mais correto do que aqueles que
distribuem os folhetos nordestinos em torno não de assuntos, e sim de
personagens, como o “ciclo de Antônio Silvino”, o “ciclo de Lampião”, o “ciclo
de padre Cícero” etc. Os eruditos ibéricos agiram assim em relação ao seu
Romanceiro, com o “ciclo do Cid”, o “ciclo dos Infantes de Lara” etc. Mas é
que o Romanceiro ibérico só conta quase que só com o ciclo que, entre nós,
seria o heroico. Por isso, é explicável que assim fizessem. Mas o nosso
Romanceiro é muito mais rico e variado, principalmente porque é vivo e
atuante, cheio de força e vitalidade nos dias de hoje, e não somente uma
sobrevivência arcaica, como lá.
Finalmente, a data mais recente de minhas insistentes afirmações
sobre a importância do Romanceiro como fonte para uma Literatura
erudita brasileira é de 1967, e a afirmação foi feita na revista Cultura, do
Rio, a propósito do centenário de nascimento de Rodrigues de Carvalho.
Eu falava sobre esses ciclos do nosso Romanceiro e dizia que dentro deles
tudo cabia:
É todo um cortejo da vasta humanidade que desfila livremente por aí, na força
da Literatura coletiva, enquanto a nossa Literatura de salão, acadêmica,
acanhada, sufocada de preconceitos e de bom gosto, se estiola, sem fôlego, no
formalismo e no individualismo. Baste um pormenor para mostrar a
diferença: quantas obras não já deixaram de ser escritas por causa da
preocupação mesquinha, orgulhosa e estéril da criação individual? O
Cantador nordestino não se detém absolutamente diante dessas
considerações: apropria-se tranquilamente dos filmes, peças de teatro,
notícias de jornal e mesmo dos folhetos dos outros. Que importa o começo se,
no final, a obra é sua? Ele, depois de tudo, acrescentou duas ou três cenas,
torceu o sentido de três ou quatro outras, de modo que a obra resultante é
nova. Não era assim que procediam Molière, Shakespeare, Homero e
Cervantes? […] Os Cantadores procedem do mesmo jeito. Há, mesmo, uma
palavra que, entre eles, indica o fato, o verbo versar, que significa colocar em
verso a história em prosa do outro. Quando Shakespeare escreveu Romeu e
Julieta não fez mais do que versar as crônicas italianas de Luigi da Porto e
Bandello.
Assim, sendo essas as minhas preocupações, não admira que Uma
mulher vestida de Sol e o Auto de João da Cruz fossem dois marcos no caminho
de identificação entre meu trabalho de escritor e o Romanceiro. De fato,
porém, se de ambas essas tentativas resultaram peças que não renego, foi
somente em 1955, com o Auto da Compadecida, que realizei pela primeira vez
uma experiência satisfatória de transpor para o Teatro os mitos, o espírito
e os personagens dos folhetos e romances, aos quais se devem sempre
associar seus irmãos gêmeos, os espetáculos teatrais nordestinos,
principalmente o Bumba meu boi e o Mamulengo. É que o Romanceiro
Popular Nordestino, dentro daquelas características de “Grande
Romanceiro Moderno da Língua Portuguesa” que Thiers Martins Moreira
com justiça lhe atribui, só se completa com a parte teatral, formada por
esses espetáculos, com seus mitos, figuras fabulosas, histórias e
personagens tradicionais. A interpenetração, a in luência mútua existente
entre a Literatura de cordel e o Mamulengo ou o Bumba meu boi, por
exemplo, é de tal modo evidente, que um exame superficial é bastante para
demonstrá-la. Quanto aos tipos, basta lançar uma vista sobre o ciclo
heroico ou o ciclo cômico, satírico e picaresco – o “ciclo do herói sagaz”,
como o mesmo Thiers Martins Moreira gosta de chamar. O “Pedro
Quengo” e o “João Grilo” do Romanceiro, o “Benedito” e “O Negro
Preguiçoso” do Mamulengo, o “Mateus” e o “Bastião” do Bumba meu boi
são, todos, variantes do mesmo pícaro que herdamos da Literatura ibérica
de origem popular e que, lá também, tanto se parece com os graciosos do
Teatro de Calderón de La Barca ou Lope de Vega. O Sancho Pança, do Dom
Quixote, também é da mesma família.
Foi, portanto, dessa raiz popular do Romanceiro e dos espetáculos
populares do Nordeste que surgiu o Auto da Compadecida. Recentemente,
em artigo publicado na revista Comentário (4º trimestre de 1969), Anatol
Rosenfeld escreveu que o Auto da Compadecida se apoia
[…] na tradição católico-didática dos fins da Idade Média, dos milagres e dos
famosos autos de Gil Vicente. É a esta tradição principalmente, não tanto à
in luência de Claudel e ainda menos de Brecht, que a peça certamente deve o
seu caráter épico e o jogo dirigido ao público, jogo acentuado pela intervenção
de um comentador e pelos aspectos fortemente circenses e populares. Uma
grande cena que representa o tribunal celeste e na qual a Virgem Maria se
compadece dos pecadores retoma uma velha tradição do teatro cristão.
Suassuna […] conseguiu fundir […] o legado católico, os intuitos de crítica
social e o folclore nordestino.
O Poeta é um repórter
das ocultas tradições,
revelador dos segredos,
guiado por gênios bons,
Pintor dos dramas poéticos,
em todas composições.
[…] com o Auto da Compadecida, […] realizei pela primeira vez uma experiência
satisfatória de transpor para o Teatro os mitos, o espírito e os personagens
dos folhetos e romances, aos quais se devem sempre associar seus irmãos
gêmeos, os espetáculos teatrais nordestinos, principalmente o Bumba meu
boi e o Mamulengo”3.
NAU CATARINETA
Viagens de marinheiros
Pelejas de navegantes
Dança a Nau Catarineta
E seus marujos brincantes
Alegrando nosso povo
Com casos hilariantes.
É Chegança, é Marujada
Folguedo pra se dançar
É Barca na Paraíba
Pra muita gente encantar
Que conta histórias fantásticas
Vividas em alto-mar.
Um dos folguedos mais fantásticos é o teatro de mamulengo, que
também é feito por meio de passagens, ou seja, pequenas cenas que
narram, entre outras, histórias relativas ao comportamento humano, com
muita graça, ironia, picardia, pancadaria e música, que enfeita e alegra
ainda mais todo o brinquedo.
TEATRO DE MAMULENGO
Um folguedo dos mais fenomenais
Que é teatro, é dança e improviso
Onde o mestre trabalha várias horas
Cavucando as veredas do juízo
Pra tirar das entranhas das pessoas
Sua paga maior que é o riso
Seu Mané Pacaru, dona Quitéria
Com Simão, Marieta e muito dengo
Por detrás da empanada a bonecada
E o artista que usa mãos e quengo
Pra fazer a plateia delirar
No teatro feliz do mamulengo
A história começa com João Setembrino, mais conhecido como João Doido,
recebendo alta do manicômio em que esteve internado por vários anos. O Dr.
Damião chama a enfermeira e pergunta se o paciente já está pronto para o
teste final que o fará receber a liberdade. Ela diz que sim e manda João Doido
subir. Ele sobe todo envergonhado e o doutor faz umas perguntas
enigmáticas, por exemplo: “Seu João, um pato vai subindo uma ladeira, ele
bota um ovo, o ovo desce ou sobe?”. João Doido pede ajuda à plateia e
responde que pato não bota ovo, mas sim a pata. Dr. Damião faz outras
perguntas e por fim concede alta, que deixa o paciente muito feliz.
João Doido sai eufórico do hospital e vai procurar um trabalho, pois
precisa ganhar dinheiro para viajar até a casa dos pais. Aparece um turco
procurando uma pessoa destemida para desenterrar uma botija ganha em
sonho, mas que ele não tem coragem de arrancar, pois está dentro do
cemitério e o serviço tem de ser feito à meia-noite em ponto. Ele promete
ainda que dará metade do tesouro para o corajoso que o ajudar na sinistra
missão. O sanfoneiro chama João e diz que arranjou um trabalho meio
perigoso para ele. João Doido conversa com o turco e aceita a empreitada sob a
promessa de ganhar metade do conteúdo da botija. Quando é meia-noite ele
vai ao cemitério e começa a cavar no local indicado pelo gringo. Durante a
cavação ele vai tirando coisas, e dentre elas ele arranca a morte e uma figura
horrenda de duas caras. Livra-se das duas à base de cacetadas e por fim
encontra o tesouro esperado. Quando procura o turco para entregar a
mercadoria e receber a sua parte, fica decepcionado, pois o “patrão” diz que
não vai dividir nada com ele. João Doido, com muita raiva, pede ajuda à
plateia, que fica ao seu lado contra o gringo mentiroso. O farsante reclama,
mas a vontade do público prevalece, e ele deixa o recinto raivoso e
praguejando contra todos.
Nesse momento tem início a grande saga de João Setembrino em
direção à casa dos pais, dona Mariquinha e seu Odilon. Até ele chegar lá, passa
por muitas situações problemáticas e vai resolvendo algumas com parte de
sua fortuna, ajudando necessitados e melhorando a vida de muitos. Por fim,
chega à casa desejada, encontra a família, uma antiga namorada, se casa e vive
muito feliz.
Essas histórias são parte de um universo riquíssimo, de narrativas
maravilhosas do imaginário popular que estão não só no teatro, mas na
literatura de cordel, na música e, principalmente, na boca do povo.
A literatura de cordel está repleta de histórias de príncipes e princesas,
de heróis e anti-heróis, de cavaleiros lutando com dragões para salvar
donzelas presas em torres inacessíveis, de monstros e assombrações, e
diversos outros assuntos. São mais de 90 mil títulos, a maioria histórias
fantásticas, hilárias, lúdicas.
A música também conta histórias: vejamos, por exemplo, “Geni e o
zepelim”, de Chico Buarque de Holanda, que conta a história de uma
personagem que se prostitui desde criança e por isso é odiada pela
comunidade, que, por ironia do destino, é salva por ela da total destruição.
Outro exemplo é “Serafim e seus filhos”, de Ruy Maurity e José Jorge, que
conta a história de uma família que vive sob tragédias, incluindo a morte dos
irmãos por Lourenço, o mais novo, que vira lobisomem. Além de tudo, o pai
ainda morre e reencarna sete vezes, até abrir caminho para o paraíso.
Mais uma história bonita e triste é contada pela música “Amanhã eu
vou”, composta em 1951 por Beduíno e Luiz Gonzaga, que narra a história de
Rosabela, uma moça que é encantada pela carimbamba, uma ave misteriosa
que cantava durante a noite entre as taboas de um lago mal-assombrado.
Rosabela escutou seu canto inebriante e se afogou nas águas escuras do lago,
desaparecendo para sempre – essa é uma das histórias que preparei para o
novo livro, Histórias que o povo conta.
Sobre histórias contadas por meio da música, gostaria também de falar
das modas de viola cantadas pelas duplas caipiras do Sudeste, do Sul e do
Centro-Oeste do Brasil, as canções de vaqueiros cantadas pelas duplas de
aboiadores e as de amor interpretadas pelos violeiros repentistas nordestinos.
Essas canções, na sua maior parte, narram histórias emocionantes como
“Cabocla Tereza”, “Pingo d’água” e “História de um prego”, de João Pacífico;
“Menino da porteira”, de Teddy Vieira e Luizinho, da dupla Luizinho e
Limeira; “Chico Mineiro”, de Tonico e Francisco Ribeiro; e tantas mais que
preencheriam um grosso volume. Já entre as canções de vaqueiros
encontramos várias histórias, como “Ela não me quis” e “O velho Jacinto
Machado”, de Vavá Machado e Marcolino, dupla de aboiadores de Garanhuns
(PE); e “Pranto e morte de um vaqueiro”, de Galego Aboiador. Os violeiros
repentistas interpretam verdadeiras joias musicais em forma de histórias, e
aqui cito algumas: “O velhinho do roçado”, de Expedito Sobrinho; “A canção
do lenço”, de Severino Pelado; e “Nas portas dos cabarés”, do Cego Oliveira.
Para fechar este parágrafo, queria citar a triste e emocionante narrativa de
Patativa do Assaré sobre o êxodo rural do nordestino para São Paulo: “A triste
partida” é uma obra-prima imortalizada pelo rei do baião Luiz Gonzaga.
Os poetas populares também são mestres na arte de contar histórias por
meio de seus belos, lúdicos e engraçados poemas, como “A bala de ouro”, de
Téo Azevedo; “Eu e Vicença” ou “Me enganei com minha noiva”, de Luiz
Campos; “O abilolado”, de Chico Pedrosa; “Matuto no fitibó”, de José
Laurentino; “Festa de inleição”, de Pompílio Diniz, e muitos mais. Reproduzo
aqui o poema “Matuto no fitibó”, do poeta paraibano José Laurentino, que
conta o caso de um caipira que participou de um jogo de futebol e se deu
muito mal. Escolhi esse texto pela sua linguagem matuta, pela narrativa
engraçada e pelo tema, pois o futebol é um assunto sempre em plena
evidência e uma das maiores paixões do nosso povo5.
“MATUTO NO FITIBÓ”6
Hoje o pessoá do mato
Já tá se acivilizando
Já tem rapaz istudando
Pras bandas da Capitá
Já tem moça qui namora
Cum us imbigo de fora
Eticetra coisa e tá.
E nu paito da fazenda
Mandaro butá duas barra
E eu fui ispiá a farra
Do lote de vagabundo
Que quando vi, afroxei
Acredite qui eu achei
A coisa mió do mundo?!
Aí o jogo começou
Com um juiz bom e honesto
E por siná era Hernesto
O nome do apitadô
Que, metido a justiceiro
Pra mode o jogo pará
Bastava a gente chutá
A cara do companheiro.
PASTORIL
Uma dança bem bonita
Toda enfeitada de fita
Que veste cetim e chita
Com graciosas mocinhas
Que dançam com todo amor
Cânticos de paz e louvor
Pra Jesus o Salvador
As queridas pastorinhas.
Esse é o Pastoril
Encarnado, azul anil
Folguedo desse Brasil
Belo, rico, artesanal
Das pastoras atraentes
Que encantam todas as gentes
Brincando nas noites quentes
Do nosso alegre Natal.
CONSIDERAÇÕES
Contar histórias é um costume milenar, e grande parte do
conhecimento humano tem sido transmitida de geração a geração pelas
narrativas orais e escritas. Os fatos históricos, ou seja, os acontecimentos
que marcam e modificam o comportamento da humanidade, são
estudados e se incorporam à história como ciência. Já as histórias
fantásticas e imaginárias, criadas por uma pessoa ou pelo inconsciente
coletivo, fazem parte do acervo da arte e estão presentes nas culturas de
todos os povos, contribuindo também com mudanças de comportamento
de indivíduos e grupos sociais.
Lembro muito bem que, quando era menino lá em Recife, as pessoas
tinham medo de sair de casa nas noites de lua cheia por causa do
lobisomem. Vilarejos inteiros fechavam as portas por esse mesmo motivo.
Conheci também muita gente que não entrava no mato para fazer
qualquer coisa sem antes colocar um pedaço de fumo em cima de uma
pedra para agradar a Comadre Florzinha, que é a Caipora lá em
Pernambuco. São contos, fábulas e lendas que estão nos livros e na boca do
povo, prontos para serem lidos, narrados, ouvidos e vividos. Histórias de
bruxas, de fadas, de personagens exóticas e fantásticas, que encantam,
assombram e fazem as pessoas viverem o mundo imaginário da fantasia.
Contar histórias é criar e alimentar a fantasia dentro do imaginário
do ser individual e do ser coletivo, abrangendo o consciente e o
inconsciente em todos os graus de intelectualidade, em todas as idades,
em todos os povos e culturas. É transmitir saberes, conceitos, ilusões,
realidades e tudo mais que se possa imaginar para formar e transformar o
comportamento do ator social.
O contador de histórias sempre teve grande importância no
desenvolvimento do pensamento humano, tanto por meio da oralidade da
escrita como por todas as formas de manifestação do pensamento, pois as
histórias estão na boca das pessoas, dentro dos livros, de fato, mas estão
também em suas danças-narrativas, seus folguedos, suas brincadeiras,
suas manifestações populares, sua cultura.
Hoje existem vários tipos de contadores de histórias, e o papel de
cada um varia significativamente. Alguns se especializam na área da
educação, seja formal ou informal, enfantizando as questões
metodológicas e pedagógicas, com o objetivo de transmitir determinados
conteúdos para que essa prática possa auxiliar o processo educacional.
O contador de histórias de hoje não é mais somente o avô, a avó, o
pai, a mãe ou qualquer outro familiar. Até mesmo pela dinâmica da vida
contemporânea, é também o professor, o mediador de leitura, o ator etc.
Geralmente, aqueles que se profissionalizam recorrem a cursos livres, que
são oferecidos por outros contadores atuantes e até por instituições
culturais ou de ensino, e não são mais ou menos importantes do que os
contadores populares, conhecedores de suas próprias metodologias e
recursos. Todos são guardiães de sua sabedoria passada de mão em mão, e
muitas vezes de olho a olho.
Hoje são contadas histórias para públicos infantis, adultos e mistos,
e os contadores profissionais são contratados pelas mais diversas
agremiações para apresentar suas narrativas de várias formas, com os
mais diversos conteúdos, usando a música, a dança e os elementos
plásticos como auxiliares do processo, a fim de que as contações se tornem
espetáculos que encantem, deveras, as plateias. Há um mercado para essa
prática, mas não podemos comparar esse contador de histórias com os
contadores da cultura popular.
Não é difícil relacionar os folguedos com o ato de contar histórias,
pois o folguedo em si é pura narrativa dramatizada. É só observar as
narrativas dos gestos dos brincantes, das suas indumentárias, dos seus
adereços, expressões, do ritmo dos corpos e dos instrumentos, de todos os
elementos visuais e sonoros etc.; tudo está cheio de narrativas. E também
das narrativas de vida de cada brincante, que estão entrelaçadas às
narrativas das vidas das personagens representadas, vividas.
Contar histórias é falar com o corpo todo, falar de amor, ódio,
alegria, tristeza, medo, angústia, solidão, ternura, carinho e todos os
sentimentos inerentes ao ser humano, que sonha para viver e vive para
sonhar; dentro de um mundo real e imaginário, em que a fantasia se
mistura com a realidade, dando ao contador e à plateia a oportunidade de
um momento mágico, quando o pensamento voa e a imaginação se
estabelece como realidade dentro de um fragmento de tempo que nos
torna, simplesmente, felizes: BRINCANTES.
1 Essas expressões são complementares: onde tem folguedo tem brincante.
Brincante é aquele que brinca, na cultura popular, e o folguedo é uma
brincadeira-dança dramática popular. No Norte e no Nordeste é grande a
quantidade de folguedos, que também se estendem por várias partes do
Brasil, mas com outras denominações. De modo geral, são uma representação
dramática popular de cunho lúdico, mas também religioso, ritualístico etc.
2 Valdeck de Garanhuns, Mitos e lendas brasileiros em prosa e verso, São Paulo:
Moderna, 2011.
3 O texto de Ariano Suassuna encontra-se neste livro, nas páginas 48-56 (a
citação remete especificamente à página 50 desta obra). Ele também está
presente na publicação Almanaque Armorial, Rio de Janeiro: José Olympio, 2008
(nesse caso, a citação se refere à p. 177).
4 Maria Ângela de Faria Grillo, “Cavalo-marinho: as representações do povo
através do folguedo pernambucano”, Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História – Anpuh, São Paulo, 2011.
5 Sobre esse assunto muito mais poderia falar e exemplificar, mas acresceria
demasiadamente este escrito, por isso sugiro ao leitor que pesquise na
internet para encontrar os textos, os discos e vários vídeos que demonstram
toda essa riqueza.
6 Por se tratar de um registro oral, o poema apresenta variações quanto à grafia
e à existência ou não de alguns versos de acordo com a fonte. (N.E.)
7 Ariano Suassuna, op. cit., p. 188.
Causos e cuentos da fronteira sul do Brasil
LUCIANA HARTMANN
“Ah, não… Aqui não tem nenhum contador…”. Essa talvez tenha sido a
resposta que mais escutei desde que iniciei minha primeira pesquisa
etnográfica sobre os contadores de causos da fronteira entre o Brasil, a
Argentina e o Uruguai, ainda em 1997. Fui surpreendida com as veementes
negativas, da parte de todos que me recebiam, de que ali houvesse algum
contador. Embora todos os contadores com os quais tive contato, inclusive
os reconhecidos como tal, hesitassem em assumir ou negassem, em um
primeiro momento, sua habilidade – “eu tô com a cabeça muito ruim”, “eu
não sei nada…” –, invariavelmente conheciam um grande contador,
normalmente alguma pessoa mais velha que morava nas proximidades. E
não demorei muito para compreender que, logo após sugerirem, “Ah! O
meu pai é que ia te contar uma história boa…”, continuavam:
Uma vez, o meu pai estava voltando da casa de minha mãe, quando eles ainda eram
noivos. Era uma noite de lua clara como um dia, e, de repente, quando ia passar numa
picada, o cavalo negaceou e não quis ir adiante. Ele então viu, de longe, aquele
cachorrão preto, com os olhos de fogo. Era um lobisomem, guria! (seu Romão, 88
anos, Uruguaiana – RS)
A minha cabeça já tá fraca… Mas um que tem um poder bárbaro é um irmão meu, que é
meio um tipo Pedro Malasartes. Mas ele conta um que eu vou te contar: diz que o cara
tava caçando com aquelas armas de… soltar pelo cano, né. Ele limpou a arma com uma
vara de marmelo e se esqueceu da vara de marmelo dentro da arma. E um dia tava
caçando, deu um tiro num veado, com aquela vareta, e o veado se foi. Um dia tava…
enxergou um marmeleiro carregado no mato e ele subiu pra comer marmelo. Quando
viu, o marmeleiro saiu correndo com ele. O marmeleiro tinha brotado em cima do
veado! (seu Antero, Uruguaiana – RS)
Os contadores são pessoas que “têm muita vida para contar”, que
“servem pra livro”, que “viveram muita história nesse mundo”, “que têm
queda pra contar”. A categorização dos contadores, porém, não foi
realizada emicamente, ou seja, não foi feita pelos próprios contadores; fui
eu, a pesquisadora, que senti necessidade de realizar uma distinção entre
os tipos de contadores, tanto para entender melhor o universo em questão
como para proporcionar maior compreensão, àqueles que não pertencem a
essa comunidade narrativa, sobre os sujeitos que são legitimados por seus
pares para contar histórias. Foi a partir de extensa análise dos dados
etnográficos que decidi categorizar os contadores de acordo com os
gêneros6 e temáticas das histórias que narravam. Cheguei, assim, a cinco
categorias: as mulheres, que inicialmente eu não via como “contadoras”,
pois não participavam da imagem construída pela literatura e pela história
da região, mas mostravam-se hábeis em performances nas quais contavam
histórias de família, de intimidade e até mesmo “fofocas”, que me
ajudaram a compor um quadro mais completo e sensível da sociedade e da
oralidade local; os idosos, que narram suas histórias de vida, especialmente
relacionadas ao trabalho em suas antigas profissões, como tropeiros,
carreteiros, domadores, esquiladores (tosadores de lã de ovelha) e peões; os
historiadores autodidatas, em geral homens que se dedicaram a estudar e
recontar, de forma oral e escrita, a história e as tradições da região, o que
lhes confere grande legitimidade; os tradicionalistas, especializados em
narrar os feitos épicos do gaúcho em revoluções gloriosas e em peleas
(lutas, brigas) em busca de justiça; e, finalmente, os borrachos (bêbados),
talvez os maiores performers, pois, sob o efeito do álcool, têm liberdade para
agir e falar sobre temas que em outras circunstâncias seriam vetados,
como sobre as estratégias de um grande contrabandista de gado, o
encontro com alguma assombração ou mesmo alguma anedota mais
obscena. Essas categorias, evidentemente, são analíticas e não
excludentes, pois há mulheres idosas, autodidatas tradicionalistas, idosos
borrachos e outras combinações.
É importante assinalar que a análise das características que
identificam quem são os contadores representa uma dificuldade, já que
tanto as razões que levam à sua indicação quanto às suas habilidades são
bastante variadas. As categorias são, portanto, uma tentativa de
sistematizar essas características, agrupando os contadores de acordo com
as semelhanças de suas narrativas e performances e com as motivações da
audiência para indicá-los como seus porta-vozes.
CAUSOS OU CUENTOS
Seu Solon – Nas época das revolução a senhora já morava aqui, dona Eva?
Dona Eva – Não, eu não, não… eu não sou desse tempo.
Daiane – Mas e quando o teu avô era matador dos cristão?
Dona Eva – Mas quando o meu avô era matador das pessoa eu era pequenininha…
OS SUBGÊNEROS
Causos de assombração
Os causos de assombração, como o próprio nome já diz, narram
algum tipo de contato – e de assombro – com seres sobrenaturais. Podem
incluir histórias de mulher de branco, lobisomem13, bruxa14, mula sem
cabeça e outras aparições sobrenaturais15. Embora muitos desses causos
remetam a estruturas de contos tradicionais e se repitam em diferentes
contextos, durante as performances narrativas eles normalmente são
referidos como experiências reais, ocorridas com o próprio contador ou
contadora, como na narrativa de dona Eládia:
Eu… até eu conheço uma moça que casou com um lobisomem. Se chama Dália. Tu sabe
que ela contou que… Isso toda Livramento sabe. Que ela casou com um rapaz – e já
casou moça velha, trinta anos… Tá. Aí, ela vinha vindo… porque ela trabalhava num
restaurante. Ela vinha vindo do emprego, altas horas da noite… Aí, menina, diz que
aquele cachorro se botou… se botou nela, se botou nela… e ela disse que se viu mal! E,
lembra de uma saia que a gente usava que chamava pele de pêssego? Que era toda
peludinha, te lembra que foi uma fazenda [tecido] muito usada? Bueno, ela disse que
toda a saia dela era daquilo. Tá. Aí ela chegou em casa e disse: “Aquele cachorro me
pegou e me mordeu toda…”. Ele não mordeu, só apertava ela, apertava. Menina de
Deus! A saia chegou em farrapo. Diz que no outro dia de manhã, ela sentada…
conversando com o marido… diz que o marido foi rir assim e toda a felpa do vestido, da
saia, apareceu nos dente dele! Todita as felpa da saia diz que no dente dele! Ela disse:
“Tu mesmo”. Isso faz muitos anos. Ela disse: “Tu que é o lobisomem”. Existe sim, guria,
é verdade isso. Disse: “Tu que é o lobisomem”. E se separou dele pro resto da vida! Não
teve um filho. Mas não se casou também. Eu tenho medo! (dona Eládia, 58 anos,
Santana do Livramento – RS)16
Na Revolução de 23, 24, o finado Deusinho tinha um… uma… bastante dinheiro em
moeda, e naquele tempo os piquetes provisórios… que na Revolução de 23, 24, o… eles
foram aglutinando pessoas e formando um piquete provisório. E aí o sentinela
avançado do finado Deusinho montou a cavalo e chegou em casa, e disse: “Olha, tá
chegando uma força… um provisório com mais ou menos 150 homens, e o que que eu
faço?”. Aí o finado Deusinho disse pro negro, esse que era o sentinela avançado dele:
“Pega uma pá e uma picareta que nós vamos esconder o que eu tenho de valor em casa.
Cavalo e gado não têm importância que eles levem, mas nós precisamos esconder o meu
dinheiro”. Então ele tinha um canudo de taquara, dizem as más línguas que esse
canudo tinha três palmos de comprimento. Isso dá em torno de 60, 65 centímetros, né.
Cheio de onças de ouro. Uma onça pesa em torno de 22 gramas de ouro. E a onça de
ouro, o material, é ouro de 22 quilates. É bem mais puro do que o 18, né. Diz que o negro
pegou a ferramenta, e o finado Deusinho e o negrinho foram pra um capão de mato, um
capão na frente da propriedade do Nelson, lá onde tinha a fonte, lá em cima. E
enterraram lá. E quando o negro tá saindo do capão de mato o provisório bateu e matou
o negro, e o finado Deusinho não sabe… não ficou sabendo onde é que o negrinho
escondeu o dinheiro, e a força provisória não achou, porque achou que o negro tava
escondendo cavalo. E a família toda procurou… eu fui um que tive no capão de mato
procurando o tal do dinheiro… Claro, não procurei com sonda, procuramos… talvez
vestígios, coisa assim, né? Mas nunca ninguém viu nada. (Mesquita, 50 anos,
Caçapava do Sul – RS)
Até hoje eu conto, até hoje eu conto! Eu olhei assim um cara de cavalo, na beira da cerca.
Olhei, cheguei a diminuir a marcha do carro pra olhar o cara, olhei, aí, quando eu
olhei, que eu segui o cara, fiquei olhando pelo retrovisor, que eu olhei pra trás, cadê o
cara? Não vi mais. Eu vi quando eu passei, depois quando eu tornei a olhar ele não tava
mais. Pra mim foi uma visão, alguma coisa. Porque o meu avô… o meu avô e o meu pai,
eles procuravam enterro de dinheiro lá. O meu pai procurava com as varinhas, aquelas,
sabe? Cansei de ir pra lá e coisa… e tem as taperas, né… que chamam tapera. E na
frente da estância tinha uma tapera assim, longe, então de noite, na sala onde nós ia
jantar, a minha finada avó servia a janta e de lá a gente via correr às vezes aquela bola
de fogo. [dirige-se a Fabrício, seu amigo, meu interlocutor, presente no local.]
Não te falei hoje? E eu era guri, piá, mas isso há muitos anos. […] Existe, sim, essa bola
de fogo, é bem amarelona assim, forte assim. É plana assim. E não é muito distante do
chão, ela fica só desta altura, depois ela… O meu finado pai, eu ia com ele pra lá, ele
levava um colega pra procurar [o dinheiro enterrado] nas pedras, aquelas cercas de
pedra, né, mangueiras de pedra, com as varinhas. (Felipe, 38 anos, Uruguaiana –
RS)
Causos de guerra
Esses causos são relacionados às histórias de vida do próprio
contador, ou foram ouvidos de familiares ou pessoas próximas, e são
recorrentes especialmente entre os mais idosos. As guerras pelo
estabelecimento dos limites geográficos dos países fronteiriços (Brasil,
Argentina e Uruguai) ou por disputas políticas internas fizeram parte da
história da região por mais de duzentos anos e, por esse motivo, estão
muito presentes na memória da população local ainda hoje. Alguns causos
de guerra, que envolvem fatos especialmente dramáticos, podem ser
contados várias vezes pelo mesmo contador, em performances emocionadas.
Outros denotam as estratégias de sobrevivência e resistência das famílias
que não estavam envolvidas diretamente nos con litos, como vemos no
relato de dona Yolanda, que mora em Moirones, no Uruguai, cidade
próxima à linha de fronteira com o Brasil:
A minha mãe contava, sim, ela contava, sim. Ela contava, sim. Era horrível, né, [os
guerreiros] chegaram a passar, sim. Que a mãe dela era velhinha, e ela contava que de
noite saíam e se deitavam nuns… nuns jujo, nuns mamono que tinham pra trás da
casa. Ela dizia que se deitava com as crianças ali pra não ficar na casa porque [os
soldados] chegavam e revisavam as casas. E ela saía com as crianças pra fora assim e
se deitava. Pois diz que, quando viam luz que chegava, se agarravam e se escondiam
com elas no meio dos mamono! Nuns jujal que havia pra trás da casa. De noite se
iam pra ali, se escondiam ali. Pro caso… se abriam a porta, qualquer coisa, não tinha
ninguém, né. […] Porque vinham os maus e vinham os bons também, né… Levavam os
maridos delas, os homens, levavam… Algum dava volta, porque… havia a parte boa e a
parte ruim deles, não é? E levavam muita cosa… a minha avó, né, dizia que eles
levavam cosas de comer, levavam bastante cosa. A minha avó conhecia mesmo.
Eu nasci aqui na beira dessa ponte internacional, que não tinha. Eu nasci no dia 6 de
janeiro, e o doutor Getulio Vargas marcou essa ponte no dia 8 de janeiro, então toda a
vizinhança queria que o meu nome fosse Getulio, porque naquela época o doutor Getulio
Vargas ainda era um homem do povo. Até hoje ele é lembrado, muito, né? Então
queriam que o meu nome fosse… Mas a minha mãe era daquelas que… Existia uma
folhinha, do tempo das folhinhas. […] Trazia os dias, os nomes. A maioria dos nomes…
[os nomes dos] meus irmãos eram tirados da folhinha. Nós somos dez agora. Nós
seríamos quinze se fôssemos todos vivos. E o meu pai sempre conta que… na história da
campanha dele que… Homem com 20 anos ele foi na guerra, na de 23, que naquela
época… A minha vó sempre contava que eles recrutavam. Aqui nessa zona tinha o
Batista Luzardo, né. Na zona de Livramento tinha o Flores da Cunha. Em Alegrete
tinha o Borges de Medeiros, e tinha outros grandes líderes, então essa gente sempre
tava em contato. Então isso eles sempre nos contavam. Inté isso eu noto que
antigamente os pais sentavam e contavam histórias pros filhos. Hoje em dia até nessa
parte existe dificuldade, sabe, dialogar com os filhos é tão difícil hoje, né. Mas eu sempre
digo que… eu ainda sinto saudade daquela época.
Anedotas
As anedotas ou piadas invariavelmente têm final cômico e, em geral,
envolvem gauchadas, aventuras malsucedidas de trabalhadores rurais,
gaúchos, peões campeiros quando chegam à cidade, ou descrevem alguma
confusão resultante da “grossura” desses homens. As anedotas têm um
caráter bem mais ficcional, diferentemente dos causos, que são
detalhadamente contextualizados. O fato relatado dificilmente diz respeito
ao próprio contador, mas a alguma personagem alegórica: o gaúcho, a
guria, a velha ou ainda algum conhecido que se torna vítima do deboche.
Dessa forma, ainda que tratem de temas ou sujeitos alegóricos, as
anedotas são autorreferentes – ou referentes aos vizinhos castelhanos
(uruguaios ou argentinos), correntinos (argentinos da província de
Corrientes) ou brasileros – e permitem ao grupo rir de si mesmo, como se
pode acompanhar nesta contada em uma roda de causos em Quaraí (RS):
Tu imaginas que eu tinha 5, 6, 7 anos quando comecei a ouvir essas histórias, né. Claro
que eu fui acabar destrinchando toda a realidade quando eu já era adulta, que aí eu ia
lá pro quarto com a tia Iaiá e dizia assim: “Tia, me conta uma coisa, eu me lembro que
uma vez tu me disse assim…”. “Mas como é que tu te lembras disso, menina?”. “Ah, isso
eu não sei, mas como é que foi essa história?”. Claro que essas lembranças não são da
infância, são as lembranças adultas da recontagem da coisa.
A MEMÓRIA DO CORDEL
[…] Por volta de 1630, 1635, um vaqueiro andava perdido, por dentro da mata… do
sertão, à procura do gado. Ele entrou num mufumbal, é uma mata muito fechada, e lá
ele se deparou com um touro, um touro bravio enfurecido, e ele não tinha como sair.
Então ele fez uma prece a Nossa Senhora de Sant’Ana, avó de Maria… Mãe de Maria e
avó de Jesus, para que ela salvasse ele daquele atropelo e, como por encanto, o touro
desapareceu. Daí ele edificou no mesmo local uma capela dedicada a venerar Nossa
Senhora Sant’Ana… Quando o vaqueiro iniciou a construção da capela, a região estava
passando por uma seca muito forte, muito grande, e ele encontrou um poço. E ele
novamente recorreu a Sant’Ana, pedindo a ela que nunca deixasse esse poço secar. E até
em 1977, e até 82, 83, nós tivemos uma seca muito grande e, mesmo assim, o poço não
secou. Nunca na história de Caicó se tem notícia de que esse poço tenha secado […]21.
EXEMPLOS E PROFECIAS
Quando sabia que era Leandro Gomes ou João Martins de Ataíde, sabia que o verso era
bom, eu comprava muito. Peleja, que é dos cantadores, e verso, que era dos poetas… O
príncipe e a fada foi um dos primeiros, O cachorro dos mortos já tinha comprado.
Esse, li umas poucas de vez, aí decorei tudinho… eu tinha a história todinha, aquela
história, o livro do Carlos Magno… veio versado a Peleja de Oliveiro mais Ferrabraz, aí,
tinha vez, eu lia duas ou três vezes, aí eu decorava algum pé de Oliveiro e Ferrabraz […]
1 Minha pesquisa sobre tradição oral no Rio Grande do Norte foi iniciada em
1990 nos municípios de Carnaúba dos Dantas e Campo Grande (na época,
foram mais de dezesseis meses de pesquisa empírica). A memória dos folhetos
de cordel foi o objeto da tese de doutorado intitulada Mémoires au quotidien.
Histoire et récits du sertão du RN (Brésil) (721f., Université Paris X, Nanterre, 1994),
publicada parcialmente sob o título A literatura de cordel no Nordeste do Brasil: da
história escrita ao relato oral (Natal: EDUFRN, 2006). Reuni quinhentos folhetos e
romances escritos, que foram coletados no Nordeste entre 1988 e 1993, e
comparei esse corpus com cem narrativas orais colhidas durante a pesquisa de
campo no sertão do Rio Grande do Norte – Seridó e Oeste – entre 1990 e 1991.
2 Ver o texto completo em
<www.dominiopublico.gov.br/download/texto/jn000008.pdf>. Acesso em:
jan. 2015.
3 Há uma controvérsia sobre a autoria do romance, que foi publicado
inicialmente nas décadas de 1920; José Camelo de Melo Resende e João
Melchíades Silva publicaram um romance com este nome, com poucas
modificações textuais. A edição mais antiga que encontrei data de 1951. M. A.
Pereira escreveu a continuação da história com as aventuras do filho de
Evangelista, e existem várias reedições assinadas por J. B. da Silva e Franklin
Maxado. Sobre o assunto, ver Jerusa Pires Ferreira, Armadilhas da memória:
contos e poesia popular, Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991. A música
“O romance do pavão mysteriozo”, de autoria de Ednardo, foi gravada em 1974
e virou tema da novela Saramandaia (com nova versão em 2013). A escola de
samba Acadêmicos do Salgueiro, no carnaval carioca de 2012, escolheu o
Pavão Misterioso para representar o cordel nordestino.
4 Ruth Brito Lêmos Terra, Memória de lutas: primórdios da literatura de folhetos do
Nordeste – 1893-1930, São Paulo: Global/Secretaria de Estado da Cultura, 1983,
pp. 68-9.
5 Ibidem, p. 77.
6 Ver, sobre o assunto, a obra de Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria em cordel: o passo
das águas mortas, São Paulo: Hucitec, 1979.
7 Idelette Muzart Fonseca dos Santos, La Littérature de cordel au Brésil. Mémoire des
voix, grenier d’histoires, Paris: L’Harmattan, 1997, pp. 13-4. Para uma crítica do
conceito popular, aplicado às expressões culturais, ver a discussão na minha
tese de doutorado (op. cit., pp. 66-70).
8 Existe uma ampla bibliografia sobre a literatura popular na Europa. Cf.
Geneviève Bollème, Le Peuple par écrit, Paris: Seuil, 1986; Robert Mandrou, De la
Culture populaire aux XVIIe et XVIIIe siècles, Paris: Stock, 1964; Charles Nisard,
Histoire des livres populaires ou de la littérature de colportage…, Paris: Maisonneuve
et Larose, 1968; e, de Paul Zumthor, “L’écriture et la voix”, (Critique, Paris: 1980,
n. 394, pp. 228-39), “De l’Oralité à la littérature de colportage” (L’écrit du Temps,
Paris: 1982, v. 1, pp. 129-40) e Introduction à la poésie orale, Paris: Seuil, 1983.
9 Luís da Câmara Cascudo, Cinco livros do povo, Rio de Janeiro: José Olympio,
1953.
10 Idelette Muzart Fonseca dos Santos, op. cit., p. 13.
11 Luís da Câmara Cascudo, op. cit.; Jerusa Pires Ferreira, 1979, op. cit.
12 Muirakytan Macêdo demonstra o impacto da leitura do livro na formação da
elite do Seridó, em particular na obra de Manoel Dantas, que adota um estilo
profético nos seus escritos. Cf. A penúltima versão do Seridó, Natal: EDUFRN,
2012.
13 Cf. os estudos de Jack Goody: “Mémoire et apprentissage dans les sociétés avec
ou sans écriture: la transmission du Bagre”, L’Homme, Paris: 1977, v. XVII, n. 1,
pp. 29-52; La Raison graphique. La domestication de la pensée sauvage, Paris:
éditions de Minuit, 1978; Pouvoirs et savoirs de l’écrit, Paris: La Dispute, 2007.
14 Dennis Tedlock, “On the Translation of Style in Oral Narrative”, Journal of
American Folklore, Illinois: 1971, v. 84, n. 331, pp. 114-33; e The Spoken Word and the
Work of Interpretation, Philadelphia: University of Pennsylvania, 1983.
15 A expressão designa a forma mais tradicional das performances poéticas,
reservada aos conhecedores: os cantadores sentam-se em frente ao público
(geralmente encostados em uma parede) e deixam uma cesta na qual é
depositado o dinheiro que servirá para pagar os violeiros, além de pedidos que
servirão de mote para os poetas improvisarem.
16 Jack Goody, La raison graphique…, op. cit., p. 254; Paul Zumthor, Introduction à la
poésie orale, op. cit.
17 Vitória Ivoneide de Oliveira foi entrevistada em 25 de maio de 1991, em seu
domicílio, no Monte do Galo, Carnaúba dos Dantas.
18 Leandro Gomes de Barros, História da princesa da Pedra Fina, Juazeiro: J. B. da
Silva (org.), 1909, pp. 17-21.
19 Cf. Jacques Galinier, La Moitié du monde. Le corps et le cosmos dans le rituel des
indiens otomi, Paris: PUF, 1997; Serge Gruzinski, La Colonisation de l’imaginaire.
Sociétés indigènes et occidentalisation dans le Mexique espagnol XVIe-XVIIIe siècles,
Paris: Gallimard, 1988; Nathan Wachtel, Le Retour des ancêtres: les indiens Urus de
Bolivie, XXe-XVIe siècles. Essai d’histoire regressive, Paris: Gallimard, 1990.
20 Localizada no semiárido da região do Seridó norte-rio-grandense, a principal
cidade do Seridó teve a sua origem em 1687 com a construção da casa Forte do
Cuó e, em 1735, com o povoamento da fazenda Penedo, posteriormente
denominada Vila Nova do Príncipe. Em 1890 foi elevada à categoria de cidade:
recebeu os nomes de Cidade do Príncipe, Cidade do Seridó e, finalmente,
Caicó. A Festa de Sant’Ana de Caicó foi registrada como patrimônio cultural
imaterial brasileiro pelo IPHAN em 2010.
21 Walfredo Dantas foi entrevistado em 27 de julho de 1991 durante a festa de
Caicó.
22 Manoel Dantas, Homens de outrora, Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1941, p. 97.
Um poeta de Caicó, Nilson de Brito, fez uma versão em folheto da lenda, e
Chico Motta, violeiro, compôs a música “Poço de Sant’Ana em Caicó”.
23 Pierre Nora, Les Lieux de mémoire, Paris: Gallimard, 1984.
24 Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”, Estudos Históricos, Rio de
Janeiro: 1989, v. 2, n. 3, pp. 3-15.
25 Jacques Le Go f, História e memória, Campinas: Unicamp, 1996.
26 Candace Slater, A vida no barbante. A literatura de cordel no Brasil, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984, p. 15. Podemos citar vários folhetos vendidos nos
centros de romaria: O filho que levantou falso à mãe e virou bicho, de R. C.
Cavalcante; Mãe que xingou o filho no ventre e ele nasceu com chifre e com rabo em
São Paulo, de M. F. da Silva; A moça que virou cachorro porque deu banana ao padre
frei Damião, de J. J. de Andrade.
27 Encontramos ao menos três folhetos diferentes: 1. Anônimo, A moça que virou
cobra, Recife: s.d., 8 p. – datação aproximada: anos 1950, lugar de edição e
distribuição: Recife, Nordeste e São Paulo (Luzeiro); 2. S. G. de Oliveira, A moça
que virou cobra, s.l.: 8 p. – datação aproximada: antes dos anos 1950, lugar de
edição e distribuição: Recife e Nordeste; 3. A. A. dos Santos, A moça que virou
cobra e quis engolir a mãe, Rio de Janeiro, 8 p. – datação aproximada: depois dos
anos 1950, lugar de edição e distribuição: Rio de Janeiro e Campina Grande.
Também, vários contos e lendas que foram coletados pelos folcloristas põem
em cena metamorfoses de jovens pecadoras em serpentes: “A lenda do poço
feio” e “O tesouro de Extremoz” (palestra de dom José Pereira Alves transcrita
no Diário de Natal em 31 de março de 1928), in: Gumercindo Saraiva, Lendas do
Brasil, Belo Horizonte: Itatiaia, 1984; “A serpente no fundo do poço”, in:
Ademar Vidal, Lendas e superstições: contos populares brasileiros, Rio de Janeiro:
Gráfica O Cruzeiro, 1950.
28 Iaperi Araújo, A medicina popular, Natal: Nossa, 1985, p. 24.
29 Julie Cavignac, A literatura de cordel no Nordeste do Brasil, op. cit.
30 Francisco (Chico) Nogueira, Sítio Caiana, Campo Grande, abril de 1991.
A literatura oral na Amazônia paraense: estrutura, forma e
modelos culturais
JOSÉ GUILHERME FERNANDES
DO OUVINTE AO PESQUISADOR
Antes de iniciar este estudo, faço uma re lexão sobre como trabalhar com
narrativas orais populares significa trazer à tona a cena primitiva de minhas
descobertas na região, tão distantes, mas, ao mesmo tempo, tão próximas e
gerenciadoras do que sou e faço hoje. Mais do que “histórias pra boi dormir”, as
narrativas acalentavam e acalentam uma necessidade de compreender o espaço
amazônico.
A partir de 1994, iniciei coletas de campo de narrativas em Castanhal, Santa
Izabel do Pará, São Caetano de Odivelas e Magalhães Barata – cidades no entorno
do campus universitário de Castanhal, da Universidade Federal do Pará. No ano
seguinte, com o apoio de bolsistas de iniciação científica divididos em três equipes,
outras cidades do nordeste paraense puderam ser mapeadas: Vigia, Colares,
Curuca, Santa Bárbara, Marapanim, Maracanã, Nova Timboteua, Santa Maria do
Pará, Bragança e Garrafão do Norte.
A ida ao campo de pesquisa foi muito além do contato entre pesquisador e
objeto de estudo: foi a oportunidade do encontro entre sujeito e objeto elididos, o
assomo da infância a cada narrativa não apenas escutada, mas também auscultada.
Percebi que o tempo não fez com que as histórias se perdessem porque ali o espaço
é a dominante que preservou a existência de entes míticos que comungam essa
existência com o homem: é o homem ao natural ou a natureza do homem na
primeira compreensão de si e do mundo. O tempo se rendeu ao espaço e se
esvaeceu daquilo que o constitui como tempo: o transitório.
Posso até dizer que aquelas comunidades, aqueles homens, pertencem a uma
sociedade atemporal, porque seus totens são tão presentes como o foram para a
minha infância. Há um termo mais adequado: todos estamos inseridos em um
tempo mítico1, pois o que fora narrado em nossa infância, para que
compreendêssemos a cosmogonia às margens do rio Mojuim, em São Caetano de
Odivelas – litoral da Amazônia paraense –, ressurgia em outras vozes, fazendo do
acontecimento do passado um produzir-se constante a cada momento em que era
narrado, nas imagens de personagens nossas velhas conhecidas: as personagens
míticas das matas e das águas da Amazônia.
O QUE É LITERATURA ORAL
[…] as vossas páginas têm dado prova, tão frequentemente, do interesse que tendes por
aquilo que nós, na Inglaterra, designamos como Antiguidades Populares ou Literatura
Popular (se bem que seja mais um lore do que uma Literatura, que seria descrito de
maneira mais adequada por uma boa palavra saxã composta, folclore – o saber do povo)
que eu não estou sem esperança de obter a vossa ajuda para reunir as poucas pessoas
que se encontram disseminadas naquele campo no qual os nossos antepassados
fizeram uma boa colheita5.
O motivo é a entidade variável figurada por uma proposição que predica uma
ação a uma personagem (ex.: “Nelson foi à mata” – N1); os motivos são os elementos
que preenchem os motivemas, a narrativa propriamente. No entanto, nosso
objetivo agora é, partindo dos motivos/narrativas, verificar a ocorrência dos
motivemas de Dundes no corpus. Mas, antes, conheceremos as demais sequências
motivêmicas.
O autor assevera que na maioria dos contos observados por ele, e que
apresentam a sequência nuclear bimotivêmica (C e RC), aparecem motivemas
interpostos, em número limitado. As três principais sequências são: 1) tarefa (T) e
realização da tarefa (RT); 2) interdição (Int) e violação (Viol); e 3) ardil (Ard) e
engano (Eng). Há casos em que a carência inicial (C) não está explícita, mas é
depreendida de alguma ação no conto; também pode ocorrer que a tentativa de
eliminação do estado de desequilíbrio (tentativa de realização do desejo) provoque
outro desequilíbrio: o demasiado e o muito pouco são equivalentes.
A sequência seguinte anunciada por Dundes é a tetramotivêmica, composta
de interdição (Int), violação (Viol), consequência (Conseq) e tentativa de fuga da
consequência (TF). O motivema tentativa de fuga é opcional, podendo o conto
terminar na consequência; esta pode, por seu turno, conduzir a um estado de
carência ou abundância. A tentativa de fuga é vista pelo autor como uma tendência
cultural, bem como o sucesso ou o fracasso da fuga. É importante saber nessa
sequência que a grande maioria dos contos populares dos nativos norte-
americanos, segundo Dundes, está assentada na interdição seguida da violação, à
semelhança do que ocorre em nossas narrativas do nordeste paraense. Qual será a
razão? Dundes nos responde:
QUASE CONCLUSÕES
1 Lembramos Benedito Nunes, que nos diz: “a rigor não há um tempo mítico, porque o
mito, história sagrada do cosmo, do homem, das coisas e da cultura, abole a sucessão
temporal”. Cf. O tempo na narrativa, São Paulo: Ática, 1988, p. 66.
2 “A literatura oral compreende o que, para a população não alfabetizada, corresponde às
produções literárias” (tradução do autor). Paul Sébillot, Littérature orale de la Haute-
Bretagne, Paris: Librairie Orientale et Américaine, 1913.
3 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1984, p. 24.
4 Antonio Carlos Diegues, O mito moderno da natureza intocada, São Paulo:
Annablume/Hucitec/Edusp, 2002.
5 William Thomas apud Luigi Lombardi Satriani, Antropologia cultural e análise da cultura
subalterna, São Paulo: Hucitec, 1986, p. 76.
6 Marcos Ayala e Maria Ignez Novais Ayala, Cultura popular no Brasil, São Paulo: Ática,
1995, p. 58.
7 Por ser a costa do Pará extremamente recortada – formada por um litoral de rias, que
são pequenos braços de mar –, desde o início da colonização na região amazônica, por
volta de 1753, procurou-se encontrar um caminho continental que ligasse o estado do
Pará ao restante do Brasil, via Maranhão.
8 Ernesto Cruz, A história do Pará, Belém: Governo do Estado do Pará, 1955, p. 62.
9 Roland Barthes et al., Análise estrutural da narrativa, Petrópolis: Vozes, 1973, p. 20.
10 Para Tzvetan Todorov (As estruturas narrativas, São Paulo: Perspectiva, 1979), as unidades
narrativas mínimas são representadas por uma oração, em que os agentes são sujeitos e
objetos dela, e o predicado é sempre um verbo (ação). Optamos por considerar a
sequência num sentido que não se limitasse a uma única oração, uma vez que, em
nosso entender, ela pode apresentar subordinações importantes à compreensão do
sintagma narrativo, mesmo porque a narrativa é virtualmente catalisável. Assim,
consideramos a sequência como combinação de proposições, uma vez que estas são
vistas, por alguns autores, como verdadeiras narrativas mínimas, compostas por
actantes e suas correspondentes predicações, aqueles distribuídos em diferentes papéis
– agente e paciente –, estas em duas classes, verbal e adjetival.
11 A respeito do gênero variável dessa entidade, ver, na parte “Verbetes”, a explicação das
pp. 428-9.
12 A expressão “centro da mata” apresenta especificidade regional, significando o local
mais fechado da mata e de difícil acesso.
13 Sarambui é uma variante da personagem mitomórfica curupira; aquele ocorre em áreas
de manguezal e praias, e este, na mata de terra firme.
14 A proposta deste trabalho prioriza o espaço como elemento estrutural que faz as ações
míticas deslancharem. Chamamos a atenção para a hipótese de que o espaço – em uma
tendência à poética do espaço bachelardiana – é o elemento natural que favorece certa
ordenação diegética em narrativas de nossa realidade.
15 Maria Rita Kehl, “O desejo da realidade”, in: Adauto Novaes (org.), O desejo, São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 365.
16 Alan Dundes, Morfologia e estrutura no conto folclórico, São Paulo: Perspectiva, 1986.
17 Motivema ou motivo êmico, para Dundes, corresponde à função de Propp; são
entidades invariantes da história, que se dispõem em uma sintaxe narrativa pouco
lexível.
18 Alan Dundes, Morfologia e estrutura do conto folclórico, op. cit., p. 95.
19 Ibidem, p. 103.
20 Ibidem, p. 127.
21 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, Dicionário de teoria da narrativa, São Paulo: Ática, 1988,
p. 187.
22 A. J. Greimas apud Joseph Courtés, Introdução à semiótica narrativa e discursiva, Coimbra:
Almedina, 1979.
23 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, op. cit., p. 210.
24 Pode-se entender a violação como a entrada da mãe no espaço natural – o igarapé – sem
a devida precaução de reverenciar os entes da mata. Isso ocasionou a “vingança”,
facilitada pelo fato de a criança estar sozinha. Mas entendamos que os mitos são
culturais e, sendo assim, podem suscitar a compreensão de práticas exemplares em
uma sociedade, justificando certo éthos, como não deixar crianças sozinhas, conforme
preceitua a Lei quando trata do abandono de incapazes.
25 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, op. cit., p. 210.
26 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
27 Alan Dundes, op. cit., p. 104.
Histórias da história da narração: o Centro-Oeste
em perspectiva
FREDERICO FERNANDES
Para A. Dimas
Sem querer fazer disso uma regra e uma condição para tratar
qualquer narrativa, valho-me da diferença entre as descrições de paisagens
orais do viajante quando em trânsito e dos lugares onde as capta pela
permanência mais estendida, como procede Moutinho em Notícia sobre a
província de Mato Grosso. A transitividade é um traço marcante da literatura
de viajantes, fonte privilegiada para uma história da narração. É o olhar
em trânsito que engendra o enunciado e permite visualizar no texto do
viajante o acúmulo de inserções e de diferenciações espaciais e temporais.
A sucessão de imagens é responsável ainda pelo dinamismo narrativo e por
provocar um efeito plástico na narrativa.
No caso da paisagem oral, quando se leva em conta a situação de
trânsito, os dados sobre o narrador são recheados com mais pormenores.
Deve-se acrescentar a isso o fato de que o viajante convive na sua travessia
com um guia, geralmente um detentor da cultura local. Aparecem nos
relatos duas personagens em trânsito, com traços pouco comuns: o
camarada e o hospedeiro. O camarada é quem acompanha o viajante e, por
isso, apresenta uma relação mais intensa, permeada pela desconfiança ou
pela gratidão; ele também é de enorme valia para os viajantes na
identificação de marcos geográficos, animais e plantas e, às vezes, o ajuda
na comunicação com outras etnias. Os camaradas geralmente são
mestiços de ascendência indígena, ou mesmo índios – conforme observam
Auguste Saint-Hilaire (guiado pelo botocudo Firmino), Guido Boggiani
(com o chamacoco Felipe e o cadiuéu Sabino) e o próprio Karl von den
Steinen (com o bacairi Antônio) –, o que facilitava a localização de certos
territórios e informava sobre tribos inimigas, antropófagas ou
hospedeiras14.
A paisagem oral, decorrente do diálogo com o camarada, se passa
nas paradas. Essa denominação é incerta, mas a emprego para designar os
acampamentos levantados às margens das estradas e dos rios, ou em
retiros de acomodação precária. A intenção, então, é diferenciá-las dos
pousos, onde o viajante recebe abrigo, geralmente sob o mesmo teto do
proprietário.
No trecho a seguir, de 1937, Karl von den Steinen (1855-1929)
descreve como a cultura oral em uma parada alcança múltiplas
segmentações:
Seus contos e lendas, que se nos afiguram simples mitos ou fábulas e nos
quais confundem homens e animais, ele [o bacairi] os toma tão a sério quanto
nós os livros sagrados e os ensinamentos que contêm. […] Toda a sua arte
mesmo, extremamente rica, se baseia em uma existência de caçadores e só
loresceu quando uma vida mais tranquila deu proteção às suas primeiras
manifestações19.
Naquele tempo a Lua era formada de penas de japu, o Sol era de penas de
tucano e de arara-vermelha, e o arrebol de penas de tucano. Era isso que
ensinavam os antigos. Se agora, como o senhor diz, não é mais assim, eu não
sei nada disso e ninguém sabe. Então alguém deve ter soprado para o Sol ficar
como fogo23.
Acender o Sol com o sopro revela-se muito mais que uma tentativa
de estabelecer a aparente lógica do mundo natural à narrativa mítica: é,
em síntese, uma estratégia de narração, atravessando e significando a
narrativa. O sopro do Sol demonstra como as narrativas se estabelecem em
meio às relações de poder, e como a base na qual se assenta o pensamento
dominante pode ser corroída. Trata-se de um sopro capaz de ressignificar
o Sol, na medida em que o narrador se (re)inventa bacairi. O Sol de penas
que alguém soprou é a demonstração de que a história da narração é
permeada por embates ideológicos, jogos de identidade e, por isso, revela-
se política.
Por último, não poderia deixar de observar que é com a mesma força
irradiadora do Sol que inúmeras narrativas se difundiram Centro-Oeste
afora.
SEU QUINHO
HENRIQUE MATEUS
Ah, meu filho, a velha aqui já viu tanta coisa! Pelejou demais, labutou um colosso. Uma
campanha, essa vida. Mas não fui sempre catadeira de papel não. Tive meu bom tempo,
pois sim! Tive até no estrangeiro. Trabalhei na casa de gente importante, de prefeito e
de parente do governo. Morei na casa do dono de São Paulo, um tal Sô Shimite, sócio
do Matarazzo. Gozava de toda consideração. Tinha até garrafa de vinho no quarto só
pra mim. Onde é que já se viu empregada, ainda mais preta, beber vinho nessa nossa
capital? Pobre hoje em dia bebe vinho algum? Qual o quê, bebe nada, meu filho.
Um dia, na hora da limpeza, achei uma História Sagrada grandona e grossona
assim. Peguei o livro e danei a ler. Uma beleza que só vendo. Aí o patrão descobriu, e
quem disse que eu tive tempo de esconder? Me pegou no sufragante mas não ralhou
comigo não. Achou foi graça do meu susto e acabou me dando o livro de presente. Aí eu
li tudo, no sossego, de consciência limpa. Li desde o principinho, desde a criação do
mundo.
No Paraíso Terrestre, morava Deus Nosso Senhor, Nossa Senhora, Adão e Eva e
aquela bicharada toda. E tinha também um tal de Messias, um menino regulando seus
11 ano, muito bonzinho. Vivia passeando dum lado pro outro, fazendo amizade com
todo mundo, gente e bicho. Era muito bonzinho mesmo. Eu vou até mandar celebrar
uma missa pra ele um dia desse. Todos combinava muito, amizade verdadeira. Os
bicho, mansinho, falava com o povo de lá, todo mundo se entendia. Tinha esse
negócio de sofrimento e amolação não, ocê pensa?
Mas um dia Adão e Eva fizer’um pecado, não lembro mais que pecado foi. Só sei
que depois vier’os filho: Caim e Abelo. Por conta disso Deus Nosso Senhor ficou muito
aborrecido e tocou todo mundo do Paraíso. Na hora de tocar o povo com uma espada de
fogo, um anjo falou com eles na porta: “Agora vão ter de comer o pão com o suor do
rosto. E as dona daqui pra frente vão sofrer muito, principalmente pra ter menino”.
Foi dito e feito. Desde aquele dia tudo desandou. A maldade mais a inveja chegou no
mundo e depois virou isso que ocê anda vendo por aí.
Por riba das dificuldade do Adão e da Eva, tinha as briga dos dois filho deles.
Abelo era muito bom e Deus Nosso Senhor aceitava com gosto os presente que ele
oferecia. Também, era só fruta escolhida, carneiro de primeira, gordo assim… Tudo do
bom e do melhor. Por isso a fumaça da fogueira dele subia direto pro céu. A do Caim,
não. Ficava na terra mesmo porque as coisa que ele dava era ruim e dada de má
vontade: só carneiro pesteado e fruta podre. Quando viu que só a fumaça do Abelo
subia, a dele não, jurou o irmão de morte. Uma vez, não sei pra onde é que o Adão mais
a Eva andava, os dois ficaro sozinho. Aí o Caim aproveitou, pegou um facão e sentou
uma facãozada na cabeça do Abelo. Foi uma só. É onde que eu falo: a inveja, essa é
pouquinho mais nova que o mundo.
Se eu ainda tenho o livro? Ficou guardado um tempão. Meu pessoal viu, queria
que muita gente olhasse. Tinha tanta história bonita que eu nem não dou conta de
contar tudo. Um dia, eu trabalhava fora, quando cheguei em casa, cadê? Tinham
vendido pra comprar feijão.
Quando fomo pra Amarra Couro, perto de Xique-Xique, eu tinha 8 anos. Um dia eu vi
aquele moleque assim, a cabeça toda pelada, lumiando. Ele saía da água, avançava na
galha do pau, puxava, puxava, e com pouco caía na água. Tornava a subir lá, até que
derrubou o pé de jureminha. Derrubou o galho e a barreira de água subiu. Ele não tem
cabelo. O povo fala que isso é lenda. É nada! Nêgo-d’água, a mãe-d’água, isso tudo já
teve lá pra Bahia.
Meu marido contava história de um moço que ia descendo pra pôr os anzol. Lá
pros lado de Bem-Bom. E tinha uma mulher sentada numa pedra dentro da água.
Mas um cabelo que só vendo! O moço assuntou: “Vixe, mas que dona é aquela?”.
Quando ele viu, ela com um gainho de planta na mão, disse pra ele: “Mas ninguém
sabe avaliar o valor do artimijo13… Ninguém sabe avaliar o valor do artimijo”. Aí ele
falou: “Pra que serve o artimijo?”. Ela não respondeu. Sumiu.
[Enquanto reza a oração de olho ruim, vai benzendo] José é nascido, nascido é.
Cruz de Maria Santíssima, sem pecado é. Livrai-me… – o nome do senhor? – …sô Olavo
de olho ruim, meu Jesus de Nazaré. Com os poderes de Deus e da Virgem Maria. Amém.
[“Faz três vez”, explica.]
[Para dor] José da ermida e‘vém. Suba e desça nas minhas passada. Quem essa
reza rezar, dor de pontada não morrerá. Com os poder de Deus e da Virgem Maria.
[“Três vez também.”]
A Cruz de Jesus Cristo, coroada a Virgem Maria, guardai-me por essa noite e
amanhã por todo o dia. A cruz de Jesus Cristo, deitada sobre mim, se nela eu morrer,
Deus responsará por mim.
Meus inimigos, nem morto, nem vivo, não chegues a mim. Com os poder de
Deus da Virgem Maria. [“Essa é de rebater os mal”, finaliza.]
A lenda mais importante que nós temos aqui é o caboclo-d’água. É um ente que o senhor
não pode convencer nenhum barranqueiro que ele não existe. E acham que é preciso
haver amizade entre eles – o barranqueiro, o barqueiro, o canoeiro – e caboclo-d’água. A
arma dessa amizade é o fumo. Eles deixam o fumo num determinado local, certos de
que o caboclo irá apanhar. Aí, fica celebrada a aliança e ele viaja tranquilo. Sem isso,
vira barco, quebra barranco, encalha… Isso é o caboclo-d’água, perseguição dele.
No fim da viagem, em Manga, ouviríamos de Lindemberg Lopes,
policial reformado e caçador profissional, uma crítica aos barranqueiros
que oferecem fumo e cachaça ao caboclo-d’água, tachando-os de crédulos e
supersticiosos. No entanto, falando de sua experiência como caçador, diz
que o bicho mais arisco que existe é a paca: “foge até de vaga-lume”. E
explica como caçá-la, cevando-a com milho, depois cercando o lugar para
dificultar sua fuga. Informa haver aprendido isso com um chefe xakriabá
da região, a quem retribuía com um pedaço de fumo e uma garrafa de
cachaça. Quando observo que ele fez a mesma coisa que o barranqueiro
com o caboclo-d’água, ele discorda, dizendo que o índio está lá na venda,
sentado, qualquer um pode ver, falar com ele. “O caboclo-d’água não existe,
é pura invenção.” Retomando o relato de Brasiliano Brás, acrescenta ele:
Eu tenho visto tanta coisa nesse rio que era pra eu nem pescar.
Uma vez eu ia viajando para Pedras de Maria da Cruz, de madrugada. Eu vi
assim uma moita muito grande parada no meio do rio. Depois, eu andava, mais um
irmão, nós ia levar carga em Januária, porque eu sou de Januária. Antonce eu falei
pra ele assim: “Vamos tirar nossa canoa mais pra beirada, que ela tá muito
carregada”. Mas estava silenciozinho de vento, não tinha vento nenhum. Quando nós
chegamos a uma distância assim de uns vinte metro, aquela moita desapareceu. Virou
uma mareta só, igual um motor quando passa no rio.
Muita força! Aquela maretona: subiu, que incomodou as canoa nossa,
incomodou as outras canoa do trecho, ficou aquela zoada esquisita. Que a moita
sumiu.
Que tem coisa esquisita no rio, tem, mas eu vou falar: eles não come ninguém
não. Só faz algum medo, né? Não come porque, se tivesse pra comer, não tinha um
pescador mais no rio, que ele comia.
Quando eu era rapazinho, moleque assim de uns 10 anos, eu tava pescando na
beira de um riacho. O rio tava enchendo. E antonce, eu joguei a linha dentro d’água.
Joguei e tô ali. Vez em quando eu via estralar uma coisa qualquer aqui do meu lado.
Quando eu pensei que não, eu já tava lá no meio d’água. Aquele barranco correu
comigo, eu saí em pezinho, fiquei aprumado lá no meio d’água. Eu nem gritar gritei. Eu
nem pensava. Fiquei sozinho lá. Ali, ao romper do dia. Meu pai tava dormindo ainda.
Mas, quando as menina falou, disse: “Henrique morreu!”. Eu tava numa
distanciazinha de pouco mais de metro do barranco, a água passando. Eu fiquei firme
lá no pedaço de barranco. E meu pai chegou e me puxou pelo braço. Puxou eu, jogou lá
fora. Quando jogou lá fora, a água cabou de derreter aquele pedaço lá.
Logo eu entrei, tinha um pé de pau lá, um azulão, era a curimatá. Ela veio, acho que fez
pouco de mim. Rodava, olhava pra mim, acho que rupiada assim. No que ela foi
andando eu atirei a lecha, foi “tá!”. O pau bateu, ela correu com a lecha, mandei em
cima, mas foi uma carreira! Juntei em cima, querendo sair com ela no seco. Quando
peguei, que fui saindo no seco, ela rasgou e fugiu. Mas eu caí em cima dessa curimatá e
rolei, e rolei, mas foi uma briga! Mas eu saí com ela. Cês credita que nesse momento eu
fiquei quase meia hora sem equilibrar? Tremendo, mas tremendo!?
[Anísio lembrou que os barcos passavam] cinco, seis dias aqui no porto de
Manga fazendo carga. E não era madeira, nem carvão, nem carne de boi, nem boi. Era
arroz, era feijão, era milho, algodão, mamona, que o homem produzia na terra. Eram
os homens mão-calejada. E cada um tinha seu terreiro, sua roça, seu cavalo pra andar
montado, sua tropa, jumento, carregava as coisas no lombo dos animais. Tinha suas
dez, vinte, quarenta, cinquenta vaca pra dar leite pra quem quisesse. O mais
pobrezinho, que não tinha vaca, tinha cabra pra dar leite. Ou apanhava com o
companheiro, não custava nem um tostão. Trocava uma coisa pela outra. Leite dava a
troco de amizade, uns dos outros…
Um amigo meu, Pedro, conta um caso que ele tava indo à noite e, quando ele deu fé, o
filho dele chegou e chamou: “Pai, aqui tem um bicho”. Aí ele chegou, que olhou, diz que
era um bichinho preto assim. O cachorro latindo, ele ralhando com o cachorro, mas ele
não via a cabeça do bicho. Ele foi, apanhou um pau e chegou e meteu nele assim, pra
jogar pra fora. Ele correu, entrou debaixo da cama do menino. Aí ele cutucou esse bicho,
o bicho saiu, o cachorro enfrentou, quando ele olha – o bicho tinha uma orelhona assim
– ele mandou o pau nesse bicho. O bicho caiu, ele mandou o cacete. O bicho levantou. E
ele tornou a enfrentar. Aí machucou, meteu o pau e jogou ele lá no meio do terreiro.
Quando ele entrou, que acabava de deitar, o cachorro avisou alguma coisa. O menino
gritou: “Ai, ai, ai!”. Ele: “O que é, menino?”. “O bicho, ó!” Que ele olhou, tá o bicho,
dentro de casa. Aí ele apanhou uma foice e mandou no bicho. Diz ele que deixou
esmagado lá no terreiro. Entrou pra dentro. Aí o menino gritou: “Pai, o bicho correu! O
bicho correu!”.
Diz ele que nunca viu um trem daquele. Matou a primeira vez. Na segunda,
esmigalhou. Mas não adiantou, o bicho continuou vivo. Matou duas vez, a terceira o
bicho foi embora, não matou mais não. Tinha de matar três vez.
Não basta apenas cumprimentar, é preciso trazer e levar as notícias. Tem que saber da
saúde, de como estão as coisas, porque aquilo é nossa jornada. Contar o que aconteceu
ontem, o que aconteceu hoje, tem que meter tudo. Cumprimentamo-nos bem para saber
da saúde, da família, isso antes de começar qualquer conversa ou trabalho. É preciso
saber como a pessoa está. As pessoas, aqui em Maputo, já estão começando a só
cumprimentar, e isso me incomoda muito. [JOSÉ NTILA]
CENA 1
CENA 2
A escuta é essa atenção prévia que permite captar tudo o que seria suscetível
de perturbar o sistema territorial; é uma forma de defesa contra a surpresa; o
seu objeto, aquilo para que tende, é a ameaça, ou, inversamente, a
necessidade; a matéria-prima da escuta é o índice, quer assinale um perigo,
quer permita a satisfação da necessidade. Desta dupla função, defensiva e
predadora, restam vestígios da escuta civilizada19.
Todas essas considerações explicam que a escuta é confundida com
a posição de decodificar: dar voz ao silêncio, iluminar o que está obscuro,
traduzir o que está confuso. Trata-se de uma escuta que Barthes e Havas
classificam como religiosa, isto é, uma linguagem que pertence ao mundo
dos deuses, o verbo evangélico por excelência. À medida que se escuta a
palavra divina surge a fé, uma vez que é por essa escuta que o homem se
une a Deus. É uma escuta que procura decifrar o futuro que pertence aos
deuses e a culpa que nasce do confronto com o ser supremo.
Tais pensadores nos chamam a atenção para tentarmos perceber que
a escuta não depende só dos ouvidos. Hábitos, preferências, vivências
anteriores, principalmente na infância, in luenciarão direta ou
indiretamente a percepção sensorial, construindo ou interferindo na
maneira como se ouve ou se dá sentido aos eventos sonoros e explicitando
de forma peculiar como se desenvolvem as diferentes escutas do mesmo
objeto e, principalmente, de si mesmo. É a partir dos sentidos de escuta
que Zumthor evoca a possibilidade de duas formas dela: a interior e a real.
Uma se refere à audição física; a outra, à audição mental.
A audição física corresponde à percepção sensorial do som, depende
da natureza de um estímulo externo, daquilo que o órgão sensorial
transmite e de registros da mente atenta ou como memória do real, ou
como “preparação mental de recepções ulteriores”, conforme argumenta
Susanne Langer20. Diferentemente da audição física, na audição mental
aplicam-se exatamente as questões opostas, isto é, em comparação com o
ouvido físico, a percepção sobrevive mesmo ao escutar desatento. São
escutas que podem ser bem vagas ou mesmo completamente inexistentes
para o ouvido interior. A audição interior é trabalho da mente, que começa
com concepções de forma e termina com sua completa apresentação na
experiência sensorial imaginada.
Roland Barthes distingue o ato de ouvir, que ocorre a partir dos
mecanismos orgânicos do homem, como um fenômeno fisiológico do ato
de escutar: ato fisiológico que ocorre em função do objeto. Para ele, a
escuta acontece em três níveis: de alerta, na tentativa de identificar algum
índice (os passos da mãe para a criança); de decifração, que procura captar
determinado código identificável em algum som; de interiorização daquele
ou daquilo que emite a mensagem. A partir da apropriação interna desse
emissor, ocorre a transferência da informação, baseada nos referenciais do
interlocutor. Uma capacidade de seleção que só a escuta pode
proporcionar para que o ser humano se aproprie do seu território, o que
ocorre nesse nível de escuta, a começar por sua própria casa: bater de
portas, panelas, talheres… Subestimar essas escutas significará a perda do
reconhecimento dos espaços ambientais, o não estabelecimento de seu
território – seu espaço de segurança: “rede polifônica de todos os ruídos
familiares: os que posso reconhecer, desde então, são os sinais do meu
espaço”21. Porque, assim, não procura os indícios de perigo.
Barthes prossegue em seus argumentos e diz que “a injunção de
escutar é a interpelação total de um indivíduo a outro: coloca acima de
tudo o contato quase físico desses dois indivíduos (pela voz e pelo
ouvido)”22. É dessa escuta que surge a escuta psicanalítica – de
inconsciente para inconsciente, daquele que fala e do que ouve, mas sem a
preocupação do que se diz, mas do como diz: sua maneira de ser, sua alegria,
tristeza, as modulações harmônicas dessa voz.
Isso talvez explique o que Paul Zumthor, em sua grande obra no
campo da literatura oral, esclarece: “através da voz, a palavra se torna algo
exibido e doado, virtualmente erotizado, e também um ato de agressão,
uma vontade de conquistar o outro, que a ela se submete, pelo prazer de
ouvir”23. Para ele, “fazer ouvir” não tem relação com o ouvido nem com o
som, ou seja, “fazer ouvir” está sempre no campo do outro, é de lá que a voz
provém.
Tais considerações vêm ao encontro do que Malangatana Ngwenya
dizia sobre a escuta, ao falar da importância dos saberes da cultura e sua
inserção na escola. Ao se referir à tradição oral, opinou que “não é só
empilhar uma coisa em cima da outra”24. Para esse artista, a escuta tem a
ver com o tempo, não com o conteúdo. Não seria o que seu José Ntila, cuja
voz a epígrafe evidencia, tenta nos explicar? Podemos verificar tais
considerações também nas palavras de Homi Bhabha ao citar Lyotard:
O que ela [a linguagem] mostra melhor é o que você faz dela. Por isso somos
todos, nós mesmos, inteiramente, conteúdo da linguagem. A linguagem é, a
cada vez, o sujeito inteiro. Sua história. Que significa mais o que ele não diz do
que o que ele diz. O que interessa é descobrir como. O incomunicado é o que
se comunica antes de tudo30.
CENA 3
Era assim que, lá pelos anos 1940, na localidade de Cachoeira,
Biguaçu (SC)36, onde meu pai nasceu, a família se reunia sempre no quintal
para celebrar. Meu tio Francisco assim me contou:
Eram treze homens: nosso avô, o papai, nossos primos e nós. Seis de um lado e seis do
outro, e o vovô Domingos, que era o capitão. O papai, eu e o teu pai tocávamos tambor,
mas era pra ter mais, só que quase não tinha mais família. A minha avó sempre dizia
que era pra coroar, pra coroar alguém, agora eu já não me lembro mais, mas lembro
que ela falava isso37.
A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber
em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos
ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram,
assim como o baobá já existe em potencial em sua semente. [TIERNO BOKAR3]
OS TRADICIONALISTAS
AUTENTICIDADE DA TRANSMISSÃO
OS OFÍCIOS TRADICIONAIS
INFLUÊNCIA DO ISLÃ
CONCLUSÃO
1 Amadou Hampâté Bâ, “A tradição viva”, in: Josef Ki-Zerbo (ed.), História geral
da África I: metodologia e pré-história da África, Brasília: Unesco; MEC; UfsCar,
2010, capítulo 8. As quatro fotografias do texto original não estão
reproduzidas nesta versão. (N. E.)
2 Especialista em tradições orais, é autor de várias obras sobre os antigos
impérios africanos e a civilização africana.
3 Tierno Bokar Salif, falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara,
no Mali. Grande Mestre da ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente
tradicionalista em assuntos africanos. Cf. Amadou Hampâté Bâ; Marcel
Cardaire, Tierno Bokar: le Sage de Bandiagara, Paris: Présence Africaine, 1957.
4 O termo “tradicionalista” significa aqui detentor do conhecimento transmitido pela
tradição oral. [N.T.]
5 Neste texto, excepcionalmente, respeitaremos a grafia deste termo de acordo
com o original publicado em 1982.
6 Uma das grandes escolas de iniciação do Mande, no Mali.
7 Os griots serão abordados adiante.
8 Aquele que realiza as circuncisões. (N.E.)
9 Nem todas as cerimônias rituais incluíam necessariamente o sacrifício de um
animal. O “sacrifício” podia consistir em uma oferenda de painço, leite ou
algum outro produto natural.
10 Os woloso, ou “cativos de casa” – literalmente, “os nascidos na casa” –, eram
empregados ou famílias de empregados ligados há gerações a uma mesma
família. A tradição concedia-lhes liberdade total de ação e expressão, bem
como consideráveis direitos materiais sobre os bens de seus senhores.
11 Makoro e Manifin eram seus dois condiscípulos.
12 Uma narrativa tradicional contém sempre uma trama ou base imutável que
não deve jamais ser modificada, mas a partir da qual se podem acrescentar
desenvolvimentos ou embelezamentos, segundo a inspiração ou a atenção dos
ouvintes.
13 Ancestral dos ferreiros.
14 Cf. Amadou Hampâté Bâ, Aspects de la civilisation africaine, Paris: Présence
Africaine, 1972, pp. 23 e ss.
15 A respeito da lei de correspondência analógica, ver Amadou Hampâté Bâ,
Aspects de la civilisation africaine, op. cit., pp. 120 e ss.
16 “Teu pai”, em linguagem africana, pode muito bem designar um tio, um avô
ou um antepassado. Significa toda a linha paterna, inclusive as colaterais.
17 “Nobre” é uma tradução bastante aproximativa de horon. Em verdade, horon é
toda pessoa que não pertence nem à classe dos nyamakala nem à classe dos jon
(“cativos”), sendo esta última constituída por descendentes de prisioneiros de
guerra. O horon tem por dever assegurar a defesa da comunidade, dar sua vida
por ela, assim como garantir a conservação das outras classes.
18 Os dieli, sendo nyamakala, devem em princípio casar-se dentro das classes de
nyamakala.
19 Cabe lembrar que os horon (nobres), peul ou bambaras, jamais tocam música,
pelo menos em público. Os tiapourta conservaram, em geral, esse costume.
20 De modo geral, a islamização, vinda do norte e do leste, afetou mais
particularmente os países da savana, enquanto a cristianização, vinda por
mar, tocou mais as regiões de loresta da costa. Não podemos falar do
encontro entre a tradição e o cristianismo por não possuirmos nenhuma
informação sobre esse assunto.
21 Cf. Amadou Hampâté Bâ e Jacques Daget, L’Empire peul du Macina, Paris:
Mouton, 1962.
22 Esse fenômeno poderia estar relacionado ao fato de as faculdades sensoriais
do homem serem mais desenvolvidas onde há necessidade de grande uso
delas e se atrofiarem em meio à vida moderna. O caçador africano tradicional,
por exemplo, pode ouvir e identificar determinados sons a vários quilômetros
de distância. Sua visão é particularmente acurada. Alguns têm a capacidade
de “sentir” a água, como verdadeiros adivinhos. Os tuaregues do deserto
possuem um senso de direção que está próximo do miraculoso. E como esses
há dezenas de exemplos. O homem moderno, imerso na multiplicidade de
ruídos e informações, vê suas faculdades se atrofiarem progressivamente.
Está cientificamente provado que os habitantes das grandes cidades perdem
cada vez mais sua capacidade auditiva.
Acho que é o compromisso mais avançado que eu tenho com a vida; nada me
enriquece mais do que quando eu passo em revista a realidade da criação; acho
que criar dá condições de pôr em prática os sentimentos pela vida, para se poder
contar a história do homem. Traz também um sentido muito social: a sua tarefa,
o seu ofício é que alguém precisa contar a história do homem, para que esse
homem, tão ocupado em viver essa história, se dê conta da realidade em que ele
tem vivido e que não havia percebido. [NÉLIDA PIÑON]
É possível existir algo sem nome? Acredito que nomear tudo seja a forma que o
humano encontrou para delimitar a vasteza, para visionar limites. Mesmo coisas
deslimitadas como Universo, Deus, Futuro, Infinito, são postos dentro de cinco ou
seis letras. A linguagem é nosso limite. A linguagem é nossa forma de estabelecer
as fronteiras para o sentido, ao mesmo tempo, a linguagem é nossa libertação,
nosso poder de ir além da realidade, ir além do limite, ir além da linguagem.
[RUBENS DA CUNHA]
Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm
beleza alguma. Mas se um artista os ajuntar segundo uma visão de beleza
eles se transformam numa obra de arte.
Músicas são mosaicos de sons. Notas são cacos. Não são bonitas nem
feias. Mas se um compositor as organizar numa “frase” elas passam a dizer
algo. Transformam-se em temas. Sonatas e sinfonias são feitas com temas
entrelaçados.
Também nós somos feitos de cacos. Milan Kundera comparou a vida
a uma partitura musical. “O ser humano, guiado pelo sentido da beleza,
transpõe o acontecimento fortuito [o caco] para fazer dele um tema que,
em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará ao tema repetindo-
o, modificando-o, desenvolvendo-o, transpondo-o, como faz um
compositor com os temas da sua sonata.”2 Somos um mosaico espiral, à
semelhança do Bolero de Ravel.
As Escrituras Sagradas são um livro cheio de cacos. Nelas se
encontram poemas, estórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de
acontecimentos, poemas eróticos, eventos sangrentos. Ao ler as Escrituras
comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um
mosaico ou como um compositor a compor sua sonata.
Os cacos das Escrituras Sagradas existiram por muito tempo como
estórias que eram contadas oralmente, antes de serem transformados em
textos para serem lidos. O registro escrito dessa tradição oral trouxe uma
vantagem: as estórias continuaram a existir mesmo depois da morte do
contador de histórias. E trouxe uma desvantagem: transformados em
textos escritos perdeu-se a figura do contador de estórias. Com isso, os
leitores começaram as ler as “estórias” como se fossem “história”.
“História” refere-se a coisas que aconteceram realmente no passado
e nunca mais acontecerão, como o naufrágio do Titanic, que pertence à
“história” e nunca mais acontecerá. Mas a parábola do Bom Samaritano
nunca aconteceu. Foi uma “estória” contada por um mestre contador de
estórias chamado Jesus.
As estórias são contadas no passado, mas elas não têm passado. Só
tem presente. Estão sempre vivas. Quando as ouvimos ficamos
“possuídos”, rimos, choramos, amamos, odiamos – embora elas nunca
tenham acontecido.
A “história” é criatura do tempo. As “estórias” são emissárias da
eternidade.
Muitos são os mosaicos que podem ser feitos com um monte de
cacos. Muitas são as músicas que podem ser feitas com as doze notas da
escala cromática. Horror, humor, amor, vida, morte, vingança... Tudo
depende do coração do artista. Como disse Jesus, o homem bom tira coisas
boas do seu bom tesouro; o homem mau tira coisas más do seu mau
tesouro. Coração feio faz mosaicos e músicas feias. Coração bonito faz
mosaicos e músicas bonitas. Os mosaicos e as sonatas são o retrato de
quem os fez.
Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos. Cada
religião é uma sonata: uma rede de temas. Escolhi os cacos de que mais
gosto para fazer o meu mosaico, o meu livro de estórias, a minha sonata, o
meu altar à beira do abismo.
Isso faz que cada texto seja único, embora as histórias contadas
possam se repetir inúmeras vezes. Impermanência e inexatidão são, em
geral, aspectos da oralidade e, em particular, da contação de histórias.
Esse é o principal requisito no processo criador do contador de
histórias. Desenvolver a capacidade artística significa preparar-se para
criar seu texto diante dos ouvintes. Nesse processo, gesto e voz, juntos,
compõem o sentido do texto que é dito. Separados, chamam a atenção
para o fato de que quem fala não está ali, ou seja, não há “presença” e, sem
esta, o conto “não passa”, ou seja, não se torna semente na consciência do
ouvinte.
Juntar ao enunciado de forma coerente e sincrônica a entonação e o
ritmo expressos pela voz e também os gestos é imprescindível para a
veiculação da mensagem. Portanto, um dinamismo vital deve ligar a
palavra que se diz ao olhar que se lança e à imagem que o corpo oferece.
A tradição e a arte tradicional têm sua própria percepção do tempo, sua vida,
uma vida que nossa época tumultuada tem dificuldade de entender. Essa arte
não pode reagir instantaneamente às ideias e tendências sempre lutuantes.
Ela opera com os meios artísticos e poéticos que lhe são inerentes, com um
sistema de imagens bem próprio. O desejo atual é inovador e considerá-la arte
de terceira categoria se ela não responde às exigências da inovação é dar
provas de falta de discernimento tanto do ponto de vista histórico como do
artístico. […] A tradição […] não é de forma alguma um entrave para o criador,
muito pelo contrário, quando ele apreende exatamente a sua essência, ela
representa para ele a imensa experiência de inúmeras gerações de seus
antepassados, ela é linguagem artística graças à qual ele pode exercer seu dom
criador16.
No que concerne à fidelidade ao mundo, ninguém pode ultrapassar os artesãos. […] Mas
sem elevação de espírito, tudo o que é preto não é mais que tinta, e tudo que é branco não
é mais que papel. [YI MUN-YOL]
O vinho contém água, açúcar, fruta, cor. Misture tudo isso e não produzirá vinho. A uva
é a forma primitiva do vinho. Esmagadas, elas produzem o suco. Mas a uva tem o
potencial de se tornar vinho e este leva ao inebriamento. O vinho é a essência da fruta.
Pode-se oferecer a uva, mas o vinho é processo de fermentação, de transformação em
cada tonel. [IDRIES SHAH, mestre sufi]
Pense, caro senhor, no mundo que leva em si e chame o seu pensamento como
quiser: reminiscência da sua própria infância ou saudade do futuro – o que
importa apenas é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima
de tudo o que observar em redor. Os seus acontecimentos interiores merecem
todo o seu amor; neles de certa maneira deve trabalhar […]25.
Aí o tempo não serve de medida: um ano nada vale, dez anos não são nada. Ser
artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que
não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera,
sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir.
Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas – eis o que se
deve saber alcançar26.
1. Uma narrativa encanta quando propõe uma aventura, uma surpresa: se não
me for possível encontrar em determinado conto o espírito da aventura, será
difícil encantar alguém ao contá-lo. Mas, se encontro nele esse espírito,
poderei, através dos meus recursos vocais e gestuais, criar climas e ritmos que
levem o ouvinte a compartilhar desse espírito. Às vezes, um conto que me
pareceu ingênuo e que não fez sentido para mim é contado lindamente por
um contador que encontrou nele o espírito da aventura. Quando isso
acontece, esse conto passa a fazer parte da minha memória e pode me
ensinar. Você poderá se perguntar: “Mas por que não vi isso antes?”. A
resposta pode ser: “Não o li ou ouvi com interesse o bastante”. Nesse caso,
você se pergunta: “Por que não me senti interessado por esse conto?”. E se a
resposta for: “Não estou muito ligado ao tema nesse momento da minha vida”
ou “Esse tipo de conto não faz muito o meu gênero”, tudo bem, é assim
mesmo – não nos sentimos estimulados a contar algo que não tem nada a ver
com o nosso momento ou com o nosso jeito de ser. Mas, se você perceber que
não descobriu a riqueza desse conto porque ficou somente na superfície dele,
tente mais uma vez.
2. Uma história nos ajuda a formular questões sobre a nossa vida nas quais nem
tínhamos pensado: observe o tema de cada história e procure em sua
experiência situações em que viveu algo relacionado a ele. Escolha
personagens que mais tocam você, ponha-se no lugar delas e conte a história
dessas personagens em primeira pessoa. Construa para elas uma história.
3. A narrativa deve ir direto ao essencial. Para isso, as palavras devem ser fortes
e definitivas: tome consciência de seu tipo de discurso no dia a dia: você é
prolixo, não deixa claro o que deseja comunicar, fala demais ou de menos etc.?
Que palavras são essenciais ou se mostram repetitivas quando você fala sobre
determinado assunto?
4. O dom da narrativa é saber misturar, às histórias contadas, os sonhos que
teve dormindo ou acordado, as imagens que ficaram marcadas ao longo da
vida, as coisas ouvidas, os provérbios etc.: relacione o que pensa ser
significativo em suas lembranças e deixe tudo em um arquivo da memória
para lançar mão quando um conto precisar ou pedir.
5. Ter o dom da narrativa é também viver sua vida como uma história, ser a
personagem do próprio conto: conte a si mesmo a própria história como se ela
fosse um conto.
6. Saiba introduzir a própria vida nos relatos sem que isso seja uma
autobiografia. Use a carga emocional e afetiva experimentada na vida:
procure lembrar-se de situações, pessoas, lugares e sensações que foram
significativos em sua vida e marcaram você pela carga emocional que
continham.
7. Torne-se o herói de sua própria história, pois assim estará livre para
modificar-lhe o sentido e a saída: aprenda com os contos que conta e traga
esses aprendizados para sua vida, busque ver a si e ao mundo de forma
diferente, seja crítico em relação às suas “verdades”, confronte-as com os
contos e aprenda a rir de si mesmo.
8. Entrelace temas: pergunte-se qual é o tema das histórias das quais você mais
se lembra ou que mais lhe atraem.
9. Anote algo do cotidiano que chamou sua atenção: um estímulo, uma notícia
de jornal, um caso, impressões sobre uma casa abandonada etc.
10. Converse com objetos, plantas, animais e pergunte-lhes sobre eles.
11. Imagine funções e utilidades diferentes para os objetos.
12. Olhe para as pessoas, as coisas e os lugares como se fosse a primeira vez e
tente descobrir o que não tinha visto neles até então.
Não havia nada, senão um Ser./ Este Ser era um Vazio vivo,/ a incubar potencialmente
as existências possíveis./ O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um./ O Ser-Um
chamou-se de Maa Ngala./ Então ele criou “Fan”./ Um Ovo maravilhoso com nove
divisões/ No qual introduziu os nove estados fundamentais da existência./ Quando o
Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que constituíram a
totalidade do universo, a soma total das forças existentes do conhecimento possível./
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a tornar-se o
interlocutor (kuma-nyon)/ que Maa Ngala havia desejado para si./ Assim, ele tomou
uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e misturou-as; então,
insu lando na mistura uma centelha de seu próprio hálito ígneo, criou um novo Ser, o
Homem, a quem deu uma parte de seu próprio nome: Maa. E assim esse novo ser,
através de seu nome e da centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio
Maa Ngala.
Síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força suprema e con luência
de todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de herança uma parte do poder
criador divino, o dom da Mente e da Palavra. [AMADOU HAMPÂTÉ BÂ]
Essa re lexão, com caráter de ensaio poético, tem em seu tripé as seguintes
abordagens: 1) o contador de histórias como animador, no sentido de dar
alma/vida a palavras e objetos; 2) o teatro como narrativa e a presença do
narrador no teatro; e 3) as formas diretas de utilização do teatro de
animação (entenda-se, especialmente, teatro de bonecos e objetos) na
contação de histórias, tendo a anima1 como o fio fundamental que tece
tudo.
O objetivo deste texto é provocar algumas questões sobre essa tênue
relação entre o contador de histórias e o animador de teatro. Para o
desenvolvimento de um raciocínio lógico, foram propostas algumas
categorizações, não estanques, mas como termos provisórios com a função
de alicerçar nossa discussão e abordagem. Este texto tem ainda várias
entradas e saídas. Cada tópico aborda provocações que foram despertadas
quase como um luxo de consciência em alguns momentos e que merecem
ser maturadas. Porém, pela necessidade de síntese, elas estão indicadas de
forma panorâmica. Portanto, as questões devem ser vistas como
provocações, pontos de partida para o germinar de outras re lexões.
O contador de histórias, seja ele o “natural” (aquele que herdou e
desenvolveu habilidades por meio da sabedoria popular ou pela
experiência vivida), seja o “especializado” (aquele que estudou técnicas
teatrais, oratória etc.) – na falta de melhor denominação –, se utiliza de
animação, especialmente a teatral. A priori, poderíamos mencionar dois
suportes para o “animar”: a palavra (que dorme na boca do imaginário ou
do livro) e as formas (bonecos, indumentárias, adereços etc.). Aqui, o
termo “animação” se refere ao teatro de animação ou de formas animadas,
ou seja, contempla o teatro de bonecos, os fantoches, as marionetes, o
teatro de sombras, os “dedoches” e até mesmo as formas abstratas; porém,
não contempla a animação cinematográfica.
O contador pode animar palavras, formas e objetos de forma
descritiva (ilustrativa) ou abstrata (com sugestões de decodificação e
metáforas). “Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças
cósmicas que dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana
anima, põe em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas
(…)2.” Hampâté Bâ frisa que as ideias de “falar” e “escutar” não estão aqui
em seu sentido estrito, mas em um sentido alargado, e cita que, “‘Quando
Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala’.
Trata-se de uma percepção total […]”3. Tudo no universo “é fala que ganhou
corpo e forma”4. Essas citações parecem dizer tudo, uma vez que, para o
autor, a fala em seu sentido lato corresponde a todas as formas no
universo, formas essas que passam pelo “toque”, pela intervenção humana.
O ato de contar histórias é uma forma de nos transferirmos ao
mundo. E apenas nessa afirmação já reside a anima, já que ela passa pela
ideia de dar alma, dar sentido, dar vida a algo. Os registros mais antigos da
civilização estão cheios de histórias e de contadores, o que pode ser
demonstrado por meio das narrativas de desenhos rupestres, da roda ao
redor da fogueira, da música, do teatro, da dança e até mesmo das palavras
articuladas, que transferem vida aos objetos. As histórias existem apenas
porque são contadas. Elas são parte de um conhecimento acumulado
culturalmente que inspira e expira narrativas milenares, revisadas todo o
tempo, direta e indiretamente. Quando ouvimos histórias, vivenciamos
experiências únicas: a história nos dá a chave para uma atmosfera
imaginária – válvula de escape para a esmagadora vida real.
A própria função narrativa, ou seja, a articulação de uma
comunicação sequencial e linear, é intrínseca à estrutura do pensamento e,
com isso, da percepção. Tendemos a organizar tudo aquilo que olhamos de
forma narrativa, e isso fica bastante visível ao longo de toda a história da
arte. Todavia, nesse sentido, estamos diante de mudanças vertiginosas em
relação à arte.
A animação é um atributo energético dado a algo inanimado,
desprendendo do corpo humano vida, movimento, anima, para o corpo
inanimado (objetal). Esse recurso é bastante recorrente na prática do
contador de histórias, pois ele leva anima de si para os elementos de seu
uso, inclusive para a própria palavra, a qual já tem um potencial animístico
impregnado. O contador os carrega de alma, intenção e sentimento.
Nesse sentido ilustrativo, também é significativamente recorrente
um contador de histórias dar alma às palavras com voz e movimento e, na
hora de pegar um boneco, por exemplo, sacudi-lo de um lado para outro
sem lhe proporcionar vida, apenas trazendo esse recurso para “ilustrar”,
como mera alegoria visual. É importante sublinhar que o teatro de
animação é uma linguagem específica, com seu sistema e seus códigos
estéticos, e não uma arte “menor”, como muitos o percebem, por ser muito
bem recebido pelas crianças.
O contador, bem como o artista de teatro de animação, deve
trabalhar com princípios do pensamento “alógico” e fantástico, vivendo
nuances da fase do pensamento animista infantil, no qual o mundo real se
torna fantástico, e apresentando uma “extralógica” que tenha domínio
sobre códigos reais e irreais, para poder assim transitar livremente entre
eles. Para os contadores, o imaginário é uma espécie de brinquedo virtual
que pode ser acessado sem fronteiras e que se arquiteta e se dissipa no ar.
Uma das características do mundo contemporâneo é negligenciar o
onírico. Entretanto, sob o caos e as diversas direções para as quais se olha,
ainda se sonha. Nessa habilidade, estão calcadas duas práticas irmãs: o ato
de contar histórias e o teatro de animação. Está na imaginação o poder do
animador e do contador de dilatar sua vida para a voz, o objeto, o
movimento, entre outros elementos, transbordando desse modo sua
vitalidade ou capacidade de multiplicação vital.
Isso passa também pela percepção e o acesso da imaginação do
emissor (contador, animador) e do receptor (ouvinte, público), ou seja, por
mais virtuosa que seja a animação ou a contação, uma parte dessa
experiência se constrói na recepção, pois não se conta nem se anima para
si mesmo. O teatro e a contação de histórias são linguagens que dependem
do outro para existir: são uma espécie de espelhamento em que a sombra
do artista é o público. Quanto maior for o animismo, maior será o jogo
entre os dois. No caso de não existir o jogo, essa animação é unilateral,
percebida apenas de um ponto de vista – ou só pelo emissor, ou só pelo
receptor. A imaginação é, na verdade, um processo de escavação da
linguagem. O que vai lhe dar forma é dimensionado por seus códigos, com
base ou não em estereótipos.
Um intérprete, seja ele ator, contador de histórias ou leitor, tem a
capacidade de transcender seu objeto, seu suporte, e de extrapolar
semanticamente o sentido do texto ou do objeto. A voz, o som, os ruídos no
ato de contar histórias e de animar expandem o sentido, recodificando a
tessitura semântica e colorindo-a com suas intenções e com as intenções
do leitor. Segundo o griô Hassane Kouyaté, “a palavra é metade daquele
que diz e metade daquele que ouve”.
Kouyaté afirma ainda que a “palavra escrita está deitada”5, logo, o
livro é a cama do texto que adormece até que o leitor o acorde, dando-lhe
vida, em um ato muito íntimo e construindo uma relação de amor e ódio.
O contador de histórias tem condições de fazer uma festa dionisíaca com
esse texto. A partir daí, começa um jogo de prazeres entre três: a história
(textual-literária ou oral e visual), o ouvinte (público) e o contador, que
assume um papel divino, soprando e absorvendo vida. Testemunha dos
sonhos, o contador transcreve a imaginação e, para ele, não existe apenas
um mundo.
Essa ideia de não existir apenas um mundo, de expansão, se aplica a
todo artista, que, com sua percepção e olhar, é um atravessador de
linguagem, pois consegue ver além do que se vê comumente. Nas
linguagens orientadas pelo fantástico, essa questão ganha ainda mais
destaque pelo fato de a concepção e a elaboração estética partirem de um
descolamento perceptivo, de uma expansão mundana.
Por que é dada tanta veracidade à escrita, mera transcrição, desenho
do som que sai da palavra oralizada? Será que a escrita não seria a prisão
do pensamento que, no auge do suor, tem a porosidade sintetizada por
causa do rígido suporte? Quantas vezes ouvimos as pessoas dizerem frases
como “na verdade, não era exatamente isso o que eu queria dizer”, “não sei
se estou me expressando bem”, “você me interpretou errado” etc.? Temos
muitos exemplos dessa insuficiência comunicativa, tanto na escrita como
na oralidade. Entretanto, a favor da oralidade, o signo sonoro está
presente no instante em que é emitido. A escrita, por sua vez, é um
metacódigo da imagem e da fala.
O ato de ler, decodificar ou decompor está desprovido do som da
palavra oral e, com isso, deslizam alguns dos seus sentidos originais e
orgânicos. Esses sentidos são orgânicos porque a palavra não respira por
si. O leitor precisa dar-lhe o sopro da vida. Não se trata aqui de uma
apologia arbitrária à oralidade, mas de equiparar fala e escrita, já que,
historicamente, “durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita
eram povos sem cultura”6.
No entanto, enquanto estiver vivo, o homem viverá suas múltiplas
formas de manifestação, sobretudo porque é na linguagem que ele
encontra comunhão. “[O homem] é a palavra, e a palavra encerra um
testemunho daquilo que ele é7.” A literatura ou as outras formas de
linguagem artística são depositários do estado de alma, e toda história da
alma está resguardada nas formas corporificadas pelo pensamento. Parece
que a arte é a maior evidência disso, pois, segundo Platão8, a alma é
multiforme.
A presença do livro no ato de contar histórias é uma questão muito
polêmica. Embora o próprio livro possa ser animado em uma sessão de
contação de histórias, podendo transformar-se em pássaro ou em qualquer
outra coisa, ele já é, em si, um elemento simbólico na sessão da contação.
Quando o vemos como objeto, já sabemos que ali há uma fonte de
possibilidades, inclusive de histórias e vida de seres. O livro é tão guardião
da memória quanto o céu é guardião da boca do narrador.
Levanto algumas perguntas para nos desestabilizar: de que forma o
livro pode integrar narração e audição e participar da própria narrativa?
Como o livro pode adquirir significados? Quais seriam as possibilidades de
explorá-lo sem perder a essência do ato narrativo? O olhar, um dos elos
entre contador e público, pode atravessar as páginas do livro e encontrar-
se com o ouvinte? Será que o livro é uma parede estéril no ato de contar
histórias? Walter Benjamin pode dar uma perspectiva para essas questões:
“Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem
a lê partilha dessa companhia”9, ou seja, contar histórias, seja com um livro
nas mãos ou não, é um ato de compartilhar experiências.
CONSIDERAÇÕES
[…] através da voz, a palavra se torna algo exibido e doado. […] Em casos
extremos, o sentido dos vocábulos deixa de ter importância, é a voz em si
mesma que nos cativa, devido ao autodomínio que manifesta… Assim nos
ensinaram os antigos com o Mito das Sereias. Elas, em sua ilha, cantavam,
atraindo os navegantes pelo encantamento de suas vozes. Ulisses conseguiu
escapar pedindo que o amarrassem ao mastro de seu navio e tapando com
cera os ouvidos da tripulação. A voz é o instrumento da profecia, no sentido
em que ela a faz2.
[…] tudo se passa como se, episódio de um con lito milenar, participássemos
hodiernamente de uma volta à força da oralidade provocada pela in lação do
impresso, ao findar o século XIX. […] Na sobreprodução do escrito, a função
deste perde toda a evidência, enquanto a voz encontra a sua. De maneira
selvagem, na busca aleatória de sua plenitude biológica. Depois de uma
dezena de anos, um dos pontos de convergência das ciências humanas, cada
vez mais apercebido como tal, não é outro senão a personalidade da voz4.
Quando criança, eu era adicto à literatura, não podia ficar sem ler. A minha conexão
com a vida acontecia via literatura. Eu lia para aprender a viver, para saber o que
fazer. É claro que isso provoca muitas desilusões, muitos choques, porque a vida não é
literatura. Assim, quando comecei a escrever, foi porque lia. Outra razão é que meus
pais foram grandes contadores de histórias. Numa noite quente como esta, as pessoas do
meu bairro se reuniam para contar histórias, o que, desde muito cedo, se incorporou em
mim, passou a ser uma coisa que eu também queria fazer, só que à minha maneira,
escrevendo. [MOACYR SCLIAR]
PREÂMBULO
Não há quem não possua, entre suas aquisições da infância, a riqueza das tradições,
recebidas por via oral. Elas precederam os livros, e muitas vezes o substituíram.
[CECÍLIA MEIRELES]
Para esse autor, mais importante que os modismos que acabam por
pasteurizar e estereotipar as produções para crianças é manter-se
atualizado quanto às inovações da área, mas sem se deixar seduzir por
elas. É preciso um olhar crítico e sensível, e essa percepção será mais
claramente desenvolvida se os ilustradores souberem dos estudos
realizados na área da imagem, que hoje se multiplicam pelo mundo.
Nosso mundo fala muito por meio delas e é preciso saber interpretá-las. As
ilustrações […] complementam o texto verbal, dialogam com ele. Muitas são as
vezes em que imagem substitui o texto também. Na verdade, os bons livros,
principalmente os infantis de hoje em dia, contam suas histórias por meio das
duas linguagens: a verbal e a visual18.
Para além dos centros de educação infantil, das escolas, dos livros
endereçados às crianças ou das leituras noturnas para chamar o sono dos
filhos, os contos de fadas ganham novos significados no mundo
contemporâneo. Carregados de fantasia e impregnados do maravilhoso,
frequentam os cinemas, causam frenesi nas campanhas publicitárias,
pontuam nos games, desfilam nas festas a fantasia e são motivos de
decoração em quartos de bebê e bolos de aniversário. Em tempos recentes,
tornaram-se parte constitutiva e significativa do que se relaciona ao
universo infantil, estreitando um amplo diálogo com outras faixas etárias.
No entanto, séculos depois de suas primeiras recolhas, qual é o sentido de
ainda circularem e se contarem tais narrativas? Por que esses contos
permanecem tão vivos e servem de matéria-prima para diferentes versões,
revisitações, intertextos, citações e outros procedimentos artísticos da pós-
modernidade?
As respostas a esses questionamentos devem ter início ao situarmos
que os chamados contos de fadas têm sua provável origem na Europa
moderna, embora haja quem acredite que sua existência remonte a um
período muito mais antigo na história da humanidade. Esse fato se
evidencia por essas narrativas estarem fortemente ligadas em sua gênese
aos ritos de passagem e de iniciação presentes nas histórias desde tempos
remotos. Para Nelly Novaes Coelho, “as inúmeras semelhanças de motivos,
episódios e personagens que todos apresentam revelam com evidência o
fundo comum das fontes orientais, célticas e europeias de onde
surgiram”1. Pode-se dizer o mesmo pelas características que evidenciam o
aparecimento do sobrenatural, do destino e das provas pelas quais passam
heróis e heroínas.
Mas por que essas narrativas são chamadas de contos de fadas se
não aparece, na maior parte das histórias, a tão desejada figura da fada
com sua varinha de condão? Para saber essa resposta, faz-se necessário
uma busca no verbete etimológico que melhor elucida a palavra “fada”.
Derivado do latim fatum, o termo significa destino, fatalidade.
Compreendendo a terminologia utilizada, fica simples imaginar que esses
contos mostram os desafios enfrentados pelas personagens e como elas, ao
resolver seus con litos, dão novo sentido a seus destinos. Basta
recordarmos as consequências advindas do abandono de João e Maria na
loresta, a infância reclusa de Rapunzel trancada na torre, as artimanhas
do Gato de Botas ao ajudar o Marquês de Carabás, a ascensão de Cinderela
em decorrência do baile, isso para citar apenas algumas das narrativas
mais conhecidas. Além dessas, há centenas de outras nas quais a fada não
aparece de modo personificado, mas, mesmo assim, são denominadas
contos de fadas.
A relevância deste estudo centra-se na oportunidade de aprofundar
a mundialmente famosa história da menina de capuz vermelho que
pretendia levar mantimentos para a avó doente. Mas para quais caminhos,
sendas ou veredas levariam os pés dessa garota em um mundo marcado
por inúmeras transformações desde sua primeira aparição? Estaria ainda
o lobo em seu encalço nas entranhas da loresta? E, decorridos tantos anos,
como encontraria a avó convalescente? Afinal de contas, por onde anda a
Chapeuzinho Vermelho em tempos pós-modernos? Para arriscar algumas
respostas, será inevitável seguir seus rastros na gênese de sua existência,
vasculhando velhos documentos que salvaguardam suas origens.
As pessoas que as guardam são cada vez mais raras, porque o costume está se
perdendo […]. Onde ainda sobrevivem, vivem de tal forma que não importa se
são boas ou ruins, poéticas ou sem graça, nós as conhecemos e as amamos […].
Não queremos aqui enaltecer os contos ou mesmo defendê-los de uma
opinião contrária: sua simples existência é suficiente para protegê-los12.
“Era uma vez uma menina que usava um vestido azul”, teria começado uma
vovó lá no fundo da Germânia. A loura Gretchen, de quatro anos, vendo
através da vidraça a neve cair, interrompeu-a aí para a primeira colaboração:
“Vestidinho não, vovó, capinha”. Muito mais interessante com aquele frio,
uma capinha de lã, lã quente. “Azul também não, vovó, vermelha.” O azul é frio
e o vermelho é quente. E a história da menina do vestidinho azul passou a ser,
desde esse momento, a história da menina de capinha vermelha16.
1 Nelly Novaes Coelho, Contos de fadas, São Paulo: Ática, 2002, p. 89.
2 A obra se chamava, originalmente, Histoires ou contes du temps passé, avec des
moralités ou Contes de ma Mère l’Oye [Histórias ou contos do tempo passado
com moralidades ou Contos de Mamãe Gansa]. Esse segundo título pode ser
encontrado na tradução brasileira de Ivone C. Benedetti: Charles Perrault,
Contos de Mamãe Gansa, Porto Alegre: L&PM, 2012.
3 Charles Perrault, Contos de Perrault, Belo Horizonte: Villa Rica, 1999.
4 P. J. Stahl, “A respeito dos contos de fadas”, in: Charles Perrault, Contos de
Perrault, op. cit.
5 Ibidem, p. 38.
6 Charles Perrault, Contos de Mamãe Gansa, op. cit., p. 37.
7 Ibidem, p. 38.
8 Livre tradução a partir da obra original de Charles Perrault. Cf. Charles
Perrault, Contes en vers, contes en prose, Paris: Librairie Générale Française, 1990,
p. 197.
9 Jacob e Wilhelm Grimm, Kinder- und Hausmärchen, Düsseldorf: Null Papier,
2012.
10 Jacob e Wilhelm Grimm, Contos maravilhosos infantis e domésticos, São Paulo:
Cosac Naify, 2012, p. 137.
11 Ibidem, p. 139.
12 Ibidem, p. 26.
13 Ibidem, p. 28.
14 Ibidem, p. 29.
15 Monteiro Lobato, “A criança é a humanidade de amanhã”, in: Conferências,
artigos e crônicas, São Paulo: Brasiliense, 1964, p. 251.
16 Ibidem, p. 252.
17 Ibidem, p. 254.
18 Em pesquisas realizadas no Programa Institucional de Literatura Infantil
Juvenil (Prolij) da Universidade de Joinville (Univille), coordenado pela prof.
dra. Sueli de Souza Cagneti.
19 Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 14.
20 Ibidem, p. 40.
21 Ibidem, p. 126.
22 Monteiro Lobato, O Picapau Amarelo, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 8.
23 Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou da educação, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
24 Mário Corso e Diana Corso, Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis, Porto
Alegre: Artmed, 2006, p. 57.
25 Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, São Paulo: Edusp, 1970, p. 29.
26 Mário Corso e Diana Corso, op. cit., p. 55.
27 Philippe Ariès, História social da criança e da família, Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
28 Maria Tatar, Contos de fadas, Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 363.
29 Nelly Novaes Coelho, op. cit., p. 38.
30 Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno, São Paulo: Nova Fronteira,
1989, p. 67.
31 Bruno Bettelheim, A psicanálise dos contos de fadas, São Paulo: Paz e Terra, 1998,
p. 78.
32 Ana Maria Lisboa de Mello (org.), “Apresentação”, in: Charles Perrault,
Chapeuzinho Vermelho, Porto Alegre: Kuarup, 1993, pp. 31-2.
33 Agnese Baruzzi e Sandro Natalini, A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho,
São Paulo: Brinque-Book, 2008.
34 Chico Buarque, Chapeuzinho Amarelo, Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
35 João Guimarães Rosa, Fita verde no cabelo: nova velha história, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1992.
36 Mário Prata, Chapeuzinho vermelho de raiva, São Paulo: Globo, 1970. Disponível
em: <http://marioprata.net/literatura-2/literatura-infantil/chapeuzinho-
vermelho-de-raiva/>. Acesso em: out. 2014.
37 Flávio de Souza, Eram quatro vezes: comédia para crianças de todas as idades, São
Paulo: FTD, 2009, p. 28.
38 Deu a louca na Chapeuzinho. Direção: Cory Edwards. Estados Unidos, 2005; Deu
a louca na Chapeuzinho 2. Direção: Mike Disa. Estados Unidos, 2011.
39 A garota da capa vermelha. Direção: Catherine Hardwicke. Estados
Unidos/Reino Unido, 2011.
40 Grimm (série televisiva). Roteiro: David Greenwalt e Jim Kouf. Estados
Unidos, 2011.
41 Once upon a time (série televisiva). Roteiro: Adam Horowitz e Edward Kitsis.
Estados Unidos, 2011.
42 Maria Tatar, op. cit., p. 13.
Fadas: três séculos ou três milênios?
ANGELA LEITE DE SOUZA
Rapunzel, Rapunzel,
jogue-me seus cabelos!
E a menina lançava então, janela abaixo, sua magnífica cabeleira dourada, tão
brilhante e tão longa que já atingira vinte e dois metros de comprimento!
Além de belos, seus cabelos eram fortíssimos, pois era agarrada a eles que a
bruxa subia até o alto da torre.
Sem nunca antes ter desejado uma casa, aquele homem surpreendeu-se
desejando um palácio. E o desejo que tinha começado pequeno rapidamente
cresceu, ocupando todo o seu querer com cúpulas e torres, fossos e porões, e
imensas escadarias cujos degraus se perderiam na sombra, ou no céu17.
Eis que agora os homens trocam entre si palavras/ como se fossem ídolos invisíveis,/
forjando nelas apenas uma moeda:/ acabaremos um dia mudos de tanto comunicar;/
nos tornaremos enfim iguais aos animais,/ pois os animais nunca falaram/ mas sempre
comunicaram muito – muito bem./ […] O fim da história é sem fala. [VALÈRE
NOVARINA]
II
Entre duas pulsações do coração, é neste vazio, neste silêncio que se situa a
esperança. Pois que há uma esperança que nada espera, que se alimenta de
sua própria incerteza: a esperança criadora; a que extrai do vazio, da
adversidade, da oposição, sua própria força sem por isso opor-se a nada, sem
embalar-se em nenhuma classe de guerra. É a esperança que cria suspensa
sobre a realidade sem desconhecê-la, a que faz surgir a realidade ainda não
existida, a palavra não dita: a esperança reveladora4.
No risco da experiência, a esperança se insinua como impulso
criador e fermenta a palavra não dita. Não se trata de utilizar a experiência
e a esperança como instrumentos, mas de nos colocarmos no espaço que
elas abrem. No dizer de Jorge Larrosa sobre a experiência: “um espaço para
o pensamento, para a linguagem, para a sensibilidade e para a ação (e,
sobretudo, para a paixão)”5.
Esse espaço da experiência e da esperança no campo da vocalidade
poética inclui necessariamente a presença do outro. Sua condição de
existência é a presença do outro. A voz, como a experiencio, é singular,
mas só faz sentido no outro, inscrevendo nele sua vocação polar:
manifestação íntima, privada, pública e ressonância do eu na pessoa pelo
cidadão; ressonância íntima, privada, pública e manifestação do eu, na
pessoa, pelo cidadão. Na vocalidade poética, manifestação é ressonância,
ressonância é manifestação.
A experiência da palavra pela voz em performance “significa a
presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira
imediata”6. Ocorre que as tecnologias e os espaços virtuais que lhe são
corolários tendem a desencarnar a presença e, por conseguinte, digitalizar
o circuito entre esses corpos: nessas situações, a voz, descarregada dos
odores, suores, ruídos e silêncios do livre trânsito, emana agora de um
corpo abstrato. A ausência de presença compromete as ações da
experiência. Walter Benjamin, nos ensaios “Experiência e pobreza” (c.
1933)7 e “O narrador” (c. 1936)8, já perguntava:
Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem
ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam
ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado,
hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a
juventude invocando sua experiência?
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa
geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da
história. […] Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve
experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica
pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela in lação, a
experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma
geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se
abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens,
e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras,
estava o frágil e minúsculo corpo humano9.
Sabemos não obstante hoje que, para destruir a experiência, não é preciso
uma grande catástrofe: a vida cotidiana, em uma grande cidade, garante este
resultado perfeitamente, em tempos de paz. Em uma jornada de trabalho do
homem contemporâneo, não há, com efeito, quase mais nada que possa se
traduzir em experiência: nem a leitura do jornal, tão rico de notícias
irremediavelmente estranhas ao leitor, mesmo que concernentes; nem o
tempo passado nos engarrafamentos ao volante de um automóvel; nem a
travessia dos infernos onde se precipitam as linhas do metrô; nem o cortejo de
manifestantes, barrando bruscamente toda a rua; nem a bruma de gás
lacrimogêneo, que se desfia lentamente entre os imóveis do centro da cidade;
nem ainda as rajadas de armas automáticas que explodem não se sabe onde;
nem a fila de espera que se alonga diante dos guichês de uma administração;
nem a visita ao supermercado, esta nova terra da fantasia; nem os eternos
instantes passados com desconhecidos, no elevador ou no ônibus, em muda
promiscuidade. O homem moderno volta para casa à noite consumido por um
punhado de acontecimentos – divertidos ou perturbadores, insólitos ou
ordinários, agradáveis ou atrozes – sem que nenhum deles se transforme em
experiência11.
III
Se admitirmos que há, grosso modo, duas espécies de práticas discursivas, uma
que chamaremos, para simplificar, de “poética”, e uma outra, a diferença entre
elas consiste em que o poético tem de profundo [sic], fundamental
necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da
presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica
particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê,
respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. […] Quando não há prazer –
ou ele cessa – o texto muda de natureza12.
IV
Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadosamba, meu bem
Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadachama também19
O “eu” que eu digo quando digo “eu” só é efetivamente dito porque me ouço
dizê-lo, porque ressoa em meu interior, além de propagar-se para fora (bem
entendido de que sem esta propagação externa tampouco chegaria a ser a
rigor fala, senão mera alucinação acústica), porque me soa a mim mesmo,
porque me sabe a mim mesmo. E só porque isso é assim, sou autenticamente
eu quem fala (quem diz o que eu digo), porque me reconheço no que digo e,
portanto, posso responder (ante outros) por isso e responder (a outros) sobre
isso. De modo que, aceitando o falar como caráter distintivo do modo de ser
do homem, coisa que não há como refutar, a ressonância interior da fala – o
que chamaremos intimidade da língua – seria ao menos tão essencial à
palavra (e, portanto, ao homem) como a tão celebrada publicidade de sua
significação22.
NADA DE NOVO
Papéis sem conta
Sobre a minha mesa
O vento espalha as cinzas que deixei
Em forma de poemas antigos
Relidos
Perdido enfim confesso
Até chorei […]
Nada de novo
Capaz de despertar
Minha alegria27
A articulação entre escuta e receptividade aparece também no ensaio
“¿Qué es el teatro épico? (Segunda versión)”, de 1939, no qual Walter
Benjamin prescreve um público relaxado como condição do teatro épico.
“Nada mais agradável que estar tombado em um sofá e ler um romance”, diz
um dos autores épicos do século passado. Com isso se insinua quanto pode ser
o relaxamento do que desfruta uma obra narrativa. A imagem que fazemos do
que assiste a um drama costuma ser um pouco a oposta. Pensamos em um
homem que, com todas as suas fibras em tensão, segue um processo. O
conceito de teatro épico (que Brecht conformou como teórico de sua práxis
poética) indica, sobretudo, que esse teatro requer um público relaxado, que
siga a ação sem opressão. Tal público se apresentará sempre como uma
coletividade, que o distingue do leitor que está só com seu texto28.
VI
[…] não se propõe a transmitir o puro “em si” do assunto, como uma
informação ou uma notícia. Submerge o assunto na vida do relator, para
poder logo recuperá-lo desde ali. Assim, se adere à narração a pegada do
narrador, como a marca da mão do oleiro na superfície de sua vasilha de
argila29.
Ele [o saber] não pode se submeter aos novos canais, e tornar-se operacional, a
não ser que o conhecimento possa ser traduzido em quantidades de
informação. […] O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será
consumido para ser valorizado numa nova produção; nos dois casos, para ser
trocado31.
O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então
é ele que vibra, de corpo e alma. Não há algo que a linguagem tenha criado
nem estrutura nem sistema completamente fechados; e as lacunas e os
brancos que aí necessariamente subsistem constituem um espaço de
liberdade: ilusório pelo fato de que só pode ser ocupado por um instante, por
mim, por ti, leitores nômades por vocação32.
TIMONEIRO
Não sou eu quem me navega
quem me navega é o mar
é ele quem me navega
como nem fosse levar […]
Meu velho um dia falou
com seu jeito de avisar:
– Olha, o mar não tem cabelos
que a gente possa agarrar35
DANÇA DA SOLIDÃO
Meu pai sempre me dizia
Meu filho tome cuidado
quando eu penso no futuro
não esqueço meu passado36
VII
Não obstante a beleza dessas canções contemporâneas, forjadas pela
experiência do aedo que as compôs, o que
VIII
IX
O narrador oral urbano está amarrado aos livros como um barco ao cais, ali se abastece
para sair a navegar. Aos livros chegamos para nos abastecer, mas, como os barcos,
regressamos a eles também para reparar nossas feridas, para descansar e para repartir
a carga que trazemos. [RODOLFO CASTRO]
INTRODUÇÃO
A escola […] deve assumir e difundir estas manifestações tão ricas e antigas, e
isso não só nos primeiros anos, mas também ao longo de toda a escolarização.
Assim, cíclica e progressivamente, os educadores potenciarão as capacidades
imaginativas, sensoriais, fabuladoras […] é educativo trabalhar a literatura
como visão originária do ser humano diante do mundo, das outras pessoas, da
divindade, da morte etc. e como construção de outra realidade, de plenitudes
linguísticas […]5.
ORATURA
[…] a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, da qual
é imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por dar
maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo. É
como se acreditássemos que, para conhecer uma pessoa, melhor fosse
contemplar uma fotografia do que o próprio rosto14.
É certamente nossa aptidão para viver num mundo de representações que cria a nossa
aptidão para a violência e ao mesmo tempo para a cultura. [BORIS CYRULNIK]
A comunicação – em si mesma – é um processo vital, que encontra sua expressão
máxima no amor. [PIERRE WEIL]
UM COMEÇO
OS ALICERCES DA UTOPIA:
AS HISTÓRIAS E UM NOVO PARADIGMA PARA O MUNDO
ENSINAR A COMPREENSÃO
O SÁBIO JUIZ12
Um dia, o juiz da cidade adoeceu. No outro dia, foram chamar o mulá
Nasrudin para substituir o juiz.
– Nasrudin, o nosso juiz está de cama e não poderá julgar hoje. Querido
mestre, poderia nos ajudar?
– Tenho minhas dúvidas se eu saberia me comportar num tribunal… –
ponderou Nasrudin.
– Ora, claro que saberia, não há dúvida de que seria um ótimo juiz,
Nasrudin! Afinal, todos sabem que você é um homem sábio, justo e honesto!
– Por isso mesmo tenho minhas dúvidas se eu saberia me comportar
num tribunal…
Nasrudin argumentou, mas, de tanto insistirem, antes de perder a
paciência (e com ela, a sabedoria), acabou aceitando passar o dia no tribunal
como juiz.
Chegando lá, vestiram-lhe toda a indumentária, o mulá adentrou o
tribunal e sentou-se na cadeira magistral. Todos o aguardavam, ao lado dele o
réu acusado de um grave crime, do lado direito o advogado de defesa, do lado
esquerdo o de acusação, diante dele o público que assistiria a tudo, curioso em
conhecer o primeiro veredicto do juiz Nasrudin.
E, assim que o juiz abriu a sessão, o advogado de acusação não perdeu
tempo. Acusou o homem de crimes gravíssimos, construiu uma
argumentação impecável, chegando racionalmente à seguinte conclusão:
– O réu é culpado.
Ao que o juiz Nasrudin prontamente respondeu:
– Tem razão!
O advogado de defesa levantou-se, indignado:
– Mas, senhor juiz Nasrudin, isso é um absurdo, Vossa Excelência nem
sequer ouviu o lado do meu cliente – protestou.
– Pois diga, a palavra é sua…
E, sem perder tempo, o defensor usou muito bem a palavra,
contradizendo e desconstruindo cada uma das gravíssimas acusações do
outro advogado, chegando emocionado à seguinte conclusão:
– O réu é inocente.
Ao que o juiz Nasrudin, calmamente, respondeu:
– Tem razão!
Nessa hora, algumas pessoas ficaram boquiabertas, encucadas. No
entanto, o escrivão que acompanhava de perto a palavra de todos, disse:
– Com licença, Vossa Excelência: a acusação ter razão e a defesa ter
razão… Assim não dá!
Ao que o juiz Nasrudin prontamente respondeu:
– Tem razão!
Eu tava nervoso discutindo com um muleque que ele tava falando que não queria
mais maldade na vida dele e eu falei que ele tava em choque! […] eu falei que eu só tinha
maldade no coração e na mesma hora um senhor parou e falou pra mim: “quem planta
maldade colhe sofrimento”. Esse senhor de uns 60 e poucos anos que eu nunca vi na
vida virou e falou essas palavras pra mim. Mas eu não botei fé e vim para aqui na
Fundasão Casa, longe da minha família, longe do meu lar. É assim que eu aprendi.
MORAL DA HISTÓRIA: é vivendo e aprendendo. (A.M.S.)
UM ETERNO RECOMEÇO
Em um diálogo [ou numa narrativa oral] não há [ou não deveria haver]
a tentativa de fazer prevalecer um ponto de vista particular,
mas a de ampliar a compreensão de todos os envolvidos13. [DAVID BOHM]
Uma história, se for contada com jeito, palavra atrás de palavra, o corpo todo
acompanhando, de modo que o outro escute inteiro com a cabeça, o coração e as tripas,
pode até valer dinheiro, e vale mais do que dinheiro. [MARIA VALÉRIA REZENDE]
PREÂMBULO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Há muitas designações para caracterizar o momento presente:
sociedade líquida2, sociedade em rede3, sociedade pós-industrial4,
sociedade da modernidade tardia5, entre outras. Diante de tantos rótulos,
deparamo-nos com a angústia de uma época em que os conhecimentos
adquiridos em um passado recente não são suficientes para antecipar e
prever o que nos espera nem para explicar a complexidade do que vivemos
hoje. Para Leão, essas designações remetem a uma mesma ideia: “Os
recursos do conhecimento vão controlando, transformando e
substituindo, em ritmo crescente, todos os demais recursos, sejam
materiais, sejam energéticos”6.
A informação é a base para a tomada de decisões nas várias esferas
sociais, que, por funcionarem em rede, possibilitam a qualquer um ser
produtor, intermediário e usuário de conteúdos na internet. Miranda7
defende que a penetrabilidade das tecnologias da informação na vida das
pessoas e na transformação da sociedade é um dos principais indicadores
de que vivemos em uma “sociedade da informação”.
Ma fesoli ressalta que, no fundo, o mais importante dessa sociedade
“é a partilha cotidiana e segmentada de emoções e de pequenos
acontecimentos. Mesmo na internet o aspecto interativo predomina sobre
o utilitário”8. As pessoas sentem necessidade do encontro, da troca, da
partilha, e de vivenciar um tempo distinto do cronológico, batizado por
Dora Etchebarne de “tempo afetivo”9, em que o ontem e o hoje não existem
e só importa a permanência dos valores.
Uma das maneiras de experimentar esse tempo afetivo é contar
histórias, dando vazão às necessidades de comunicação e traduzindo por
meio de palavras os acontecimentos cotidianos, as memórias transmitidas
pelos ancestrais, as dúvidas, as angústias, as alegrias e os prazeres da
existência.
Nas últimas décadas do século XX, a figura do contador de histórias10
reapareceu com nova roupagem e grande vigor a partir da ampliação do
número de pessoas interessadas em aprender as técnicas dessa atividade.
Se em tempos passados era ao redor de uma fogueira que as pessoas
se reuniam para escutar os mais velhos narrarem suas aventuras,
lembranças e ensinamentos, hoje:
Modelada pelo turismo cultural, ressurge a contação. Adaptada aos novos tempos,
ressignificam-se aspectos da tradição e se realojam antigas práticas sociais.
Antes relacionada à totalidade do modo de vida caipira e desligada do aspecto
das trocas monetárias, a contação de histórias11 vem aos poucos se tornando
uma atividade profissional, entendida e exercida dentro dos parâmetros
próprios da modernidade, ou seja, da remuneração pelo trabalho realizado12.
Motivação inicial
Entre os contadores entrevistados, a motivação inicial para contar
histórias pareceu vir de três fontes principais:
Formação
Oito contadores entrevistados passaram por algum tipo de formação
específica em contação de histórias. Cinco deles fizeram um ou mais
cursos de formação oferecidos pelo Sesc30.
Percebeu-se, no decorrer das entrevistas, uma ênfase na referência
pessoal aos contadores-formadores, como legitimação de um saber
adquirido. Indagados a respeito da importância dessa formação específica
em contação de histórias, houve aqueles que a consideraram
imprescindível:
Autonomia
A autonomia é a capacidade do profissional de controlar os recursos
do próprio trabalho. No fazer dos contadores de histórias, uma das
possíveis formas de controle do próprio trabalho é a liberdade de escolha
do repertório, assim como a delimitação de determinadas condições em
relação aos trabalhos “sob encomenda”. Alguns contadores dizem que esse
tipo de prática, em que os contratantes do serviço solicitam previamente
uma temática de repertório, ou mesmo histórias específicas, é pouco
requerida.
Na medida em que os contadores se propõem a viver da prática de
contar histórias, a formação de seu repertório acaba sujeitando-se às
requisições dos contratantes. Contudo, para isso, são estabelecidas
algumas condições:
[Algumas] encomendas […] eu não faço, eu tenho uma postura política bem definida,
contação de histórias independente do valor pago, para partidos de direita eu não faço,
para partidos de esquerda é uma coisa que eu penso até certo ponto. [CHACAL]
Sou atriz e sempre fui profissional autônoma, fazendo comerciais, espetáculos de teatro
(que faço até hoje), eventos, apresentações em escolas… Como contadora de histórias
faço a mesma coisa, só que em outros tipos de evento, outros contextos, mas a relação
profissional funciona do mesmo jeito. Emito nota do trabalho que executo, pago imposto
como todo autônomo. [BELA]
Profissionalização
Sobre a questão “Contar histórias pode ser considerado uma
atividade profissional?”, apenas um dos entrevistados afirmou: “Eu acho
que contação de histórias não é uma profissão. O ato de contar histórias é
uma coisa inerente do ser humano, eu acredito. Todo mundo conta
histórias” (Emília).
Embora todos possam contar histórias, parece haver uma
diferenciação entre os que realizam essa atividade profissionalmente – ou
seja, são remunerados por isso – e os que se utilizam da contação de
histórias como um recurso a fim de enriquecer sua prática profissional.
Para os respondentes, houve também aqueles que queriam contar histórias
na família, ou voluntariamente, sem a expectativa de se tornarem
profissionais:
Penso que há uma diferença entre uma pessoa que quer aprender a contar para contar
para seus netos, seus familiares, seus alunos em sala de aula e outra que decidiu viver
desse ofício. Neste caso, esta é, sim, uma atividade profissional, e a mais importante até.
No meu caso, por exemplo, eu vivo disso. Esta é a minha principal atividade. [DONA
BENTA]
Identidade
O contador de histórias contemporâneo tenta enaltecer e delimitar
os contornos de sua prática. No entanto, ao assumi-la como profissional,
vê-se obrigado a lidar com as oscilações e inconstâncias próprias do
mundo artístico.
Para superar essas fragilidades, o contador de histórias empenha-se
na busca de sua própria identidade. Se, por vezes, parece difícil se
autonomear, um dos caminhos possíveis a trilhar é a definição do que um
contador de histórias não é. Observou-se, por exemplo, a preocupação em
diferenciar a contação de histórias da animação de festas:
Contador é diferente de animador de festa, as pessoas confundem muito isso […] acho
que o chão da contação de histórias ainda é a escola. Mas enquanto os professores
usarem a contação como meio de abaixar os ânimos quando está chovendo, ou matar
tempo quando a aula termina mais cedo, enquanto houver essa perspectiva, a contação
não vai ser considerada. [SACI-PERERÊ]
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadlo f, levou-o para que
descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de
muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do
mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar! [EDUARDO GALEANO]
LINGUAGENS
Teatro e contação de histórias
AUGUSTO PESSÔA
[…] a questão não é a defesa fanática das versões antigas, mas, sim, a
conservação do significado simbólico do conto, considerado tão importante
pelos psicanalistas, junguianos, educadores e filósofos […] Cremos que novas
versões e novas leituras são necessárias. O presente tem o que acrescentar ao
passado. Mas cremos, ainda, que, para um melhor aproveitamento do
trabalho, é oportuno que se conheça o tradicional. Histórias milenares que
contêm a sabedoria dos povos merecem ter, no teatro, a sua versão original,
ou o mais original possível, apresentada ao lado de outras criações ou
recriações mais livres. É imprescindível – repita-se – recuperar o espaço da
transmissão dos contos, que conservam valores espirituais, conhecimento e
sabedoria dos homens através de gerações e gerações3.
As cenas em que os atores criam o céu, o sol e as nuvens, assim como a que
eles montam o jardim, com suas enormes e coloridas lores, são de uma poesia
comovente. […] chama especial atenção no espetáculo as ideias de transformar
as mercadorias da feira em elementos da cena, e de promover a
transformação dos atores, ora em feirantes, ora em personagens da história
que está sendo contada. É muito interessante para as crianças descobrir o
teatro dentro do teatro – o que acontece quando as mudanças cênicas
acontecem propositadamente na frente do público, sem truques. A peça tem
ainda o mérito de promover o prazeroso encontro das crianças urbanas com o
rico universo da cultura popular brasileira […]6.
E então uma menina de 11 a 12 anos levantou a mão querendo contar uma história.
Sentou-se na cadeira do narrador e contou da avó que havia morrido, da qual ela sentia
muita falta. A avó, antes de morrer, contava de como era no seu tempo em que ela
andava de trem, e que um dia a levaria para passear de trem também. Ela nunca foi,
porém, naquele dia, se lembrou da história, pois viu o museu reformado (uma antiga
estação de trem, onde acontecia a apresentação de teatro). A menina escolheu a atriz
que faria o seu papel. O condutor anunciou o início da cena: “Vamos ver!”. A música
começou, os atores prepararam o cenário utilizando caixotes de madeira e panos. Os
outros personagens foram incorporados pelos outros atores, e sem combinação nenhuma
entre os artistas, a história foi encenada, e nela a avó vai embora, se despedindo da neta
no final. No término da encenação, a menina chorava. As pessoas que assistiam
também se emocionaram. O condutor abraçou a menina e a levou de volta para a
plateia. Logo uma mulher se levantou e quis contar uma história alegre, que, segundo
ela, era “para descontrair” 2.
Foi a prática desde o início feita em espaços diferentes do teatro, para pessoas
diferentes das plateias convencionais do teatro, que o diferenciou de outras
formas teatrais. O fato de que essas audiências pertenciam a contextos
específicos, como por exemplo educação/escola, reabilitação/lar coletivo,
comunidade/vizinhança emergiu como um aspecto definidor do método de
teatro playback5.
Para Rowe7, assim que a plateia chega, ela já vai sendo apresentada
ao playback de acordo com a disposição das cadeiras, as luzes e a relação
com os atores. Seu nível de segurança psicológica dependerá de alguns
aspectos: “Isso [a segurança em contar histórias] será crucialmente afetado
pelo tamanho da plateia e a familiaridade entre seus integrantes, qualquer
interação com os performers, a visão que tem do palco, e, principalmente, a
integridade do limite entre o espaço teatral e o de fora”8.
Por isso, o ritual é um aspecto importante nesse tipo de teatro. É
necessária a criação de um ambiente aconchegante, onde as histórias
possam ser compartilhadas. É muito difícil alguém contar uma história
pessoal diante de uma plateia de desconhecidos sem antes haver uma
preparação, sem haver a construção de um espaço seguro em que as regras
estejam estabelecidas.
Por fim, uma garota, amiga da menina que contou a primeira história, pediu para
contar uma também. Contou o dia em que elas se conheceram. Logo começou a chorar
contando a história. Falou que era sozinha e [que] a amiga veio fazer o lanche com ela.
Depois ficaram “amigas para sempre”. Um dia ela foi na casa da amiga e descobriu
pela avó dela (aquela da outra história) que eram primas. Fizemos a história na forma
curta “Narrativa em V”. A garota, ainda comovida talvez com a história da amiga, quis
contar algo para exaltá-la. Para o grupo esta apresentação foi o maior exemplo até
agora de como as histórias se comunicam, e como as pessoas também se
responsabilizam pelos outros e pelo bom andamento do trabalho21.
Aquela mulher que rasga a noite/ Com seu canto de espera/ Não canta/
Abre a boca/ E solta os pássaros/ Que lhe povoam a garganta [PAULA TAVARES]
RÁDIO E FICÇÃO
O ATOR RADIOFÔNICO
DIZER E OUVIR
Chegar à escuta pela fala, pela voz, pelo rádio. A paixão pelo rádio,
pelo que ele oferece como linguagem, um novo encantamento pela palavra
dita, falada, sussurrada. A voz me levou à escuta. E a escuta me trouxe o
silêncio. O silêncio como princípio, como espaço no qual a palavra atuará.
Como a música para Gismonti:
[…] ela, a palavra, não é uma simples executora da língua, mas carrega sua
verdade própria. A voz poética emerge, portanto, do luxo mais ou menos
indiferenciado dos ruídos e dos discursos. Ela faz o acontecimento. […] No
momento em que o diz, a voz transmuta o simbólico produzido pela
linguagem, ela tende a despojá-lo do que ele comporta de arbitrário; ela o
motiva com a presença deste corpo de onde emana. À extensão prosódica, à
temporalidade da linguagem, a voz impõe assim sua espessura e a
verticalidade de seu espaço21.
As histórias boas de contar não vêm somente dos livros: elas vêm também
da vida que a gente vive, das conversas que ouvimos pela rua, dos filmes a
que assistimos e do modo como tudo isso se mistura no caldeirão da
sensibilidade de cada um. Muito do que faz alguém narrar bem é a atenção
às histórias potenciais que pipocam, lutuam e se espreguiçam ao redor,
além da vontade de compartilhar os pequenos e grandes prazeres e as
pequenas e grandes emoções que aquilo provoca. É o desejo de ser um elo
na corrente de sentido e mistério que nos liga uns aos outros através da
distância e do tempo.
O tema que escolhi para esta re lexão é o movimento das histórias
entre diferentes linguagens e semióticas e, especialmente, a possibilidade
de recontar oralmente histórias que vemos em filmes. Muito já se estudou
e escreveu sobre as adaptações dos contos orais para a literatura e dos
livros para o cinema, mas o reconto oral de filmes é um tema menos
explorado, apesar de ser constante nesse início de século multimidiático.
Para entrar aos poucos nesse foco, sobrevoarei a paisagem mais ampla na
qual se encontram também assuntos como o registro, o reconto e a
adaptação de narrativas. Se houver aqui alguma perspectiva singular, ela
será a de buscar dirigir-me a outras pessoas que, como eu, gostam de
contar histórias.
No horizonte desta conversa, paira a imagem do legendário mar de
fios de histórias da novela magistral de Salman Rushdie1. Esse mar
compunha-se de milhares e milhares de fios de histórias. Cada um deles
continha uma narrativa e se entrelaçava com outros em uma complexa
“tapeçaria líquida”, um organismo vivo: “E como as histórias ficavam
guardadas ali em forma luida, elas conservavam a capacidade de mudar,
de se transformar em novas visões de si mesmas, de se unirem a novas
histórias”, descreve Rushdie.
O mar era mantido vivo por milhares de peixes cheios de bocas que
engoliam a água do mar e em cujas entranhas o fio de uma narrativa se
fundia ao de outra, fazendo com que as histórias se recriassem em eterna
alquimia. Como esses peixes milbocas, todos nós, que pertencemos à espécie
homo narrans, precisamos de histórias e usamos as que pudermos
encontrar – seja na voz dos trovadores, nos livros, jornais e filmes, seja no
sentido que pudermos dar ao curso de nossa vida. A partir dessa imagem,
podemos dizer que o dinamismo da vida narrativa da cultura depende da
multiplicidade das histórias. Quanto mais narrativas estiverem vivas – ou
seja, sendo contadas –, maiores as possibilidades de recriação e a
vitalidade narrativa da cultura.
Comecemos, então, pensando na emoção criadora presente na
escuta que busca tecer uma escrita a partir de uma história ouvida. Cecília
Meireles disse que a emoção de ouvir equivale à de ler, e que a emoção de
contar uma história oralmente equivale à de escrever2. Esse jogo de
espelhos é percebido desse modo por Ricardo Azevedo, um dos mais
talentosos recontadores de histórias tradicionais brasileiras: “Eu, quando
escrevo, sei que estou escrevendo. Mas tento escrever como quem fala. E
espero que o leitor se coloque na posição de quem ouve”3. Imaginemos, por
exemplo, há duzentos anos, a excitação com que os irmãos Jacob e
Wilhelm Grimm ouviam a voz das camponesas que lhes contavam as
histórias de Chapeuzinho Vermelho, da Gata Borralheira e do
Rumpelstiltskin. Aquela emoção estava certamente unida à suposição que
eles faziam sobre quantos se emocionariam com aquelas pérolas da
tradição oral das lorestas alemãs do século XVIII que os dois anotavam.
“Esforçamo-nos em interpretar esses contos de modo mais puro possível
[…] nenhuma circunstância foi acrescentada, melhorada ou mudada”,
escrevem ambos em 1810, no “Prefácio” à publicação original de sua
coletânea de contos de fadas4.
A escuta atenta dos dois folcloristas tinha a ver com o desejo de
passar adiante os preciosos contos que viriam a ser conhecidos como os
“Contos de Grimm”. Assim como na voz de quem conta uma história
reverberam os ecos de muitas outras vozes – como ensina Bakhtin5 –, no
ouvido de quem escuta uma história antevendo o prazer de contá-la mais
tarde atuam os ecos de muitas outras escutas. O ouvido humano não ouve
sozinho.
Mais de um século depois, em um impulso semelhante ao dos irmãos
Grimm, o artista catarinense Franklin Cascaes6 passou anos ouvindo,
recontando e recriando em textos, desenhos e esculturas a riqueza do
imaginário tradicional dos imigrantes açorianos radicados no entorno da
Ilha de Santa Catarina no século XVIII. Apontando para um armário cheio
de anotações, conta-se que ele disse certa vez: “Isso aí ainda vai render
muito filme, teatro, livro!”. E ele estava certo: o tesouro guardado nos baús
de Cascaes já começou a ser explorado por projetos culturais em diferentes
linguagens neste começo do século XXI. Hoje, os pesquisadores das
narrativas orais as registram com a ajuda de gravadores de áudio e vídeo,
mas o interesse com que as escutam ainda é o motor fundamental do
entusiasmo de quem narra. Ele é parte do “jogo de contar”, a forma
dialógica pela qual aprendemos, desde a infância, a organizar
narrativamente nossas experiências7.
Sobre o que move o recontar, Ricardo Azevedo explica que o impulso
em seu trabalho vem do desejo de valorizar a cultura oral, “essa cultura
vivíssima que está fora da escola, sendo desprezada; e não para guardá-la
em museu, e sim para reintegrá-la à nossa vida”8. Ele explica que nunca fez
pesquisa de campo para encontrar os contos tradicionais em que se baseia,
mas fez um trabalho cuidadoso de pesquisa bibliográfica: “O que eu faço é
pegar vários contos de folcloristas, pego várias versões, e a partir daí faço
uma versão. Sou como um contador de histórias – e nem sempre os
contadores de histórias compreendem bem a história que estão contando,
porque se baseiam em uma única versão”9.
Um empenho semelhante por compartilhar moveu o trabalho de
Italo Calvino, que, ao longo de dois anos, no início de sua carreira como
escritor, mergulhou em livros antigos de coleções de contos tradicionais
italianos a fim de recontá-los. Ele descreve assim o entusiasmo que sentia
naquela tarefa: “Quanto mais afundava em minha imersão, mais diminuía
o distanciamento controlado com que mergulhara, e me sentia admirado e
feliz com a viagem, e o frenesi catalogatório – maníaco e solitário – era
trocado pelo desejo de comunicar aos outros as visões insuspeitas que se
abriam a meu olhar”10. Em uma de suas célebres palestras-testamento, ele
conta que a maior in luência sobre seu mundo imaginário foram as
histórias em quadrinhos pelas quais era apaixonado entre os 3 e os 6 anos
de idade. Mesmo depois que aprendeu a ler, não ligava muito para o texto,
preferindo “fantasiar em cima das figuras, imaginando a continuação”11. A
leitura das figurinhas sem palavras, diz ele, foi uma “escola de fabulação”12.
Uma percepção semelhante é a de outro romancista a cuja
inspiração me referi há pouco. Salman Rushdie lembra que sua grande
in luência literária – o que fez dele um escritor – foi o filme O mágico de Oz,
a que assistiu aos 10 anos13. Isso porque, sugere ele, o filme possui uma
intensa “verdade imaginativa”. Ele comenta a qualidade das imagens do
filme, tentando descobrir o que é que torna possível a viagem imaginativa
para o país das histórias, para o mundo de Oz14. O poder que o filme teve
de fazer um menino decidir que queria ser escritor se liga a um laço
primordial e prazeroso amarrando imaginação e narrativa, cujas
dimensões teóricas temos explorado em outros trabalhos.
O que Calvino chama de “processo imaginativo da imagem para a
palavra” é o que ele vivia na brincadeira de fantasiar em cima das
ilustrações dos quadrinhos, inventando histórias a partir delas, ou na visão
que antecede a escritura do conto. É também o que aconteceu a Rushdie
quando viu O mágico de Oz, um texto cinematográfico que o inspirou a
desfiar escrita. Esse mútuo estímulo entre narrativa verbal e imagética
pode ajudar-nos a re letir sobre os fenômenos contemporâneos ligados à
criança na cultura. Que formas de educar, por exemplo, podem tirar o
maior partido desse rico e múltiplo movimento da imaginação: da palavra
à imagem e de volta à palavra? Do ponto de vista da leitura e da narração de
histórias, como podemos aproveitar a onipresença da imagem midiática
na vida das crianças e dos jovens para enriquecer suas experiências
estéticas verbais?
O cinema é hoje um narrador privilegiado, “cumprindo o papel de
preservar uma trama tal qual os narradores orais faziam com os contos da
tradição”, como apontam Diana e Mário Corso15. O desejo de contar
histórias por meio do cinema, na certeza de que há milhares de pessoas
querendo assistir a elas, movimenta impérios econômicos e simbólicos.
Esse desejo continua levando multidões às salas múltiplas dos shoppings e
às telas privadas dos computadores, tablets e smartphones, convertidos
todos eles em espaços de acesso a histórias filmadas para fruição imediata
em qualquer hora e lugar. Se o desejo de contar histórias pulsa forte ao
lado da produção fílmica e é tema de incontáveis estudos, o que podemos
dizer do desejo de recontar oralmente as histórias a que assistimos em
filmes?
Há quase vinte anos, quando iniciei minha pesquisa de doutorado,
era predominante entre os educadores uma atitude defensiva com relação
à televisão, ao cinema e às mídias audiovisuais, acusados de destruir
inapelavelmente a imaginação das crianças. Sem entrar aqui nos
meandros desse debate, que é certamente complexo, retomo apenas uma
das hipóteses que explorei na época, a saber: a de que, se as crianças
tivessem mais oportunidades de recontar histórias baseadas no que
tinham visto na televisão e no cinema, elas poderiam exercitar a
imaginação de um modo autoral. A imaginação narrativa da criança estava
ali sendo entendida como uma força potencial de ressignificação e
apropriação cultural, à qual deveria ser garantido espaço na cultura e na
escola. A pesquisa de campo transcorreu ao longo de tardes memoráveis
em que, dentro de canoas à beira da praia de uma vila de pescadores, as
crianças do lugar contavam para mim e seus amigos as histórias que bem
entendessem, desde contos da tradição oral até filmes e cenas de
telenovelas. Aqui estão alguns exemplos dos recontos de trechos de filmes
inseridos espontaneamente na conversa das crianças, que tinham entre 10
e 11 anos:
DANIEL – O melhor lutador era o Bruce Lee. Vinham dez em cima dele, ele ‘vuuuuuu’!
GASTÃO – Foi legal um dia que passou o filme dele, até que ele tava fazendo ginástica.
Daí chegou uns cara, não sei se por trás ou pela frente… daí ele tava fazendo
ginástica, daí ele viu assim com a mente dele, daí quando eles foram pegar ele, ele
virou, bateu assim por trás, daí ele chegou assim, tinha um pau assim embaixo, aí ele
pegou e deu cacetada.
NELSON – A história da Pequena Sereia! Tá, vou contar. Era uma vez uma pequena
sereia. Ela era filha do rei sereia. Aí uma vez ela se meteu numa encrenca. Foi láááá
embaixo, num negócio – eu vi na televisão – aí ela ficou presa, aí o rei foi lá. Aí chegou
lá, pegou o cetro e deu um tiro com o cetro. Aí ele foi, subiu, subiu – aquilo lá sugava
água, né. Aí ele foi, foi, foi. Aí depois saíram. Aí daqui a pouco encontraram um monte
de tubarão. Aí eles se entocaram. Aí os tubarão não acharam eles, que tavam
correndo. Aí o rei deu com o cetro e os tubarão saíram. Aí eles foram pra casa. Aí
deu16.
Foi então que alguma coisa se apoderou de mim. Enquanto eu contava o filme
– gesticulando, dando braçadas, mudando a voz –, ia como que me
desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens.
Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Massala, o malvado do filme. Fui
as duas mulheres leprosas que Jesus curou. Fui o mesmíssimo Jesus. Eu não
estava contando o filme, eu estava atuando no filme. Mais ainda: eu estava
vivendo o filme22.
1 Salman Rushdie, Haroun e o mar de histórias, São Paulo: Pauliceia, 1991, p. 62.
2 Cecília Meireles, Problemas da literatura infantil, São Paulo: Summus, 1979, p. 42.
3 Gilka Girardello, “Uma entrevista com Ricardo Azevedo ou de como um
escritor embrenha-se no discurso popular e colhe mudas de ‘pés de
maravilha’”, Signo, Santa Cruz do Sul: 2014, v. 39, n. 66, p. 44. Disponível em:
<http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/4927/3456>. Acesso
em: set. 2014.
4 Jacob Grimm e Wilhelm Grimm, Contos maravilhosos e domésticos, t. 1, São
Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 32.
5 Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
294.
6 Cf. Fundação Franklin Cascaes. Disponível em:
<www.pmf.sc.gov.br/entidades/franklincascaes/>. Acesso em: set. 2014.
7 Cf. Maria Cecília Perroni, Desenvolvimento do discurso narrativo, São Paulo:
Martins Fontes, 1992; Roxane Rojo, Falando ao pé da letra: a constituição da
narrativa e do letramento, São Paulo: Parábola, 2010.
8 Gilka Girardello, op. cit.
9 Ibidem.
10 Italo Calvino, Fábulas italianas: coletadas na tradição popular durante os últimos
cem anos e transcritas a partir de diferentes dialetos, São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 15 (grifos da autora).
11 Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 109.
12 Ibidem.
13 Salman Rushdie, The Wizard of Oz, London: British Film Institute, 1992.
14 Ibidem.
15 Mário Corso e Diana Corso, Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis, Porto
Alegre: Artmed, 2006, p. 244.
16 Gilka Girardello, A televisão e a imaginação infantil: histórias da Costa da Lagoa,
349f., tese (doutorado em ciências da comunicação) – Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1998, pp. 140 e 180.
17 Herói por acidente. Direção: Stephen Frears. Estados Unidos: 1992.
18 O beijo da mulher-aranha. Direção: Hector Babenco. Brasil/Estados Unidos:
1985. O filme é uma adaptação do romance de Manuel Puig, O beijo da mulher-
aranha (Rio de Janeiro: Rocco, 1986), publicado originalmente em 1976.
19 It’s My Turn (Bende Sira). Direção: Ismet Ergün. Turquia/Alemanha: 2007.
20 Hernán Rivera Letelier, A contadora de filmes, São Paulo: Cosac Naify, 2012.
21 Ibidem, p. 7.
22 Ibidem, pp. 31-2.
23 Ibidem, p. 36.
24 Jesús Martín-Barbero, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia,
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
Role-Playing Game (RPG):
o que é isso que me faz desejar criar e aprender?1
CARLOS KLIMICK
ELIANE BETTOCCHI
Era uma vez uma aluna que, assim como muitos outros alunos, se
sentia sem luz quando ia à escola. Isso era estranho, pois ela gostava muito
de aprender, descobrir e inventar, tanto que, em vez de uma festa de 15
anos, preferiu ganhar uma bicicleta e o livro ilustrado Cosmos, de Carl
Sagan, o qual lia e relia sem cansar. Naquele tempo, não havia internet, e
ela economizava sua mesada para comprar revistas sobre música, artes
visuais, cinema e ciências, muitas em inglês e vendidas nas bancas de
jornal do centro da cidade. Para chegar lá, ela tinha de pegar dois ônibus
muito cheios e demorados. Mas por que tanto esforço se a escola era do
lado de casa?
Por mais que não gostasse do que e do como da escola, a aluna passou
no vestibular. Custou a se decidir sobre uma carreira – na escola, não
explicaram direito para que se estudavam certos assuntos, e outros, não – e,
finalmente, apesar de adorar desenhar e contar histórias com imagens,
acabou optando pelo curso de biologia, pois seus pais se preocuparam com
a hipótese de ela se tornar artista e não conseguir um emprego.
Na universidade, ela encontrou o mesmo como da escola: aulas com
cara de palestra, desconectadas, e para as quais muitas vezes se viu forçada
a decorar conteúdos. A biblioteca era muito maior que a da escola, mas não
tinha quase nada interessante, só muita poeira e mofo. Muitos colegas iam
para lá dormir, afinal, era silencioso. Pelo menos agora ela tinha uma bolsa
de iniciação científica para gastar em revistas e livros que não eram usados
no curso. Entretanto, na universidade, a aluna encontrou algo que
mudaria sua vida para sempre: o RPG.
Era outra vez um aluno que adorava estudar e, exceto acordar cedo,
gostava de ir à escola. História, geografia e literatura eram suas paixões,
assim como física. Mas, curiosamente, não tinha um bom desempenho em
matemática. Por quê? Porque era muito claro para ele o que as fórmulas
significavam na física: o movimento de um corpo no espaço, o
aquecimento de um material, a refração na luz etc. Já na matemática, tudo
era muito nebuloso, e ele não entendia bem o porquê daquelas fórmulas e
muito menos como aplicá-las em sua vida. Como não se apaixonou pela
matemática nem entendia muito bem por que era importante aprendê-la,
não se empenhava. E, na química orgânica, qual não foi sua surpresa
quando descobriu que o gás metano que ele conhecia era o mesmo gás
metano da biologia. Então os conhecimentos não são estanques?
Fascinante!
Apesar de amar histórias, foi fazer faculdade de administração em
vez de letras, história ou cinema. Por quê? Porque o pai tinha um negócio e
precisava de um herdeiro. Essa história teve um final triste com o fim do
negócio, e esse final triste abriu uma porta para uma história feliz: depois
da faculdade, em um dia com os amigos, ele conheceu o RPG.
Essas poderiam ser histórias que fariam parte da descrição de duas
personagens criadas, respectivamente, por uma jogadora e um jogador
para iniciar uma campanha de Role-Playing Game (RPG) ambientada em um
cenário contemporâneo. Porém, elas são, na verdade, as descrições de uma
jogadora e de um jogador que se preparavam para iniciar uma campanha
de aprendizagem que culminaria em um método poético-didático
utilizado atualmente em suas produções artísticas e práticas pedagógicas.
O RPG, aproximadamente traduzido como “jogo de interpretação de
papéis”, é uma forma de jogo narrativo surgido nos Estados Unidos, em
1974, a partir dos jogos de guerra que simulavam batalhas em tabuleiros. O
primeiro e mais popular cenário usado é a chamada “fantasia medieval”,
inspirada na obra O Senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien. Em sua fase atual,
há uma grande diversidade de cenários (fantasia, ficção científica, terror,
histórico etc.), que se aproximam dos cenários das narrativas ditas de ação
e aventura do cinema, dos quadrinhos, das animações e dos videogames.
Nos suportes, encontra-se parcialmente descrito um cenário, no qual se
passarão as histórias vividas pelas personagens criadas pelos jogadores e
pelo(a) mestre ou narrador(a): bandeirantes e índios em um cenário de
Brasil colonial; cavaleiros em um cenário de Europa medieval etc. A
história começa a ser contada pelo mestre, mas os jogadores são livres para
decidir o que suas personagens falam e fazem na história.
Assim, os rumos da história são frequentemente alterados pelas
ações das personagens, já que a história na verdade é contada em conjunto
pelo narrador e pelos jogadores. É papel do narrador preparar o enredo,
representar as demais personagens e coordenar as ações durante a prática
de RPG. Narrador e jogadores representam as ações de suas personagens
descrevendo-as, e enunciam suas falas de modo direto ou indireto.
Quando há possibilidade de falha ou sucesso parcial, as dúvidas sobre os
resultados das ações das personagens dos jogadores são resolvidas pelo
sistema de regras, daí o RPG ser considerado um jogo:
jogo (lat. jocus: brincadeira) 1. Em seu sentido geral, o jogo é uma atividade
física ou mental que, não possuindo um objetivo imediatamente útil ou
definido, encontra sua razão de ser no prazer mesmo que proporciona. Essa
atividade, começando na criança ou no pequeno animal como gasto de
energia, tendo valor de treinamento ou de aprendizagem, muda de natureza
com o desenvolvimento do subjetivo humano: jogos de imitação, nos quais a
criança projeta seus desejos (bonecas etc.); jogos com regras ou socializados,
nos quais o prazer se vincula ao respeito às regras, às dificuldades de vencer
uma competição2.
O RPG É UM JOGO?
FANTASIA E ÊXTASE:
POTÊNCIAS LÚDICAS E NARRATIVAS DO RPG NO PROCESSO CRIATIVO
FANTASIA E TRANSVERSALIDADE:
POTÊNCIAS CRIATIVAS DO RPG NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM
PROJETO INCORPORAIS:
NOSSAS EXPERIÊNCIAS COM AS POTÊNCIAS DO RPG
1 Uma versão deste texto foi publicada na primeira edição do periódico Mais
Dados (2014, pp. 70-94), revista científica voltada à analise crítica das
categorias de jogos RPG, LARP, board games (jogos de tabuleiro) e card games
(jogos de cartas). Disponível em:
<www.narrativadaimaginacao.com/p/revista-mais-dados.html>. Acesso em:
mar. 2015.
2 Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário básico de filosofia, Rio de
Janeiro: Zahar, 2001, p. 150.
3 Roland Barthes, Aula, São Paulo: Cultrix, 1977, pp. 82-5.
4 Paul Ricoeur, Temps et récit, Paris: Seuil, 1983, t. I.
5 Johan Huizinga, Homo ludens, São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 33.
6 Arlindo Machado, “Formas expressivas da contemporaneidade”, in: Pré-
cinemas & Pós-cinemas, Campinas: Papirus, 1997.
7 Júlio Plaza, “Arte e interatividade: autor-obra-recepção”, Concinnitas – Revista
do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro: 2003, ano 4, n. 4, pp. 7-34.
8 Ibidem, p. 22.
9 Muniz Sodré, Best-seller: a literatura de mercado, São Paulo: Ática, 1988, p. 75.
10 Roland Barthes, Aula, op. cit.
11 Idem, “A atividade estruturalista”, in: O método estruturalista, Rio de Janeiro:
Zahar, 1967, pp. 57-63.
12 Antoine Compagnon, O demônio da teoria: literatura e senso comum, Belo
Horizonte: UFMG, 2001, p. 35.
13 Janet Murray, Hamlet on the Holodeck, New York: Free Press, 2003, p. 9.
14 Roland Barthes, S/Z, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
15 Ibidem, p. 43.
16 Eliana Yunes (org.), Pensar a leitura: complexidade, Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2002,
p. 33.
17 Eliane Bettocchi e Carlos Klimick, “Fantasia e êxtase: um exercício de
resistência através da forma”, in: Simpósio do Laboratório da Representação
Sensível: O (in)visível, 4, 2005, Rio de Janeiro, Anais, Rio de Janeiro:
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005. Disponível em:
<www.historias.interativas.nom.br/artigos/lars05.pdf>. Acesso em: set. 2014.
18 Roland Barthes, O prazer do texto, São Paulo: Perspectiva, 2002.
19 Paul Ricoeur, op. cit.
20 Roland Barthes, Aula, op. cit.
21 Idem, Mitologias, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
22 Leyla Perrone-Moisés, Roland Barthes: o saber com sabor, São Paulo: Brasiliense,
1983, p. 53.
23 Ibidem, p. 56.
24 Ibidem.
25 Paul Ricoeur, op. cit.
26 Wolfgang Iser, O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, 2 v., São Paulo:
Editora 34, 1996; 1999.
27 Roland Barthes, O prazer do texto, op. cit.
28 Haroldo de Campos, A arte no horizonte do provável, São Paulo: Perspectiva, 1977.
29 Paul Ricoeur, op. cit.
30 Roland Barthes, “A atividade estruturalista”, op. cit.
31 Robin Law, Robin’s Laws of Good Game Mastering, Texas: Steve Jackson Games,
2002, p. 9.
32 J. R .R. Tolkien, The Tolkien Reader, New York: Ballantine Books, 1966.
33 Idem, The Lord of the Rings, London: Unwin Hyman, 1988.
34 Dungeons & Dragons foi desenvolvido por Dave Arneson e Gary Gygax e lançado
em 1974 pela empresa TSR, Inc. nos Estados Unidos. Hoje, o jogo é publicado
pela Wisards of the Coast.
35 Denise B. Portinari, “A construção do cenário da Terra Média por J. J. R.
Tolkien”, in: Histórias abertas: simpósio de RPG em educação, 2003, Rio de Janeiro.
Disponível em: <www.historias.interativas.nom.br/artigos/tolkien.pdf>.
Acesso em: set. 2014.
36 J. R .R. Tolkien, The Tolkien Reader, op. cit.
37 “Desejei os dragões com uma vontade profunda” (Ibidem, p. 64).
38 “A recuperação (que abrange o retorno e a renovação da saúde) é uma re-
conquista – reconquista de uma visão clara” (Idem, p. 77).
39 GAME of Thrones – Interview with George R. R. Martin, Grace Dent, 2012.
Disponível em: <http://youtu.be/jnkUqUnz6a4>. Acesso em: fev. 2015.
40 João Batista Cardoso, Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto: por
um tempo de “PAS” (Programa de Avaliação Seriada), Brasília/São Paulo:
Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado, 2001.
41 Eliane Bettocchi e Carlos Klimick, “O lugar do virtual no RPG, o lugar do RPG no
design”, in: Simpósio do Laboratório da Representação Sensível: Atopia, 2,
2003, Rio de Janeiro, Anais, Rio de Janeiro: Universidade Católica do Rio de
Janeiro, 2003. Disponível em:
<www.historias.interativas.nom.br/artigos/lars03.pdf>. Acesso em: set. 2014.
42 Eliane Bettocchi, Incorporais RPG: design poético para um jogo de representação,
174f., tese (doutorado em artes e design) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/>. Acesso em: set. 2014.
43 Idem, Role-Playing Game: um jogo de representação visual de gênero, 155f.,
dissertação (mestrado em artes e design) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em:
<www.historias.interativas.nom.br/lilith/dissert/index.htm>. Acesso em: set.
2014.
44 Sônia Rodrigues Mota, Role-Playing Game: a ficção enquanto jogo. 999f., tese
(doutorado em letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1997.
45 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
46 Joseph Beuys, Falando sobre o próprio país: Alemanha III. Munique, 1985.
Disponível em: <www.historias.interativas.nom.br/lilith/aula/leitura/beuys-
lia.pdf>. Acesso em: fev. 2015.
47 Basarab Nicolescu et al., Educação e transdisciplinaridade, Brasília: Unesco, 2001,
p. 14.
48 Ibidem, p. 15.
49 Ibidem.
50 Edgar Morin – Coleção Grandes Educadores. Direção: Edgard de Assis Carvalho.
Brasil: 2006.
51 Carmen Moreira de Castro Neves, “Pedagogia da autoria”, Boletim Técnico do
Senac, Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2005, v. 31, n. 3, pp. 19-27.
52 Paulo Freire, op. cit.
53 Carlos Klimick, “RPG & educação: metodologia para o uso paradidático dos
Role-Playing Games”, in: Luiz Antônio L. Coelho (org.), Design & Método, Rio de
Janeiro/Teresópolis: PUC-RJ/Novas Ideias, 2006, pp. 143-61.
54 Eliane Bettocchi, Incorporais RPG: design poético para um jogo de representação, op.
cit.
55 Eliane Bettocchi, Carlos Klimick e Rian Rezende, “Projeto Incorporais: método
e material lúdico-didático para professores e estudantes do ensino médio”,
Tríades: Transversalidades, Design, Linguagens – Revista do Programa de Pós-
Graduação em Design da PUC-Rio, Rio de Janeiro: 2013, v. 2, n. 1. Disponível em:
<www.revistatriades.com.br/blog/?page_id=962>. Acesso em: set. 2014.
56 Fernando Hernández, Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho,
Porto Alegre: Artmed, 1998.
57 Ibidem, p. 22.
No tempo em que São Pedro e Jesus andaram pelo
mundo
VANUSA MASCARENHAS SANTOS
– Ó, Pedro, nós agora vai tirar o jipe da lagoa porque daqueles bebo sobra o tempo pra
tudo.
Pedro respondeu a Nosso Senhor:
– Ó, Senhor, os home que já era trabalhador não nos deu assistência pra tirar
o carro, aquele bebo vai querer fazer isso?
– Cala-te, Pedro, que tu não sabe o que é que tá dizendo. Aqueles têm um bom
coração e têm tempo pra sobrar.
Esta é de Pedro e Jesus que só andavam pelo meio do mundo, né? Aí, quando foi um dia,
saíram. Aí Pedro gostava de jogo, e Jesus não gostava. Aí Jesus ia passando, era Pedro
na frente, Jesus atrás, né? Quando chegou assim, tinha a casa de jogo, um barzinho
assim, né, a casa de jogo. Aí Pedro disse:
– Jesus, vamos ficar aqui?
Aí Jesus disse:
– Não, Pedro, nós vai embora!
Aí Pedro:
– Não, Jesus, vamos ficar pela aqui.
Aí Jesus sabe de tudo, né, entende tudo. Ele viu que não dava certo aquilo ali,
mas disse:
– Nós vamos ficar.
1 Jerusa Pires Ferreira, “‘Quero que vá tudo pro inferno’: cultura popular e
indústria cultural”, Comunicação e Sociedade – Revista Semestral de Estudos de
Comunicação, São Paulo: Instituto Metodista de Ensino Superior, 1985, ano VII,
n. 13, pp. 7-8.
2 Cf. Vanusa Mascarenhas Santos, A inscrição da religiosidade popular em narrativas
do ciclo de São Pedro e Jesus s.f., dissertação (mestrado em letras) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2007.
3 No Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (Rio de Janeiro: Ediouro,
1969, p. 378), encontramos a seguinte definição no verbete “excelências”: “é um
canto entoado à cabeça dos moribundos ou dos mortos. Quanto ao vocábulo, é
aceito entre os estudiosos tanto a forma excelência quanto incelência, sendo esta
última a utilizada pelos cantadores e contadores orais”.
4 Mircea Eliade, O sagrado e o profano, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 15.
5 Ria Lemaire, “Passado-presente e passado-perdido: transitar entre oralidade e
escrita”, Letterature d’America, Facoltà di Scienze Umanistiche dell’Università di
Roma, Roma: 2000, ano XXII, n. 92, p. 93.
6 Walter Ong, Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra, Campinas:
Papirus, 1998, p. 73.
7 Contado por José Quirino dos Santos (Neném Coimbra), 64 anos, natural de
Palmeiras, Piatã, Bahia, 11 de fevereiro de 2006.
8 Roberto Goto, Malandragem revisitada: uma leitura ideológica de “Dialética da
malandragem”, Campinas: Pontes, 1988, pp. 92-3.
9 Doralice Fernandes Xavier Alcoforado, A escritura e a voz, Salvador:
EGBA/Fundação das Artes, 1990, pp. 39-40.
10 Contado por Maria José Verônica da Silva, 56 anos, natural de Vitória, Espírito
Santo. ltarantim, Bahia, 23 de abril de 1991.
11 Georges Balandier, A desordem: elogio do movimento, Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1997, p. 35.
12 Contado por Valdivino Moreira da Silva, 75 anos, natural de Jacobina, Bahia.
Jenipapo, Jacobina, Bahia, 6 de janeiro de 1992.
13 Contado por Felipe Neri Oliveira Santos, 52 anos, natural da Fazenda Lagoa do
Xaré, Ipirá, Bahia. Fazenda Roça da Fazenda, Ipirá, Bahia, 25 de junho de
2006.
14 Contado por Maria da Conceição Lago Reis (Ceça), 30 anos, natural de
Jacobina, Bahia. Serrinha, Jacobina, Bahia, 5 de janeiro de 1992.
15 Cantado por Antônia da Luz (Dona Tonha). Pontilhão de Canavieira, Jacobina,
Bahia, 5 de janeiro de 1992. Cf. EBR 482.12 (Em Busca do Romanceiro – EBR é
um subprojeto do Programa de Estudo e Pesquisa da Literatura Popular do
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia).
PROCESSOS
Cantar e contar histórias
BIA BEDRAN
INTRODUÇÃO
O hábito de darmos o melhor de nós a cada vez [que contamos uma história]
significa em longo prazo que nosso interesse será prepararmos a melhor
narração possível, e que as histórias, apesar de poucas, serão estilisticamente
polidas e bem acabadas, capazes de ter efeito incalculável sobre quem as
ouvir39.
Assim, como meu objetivo nesse processo foi fazer que os alunos
internalizassem em seus corpos-memória princípios técnico-criativos do
trabalho vocal e sonoro, além de princípios da contação de histórias, não
me ative a lapidar suas cenas finais, mas a treiná-los e supervisionar suas
criações. Creio que essa abordagem tenha sido muito válida, por valorizar
o processo de ensino-aprendizagem com vistas a instrumentalizar os
alunos para novos processos pedagógico-criativos. Nas re lexões finais,
muitos comentaram essa questão, e as próprias cenas me deixaram muito
satisfeita por apresentarem, em sua maioria, esses princípios
internalizados.
Um ponto importante para encerrar as re lexões deste texto diz
respeito ao espaço de trabalho e à projeção vocal dos alunos. Como
comentado anteriormente, a projeção vocal é o controle da intensidade
(volume) e ressonância da voz, além de sua direcionalidade no espaço.
Dependendo da acústica do espaço e do ponto da emissão vocal, a
vocalidade é alterada e pode criar impressões diferentes das desejadas ou
até mesmo tornar-se inaudível. Em espaços abertos, com eco ou sem
qualidade acústica, faz-se necessário diminuir o andamento (velocidade)
da fala, enfatizar a articulação das palavras e aumentar a intensidade da
voz – o que gerará uma consequente demanda de um maior apoio
respiratório e vocal – para uma projeção vocal eficaz.
Desde o início do processo, trabalhamos em uma sala-padrão de
aulas práticas, com boa acústica. A projeção vocal criada pelos alunos pôde
ser mantida também no espaço de apresentação, que tinha um público
médio de cinquenta pessoas. Contudo, se o espaço fosse semiaberto ou
totalmente aberto, ou se tivesse um teto muito alto que dificultasse a
projeção do som, todo o trabalho vocal e sonoro teria de ser repensado,
desde os ensaios. Essa é uma questão muito importante para o contador de
histórias, pois todo um exímio trabalho de voz, com variadas vocalidades e
recursos empregados na relação com a palavra e com a cena, e uma
minuciosa pesquisa sonora e de projeção do som podem ser perdidos ou
devem ser repensados em virtude do espaço. Shedlock afirma
categoricamente: “Estou tão profundamente convencida do caráter
miniaturístico da arte da narração de histórias que acredito ser impossível
fazer uma apresentação perfeita desse tipo em um enorme salão ou diante
de um público muito grande”40. A amplificação da voz e do som pelo uso de
microfones é outro tema de discussão que não cabe neste texto, mas posso
afirmar: ela altera completamente a produção e a percepção da voz e da
cena.
CONTAR
HISTÓRIAS
Olhando nos olhos do público, fui entendendo que, para contar uma
boa história, eu deveria criar uma relação afetiva com o texto. Era
importante deixar a história passar pela minha alma e finalmente me
comunicar por meio do olhar, dos gestos e das intenções e transportar
minha matéria corporal até uma dimensão onírica aos olhos do público. O
melhor combustível para isso era ter um texto saboroso que me levasse
para longe e, ao mesmo tempo, para tão perto. Passei a questionar a
posição do ator passivo, que se coloca a serviço do diretor sem acrescentar
nada de si, em uma obediência cega, irracional, como um ator títere que
tem como alma a mão do diretor. Onde fica a história? Onde fica a reação
da minha personagem perante essa história? Eu me recusava a ser uma
mera repetidora de um texto e de uma gestualidade adquirida, e que bom
que eu tinha um diretor que também era criador de histórias. Juntos,
fizemos grandes caminhadas.
Assim, passei a viver para contar histórias e contar histórias para
viver. No palco, como atriz, usava o olhar do diretor, que me dava
confiança. Era um olhar de fora que não desrespeitava a história nem
minha intuição, mas que me ajudava e me preenchia. Como contadora de
histórias, percebi que a luz vinha de dentro de mim, e que quem me guiava
era única e exclusivamente o conto. Ele era o meu farol de orientação.
Nesse momento me senti dentro do meu conto iniciático. Havia
percorrido um caminho e começava a colher os ensinamentos. Afinal, há
um tempo para aprender, para receber a explicação e para ensinar. Tudo
corria bem em meu mundinho de descobertas, mambembe, cigano. Eu
tecia o fio da vida e contava histórias, às vezes no palco, com textos
teatrais, às vezes na rua, com contos. A Cia. Prosa dos Ventos viajou pelo
Brasil e foi parar na Europa. Estudamos, dedicamo-nos e erramos muito,
até que a vida me surpreendeu e fui parar em um estúdio de televisão.
A missão de contar histórias na televisão apareceu na minha vida
repleta de luzes, equipe técnica, roteiristas e uma porção de câmeras
assustadoramente enormes. Eles me cobriram de maquiagem, me deram
uma peruca verde e um figurino lindo. Acenderam o piloto, viraram o
monitor e alguém gritou: “Vinheta no ar!”.
Mas e agora, onde está o público? Como contar histórias sem os
olhos da plateia? E a tal energia, a tal magia, o contato com as pessoas,
onde fica? Eu ainda estou aprendendo, mal comecei a absorver os
ensinamentos, e já tenho de pôr em prática? Corta, corta, corta! São muitas
perguntas antes de começar essa nova caminhada artística. Deixe-me ir,
preciso andar. Vou por aí a procurar, rir para não chorar.
Passado o susto, respirei e tentei entender como contar histórias na
televisão. Uma nova fase começava.
TELEVISÃO
Uma vez, um antropólogo chegou a uma tribo africana no mesmo dia em que
uma televisão foi levada para aquele lugar. Todos os habitantes da aldeia
passaram três dias em volta do aparelho, assistindo a todos os programas com
grande interesse. Depois, abandonaram a televisão e não quiseram mais saber
dela. O antropólogo perguntou-lhes se não iam mais assistir aos programas.
– Não – disse um deles –, preferimos o nosso contador de histórias.
– Mas a televisão – retrucou o homem – não conhece muito mais histórias do que
ele?
– Pode ser – respondeu o antropólogo –, mas o meu contador de histórias me
conhece6.
Dae pão-por-deus
Que vos-deu deus
P’ra repartir
C’os fieis de deus
Pelos defuntos
De vo’meces…4
Tranca me-dáes?
Fujo p’Ra rua,
E seja tudo
P’l’amor de deus5.
O gorgulho, gorgulhete
Lhe dê no pote!
E lhe não deixe farello
Nem farellote8.
Ou seja:
Ó tia, dá Pão-por-Deus?
Se o não tem Dê-lho Deus!
Ou
Bolinhos e bolinhos,
Para mim e para vós,
Para dar aos finados,
Qu’estão mortos, enterrados,
À porta daquela cruz19.
Peço-peço é passarinho
Primo irmão do espero-espero.
Quando vem teu Pão-por-Deus
Nas asas de um quero-quero?
(Flávio José Cardozo)
O pessegueiro loriu,
A andorinha piou.
Envia-me o Pão-por-Deus
Se o amor enfim nasceu.
(Alcides Buss)
PÃO-POR-DEUS:
DE ALIMENTO PARA O CORPO A ALIMENTO PARA A ALMA
Abreviaturas
REFERÊNCIAS
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Unicamp,
2001.
GAYOTTO, Lúcia Helena. Voz: partitura da ação. São Paulo: Plexus, 2002.
STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2004.
Akpalô
Os negros, que tanto in luenciaram a cultura e a formação brasileiras,
foram também grandes difusores de contos de remotíssima origem. De
praticamente toda a África vinham braços escravos, o que significa que nos
trouxeram tradições orientais e europeias já incorporadas em sua
literatura quase totalmente oral. É esse o aspecto mais significativo de sua
contribuição para o folclore desenvolvido no Brasil. Em seu continente de
origem, contar histórias era uma antiga profissão: existia o akpalô, criador
dos alô (contos), e ainda os arokin, os narradores de crônicas do passado.
Esses narradores itinerantes, que formavam uma verdadeira casta,
tiveram sua correspondência brasileira nas velhas negras que iam de
engenho em engenho para transmitir histórias a outras negras, amas de
meninos brancos. Foram elas as grandes propagadoras da tradição oral
durante o período colonial, miscelânea de três repertórios básicos, com
seus mitos e medos, que as mães pretas iam amoldando às próprias
vivências e condições psicológicas. Narrador por excelência, dono de
expressão dramática perfeita em gestos e mobilidade fisionômica, o negro
consegue, como observou Câmara Cascudo, “efeitos maravilhosos de
sinceridade […], sugestionando inteiramente seu auditório”. (ALS)
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1984.
_____. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio/MEC, 1976.
_____. Contos tradicionais do Brasil – Folclore. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967.
MAGALHÃES, Basílio de. O Folk-lore no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1928.
Almanaques populares
Os almanaques estão entre as mais antigas publicações da atividade
editorial iniciada na Europa, depois que o alemão Gutenberg “inventou” a
imprensa. O Calendrier des bergers, de 1492, é considerada a mais antiga
dessas publicações. Os “livros de horas” medievais se inscrevem como
precursores desse modelo. Depois de pontificarem na Europa como obras
de referência e consulta por um grande número de pessoas, e tendo como
característica a periodicidade anual, os almanaques chegaram ao Brasil no
século XIX. Eram obras de fácil acesso e leitura e traziam matérias que
interessavam a toda a família. Com a proliferação das tipografias e com a
indústria de bens de consumo chegando ao Brasil, os almanaques
passaram a se popularizar e foram distribuídos pelos laboratórios
farmacêuticos, por muitas lojas e por algumas indústrias, além daqueles
que tinham a chancela dos governos das províncias para circular. O
primeiro almanaque popular de que se tem notícia no Brasil é o Almanaque
de Pernambuco, lançado em 1936 pelo poeta João Ferreira Lima no formato e
nos moldes do folheto de cordel. A capa trazia a ilustração de um leão,
símbolo de Pernambuco por causa da rebeldia prevalecente e do espírito
guerreiro que fez os holandeses serem expulsos e contribuíram para a
unidade da língua e da nação. Esse almanaque trazia adivinhações,
conselhos para os agricultores, as fases da lua, os dias santificados, a
previsão de chuvas, dicas de saúde, piadas e textos de exemplos. Outros
poetas aderiram ao formato, como Manoel Caboclo, que, em Juazeiro do
Norte, chegou a ser sócio de um empreendimento do poeta João Ferreira
Lima na Tipografia Lima. Essa tipografia funcionou perto do Mercado
Central daquela cidade cearense nos anos 1950. Caboclo lançou o
almanaque O juízo do ano em 1959 e o manteve em circulação até sua morte,
em 1996. A publicação foi um grande sucesso e chegou à tiragem de 35 mil
exemplares em seu apogeu. O formato se difundiu pela região nordestina e
ganhou mais editores, como Manoel Luiz dos Santos e Vicente Vitorino
Melo, dentre outros. (GC)
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de. “Lyra popular”. In: O cordel do Juazeiro. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006.
FRANÇA JÚNIOR, Luis Celestino da. In: CARVALHO, Gilmar de. Onze vezes Joaseiro: tributo
a Ralph Della Cava. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011.
RIOS, Kênia Sousa. “O tempo por escrito: sobre lunários e almanaques”. In: CARVALHO,
Gilmar de (org.). Bonito pra chover: ensaios sobre a cultura cearense. Fortaleza:
Demócrito Rocha, 2003.
REFERÊNCIA
MELLO, Thiago de. “Amazonas, pátria da água”. In: Amazonas, pátria da água e Notícia da
visitação que fiz no verão de 1953 ao rio Amazonas e seus barrancos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1987.
Ambiência sonora
Segundo Juliana Rangel de Freitas Pereira, ambiência sonora “é a voz do
ator articulada aos sons dos objetos sonoros produzidos por ele, tornando-
se linguagem e possibilidade de comunicação pelo que possuem de
sinestesia”. A autora compreende a produção de ambiências sonoras na
cena como um evento que afeta não apenas o espectador, mas a própria
criação corpóreo-vocal do ator, através das vibrações, imagens e sensações
que as sonoridades geram. Anteriormente a Pereira, Murray Schafer havia
cunhado o termo “paisagem sonora” para indicar as composições
formadas por objetos sonoros – sons de diversas fontes, classificados como
naturais, mecânicos, humanos, indicadores e culturais – e indicadoras de
imagens, ações, sensações e sentidos diversos no cotidiano. Schafer diz
que “o termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas,
como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando
consideradas como um ambiente”. Contudo, o termo trazido por Pereira é
mais eficaz por indicar a produção sonora no ambiente da cena, por voz ou
outras fontes sonoras, e por ser ao mesmo tempo material de pesquisa
para a criação corpóreo-vocal do ator e dramaturgia sonora. (DD)
REFERÊNCIAS
PEREIRA, Juliana Rangel de Freitas. Canção do mar de Salema: um processo de criação de
ambiência sonora articulada pela voz do ator. 112f. Dissertação (Mestrado em teatro)
– Universidade Federal da Bahia, Salvador: 2007.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e
pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora.
São Paulo: Unesp, 2001.
Animismo
Esse termo foi usado pelo antropólogo inglês Edward Burnett Tylor em
seus estudos sobre a evolução cultural do homem, referindo-se aos
elementos naturais como dotados de vida, animados, no livro Primitive
Culture, de 1871. Conforme citado por Newton Cunha, para Tylor “o
animismo estaria na base das concepções religiosas e metafísicas do ser
humano. O animismo vincula-se, portanto, à possibilidade da magia, ou
seja, da intercessão humana nas manifestações naturais”. Cunha ainda vai
além e se refere à prosopopeia e à personificação, e, assim, se aproxima da
representação dramática, do jogo, do simbólico – embora no contexto
“primitivo” isso se instaurasse de forma natural e não consciente. A
professora de psicologia da infância Jacqueline Held se refere ao animismo
dizendo que é uma etapa do desenvolvimento psíquico humano: “[A
criança] dá vida ao que toca […] sem problema e sem admiração, a criança
encontra o sol, a lua e as estrelas, a chuva, a neve, a lor e a sombra de lor.
Ela lhes fala, escuta suas respostas e caminha com eles”. Para a autora, a
criança passa por uma longa fase de brinquedo simbólico, que prolonga o
fantástico e “reúne na criança toda a visão animista do mundo”. É da
natureza humana a capacidade de animar. Para Ana Maria Amaral, é na
infância que esse desejo surge e é visível, quando a criança se relaciona
igualmente com os animais e com os objetos. É da natureza da criança o
animismo, atribuindo vida às coisas que a rodeiam. Transforma objetos e
se relaciona com a natureza, cria uma realidade imaginária sem
estabelecer fronteira com o real. O animismo é uma espécie de
prolongamento do mundo, de insatisfação ou de insuficiência, e mesmo de
extensão da percepção. Ainda nas palavras de Jacqueline Held, nesse
sentido “cada um de nós retira do real seu próprio universo”. (FHNM)
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas. São Paulo: Edusp, 1996.
CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo: Sesc/Perspectiva,
2003.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo:
Summus, 1980.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture. London: John Murray, 1871.
REFERÊNCIAS
LIGNELLI, César. Sons e cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica.
350f. Tese (Doutorado em educação) – Universidade de Brasília, Brasília: 2011.
MARTINS, Janaína Träsel. Os princípios da ressonância vocal na ludicidade dos jogos de
corpo-voz para a formação do ator. 199f. Tese (Doutorado em teatro) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador: 2008.
PEREIRA, Eugênio Tadeu. Práticas lúdicas na formação vocal em teatro. 246f. Tese
(Doutorado em comunicação e artes) – Universidade de São Paulo, São Paulo:
2012.
Baobá
Batizado pelos cientistas como Andosonia digitata, o nome científico do
baobá, ou embondeiro, foi dado em homenagem ao naturalista francês
Michel Adanson, que, em suas andanças pelo continente africano, fez um
relatório minucioso sobre a árvore e o enviou a alguns cientistas europeus.
Além de ser uma árvore da qual tudo se aproveita – fruto, semente, lor –, o
que mais impressiona no baobá é a grande espessura de seu tronco. Há
uma região de Moçambique em que ocorreu uma verdadeira guerra pela
água, e o tronco do baobá funcionou como cisterna. O grande cineasta
brasileiro quase moçambicano Licínio Azevedo fez o lindo filme A guerra da
água e também publicou um livro com as principais fotografias da obra, em
que o baobá aparece como armazenador de água. Em Moçambique, essa
árvore é considerada sagrada porque se acredita que ela seja protetora. O
autor moçambicano Mia Couto escreveu o livro A confissão da leoa, lançado
no Brasil em 2012, com um enredo baseado em um acontecimento real: as
sucessivas mortes de pessoas atacadas por leões. Essa obra é ambientada
em um pequeno lugarejo no norte de Moçambique, uma das regiões
daquele país nas quais existem muitos baobás. Foi em Moçambique que
ouvi dizer: “onde há baobás, há leões”. O baobá também é um símbolo de
sabedoria, e muitos anciãos moçambicanos são comparados a essa árvore
sagrada. Um deles é Malangatana Ngwenya: aquele que não pode morrer
nunca! (RA)
REFERÊNCIAS
A GUERRA da água. Direção: Licínio Azevedo. Moçambique: Ebano Multimedia. 1995.
73 min., color.
AZEVEDO, Licínio; CABRAL, José. A guerra da água (The Water War). Moçambique/Suíça:
ébano Multimédia/Cooperação da Suíça, 1998.
COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Cantor
1. Ação: o cantor lança seu corpo na vocalidade poética da canção. Paixão: o
cantor navega no mar de seu canto. Nesses movimentos, o cantor expande
e libera sua voz cotidiana.
2. Aracy de Almeida afirmou uma vez que percebera cedo não ser cantora,
mas que mesmo assim podia dizer a música brasileira. A cantora brasileira
canta dizendo. A voz brasileira diz cantando.
3. Podemos imaginar o cantor absoluto como um sujeito ressonante, um
ponto de acumulação de uma série em que a atividade mental do eu
domina progressivamente a atividade mental do nós. Sua voz vibrante de
paixão não reclama significados. Buscar esse limite é dirigir-se no sentido
de uma experiência vibratória de paixão e padecimento, uma arqueologia
de prospecção do horizonte do instante imediatamente anterior à
vocalização da palavra, em que cantávamos como pássaros e com os
pássaros, caminhando talvez por uma passagem falada, conectada com
sedimentos de tempos imemoriais, de dimensão geológica. O rapsodo
porta em seu corpo as marcas desse cantor. (ZDF)
REFERÊNCIAS
LOPES, Sara. “Do canto popular e da fala poética”. Revista Sala Preta. São Paulo: 2007,
n. 7, pp. 19-31.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.
Catira ou cateretê
Dança rural do sul do Brasil, conhecida desde o período colonial em São
Paulo, Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Couto de Magalhães informa que
o padre José de Anchieta a incluiu nas festas da Santa Cruz, de São
Gonçalo, do Espírito Santo, de São João e de Nossa Senhora da Conceição,
compondo versos no seu ritmo e partitura. Podia até ser dançada sem
mulheres. Alguns estudiosos acreditam ser de origem indígena; outros,
africana; e ainda é vista como a dança do século XVI que se chamou
“carretera”, em Portugal. Tendo alguns elementos fixos, a catira apresenta
variações na melodia e na coreografia. Duas filas, uma de homens e outra
de mulheres, uma diante da outra, evolucionam ao som de palmas e bate-
pés, guiados pelos violeiros e dirigidos por um mestre e um contramestre,
os únicos que cantam. Ao final de cada estrofe, trocam-se os lugares. Volta
e meia fazem um “pião”, ou seja, cada figurante gira sobre si mesmo e
retoma a frente inicial. As figuras são variadas, e há tradição de bons
dançarinos. Em Minas Gerais, o cateretê ocorre no sudoeste e na ponta do
Triângulo Mineiro, a partir de Frutal. Câmara Cascudo citava, a propósito
da dança, estes versos: “Parece uma coisa à toa/ Mas tem muito que sabê;/
que não é qualquer pessoa/ que dança o Cateretê”. (ALS)
REFERÊNCIAS
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.
Catumbi*
Na língua tupi, caá + tumbi significa folha (ou mato) azul. No dicionário
Houaiss, temos ainda outras interpretações para esse termo indígena: “ao
pé do monte” ou “à beira da mata”. Nei Lopes, estudioso e militante da
causa negra no Brasil, traz significativas contribuições para tornar visível a
herança africana na sociedade brasileira. É ele quem fica atento à
semelhança do termo com o vocábulo banto “cucumbi”. Na etimologia da
palavra “cucumbi” está kikumbi: “puberdade”, “festa da puberdade”, além de
ligar-se a um rito propiciatório de bom parto, todas práticas muito comuns
na maioria dos países africanos, até mesmo em Moçambique. O mesmo
autor, ao citar a obra de Mello Morais Filho, Festas e tradições populares do
Brasil, dá atenção aos cucumbis realizados no Rio de Janeiro imperial e
afirma que essa era a denominação dada na Bahia às “hordas dos negros
de várias tribos”, que se organizavam em “ranchos” ou “quintais” de canto
e dança na ocasião do Carnaval e do Natal. Nas demais províncias, eles
recebiam o nome de “congos”. Lopes ainda argumenta que o historiador
Morais Filho é quem mostra o folguedo como representação do cortejo dos
negros congos para a apresentação do mameto (criança) recém-
circuncidado à sua rainha. O mameto é uma “personagem dos antigos
cucumbis do Rio de Janeiro que representava uma criança, o filho do rei.
Esse vocábulo origina-se do quimbundo mam’etu, interjeição, ‘ai, mamãe!’”.
A apresentação dos mametos à rainha acontecia sempre “após a refeição
lauta do cucumbe”, comida de que se serviam congos e munhambanas no
dia da circuncisão de seus filhos. (RA) *Veja também as palavras finais do
verbete Caxambu. [N. E.]
REFERÊNCIAS
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
MELLO MORAIS FILHO, José Alexandre. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de
Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1946.
Causo
Na região Sul do Brasil, assim como em outras regiões do país, a
designação primeira para as narrativas tradicionais é o causo. Embora a
expressão designe grande parte das formas narrativas da região Sul, há
algumas nuances nesse etnogênero: além dos causos, a população local
menciona ainda “anedotas” e “modinhas”. Entre o que é considerado
causo, também pode haver diferenças, alguns sendo designados como
“mentiras”. É consenso na região que o causo é um episódio vivenciado
pelo próprio contador ou ouvido por ele, no entanto, sempre com uma
“pitada” de exagero, posicionando-se entre o fato e a “mentira” (uma
categoria usada frequentemente com o mesmo significado de causo): “A
gente aumenta, mas não inventa”. A diferença entre os “causos verídicos” e
as “mentiras” pode ser demarcada pelo contador – “Isso não é causo, mas é
um fato” –, mas a avaliação final sempre será dada pelos ouvintes. Os
causos são contados nas chamadas “rodas de causos”, que ocorrem
normalmente à tardinha, após o trabalho, reunindo vários ouvintes, alguns
deles também contadores: “é bom é quando tem uns quantos. Um conta e
outro já lembra doutro, e outro conta aquele, e outro lembra doutro…”. Faz
parte das estratégias narrativas os contadores assinalarem, no início dos
causos, nomes de pessoas e locais para garantir maior legitimidade ao que
será contado: “Aqui tem o seu Bibi Carvalho… é apelido dele, Bibi Carvalho,
sabe? Na Picada Grande”. (LH)
Caxambu
Grande tambor negro e também a dança executada ao som desse
instrumento. Luís da Câmara Cascudo cita Virgílio Martins de Mello
Franco e seu livro Viagem à comarca da Palma na província de Goyaz:
“apreciam muito a dança […] porém, nada tem de elegante, nem artística;
ao contrário, é grosseira e brutal como todas as coisas africanas e consiste
em uns trejeitos e gatimonhas”. O caxambu figura como instrumento em
outras danças e mesmo em um bailado, o jongo, em São Paulo, Minas
Gerais e Goiás. De origem sul-africana, da cultura banta, o caxambu é uma
variação do jongo e, em Minas Gerais, mostra-se frequente em Ponte Nova
e vizinhanças. De acordo com Saul Martins, há um registro gravado em
1975, por Alice Inês de Oliveira e Silva, técnica em assuntos culturais da
Universidade Federal de Viçosa e membro da Comissão Mineira de
Folclore, de uma estrofe referente a essa tradição: “Chega na cozinha./
Caxambu tá lá!/ Ei! é devera papai,/ é devera mamãe,/ Eu mesmo tengo ou
lotengo devera,/ Eu mesmo manco iromanco devera,/ Ei! Ei, ei, ei, cariru de
Maria…”. Há outros nomes para a dança: cacumbu, cacumbi e cucumbi.
(ALS)
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.
COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE. Associação dos Filhos e Amigos de Gouveia.
Disponível em: <www.afagouveia.org.br/ComissaoMineiraFolclore.htm>. Acesso
em: nov. 2014.
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
MELLO FRANCO, Virgílio Martins de. Viagem à comarca da Palma na província de Goyaz.
Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876.
Chico Rei
Segundo a tradição, Galanga (nome que lhe fora dado pelos pais)
governava uma porção do sul da África situada no interior, mas ainda
próxima à foz do rio Congo. Na primeira década do século XVIII, o pequeno
reino foi invadido por ambiciosos inimigos, e o bom monarca, sua família
e membros da corte foram presos a uma fieira de correntes, conduzidos à
praia e lançados ao porão imundo de um navio negreiro que rumou para o
Brasil. As más condições e os maus-tratos durante o percurso levaram
muitos prisioneiros à morte, entre eles a rainha e seus filhos, exceto o mais
velho. Aportando no Rio de Janeiro, todos foram vendidos na praça do
Valongo a mineradores de Vila Rica do Ouro Preto, em Minas Gerais. Por
sorte, Galanga e seu filho foram comprados por um senhor bom e humano,
que lhes permitia garimpar ou cultivar uma pequena gleba em benefício
próprio ou mesmo trabalhar para terceiros, como se fossem livres.
Batizado pelo senhor de Francisco, em dois anos de poupança Chico
comprou sua carta de alforria. Segue-se então uma longa história de lutas
e conquistas em que o ex-escravo obteve meios de libertar outros negros e,
ao mesmo tempo, adquiriu enorme prestígio e estima de brancos e pretos
de Vila Rica. Chico então passou a ser conhecido como Chico Rei, pois
enriqueceu, chegando a possuir uma lavra. Casou-se novamente e, como
líder de um grupo de negros forros, edificou uma igreja em honra de Nossa
Senhora do Rosário. Em torno dela, criou uma Irmandade. À sombra da
igreja, sob os auspícios dos padres que se tornaram seus amigos, Chico Rei
fundou uma “guarda de congos”. Aos domingos, subia o morro a caminho
da igreja trajado com opulência, com coroa de ouro e manto verde, de
braços com a esposa. Seu filho mais velho, com toda a pompa, segurava um
imenso guarda-sol amarelo, bordado com franjas de ouro, para protegê-
los. Debaixo desse pálio iam também duas mucamas. À frente, ostentando
várias insígnias, tocando instrumentos africanos e dançando sem parar,
iam os “congos”. Atrás desse cortejo ainda vinham cerca de quarenta
negros ricamente vestidos. O povo acorria às janelas e calçadas para ver a
corte passar. As guardas se expandiram por toda a província das Gerais, à
proporção que a fama de Chico Rei aumentava. Geralmente os congos
escolhiam Santa Ifigênia para padroeira, ao passo que os “moçambiques”
preferiam São Benedito. Ambas as guardas, assim como as que vieram
depois, com outras denominações e peculiaridades, eram fundadas sob as
graças de Nossa Senhora do Rosário. A partir do século passado,
adquiriram o nome genérico de “congados”. (ALS)
REFERÊNCIAS
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
SERVIÇO GEOLÓGICO DO BRASIL (CPRM). Ponto 31, Mina Chico Rei. Disponível em:
<www.cprm.gov.br/estrada_real/31.html>. Acesso em: set. 2014.
Cobra-grande e Boto
Segundo Luís da Câmara Cascudo, a cobra parece ser a origem de um ciclo
mítico. A intercorrência da palavra tupi moia, “cobra”, está presente em
inúmeros tupinismos, como se a cobra fosse elemento composicional de
inúmeros seres míticos. A começar pelo outro nome da Cobra-grande, que
é Boiuna, proveniente de ‘mboi-úna, “cobra preta”; ou então no outro
designativo da Mãe-d’água, que é Iara, ou suas variações Uyára, Oiára,
Uiara. Cascudo cita Couto de Magalhães, que diz que o Boto também é
designado como Uauiará, deus da mitologia indígena amazônica que se
transforma em Boto, ser protetor dos peixes e grande amador de índias.
Mesmo que haja estrita ligação, na mitologia indígena, entre Boto e Cobra-
grande, por vezes se confundindo ambos, o primeiro só aparece na
configuração de sedutor das moçoilas ribeirinhas dos rios da Amazônia a
partir do século XIX, assim como a Iara ou a Mãe-d’água, talvez a partir de
processos transculturadores provocados pela colonização. Até então,
particularmente do século XVI ao XVII, há a ocorrência, em cronistas
viajantes do período colonial, de ipupiaras, homens-peixes que matavam e
devoravam os incautos. O Boto também aparece sob a forma feminina,
como uma bela mulher de longos cabelos que seduz os homens e os
arrebata para o fundo dos rios. Em Santarém, no Pará, há registro
específico da aparição desse boto metamorfoseado em mulher. Como
elemento feminino, tal qual a água, apresenta sensualidade e maternidade,
sedução e vida, a origem de tudo. A beleza talhada pelas águas faz com que
o Boto e a Cobra-grande, ou Boiuna, sejam pavoneados pelo imaginário
nativo como seres de esplendor das águas, principalmente nas noites de
luar, quando transmitem brilho e viscosidade próprios das encantarias,
re letidas nas “escamas d’água”. Nesses momentos, esses seres compõem a
matéria aquática como prolongamentos, como a epiderme dos rios e
igarapés: o Boto em movimentos elegantes acompanhando barcos, que
serão repetidos nos salões quando, metamorfoseado em rapaz e exímio
dançarino, seduz eroticamente as moças atraídas por sua grande beleza; a
Cobra-grande é a própria soberba transfigurada em “navio alumiado” na
ilha da Pacoca, surgindo em Abaetetuba (Pará), cortando as águas e
assumindo um brilho que ofusca os olhos admirados, como a imagem
bachelardiana do cisne. Ao que parece, o Boto e a Cobra-grande encarnam
o hermafroditismo quando transitam do mundo feminino (a água) para o
mundo masculino, do ser metamorfoseado em belos rapazes ou como o
fálico navio que hipnotiza e rasga a pele dos rios e igarapés. (JGF)
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.
_____. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio/MEC, 1976.
MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O selvagem. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1935.
Comunidade narrativa
Termo retirado da obra Conto popular e comunidade narrativa, de autoria de
Francisco Assis de Sousa Lima, pelo qual se designa um grupo social que
compartilha histórias e práticas mais ou menos comuns. A comunidade
narrativa tem na circulação da poesia oral um dos principais traços de sua
formação, pois a poesia oral positiva ideias e valores, contribuindo para
articular, desse modo, a identidade do grupo. (FF)
REFERÊNCIA
LIMA, Francisco Assis de Sousa. Conto popular e comunidade narrativa. Rio de Janeiro:
Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1985.
Congadas
Trata-se de uma festa de devoção, um ritual “sagrado”, embora o profano
esteja fortemente associado a ela. Congada é, na verdade, a denominação
da grande família coreográfica em torno de Nossa Senhora do Rosário e
dos santos pretos. O registro mais antigo de sua ocorrência em Minas
Gerais foi feito por André João Antonil, que ali esteve em 1705. Em obra
publicada em 1711, referiu-se ao costume de os negros locais criarem reis,
juízes e juízas por ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário e de São
Benedito. Atualmente, os festejos abrangem o chamado Ciclo do Rosário,
que começa em agosto e tem a duração de três meses. O ritual das festas se
inicia com o levantamento do mastro – às vezes dois, um no adro da igreja
e outro na casa do festeiro. Depois, ainda de manhã, uma escolta conduz a
Coroa (o reinado) da residência dos reis até o altar. No trajeto, os “varsais”
dançam e cantam ou fazem “embaixadas”. A irmandade em Minas Gerais é
constituída por oito guardas, mas somente duas – congos e marujos –
fazem embaixadas. Durante a missa, que é o encerramento das
solenidades religiosas, procede-se à cerimônia de entrega do reinado,
quando são coroados novos reis para aquele ano. A isso, segue-se o almoço,
elemento de forte coesão social entre figurantes e membros da
comunidade. Baixam-se os mastros oito dias após o término das
festividades. Até hoje, quase trezentos anos decorridos, a tradição
permanece, e, ao ver o cortejo pelas ruas, sobretudo nas cidades históricas,
tem-se a impressão de que o tempo recuou e volta-se mentalmente ao ano
de 1750, para homenagear Chico Rei ainda vivo, de corpo presente. (ALS)
REFERÊNCIAS
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, com várias
notícias curiosas […]. Lisboa: O ficina Real Deslandesiana, 1711. Disponível em:
<https://archive.org/details/culturaeopulenci00anto>. Acesso em: set. 2014.
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
Contador-animador
Neologismo para denominar o contador de histórias que se vale do teatro
de animação (animação de bonecos, objetos, figuras etc.). Em sua prática,
o contador de histórias trabalha recorrentemente com princípios do teatro
de animação, tais como recursos de olhar, personificação da voz, entre
outros. Para saber mais, leia o texto “Contador de histórias: um animador
de palavras e coisas”, presente nesta coletânea (pp. 213-25). (FHNM)
Contador de histórias
Todo indivíduo que, ao contar uma história, se preocupa com a postura
diante do ouvinte e aprimora os gestos e a voz em benefício da narrativa. O
contador de histórias desenvolve técnicas que lhe conferem um estilo
próprio de contar histórias. O narrador não é necessariamente um bom
contador de histórias. Seu espaço privilegiado de atuação é o teatro. (FF)
Conto de despedida
Os contos de despedida podem estar relacionados a uma narrativa cujo
sentido seja a ausência de alguém. Eles também podem corresponder a
narrativas de costume. Em Moçambique, é muito comum o canto aparecer
como narrativa de despedida porque, para os moçambicanos, muito pode
ser expressado pelo canto por ele ser um enunciador do que se passa no
corpo. Um exemplo desse tipo de narrativa é a canção tradicional Salani:
Contos maravilhosos
O termo “maravilhoso” se aplica aos contos populares de origem oriental
em que o elemento mágico e o encantamento estão presentes. Foram eles
os antecessores dos chamados “contos de fadas”, que, apesar da
procedência e da temática semelhantes – geralmente, alguém do povo que
parte em busca de alguma forma de autorrealização –, surgiriam com essa
denominação somente em fins do século XVII, na Europa ocidental.
Curiosamente, poucas vezes as fadas estão presentes neles. O que sempre
intrigou os estudiosos foi o processo de transformação dessas narrativas,
que se fracionam, para depois fundirem-se com outras partes, em um jogo
de combinações aparentemente infinito. Coube ao filólogo estruturalista
russo Vladimir Propp encontrar a explicação do fenômeno, após um
estudo sistemático de 449 contos tradicionais. Sua tese, exposta no livro
Morfologia do conto, é a de que as partes constitutivas de tais histórias
podem ser transportadas de uma para outra sem nenhuma alteração. Além
disso, a função das personagens na narrativa tem valor constante, e o que
varia é o meio empregado para elas realizarem suas ações nesse contexto.
Surge daí a ilimitada propriedade que têm os contos maravilhosos de
mudar de forma, surgindo em novas versões. Propp chegou à conclusão de
que as estruturas desse tipo de conto são absolutamente uniformes. É por
isso que um único estudo conseguiu reunir nada menos de 130 variantes
de “Cinderela” mundo afora. (ALS)
REFERÊNCIAS
AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948.
GOMES, Lindolfo. Contos populares: narrativas maravilhosas e lendárias, seguidas de
cantigas de adormecer – da tradição oral do estado de Minas. v. 2. São Paulo:
Melhoramentos, 1919.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto. Lisboa: Veja, 1983.
Cordel
Tradicionalmente chamados de “folhetos de feira”, os cordéis são vendidos
nas feiras nordestinas desde o final do século XIX por poetas de bancada e
folheteiros que declamam trechos para chamar os clientes. São poemas
impressos em sextilhas (versos de seis sílabas) ou décimas (versos de dez
sílabas), ilustrados com xilogravuras, desenhos ou fotografias e destinados
a ser decorados ou lidos publicamente. Fazem referência ao sertão, o
interior do Nordeste, e tratam de temas jocosos e da atualidade e de
personagens da região: vaqueiro, cangaceiro, profeta, matuto, retirante,
político, artista etc. Sendo uma história em versos impressa
artesanalmente, com 4, 8, 16 ou 32 páginas, o folheto pertence ao mesmo
universo cultural da cantoria, poesia improvisada com viola de dez cordas,
com regras bem definidas e performatizada por repentistas ou poetas “pé
de parede”, que podem também escrever folhetos. O folheto de cordel
ainda é presente nas cidades nordestinas, em particular nas do interior
que têm uma importante atividade econômica ou religiosa, como Campina
Grande, Mossoró, Crato ou Juazeiro do Norte. É também encontrado nos
lugares turísticos, nas feiras de artesanato e nas rodoviárias, em uma faixa
que vai de Fortaleza, ao norte, a Salvador de Bahia, no sul. O cordel se
estabeleceu ainda nas cidades que receberam um contingente importante
de migrantes do Nordeste: Belém do Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e
Brasília. Grande parte da produção ainda é artesanal, mas as tipografias
foram extintas e o uso do computador é sistemático. Desde os anos 1970, a
editora Luzeiro domina o mercado de cordel no país e hoje vende pela
internet. Instalada em São Paulo, reimprime sistematicamente os grandes
sucessos de poetas famosos como Leandro Gomes de Barros (1865-1918),
João Melquíades Ferreira da Silva (1869-1933), João Martins de Ataíde
(1880-1959), Francisco das Chagas Batista (1882-1930), José Camelo de Melo
Resende (1885-1964), João Bernardo da Silva (1901-1972), Manuel Camilo
dos Santos (1905-1987), Severino Milanês da Silva (1906-1967), Manoel
d’Almeida Filho (1914-1995), João José da Silva (1922-1997), entre outros. (JC)
REFERÊNCIA
EDITORA LUZEIRO. Disponível em: <http://editoraluzeiro.com.br/>. Acesso em: nov.
2014.
Corpo-seco
O filho que espanca a mãe ou nutre por ela desejos edipianos não é
“comido” pela terra quando morre. A cada ano, ela o devolve um palmo.
Findos sete anos, ele emerge à superfície. O coveiro, então, transportará o
corpo-seco entre esteiras, para que ninguém o veja, até o padre da
freguesia, tendo o extremo cuidado de não o tocar. Caso isso aconteça,
surgirão feridas pelo contato. O sacerdote desempenha aqui uma
importante função, que é a de esconder o corpo-seco atrás do altar, onde
ficará durante os sete anos seguintes. Assim, a terra não mais o recusará.
Sem a intervenção da Igreja, o fogo o destruiria, e nem os urubus ou os
vermes o aceitariam para repasto. Apesar de ser uma entidade inerte, o
corpo-seco tem prestígio sobrenatural: não se deixa consumir e causa
úlceras incuráveis.
É interessante observar o simbolismo do número 7 nas histórias.
Esse número apresenta-se místico, misterioso, aritmeticamente
“esquisito” e, sobretudo, como o número da Criação. Ao identificá-lo com a
soma de 3 (a Trindade divina) mais 4 (os quatro elementos do mundo
físico), o número 7 surge como a união do homem com Deus. O 7 é o
número místico por excelência. Ele goza de uma série de privilégios, não
apenas entre os ocultistas como também em todas as religiões e seitas, das
mais primitivas às mais modernas. Além disso, são sete: as ciências
naturais, as virtudes, os pecados capitais, os sacramentos, as notas
musicais, os gênios persas, os arcanjos judaico-cristãos e assim por diante.
O 7 é um número primo e o único a não ser aritmeticamente múltiplo nem
divisor de outro número entre 1 e 10. 0 7 é, sem dúvida alguma, um número
diferente. Parece que o seu segredo é propriedade dos deuses…
Uma variante dessa lenda do corpo-seco é descrita por Veiga
Miranda em sua obra Mau-olhado, relativa a mulheres que “viravam
lobisomem” ou que “dormiam com o capeta sem saber e depois apareciam
com moléstias horríveis”. Ele completa: “Essas relações com o Tinhoso
traziam, às vezes, em consequência, uma enfermidade estranha: o corpo
da mulher ia definhando, […] até ficar como o de uma verdadeira criança. A
criatura possuída do demônio, se morria, […] nenhum bicho, nem os
corvos, nem as formigas, nem as vespas lhe atacariam o cadáver.
Enterrada, a própria terra, anos e anos, repugnava operar a
decomposição”. (ALS)
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.
CHABOCHE, François-Xavier. Vida e mistério dos números. São Paulo: Hemus, 2005.
HITCHCOCK, Helyn. A magia dos números ao seu alcance. São Paulo: Pensamento, 2013.
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
VARLEY, Desmond. Sete, o número da Criação. Lisboa: Edições 70, 1976.
VEIGA MIRANDA. Mau-olhado. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925.
Curupira e Ataíde
O Curupira é um ser ancestral na mitologia indígena e se imiscui no
decorrer da colonização no Brasil. Em geral, ele é representado como um
pequenino homem com os pés virados, com os calcanhares para a frente.
Marcadamente um demônio da mata, o Curupira engana caçadores e
viajantes, fazendo-os perder-se nos caminhos e provocando pavores e
remorsos (sensação de medo súbito). Por outro lado, também é visto pelos
conservacionistas e ambientalistas modernos como um ser mítico
protetor, pois percorre a loresta por ocasião de tempestades e trovões
verificando a resistência das árvores diante das chuvas, tão recorrentes na
Amazônia, batendo nos troncos com o calcanhar, o pênis ou um machado.
Mesmo considerado por Cascudo um menino (masculino) – corumi,
“menino”, e pira, “corpo”, ou seja, “corpo de menino” –, o Curupira aparece
também como um ser feminino – “a” Curupira – , a exemplo de narrativas
coletadas nas cidades de Bragança e de Santa Isabel, no Pará. Talvez por
sua característica preponderante de proteção das matas e das lorestas, o
ser mítico se confunde com a maternidade. Ali também a Curupira agrada
e ensina: no primeiro caso, faz pactos com os caçadores para lhes fornecer
caça boa e farta em troca de alimentos; como mestre, a Curupira ensina os
mistérios das matas para alguns que são seduzidos por ela para o ventre da
terra, para seu espaço de encantaria. No entanto, ela pode punir os
caçadores que não cumprem suas promessas e aqueles que destroem ou
exploram as matas.
O Ataíde, também de ocorrência restrita à cidade de Bragança e
adjacências, pode ser compreendido como uma variação do Curupira
masculino, e sua aparição é limitada aos manguezais litorâneos da região
nordeste do Pará. Pode ser igualmente designado como Sarambui. Tem
aparência de um grande ser peludo, lembrando um gorila, com um orifício
no umbigo. Habita a transição entre a água oceânica e a terra de restingas
e campos litorâneos, isto é, o manguezal, espaço que sofre a ingerência das
marés e tem solo argiloso. A argila é a matéria dos devaneios infinitos, da
criação; é uma matéria plástica e ambígua, de união entre terra e água; é o
perfeito casamento de opostos. O Ataíde também pode ser entendido como
um misto de Curupira e Boto: do primeiro guarda o sentido de proteção do
espaço, já que persegue os coletores e pescadores que abusam na retirada
de caranguejos, peixes e árvores do mangue; do Boto, guarda o apelo
erótico, mas de maneira agressiva, ele não é sedutor como o Boto.
Possuidor de falo descomunal, que enrola no pescoço, é um ser ameaçador
para os pescadores e extrativistas, que evitam, a todo custo, ser
manietados e copulados pelo ser mítico. Para se proteger, não vão sozinhos
ao manguezal, o que resulta no fato de o trabalho de pescadores e
extrativistas da região ser uma atividade coletiva. (JGF)
REFERÊNCIA
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.
Eu sou contadora de histórias desde os 15 anos, mas comecei com meus bonecos em 1990,
porque me tornei poeta. Foi assim: em [19]91, eu estava andando pela rua quando vi
uma coisa brilhar muito no chão. Fiquei atordoada. Para mim, era uma joia, mas era
um papel de bala. Se tivesse sido uma joia, eu ia usar e pronto, a história ia acabar.
Mas, como era um papel de bala, a história continuou. O papel de bala são os seres
humanos quando perdem o recheio e ficam perambulando pela rua. Eu precisava dar
vida a eles. Sei que tem gente que não quer dar valor à vida, mas eu me perguntava por
quê.
Esse foi seu encontro com o material que daria vida às personagens
de “sucata” que já povoavam suas histórias. É difícil determinar se os
papéis puxam as histórias ou se as histórias puxam os papéis, mas o fato é
que esses elementos indicam a metáfora da vida de dona Efigênia: todos os
domingos, ela sai de casa e vai, de ônibus, carregando uma mala até a
feirinha no centro da cidade de Curitiba para contar histórias e encontrar
ouvidos e olhos sensíveis que transitam por lá. Suas personagens são
muitas e demasiadamente efêmeras, por isso não posso denominá-las. Em
alguns momentos, seus nomes já representam a síntese de suas histórias:
“Gira que fica olhando para o céu”, “Vítima da dengue na loresta: era uma
criança teimosa”, entre outros. Muitos são os temas abordados por dona
Efigênia: das atualidades às fábulas, passando por temas religiosos, meio
ambiente, política etc. – todos com o elemento fantástico, mola propulsora
dessa artista.
O artista argentino Sergio Mercurio reconheceu não a fama, mas a
fonte de expressão do extrato da cultura popular de dona Efigênia. A
história dela seria, então, mais do que merecidamente recontada no
cinema: o documentário O filme da rainha foi exibido na 31ª Mostra
Internacional de Cinema (2007) e recebeu o prêmio de melhor
documentário estrangeiro. Em dezembro de 2012, foi lançado o livro A
viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe voador, da jornalista Dinah Ribas
Pinheiro. Esses fatos me lembram várias histórias e personagens
excepcionais que passam todos os dias diante de nós e aos quais não
somos capazes de lançar nem algumas migalhas de olhar –
reconhecimento. (FHNM)
REFERÊNCIAS
EM NOME do autor. Portal Artistas Artesãos do Brasil. Disponível em:
<www.artedobrasil.com.br>. Acesso em: dez. 2014.
O FILME da rainha. Direção: Sergio Mercurio. Argentina: 2007. 71 min, color.
PINHEIRO, Dinah Ribas. A viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe-voador. Curitiba:
Autores Paranaenses, 2012.
Enterro de dinheiro
São histórias sobre panelas de barro ou de ferro enterradas com moedas de
ouro, sonhos com indicações de locais que escondem dinheiro, maldições
sobre quem encontra ouro e não segue as prescrições etc. Esses causos
estimulam de tal forma os ouvintes que muitas vezes acabam por
desencadear novas ações de procura por tesouros escondidos, as quais, por
sua vez, geram novas narrativas. Os enterros de dinheiro estão associados
ao fato de que, antigamente, “não existia banco”, e as fortunas familiares
eram guardadas em casa. Para se prevenirem de roubos e ataques
inimigos, especialmente no caso de fazendas situadas em regiões
fronteiriças em que havia con lito, conta-se que os patrões levavam
escravos para cavarem buracos em que o dinheiro seria enterrado e, para
que os locais fossem mantidos em segredo, os matavam e enterravam
junto com as moedas. Raul Pont, em seu livro Campos realengos, dá a
descrição completa dessa “operação que assumia proporções macabras”.
Essas narrativas muitas vezes são contadas por negros e falam da “doação”
e da indicação do local onde o dinheiro está enterrado, por meio de um
sonho, para outros negros.
Os causos de panelas de dinheiro enterradas, apesar da prerrogativa
de fortuna que trazem, vêm envoltos em certo clima de temor e
desconfiança pelo destino quase sempre trágico dos que “ganharam” o
dinheiro. Complementando essas narrativas, é comum que sejam dados
exemplos concretos (com nome, profissão etc.) de pessoas que tenham
enriquecido graças a algum enterro de dinheiro. Alguns moradores da
região, no entanto, dão outra interpretação para esse fato: com a
proximidade da linha de fronteira, vários tipos de infrações lucrativas
(contrabando, tráfico, roubo de gado), somadas às constantes mudanças
no câmbio, propiciavam enriquecimentos súbitos, que precisavam ser
justificados de alguma forma. Era nessas ocasiões, então, que começavam
a circular, sempre em tom de segredo, detalhadas narrativas sobre como,
quando e onde fulano “encontrou” o seu dinheiro enterrado. (LH)
REFERÊNCIA
PONT, Raul. Campos realengos: a formação da fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Edigal, 1986, v. 1.
Épico
A palavra epikós, em grego, oriunda de epos, “recitação”, é compreendida
como um estágio superior associado à amplificação do “eu” para o “não
eu”, ou seja, o artista busca a superação das contingências individuais. O
universo do poeta se amplia de um microcosmo subjetivo para o cosmo. O
poeta épico ultrapassa a confissão e os sentimentos amorosos subjetivos
do lírico em prol da expressão do mundo objetivo. Até o século XVIII, o épico
apresenta um tom grandioso que sublima os heróis e suas grandezas e
ultrapassa o histórico, unindo-se ao mítico. No mundo moderno, o sentido
universal do épico é questionado, e surgem os anti-heróis, que negam os
valores hegemônicos impostos pelas ideologias dominantes. O poeta épico
interroga a origem, e seu fundamento é o passado, diferentemente do
lírico, que busca captar o eterno presente. O poema épico é estruturado
como uma soma de figuras em ação, exploradas pelos aspectos internos e
externos. O passado é visualizado pelo poeta como pontos fixos
apresentados poeticamente em segmentos ou “partes”, mais ou menos
independentes, para expressar verdades que ultrapassam valores
individuais e exprimem melhor as inquietações humanas. Para Hegel, no
épico “há lugar, não só para a realidade nacional com que a ação se
relaciona, mas também para as circunstâncias e fatos exteriores e morais,
de modo que se pode dizer que compreende a totalidade do que constitui a
vida poética dos homens”. O épico eleva o poema a um ideal de perfeição.
(TMRM)
REFERÊNCIA
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética: poesia. Lisboa: Guimarães, 1964.
Escuta I
Roland Barthes é certamente o pensador que melhor enuncia o conceito de
escuta. Para ele, ela contém seus estatutos: entre eles, não visa aos signos
determinados, classificados, mas a um espaço intersubjetivo,
intersemiótico, intervalar. Para ele, a escuta apodera-se do objeto para
transformá-lo e lançá-lo “no jogo da transferência, [espaço] de uma
significância geral”. A escuta deixa um intervalo ou deixa o inconsciente
falar, estruturar-se como linguagem, e resulta como uma impossível escuta
generalizada, traída durante todo o tempo. Essa compreensão enunciada
por Barthes está muito próxima daquilo que, nas sociedades africanas, se
percebe como escuta. Pela tradição oral – matriz cultural de povos que
desenvolveram suas capacidades sensitivas por meio de escuta e fala –, os
africanos mostram que o falar e o escutar têm um significado muito
diferente daquele que têm para as sociedades ocidentais, por exemplo. A
tradição oral africana dá muita importância à subjetividade: no aspecto de
como alguém narra alguma coisa. Cada vez que uma pessoa narra, introduz
um pouco da sua experiência, da sua vivência, porque essa é a questão
básica da tradição oral. Ela é uma vivência, uma experiência de vida, já que
o conhecimento é passado pela experiência, não apenas pelos livros ou pela
universidade. Ao contar na tradição oral, o que se conta já não se conta do
mesmo jeito, isto é, o contado vai sofrendo mudanças sutis. Tudo isso
embalado pelo ritmo que, nas culturas africanas, significa “impulso” e cria
movimento, como registra Reginaldo Prandi. Nesse sentido, poder-se-ia
ler Barthes como um esforço de recuperar a dimensão da “escuta
movente”, que aproxima esse pensador do que a tradição oral africana nos
permite compreender. (RA)
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990.
PRANDI, Reginaldo. “Música sacra e música popular”. In: Segredos guardados: orixás na
alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
Escuta II
1. A transmissão se situa necessariamente em um campo de luta por ser
uma experiência que se dá entre gerações, pessoas, corpos e sujeitos e
requer uma escuta, que é em si ressonância, pois quem emite um som ouve
o som que emite, ou seja, a emissão sonora animal é a própria recepção.
2. Palavra seca e palavra úmida: essas são as duas categorias de palavras
para os dogons1. A palavra seca é o pensamento divino e, no plano humano,
o inconsciente. A palavra úmida é o som audível, considerado uma das
expressões da semente masculina, equivalente ao esperma. Ela penetra na
orelha, que é o outro sexo da mulher, e desce para enrolar-se em torno do
útero para fecundar o germe e criar o embrião. Sob essa mesma forma de
espiral, a palavra úmida é a luz que desce à terra, trazida pelos raios do sol.
3. No campo da voz, a escuta e a transmissão superam a comunicação e se
colorem dos afetos que lhes aquarelam as ressonâncias. Minha voz e o meu
dizer ressoam em mim, vibram em meus ossos, repercutem em minhas
caixas e se impregnam de sentido. Minha voz e o meu dizer ressoam no
outro, entram por seus poros e pelos caracóis de suas orelhas, vibram em
seus ossos, repercutem em suas caixas e se impregnam de sentido. (ZDF)
REFERÊNCIAS
NANCY, Jean-Luc. A la escucha. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2005.
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de. A lira do poeta Expedito. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2012.
KUNZ, Martine. Rodolfo Coelho Cavalcante: poète populaire du Nord-Est brésilien. 584f. Tese
(Doutorado em estudos ibero-americanos) – Université de la Sorbonne Nouvelle,
Paris III. Paris, 1982.
KUNZ, Martine (org.). Expedito Sebastião da Silva. São Paulo: Hedra, 2000.
Farinhada
Dentre as grandes contribuições dos índios à cultura brasileira, destaca-se
a extração do veneno presente na raiz da mandioca. A partir dela, com
maquinaria baseada na criatividade e na habilidade de artesãos que
trabalhavam a madeira, foram feitos os “aviamentos”. Com o cultivo da
mandioca, que se adapta bem a vários tipos de solo por exigir poucos
cuidados e resistir à falta de água, veio a possibilidade de fazer a “farinha
de pau”, como foi chamada em contraposição à farinha de trigo europeia,
considerada um dos itens mais importantes da cozinha brasileira. Com a
farinha de mandioca é feita a farofa, um dos acompanhamentos da
feijoada, bem como a paçoca nordestina, feita de carne de sol e cebola e
socada em pilões de madeira. Com a farinha, temos também o pirão da
peixada. Enfim, um sem-número de iguarias tem na farinha seu
ingrediente básico. As casas de farinha, espalhadas pelo Brasil, são
estabelecimentos geralmente comunitários alugados para um grupo que lá
fabrica a farinha da mandioca que foi plantada e colhida. A jornada de
trabalho é uma festa: da raspagem da mandioca até a farinha ficar pronta,
o grupo de pessoas geralmente conta histórias e causos e canta músicas da
tradição popular. A mandioca raspada, depois de lavada e prensada, vai
para o triturador, chamado de “caititu”. Já quase seca, é colocada em um
forno, no qual a secagem é concluída, e ela é torrada. No final da jornada,
todos que participaram do trabalho se reúnem em torno de uma grande
tapioca, servida como forma de confraternização e de marco da conclusão
do trabalho. A tapioca passou por uma revalorização na culinária
nordestina, recebendo recheios e coberturas inusitados, e atualmente é
servida nas chamadas “tapiocarias”. Nesse processo de feitura da farinha, é
extraído ainda um valioso subproduto da mandioca: a goma, também
chamada de polvilho. Com ela, fazem-se o beiju, o pão de queijo mineiro, a
rosca, o bolo de sal do Piauí, o sequilho etc. Desse modo, a sobrevida das
casas de farinha parece estar assegurada pela importância que esse item
tem na culinária brasileira. (GC)
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de; SOUSA, Francisco. Artes da tradição. Fortaleza: Expressão
Gráfica, 2005.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1959.
Folia do Divino
A festa acontece no sétimo domingo depois da Páscoa, o de Pentecostes.
Rememora a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos. O aspecto
folclórico, associado à celebração religiosa, provém da rainha Isabel (1271-
1336), cuja vida santa abarca muita lendas: a mais vulgar delas reza que ela
transformou pães (ou moedas) em lores, pois o rei lhe chamara a atenção
por sua prodigalidade com os pobres. Em Minas Gerais, a abundância e a
fulgurância do ouro e das pedras preciosas deram à festa brilho e grandeza
singulares. O evento segue um ritual próprio: entre muitos concorrentes, o
imperador e a imperatriz são escolhidos por sorteio durante a missa do
Espírito Santo. Os sorteados reinam por um ano, são aclamados pelo povo
e pelo celebrante e adquirem certa parcela de autoridade, prestígio e até
regalias especiais, como lugares marcados na igreja e almofadas de cetim
para se ajoelhar. A banda de música os acompanha de casa em casa após a
missa, sob o espocar de bombas e foguetes de vara. A comedoria começa
cedo. Para a festa seguinte, organizam-se “folias” que percorrem o
município atrás de óbolos ou donativos. As folias são identificadas por
uma bandeira vermelha que tem bordada ou aplicada ao centro uma
pomba branca ou dourada em voo entre nuvens – a famosa “bandeira do
Divino”. Os foliões cantam músicas apropriadas e tradicionais,
acompanhados por caixa de guerra e violas. Dos braços destas, assim como
do mastro da bandeira, descem fitas vermelhas que têm, segundo a crença
antiga, um poder curativo. Quando a folia se aproxima de uma residência,
o dono da casa recebe a bandeira, beija-a, ajoelha-se e, ao final, dá sua
contribuição. As arrecadações são depositadas na “Caixa do Divino” e
usadas para as despesas da festa, que começa, de fato, com a novena.
Armam-se barraquinhas no adro da igreja para o “leilão” de prendas, o que
acontece depois do ato religioso. No sábado, véspera de Pentecostes, há
grandes solenidades a partir da alvorada, com banda de música, foguetório
e o repicar de sinos em todas as igrejas do lugar. No domingo, antes da
missa, a filha do imperador, coberta por um enorme pálio e sob uma
estrela de cinco pontas de fitas, é acompanhada por outras cinco moças ao
conduzir a bandeira até a igreja, para ser entregue pelo vigário ao novo
imperador. Encerra-se a festa com um banquete público, quando se come
o tradicional “boi do Divino”. (ALS)
REFERÊNCIA
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
Galpão
Construções rústicas existentes em todas as grandes fazendas das regiões
de fronteira do Brasil com o Uruguai e com a Argentina, os galpões são os
locais privilegiados para ouvir e contar causos. Nesses espaços, compostos
apenas de tradicionais cadeiras baixas de madeira organizadas em forma
semicircular em frente ao fogo, onde as brasas da lareira ardem nas
“cambonas” (latas de óleo que servem para aquecer a água), os peões se
dirigem, no início ou no final do dia, para tomar o mate (ou chimarrão, um
tipo de infusão preparada em uma cabaça). Ainda que não seja vetada, a
presença de mulheres no galpão é rara. Embora atualmente em muitos
galpões haja televisões ou rádios, os causos continuam sendo contados,
frequentemente incorporando temas ou assuntos veiculados por esses
meios. É interessante notar também que, com o êxodo rural, antigos
moradores do campo adaptam suas residências nas cidades,
transformando garagens em pequenos “galpões” – decorados com motivos
rurais, arreios de cavalos, ferraduras – que, por sua vez, também passam a
sediar rodas de causos. (LH)
Gêneros literários
Classificação da literatura que inicialmente aparece, na Grécia, com Platão
em A República, com uma proposta de divisão triádica: 1) teatro – tragédia e
comédia; 2) lírica – ditirambo; 3) épica. Essa classificação foi seguida por
Aristóteles, em Poética, que se refere às formas poéticas: tragédia, comédia,
ditirambo, aulética, citarística e siríngica. Na cultura latina, Horácio
retoma essa questão em Epístola aos Pisões, ou Arte poética. A teoria
contemporânea discute a pureza dos gêneros e a descreve como formas
que se mesclam e produzem continuamente novos gêneros. Em síntese, os
gêneros literários representam o somatório de recursos estéticos
disponíveis ao escritor para atingir o leitor – são categorias relativas nas
quais o escritor se movimenta, acionando sua capacidade criadora, e desse
modo os limites dos gêneros literários estão relacionados às possibilidades
criativas humanas. Todorov registra que os gêneros orientam autores e
leitores, pois funcionam como “modelos de escritura” para os autores e
“horizontes de expectativas” para os leitores. Genette entende que os
gêneros do passado foram substituídos por outros gêneros em um
processo de transformação contínua, portanto os gêneros não
desaparecem, mas são substituídos ou mesclados, gerando assim outros
padrões. (TMRM)
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
GENETTE, Gérard. “Gêneros, ‘tipos’, modos”. In: GALLARDO, Miguel A. Garrido (org.).
Teoría de los géneros literários. Madrid: Arco Libros, 1998.
HORÁCIO. “Epístola aos Pisões, ou Arte poética”. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO.
A poética clássica. Rio de Janeiro: Cultrix, 1995.
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1999, livro III.
TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
Gêneros narrativos
Denominados gêneros prosaicos, são dirigidos para fora do “eu” – seus
núcleos de interesse estão na realidade e constituem registros do que o
“eu” percebe da realidade, daí a marca da objetividade. A prosa utiliza uma
linguagem descritiva e narrativa, fixando desse modo representações
históricas e sociais da realidade pela linguagem. Os gêneros literários
narrativos mais difundidos na contemporaneidade são o romance, o conto
e a crônica. O romance remonta há vários séculos, é derivado da epopeia e
expressa a forma artística burguesa por se constituir como espelho de um
povo ou de uma sociedade. Nos séculos XIX e XX, ele se renova ao assumir
dimensões psicológicas que apreendem os luxos psicológicos das
personagens para melhor reconstruir um mundo no qual o homem se
constitui multifacetado. O conto é uma vertente das narrativas da tradição
oral. É um veículo transmissor de valores éticos e morais e da memória
cultural de um povo. Por vezes, ele assume o caráter subjetivo ao re letir
sobre os con litos humanos ante as imposições sócio-históricas. A crônica,
gênero biodegradável por se constituir em narrativas curtas que captam
instantâneos de dada realidade, resulta do olhar do cronista sobre o
recorte ou o momento retratado. (TMRM)
Gêneros textuais
Os gêneros textuais são atos comunicativos mediados pela linguagem que
possibilitam interações participativas e críticas com o mundo, portanto
determinados pela interação do homem, pela linguagem, com o tempo e o
espaço. São exemplares desses gêneros os anúncios publicitários e
pessoais, as cartas, os bilhetes, as resenhas e os artigos de opinião, ou seja,
as práticas discursivas nas quais a linguagem se articula como ação
humana sobre o mundo por meio do discurso. Os gêneros textuais são
instâncias determinadoras, conjuntos de normas e regras historicamente
predeterminadas que conduzem a leitura do texto. Assim, esses gêneros
têm caráter mediador na relação produtor-produto-receptor e, desse
modo, alteram-se conforme as transformações históricas sociais, tanto na
forma como no conteúdo. Bakhtin subdivide os gêneros textuais em
primários, relacionados às interações da vida cotidiana, e em secundários,
a saber: discursos e textos científicos, ideológicos e literários. (TMRM)
REFERÊNCIA
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
Grammelot ou blablação
Segundo Dario Fo, “grammelot é uma palavra de origem francesa,
inventada pelos cômicos dell’arte […]. Apesar de não ter um significado
intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso.
Trata-se, portanto, de um jogo onomatopaico, articulado com
arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos,
ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo”. Essa técnica,
criada pelos comediantes da Renascença italiana (commedia dell’arte), é
então um jogo de sons vocálicos que pode até mesmo sugerir um idioma
conhecido, pela semelhança de suas sonoridades. Apesar de não ser
constituído por nenhuma palavra inteligível, o grammelot é a criação de
uma língua inventada pelo ator-narrador, que preserva os recursos vocais
para a indicação do discurso. Viola Spolin chama essa técnica de blablação:
“Sons sem significados que substituem as palavras reconhecíveis para
forçar os atores a se comunicarem pela fisicalização (mostrando); um
exercício de atuação”. O termo pode ser entendido como sinônimo de
grammelot e foi introduzido na pedagogia teatral por Spolin no século XX.
(DD)
REFERÊNCIAS
FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Senac, 1999.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
Griot ou griô
Essa denominação tem sido utilizada popularmente para o sábio, o ancião
com quem está o conhecimento, geralmente fazendo-se referência ao
tradicionalista africano. Porém, na verdade, essa palavra não existe nas
culturas africanas: o vocábulo griot vem da língua francesa, relacionado ao
músico que cantava nas ruas. Nas culturas africanas, existem os mestres,
que pertencem a uma linhagem cuja função é trabalhar com a língua, com
a palavra. No oeste da África, há o doma – nome dado ao tradicionalista – e
o djeli – denominação que abarca uma espécie de caminhante, um griot. No
leste africano, temos também o bubu, que, com sua túnica comprida, anda
quilômetros levando sua arte e a cura dos males pela palavra. A
pesquisadora Antonacci argumenta sobre o aprendizado do mestre da
tradição oral como um aprendizado longo e complexo, que dura
basicamente sete anos. Como a idade da iniciação do mestre corresponde
aos 21 anos, entende-se que somente 21 anos depois é que ele estará
formado, ou seja, ele só poderá ser considerado um doma, um djeli ou um
bubu aos 42 anos de idade. No entanto, a idade da sabedoria, reconhecida e
legitimada para a transmissão dos saberes, é a partir dos 63 anos. O
prestígio do tradicionalista decorre do vínculo que ele tem com a
ancestralidade. Ele é considerado um guardião dos segredos de origem
cósmica e das ciências da vida. Esse tradicionalista, também chamado de
“conhecedor”, possui uma memória prodigiosa que o habilita a armazenar
uma quantidade significativa de fatos que presencia em seu tempo de vida.
(RA)
REFERÊNCIA
ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: Educ,
2013.
História de trancoso
Designa os contos de fadas, contos de encantamento ou contos
maravilhosos, as lendas e as histórias orais. São narrativas cuja
transmissão é estritamente oral e são contadas na terceira pessoa do
plural, pois o narrador se distancia delas por serem mentirosas. As
histórias de trancoso são contos cumulativos, ou seja, cada um pode
acrescentar elementos a elas e adaptá-las, fazendo empréstimos de outros
registros narrativos. O nome dado a essas histórias foi inspirado no autor
de Contos e histórias de proveito e exemplo, Gonçalo Fernandes Trancoso,
escritor português nascido na segunda década do século XVI e falecido em
1596. Elas lembram os romances de cordel, pois neles encontramos
histórias de amor e valentia, com aventuras de jovens que conhecem a
ascensão social fulgurante ao se casar com a princesa no final da história.
Essas histórias encenam ainda reinos encantados, histórias de princesas,
reis, sábios e animais que falam, metamorfoses, assombrações, almas,
aparições milagrosas, tesouros, monstros etc. e mostram a sabedoria e a
astúcia dos protagonistas, humanos ou animais (macaco, raposa etc.), que,
no final, conseguem vencer os poderosos e denunciar suas intrigas. O
conto “As aventuras de Pedro Malazarte”, publicado por Luís da Câmara
Cascudo em Contos tradicionais do Brasil, é um bom exemplo desse gênero
narrativo que encontra, em João Grilo, uma tradução nordestina do
clássico português. (JC)
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: América, 1946.
TRANCOSO, Gonçalo Fernandes. Contos e histórias de proveito e exemplo. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1974.
Ilustração
Termo usado para definir as imagens que acompanham, ornam ou
elucidam um texto verbal. A ilustração, para Rui de Oliveira, “é um gênero
dentro das artes visuais narrativas”, definição encontrada em seu livro
Pelos Jardins Boboli. Essa linguagem pode assumir diferentes relações com o
texto verbal que acompanha: apenas orná-lo; apresentar-se como uma
repetição dele por meio de cenas fundamentais; dialogar com ele,
mostrando imagens que o texto apenas sugere; ou, ainda, fazer referência
a outros textos que são parte do imaginário da maioria dos leitores. Outra
forma é a ilustração que caminha paralelamente ao texto verbal, mas
contém texto próprio, com uma narrativa clara que possibilita a sua
independência. O texto verbal se caracteriza, principalmente, pela
linearidade e a temporalidade, enquanto a imagem, pela espacialidade. Ao
longo do tempo, as características da ilustração em livros sofreram um
salto quando as imagens construídas para o texto verbal apareceram sob
uma ótica diferente: na construção da composição, foi utilizada a
perspectiva aérea, e não mais a frontal. Isso resultou na valorização do
signo visual, pois seus elementos principais (a cor, a linha e a forma)
ganharam vida, e o espaço foi ampliado. A imagem passou a ter vida
própria, afinal, dialoga com o texto verbal, acrescenta e abre possibilidades
de leitura. Esse fator é muito importante para entender o processo de
mudança ocorrido nas ilustrações através de sua história. (MLCR)
REFERÊNCIAS
CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Lê, 1995.
LINS, Guto. Livro infantil?: projeto gráfico, metodologia, subjetividade. São Paulo: Rosari,
2003.
OLIVEIRA, Rui de. “Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil”. In:
OLIVEIRA, Ieda de (org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com
a palavra, o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008.
_____. Pelos Jardins Boboli: re lexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
Improvisação
Denomina-se improvisação a atuação do ator em cena sem um roteiro ou
personagem preestabelecidos – a encenação é criada na hora em que é
apresentada. A improvisação pode estar no processo de criação de um
espetáculo, como recurso durante uma apresentação ou mesmo como
linguagem cênica. Em uma abordagem mais contemporânea, considera-se
que a improvisação deve estar presente em toda a ação do ator: mesmo em
uma cena extremamente marcada e formalizada, deve existir um grau de
criação e espontaneidade exercido através da improvisação, para que o
ator atualize o seu texto e as suas ações “no presente”, de acordo com o
pensamento de Ariane Mnouchkine. (CSS)
REFERÊNCIA
FÉRAL, Josette. Encontros com Ariane Mnouchkine: erguendo um monumento ao efêmero. São
Paulo: Senac SP/Edições Sesc, 2010.
Jogos narrativos
Jogos são atividades realizadas em um contexto de espaço-tempo
específico, separado da vida cotidiana, e têm fim em si mesmos. Como
registra Huizinga, “o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária,
exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço,
segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias,
dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de
tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida
cotidiana’”. Como tratam de objetivos a serem alcançados e, normalmente,
de desafios a serem vencidos, o que implica uma competição, os jogos
contêm regras para dirigir con litos e determinar como os jogadores
podem agir.
Segundo Cardoso, narrativas são consideradas como tais quando
apresentam tema, personagens, ação, tempo, espaço, ponto de vista e
con lito; têm unidade de ação, tempo e lugar; são desenvolvidas através da
relação de causa e efeito etc. Ou, ainda, segundo Muniz Sodré, as
narrativas envolvem o encadeamento de eventos de um enredo
entrelaçados com as ações e personalidades de diferentes personagens, a
fim de contar uma história de maneira coerente, com um cenário e seus
aspectos geográfico, político, social e cultural.
Jogos narrativos correspondem, então, a atividades em que
narrativas são construídas por meio de uma interação entre os
participantes, mediada por regras. Entre os exemplos de jogos narrativos,
podemos citar o Alternate Reality Game (ARG), em que os eventos de uma
realidade alternativa são determinados pelas interações virtuais ou
presenciais entre os jogadores, geralmente em diferentes suportes, que
resultam na criação coletiva de uma história; o Role-Playing Game (RPG), em
que, por meio da interpretação das personagens pelos jogadores, uma
história coletiva resulta da solução de desafios propostos por um mestre de
jogo; os Storytelling Games, como “Once upon a time”, em que os jogadores
usam cartas com diferentes eventos e personagens para criar a narrativa
enquanto jogam; o Massive Multiplayer On-line RPG (MMORPG), jogo on-line em
que o cenário é explorado pelos jogadores usando suas personagens, que
resolvem as missões, e as regras estão presentes no sistema que suporta a
plataforma; o Computer Role-Playing Game (CRPG), uma modalidade
específica de videogame na qual um ou mais jogadores escolhem soluções
para desafios propostos pelo banco de dados da plataforma a partir de
roteiros predefinidos e das personagens selecionadas, que, ainda que
apresentem possibilidades de “evolução”, não pressupõem atuação
dramática nem interpretação por parte dos jogadores (por esse motivo,
não podem ser considerados RPGs de fato, apesar da denominação
corrente); e, por fim, o livro-jogo, com proposta bastante similar ao
videogame narrativo, porém veiculada em suporte impresso (livro ou
revista) e, portanto, com uma gama de escolhas bem mais limitada. (CK-EB)
REFERÊNCIAS
CARDOSO, João Batista. Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto: por um
tempo de “PAS” (Programa de Avaliação Seriada). Brasília/São Paulo: Universidade
de Brasília/Imprensa Oficial do Estado, 2001.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001.
SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1988.
Jongo
Espécie de samba, o jongo é encontrado em São Paulo, Minas Gerais,
Espírito Santo e Rio de Janeiro. Sua coreografia difere de uma localidade
para outra. Renato Almeida descreve as características da dança em
História da música brasileira:
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1942.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.
Lobisomem e Vira-bicho
Segundo Cascudo, ser Lobisomem é um fado originado de uma interdição
moral – incesto ou casamento ilícito entre parentes ou compadres – ou de
uma predestinação familiar, mas sempre remete a um pecado. Sua
aparência é infeliz, com aspecto doentio, magro, macilento, com muitos
pelos no corpo. Vem da tradição europeia, desde a Antiguidade clássica até
os colonizadores lusitanos. No Brasil, ganhou características próprias: é
um homem que se metamorfoseia em encruzilhadas, em noites de sexta-
feira, transformando-se em um bicho grande, com imensas orelhas, que
ataca pessoas e animais novos, sangrando-os antes do amanhecer. É um
mito urbano por natureza, pois o Lobisomem surge em ruas de pequenas
cidades ou em bairros periféricos de cidades maiores.
Na Amazônia, não existe grande incidência do Lobisomem, mas de
sua variação, que é o Vira-bicho. “Virar” um bicho é transformar-se em
animal, normalmente um porco, fato recorrente em pessoas idosas,
homens e mulheres – sobretudo no caso de velhas senhoras, que são as que
mais se zoomorfizam. Sabe-se que o Vira-bicho é um animal terrestre de
aparência muito feia, mas as pessoas dificilmente discernem claramente
qual animal ele é, pois sua aparição ocorre à noite, em lugares de
penumbra. O que é comum é a investida que as pessoas frequentemente
fazem para espantar o bicho: lançam água fervente sobre ele quando ele
está fuçando ou rumorando próximo às casas. Isso faz com que o animal
saia correndo, espojando-se no chão e pelas árvores e paredes. Somente
depois é que se saberá que o bicho era uma pessoa, quando a descobrem
pelos caminhos ainda em processo de “desviração” (voltando ao aspecto
humano), ou quando, na manhã seguinte, identificam uma velha senhora
ou um velho senhor agonizante, com feridas causadas pela água fervente.
Quase sempre se descobre, por sinal, que o Vira-bicho era uma pessoa do
convívio familiar ou comunitário. (JGF)
REFERÊNCIA
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.
Luiz Gonzaga
Natural de Exu, Pernambuco, Luiz Gonzaga nasceu em 1912. O pai, o
sanfoneiro Januário, tocava a harmônica de oito baixos. A mãe, dona
Santana, gostava de novenas e de benditos. O menino foi criado nessa
ambiência, onde predominavam as bandas cabaçais, eram feitos folguedos
como os reisados, e a luta pela sobrevivência, agravada pelas secas,
precisava ser alternada com o momento festivo, a fim de manter o
equilíbrio das comunidades. Gonzaga prestou serviço militar em Fortaleza
e, como milhares de jovens nordestinos, migrou para o Rio de Janeiro em
busca de trabalho, na expectativa de uma qualidade de vida que não era
propiciada pela secura do chão do Nordeste. Começou a cantar de terno,
com um repertório ao gosto do período, os anos 1940, época em que o rádio
fazia emissões de programas de auditório e mobilizava multidões. Como
não agradou aos outros, muito menos a si mesmo, teve a ideia de vestir o
gibão, pôr na cabeça o chapéu com a estrela de Lampião e fazer, a partir da
sanfona, uma releitura da tradição oral da região em que nascera. Foi a
partir dessa ideia que surgiu um personagem iluminado no mundo do
espetáculo, aquele que seria chamado de o “rei do baião”. Luiz Gonzaga
teve grandes parceiros, entre eles Humberto Teixeira e Zé Dantas, e
atualizou o canto que estava na boca e na alma de seu povo. Podemos dizer
que ele “inventou” a música nordestina e fez furor ao lançar nacionalmente
o baião, um ritmo baseado na tradição musical que ganhava naquele
momento uma embalagem para o consumo nacional. Gonzaga
popularizou a sanfona, e muitos músicos aderiam a esse instrumento, com
o qual o Brasil passou a fazer festa. Ele fazia furor nos auditórios das
emissoras de rádio, empolgando as massas nos shows em praças públicas.
Tornou-se um ídolo, uma referência na música brasileira. Fez escola e
deixou discípulos. Muitas de suas composições são clássicos, como “Asa
Branca”, um manifesto ético e estético do Nordeste. Luiz Gonzaga superou
as críticas de que não cantava de acordo com o modelo das gravadoras, e
nos deixou seu repertório ao morrer, em 1989, sempre como o eterno “rei
do baião”. (GC)
REFERÊNCIAS
RAMALHO, Elba Braga. Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2012.
VIEIRA, Sulamita. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2012.
Mãe-d’água e Princesa
A Mãe-d’água, como o próprio nome sugere, é caracterizada pela
maternidade, assemelhando-se às Ninfas, em particular às Náiades, que
são perseguidas pelos rios que querem se unir a elas. A nossa ninfa
amazônica se assemelha à sereia europeia e vive nos rios, igarapés ou lagos
da região, espaços em que se posta sensual e maternalmente, com canto
mavioso e beleza ímpar, atestada por seu corpo escultural e longos cabelos
sedosos. Até o século XVII, não havia registro da Mãe-d’água entre os
indígenas, sendo esse mito reconhecidamente de ascendência europeia, do
ciclo atlântico. Os mitos das águas se restringiam às ipupiaras e às cobras-
grandes, de feitio destruidor e assassino – não havia nelas nenhum teor
sedutor, como nas sereias, porque os indígenas não concebiam a sedução
sexual nas Cis, as mães, origem de tudo. Seja como for, observa-se a
qualidade da sedução na Mãe-d’água, particularmente em sua variante
Princesa, mais próxima ainda da sedutora sereia homérica. Ambas
guardam a docilidade feminina e a proteção maternal. Mas não nos
enganemos, pois a Mãe-d’água também apresenta um caráter maléfico,
raptando crianças e levando-as para o mundo das encantarias, onde são
iniciadas nos poderes ocultistas. As crianças retornam, depois de certo
tempo, para o seio de suas comunidades, e são reconhecidas como pajés e
curadores. Essa duplicidade de caráter faz com que esse ser mítico se
assemelhe às amazonas, guerreiras da mitologia grega que foram
transplantadas pelos colonizadores para essa região no século XVI, no afã
de identificarem a Amazônia como um lugar portador de riquezas – depois
de um encontro com indígenas no rio Amazonas, Gaspar de Carvajal,
cronista da expedição de Francisco de Orellana realizada em 1542, aventou
que nossas supostas guerreiras amazonas seriam as mesmas amazonas
que guardaram a riqueza do velocino de ouro na mitologia grega.
A Princesa é uma variação que ocorre frequentemente na ilha de
Maiandeua, na vila de Algodoal, região litorânea do Pará. Assemelha-se
também a três entidades da umbanda amazônica: as princesas Erondina,
Jarina e Mariana. Em geral, a Princesa é um ser encantado e humano que
lança o desafio aos nativos para que seja “desvirada”, ou seja,
desencantada, pois aquele que tem coragem para tanto é beneficiado com
riquezas e com o casamento com a bela mulher que surgirá depois do
desencanto da Princesa. Além disso, a localidade em que se der o
desencanto se transformará em um grande reino, pleno de riquezas
materiais. O fato é que, sempre no dito momento para a realização do
feito, o nativo desafiado tem medo e abandona a praia em que se deve
desencantar a Princesa. (JGF)
REFERÊNCIA
CARVAJAL, Gaspar de. “Relación del nuevo descubrimiento del famoso río grande que
descubrió por muy grande ventura el capitán Francisco de Orellana según la
transcripción de don Toribio Medina”. Disponível em:
<www.cervantesvirtual.com/obra-visor/historiadores-y-cronistas-de-las-
misiones-0/html/00012b0e-82b2-11df-acc7-002185ce6064_9.html>. Acesso em:
dez. 2014.
Manoel Caboclo
Esse poeta, astrólogo e editor de folhetos nascido em 1916 em Caririaçu,
Ceará, era um homem da fala. Manoel Caboclo recebia as visitas debaixo
de um caramanchão recoberto por jasmins na casa em que vivia, na rua
Todos os Santos, 263, em Juazeiro do Norte. Ele nasceu Manoel João da
Silva; o Caboclo, mais que um nome artístico, era o fortalecimento de um
pertencimento ao sertão. Ele contava que se alfabetizou lendo um pedaço
de página de jornal que embrulhava uma barra de sabão que adquirira.
Para isso, contou com o auxílio de amigos letrados que o ajudaram nessa
empreitada. A alfabetização tardia não o impediu de vir a ser um dos
nomes mais expressivos do cordel produzido na cidade do padre Cícero.
Trabalhou com o poeta e editor José Bernardo da Silva (1901-1972) na
Tipografia São Francisco, a maior e mais importante editora de folhetos de
cordel do Brasil. Sua iniciação nas artes gráficas passou pelas várias etapas
do processo: foi compositor, chapista, impressor e, nesse meio-tempo,
passou a fazer poesia e publicou folhetos com a chancela do patrão. Saiu da
tipografia para associar-se ao poeta pernambucano João Ferreira Lima,
que se revezava entre Juazeiro do Norte, no Ceará, e Caruaru, em
Pernambuco. Com ele, Manoel Caboclo aprendeu as artes esotéricas e a
fazer almanaques. Depois de pouco tempo, desfizeram a sociedade, e
Caboclo montou a própria editora, a Casa dos Horóscopos, em 1969. Ali não
era apenas o poeta, mas o mestre que fazia previsões astrológicas, editava
outros autores e montava sua “folhetaria”. Já em 1969, lançou seu próprio
almanaque, intitulado O juízo do ano, publicação anual que circulou
ininterruptamente até sua morte. Adquiriu os direitos de publicação de
outros autores, como o do paraibano Joaquim Batista de Sena – em um
negócio fechado de acordo com a lei e registrado em cartório. Iniciou o
filho José Caboclo (1941-) e o sobrinho Arlindo Marques (1953-) na arte da
xilogravura e, em 1994, lançou o livro Eu, o índio e a loresta, pela Secretaria
da Cultura do Ceará. Morreu em Juazeiro do Norte, em 1996. (GC)
REFERÊNCIAS
CABOCLO, Manoel. Eu, o índio e a loresta. Fortaleza: Secult, 1994.
CARVALHO, Gilmar (org.). Manoel Caboclo. São Paulo: Hedra, 2000.
REFERÊNCIA
Hernández, José. Martín Fierro. Buenos Aires: Losada, 1953.
REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.
Metanarrativa
Metanarrativas ou grandes narrativas são narrativas que organizam,
explicam e subordinam outras narrativas, portanto, uma narrativa local é
legitimada quando confirma as grandes narrativas da humanidade. As
discussões sobre a narrativa no discurso e no conhecimento científico
foram propostas por Lyotard no livro O pós-moderno, no qual avalia que a
ciência moderna rejeita formas que fundamentam a narrativa, tomando
como referência as narrativas populares circulantes entre os índios
caxinauás, da América do Sul. Na sua análise das narrativas orais dos
caxinauás, ele observou regras internalizadas que dependem de fórmulas
fixas. O contador de histórias, segundo o estudioso, inicia identificando-se
com seu nome caxinauá e assim reafirma a identidade tribal como um
reprodutor que ouviu a história de outro caxinauá, mantendo uma
regularidade rítmica e tornando a narrativa legitimadora de uma cultura
coletiva, que, por sua vez, foi combatida pela ciência a partir do século
XVIII. Na visão de Lyotard, a linguagem científica, portanto, opõe-se à
linguagem narrativa porque é denotativa, validada pela comprovação de
uma verdade que não estabelece vínculos coletivos e sociais que retornam
à verdade original. A ciência incorpora as narrativas políticas e filosóficas,
demarcadas pelo “especialismo”, e segue modelos de racionalidade que
propiciam correspondência a verdades demonstráveis geradoras de teorias
generalizantes. (TMRM)
REFERÊNCIA
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.
Narrador I
Geralmente indicado pelas pessoas que integram uma comunidade
narrativa como o sujeito que sabe as histórias do grupo, o narrador é o
guardião da memória. Encontra-se em profunda integração com o grupo
social de que faz parte e, por meio da narrativa, dita valores, etiqueta e
regras de comportamento, bem como conta os feitos memoriáveis do
grupo. A presença do narrador em performance possibilita entrever o perfil
da comunidade narrativa na qual ele finca suas raízes. (FF)
Narrador II
1. Seja revelado pelo corpo do contador ou velado pelo corpo do ator, o
narrador é o sujeito do épico. O luxo de sua vocalidade, requisito das
histórias que conta e das cenas que articula, faz que, para o narrador, o
ritmo, no sentido estrito, de luência, de rio que corre, se ilumine.
2. No samba de breque, o cantor de repente breca e diz – ele narra e olha
com olhar estrangeiro o luxo da história.
3. Podemos imaginar o narrador absoluto como um sujeito rítmico, um
ponto de acumulação de uma série em que a atividade mental do “nós”
domina progressivamente a atividade mental do “eu”. Sua voz ritmada na
ação só reclama significados. Buscar esse limite é dirigir-se no sentido de
uma experiência neutra, objetiva e esvaziada de paixão e padecimento,
uma experiência de transitividade e publicidade absolutas. A língua se
despovoa, e o sabor de boca, rastro das palavras quando ditas, pulsa uma
deglutição mecânica e apressada. O rapsodo porta em seu corpo as marcas
desse narrador. (ZDF)
Narradores de Javé
O argumento do filme Narradores de Javé se pauta na ameaça de
desaparecimento de um lugarejo do interior do Brasil por uma inundação
decorrente de um projeto para a construção de uma usina hidrelétrica. A
narrativa se desdobra em múltiplas versões de uma história estruturada na
ficção, na pesquisa e no documentário e abre espaços para a oralidade.
A força do filme reside na recuperação de várias narrativas orais que
tratam da fundação de Javé, lugarejo historicamente marcado pela pobreza
material contraposta a uma riqueza de narrativas orais, memórias
históricas culturais da população, que multiplica versões do mito
fundador.
Tecnicamente, os enquadramentos e a luz da produção
cinematográfica fazem o espectador circular por diferentes tempos e
espaços, que propiciam um jogo de idas e vindas entre o real e o
imaginário. Assim, as várias versões da fundação do lugarejo vão
gradativamente construindo valores e expondo con litos íntimos e
contraditórios dos moradores entre a fixação e o nomadismo e a
determinação externa de destruir Javé. Diante da ameaça de extinção,
surge a ideia de registro de sua história, um projeto difícil de ser
executado, pois a maioria da população é analfabeta e a grande questão a
ser resolvida é encontrar alguém que cumpra a tarefa de escrever as
histórias. Assim, Narradores de Javé expressa con litos cíclicos que remetem
às incertezas do homem que deseja se evadir e se fixar, entre o
nomadismo, o sectarismo e o desejo de preservar memórias. (TMRM)
REFERÊNCIA
NARRADORES de Javé. Direção: Eliane Ca fé. Brasil/França: Bananeira Filmes/Gullane
Filmes/Laterit Productions/Riofilme, 2003. 100 min., color.
Narrativa visual
Termo usado para denominar uma história contada por uma sequência de
imagens que, normalmente, apresenta uma sequência de ações das
personagens na cena. O verbo se faz presente apenas em onomatopeias e
principalmente no título da história, que assume papel de índice, pois é ele
que vai indicar de que a história trata. A narrativa visual se aproxima da
narrativa verbal, pois, segundo Cândida Vilares Gancho, “a maioria das
pessoas é capaz de perceber que toda narrativa tem elementos
fundamentais, sem os quais não pode existir”. Em outras palavras, a
narrativa é estruturada sobre cinco elementos principais: enredo,
personagens, tempo, espaço e narrador. Uma narrativa visual apresenta
todos esses elementos, mas o que a difere da verbal é que a história é
contada por meio de imagens, ou seja, é uma forma de leitura muda.
Segundo Manguel, as imagens existem no espaço enquanto a narrativa
existe no tempo. Isso significa dizer que uma narrativa visual em livros
será apresentada no espaço delimitado das páginas e, por ser constituída
quase que exclusivamente de imagens, a leitura ocorrerá aos saltos e não
linearmente, como ocorre com a palavra. Na literatura infantil, a narrativa
visual se faz presente por meio dos “livros de imagem”, termo instituído
pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e aceito pelo meio
literário. Em outros países, o termo usado é “livro ilustrado” e abrange
também aqueles livros da primeira fase de alfabetização, com poucas
palavras e muita ilustração. (MLCR)
REFERÊNCIAS
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1991.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.
Narratologia
A narratologia é uma teoria que analisa os aspectos comuns e incomuns
das narrativas. O termo “narratologia” foi introduzido por Todorov em A
gramática do Decameron (Grammaire du Décaméron, 1969), como um campo de
estudo da Teoria da Literatura. A narratologia sinaliza que existem
narrativas contadas em linguagens orais e escritas (em prosa ou em verso),
em linguagens imagéticas, em figuras estáticas ou animadas (narrativas
pictóricas, vitrais icônicos ou filmes), em música ou em uma mescla de
veículos (histórias em quadrinhos). Uma narrativa oral pode ser transposta
para conto, romance, balé, história em quadrinhos, telas etc. Assim, a
narrativa pode ou deveria ser estudada sem referência ao meio pelo qual
ela se apresenta. O narratologista, portanto, analisa o narrado de modo
independente do meio utilizado, da narração e do discurso. Esses estudos
foram in luenciados pelo estruturalismo e, em decorrência disso, se
caracterizam pela busca de paradigmas, estruturas e repetições entre as
diferentes obras analisadas considerando os diferentes contextos
históricos e culturais em que os textos foram produzidos. (TMRM)
REFERÊNCIA
TODOROV, Tzvetan. A gramática do Decameron. São Paulo: Perspectiva, 1983.
Patativa do Assaré
Nascido em Assaré, no Ceará, em 1909, Antônio Gonçalves da Silva era um
poeta da voz. Filho de um agricultor dono de uma pequena propriedade no
alto da serra de Santana, a 18 quilômetros da cidade, esteve poucos meses
na escola formal, o que foi o bastante para ele se alfabetizar e ganhar o
hábito da leitura. Aos 4 anos, perdeu um olho, e isso o incentivou a ler cada
vez mais. Era um menino para o qual professores, padres, juízes e demais
letrados de Assaré gostavam de dar e emprestar livros. Aos 16 anos, já órfão
de pai, Antonio pediu autorização à mãe para vender uma ovelha e
comprar uma viola. Começou a brincar com o instrumento durante as
noites, e essas brincadeiras viriam a ser seu rito de iniciação. Já jovem
adulto, recebeu a visita de um parente que migrara para a Amazônia, como
milhares de nordestinos o fizeram. Esse parente o convidou para viajar
com ele e passar uma temporada em Belém, onde se apresentaria como
violeiro. Lá, ganhou o epíteto de pássaro, dado pelo jornalista cearense José
Carvalho de Brito, que vivia na capital paraense. De volta ao Ceará,
Patativa do Assaré retomou as atividades de agricultor, visto que herdara
parte das terras do pai. Exerceu esse trabalho a vida toda, até se aposentar
aos 70 anos. Por mais que se apresentasse como cantador, não vivia dessa
atividade. Às segundas-feiras, passou a recitar poemas na rádio Araripe, no
Crato, enquanto a cidade regurgitava em torno das barracas armadas que
atraíam mercadores e compradores de Pernambuco, Piauí, Paraíba e
Ceará. Seu primeiro livro, Inspiração nordestina, foi lançado em 1956. O
poema “A triste partida” foi musicado por Luiz Gonzaga em 1964. Assaré
publicou vários livros, ganhou comendas e foi homenageado com o título
de doutor honoris causa por quatro universidades. Politizado, sempre foi
uma voz a favor da reforma agrária, dos camponeses e de um mundo mais
igualitário. Ameaçado de prisão pela ditadura militar, teve seu processo
arquivado. Ocupou espaço na mídia, ganhou teses que estudam sua obra e
foi um dos grandes poetas brasileiros de todos os tempos. Faleceu no ano
de 2002. (GC)
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de
uma poética sertaneja). Fortaleza/São Paulo: Edições UFC/Nankin, 2004.
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: pássaro liberto. Fortaleza: Museu do Ceará,
2002.
FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto. São Paulo: Escrituras,
2003.
GONZAGA, Luiz (Patativa do Assaré). “A triste partida”. Faixa 1. A triste partida, Rio de
Janeiro: BMG/RCA Victor, 33 RPM, 1964.
PATATIVA DO ASSARÉ. Inspiração nordestina. São Paulo: Hedra, 2003.
Poesia oral
Compreendem-se na poesia oral as narrativas e os versos de produção e
circulação orais. A poesia é tomada em seu sentido etimológico de poiesis,
isto é, como uma criação. Adota-se o termo em substituição à literatura
oral, por entender-se que a palavra “literatura” remete à palavra “letra”.
Trata-se de um texto que se atualiza em performance. Compõe, ao lado das
expressões poéticas sonoras, o grande conjunto de gêneros poéticos
denominado por Paul Zumthor de “obra vocal”. (FF)
REFERÊNCIA
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.
Ponto (teatro)
O ponto era a pessoa que ficava nos bastidores, fora da cena, narrando em
voz baixa as falas para os atores quando eles esqueciam o texto. O ponto
devia ser ouvido apenas pelos atores, não pelo público. Segundo Pavis, essa
função foi criada no século XVIII. O ponto ficava em uma pequena caixa ou
em um buraco no proscênio, de costas para o público e com abertura para
os atores. Pavis afirma que “o bom ponto deve saber, ao observar os atores,
antecipar o erro ou a dificuldade e interferir no momento exato”. Segundo
Eudinyr Fraga, o ponto acumulava funções, como as de auxiliar o
ensaiador (diretor) nas marcações das cenas para os atores lembrando-os
de suas posições, indicar o momento de apagar e acender as luzes e fazer a
sonoplastia (ruídos), como tapas, ranger de portas, freio de carro etc.
Como é possível notar, o ponto assume uma função quase
metanarrativa, pois sua observação penetra as camadas ficcional e não
ficcional, distinguindo o que é a história representada do que não é. Nesse
sentido, a função do ponto tem relação com a do contador de histórias,
pois sua voz atravessa o palco e ecoa nas ações e vozes dos atores, que
contam a história através do drama.
O escritor alemão Michael Ende, autor do livro A história sem fim,
escreveu um conto chamado O teatro de sombras de Ofélia, cuja personagem
principal é um ponto. Mesmo sendo um texto literário, ele traz alguns
elementos históricos, como a transição e o desaparecimento desse ofício.
Na obra, a velhinha Ofélia havia dedicado toda a vida a ser o ponto.
Quando surge o cinema, ela se depara com a situação de ter de deixar o
teatro em que trabalhava. Como essa era a única atividade que sabia
desenvolver, Ofélia perdeu a direção da vida. O conto de Ende já foi
adaptado para o teatro e também contado por alguns grupos no Brasil.
Atualmente, o ponto do teatro na forma aqui descrita desapareceu
quase por completo, mas, ainda segundo Fraga, “existe, nos dias de hoje, o
ponto eletrônico, disfarçado estrategicamente nos ouvidos dos intérpretes,
em ocasiões especiais”. O ponto eletrônico não é utilizado só no teatro,
mas é recorrente em conferências, eventos com tradução simultânea,
discursos políticos, telejornais etc. (FHNM)
REFERÊNCIAS
ENDE, Michael. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
_____. O teatro de sombras de Ofélia. São Paulo: Ática, 2000.
FRAGA, Eudinyr. “Ponto”. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela
Alves de. Dicionário do teatro brasileiro. São Paulo: Edições Sesc/Perspectiva, 2009,
p. 273.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
Projeção vocal
Compreende o direcionamento e a expansão da voz no espaço, envolvendo
assim o controle da direcionalidade (de onde vem e para onde vai o som),
da ressonância e da intensidade (volume) da voz. A estrutura acústica do
espaço interfere diretamente na produção vocal e, consequentemente, na
projeção da voz. Espaços pequenos e baixos, ou ambientes amplos, mas
com boa acústica, reverberam mais adequadamente a produção sonora.
Espaços abertos, muito altos ou com acústica ruim, por diversos motivos,
dificultam o controle do direcionamento e da manutenção das qualidades
do som no espaço. Assim, para uma projeção vocal adequada, é necessário
o controle da intensidade vocal por meio do apoio respiratório (para
manter a qualidade da voz e não causar danos à saúde vocal), além do
controle da ressonância e da direcionalidade da voz no espaço. É preciso
levar em conta também que a quantidade de pessoas presentes no local
interfere na reverberação do som: quanto maior for o número de pessoas,
menor será a reverberação do som, necessitando de mais projeção. A
produção vocal cênica deve ser consciente, e a projeção dessa produção,
também. Assim, a projeção vocal contribuirá para a criação das imagens,
sensações e impressões da cena. A falta de domínio da projeção vocal pode
levar a produção vocal a ser, sem querer, ininteligível (na relação com o
sentido das palavras) ou inaudível (impossível de ser ouvida). (DD)
REFERÊNCIAS
LIGNELLI, César. Sons e cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica.
350f. Tese (Doutorado em educação) – Universidade de Brasília. Brasília: 2011.
MARTINS, Janaína Träsel. Os princípios da ressonância vocal na ludicidade dos jogos de
corpo-voz para a formação do ator. 196f. Tese (Doutorado em teatro) – Universidade
Federal da Bahia. Salvador: 2008.
Rapsodo
1. O rapsodo nasce na Grécia arcaica: o poeta Homero e o pastor Hesíodo
são suas primeiras faces. Surge em uma época em que a memória, ainda
não entorpecida pela escrita, se conserva pela ação da palavra poética
sobre o outro: a voz poética é presença que educa e diverte. Aedos e
rapsodos errantes eram comuns no mundo de língua grega dos séculos VII
a.C. e VI a.C., mas sua importância social diminuiu a partir do surgimento
das tragédias e de outras formas literárias que dependiam da escrita em
sua composição e difusão. A diferença entre eles reside no fato de que o
aedo canta suas próprias criações, e o rapsodo, por sua vez, divulga um
repertório – ele é “aquele que cose cantos”. Embora divirja na temática e no
conteúdo de seus cantos, o rapsodo guarda traços comuns com os
cantores-narradores medievais, época em que as vozes poéticas dos jograis
e dos cantores de gesta eram portadoras da preservação e da difusão da
memória.
2. O rapsodo articula na performance os atributos do narrador, sujeito épico,
e do cantor, sujeito lírico, entoando no balanço entre canto e fala,
representante do espaço da voz poética. Como o escritor-rapsodo que
junta o que previamente despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o
que acabou de unir, o ator-rapsodo costura seu desempenho em um campo
de tensões determinado pelas combinações entre as vozes do cantor e do
narrador.
3. Nas estratégias do rapsodo, o canto colide com a fala e a fala colide com
o canto; o canto interfere na fala e a fala interfere no canto; o canto se
transforma na fala e a fala se transforma no canto. Como canto e fala se
alternam, o canto fala, e a fala canta: cantofalado, falacantada. (ZDF)
REFERÊNCIA
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.
Renda de bilros
No Nordeste, a renda de bilros foi introduzida nas reduções indígenas
pelos missionários jesuítas. No século XVII, meninas e rapazes eram
iniciados nas “almofadas” de bordar e faziam a renda que seria usada nas
toalhas dos cultos. Os jesuítas controlavam a produção, para evitar o
comércio desenfreado ou um desgaste da mão de obra nativa. A renda é
um artesanato cuja origem se confunde com as possibilidades de
desenvolvimento em vários núcleos e culturas. Ela teria sido feita
inicialmente em Flandres, região que é dividida hoje entre a Bélgica e a
Holanda. Quando dominaram a Holanda, os espanhóis levaram alguns
modelos e técnicas para a península Ibérica. Assim, Portugal se beneficiou
desses trânsitos e fez com que a renda chegasse ao Brasil. Os indígenas
conviviam com um algodão nativo, cujos fios eram tecidos para a feitura
das redes de dormir nos improvisados teares manuais. Os fios de algodão,
chamados de nimbós, eram moeda de troca em algumas transações de
comércio. A renda entrou no Brasil como algo novo, mas os índios logo se
familiarizaram com o fazer artesanal e temos amostras desse material no
Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Em Santa Catarina, a
introdução da renda se deu por meio dos colonos migrados dos Açores. A
renda recorre ao chamado “ponto no ar”, uma laçada feita sobre a
almofada geralmente cilíndrica, recoberta por tecido de algodão e
recheada com palha. Sobre a almofada, é disposto o “pinicado” – um
papelão com perfurações que são guias para o trabalho –, que servirá de
modelo para a renda a ser confeccionada. As rendas são feitas com linhas
de certo brilho. Durante algum tempo, prevalecia a cor branca, mas outras
cores foram sendo incorporadas por exigência do mercado. Os bilros
nordestinos recorrem a pequenos cocos ou à madeira esculpida e são
colocados nas pontas das hastes de madeira. Ver a rendeira trabalhando e
a dança dos bilros permite acompanhar a agilidade de quem tece a renda.
(GC)
REFERÊNCIA
GIRÃO, Valdelice Carneiro. Renda de bilros. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2013.
Repentistas
Ao som das violas, com muita verve, agilidade e jogo de cena, os
repentistas são os equivalentes brasileiros aos jograis e menestréis da
tradição europeia. A cantoria chegou ao Brasil pela herança indígena que
vem das danças rituais e dos cantos de trabalho e também pelo legado
africano, com os orikis, os pontos das entidades e os batuques. Segundo a
maioria dos estudiosos, o berço da nossa cantoria de viola teria sido a serra
do Teixeira, na Paraíba. O canto é marcado pela agilidade e pela riqueza do
improviso, ainda que alguns levem versos prontos (os chamados “balaios”).
A peleja gira em torno de um “mote”, pretexto, álibi, motivo que os
contendores recorrem para cantar. Eles se apresentam em duplas que
competem, por meio da palavra, entre si. Ganha o que for mais ágil e tiver
a argumentação mais convincente. O público interage, torce e ajuda a
escolher o vencedor ao final da apresentação. A “batalha” ocorre em versos
com o mesmo número de sílabas, rimados e de acordo com as
modalidades. As possibilidades são diversas: sextilhas, gabinetes, mourões,
galopes à beira-mar, martelos agalopados etc. Antigamente, as cantorias
não tinham tempo para terminar e podiam durar dias. A cantoria “pé de
parede”, ajustada pelo dono da casa ou da fazenda, deixava os adversários
em uma sala onde era colocada uma bacia para as moedas que
complementariam o cachê ao qual eles fariam jus. Sempre foi frequente a
presença de cegos nos embates, visto que havia uma legislação que fazia
reserva de mercado para os deficientes visuais, aos quais se dava primazia
na venda de poesias nas feiras. Hoje, a cantoria se rege pelas leis do
espetáculo, com festivais que recorrem a normas rígidas, a prêmios
estipulados, a tempos definidos, a júris competentes, à escolha dos motes e
à gravação de CDs e DVDs durante os torneios. Tudo isso ocorre em espaços
legitimados e com conforto, cenários, iluminação, bancadas e repercussão
na mídia. Novas modalidades mantêm o interesse pela cantoria, como é o
caso do rap, nova forma de expressar ritmo e poesia. (GC)
REFERÊNCIAS
AMÂNCIO, Geraldo; PEREIRA, Vanderley. De repente, cantoria. Fortaleza: LCR, 1995.
AYALA, Maria Ignez Novais. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina. São
Paulo: Ática, 1988.
CASTRO, Simone Oliveira de. Memórias da cantoria (palavra, performance e público).
Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011.
LINHARES, Francisco; BATISTA, Otacílio. Antologia ilustrada dos cantadores. Fortaleza:
UFC, 1982.
RAMALHO, Elba Braga. Cantoria nordestina: música e palavra. São Paulo: Terceira
Margem, 2001.
REFERÊNCIA
BETTOCCHI, Eliane; KLIMICK, Carlos; REZENDE, Rian. “Projeto Incorporais: método e
material lúdico-didático para professores e estudantes do ensino médio”.
Tríades: Transversalidades, Design, Linguagens – Revista do Programa de Pós-
Graduação em Design da PUC-Rio. Rio de Janeiro: 2013, v. 2, n. 1. Disponível em:
<www.revistatriades.com.br/blog/?page_id=962>. Acesso em: set. 2014.
Romance de cordel
O romance de cordel, poema de 16 a 64 páginas, pode ser declamado ou
cantado. Ele se distingue do romanceiro, formado por cantos poéticos de
origem ibérica coletados pelos folcloristas desde o século XIX, e é
transmitido oralmente pelas mulheres. Dona Militana Salustino do
Nascimento (1905-2010), de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do
Norte, foi uma “cantora de versos” considerada uma das maiores
romanceiras do século XXI. O termo pode designar também o conjunto
formado pela poesia oral (improvisada ou decorada) e os folhetos de
cordel. Entre os romances de cordel clássicos, podemos citar A história da
donzela Theodora, A imperatriz Porcina, A princesa Magalona, Roberto do Diabo,
João de Calais, Carlos Magno e os doze pares de França, Genoveva e Brabant, O
soldado jogador, Cachorro dos mortos, Vida e testamento de Cancão de Fogo, João
Grilo, A filha dum pirata, A louca do jardim, Alfredo e Julinha, Cidrão e Helena,
Coco Verde e Melancia, História da princesa da Pedra Fina, O romance da princesa
do mar sem fim, João da Cruz, Juvenal e o dragão, O capitão do navio, O pavão
misterioso, O príncipe e a fada, Pedrinho e Julinha, Valdemar e Irene, Zezinho e
Mariquinha etc. No Nordeste, houve uma produção importante de
romances de boi, sejam eles orais, como o Romance do boi da mão de pau, de
Fabião das Queimadas, ou escritos, como a História do boi misterioso, de
Leandro Gomes de Barros. (JC)
REFERÊNCIAS
BARROS, Leandro Gomes de. História do boi misterioso e outros cordéis. São Paulo: Hedra,
2004.
DONA Militana. Cantares (CD triplo). Fundação Hélio Oliveira e Scriptorium Candinha
Bezerra, 2000.
“A salamanca do Jarau”
Na região da Campanha, área de imensas planícies no Rio Grande do Sul,
zona de fronteira com o Uruguai, há uma formação rochosa única,
conhecida como o cerro do Jarau. Esse cerro, ou pequena montanha, é
conhecido por sua “gruta mágica”, “A salamanca do Jarau”, nome do conto
de João Simões Lopes Neto (1865-1916), escrito a partir de versões orais
recolhidas por ele. Nesse conto, uma princesa moura teria sido
transformada por Anhangá-pitã em uma teiniaguá, ou lagartixa, que se
destacava por possuir uma pedra preciosa na cabeça. Aprisionada por mais
de duzentos anos no Jarau, o encantamento da moça só se quebra pela
ação de Blau Nunes, o herói contador de causos criado por Lopes Neto
(para alguns, ele é um anti-herói). Vale ressaltar que, ainda hoje, os
moradores da região comentam os mistérios que envolvem o cerro: “O
Jarau é ali, um cerro grande, né. Mas não tem nada de mistério, ali… O
pessoal fala é da lenda antiga. Mas é bonito ali. É uma vista que a gente
olha…, de muito longe enxerga o Jarau pela posição dele” (Seu Jorge,
Quaraí-RS). A antropóloga Ondina Fachel Leal utiliza esse conto para
analisar a constituição do sujeito masculino na cultura gaúcha. (LH)
REFERÊNCIAS
LEAL, Ondina Fachel. “O mito da salamandra do Jarau: a constituição do sujeito
masculino na cultura gaúcha”. Cadernos de Antropologia n. 7: Cultura e identidade
masculina. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS/CEUE, 1992 (fascículo de circulação
restrita).
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos e lendas do Sul. Porto Alegre: Globo, 1984.
Sociodrama
Sociodrama é a adaptação do psicodrama para questões grupais e, nas
palavras de Moreno, “pode ser definido como um método profundo de
ação para a abordagem de relações intergrupais e de ideologias coletivas”.
Diferentemente do que ocorre no psicodrama, em que o sujeito é o
indivíduo, no sociodrama o sujeito é o grupo, e não importa quem são os
indivíduos, já que todos formam uma unidade que compartilha da mesma
cultura e já estão organizados por seus papéis culturais. Por meio do
sociodrama se lida com problemas sociais e se almeja a catarse social.
Ainda de acordo com Moreno: “o pressuposto dessa abordagem é o
reconhecimento de que o homem é um jogador de papéis, que todo
indivíduo se caracteriza por determinado conjunto de papéis que domina
seu comportamento e que toda cultura é caracterizada por determinados
conjuntos de papéis que ela impõe, com um grau variado de sucesso, aos
seus membros”. Dessa forma, o sociodrama trará à tona uma ordem
cultural por meio de métodos dramáticos. (CSS)
REFERÊNCIA
MORENO, J. L. “Psicodrama e Sociodrama”. In: FOX, Jonathan. O essencial de Moreno:
textos sobre psicodrama, terapia de grupo e espontaneidade. São Paulo: Ágora, 2002.
Teatro de animação
A expressão “teatro de animação” ou “teatro de formas animadas” surgiu
da necessidade de conceituar e denominar as mudanças e os
desdobramentos ocorridos na linguagem do teatro de bonecos,
especialmente na segunda metade do século XX, além de agrupar outras
formas de expressão, como as máscaras, as sombras, o teatro de objetos, as
figuras e os materiais abstratos. Na busca por abarcar as novas e as antigas
manifestações artísticas, chegou-se à expressão “teatro de animação”. Para
Ana Maria Amaral, “marionete, bonecos, figuras, objetos ou formas.
Qualquer que seja sua nomenclatura, estamos falando de um teatro onde o
inanimado é personagem central”. Essa necessidade se deu porque a
nomenclatura “teatro de bonecos” não mais representava a multiplicidade
de linguagens que constela o ato de animar bonecos e formas. Entretanto,
ainda são recorrentes estéticas que se aproximam das estruturas
tradicionais, que se utilizam apenas de bonecos. O teatro de animação é
uma linguagem sustentada pelo protagonismo da anima (no sentido de
alma e vida), deixando para o objeto, seja ele um boneco ou não, a
decodificação de sua essência. A anima ou alma do objeto animado é
desprendida ou projetada do corpo do ator-animador para o “objeto”
animado. Embora o cinema de animação também faça esse movimento de
trabalhar com a representação de criar e animar seres, essas artes se
diferenciam principalmente pelo fato de uma ser teatral e a outra,
cinematográfica. O teatro de animação se diferencia ainda da animação da
recreação por esta não ser uma linguagem artística. (FHNM)
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas. São Paulo: Edusp, 1996.
_____. Teatro de animação. São Paulo: Ateliê, 1997.
Teatro lambe-lambe
Essa é uma expressão nova e uma forma de fazer teatral relativamente
recente. A expressão “lambe-lambe” vem da apropriação do ofício dos
lambe-lambes, fotógrafos ambulantes que carregavam uma caixa
(máquina de fotografar) pelas ruas, vendendo seus serviços. Com a
dinâmica tecnológica, as máquinas e o ato de fotografar foram se
transformando, o que quase extinguiu os lambe-lambes, restando apenas
algumas de suas máquinas-caixa de fotografar, que serviram de origem
para o teatro lambe-lambe. A partir da utilização dessa caixa, essa forma
de fazer teatro pauta-se no teatro de animação. A caixa foi adaptada para
que, em seu interior, sejam apresentadas cenas de teatro de animação com
enredos curtos, entre um e cinco minutos, e personagens em miniaturas.
A caixa de teatro lambe-lambe tem, geralmente, três ou quatro
aberturas: duas nas laterais, para os braços do animador; uma na parte
superior ou atrás, para que ele veja a cena; e outra na frente, para aquele
que assiste. A caixa representa a estrutura de um teatro que só existe com,
no mínimo, duas pessoas: a que faz a peça teatral e a que assiste. Segundo
Kátia Arruda, essa forma teatral teve origem em 1989, em Salvador, Bahia,
por meio das artistas Ismine Lima e Denise Santos. Desde então, vem
proliferando por várias cidades do Brasil. As histórias representadas são
contadas geralmente com uma sequência de cenas sem palavras e com
música, através de fones de ouvido com walkman e, atualmente, MP3.
Do ponto de vista da recepção, as caixas atraem o público pelo fato
de alguma coisa acontecer “dentro”, como algo misterioso. O público
normalmente composto de uma só pessoa olha pela “fechadura” e, ali,
abre-se um tempo que apaga o tempo exterior. Quando parte da
curiosidade é satisfeita ao ver o cenário, as personagens e o preâmbulo
inicial, resta o fio da história que será contada por uma sequência de ações
usualmente visuais. Desse modo, como as expressões “Era uma vez…”,
“Muito tempo atrás…”, “Em um tempo distante…”, entre outras, nos levam
para outro tempo e espaço, o mesmo ocorre com os espectadores que
olham pelo orifício das caixas envoltas em um clima de mistério e magia.
Por mais nova que seja a expressão “teatro lambe-lambe”, o teatro
feito em caixas é antigo. A pesquisadora Darci Kusano menciona que, em
meados dos séculos XVI e XVII, entre as inúmeras trupes que apresentavam
teatro de bonecos no Japão, havia os Ebisu-kaki, que carregavam caixas
penduradas no pescoço para servirem de palcos suspensos. “O minipalco,
de cerca de quarenta centímetros quadrados, não tinha assoalho, posto
que os bonecos eram mantidos no nível do palco, sendo movimentados por
baixo pelos operadores, que conservavam as mãos ocultas”, afirma.
Referindo-se também ao Japão, Margot Berthold cita o período Heian (794-
1185), em que as cenas eram apresentadas nas caixas, e os bonequeiros
manipulavam os bonecos movimentando-os através de buracos feitos no
fundo e nas laterais das caixas. A partir dessa referência histórica oriental,
a Europa tem alguns exemplos de utilização de caixas para a animação de
personagens, como é o caso do teatro de brinquedo do século XIX e mesmo
de algumas lanternas escuras e lanternas mágicas, as antecessoras do
cinema. Alguns grupos de teatro no Brasil vêm se especializando nessa
prática teatral, que vem sendo difundida por produtores culturais e
estudiosos. (FHNM)
REFERÊNCIAS
ARRUDA, Kátia. “O menor espetáculo do mundo”. In: Teatro de bonecos: distintos olhares
sobre teoria e prática. Santa Catarina: Udesc, 2008.
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
KUSANO, Darci. Os teatros Bunraku e Kabuki: uma visada barroca. São Paulo: Perspectiva,
1993.
Teatro playback
O teatro playback (ou playback theatre, como é conhecido mundialmente) é
uma forma teatral em que um grupo de atores, com a mediação de um
condutor, encena histórias contadas por pessoas da plateia. Em uma
apresentação como essa, a interação entre os performers (atores, músicos e
condutor) e as pessoas da plateia é fundamental, para que haja a criação de
um espaço em que as histórias pessoais possam ser improvisadas em cena.
De acordo com Fox, o nome playback theatre deriva da ideia de “representar
de volta” (playing back) as histórias das pessoas da plateia. Criado em 1975
por Jonathan Fox e Jo Salas nos Estados Unidos, atualmente grupos de
vários países trabalham com esse tipo de teatro, inclusive do Brasil. (CSS)
REFERÊNCIA
FOX, Jonathan. Acts of Service: Spontaneity, Commitment, Tradition in the Nonscripted
Theatre. New Paltz: Tusitala, 2003.
REFERÊNCIAS
A PESSOA é para o que nasce. Direção: Roberto Berliner. Brasil: TV Zero, 2003. 85 min.,
color.
TAVARES, Bráulio. “A música é para o que nasce”, 2003. Disponível em:
<www.apessoa.com.br/pt/cd_texto.php>. Acesso em: dez. 2014.
Vocalidade
1. É a historicidade da voz, seu uso. A vocalidade pressupõe a presença de
corpos em contato pela voz. No campo poético, vocalidade é a voz em
performance: reconhecimento, emergência, conduta.
2. Poderíamos dizer do próprio cancionista, do narrador, do rapsodo, do
ator e do ator-rapsodo que eles devem ser adivinhos para desvendar e
descobrir a presença do outro e adivinhar as palavras, suas dimensões,
suas extensões, suas ressonâncias, seus ritmos, suas respirações, enfim,
descobrir seus sentidos.
3. Compor, adivinhar ou farejar uma vocalidade poética é procurar uma
dicção, um dizer cuja continuidade da voz e articulação das palavras
expõem um (só) projeto de sentido. O adivinho intui a presença do outro,
fareja e adestra o faro. O rapsodo, pois, deve cultivar o sentido do faro do
adivinho. (ZDF)
REFERÊNCIAS
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.
TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: Edusp, 1995.
Xilogravura
Etimologicamente, trata-se de traço, entalhe (gravura) na madeira (xilo).
Os estudiosos afirmam que a xilogravura teria sido inventada na China há
mais de 2 mil anos. Passou pela Europa medieval, onde foi o meio de
ilustração para iluminuras e manuscritos copiados nos mosteiros; foi
utilizada por Gutenberg na “invenção da imprensa”, que revolucionou as
impressões com a adoção dos tipos móveis; e chegou ao Brasil em 1808,
com a corte portuguesa, que liberou as publicações até então
terminantemente proibidas. A xilogravura foi usada como cabeçalho e
ilustração nos jornais, nos quais ficava evidente o lado político – por mais
que, nesse contexto, as xilogravuras fossem pouco sedutoras visualmente.
À medida que se tornavam obsoletas para os grandes centros com a
evolução do maquinário, a xilogravura chegava aos grotões do Brasil, e os
prelos serviam para imprimir uma manifestação que até então era oral,
enunciada pelos cantadores e acompanhada pelas violas. A impressão
desse conjunto de narrativas, com rimas, ritmo, melodia e estrofes com
determinados números de sílabas e de versos, deu margem ao folheto de
feira, a partir da dobra da página de formato A4. Nascia assim a literatura
de cordel, impressão da poesia da voz. Suas primeiras capas eram cegas,
como se diz, trazendo apenas informações de autoria, título e ano da
publicação e, por vezes, alguma informação das folhetarias. Depois, vieram
os clichês de metal, a partir de fotogramas, dos cartões-postais e dos
desenhos feitos com base nas histórias contadas. A xilogravura passou
para a capa de cordel no início do século XX. Os primeiros gravadores eram
recrutados das marcenarias e da escultura religiosa, que foi forte na região
nordestina. Passou para os álbuns a partir dos anos 1960, graças à
interferência da Universidade do Ceará, cuja coleção foi exposta na Europa
e pontificou Mestre Noza, Walderêdo, Antonio Batista, entre outros. A
xilogravura erudita brasileira envolve nomes como Lasar Segall, Oswaldo
Goeldi, Lívio Abramo e Maria Bonomi. Jovens artistas desenvolvem e
inserem em seu trabalho essa técnica do ponto de vista da tradição, como
em Juazeiro do Norte e na chamada gravura contemporânea. (GC)
REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de. Xilogravura: doze escritos na madeira. Fortaleza: Museu do Ceará,
2001.
_____. Memórias da xilogravura. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010.
_____. A xilogravura de Juazeiro do Norte. Fortaleza: Iphan, 2014.
COSTELLA, Antonio F. Introdução à gravura e à sua história. Campos do Jordão:
Mantiqueira, 2006.
No conto “Os contistas”, Moacyr Scliar diz que os contadores são ubíquos,
onipresentes: “Os contistas persas acreditavam que certas sementes
plantadas em noite de luar geravam árvores cujos frutos, ocos, continham
pequenos contos”1. Nesse conto, a referência que prevalece é aos
contadores literários, que contam com a escrita, mas são mencionados
também os da oralidade, e o texto de Scliar nos levou a reservar este espaço
para plantar pequenos relatos-semente.
“Na Idade Média alguns contistas foram acusados de bruxaria e
queimados vivos. Em certas regiões da Itália, cinzas desses contistas são
conservadas em garrafinhas; às vésperas dos exames os estudantes vão, em
romaria, reverenciar esses despojos”2. O objeto livro não deixa de ser um
ancestral dessas garrafas: não que aqui jazam suas cinzas, mas por meio
dele as histórias e experiências são levadas ao mar da leitura.
Os relatos a seguir são de narradores individuais e de grupos que
contam histórias e correspondem à expressão de um breve histórico de
ações, experiências, processos e recursos artísticos dos quais esses
contadores se valem.
Como área do conhecimento, a contação de histórias ainda está em
desenvolvimento. O momento atual é o de demonstrar as formas de
aprendizado e de realização das práticas espalhadas pelo Brasil, a
interdisciplinaridade do ato de contar histórias e as variadas formas de
contar, a diversidade cultural dos estados, grupos e estéticas e a
experiência que se faz com o outro, seja ele um ouvinte da audiência ou um
ouvinte especializado, que comunga da mesma atividade. É, sobretudo, o
momento de possibilitar o encontro entre fazedores, pois é muito bom
saber que não estamos sozinhos.
Diante da grande quantidade de fazedores (o que confirma, de certa
forma, a ubiquidade dos contadores), elencamos critérios para selecionar
aqueles que fariam parte desta coletânea. Esses critérios corresponderam
a contadores e grupos que contemplassem diferentes estéticas (afro-
brasileira, indígena, popular, com animação, teatralizada, oral, literária
etc.), representassem diferentes regiões do país e fossem,
preferencialmente, não iniciantes (em razão da efemeridade de
transeuntes nessa área).
É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria,
divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais. Que seja omisso nos
nomes próprios, localizações geográficas e datas fixadoras do caso do tempo. [LUÍS DA
CÂMARA CASCUDO]
O fluxo do rio
ANA LUÍSA LACOMBE (SP)
Nem te conto, mas por essas bandas do Brasil, os rios e as lorestas fazem
parte do cotidiano de homens, mulheres e crianças. Na Amazônia, a
relação entre homem e natureza é percebida no modo de vida dos povos
que habitam esse mundo das águas, in luenciando a construção do
imaginário simbólico, os mitos, os contos e os causos e trazendo consigo o
signo dos elementos dos rios e da mata.
Vivemos em uma região mágica e mítica em que as fronteiras entre
o real e o imaginário, a exemplo do que ocorria na Grécia antiga, estão de
tal modo entrelaçadas que se torna difícil, se não impossível, distingui-las
e separá-las. O homem amazônico convive com os mitos que habitam o
ventre denso das lorestas e os leitos profundos e misteriosos dos rios da
mesma forma que o grego convivia com os deuses e semideuses que
habitavam o Olimpo.
Aqui, raramente se contam histórias em terceira pessoa, já que, na
maior parte das vezes, o contador é, a um só tempo, narrador e
personagem de seu próprio conto. Foi ele quem viu e até matou o “rapaz de
branco” que, ao cair na água, veio à tona na forma de um boto-tucuxi; foi
ela, a contadora, que foi seduzida pelo Boto ou fugiu da Matintapereira; e
foi o barqueiro que viu a cobra-grande e conta o ocorrido com tamanho
realismo que o ouvinte acaba envolvido nas malhas da narrativa e sente
medo ou deslumbramento diante do fantástico, do terrível, do
imensurável. A maioria das histórias que contamos e recontamos foi
repassada a nós dessa maneira por parentes e conhecidos, habitantes de
um país misterioso chamado Amazônia. Contar histórias, portanto, faz
parte da natureza do homem amazônico, em geral, e do ribeirinho, em
particular. Todos somos contadores em potencial. Para nós, contar
histórias é um ato vital, já que nelas reside nossa identidade cultural, nossa
maneira de ser, estar e compreender o mundo e nossa herança mítica,
principal alimento da narrativa oral.
Nesse cenário, em que a mitopoética das águas e da mata sinaliza
nosso modo de compreender o mundo, um grupo de educadores decidiu
juntar-se para espalhar as histórias que ouviram. Desse modo nasceu o
grupo Cirandeiros da Palavra, composto por pessoas que têm afinidade
com a palavra e tentam cumprir o seu papel como agentes de leitura e de
cultura, pois acreditam que é também pela palavra que a cultura se
constrói.
Com esse ideal, organizamos o Movimento de Contadores de
Histórias da Amazônia (Mocoham) e realizamos o I Encontro de
Contadores de Histórias da Amazônia e o I Festival “Pororoca de
Histórias”. Além disso, lançamos os dois volumes do livro Apanhadores de
histórias: contadores de sonhos16, com as narrativas usadas em nossas sessões
de contação, com as de outros contadores e também histórias que circulam
na região. Nossas narrativas percorrem diversos espaços, como
bibliotecas, feiras de livros, universidades, praças, instituições etc., mas, de
todos os pontos de aterrissagem de nosso tapete mágico, pousamos mais
vezes nas escolas públicas, pois lá é o nosso hábitat. Somos convidados
constantemente a multiplicar nossos contos e recontos para a comunidade
escolar. Além das rodas de contação de histórias, procuramos também
formar contadores, com o objetivo de convidar mais pessoas a partilhar
narrativas, saberes e memórias.
Nesse mergulho nas águas, nas matas e nos fios da tessitura da arte
de contar e encantar, desenvolvemos nossa identidade, por entender que,
quanto mais nos relacionarmos com diferentes saberes e lugares e nos
proporcionarmos trajetórias e percursos diferenciados, mais ampliaremos
nosso conhecimento e validaremos nossa identidade.
Quando contamos uma história, propomos uma imersão em si,
imersão essa tanto nossa como de quem nos ouve. Essa é uma forma de
nos autoconhecermos e nos percebermos sujeitos de uma história. Cada
narrativa é um mergulho na memória, é um mover-se e envolver-se no
contexto que nos reconhece e é reconhecido por nós na ciranda da nossa
existência. Assim nos vemos, nos percebemos como contadores de
histórias e agentes de leitura e de cultura. Na ciranda da vida, embalamo-
nos na palavra e nos deixamos levar no delicioso ato de cirandar.
Embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem. Enquanto restar
uma criatura que saiba contar a história e enquanto, com o fato de ela ser repetida, os
poderes do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança forem
continuamente invocados a estar no mundo, eu lhes garanto que… será suficiente.
[CLARISSA PINKOLA ESTÉS]
A “Prosa” e a contação
FABIO BRANDI TORRES (CIA. PROSA DOS VENTOS) (SP)
Quando a Cia. Prosa dos Ventos foi formada, em 2001, alguns integrantes
(Helena Ritto, Gabriela Lois, Elcio Rodrigues e Fabio Brandi Torres)
vinham de uma experiência anterior em outro grupo de teatro, e a nossa
intenção era direcionar o trabalho para uma pesquisa voltada ao público
infantil, tendo a dramaturgia como ponto de partida.
Naquela época, pensávamos apenas em produzir espetáculos. A
contação de histórias ainda não tinha a presença que tem hoje no cenário
das artes cênicas. Sabíamos que ela existia, mas não pensávamos nela
como uma possibilidade de trabalho a ser desenvolvido pelo grupo. Na
verdade, não pensávamos em contação como não pensávamos em
escultura, por exemplo.
Tudo mudou quando recebemos um patrocínio do grupo
Votorantim para o espetáculo A matéria dos sonhos. Como contrapartida,
havia a possibilidade de nos apresentarmos às sextas-feiras na ala
pediátrica do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, mas não
seria possível fazer um espetáculo diferente toda semana, mesmo porque o
espaço era pequeno. Assim, surgiu a ideia de contar histórias.
Helena havia acabado de fazer uma oficina com a Associação Viva e
Deixe Viver e, a partir daquela experiência, começamos a desenvolver as
histórias que passamos a contar para as crianças internadas no hospital.
Na mesma época, ocorreram com mais frequência apresentações de
contação de histórias em unidades do Sesc-SP, onde vimos que vários
grupos ou contadores já desenvolviam esse trabalho havia um bom tempo
e com diferentes formatos. Resolvemos então entrar em contato com os
programadores do Sesc-SP, e a unidade Ipiranga foi a primeira a nos
contratar.
No começo, optamos por contar as histórias utilizando objetos.
Espanadores se tornavam bruxas, e um velho fole de lareira podia ser o
Lobo Mau. Os objetos continuaram presentes por muito tempo e eles
realmente nos ajudavam a contar a história, sobretudo em tramas com
muitas personagens. Mas começamos a perceber que o corpo dos
contadores também poderia ser explorado e desenvolvemos a “brincação
de histórias”: batizamos assim uma forma de apresentação que era
contação e também trazia muito de cena teatral, com os atores mais livres
para se movimentar pelo espaço. Desse modo, transferimos as
personagens dos objetos para os atores e encontramos uma dinâmica que
se encaixava melhor nas características do grupo.
Ainda assim, não costumamos fechar o grupo somente em um
formato. Analisamos a história e procuramos encontrar a forma que nos
ajudará a contá-la melhor. Há pouco tempo, fizemos um projeto em que
adaptamos várias comédias de Shakespeare e vimos que os objetos, nesse
caso, seriam necessários. Peças como A tempestade e Noite de reis, por
exemplo, têm subtramas divididas em núcleos e um vaivém constante
entre eles. Ao usar objetos, ficava mais fácil não nos perdermos entre as
muitas personagens.
Apesar de hoje termos as atividades do grupo divididas entre os
espetáculos e as contações, não é difícil os dois se misturarem. Alguns
deles têm nascido assim, a partir de histórias que, quando contadas, têm
boa repercussão e geram a vontade de desenvolvê-las cenicamente, com
mais recursos.
Para dar um exemplo, tínhamos duas contações que transformavam
cantigas tradicionais, como “Alecrim dourado” e “O cravo e a rosa”, em
histórias. Como elas funcionavam bem e tinham um mesmo universo
temático, criamos uma terceira história para uni-las, a de uma jardineira e
um semeador, que acontecia em um lugar chamado Ciranda das Flores.
Assim nasceu o espetáculo Ciranda das lores, que hoje é o nosso trabalho
mais conhecido e de maior repercussão. O caminho inverso também
acontece, ou seja, o de escolher um espetáculo e usar a sua história em uma
contação.
Esse, aliás, é atualmente um procedimento-padrão da companhia,
uma regra: o texto de um espetáculo que está sendo desenvolvido é
apresentado como contação. Isso serve para testarmos a história,
identificando seus defeitos e virtudes e, assim, chegarmos à fase dos
ensaios com a dramaturgia mais adiantada.
Como foi possível ver por este breve relato, a contação de histórias
não foi algo planejado na trajetória do grupo, algo que sempre
pretendemos fazer. Mas hoje ela é o núcleo da Cia. Prosa dos Ventos, a
essência do nosso trabalho.
Brincando de Bambalalão
GIGI ANHELLI (SP)
O grupo Brincando de Bambalalão, composto por Gigi Anhelli e Cláudio
Pereira (Doctor Xyss), apresenta-se desde 2003 com vários espetáculos,
dando ênfase à contação de histórias. Nosso trabalho mescla narração de
histórias, músicas e cenas com atores e fantoches. É uma retomada do
quadro da historinha que fazia parte do programa Bambalalão, da TV
Cultura, exibido de 1977 a 1990.
O quadro da historinha foi apresentado no Bambalalão todos os dias,
durante mais de dez anos. Era um dos pontos altos do programa, e, em seu
encerramento, eu dizia a frase “entrou por uma porta e saiu pela outra e
quem souber que conte outra”, que se tornou uma de minhas marcas.
Após o término do programa, em 1990, continuei a desenvolver o
trabalho em shows e peças teatrais. Ainda na década de 1990, passei a atuar
junto à Secretaria Municipal de Cultura a convite do poeta Celso de
Alencar, então assessor de Cultura em São Paulo. No programa
Comunidade Viva, visitei vários bairros da cidade, sempre contando
histórias. Nesse projeto, desenvolvi a experiência de contar histórias e
depois dramatizá-las com as crianças. A atuação dos pequenos era gravada
em vídeo e, em seguida, assistíamos ao trabalho juntos. As crianças
mergulhavam totalmente na história e demonstravam grande prazer ao se
verem atuando. Pude observar como o fato de atuar modificava o
comportamento delas. Algumas vezes, uma criança tímida, fechada e que
quase não falava se soltava de repente na atuação e desempenhava
brilhantemente um papel. Isso constituía uma surpresa para professores e
colegas e acendia um novo olhar sobre o aluno.
Depois de algum tempo, comecei a sentir necessidade de introduzir
música na narração de histórias. Convidei Doctor Xyss, que já havia
trabalhado comigo no Bambalalão e em vários outros espetáculos. Ele
passou a me acompanhar nas apresentações, executando músicas
compostas especialmente para cada história. Os números musicais
abrilhantaram o trabalho e, a partir disso, passamos a nos apresentar
sempre juntos. À medida que criávamos novos espetáculos, resolvemos
aproveitar o talento do Doctor Xyss também como animador de bonecos.
Ele tinha vasta experiência como manipulador de fantoches, pois já havia
atuado em vários programas (TV Tutti-Frutti; Armação Ilimitada; Bambalalão;
Boa Noite, Amiguinhos) e inúmeros comerciais. Incorporamos também os
fantoches aos novos espetáculos. Assim, surgiram Maravilhas de Grimm;
Livro nosso de cada dia; Baú de piratas; Boneca sapeca, levada da breca; Conversa
de índio; Bandeira, poesia e outros bichos; Olha o Cascudo; Histórias e cantigas
juninas; Lendas da água; Lendas da noite; Lendas aladas; Contando e cantando o
Natal; Mouras encantadas; Do Olimpo às Olimpíadas; Pindorama, a magia das
árvores e Laboratório das lores, este criado a partir do livro homônimo que
publiquei em 201136.
Há mais de uma década, apresentamos todos esses espetáculos em
diversas cidades e unidades do Sesc no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Brincando de Bambalalão ganhou também o formato de show que
reproduz o programa Bambalalão, com músicas, brincadeiras, esquetes
circenses, fantoches e histórias. Para esse espetáculo, contamos com a
participação do palhaço Perereca, do Bambalalão.
Esse show foi apresentado em várias cidades e, durante um ano, fez
parte do Projeto Escola, na cidade de Guarulhos, e seus espetáculos foram
gravados pela TV Cantareira. Em 2010, foi adaptado para transmissão por
internet37 e, durante dois anos, gravamos programas que apresentam
contação de histórias, músicas, fantoches, entrevistas, mágicas,
experiências, esquetes circenses, dobraduras e artes.
O melhor lugar do mundo é aqui e agora. Para ficar melhor, o mundo tem
de ter histórias. O ato de parar e ouvir narrativas nos conecta com a
energia do possível, já que tudo é possível nas histórias. Nelas, o sol pode
namorar a chuva, um peixe pode virar pássaro, um menino pode ter alma
de árvore. Quando paramos e ouvimos histórias, vivemos o momento
presente e estamos em todos os tempos. A narração tem o poder de curar
tanto aquele que escuta como aquele que conta. O ouvinte e o narrador
vivendo o aqui e o agora ilustram a arte do encontro. Logo, narrar histórias
é encontrar pessoas.
Eu fiquei encantado pelo ofício de contar histórias quando vi e ouvi
uma apresentação da contadora Ilaine Melo, que foi minha grande
inspiração. Com o tempo, comecei a escrever meus primeiros contos e,
antes mesmo de publicá-los40, comecei a narrá-los em todos os lugares. Eu
os narrei para as árvores do meu quintal, para os meus vizinhos, para o
meu espelho, embaixo do chuveiro. Conto a conto, fui ficando solto, livre, e
desenvolvendo amor pelo ato de criar e narrar histórias. Senti aos poucos
que estava protegido pelo encanto das narrativas. Assim, provei o gosto
pelas palavras faladas e não parei mais de contar.
Costumo contar muitas vezes a mesma história, até que ela fique
orgânica, viva no corpo e na mente. Às vezes, demora um tempo para que
isso aconteça, mas aprendi a lidar com o processo de estudo e prática. Não
foi fácil obedecer ao período de amadurecimento dos contos, mas cada
conto exige certo tempo para pertencer ao contador.
Com a prática e o público, percebi que tinha algo dentro de mim do
qual não me dava conta antes de começar a narrar. Era uma atenção
múltipla: eu podia contar algo com início, meio e fim e, ainda assim, estar
atento à reação das pessoas na plateia; eu podia andar pelo cenário ou
espaço sem perder o fio da narrativa. Assim, além de ser um narrador, eu
poderia ser um espectador de mim mesmo, ou seja, perceber cada ato,
cada ação, e misturar a ação com a palavra.
Depois, comecei a usar o ato de desenhar ao vivo nas apresentações.
Isso se mostrou como um diferencial para a contação de histórias e me
trouxe de volta à minha primeira arte: o desenho. Eu contava e depois fazia
uma ilustração ao vivo da personagem principal da narrativa. Como meu
primeiro oficio foi o de desenhar histórias em quadrinhos, contar histórias
e desenhar no mesmo espetáculo foi um processo natural. Para o público,
era como se eu recontasse um trecho do conto. Para as crianças, era
surpreendente ver surgir um desenho em um espaço em branco, o que se
assemelha ao processo de escutar as palavras e desenhar a narrativa na
imaginação. Penso em misturar ainda mais o desenho com a contação,
fazendo um espetáculo em que desenho e conto ao mesmo tempo, sem
separar as duas atividades.
Procuro ter um cuidado especial com o aspecto visual das
apresentações, utilizando figurinos e adereços. Como uso maquiagem
artística e a maior parte do público é formada por crianças, faço a
maquiagem na frente delas, para que possam observar o processo de
construção do personagem-contador e não tenham medo do contador de
histórias maquiado. Crio ainda personagens que saem do conto e atuam e
interagem com a plateia.
É importante valorizar a musicalidade em cada história narrada. Por
mais que eu não seja cantor, dou-me o direito de cantarolar nos contos.
Quando escrevo, algumas histórias surgem com pequenas canções que
ajudam no momento em que elas serão narradas. Como essas canções
aparecem no ato da criação, elas ficam no corpo da história e são
empregadas em alguns trechos da narração. A cantiga sempre ajuda o
público a gravar um pedacinho da narrativa, e ele leva esse cantarolar para
casa, como um presente.
Além das cantigas que invento, faço a ilustração sonora da história
por meio de instrumentos construídos com objetos alternativos (como
chaves e sementes) ou instrumentos já conhecidos, como pandeiro, afoxé e
caxixi. Apitos de pássaros, sinos e músicas prontas também podem servir
de apoio à narrativa. Uso canções durante e até mesmo antes do
espetáculo, para recepcionar o público, e sempre procuro aquelas que
tenham um tema equivalente ao do conto. Em algumas apresentações,
tenho parcerias musicais: em Contos em cantos, por exemplo, a cantora e
compositora Ana Paula da Silva. Enquanto conto, ela faz a ilustração
sonora. Depois que conto, ela canta e toca a música-tema da narrativa
enquanto ilustro esta com minhas personagens.
Com a criação do grupo Pequeninus Produções Artísticas, com Alex
Nascimento41, muita coisa mudou: eu me tornei mais profissional, e o
repertório aumentou. Alex pesquisou e desenvolveu a narração de histórias
com origami. Em alguns contos que ele narra, vale-se do origami pronto; em
outros, vai contando e dobrando o papel ao mesmo tempo, até formar um
origami no final da história.
Alex se especializou em apresentações para crianças da educação
infantil. Para atender a esse público, preparou histórias mais curtas e que
abrangem o universo de elementos identificados por elas, como é o caso
dos animais (borboleta, sapo, urso, gato etc.). Criou adereços de origami,
chapéus, coroas e fantoches para usar em suas cenas e pesquisou diversos
objetos e personagens construídas com papel dobrado, como dedoches e
cenários montados com esse material. Ao prestigiar o resultado de toda
essa pesquisa, todos ficam encantados e surpreendidos com as dobraduras
e com as narrativas.
O ato de contar uma história é parecido com o de fazer origami, pois
há muitas dobras e desdobramentos, e o trabalho precisa ser feito com
cuidado e precisão, como ocorre ao manusearmos o papel dobrado. Do
contrário, a narrativa pode ser rasgada, danificada, interrompida e
perdida para sempre. Cada conto contado é um papel dobrado: você olha o
origami e fica pensando como foi possível um simples pedaço de papel ter-
se tornado um animal pelas mãos do dobrador. Com a narrativa, ocorre o
mesmo: você termina de ouvir uma história e pensa como simples palavras
faladas puderam se transformar em cenas pelas mãos da imaginação.
Quando cheguei ao Tocantins, sabia que estava vindo para um estado com
baixo IDH e que, em sua emancipação, há poucos anos, 70% da população
era analfabeta e apenas 1% tinha curso superior. Vim sabendo, portanto,
que poderia contribuir de alguma forma para a construção da identidade
cultural desse povo, que já era o meu povo. Na época, ainda acreditava que
faria isso com o direito, pois havia acabado de registrar-me na OAB.
Anos depois, já desencantada com o mundo jurídico, fiz um
concurso para a área de educação, e foi trabalhando com educação infantil
que percebi uma lacuna: no mês de agosto, enquanto o Brasil inteiro
estudava folclore, nossas escolas importavam lendas de outros estados,
quando nós mesmos tínhamos lendas encantadoras. Percebi também que
a prática da contação de histórias era negligenciada aqui. Assim, eu, que
sou cordelista nata e conto histórias desde sempre, decidi casar a
literatura, especificamente os versos, com o regionalismo, as artes
plásticas e o apelo ecológico. Foi com determinação e entusiasmo que pedi
exoneração do meu cargo e comecei a produzir meus próprios livros44.
Resolvi a questão financeira com um curso de produção cultural, no
qual aprendi a elaborar projetos. Passei a verificar editais todos os dias e
tenho concorrido bastante: já ganhei oito editais de cultura em três anos.
Com o dinheiro, faço cada vez mais livros e procuro encantar cada vez
mais crianças. Meus livros têm tiragem de pelo menos mil exemplares, e o
interessante é que eles são levados para crianças que, geralmente, estão
tendo o primeiro contato com a literatura infantil.
É importante ressaltar a questão do pertencimento, pois essas
crianças se identificam com as histórias que tratam da sua realidade. Eu
queria muito despertar nelas o amor pelo estado em que vivem; assim,
ouço as histórias dos tocantinenses e as reproduzo em versos, ou seja,
conto histórias do meu estado em livros pensados para crianças do meu
estado.
Teço loas com paixão e vejo que tem funcionado. Os registros de
lendas que fazem parte do imaginário cultural tocantinense são histórias
colhidas a partir de relatos orais. Eu já havia contado a história do
Tocantins em verso em meu primeiro livro paradidático, Epopeia
tocantinense. O livro é um cordel que conta a história do estado desde 1610,
quando o rio Tocantins foi descoberto, até a atualidade, com destaque para
o movimento separatista e as riquezas naturais e culturais. Sobre esse
livro, há uma história curiosa: um menino de 10 anos, bolsista em uma
escola particular, participou de uma oficina que ministrei em um Ponto de
Cultura e, no dia seguinte, encantado com tudo o que aprendeu,
bombardeou a professora com informações. Esta pediu que a
coordenadora da escola investigasse a questão, pois não conhecia caso
semelhante de tamanho aprendizado em tão pouco tempo. Assim, eles
leram o livro e decidiram que ele passaria a ser paradidático, a fazer parte
do acervo da escola, isso sem que eu ao menos a conhecesse. A criança, que
me ouviu uma única vez, aprendeu o suficiente para convencer uma
equipe diretiva. Ali foi percebido o fato de que a linguagem lúdica utilizada
em meus livros é a mesma que encanta ouvintes ávidos de histórias, por
isso meu trabalho tem tido uma boa aceitação aqui.
Para incrementar meus projetos, resolvi ensinar o cordel, essa
linguagem poética tão apropriada para traduzir as belezas do sertanejo.
Assim, elaboro projetos técnicos que, além de contação de histórias em
escolas públicas – com sorteio de livros e distribuição em bibliotecas e
Pontos de Cultura –, preveem também oficinas de cordel. Isso tem
funcionado, e os produtos das oficinas têm encantado os diretores das
escolas por onde passo. A intenção de publicar os cordéis coletivos
produzidos por alunos de trinta cidades em que o projeto Caravana de
Lendas (fruto do edital Amazônia Cultural, do Ministério da Cultura)
circulará já existe. Esses cordéis serão sobre a cultura de cada cidade
abrangida pelo projeto, e desse modo teremos um produto final composto
de histórias contadas pelos próprios estudantes tocantinenses.
Como não tenho a pretensão de vender livros, pois já desenvolvi a
consciência de que o tocantinense luta para sobreviver e de que não lhe
sobram recursos para investir nisso, com os projetos consigo uma
estrutura suficiente até mesmo para doar livros. Com isso, conto histórias,
ministro oficinas de cordel e deixo minhas obras por onde passo,
contribuindo significativamente para mudar o hábito da leitura em meu
estado. Já tenho cinco títulos publicados e dois prêmios que também se
tornarão livros.
Recentemente, obtive aprovação em um importante projeto para o
universo da contação de histórias no Tocantins: venci o prêmio Mestre
Dió, da Funcult, e, com o valor, pesquisarei e registrarei em livro os contos
tradicionais da comunidade quilombola do Mumbuca. São histórias que
possivelmente se perderiam no tempo e que agora serão eternizadas em
livros, contribuindo para o enriquecimento do acervo cultural do estado.
Meu currículo conta com a participação em várias antologias em
todo o Brasil e a participação oficial em três Salões Internacionais: XXVII
Salão Internacional do Livro e da Imprensa de Genebra (2013); XXVII Salão
Internacional do Livro de Turim (2014); e XXVIII Salão Internacional do
Livro e da Imprensa de Genebra (2014).
O cocheiro do público
JOSIAS PADILHA (SP)48
Eu somo outra linguagem à linguagem falada e tento devolver sua velha e enfeitiçante
eficácia mágica, parte integrante da linguagem da fala, da qual esquecemos as
misteriosas possibilidades. [ANTONIN ARTAUD]
Parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a
delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,
aprender a lentidão, escutar aos outros, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço57.
Livros e cirandas
JÚLIO DE LÓ (SP)
POEMA: LIVRO É LIVRE
Menino (a)
Sentado (a)
Lendo (a)
Livro (e)
Vida é sonho
JÚLIO EMÍLIO BRAZ (MG)
Somos mais do que viver e vamos muito além do simplesmente existir. A
nossa existência não consegue ser encaixada na definição mais espúria de
vida como mera passagem do tempo. Precisamos de mais, necessitamos
até organicamente de um propósito, algo que nos faça transcender a nós
mesmos como essa entidade concreta constituída de carne, ossos e
líquidos.
Talvez o sonho seja a nossa resposta mais transcendente à vida.
Precisamos sonhar. Como já disse, é algo praticamente orgânico. Atávico,
eu me arriscaria a dizer. Não concebo humanidade sem a capacidade
deliciosa do sonho. A história, seja ela contada ou escrita, é a possibilidade
do sonho, pois, ao lê-la, ou antes disso, muitas vezes bem antes disso, ao
ouvi-la, descobrimos, ou pelo menos intuímos, o poder de uma história de
nos levar a outras e ajudar na construção da maior delas, a nossa história –
começamos, assim, ouvindo histórias, e posteriormente, por gostar tanto
de algumas delas, as guardamos na memória e, depois, chegamos à doce
prisão da eternidade circunstancial do papel.
Vida é sonho. Sonhar dá sentido à vida que levamos, pois nossa vida
é obra dos muitos sonhos que acalentamos ao longo dela, sejam eles
realizáveis ou realizados ou meras propostas de uma existência
minimamente prazerosa. A barreira entre o real e o imaginário deixa de
existir como algo intransponível e, consequentemente, invencível, quando
ouvimos uma história. É simples assim.
Gostamos de ouvir histórias e, sob certos aspectos – em particular o
brasileiro, um povo por vezes exageradamente oral –, somos todos
contadores de história e todos grandes ouvintes. Estejamos em uma roda
de amigos, em torno da professora em uma sala de leitura ou partilhando
de uma conversa alheia em um trem ou em um ônibus, apreciamos uma
boa história, pois ela nos lança ao encontro da nossa própria imaginação,
nos dá a oportunidade de transitar a rédea solta pela crença, pela
esperança, através da re lexão que leva e induz ao pensamento e ao
questionamento, à perseverança e à alegria, companheiros inseparáveis da
fantasia e da vontade de viver.
Minha infância e o autor que sou se constituíram a partir dos muitos
contadores de histórias com os quais convivi – tios, primos, pais, amigos,
vizinhos e desconhecidos em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, pois todos
nós somos, já disse, contadores de histórias. Foram, e ainda são, todos eles
que instilaram em mim essa paixão interminável pela palavra, que me
apresentaram os modos e as maneiras de fascinar, encantar e apaixonar
através do jeito como as misturamos, combinamos e tramamos o enredo
mágico de nossa capacidade de sonhar e transcender à fragilidade de
nossa humanidade tão passageira a partir do sonho, da fantasia e da
alegria que usufruímos e doamos a outros tantos que as ouvem e as
ouvirão por muito e muito tempo.
“Era uma vez…”, sob tal aspecto, não é apenas o princípio de muitas
histórias, mas a porta aberta para as mais amplas e infinitas possibilidades
cabíveis à nossa própria imaginação.
Dia desses, durante uma leitura, encontrei uma das traduções mais
bonitas do que seria um contador de histórias. Segundo Estés, “a vida de
um guardião de histórias é uma combinação de pesquisador, curandeiro,
especialista em linguagem simbólica, narrador de histórias, inspirador,
interlocutor de Deus e viajante do tempo”61.
Quando eu era criança, adorava inventar histórias e situações. Tive
muitos amigos reais e imaginários para conversar e encenar as situações
inventadas por mim. Como nasci e cresci em uma cidadezinha, quando
chovia muito, ficávamos praticamente ilhados em razão dos dois rios que,
naquele tempo, só podiam ser atravessados de balsa. Meus avós moravam
em um sítio cheinho de árvores frutíferas, e lá havia ainda muitas vacas,
ovelhas, galinhas, porcos, gatos e cachorros. Meus pais eram professores e
adoravam presentear-me com livros e discos62 que narravam historinhas e,
além disso, meu pai é até hoje um grande piadista (e não há piada sem
história).
Compartilho aqui um pouco da minha infância para indicar como
me constituí como pessoa e como contadora de histórias. Fui uma criança
que adorava inventar brincadeiras e que passou boa parte da infância
tentando fazer funcionar o tal “pó de pirlimpimpim”. Também passei
alguns dias trancada dentro de um guarda-roupa, tentando passar para o
mundo de Nárnia.
Creio que todo contador de histórias tem uma história que conta por
que ele faz o tipo de narração que faz, por que opta por este ou por aquele
tipo de histórias para narrar; e posso assegurar que todo contador tem
uma ou muitas histórias de sua infância que o justificam naquilo que faz.
Sempre tive um fio condutor narrativo invisível que me
acompanhou, e ele é um dos meus grandes parceiros na hora de contar
histórias, principalmente quando é preciso emendar narrativas uma
depois da outra. Faço muitas sessões de contos, para todas as faixas
etárias. Gosto muito de “amarrar” uma história na outra para que a
emoção das pessoas possa ir crescendo com as narrativas. Parece algo
simples, mas não é: é preciso escolher as histórias, conhecer bem cada uma
delas, pensar na sequência a ser dada e no trânsito entre uma e outra.
Compartilho com Estés a ideia de que “uma sequência de histórias
proporciona um insight mais amplo e mais profundo do que uma história
única”63. E, quando se trata de uma sessão de contos para jovens e adultos,
esses insights podem ser ressignificantes.
Em minha trajetória pelo universo narrativo, conto histórias em
contextos distintos, e isso exige estratégias diferentes. No brincar com as
palavras, sou essencialmente uma narradora oral, pois não uso muitos
recursos de cena e me apoio sobretudo nas palavras e em suas
sonoridades, brincando com diferentes entonações e expressões corporais.
De acordo com Sisto, “a performance cênica nasce exatamente da
procura de como colocar o pé no texto narrativo, e ela faz aparecer as
individualidades do narrador e do texto que ele narra. Perceptíveis, mas
indissociáveis na hora da atuação”64. Nos últimos anos, tenho tido um
carinho especial pelas sessões de contos e pela oportunidade de ver brilhar
os olhos de crianças de todas as idades e tamanhos. Concordo com Sisto
quando ele diz que “contar histórias aproxima, cria afeto, instaura o
diálogo entre contador e ouvinte”65. Isso já é motivo suficiente para amar
essa arte que nos permite exercer o melhor do nosso ofício de sermos
humanos.
No ônibus já ensaiava
o que faria naquele dia.
Quanta coisa pensava!
Enquanto pensava, sorria.
Um cerrado sem fim
que a seca castigava;
mas em mudar tudo aquilo
Hortência das tranças acreditava.
De lá veio gente,
mãe, pai, filho e tia.
Todos queriam saber
o que aquela moça queria.
[…]
De olhos atentos
mulheres largavam as panelas,
moças pensando em príncipes,
moços em doces donzelas.
Riobaldo escapole
amoitado no pé de Angico;
de lá, num grito, negaceia:
Nhá Hortência, eu fico!66
A construção de uma narrativa visual a partir de um texto requer
engenharia de escavação. O autor esconde tesouros e deixa um mapa, um
mapa difícil às vezes. Mas ele me dá pistas. Eu leio três vezes e caminho em
círculos na quarta. Descubro então que aquela pista era falsa. Retorno ao
ponto inicial e me insiro naquele universo. Deixo de lado o papel, os
pincéis e as tintas. Tiro da gaveta minha imaginação. Descobri,
finalmente, o que ele queria: “esqueça o que é palpável e busque o
intangível. Não se prenda ao material, cave até encontrar o que procura”.
Estou ali e devo contar aquela história. Eu sou um contador de histórias.
Às vezes visual, às vezes textual. Sou a extensão de um pensamento que
antecede o que é visível. Sou um tatu e continuo a cavar histórias em busca
de tesouros.
Quando a antropóloga Frances Harwood perguntou a um ancião da tribo siúx por que
as pessoas contavam histórias, ele respondeu: “Para que possam se tornar seres
humanos”. Ela então perguntou: “Mas nós já não somos seres humanos?”. Ele sorriu:
“Nem todo mundo chegou lá”. [LAURA SIMMS]
A magia da história
MARÔ BARBIERI (RS)81
História é magia. Histórias enfeitiçam o contador para que ele encante sua
plateia. Foi o que aconteceu comigo, e hoje posso dizer que também faço
essa mágica. Mas, muito antes da minha primeira experiência como
contadora, veio o encanto pela leitura. O contato com os tesouros
guardados nos livros foi a fonte primeira e permanente da minha relação
com esse universo maravilhoso. Os livros escondem segredos por detrás
das palavras, sob o colorido da ilustração, e trazem sempre alguma
novidade para o nosso universo ficcional.
Meus pais não contavam histórias, mas providenciaram que muitos
e muitos livros fizessem essa tarefa. Assim, livros e mais livros povoaram
minha infância, e acho que essa foi a maior razão para que eu me tornasse
contadora. Pensando bem, não sei se foram somente os livros. Talvez não.
Tenho de agradecer também à capacidade criativa do imaginário popular,
que produziu os inesquecíveis contos de fadas, e à tecnologia, que os
trouxe para mim em forma de pequenos discos coloridos de plástico que
ouvíamos – lá na década de 1960 – na eletrola de casa82. Eu, ainda pequena
e impressionável, ficava fascinada pelas narrativas que vinham com
música e sonho. Aliás, o som cativante da voz dos narradores foi referência
para que eu futuramente trabalhasse a minha, ferramenta fundamental no
ofício de contar.
Mas há outro ponto importante: para ser contador, é preciso gostar
de gente, e essa parte foi fácil. Meu pai era engenheiro militar e, desde
pequena, viajei muito e aprendi a socializar com todos os tipos de pessoas.
Por isso, estar com pessoas é sempre um prazer para mim, pois a tarefa do
contador está repleta de humanidade. Na hora da contação, estão lá as
pessoas e a história, e só. Nossa atividade é feita de coração para coração,
olho no olho, gente com gente. É preciso escutar a respiração da plateia,
acompanhar o sobressalto produzido pela dureza do con lito e acolher o
suspiro de emoção nas passagens mais poéticas. É preciso ser parceira na
angústia das atribulações do herói ou da heroína.
Acho que tudo colaborou para que eu me tornasse contadora. Viver a
vida também. Porque contar histórias é falar da vida, das expectativas, das
angústias, das vitórias, das derrotas. É perceber que a ficção não é um
engano. Inventar não é mentir. Inventar é criar outra verdade, uma
verdade que nos faz bem. Por isso é muito bom ser contadora: para contar
sempre uma nova história e se encher de verdades que podemos partilhar
com amigos, boas e novas verdades que dão à vida a beleza que ela deve
ter.
Contos, cantos, encantos e recantos
MAURÍCIO NEGRO (SP)83
Fui ao museu,
Ver uma exposição.
Quando eu fui perceber,
já estava perdidão.
ITINERÂNCIA E DIÁLOGO
Era uma vez uma menina tímida que tinha vergonha de falar em público
ou de conversar com quem não conhecia. Ela gostava de se esconder atrás
de um livro. Neles, ela, que só saía de casa para passar férias na casa dos
primos, viajava por lugares diferentes, conhecia outras culturas e vivia
muitas aventuras. A menina Rosária Garcia Costa cresceu, casou e teve
filhos. Ela lia histórias de livros e contava outras que inventava para eles.
Algum tempo depois, Rosária começou a cursar biblioteconomia e, na
faculdade, descobriu a “hora do conto”. Ela gostou da experiência e decidiu
fazer o mesmo: levar crianças a viajar através de um livro.
Um dia, em um seminário, Rosária assistiu à contação de histórias
de Francisco Gregório Filho. Ele não se apoiava em um livro, como ela fazia
na “hora do conto”. Ele liberava as palavras da história no ar com a voz, as
mãos, o olhar, o corpo todo, e o resultado era mágico. Naquele momento, a
magia do contador de histórias a encantou, e tão encantada ficou que quis
sair a contar histórias também. Na mesma ocasião, Rosária participou de
sua primeira oficina de contação de histórias. Depois, participou de
oficinas com diferentes contadores de histórias nos seminários de 1996,
1997 e 1998 e, bibliotecária já formada e com experiência narrativa, Rosária
resolveu enfim repassar o que havia aprendido em oficinas e minicursos.
O melhor dessa grande experiência foi a menina ter notado que a
timidez havia ido embora e que agora ela era Rosária, a bibliotecária e
contadora de histórias que se apresentava em bibliotecas, auditórios,
praças e palcos e contava histórias em diversos eventos.
A parceria com os livros e as histórias sempre fez parte da vida de
Rosária, que atualmente é membro da Red Internacional de
Cuentacuentos (RIC) e atua na biblioteca pública municipal de Venâncio
Aires, no Rio Grande do Sul, espaço em que realiza saraus literários e
temáticos para um público de todas as idades. Além disso, conta histórias
em feiras de livros, escolas, eventos culturais e até mesmo na rádio local.
A técnica narrativa utilizada procura envolver ao máximo o ouvinte
na história, transportando-o para outra realidade e fazendo-o vibrar com
ela. Assim, o público descobre as dificuldades do mundo e a busca de
soluções por meio dos problemas enfrentados pelas personagens das
narrativas.
Por acreditar que, para contar bem uma história, é preciso
conhecimento (pois os valores artísticos, linguísticos e emocionais da
narrativa dependem da forma como o narrador libera as palavras), Rosária
está sempre em busca de histórias que a conquistem, para só depois
prepará-las e contá-las ao público. Essa preparação consiste em ler e reler o
texto, procurando entonações e gestos que ajudem a construir a história
no imaginário do ouvinte. Por fim, ainda é preciso contar a história em voz
alta para ouvir como as palavras soam ao serem liberadas no ar.
Na maior parte das vezes, Rosária conta histórias publicadas em
livros, que são apresentadas com poucos recursos cênicos ao público – luz e
som são usados somente quando a apresentação ocorre em um palco. Ela
prefere narrar contos de fadas e histórias de bruxas, deixando luir a
emoção pela voz e tornando verdadeiro tudo o que diz.
Contar histórias é uma arte que deve dar prazer a quem conta e a
quem ouve. Uma história deve ser contada com emoção, e não
simplesmente apresentada. O contador tem de fazer o ouvinte sentir-se
dentro da história, identificar-se com as personagens e viver seus
problemas, viajar para o espaço-tempo da narrativa. O ouvinte precisa
receber do contador as ferramentas para conseguir transformar uma
praça no Sítio do Picapau-Amarelo, o pátio de uma igreja nas margens do
rio Jordão, o salão de uma livraria na torre do castelo, uma sala de aula na
Terra do Nunca. Para concluir, eis a receita testada e aprovada:
Modo de preparo
Comece com “era uma vez”, no tempo em que sua imaginação determinar. O
cenário terá as peças que puderem ser encontradas no seu baú de memórias.
As personagens, ao se reunirem na trama, farão a história crescer. Junte
emoções até que evoluam ao ponto alto do enredo. Quando a história estiver
pronta, basta reunir um grupo de crianças, jovens ou adultos em um local
agradável, para que se crie um clima de fogueira, de aconchego de colo de avó,
de embalo de mãe. Sirva a narrativa pela boca de um contador de histórias.
Com certeza todos serão felizes para sempre.
Os contos são fragmentos espalhados pelo chão de uma joia que se quebrou, e só olhos
perspicazes podem descobri-los. [IRMÃOS GRIMM]
Como muitas crianças, enfrentei a dor da separação dos meus pais. Para
ajudar na sobrevivência, minha mãe teve de trabalhar longe de mim, e, por
esse motivo, aos 6 anos de idade fui morar de favor em uma casa onde
viviam mais quatro crianças. Por ser a mais velha, caía sobre os meus
ombros a responsabilidade de olhar as demais. Eu tinha de ser o
porquinho ajuizado Pedrico da história “Os três porquinhos”. Mas, na
verdade, eu estava mais para Palhaço ou Palito, os porquinhos que só
queriam brincar.
Ainda bem que vivíamos em um tempo em que criança podia brincar
na rua. Assim, meus amiguinhos de infância e eu podíamos recolher, nas
ruas, saquinhos de leite, jornais velhos e estrume para serem trocados por
picolés de suco ou leite e pão para o lanche da tarde. Nessas andanças, com
a astúcia de Pedro Malasartes eu encontrava partes de um grande tesouro
espalhado pelo chão: objetos velhos e sujos que passavam a ser
protagonistas de criativas histórias que somente a minha imaginação e a
da minha pequena plateia conseguiam ver. No quintal de terra batida, à
sombra de um limoeiro, eu distraía a meninada contando histórias
recriadas da radionovela que às vezes eu escutava pelo radinho de pilha da
dona da casa onde eu morava. Eu lembro que a plateia, sempre muito
atenta, enxergava comigo diamantes nos caquinhos de para-brisa
quebrado, olhos mágicos do Cavalo Dourado em botões enferrujados e até
mesmo um cinturão mágico de um rei gordo e poderoso em uma fivela
antiga.
Durante a adolescência, a contadora de histórias que habitava em
mim dormiu como a Bela Adormecida, mas, em 1995, fui despertada para a
arte de narrar profissionalmente após ganhar o primeiro lugar em um
concurso de contação de histórias. Paralelamente a esse ofício, tornei-me
professora primária em uma região de grande vulnerabilidade social.
Desde então, uni a arte de ser professora à de contadora de histórias e
passei a desenvolver vários projetos de contação de histórias a partir da
sala de aula. O Conto da Aranha foi o primeiro projeto. Por meio de um
conto acumulativo africano, consegui despertar uma turma de alunos com
grandes dificuldades cognitivas para o prazer de ler e escrever. Três anos
depois, alguns desses ex-alunos me procuraram, interessados em
continuar ouvindo e contando histórias. Dessa demanda, nasceu o projeto
Passaredo Contadores de Histórias. Ao final de doze anos de trabalho
voluntário, centenas de pessoas haviam integrado o projeto por um curto
ou um longo período. Em 2000, o Passaredo recebeu da Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte o troféu “BH em defesa da vida” e participou
de dois CDs infantis.
Em meu cotidiano escolar, eu percebia que muitas crianças e jovens
tinham a autoestima baixa por não se reconhecerem como negras e índias.
Assim, fiz um mergulho na nossa cultura, na tentativa de valorizar
personagens do Brasil com destaque para os povos africanos e indígenas.
Dessa pesquisa, configurou-se o projeto Histórias da Nossa Gente, que,
além do livro, do CD101 e do trabalho acadêmico, deu origem a um
espetáculo de contação de histórias em parceria com o músico Vilmar de
Oliveira. O livro, que está na terceira edição, faz parte do Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), do Ministério da Educação (MEC).
O projeto Primavera de Histórias nasceu a partir do incentivo que
dei aos meus alunos para que pesquisassem, com seus parentes, vizinhos e
amigos, as brincadeiras, simpatias, cantigas e histórias da tradição
popular. Posteriormente, o projeto originou os livros e CDs Primavera de
Histórias e Primavera de Histórias 2102, que buscam dar cor e voz a
contadores de histórias natos de mais de dez cidades mineiras.
Com o escultor Leandro Gabriel, coordeno há vários anos o projeto
Escultórias, que busca promover a inclusão social, artística e cultural de
comunidades com baixa renda no universo da criação artística por meio
das esculturas e da arte de contar, ouvir, criar e recontar histórias. Esse
projeto itinerante tem três livros publicados103 e, em 2009, foi finalista do
IX Prêmio Nacional Arte e Escola Cidadã. O Escultórias foi transformado
em ONG na periferia de Belo Horizonte, e o espaço de sua sede é
disponibilizado para o desenvolvimento de atividades plásticas e de
contação de histórias para os muitos bairros da região.
Desenvolvo ainda outras atividades ligadas à contação de histórias,
como oficinas, seminários, palestras, aulas-espetáculos e apresentações
artísticas para públicos de diferentes faixas etárias e classes sociais em
hospitais, escolas, praças, shoppings centers, centros comunitários, teatros,
televisões, rádios, universidades, ginásios, empresas, clubes, eventos
religiosos e festas populares.
Tudo isso me faz feliz e essa é a minha vocação que partilho, unindo
sensibilidade, paixão e consciência, elementos que norteiam a minha vida,
enraizada no fantástico mundo das histórias. Não sei dizer se sou uma
contadora de histórias professora ou uma professora contadora de
histórias. Apenas sei que ainda mora em mim aquela menina que
conseguia ver diamantes em cacos de vidro.
As cores do som
TINA DE SOUZA (PR)115
PRÓLOGO
Era uma vez uma menina muito legal que tinha uma avó ainda mais
legal, pois essa avó sempre lhe dava carinhos e beijinhos (sons) […] Vou
levar lores para a minha avó!” (olha para as crianças) Nossa, quantas lores!
(as lores são as crianças) Quantos beijinhos, uma rosa, um cravo, uma
hortênsia, um girassol! […] (cantando) Pela estrada afora eu vou bem
sozinha/ levar esses doces para a vovozinha/ ela mora longe e o caminho é
deserto […].
A CAMINHADA
Tenho 4 anos. Estou deitada na cama da minha avó paterna, enrolando seu
cabelo grisalho com a pontinha dos meus dedos. Meu irmão, de 2 anos,
também divide a cama conosco. Enquanto chupa o dedo, ele cutuca a
orelha macia da vovó Liquinha. Cada neto de um lado, e a avó no meio:
“Que história vocês querem ouvir hoje?”, ela pergunta. A resposta é sempre
a mesma: “A história da dona Baratinha!”. A avó então narra o conto
cantado e rimado, modulando a voz. Não é uma história com final feliz.
João Ratão, escolhido por dona Baratinha para desposá-la, acaba caindo na
panela de feijão e morre afogado (coitado!). Dona Baratinha volta para a
janela, cantarolando: “quem quer casar com a dona Baratinha, que tem fita
no cabelo e dinheiro na caixinha?”.
Cresci ouvindo histórias, de boca122 e de livros. Devo admitir que as
que saíam da boca mineira da minha avó sempre foram minhas prediletas.
Ao contrário do lendário sultão Shariar, passadas as mil e uma noites, não
me declarei curada da escuta dessas narrativas e, assim, não permiti que
minhas contadoras de histórias (mãe e avó) me abandonassem.
Quando criança, a “História da dona Baratinha” e “A menina dos
cachinhos dourados” me encantavam. Já adolescente, era com os causos da
avó Liquinha que eu me deliciava. De repente, como professora do ensino
fundamental, me vi aumentando vários pontos nos contos que um dia
foram narrados para mim. Sem perceber, a neta aprendiz tornou-se
contadora de histórias, e os contos contados ao pé da cama ficaram
gravados na memória, conservados pela prática narrativa à medida que
compõem meu repertório.
Não demorou muito para ser possível notar que eu não me
contentava com a “hora do conto” da rotina escolar. Indo para além da
escola e fazendo jus ao nomadismo característico dos intérpretes
medievais (contadores de histórias, cantores e trovadores), comecei a
narrar histórias de boca em diversos espaços culturais e educacionais de
São Paulo e em outros cantos do país. Convites para ministrar cursos,
palestras e oficinas surgiram a partir das rodas de histórias realizadas aqui
e acolá. Entre essas minhas andanças, dediquei-me a pensar a prática
narrativa ao desenvolver meu mestrado em 2008123. Um dos capítulos
dessa pesquisa compõe o livro O bom pensamento: contadores, narradores e
intérpretes, publicado em 2009124. Assim, a narradora oral e pesquisadora
dessa arte da palavra contada de boca se profissionalizou.
Distantes no tempo e no espaço, no momento em que os contos
saem da boca da contadora de histórias, eles ganham vida como se nunca
tivessem sido narrados. Ao cruzarem essa fronteira, narradora e ouvintes
entram em um mundo em que, como nos sonhos, a realidade se
transforma.
O aprendizado de uma história por meio da escuta da voz suave e
cálida de um narrador, seja deitado ao pé da cama, ao redor do fogo, no
alpendre, na cozinha, em uma livraria ou em um espaço cultural,
potencializa a apropriação das imagens que compõem seu enredo, o que
facilita a reprodução dessa narrativa a outras pessoas.
Mesmo quando me preparo para contar de boca histórias conhecidas
através dos livros, não me preocupo com as palavras impressas, mas com
as imagens – das personagens, dos cenários e das situações da história –
que desfilaram à minha frente durante a leitura e o estudo da narrativa. A
partir dessas imagens, o fio da história vai se desenrolando na imaginação
dos ouvintes durante a contação, e isso se dá por meio da voz, dos gestos,
do olhar e da minha presença no espaço.
No meu trabalho, a performance, ou a teatralidade, está presente não
apenas nas linguagens não verbais, como também nas palavras que
compõem a narrativa. Ao percorrer as imagens do conto, surpreendo-me
com as formas nas quais elas se materializam na boca. Então, mesmo que
os contos narrados sejam retirados dos livros, meu ofício como contadora
de histórias diz respeito a uma atividade de pura oralidade.
O fato de essa prática ter as imagens da história, e não um texto,
como matéria-prima pressupõe improvisação e me possibilita levar em
conta as reações dos ouvintes e responder a suas intervenções,
exclamações e perguntas. Portanto, a história vai sendo tecida na relação
narradora-ouvintes.
Recordo-me de que, certa vez, estava contando a história da Bela
Adormecida em uma livraria em São Paulo. Eu narrava a cena em que a
princesa observava uma torre muito, muito alta. Enfatizei a altura da torre
esticando meus braços para o alto. Dessa maneira, descrevi a construção
que chamou a atenção da bela jovem da história. Continuei a narrar que a
princesa, curiosa para saber o que havia no alto daquela torre, decidiu
subir suas escadas: “E foi subindo, subindo, subindo…”. De repente, um
menino, de aproximadamente 6 anos, interrompeu minha narração e
perguntou: “Essa torre é mais alta do que esta livraria?”. Naquele instante,
eu “vi” a torre que tinha descrito e, imaginando-a ao lado da livraria – que é
um sobrado –, respondi: “Sim, é mais alta do que esta livraria”. Continuei a
narração: “E a princesa foi subindo, subindo, subindo…”. Outra vez a
narração foi interrompida por mais uma pergunta do menino: “A torre é
mais alta do que um prédio?”. Dessa vez, imaginei um prédio muito alto,
mas nada que se comparasse à torre da história. Respondi: “é, sim, mais
alta do que um prédio”. Mais uma vez, retomei a narração: “E foi subindo,
subindo, subindo…”. Mas meu ouvinte não me deixou prosseguir: “é mais
alta do que um gigante?”, perguntou, curioso. A imagem da torre
apresentou-se para mim ao lado de um gigante. Então veio a resposta que
aquele menino tanto esperava: “é do tamanho de um gigante”.
Finalmente, meu pequeno ouvinte conseguiu imaginar aquela torre
muito, muito alta, e eu, rememorando o que me encantava nos momentos
vividos na companhia da minha contadora de histórias, pude compreender
o que significa a cumplicidade quando se trata da narração. “A boca abre, a
boca fecha e os contos continuam falando…”125.
1 Moacyr Scliar, Os contistas e outras histórias, Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 226.
2 Ibidem.
3 Contadora de histórias, atriz e membro da Red Internacional de
Cuentacuentos (RIC). Para saber mais, visite
<www.alicceoliveira.blogspot.com>.
4 Disponível em: <www.cejaumcontadordehistorias.blogspot.com>. Acesso em:
set. 2014.
5 Em 2014, o projeto foi contemplado novamente pelo Proac, agora com o nome
Contos do Mato – Encontro Nacional de Contadores de Histórias – Ano II. A
equipe técnica de profissionais desse projeto inclui Mazé Oliveira (produção
executiva), Naine Terena (assessoria de imprensa), Téo Miranda (imagem e
fotografia), Cláudio Dias (áudio e vídeo), Jan Moura (design gráfico) e Roni
Disarz (recepção artística).
6 Os resultados satisfatórios do projeto podem ser conferidos na página
<www.contosdomato.blogspot.com>. Acesso em: mar. 2015.
7 Sesi, Casa de Guimarães, Procev/UFMT, PET Educação/UFMT, Livraria Paulinas,
Editora Vozes, Editora Ática, Distribuidora Literato, Distribuidora Saber com
Sabor, Happy Things, Vai-Vem, Mato Grosso Palace Hotel, Pantanal
Shopping, Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo e Dona Maria
Comunicação Criativa.
8 Para saber mais, acesse: <ciamafagafos.wordpress.com>.
9 Aline Maciel, Cada um conta de um jeito, Florianópolis: Cia. Mafagafos, 2012.
10 Betty Mindlin e narradores indígenas, Moqueca de maridos: mitos eróticos, Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
11 A publicação está disponível em:
<www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Teia%20de%20experiencias_138292
8283.pdf>. Acesso em: abr. 2015.
12 Especialista em psicologia educacional com ênfase em psicopedagogia pela
Universidade do Estado do Pará, graduada em pedagogia pela Universidade
Federal do Pará, membro da Red Internacional de Cuentacuentos (RIC),
integrante do Grupo de Contadores de Histórias Ayvu Rapyta e membro do
Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia.
13 Daniel Munduruku, Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória,
São Paulo: Studio Nobel, 2001; Celso Sisto, Textos e pretextos sobre a arte de contar
histórias, Belo Horizonte: Aletria, 2012.
14 Cléo Busatto, Contar e encantar: pequenos segredos da narrativa, Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 9.
15 Antonio Juraci (filho do boto) é educador, escritor, poeta e trovador; Andréa
Cozzi (filha das linhas, dos retalhos e dos bordados) é educadora e contadora
de histórias; e Sônia Santos (filha da Mãe-d’Água) é educadora.
16 Andréa Cozzi et al., Apanhadores de histórias: contadores de sonhos, Belém:
Tempo, 2013. 2 V.
17 Mestre em teatro pela Udesc, atriz do Grupo Teatral Fio de Ariadne e diretora
e professora de teatro na Universidade da Região de Joinville.
18 Bartolomeu Campos de Queirós, O peixe e o pássaro, Belo Horizonte: Miguilim,
1971.
19 Marina Colasanti, “A moça tecelã”, in: Doze reis e a moça no labirinto do vento,
Rio de Janeiro: Global, 2006.
20 Idem, Entre a espada e a rosa, São Paulo: Melhoramentos, 2010.
21 Cf. Um alfabeto de possibilidades – Memórias da Literatura Infantil e Juvenil,
Museu da Pessoa, 2008. Disponível em:
<www.museudapessoa.net/pt/conteudo/video/um-alfabeto-de-possibi
lidades-81278>. Acesso em: set. 2014.
22 Marina Colasanti, “Entre o leão e o unicórnio”, in: Doze reis e a moça no
labirinto do vento, op. cit., Rio de Janeiro: Global, 2006.
23 Idem, Longe como o meu querer, São Paulo: Ática, 2006.
24 Cf. <www.ciamapinguary.com.br> e redes sociais.
25 Atriz profissional, bailarina, graduada em letras e pós-graduada em ciências
humanas. Formada em canto popular, estudou interpretação para a televisão
e atuou em curtas e longas-metragens e em telenovelas da Rede Bandeirantes
e do SBT.
26 Formada em artes cênicas, trabalha com teatro, atuação e direção, teatro de
animação, contação de histórias, literatura e arte-educação. Faz parte da Cia.
Em Cena Ser. Para saber mais sobre a companhia, acesse:
<http://emcenaser.blogspot.com.br>.
27 Graduado em pedagogia, bonequeiro, contador de histórias, diretor da Cia.
Manipulando Teatro de Animação e produtor de eventos nessas áreas. É autor
dos livros Histórias do mundo para todo mundo (Porto Alegre: Kassol, 2012) e
Histórias ao pé do ouvido (São Paulo: Giostri, 2012).
28 Hans Christian Andersen, A colina de elfos e A pastora e o limpador de chaminés,
São Paulo: Ática, 1992.
29 Membro da Red Internacional de Cuentacuentos (RIC).
30 Contadora de histórias, mestre em Educação pela Universidade de Brasília e
educadora há mais de vinte anos.
31 Oliveira e Gonçalves são contadoras de histórias, educadoras há mais de
quinze anos e formadas em pedagogia pela Universidade de Brasília.
32 Para saber mais, acesse: <www.deiseamahistorias.blogspot.com>.
33 Para saber mais, acesse: <www.naniencantadora.blogspot.com>.
34 Especialista em literatura infantojuvenil, pedagoga, contadora de histórias e
assessora pedagógica do programa Prazer em Ler/Instituto C&A. É ainda
facilitadora de oficinas sobre contação de histórias e mediação de leitura e
integrante do Fórum Pernambucano em Defesa das Bibliotecas, Livro, Leitura
e Literatura.
35 Marina Colasanti, “A mulher ramada”, in: Doze reis e a moça no labirinto do
vento, Rio de Janeiro: Global, 2006.
36 Gigi Anhelli, Laboratório das lores, São Paulo: Giostri, 2011.
37 Um dos episódios do programa Brincando de Bambalalão pode ser acessado
em: <http://tvuol.uol.com.br/#assistir.htm?video=brincando-de-bambalalao-
recebe-convidados-
04029A3770C09123C6&orderBy=maisrecentes&edFilter=all&time=all&q=
brincando+de+bambalalao&originalQuery=brincando de
bambalalão¤tPage=5>. Acesso em: set. 2014.
38 Ted Andrews, O encanto do mundo das fadas, Rio de Janeiro: Best Seller, 2007.
39 Narrador, quadrinista e escritor. Para saber mais, acesse:
<www.pequeninus.com>.
40 Contos em cantos (livro e CD), lançado em 2008.
41 Ator, bonequeiro e produtor cultural, é responsável pela produção da
Pequeninus Produções Artísticas.
42 Para saber mais, acesse: <http://origamii.wordpress.com>.
43 Para saber mais, acesse: <http://irmagalhardo.blogspot.com.br/> e
<caravanadelendasdotocantins.blogspot.com>.
44 Para saber mais, consulte:
<http://poesiainfantilhistoria.blogspot.com.br/2013/11/irma-galhardo.html>.
45 Para saber mais sobre o nosso trabalho, acesse: <www.contacausos.com.br>.
46 Celso Sisto, A noiva do diabo, Chapecó: Grifos, 2000.
47 Angela Lago, Muito capeta, São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2004.
48 É narrador aprendiz e pesquisador de tradição oral. Trabalha na equipe de
coordenação do encontro internacional Boca do Céu e é mestrando em
estética e história da arte.
49 Cf. Massimo Canevacci, disponível em: <www.casaluce-
geiger.net/Canevacci.htm> e <www.qartlog.com/?p=1739>. Acesso em: set.
2014.
50 Italo Calvino, As cidades invisíveis, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
51 Jorge Larrosa, Linguagem e educação depois de Babel, Belo Horizonte: Autêntica,
2004, p. 154.
52 “A mentira, sob uma forma narrativa, se torna assim aliada de todos, a
mestra da vida, o traço de união, o inseparável”. Cf. Jean-Claude Carrière, O
círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro, São Paulo: Conex, 2004.
53 Não questiono aqui a rica experiência da leitura nem as complexas e diversas
formas textuais que representam a tradição literária.
54 Isaac Bernat, Encontros com o griot Sotigui Kouyaté, São Paulo: Pallas, 2013.
55 Cf. Catherine Zarcate, disponível em: <www.catherine-zarcate.com>.
56 Regina Machado, Acordais – fundamentos teórico-poéticos da arte de contar
histórias, São Paulo: DCL, 2004.
57 Jorge Larrosa, “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, I
Seminário Internacional de Educação de Campinas, Campinas: Leituras SME,
2001, n. 4, p. 5.
58 Dan Yashinsky, Soudain, on entendit des pas…: contes pour le XXIe siècle, Montreal:
Planète Rebelle, 2007, p. 99.
59 Italo Calvino, op. cit., pp. 93-5.
60 Contadora de histórias, professora, fisioterapeuta, pesquisadora e escritora.
Para saber mais, acesse: <http://lelaludens.blogspot.com.br>.
61 Clarissa Pinkola Estés, O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente, Rio
de Janeiro: Rocco, 1998, p. 10.
62 Coleção Disquinho, originalmente gravada pelo selo Continental em 1960. A
Warner relançou a coleção em cinco CDs em 2001.
63 Clarissa Pinkola Estés, op. cit., p. 7.
64 Celso Sisto, “Caminhos da narração oral: uma jornada para uma vida inteira”,
in: Celso Sisto (org.), A história fora do papel: a oralidade e o espetáculo, Passo
Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2010, p. 88.
65 Ibidem, p. 83.
66 Este texto em versos está disponível integralmente na obra infantil Hortência
das tranças (Belo Horizonte: Abacatte, 2015), do mesmo autor.
67 Mestre em educação, conta histórias desde 2000 em teatros, escolas,
bibliotecas, unidades do Sesc, centros culturais, parques e em projetos das
Secretarias Municipal e Estadual de Cultura. Também desenvolve oficinas da
arte de contar histórias em escolas e universidades.
68 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo: Companhia
das Letras, 1994, p. 87.
69 Vincent Jouve, A leitura, São Paulo: Unesp, 2003, pp. 107-8.
70 Walter Benjamin, “O narrador”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 109.
71 Ibidem, p. 107.
72 Chico Buarque, Chapeuzinho Amarelo, Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
73 Monteiro Lobato, Memórias da Emília, São Paulo: Brasiliense, 1962.
74 Leonardo Bo f, O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas, Rio de
Janeiro: Salamandra, 2001.
75 Jon Scieszka, A verdadeira história dos três porquinhos, São Paulo: Companhia
das Letrinhas, 1993.
76 “História da coca”, conto popular angolano. Revista Brasileira de Folclore, Rio de
Janeiro: 1971, ano 11, n. 31, pp. 319-22.
77 Para saber mais sobre lendas francisquenses, acesse:
<www.sfs.com.br/index.cfm?
go=turismo.home&IDConteudoSubCategoria=21>.
78 Ruth Rocha, A árvore de Beto, São Paulo: Salamandra, 2010.
79 Uma versão deste texto foi publicada na edição 4 da Revista Ponto (São Paulo:
Sesi-SP Editora, 2013, pp. 49-56).
80 A Cia. Malas Portam é formada por Cris Ó Linda, Michele Mi, Marlon
Chucruts, Rita Ritovski, Umberto Mancebo, Sérgio Jimenez e Edgard Jamelão.
81 Professora, escritora e contadora de histórias. Para saber mais, acesse:
<www.marobarbieri.com>.
82 Coleção Disquinho, originalmente gravada pelo selo Continental em 1960. A
Warner relançou a coleção em cinco CDs em 2001.
83 Ilustrador, designer gráfico e escritor.
84 Graduada em educação artística, bacharel e licenciada em artes cênicas e
diretora de teatro da Cia. Alma Livre.
85 Texto publicado inicialmente em 2014, no segundo caderno de textos do
Centro de Referência de Educação em Museus, do Museu da Língua
Portuguesa.
86 É educadora e contadora de histórias formada em comunicação das artes do
corpo pela PUC-SP e pós-graduada em linguagens da arte no Centro
Universitário Maria Antônia. É educadora formadora no MAM desde 2009 e
responsável pelo programa Família MAM.
87 É professora de surdos e contadora de histórias graduada em pedagogia e
pós-graduada em linguagens da arte.
88 Graduado em letras e mestre em letras, cultura e regionalidade, é ator,
contador de histórias, escritor e músico. Para saber mais, acesse:
<www.pauloboccanunes.com>.
89 Regina Chamlian, O pintinho que nasceu quadrado, São Paulo: Global, 2007.
90 Ricardo Azevedo, No meio da noite escura tem um pé de maravilha: contos
folclóricos de amor e aventura, São Paulo: Ática, 2002.
91 Esse texto encontra-se parcialmente na obra Criações cênicas e atuação com
canções, poemas e histórias (São Paulo: Porto de Ideias, 2013), do mesmo autor.
92 Ator, músico, escritor, contador de histórias e educador. Graduado em artes
cênicas pela ECA-USP, é mestre em artes pela Unesp. Para saber mais, acesse:
<www.passarinholivre.blogspot.com> e
<www.caminhantelivro.blogspot.com>.
93 Berenice Abreu, Jangadeiros: uma corajosa jornada em busca de direitos no Estado
Novo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
94 Renato Russo (Legião Urbana), “Faroeste caboclo”, Que país é este 1978/1987 (LP,
K7 e CD), EMI-Odeon, Rio de Janeiro, 1987.
95 Roberto Mendes e José Carlos Capinan (Maria Bethânia), “Massemba”,
Brasileirinho (CD), Quitanda/Biscoito Fino, Rio de Janeiro, 2003.
96 Thomas A. Hale, Griots and griottes, Indianápolis: Indiana University, 1998.
97 Walter Benjamin, “O narrador”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 201.
98 Paul Zumthor, Escritura e nomadismo, São Paulo: Ateliê, 2005.
99 Ricardo Ribeiro, Criações cênicas e atuação com canções, poemas e histórias, São
Paulo: Porto de Ideias, 2013.
100 Especialista em arte-educação, gestão cultural e alfabetização, educadora,
pesquisadora da cultura popular, escritora, atriz, vice-presidente da ONG
Escultórias e membro da Red Internacional de Cuentacuentos (RIC). Para
saber mais, acesse: <www.sandralane.com.br>.
101 Histórias da nossa gente, 2004. Para saber mais sobre o livro e o CD, acesse:
<www.sandralane.com.br>.
102 Primavera de Histórias, 2008. Para saber mais sobre o livro e o CD, acesse:
<www.sandralane.com.br>.
103 Os livros em questão são Escultórias: a união das esculturas com as histórias
(2007), Escultórias Arigatô (2008) e Escultórias Touché! (2009). Para saber mais
sobre eles, acesse: <www.sandralane.com.br>.
104 Diretor, ator, arte-educador e fundador da Dionisos Teatro. É graduado em
história e especialista em prática social da arte.
105 Ruth Rocha, “Uma aventura de Pedro Malasartes”, in: Almanaque Ruth Rocha,
São Paulo: Salamandra, 2011.
106 O grupo é formado por Simone André, Alexandra Britto Velásquez e Joseilto
Pires da Silva.
107 Atriz, diretora teatral, autora e contadora de histórias, conta narrativas para
adultos e crianças há mais de quinze anos e é fundadora dos grupos As
Meninas do Conto e A Fabulosa Cia.
108 Para saber mais, acesse: <www.meninasdoconto.com.br>.
109 Peter Brook, A porta aberta: as artimanhas do tédio, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999; Gilka Girardello, Baús e chaves da narração de histórias,
Florianópolis: Sesc, 2008; Gislayne Avelar Matos, A palavra do contador de
histórias, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
110 O termo “canovaccio” é utilizado na commedia dell’arte e corresponde ao
teatro popular criado com um roteiro de intrigas abertas, com a intenção de
apenas orientar os atores que improvisam as falas e as cenas no momento em
que o espetáculo é apresentado.
111 Patrice Pavis, Dicionário de teatro, São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 69.
112 Ator, diretor, professor e iluminador.
113 Atriz, produtora, orientadora de pesquisa e especialista nas áreas de
palhaços e de jogos de improvisação e composição.
114 Professor de dramaturgia audiovisual na Universidade de São Paulo.
115 Atriz, produtora, diretora, arte-educadora e contadora de histórias.
116 Mad. H. Giraud, Sir Jerry, detetive, Rio de Janeiro: José Olympio, 1934.
117 Condessa de Ségur, As meninas exemplares, Lisboa/Rio de Janeiro: Livros do
Brasil, 1947.
118 Monteiro Lobato, O Picapau Amarelo, São Paulo: Brasiliense, 1957.
119 Theobaldo Miranda Santos (org.), Contos maravilhosos do mundo, São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1958.
120 Nícia de Queiroz Grillo (org.), “Fátima, a fiandeira”, in: Histórias da tradição
sufi, Rio de Janeiro: Dervish, 1993.
121 Para saber mais, acesse: <www.viviancatenacci.blogspot.com> e
<www.historiasebrincadeiras.blogspot.com>.
122 Termo utilizado por élie Bajard, autor de Ler e dizer: compreensão e
comunicação do texto escrito (São Paulo: Cortez, 2001) e Caminhos da escrita:
espaços de aprendizagem (São Paulo: Cortez, 2002) para identificar a fonte de
enunciação própria da arte de contar histórias: a boca. Segundo Bajard, essa
terminologia teria sido criada pelas crianças com o objetivo de diferenciar a
esfera da oralidade (histórias de boca) da escrita (histórias do livro).
123 Vivian Catenacci, O voo dos pássaros: uma re lexão sobre o lugar do contador de
histórias na contemporaneidade. 125f., dissertação (mestrado em antropologia) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
124 Idem, “Era uma vez outra vez… O lugar do contador de histórias com o
advento da modernidade”, in: Maria Aparecida Lopes Nogueira et al. (org.), O
bom pensamento: contadores, narradores e intérpretes, Recife: UFPE, 2009, pp. 99-
111.
125 Vivian Catenacci, O voo dos pássaros: uma re lexão sobre o lugar do contador de
histórias na contemporaneidade, op. cit., p. 64.
126 José Paulo Paes, Poesia para crianças, São Paulo: Giordano, 1996, p. 27.
Agradecimentos
AMADOU HAMPÂTÉ BÂ
ARIANO SUASSUNA
AUGUSTO PESSÔA
BIA BEDRAN
CARLOS KLIMICK
Doutor em letras e mestre em design, é um dos líderes do grupo de
pesquisa Histórias Interativas, da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). Atuou como docente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj), na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), no
Centro Universitário Carioca (UniCarioca) e na Universidade Estácio de
Sá. Atua como designer educacional pesquisando jogos narrativos desde
1998.
DAIANE DORDETE
DANIEL MUNDURUKU
ELIANE BETTOCCHI
ELIANE DEBUS
FABIO LISBOA
FELÍCIA FLECK
FREDERICO FERNANDES
GILMAR DE CARVALHO
HELENA RITTO
JULIE CAVIGNAC
É doutora em antropologia e professora-associada da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordena o Proext Tronco Ramos e
Raízes (MEC e Sisu) e se dedica a temas como a tradição oral e a questão
identitária no Rio Grande do Norte.
LEO CUNHA
LUCIANA HARTMANN
MARLENE FORTUNA
MIRNA SPRITZER
ROSE AVIZ
RUBEM ALVES
VALDECK DE GARANHUNS
Conselho Editorial
Ivan Giannini
Joel Naimayer Padula
Luiz Deoclécio Massaro Galina
Sérgio José Battistelli
CDD 808.068543