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APRESENTAÇÃO

DANILO SANTOS DE MIRANDA

INTRODUÇÃO
Soprado pelo Vento para chamar passarinhos e esticar os
horizontes
FÁBIO HENRIQUE NUNES MEDEIROS
TAIZA MARA RAUEN MORAES

A história de uma vez: um olhar sobre o contador de histórias


indígena
DANIEL MUNDURUKU

O contador de histórias tradicionais: velhas e novas formas de


narrar
EDIL SILVA COSTA

Câmara Cascudo e os contadores de “estórias”:


entre a tradição e a transmissão
HUMBERTO HERMENEGILDO DE ARAÚJO

A Compadecida e o romanceiro nordestino


ARIANO SUASSUNA

Folguedos, brincantes e a contação de histórias


VALDECK DE GARANHUNS

Causos e cuentos da fronteira sul do Brasil


LUCIANA HARTMANN

Além da escrita: processos narrativos, cordel e transmissão oral no


Nordeste
JULIE CAVIGNAC
A literatura oral na Amazônia paraense: estrutura, forma e modelos
culturais
JOSÉ GUILHERME FERNANDES

Histórias da história da narração: o Centro-Oeste em perspectiva


FREDERICO FERNANDES

Estórias do povo das Minas e dos Gerais


OLAVO ROMANO

As negras vozes dos quintais: acordes da canção Moçambique-


Brasil
ROSE AVIZ

A tradição viva
AMADOU HAMPÂTÉ BÂ

LINGUAGEM

Explicação
RUBEM ALVES

Contação de histórias: oralidade, escrita e pensamento


ELIANA YUNES

Nas asas da poesia:


contação de histórias como linguagem artística
GISLAYNE AVELAR MATOS

Contador de histórias: um animador de palavras e coisas


FÁBIO HENRIQUE NUNES MEDEIROS

A contação de histórias que parte do texto: escritura e oralidade


MARLENE FORTUNA
Literatura ouvida: a contação de histórias como prática difusora do
literário
TAIZA MARA RAUEN MORAES

A ilustração e a narrativa visual nos livros para a infância


MARIA LÚCIA COSTA RODRIGUES

Por onde anda Chapeuzinho Vermelho?


Os contos de fadas do clássico ao contemporâneo
CLEBER FABIANO DA SILVA

Fadas: três séculos ou três milênios?


ANGELA LEITE DE SOUZA

Palavra muda
ZEBBA DAL FARRA

PROCESSOS

A palavra: letra e voz


SERGIO CARNEIRO BELLO

Poesia em (voz) alta: a visão de um autor


LEO CUNHA

Por que contar histórias para bebês, crianças e adultos:


um novo paradigma para a humanidade
FABIO LISBOA

Contar histórias é profissão? O que dizem os contadores


FELÍCIA FLECK

LINGUAGENS
Teatro e contação de histórias
AUGUSTO PESSÔA

Teatro playback: a história que as histórias contam


CLARICE STEIL SIEWERT

A peça radiofônica: vocalidade, escuta e narração


MIRNA SPRITZER

Recontar filmes (e outros cenários do encontro narrativo)


GILKA GIRARDELLO

Role-Playing Game (RPG): o que é isso que me


faz desejar criar e aprender?
CARLOS KLIMICK ELIANE BETTOCCHI

No tempo em que São Pedro e Jesus andaram pelo mundo


VANUSA MASCARENHAS SANTOS

PROCESSOS

Cantar e contar histórias


BIA BEDRAN

Voz: vocalidades e sonoridades na contação de histórias


DAIANE DORDETE

Contar histórias na televisão


HELENA RITTO

(Des)fiando as tramas do Pão-por-Deus


ELIANE DEBUS

VERBETES

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS DE GRUPOS E CONTADORES DE HISTÓRIAS


ALICCE OLIVEIRA (MT)

ALINE MACIEL E SIG SCHAITEL (SC)

ANA LUÍSA LACOMBE (SP)

ANA SELMA CUNHA (PA)

ANDRÉA COZZI, ANTONIO JURACI E SÔNIA SANTOS (CIRANDEIROS DA PALAVRA)


(PA)

ÂNGELA FINARDI (SC)

CARLOS GODOY (CIA. MAPINGUARY) (SP)

CINTHIA SIQUEIRA (SP)

CLAUDIANE CARVALHO (SP)

CRISTIANA GIMENES (SP)

DANILO FURLAN (PR)

DÉBORA KIKUTI (SP)

DEISE SARAIVA (DF)

ELAINE CRISTINA VILLALBA DE MORAES (SP)

ELIANE LISBOA (GRUPO DO ROMANCEIRO) (PB)

ÉRICA VERÇOSA (PE/AM)

FABIO BRANDI TORRES (CIA. PROSA DOS VENTOS) (SP)

FERNANDA MUNHÃO (SP)

GIGI ANHELLI (SP)


GRAÇA MORENAH (RJ)

HUMBERTO SOARES (PEQUENINUS PRODUÇÕES ARTÍSTICAS) (SC)

IRENE TANABE (SP)

IRMA GALHARDO (TO)

JOSIANE GEROLDI (CIA. CONTACAUSOS) (SC)

JOSIAS PADILHA (SP)

JULIA GRILLO (RJ)

JÚLIO DE LÓ (SP)

JÚLIO EMÍLIO BRAZ (MG)

LEANDRO MEDINA (SP)

LÉLA MAYER (RS)

LELIS (MG)

LÍDIA ENGELBERG (SP)

LILIAN FLORES (SC)

MARLON CHUCRUTS (CIA. MALAS PORTAM) (SP)

MARÔ BARBIERI (RS)

MAURÍCIO NEGRO (SP)

MERY PETTY (SC)

MIRELA ESTELLES (SP)

PAULO BARJA (SP)


PAULO BOCCA NUNES (RS)

REGINA MACHADO (SP)

RICARDO AZEVEDO (SP)

RICARDO RIBEIRO (SP)

ROSARIA GARCIA COSTA (RS)

SANDRA LANE (MG)

SILVESTRE FERREIRA (SC)

SIMONE ANDRÉ (ESCUTA SÓ CONTADORES DE HISTÓRIAS) (RJ)

SIMONE GRANDE (AS MENINAS DO CONTO) (SP)

TINA DE SOUZA (PR)

TININHA CALAZANS (SP)

VIVIAN CATENACCI (SP)

WÂNIA KAROLIS (SP)

AGRADECIMENTOS

SOBRE OS ORGANIZADORES

SOBRE OS AUTORES
APRESENTAÇÃO

Contar para viver e viver para contar

Contar histórias é uma arte ancestral, cujo fascínio sobre o ser humano
permanece, ao longo do tempo, colaborando para a consolidação do
imaginário coletivo e enredando narradores e ouvintes em uma mesma
trama. Desde a infância e por toda a vida, ela faz parte da construção da
identidade e da afetividade. Nesse sentido, a fabulação nos possibilita
experimentar o prazer de perceber o mundo e a existência por meio de
representações que nos levam a conhecer outras realidades, e a re letir,
transcender e desenvolver uma acuidade sobre o real, nos habilitando a
percebê-lo sob um olhar renovado.
Ainda hoje a arte da narrativa oral permanece extremamente viva
em culturas de povos como os indígenas, africanos, asiáticos e árabes. Esse
aspecto ressalta o papel capital que os contadores de histórias sempre
ocuparam na formação das sociedades, uma vez que, detentores da
sabedoria coletiva, eram e são os porta-vozes da memória, das tradições e
do imaginário dos grupos nos quais se inserem.
Walter Benjamin relata, no ensaio O narrador, que este retira as
histórias que conta da própria experiência ou da narrada pelos outros, e as
incorpora à experiência dos ouvintes. Em As mil e uma noites, clássico árabe
da literatura universal, as vidas de Sherazade e de outras mulheres do
sultão Shariar eram garantidas noite após noite à medida que as histórias
da rainha fascinavam o marido e carrasco, adiando sua sentença de matar
cada esposa após a consumação das núpcias. Obras seminais como essas
nos mostram, de diferentes modos, como o contar está intrinsecamente
ligado ao viver.
Pensar a contação de histórias sob diferentes perspectivas –
tradição, poética e interfaces – é a proposta deste livro. Nele, especialistas,
escritores e contadores de histórias provenientes de variados contextos
socioculturais oferecem suas re lexões, dentre as quais se destacam as de
Ariano Suassuna, Amadou Hampâté Bâ e Rubem Alves. O livro reúne,
ainda, relatos de experiências modelares e verbetes sobre o tema.
Sobretudo, Contação de histórias registra o empenho de contadores e
educadores na defesa de uma relevante causa social, visto que essa arte
comporta uma função política fundamental para a formação crítica do
indivíduo, possibilitando o despertar do interesse pela narrativa, pela
leitura e pelo livro. Soma-se a isso o empenho do Sesc no fomento da
contação em suas unidades, seja por meio do estímulo aos contadores, que
encontram espaço para desenvolver seu trabalho, seja ao proporcionar a
crianças e adultos a chance de conhecer narrativas de diferentes origens,
desfrutando da criatividade, do repertório e do encantamento que uma
história bem contada pode suscitar.

DANILO SANTOS DE MIRANDA


Diretor Regional do Sesc São Paulo
INTRODUÇÃO

Soprado pelo Vento para chamar passarinhos e


esticar horizontes
FÁBIO HENRIQUE NUNES MEDEIROS

TAIZA MARA RAUEN MORAES

– Meu Pai, fiquei ouvindo o Vento contar uma história. Perdi a hora.
– Uma história? – interessou-se o Tempo, sempre em busca do que lhe fizesse menos
pesada a eternidade, droga de eternidade! – Conta-me e, se for realmente uma boa
história, não só te desculparei como te darei uma rosa azul que medrou há muitos
séculos […].
Senta-se a Manhã aos pés do Mestre, agita as fraldas do vestido de claridade, começa a
contar. No meio da história o Tempo adormece, mas a Manhã não se interrompe, pois
ao debulhar a narrativa parece-lhe escutar a voz cariciosa do Vento, vê a expressão de
súplica nos olhos. [JORGE AMADO]

Para ser lido com lupa: parêntesis: (A história que a Manhã contou ao Tempo para
ganhar a rosa azul foi a do Gato Malhado e da Andorinha Sinhá; ela a escutara do
Vento, sussurrada com enigmática expressão e alguns suspiros – a voz plangente. Eu a
transcrevo aqui por tê-la ouvido do ilustre Sapo Cururu que vive em cima de uma
pedra, em meio ao musgo, na margem de um lago de águas podres, em paisagem
inóspita e desolada. Velho companheiro do Vento, o eminente Sapo Cururu contou-me o
caso para provar a irresponsabilidade do amigo: desperdiça-se o Vento em fantasias em
vez de utilizar as longas viagens pelo estrangeiro para estudar comunicação, sânscrito
ou acupuntura, assuntos de nobre proveito. O Sapo Cururu é doutor em Filosofia,
catedrático de Linguística e Expressão Corporal, cultor de rock, membro de direito,
correspondente e benemérito de Academias nacionais e estrangeiras, famoso em várias
línguas mortas. Se a narração não vos parecer bela, a culpa não é do Vento nem da
Manhã, muito menos do sapiente Sapo Cururu, doutor honoris causa. Posta em fala
de gente não há história que resista e conserve o puro encanto; perdem-se a música e a
poesia do Vento.) [JORGE AMADO]
Contar histórias é uma prática onipresente, assim como a leitura. Essas
práticas estão em todos os segmentos da humanidade por serem filhas da
comunicação, o elo perdido entre o homem e o animal. Contamos porque
lemos e lemos porque contamos, em um movimento circular. As histórias
só existem porque há quem as conte e quem as leia, dentro da tríade
mínima da comunicação: emissor, mensagem e receptor. Obviamente, as
expressões ler e contar não estão em um sentido restrito de um sistema de
decodificação alfabética, ou seja, entende-se ler como o ato de interpretar
os signos transmitidos, construindo um sentido comum. A expressão
“comunicação” deriva do latim e significa tornar comum, partilhar,
voltando, assim, à ideia de círculo, de ir e vir. Contudo, além desse grau de
familiaridade com a comunicação, o ato de contar histórias é também filho
da arte, que não deixa de ser comunicação, embora esta não seja a sua
principal característica, uma vez que a arte tem como princípio a estética.
Do ponto de vista das artes, a contação de histórias fica em uma
esfera difícil de observar, por constelar a arte do tempo. Qualquer tentativa
de falar de uma arte efêmera é apenas o início do fio do novelo que se
desenrolará na mente do leitor. E um livro, por mais robusto que seja, não
tem como contemplar todas as qualidades da arte efêmera, sobretudo por
ser ela arte do tempo presente.
Certa vez, Bartolomeu Campos de Queirós disse:

Na medida em que escrevo e o leitor se inscreve no meu texto é que


elaboramos um terceiro tempo, democraticamente. Isso me alivia ao saber
que o leitor vai além de mim enquanto procura decifrar a minha metáfora […]
A metáfora cria arestas, faces, dúvidas. E esta metáfora em função da arte, da
beleza, abrirá portas para muitas e infinitas paisagens que já existem na alma
do leitor1.

Mesmo que um contador de histórias materialize sua história em


um suporte concreto, como pedra, argila, pele ou até mesmo papel (um
livro) por meio da escritura, sua performance não estará plenamente
concretizada. Se, por um lado, o registro escrito desses processos tem a
vantagem de imortalizar a história, fazendo com que, de certa forma, o
contador de histórias prolongue sua passagem pela terra, por outro,
perdem-se os demais elementos do ato performático em si e a comunhão
de corpos, que só existem no agora.
Este livro é um grito de alerta para a urgente necessidade da
celebração, do encontro com o outro para respirar o mesmo ar. É uma
rebelião pacífica para a brincadeira, um manifesto por uma infância
abandonada, uma festa popular, uma bandeira a favor do encantamento e
da poesia, uma permissão para o sonho, uma busca pela lucidez de
sentimento de humanidade que escapa de nossas mãos, mas que ainda nos
resta.
A iniciativa do livro se deve principalmente ao fato de a contação de
histórias, especialmente como área de conhecimento, ainda estar em
desenvolvimento no Brasil. Isso se dá, talvez, pela interdisciplinaridade e,
de certa forma, pela dispersão – há vários segmentos de algumas
instituições e de grupos concomitantes e espalhados pelas fronteiras dos
estados. Algumas pesquisas acadêmicas e poéticas estão sendo realizadas
sobre o assunto, bem como há esforços para a manutenção e a
disseminação dessa atividade. Isso é visível nas práticas artísticas, que vêm
se multiplicando nos últimos anos, e na educação formal, com oficinas,
cursos livres e de extensão – ainda que não existam cursos de graduação
específicos na área, há no máximo disciplinas em grades curriculares de
alguns cursos e especializações.
Outros esforços para salvaguardar essa prática são iniciativas de
instituições públicas e privadas, como o Proler2; projetos como o de
Formação de Contadores de Histórias, realizado pelo Sesc Santa Catarina;
e eventos nacionais e internacionais, como o Simpósio Internacional de
Contadores de Histórias3, com envolvimento do Sesc Rio, e o Boca do Céu
Encontro Internacional de Contadores de Histórias4, em São Paulo, entre
outros.
Na academia e nas práticas artísticas, porém, há uma carência de
referências, pois, mesmo que tenham sido produzidas pesquisas sobre o
tema, muitas vezes elas têm um grau de especificidade e uma linguagem
nem sempre acessível.
Esta coletânea tem como premissa atingir um número maior de
leitores e ser útil para professores, artistas, agentes de leitura, agentes
comunitários e demais interessados na arte de contar histórias. Ela não é
um manual, mas uma referência, de fácil entendimento e com abordagens
e perspectivas de artistas e não artistas. Em razão disso, não abarca uma
unidade orgânica discursiva, mas o inverso: a diversidade de olhares e
discursos. É um livro que quer estender o braço ao leitor que pretende
olhar esse tema e também jogar uma semente para possíveis
desdobramentos, seja nas práticas cotidianas, seja nas instituições
formais. Por isso, esta obra é composta por ensaios, artigos, relatos de
experiências e outras formas de expressão, desde que caiba dentro um
pedaço de ideia.
De fato, é muito difícil cercear o ato de contar histórias, e isso não se
deve exclusivamente à sua vastidão temporal e espacial, mas à
característica intrínseca a todas as artes efêmeras, como é o caso do teatro
e da dança. A nosso ver, isso se deve ao fato de o germe da alma dessas
expressões artísticas estar alicerçado na relação com o outro, em uma
espécie de efeito espelho. Conforme diz Walter Benjamin, na faculdade de
intercambiar experiências, “a experiência que passa de pessoa para pessoa
é a fonte a que recorreram todos os narradores”5.
Desse modo, este livro não tem o intuito de dizer o que é ou não é o
contador de histórias ou o ato de contar histórias, mas quer possibilitar e
provocar algumas perspectivas de observadores e atuadores dessa prática
sobre determinados enfoques e experiências que não se encerram em si,
mas que potencializam possíveis desdobramentos na educação, na arte ou
em outros segmentos, em uma busca constante pelo intercâmbio de
experiências.
Do ponto de vista formal, a estrutura dessa coletânea trabalha com
três grandes eixos temáticos: tradição, poéticas e interfaces, nos quais os
subtemas são observados pelo prisma da contação de histórias.
O eixo tradição tem como perspectiva a discussão a partir de práticas
culturais arraigadas, como cordéis, trovadores, mamulengos, folguedos e
brincantes; tradições indígena e afro-brasileira; práticas observadas nas
regiões Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste; uma abordagem
sobre o legado de Câmara Cascudo na perspectiva da tradição e da
literatura oral; e um texto de Ariano Suassuna, “A Compadecida e o
romanceiro nordestino”, sobre oralidade, cultura popular e a importância
dos contadores na sua construção poética.
Fazemos aqui um pequeno parêntese para apontar que o texto de
Ariano Suassuna foi um grande presente de sua família, que teve a
sensibilidade de entender que Suassuna era, antes do grande escritor, um
contador de histórias. Basta observarmos suas palestras, aulas-show e
entrevistas para constatarmos isso. O próprio Ariano, no final de seu texto,
afirma que gosta de divertir o público, mas, impedido pela timidez e por
não saber enfrentá-la, escolheu a arte dramática, na qual a oralidade
permanece. Em outro texto e em inúmeras de suas declarações, ele dizia
que era um “palhaço” e “dono de circo” frustrado, e seu trabalho não era
mais do que uma tentativa de organizar seu circo: “[…] estava eu na
verdade era recriando na Arte o circo que não pudera ter na vida”6. Circo
esse que ele define da seguinte forma:

O Circo é, portanto, uma das imagens mais completas da estranha


representação da vida, do estranho destino do homem sobre a terra. O Dono-
do-Circo é Deus. A arena, com seus cenários de madeira, cola e papel pintado,
é o palco do mundo, e ali desfilam os rebanhos de cavalos e outros bichos,
entre os quais ressalta o cortejo do rebanho humano – os reis, atores trágicos,
dançarinas, mágicos, palhaços e saltimbancos que somos nós7.

O trecho de Ariano é completo se aludirmos à figura do contador de


histórias, artista múltiplo que orquestra toda a sua encenação e consegue
estar em todos os lugares, como um deus da palavra vivente.
Já ouvimos alguns contadores de histórias que se tornaram
escritores dizerem que, quanto maior sua prática com a escrita, menor ia
ficando sua vontade de contar publicamente (embora isso não seja uma
regra). Podemos dizer que os contadores de histórias que têm um público
no tempo do teatro, do agora, são diferentes dos contadores de histórias
literários, que escrevem para deixar suas narrativas para a posteridade.
Todavia, ambos são contadores de histórias.
O eixo tradição contém ainda o texto “A tradição viva”, de Amadou
Hampâté Bâ, uma referência fundamental para o tema da contação de
histórias e da tradição. Por ser uma abordagem de dentro para fora, esse
texto também nos ajuda a considerar a cultura africana um modo singular
de olhar e se relacionar com o mundo e a fugir do estereótipo de algo
exótico e exterior a nós, resumido a formas de sociedade ditas primitivas.
Embora seja o único texto estrangeiro, ele é universal e, certamente,
possibilita um modo especial de observar a tradição. Inicialmente,
questionamos a necessidade de sua presença na coletânea, pois ele já se
encontra no primeiro volume da coleção História Geral da África, editada
pela Unesco em versão impressa e digital. A resposta foi simples: o texto
traz uma abordagem que possibilita um alargamento da percepção sobre a
tradição e a tradição oral como uma ciência de vida, uma visão primordial.
O tema da tradição abre nossa discussão por entendermos que ela é a fonte
da qual jorra a memória, a experiência e os bens simbólicos coletivos, que
respingam em várias atividades humanas, dando suporte até mesmo para
as linguagens.
O segundo eixo, poéticas, envolve um exercício de linguagem no
sentido de manipulação estética, na parte “linguagem”, e, na parte
“processos”, expõe re lexões pessoais sobre a prática do contador. O eixo
tem como abordagem central o estabelecimento do ato de contar histórias
como linguagem artística e as características que lhe atribuem essa
qualidade. O tema é inaugurado com “Explicação”, de Rubem Alves, outro
texto também cedido postumamente pela família do escritor. Nele, Rubem
Alves não trata exclusivamente da arte de contar histórias ou das
narrativas, mas, ainda que de modo sucinto, faz uma espécie de tratado
sobre arte e estética.
Em seguida, outras contribuições teorizam sobre a poética da
contação de histórias, em desdobramentos que abordam desde a contação
como expressão artística e suas relações com a escrita, a literatura e a
literatura infantojuvenil, as imagens e as ilustrações, os contos de fadas
etc., até a discussão e o relato sobre diversos aspectos e âmbitos da práxis
desse fazer artístico.
Subdividido em “linguagens” e “processos” também no sentido de
re lexão e práxis, respectivamente, o eixo interfaces aborda a intersecção da
contação de histórias com outras esferas, como teatro, cinema, tecnologia,
música, psicologia etc. Esse terceiro e último eixo apresenta ainda verbetes
esparsos, contendo expressões significativas para a área, além de relatos
de contadores que descrevem alguns de seus processos artísticos e
também depoimentos de escritores.
Os relatos, em especial, apontam como o contar histórias está
envolto na paixão pelas próprias histórias, que não cabe dentro de seus
narradores, e pelo próprio ato de narrar em si. Afinal, os processos de um
artista se constroem de inúmeras maneiras, e o desejo de partilhar esses
processos está expresso nesse espaço. Salienta-se ainda que, para
contemplarmos uma diversidade de fazeres, há relatos de artistas de várias
regiões do Brasil.
Todo esse alcance temático demonstra o intercruzamento de
linguagens na contação de histórias, seja pelo uso de alguma ou várias
dessas linguagens no ato em si, seja pelo caráter interdisciplinar inerente à
própria performance – interna ou externamente, a partir de apropriação
direta ou indireta.
A divisão dos eixos temáticos objetiva certo direcionamento
metodológico, mas é importante observar o quanto eles se intercruzam,
tanto que se pode constatar que algumas fontes teóricas se repetem. É
fundamental considerar, também, que cada subtema resulta de um recorte
específico em razão de sua abrangência.
Nossa intenção inicial era a de reunir fazedores e observadores da
arte da contação de histórias de várias regiões do país. No entanto, à
medida que recebíamos os textos, percebíamos que se entrecruzavam
neles sotaques, ritmos e cores, possibilitando, desse modo, um encontro
entre várias culturas e histórias, o que, a nosso ver, representa a essência
do ato de contar histórias.
Para ilustrar de maneira lúdica essa multiplicidade de olhares sobre
o contador e o ato de contar histórias, é interessante convocar a sabedoria
do Vento, que traga e sopra nos ouvidos dos poetas das palavras ou de
outras linguagens. O Vento, divino e macabro, é livre, conforme contou
para a Manhã, que, por sua vez, contou a seu pai, o Tempo: “Bisbilhoteiro e
audacioso, rei dos andarilhos, rompendo fronteiras, invadindo espaços,
vasculhando esconderijos, o Vento carrega um alforje de histórias para
quem queira ouvir e aprender”8.
Em busca do contador de histórias – colecionador de memórias –
que tem “receio de amanhecer normal”, citamos e parafraseamos Manoel
de Barros, que “sabia o nome dos ventos e todos os assobios para chamar
passarinhos”9:

Seu olho renova as tardes.


Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios – e
1 esticador de horizontes […]
[o contador] desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente [...]10.

Apanhando mais versos de alguns poemas de Manoel de Barros


sobre bichos e suas vistas, montamos a nossa própria coleção sobre o
“bicho” contador de histórias: “O privilégio insetal de ser uma borboleta me
atraiu. Por certo eu iria ter uma visão diferente dos homens e das coisas”11.
“Descobriu que uma casca vazia de cigarra esquecida no tronco das árvores
só presta para poesia”12. Ou seja, esta coletânea de memórias sopradas pelo
Vento se propõe a chamar passarinhos, renovar as manhãs, tardes e noites,
abrir amanheceres, esticar horizontes, entre outras manifestações do
imaginário e da poesia, aumentando o poente.

Quando anoitece no vale encantado,


Fica só um fiozinho de luz vermelha
Lá no horizonte.
E todas as crianças do mundo param pra ver o pôr do sol.
Ah, o deus das fadas fica tão triste se a gente deixa
De ver o pôr do sol!
A linha vermelha puxa uma carruagem cheia de estrelas,
Onde está a deusa dos sonhos e seu pó mágico,
Que faz a gente sonhar coisas lindas…13
Esse fio de luz vermelha é uma espécie de veia que tece o ato de
comunhão da história. As crianças que contemplam o pôr do sol são os
contadores de histórias e os ouvintes, ou seja, ao mesmo tempo contam e
ouvem, observando o ato poético. Os que contam ouvem com seu corpo
todo; seus ouvintes ouvem tudo: do corpo do contador ao corpo da
história, em um luxo de imagens e sensações contínuas emergentes do
ato e de seu próprio imaginário. História, contador e público puxam a
carruagem de estrelas, em que cabe tudo o que se pode sonhar. Somos a
medida de nossos sonhos e de nossas experiências.
Aquele que conta e aquele que escuta uma história estão sempre
acompanhados um do outro e pela história; não existe solidão nesse ato.
Admitamos que um texto só existe quando é lido, no ir e vir das relações
interpessoais. Conforme observou Jean-Paul Sartre, “a criação só pode
encontrar seu acabamento na leitura; porque o artista deve confiar a outro
a tarefa de concluir o que ele começou”14.
Por isso, devido à característica de celebração da arte de contar
histórias, multiplicando essa fonte de liberdade humana, este livro poderia
ser chamado de livro de encontros ou de abraços, já que o subtexto dessa
proposta está pautado no sentido de abraçar, celebrar e encontrar ou
reencontrar o humano.
A arte de contar histórias é um ato de comunhão de almas, entre
aquele que conta e transfere um fragmento de sua alma nas palavras sons-
gestos (palavras que saem da boca e do corpo) e aquele que lê com a visão, a
audição e os demais sentidos, também se colocando em alma. A alma do
contador de histórias circula em uma aura de luz entre ele e seu ouvinte,
em um círculo de energia contínua que pode não cessar com o término da
história, mas se perpetuar em outros círculos, formando um cordão
umbilical etéreo.
Histórias, literárias ou não, se materializam no corpo do narrador.
Quando isso ocorre no luxo dos corpos, como no ato da contação de
histórias e no contato entre narrador e ouvinte, essa materialidade se
potencializa. A história percorre os corpos presentes. Essa ideia de
comunhão, celebração do ato de contar histórias, nos lembra de uma
passagem do escritor Rubem Alves:
Escrever e ler são rituais mágicos. Num primeiro momento, aquele que
escreve transforma a sua carne e o seu sangue em palavras. No momento
seguinte, aquele que lê transforma as palavras lidas na sua própria carne e no
seu próprio sangue. A isso se dá o nome de antropofagia. O escritor se oferece
para ser comido. O leitor lerá o texto se o seu gosto for bom. Se o gosto do
texto for bom, ele então o comerá até o fim. Escrever e ler, assim, são um ritual
eucarístico: comer carne e beber sangue. O sangue do escritor então irá
circular no corpo daquele que o leu.
Os rituais antropofágicos não se faziam por razões gastronômicas. O
que se desejava era que as virtudes da vítima fossem transferidas para o corpo
daquele que comia.
[Meus] textos são pedaços de mim. Li muitos textos sagrados. Comi
aqueles que me deram prazer. Os outros, meu sangue os rejeitou.
Agora eu os ofereço como parte de mim mesmo. Se eles lhe derem
prazer, você ficará parecido comigo. E experimentaremos aquilo a que se dá o
nome de comunhão15.

Assim também é esta coletânea, com pedaços de pensamentos e


experiências dos que contribuíram com ela. Gostaríamos ainda de
compará-la à brincadeira de fazer bolhas de sabão. Vários pensamentos
soprados em bolhas estão neste livro e, à medida que este é folheado, elas
vão voar noutros ventos. Por enquanto, essas bolhas estão presas no livro
fechado e dependem de seu sopro, caro leitor, para que saiam daqui.
Então, o que está esperando? Vente esse vento.
Eis o nosso maior objetivo com essa iniciativa: trazer sopros, que,
juntos, poderão fazer um vendaval.

Mandei fazer uma casa de farinha, bem maneirinha que o vento possa levar
Oi passa o sol, oi passa a chuva, oi passa o vento
Só não passa o movimento do cirandeiro a rodar16.

1 Bartolomeu Campos de Queirós, “Literatura: leitura de mundo, criação de


palavra”, in: Eliana Yunes (org.), Pensar a leitura: complexidade, Rio de
Janeiro/São Paulo: PUC-Rio/Loyola, 2002, pp. 159-61.
2 O Programa Nacional de Incentivo à Leitura (Proler) é vinculado à Biblioteca
Nacional e ao Ministério da Cultura.
3 Organizado por Benita Prieto no Rio de Janeiro.
4 Organizado por Regina Machado em São Paulo.
5 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura, São Paulo: Brasiliense, 2011, p. 198.
6 Ariano Suassuna, Almanaque Armorial, Rio de Janeiro: José Olympio, 2008, p.
211. Esse texto encontra-se nas páginas 48-56 desta coletânea.
7 Ibidem, pp. 209-10.
8 Jorge Amado, O Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2002.
9 Manoel de Barros, “O provedor”, in: A poesia dos bichos, Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2002. Do mesmo livro foram tirados os versos dos demais poemas
citados.
10 Ibidem, poema “Bernardo é quase árvore”.
11 Ibidem, poema “Borboleta”.
12 Ibidem, poema “Árvore”.
13 Oswaldo Montenegro, “Pensar em coisas lindas”, Vale encantado (CD), Rio de
Janeiro, Albatroz, 1997.
14 Jean-Paul Sartre apud José Domingos de Brito (org.), Por que escrevo?, São
Paulo: Novera, 2006.
15 Retirada da orelha do livro Perguntaram-me se acredito em Deus, São Paulo:
Planeta, 2007.
16 Ciranda popular.
Fui criado no tempo em que o telefone era um grito. Os remédios eram chá de
folhas de mato, o médico era uma rezadeira, as festas eram comemoradas com
um samba de toada e o almoço era um guisado de miúdo de boi. Na maioria das
casas tinha uma almofada de pano para fazer rendas, não existia rádio nem
televisão. As diversões eram mamulengo, cantoria de viola, um terço rezado
numa sala de chão de barro forrada com uma esteira de periperi, com um altar
cheio de lores e velas acesas em pires emborcados.

[…] Quando a criança nascia e a parteira cortava o umbigo, o pai era chamado
pela comadre parteira, para enterrar o parto e logo depois fazer o cachimbo de
aguardente com mel para servir aos visitantes da parturiente.

[…] na véspera de Natal, as mulheres iam para as festas na cidade ou na vila


mais próxima e os homens ficavam sempre em casa cozinhando o almoço do
outro dia. Sempre se reuniam uns nas casas dos outros, passavam a noite
tomando pinga, café, vinho ou batida de frutas. Contando histórias, cantando
toadas, jogando dominó e dizendo adivinhações. Na maioria das vezes, a maior e
melhor atração para a noite era quando no meio de quinze ou vinte homens havia
um que sabia ler. Este era obrigado a ler a noite toda. Várias histórias de cordel,
como o Pavão Misterioso, Juvenal e o Dragão, A Princesa da Pedra Fina, O
Cachorro dos Mortos, João Grilo e muitas outras. [J. BORGES]
A história de uma vez:
um olhar sobre o contador de histórias indígena1
DANIEL MUNDURUKU

Nem lembro direito quando comecei a ouvir histórias. Ou se algum dia


teve um começo. O que sei de verdade é que sempre me senti dentro de
uma história contada por muitas vozes. Talvez isso tenha sido a razão
principal por que sempre me sentia muito seguro vivendo dentro da
minha comunidade, ainda que desconfiasse das coisas que me eram ditas.
Eu poderia começar contando do começo, mas essa é uma forma
muito comum de contar algo. É o modo ocidental de contar uma história.
Começar do começo é sempre caminhar por um caminho linear, e nos
ensinaram a pensar obedecendo sempre a esse caminho. É como se não
houvesse outro possível. Aliás, há outros tantos possíveis, mas nos
acostumaram a seguir uma lógica epistemológica: o ser é e o não ser não é.
Um axioma que traz duas verdades aparentemente absolutas: se eu afirmo
algo, sua negação é impossível. Simples assim.
Acontece que as histórias nem sempre seguem o rumo lógico. Às
vezes elas seguem um caminho que passa longe da compreensão mental.
Elas questionam, indagam, divagam, interrogam, constroem ou destroem;
consertam ou estragam; dilaceram ou unem mundos. Fazem isso porque
costumam contradizer o que está posto ou o que é senso comum.
Demorei muito para entender isso. Outro tanto para compreender a
emoção que costuma tomar conta de quem sabe ouvir histórias.
Observando comportamentos, atitudes, emoções, intuí algo maravilhoso:
somos movidos pela magia. Ela não está fora, mas dentro de cada ser. Ela é
o próprio ser. Infelizmente somos “educados” a abrir mão da magia no dia
em que entramos na escola. Vendo crianças tão pequenas se esgoelando
para não se separarem das mães no primeiro dia de aula me ocorreu uma
verdade cruel: é o dia da separação entre a magia e o real. A escola vai
arrancar de nossos corpos o que trazemos de mágico, de desconhecido, e
em seu lugar vai colocar o conhecido. Nesse dia passamos a nos adequar ao
sistema lógico que nos vai ensinar a “ser alguém”. Nunca mais seremos nós
mesmos, seremos sempre alguém buscando alguém. A magia cede lugar a
um princípio que escamoteia nosso desejo mais íntimo pela verdade:
somos seres originados de uma matéria cósmica. Somos parte do universo,
e não seus donos.

BRINCANDO DE PESCAR HISTÓRIAS

Minha avó era uma boa contadora de histórias. Só que ela não contava as
histórias, ela as vivia. Ou melhor, talvez as histórias ganhassem vida na
vida que ela vivia. Era assim mesmo, um pouco claro e muito confuso.
Meus primos e eu não conseguíamos definir o que ela era. E quando a
víamos sorrateiramente sair rumo ao mato ficávamos atentos, pois
sabíamos que haveria algo novo para conhecermos naquele dia.
Vovó era muito estranha. Parecia um duende dos mundos mágicos.
Ou talvez uma fada. Ou talvez um gnomo. Meu avô a chamava de
“mistério” (Iba’arem ma buk). Quando perguntávamos o porquê, ele
desconversava dizendo que um dia iríamos saber. Eu ficava pensando que
mistério era o nome do meu avô, pois ele era muito esquisito, talvez mais
que a vovó.
O fato é que minha avó tinha alguns segredos que ela não permitia
que ninguém soubesse, e quem os conhecia não deveria contar nada,
jamais. Isso nos enchia de curiosidade. Meninos que éramos, queríamos
mais é conhecer as coisas de nossa família, por isso não desistíamos nunca
de querer saber. A gente sentia que vovó sabia de nossos movimentos e das
perguntas guardadas. Sempre que nos via, ela ria.
Vovó era muito estranha, já disse isso. Ela não falava com quase
ninguém. Ouvia todo mundo, mas poucas pessoas conseguiam tirar de sua
boca algumas palavras. Ela vivia em silêncio, mas parecia que vivia falando
com um ser invisível que habitava sua cabeça ou seu coração. Raramente a
víamos triste ou sem seu famoso sorriso de Mona Lisa nos lábios. Era
diferente, sedutor, enigmático para seu metro e meio de altura. E era por
isso que eu a seguia sempre que podia.
Estava eu, em uma ocasião, próximo ao igarapé. Brincava de pescar.
Subia e descia da canoa de meu pai que estava ancorada ali. Minha mãe
batia roupa mais adiante, sempre observando minha brincadeira. Algum
tempo depois vi um vulto que passava entre as árvores. Eu, no fundo, sabia
que era a vovó, mas fiquei com os pelos do corpo eriçados. Do alto dos
meus 9 anos, a curiosidade falou mais alto e segui meus impulsos de
menino-quase-homem e fui averiguar de quem se tratava. Fiz um sinal para
mamãe insinuando que iria subir mais um pouco para fazer xixi. Ela fez
apenas um sim com a cabeça, abrindo o caminho para a aventura. Deslizei
rapidamente em direção ao vulto. Abri espaço entre os galhos das árvores
baixas para não me deixar notar. À minha frente, a figura continuava
andando. Vez ou outra parava, olhando para as árvores, como se
conversasse com elas. Nessa hora eu queria ser uma abelha só para me
aproximar e ouvir aquele diálogo travado em uma língua estranha. Olhava
admirado para o semblante de vovó, que continuava sereno como sempre.
Um barulho despertou a minha atenção. Havia mais alguém por ali.
Quase me deitei no chão a fim de não me fazer notar. O segundo vulto foi
se aproximando de vovó. Fiquei pensando se devia gritar ou não para
avisá-la. A prudência me mandou ficar quieto e observar a cena.
Quem se aproximou da velha anciã não pude ver com certeza. Não
parecia gente, mas tinha forma de gente. Fiquei tremendo de medo e tratei
de voltar para perto de minha mãe. Quando cheguei lá ela perguntou se eu
tinha visto um fantasma. Respondi que sim, e ela apenas riu de minha
resposta. Continuou batendo roupa enquanto eu fiquei brincando de pescar
histórias.

“HOJE À TARDE NA CURVA DO RIO”

Dois dias depois do ocorrido fui pego de surpresa. Mamãe falou que
minha avó queria me ver. Fiquei matutando sobre qual seria o assunto.
Tentei indagar a minha mãe, que apenas deu de ombros e ignorou minha
preocupação. Minha mãe também era estranha.
Quando cheguei à porta da casa de vovó estava um pouco nervoso.
Além de estranha, ela tinha o hábito de passar um tempão dentro de casa.
Quando eu ia visitá-la com meus pais via seu fogão de lenha todo cheio de
panelas de barro. Elas estavam sempre cozinhando alguma coisa que
parecia apetitosa. Vovó era excelente cozinheira e tinha sempre um
gostoso caldo de peixe para oferecer às visitas. Naquele dia, porém, eu
estava sozinho. Ali, na porta da frente, aguardando convite para adentrar.
Não demorou muito e minha avó pôs o lindo rosto para fora. Disse
simplesmente:
– Encontre-me hoje à tarde na curva do rio.
Uau! O que será que iria acontecer? Por que vovó fazia tanta
cerimônia para conversar comigo? O que ela me diria? Foram perguntas
que imediatamente surgiram na minha cabeça após aquele misterioso
convite.
Passei o resto da manhã em uma expectativa danada. Minha mãe até
notou que fiquei um pouco alheio aos meus afazeres, como se estivesse
com a cabeça na lua. Ela até me perguntou o que havia, e eu simplesmente
respondi que ia me encontrar com vovó.
Quando a hora chegou – e ela sempre chega –, corri para a curva do
rio. Sabia que aquilo era um modo de minha avó se referir ao lugar onde
havia uma pequena cascata na qual sempre nos reuníamos para tomar
banho, brincar ou simplesmente conversar.
Vovó já estava lá, sentada sobre uma pedra. Ao me ver, sorriu. Nada
disse, apenas indicou um lugar para eu me sentar e, quando tentei
perguntar algo, ela colocou o dedo sobre a boca e pediu que eu mirasse
para o lado do rio. Apenas isso. Passados alguns minutos, virou-se para
mim e disse:
– Meu neto está querendo saber sobre meus mistérios?
Fiquei assustado com a pergunta dela. Como sabia disso?
– Meu neto é curioso, e isso é bom! Os curiosos sempre encontram o
que procuram, e hoje vou dar um pouco para você. Não será muito, mas o
bastante para que meu neto consiga caminhar sozinho.
Era muita coisa para um menino-quase-homem – entender o que
estava se passando naquele momento. Deixei minha avó falar.
– Nosso povo sabe de onde veio. Sabe para onde vai. Tudo isso está
escrito na tradição de nossa gente desde o começo dos tempos. Não
precisamos saber ler as letras escritas da cidade. Tudo está escrito na
natureza. É preciso apenas saber ouvir.
– Minha avó tem palavras boas – eu disse, tentando me fazer de
entendido.
– Estou dizendo que é preciso saber ouvir. Meu neto precisa
aprender a ouvir também. As palavras precisam sair de nossa boca depois
de terem conversado com a natureza. É assim que vivo, meu neto. Por isso
você me vê muitas vezes saindo para a loresta. Vou lá aprender coisas que
ainda não sei.
– Você parece já saber tudo. Como faço para aprender também?
Vovó se ajeitou na pedra. Olhou para o igarapé que corria à sua
frente como se estivesse conversando com ele. Depois se voltou para mim e
disse:
– Não sei. Cada pessoa aprende o que precisa para viver bem. Aos
poucos você será conduzido aos conhecimentos de que precisa. O que
posso dizer agora é que meu neto precisa ser criança. Só isso. Tem que
treinar seus sentidos ouvindo os sons da tradição. Só isso. Tem que ouvir
as histórias de antigamente. Só isso. Tem que saber fazer silêncio. Só isso.
“Só isso?”. Quis perguntar, mas entendi que ela não falaria mais. Já
tinha dito tudo o que queria dizer, e eu havia ouvido o que precisava ouvir.
Só isso.

SÓ ENSINA QUEM APRENDE

Meu pai era um grande contador de histórias. Mas era também


muito intimista. Quando eu era criança, ele costumava me balançar na
rede depois que voltava da caçada ou da roça. Fazia isso invariavelmente
no final da tarde, quando o sol se punha chamuscando o rio Tapajós. Eu
gostava muito de ficar assim com ele.
Um dia ele me contou a história que morava dentro de seu coração.
Iniciou dizendo que cada um de nós tem uma história que só a gente sabe
contar. Fiquei curioso e pedi que me explicasse.
– A gente aprende muitas histórias durante a vida. Algumas são para
dizer quem somos, de onde viemos e para onde vamos. Essas histórias nos
ajudam a perceber parte do universo. Tem história que nos ensinam de
onde tirar nosso alimento: histórias da mandioca, dos frutos comestíveis,
das plantas medicinais. Essas histórias nos contam que tudo é sagrado
porque nos foi dado graciosamente. Há histórias de homem que namora
mulher. Nem sempre têm a forma que conhecemos hoje. Às vezes homem
e mulher são seres da natureza. Podem ser plantas, podem ser bichos,
podem ser rios, podem ser árvores ou pássaros. Essas histórias nos contam
sobre como viver juntos, como viver em comunidade, como respeitar as
pessoas.
Papai fez uma pausa enquanto via mamãe fazer um delicioso
mingau de banana no lado de fora da casa. Perguntou se ela precisava de
algo, mas ela o ignorou. Ele aproveitou para continuar.
– Todas essas histórias são muito importantes para nós. Elas
realmente nos ensinam quem somos e por que somos o que somos. Antes
que pergunte vou logo dizendo que somos uma grande família. Contudo,
há uma história que é só sua, e de ninguém mais. Ela será criada por você
no decorrer de sua vida. Mais tarde – quando o tempo badalar em seu
corpo – você entenderá que todas essas histórias são alimentos para o seu
espírito. Aí saberá compor a história que irá contar para seus filhos. Será
uma história só sua.
Fiquei tentado a perguntar se aconteceria comigo. Não precisou.
Papai simplesmente retomou a palavra.
– Isso tudo acontecerá com você também. Sabe, filho, há pessoas
nesta vida que acham lindo contar histórias. Na cidade tem gente assim.
Aqui na aldeia também. Realmente é lindo. Tem, no entanto, algo que elas
ignoram: as histórias é que nos contam. Elas usam a gente para ganhar
corpo. É por isso que contar histórias não é apenas a repetição de um texto.
Quem faz isso apenas decora e, mesmo que saiba verbalizar ou encenar o
que está contando, não consegue atrair as pessoas. Essas histórias têm
vida própria. Se elas encontram um bom contador, fazem morada dentro
dele e nunca mais vão embora.
– Isso é meio assustador, papai.
– É mesmo, não é? Mas é a pura verdade. Você nunca reparou na sua
avó?
Confesso que fiquei matutando aquilo tudo dentro de mim. Depois
disso tornei-me mais atento às coisas ao meu redor. Comecei a perceber
que tudo estava vivo e poderia interagir comigo. Em pouco tempo notei
que as histórias que ouvia em casa ou nas rodas de conversa dos fins da
tarde ganhavam vida na minha própria vida.
Um dia, vi minha avó sorrindo sorrateiramente para mim. Quando
notou que eu a vira, fez um gesto de positivo com o dedo polegar. Naquele
momento percebi que estava me tornando um contador de histórias.

CATANDO PIOLHOS, CONTANDO HISTÓRIAS

Minha mãe também contava histórias. Seu método era diferente. Ela
gostava de catar piolhos em minha cabeça. No começo achei que era
apenas um cuidado materno. Mas não era. Com o passar do tempo fui
entendo que ela me contava histórias enquanto perseguia meus piolhos
com seus dedos ágeis e certeiros.
Tudo acontecia de um jeito muito simples. Toda vez que eu
aprontava alguma travessura – briga com os colegas, desobediência a um
adulto ou desrespeito a alguém mais velho – invariavelmente ela me
pegava para tirar piolhos. Algumas vezes eu dizia que já não os tinha, mas
ela insistia. Bem mais tarde é que consegui juntar os pontos e atinar para
um fato comum: não havia mesmo piolhos. Aquilo não passava de uma
estratégia materna para “puxar minhas orelhas” por ter feito algo não
adequado. O legal desse “castigo” é que eu ficava ouvindo tudo aos
sussurros, porque minha mãe jamais alterava o timbre de sua voz ao falar.
Aquele momento era como ouvir música entoada por uma grande cantora
de ópera.
E que histórias ela me contava? Normalmente eram aquelas em que
alguns ancestrais de nosso povo haviam sido transmutados em seres
inferiores por terem quebrado regras ou desobedecido ao Criador. Foi
assim que surgiram as serpentes, as capivaras, os urubus, todos os que
haviam sido castigados por sua desobediência. Ela dizia:
– Quando fizer algo, pense sempre no seu grupo; pense no Criador,
que nos fez este mundo tão bonito; pense nos antepassados, que nos
deixaram tudo isso como herança. Não vamos desperdiçar o esforço deles,
não é mesmo?
Depois disso, dava duas palmadas em meu bumbum e me
dispensava para ir embora.
Mamãe gostava sempre de falar dos antepassados. Desde muito
pequeno ela repetia um dizer que muito me agrada hoje. Quando nos via –
meus irmãos, primos, cunhados – cansados ou cabisbaixos, por causa de
algo ruim que estávamos vivendo, ela nos dizia:
– Nenhum de nós tem o direito de desistir. Somos filhos de nosso
povo. Nossos antepassados penaram muito para que chegássemos até
aqui, e não podemos desrespeitar a coragem e a luta deles. Os jovens de
nosso povo têm que ser fortes e continuar essa história.
Acho que nunca tinha ouvido um discurso político tão bem
elaborado e verdadeiro. Minha mãe sempre teve uma opinião contundente
e firme, porque elaborada no convívio com as outras mulheres da
comunidade, que se reuniam constantemente para traçar os passos dos
filhos e dos maridos. E, mesmo que eu ainda fosse uma criança, nunca era
deixado de lado nessas conversas. Fazia parte do jeito de educar de nossa
gente permitir que as crianças participassem de todas as atividades e
conversas comunitárias. Ainda que não entendesse metade do que
falavam, podia ouvir, ver, constatar e até opinar quando conviesse.
Parte do que sei hoje sobre contar histórias aprendi no colo de
minha mãe. Talvez me lembre pouco das histórias contadas porque era
comum adormecer nos primeiros acordes de sua voz, mas a metodologia
que me ensinou, enquanto eu dormia, ficou dentro de mim, e talvez hoje a
pratique enquanto crio e conto minhas próprias histórias.

UM AVÔ NO MEIO DO CAMINHO

Embora tenha crescido em uma aldeia, não foi nela que morei desde
sempre. Minha primeira infância foi vivida em comunidade, e, sob um céu
de estrelas ainda possível de contemplar, recebi minhas primeiras
instruções, minhas primeiras lições.
Um pouco mais tarde fiquei entre a aldeia e a cidade. Tinha de
estudar, segundo as orientações da época. Eram tempos militares, e havia
uma política pública segundo a qual todos os indígenas – e as demais
crianças – tinham de ir para a escola aprender a ser alguém, o que significava
“aprender a ser gente civilizada e abandonar o estado selvagem”. Ou seja,
entrar na fôrma.
Fui para a escola na cidade grande. Lá encontrei pessoas que tinham
a mesma cara que a minha. Muitas delas já eram civilizadas. Elas tinham de
me ensinar a ser assim também. Não gostei da escola. Pensei que ali eu
poderia continuar sendo eu mesmo. Engano. Eu tinha de ser outro. Só
percebi isso quando meus colegas civilizados passaram a curtir com a
minha condição de selvagem. Nunca mais gostei de ir à escola. Obrigado,
fui todos os dias. Talvez minha sorte tenha sido estudar em uma escola que
era muito grande, com espaços enormes que me permitiam matar a
saudade de casa.
Por muito tempo tentei resistir, lembrando as palavras de minha
mãe. Era muito difícil. Um dia capitulei. Resolvi tornar-me civilizado para
fugir dos apelidos, da violência, dos maus-tratos, da falta de amizade que
me torturava. Foi um grande engano. Foi também minha salvação.
Nas férias escolares eu voltava para a aldeia. Eram meses de muita
alegria e satisfação. Brincava, corria na mata, nadava no igarapé, saía para
o roçado, ia ao mangue tirar caranguejos, subia nas árvores, vivia histórias
imaginadas. Era a minha recaída. Eu gostava de pensar que eu era dois: o
menino da cidade e o curumim da mata. Duas roupas, duas pessoas, duas
gentes. Todo mundo da aldeia achava que eu estava bem na cidade, pois
nada dizia contra a minha estada por lá. No entanto, dois olhos me
observavam de longe e logo decifraram a minha escrita invisível: meu avô.
Foi assim. Eu estava próximo ao igarapé quando ele se aproximou.
Olhou para mim e convidou-me para tomar banho. Estranhei o convite,
mas o segui por um caminho que não conhecia bem. Levou-me até um
local que não conhecia e mandou que eu me sentasse sobre um tronco de
árvore caída. Obedeci sem pestanejar. Era assim que tinha aprendido. Ele
me olhou fixamente e disse que eu deveria escutar as palavras sábias do
rio. Não entendi nada, mas obedeci. Fiquei por algum tempo
contemplando as águas cumprindo o seu destino. Elas não retrocediam,
apenas avançavam para algum lugar que eu não conhecia.
Depois de alguns instantes ele me perguntou o que o rio me havia
dito. Respondi que não tinha ouvido nada. Ele não se impacientou.
Simplesmente mandou que eu continuasse a ouvi-lo por mais algum
tempo. E assim o fiz. Não adiantou. O rio ficou mudo para mim. Meu avô,
no entanto, garantiu-me que ele havia conversado comigo. Perguntei o que
ele havia dito. Vovô passou a mão em minha cabeça e fez o seguinte
discurso:
– O rio falou com você, meu neto. Ele sempre fala com a gente. Só
que para ouvi-lo é preciso estar vazio de pensamentos e preocupações.
Sinto que sua cabeça não está concentrada nas palavras do rio, mas precisa
saber o que ele disse a você.
Fiquei esperando, com certa desconfiança.
– Você já viu o rio ficar parado quando ele encontra alguma
dificuldade? Já viu o rio ficar chorando porque encontrou uma árvore caída
em seu leito? Nunca viu e nunca verá. E isso acontece porque, dentro dele,
tem uma voz que fica lembrando que, se ele parar diante das dificuldades,
jamais cumprirá sua missão nesta vida. E qual é a grande missão do rio?
Encontrar-se com o Grande Rio e mergulhar em suas águas. Somente
nesse momento o rio se realiza. Mas, se ele ficar se lamentando diante das
agruras da vida, o que restará a ele? Frustração, fraqueza, pânico. Isso tudo
vai fazê-lo apodrecer e perder o que ele tem de mais precioso: a pureza que
atrai as pessoas para o seu leito, traz os animais para beber água e dá
alegria a todas as formas de vida. Será que isso é motivo suficiente para o
rio continuar a sua jornada?
Sabia que o meu velho avô não queria uma resposta. Aquele era seu
jeito de falar. Eram perguntas retóricas para prender a atenção. Ele
sempre conseguia. Esse era o momento da pausa em que ele olhava para o
público (nesse caso, eu) para se certificar de que sua mensagem estava
sendo bem entendida. Eu já sabia disso e fiquei esperando que ele
continuasse.
– Meu neto está sofrendo as dores da cidade grande. Está
aprendendo que lá o sistema é muito diferente do nosso. Lá todo mundo só
pensa em si mesmo, tornando cada pessoa uma inimiga. Para elas
ninguém é bom, ninguém é feliz se não for igual a elas. Pense, meu neto,
que pessoas assim são como o rio que apodrece. Quem vai querer estar em
um rio podre? O que meu neto precisa aprender é a lição do rio: ir sempre
em frente, enfrentar os obstáculos, não esquecer quem é e de onde veio.
Isso cria na gente um sentimento de gratidão e de pertencimento. Isso
ajudará você a encontrar sua própria história, aquilo que o move neste
mundo.
Dito isso, ele se jogou nas águas do rio e me convidou a fazer o
mesmo. Depois desse dia nunca mais fui o mesmo na escola. Havia
decidido ser um rio vivo, aquele que corre sem medo dos desvios ou dos
obstáculos.
Meu avô me contou muitas histórias ainda. Convivemos juntos
alguns anos antes de ele partir e se juntar à nascente do Tapajós. Acredito
que ele foi a síntese perfeita e existencial do que significa pertencer a um
povo, ainda que em outros ambientes e lugares. Sua lembrança ainda me
comove, alimenta e inspira.

PROCURANDO A HISTÓRIA QUE ME MOVE

Sou filho de um povo ancestral. Trago marcado em meu corpo o


aprendizado do que vi, ouvi e vivi.
Vi com meus olhos muitos eventos acontecerem. Vi sofrimento de
gente boa. Vi feridas marcadas no corpo de minha gente. Soube de outras
marcas de alma. Vi quem queria apagar nossos conhecimentos antigos e vi
quem queria impor outros conhecimentos que desmantelariam um
sistema de convivência curtido por centenas, talvez milhares de anos.
Ouvi muitas histórias. Todas verdadeiras. Todas contadas por
pessoas que não sabiam mentir e que acreditavam piamente no que
contavam. Ouvi outras histórias inventadas por pessoas que andavam
pelas matas e se deparavam com diferentes sentimentos oriundos de seu
interior. Ouvi gente contando sobre seu encontro com os encantados da
loresta. Ouvi quem encontrou o curupira, a matintapereira, o boto
transmutado em gente; quem jura que viu Iara, a deusa das águas, ou
cavalgou a destemida mula sem cabeça. É claro que ouvi as histórias do
princípio do mundo, das tragédias que sempre o acompanharam, do
nascimento das coisas da cultura; ouvi sobre o surgimento da noite, sobre
o aparecimento do medo, entre tantas e tantas e tantas histórias que
moram dentro de mim.
Vivi coisas também. Algumas delas contei aqui, outras contei em
livros, artigos, ensaios espalhados pelo mundo virtual. Vivi as dores do
crescimento e dos amores que vão e vêm. Vivi lutas políticas e já me
deparei com a desesperança ao ver o governo dos brasileiros aceitando
detonar com o hábitat de brasileiros mais antigos por meio de projetos
megalomaníacos, capazes de destruir a vida de todos os seres apenas para
satisfazer uma minoria sedenta de mais riqueza e poder. É a parte de que
menos tenho orgulho na trajetória para encontrar a história de minha
vida, aquela história que me move. Ainda não a encontrei; e talvez uma
vida seja pouco para, de fato, encontrá-la. Ainda assim, caminho com
esperança, com energia, com a certeza de que não sou sozinho, mas parte
de algo maior e que, se não cabe em mim, ao menos me provoca a
continuar contando pedaços de minhas histórias.
É assim que me sinto um contador de histórias. Não tenho fórmulas
nem sei fazer mágica. Procuro viver as histórias que conto com a doce
ilusão de poder provocar meus ouvintes-leitores a compor – e não inventar
– suas próprias histórias.

DUAS PALAVRAS FINAIS

Já contei minhas histórias. Não posso contar “A minha história”, pois


ela está em composição permanente. Contei, no entanto, algumas que,
espero, os leitores possam enxergar muito além de suas palavras. Saibam
que cada história contada transforma o ouvinte. São histórias que têm
endereço certo. Por isso um contador de histórias não pode ser apenas um
artista, alguém que conta da boca pra fora, como se diz. Tem que ser alguém
que acredita no que está contando. A educação parte dessa premissa: só
ensina quem aprende. Na tradição de meu povo, aprender é deixar que o
silêncio se aposse de você e se transforme em verdade. A criança nunca
ouve uma história que sai da boca do contador. Ela vai além disso. Ela
busca, em quem conta, um confessor. Ela precisa de gente que confesse
sua fé naquilo que ensina.
Ofereci neste texto algumas pistas para que conheçam um pouco do
modus operandi tradicional. Não há fórmulas nem receituário. O bom
contador de histórias é aquele que vive a sua história encantada. Nesse
sentido, somos todos contadores de histórias. Desejo que cada leitor possa
ler nas entrelinhas deste texto algo que foi dito apenas para si.
Recebam, todos, meu carinhoso abraço.

1 Texto publicado no livro Das coisas que aprendi, Lorena: Uka Editorial, 2014.
O contador de histórias tradicionais:
velhas e novas formas de narrar
EDIL SILVA COSTA

As narrativas orais tradicionais chegam até nós, crianças e adultos do


século XXI, não da mesma forma que chegaram aos antepassados. Mas,
embora as instituições de transmissão tenham se modificado, assim como
a sociedade e as relações pessoais, o papel social das narrativas se mantém,
adequando-se ao novo contexto.
Sabe-se que a tradição se caracteriza pelo movimento lento de
repetição do já dito, luxo e re luxo do passado-presente se atualizando por
gerações. Os narradores tradicionais são os intérpretes desses textos e
seus recriadores, exercendo função fundamental na preservação da
memória ancestral que carregam. Contudo, os sujeitos e sua produção
cultural são datados, históricos e transitórios. Na dinâmica da produção
cultural, as formas de narrar e os narradores, mesmo os que caminham na
direção do passado, se modificam e atualizam. A proposta deste texto é
tratar a questão dos narradores tradicionais no contexto contemporâneo e
como os textos transmitidos também sofrem o impacto das
transformações da sociedade e das situações em que ocorre a transmissão
desse saber.

SABER E CONHECIMENTO

Costumamos separar a cultura popular do conhecimento, o canônico


do não canônico nas aulas de literatura, a música clássica do cancioneiro,
entre inúmeros exemplos. No entanto, um olhar mais atento permite
observar os trânsitos entre os estratos culturais. A cultura (literatura) oral
popular é produzida em conexão com uma comunidade narrativa,
atentando para o fato de que essa comunidade, embora tenha seus modos
de vida próprios, não está isolada nem conserva suas tradições sem
interagir com outras, inclusive as comunidades virtuais hoje em expansão.
Para compreender e interpretar a tradição oral, é necessário observar os
trânsitos e a complexidade de relações entre os diversos estratos culturais
sem demarcar hierarquias.
É comum idealizar o contador de histórias como um ancião, um
griô1 à beira da fogueira ou à sombra de uma árvore. Desse modo, o
narrador é, em geral, vinculado ao mundo rural, pensado como rústico ou
primitivo. Com a urbanização e o avanço da escolaridade, o contador de
histórias não é encontrado da mesma forma, assim como as instituições de
transmissão e os elos comunitários vão se esfacelando e se refazendo em
novas teias. A profissionalização do contador de histórias, sua presença em
escolas, bibliotecas e feiras de livros, é um sintoma dessa mudança.
Pode-se exercitar a prática da contação de histórias a partir da
leitura, audição e análise de narrativas orais recolhidas da tradição. Mas
deve-se encontrar um ponto de equilíbrio entre essa prática na
comunidade, a performance dos narradores tradicionais e os recursos
utilizados por eles e o ambiente escolar, sem perder de vista a poética da
oralidade comum aos dois momentos.
O narrador é como um ator que incorpora personagens. Mas entre
eles percebemos algumas diferenças: o ator decora o texto e segue as
instruções do diretor; o contador deve absorver, incorporar e retransmitir
a mensagem, mudar o texto de acordo com sua interação com a plateia. O
contador apropria-se do texto, não o decora. Apropriar-se de uma história
é processá-la no interior de si mesmo. Recorrendo à própria memória,
poderá perceber o quanto existe de si e de sua trajetória nas personagens
do conto.
No repertório do narrador estão os motivos, os tipos, as sequências
da narrativa, tudo isso armazenado em um arcabouço virtual. O texto oral
tradicional é um grande texto, matriz virtual, composto de diversos
elementos: motivos da tradição oral, literatura infantil e escrita, literatura
impressa, televisão, cinema. Todo texto de cultura fornece elementos para
o narrador explicitar seus ensinamentos, suas crenças, seus valores.
É em função do contexto e da plateia que esse repertório vai se
recortando, e o narrador adapta seu texto aos objetivos que pretende
alcançar, ensinando e divertindo. Desse modo, os narradores dos contos
populares passam por um processo de identificação com as personagens.
Paul Zumthor afirma:

Não podemos negligenciar as variações individuais que o contador e seus


ouvintes operam sobre [as regras da narração], em virtude de suas
necessidades particulares e da qualidade de suas relações mútuas. O conto,
para aquele que o narra (como a canção para aquele que a canta), constitui a
realização simbólica de um desejo; a identidade virtual que, na experiência da
palavra, se estabelece um instante entre o narrador, o herói e o ouvinte, cria,
segundo a lógica do sonho, uma fantasmagoria libertadora2.

Observar com a devida atenção as narrativas populares permite


constatar os equívocos dos estudos folclóricos que as consideravam puro e
ingênuo divertimento. Os relatos tradicionais, atualizados continuamente
e retransmitidos, são formas complexas de transmissão de saberes e de
fazeres. Com as ferramentas da antropologia, da sociologia e dos estudos
culturais, podemos trazer para o mundo acadêmico, ainda tão resistente,
produções riquíssimas de comunidades postas à margem da cultura
hegemônica.
A narrativa transcende da simples memória pessoal para a memória
coletiva. Mesmo contando sua história, o narrador obedece ao cânone
tradicional, ainda que assimile elementos novos e pessoais ao texto. Como
em uma narrativa memorialista, ele recorda um fato passado,
presentificando-o. Cada performance individual é sempre única, realizando-
se conforme os elementos específicos de um contexto particular; nela,
destacam-se alguns aspectos que valorizam o corpo como instrumento de
transmissão da memória.
Paul Zumthor3 cruza os aspectos da leitura e da performance para
revelar os índices performanciais da leitura. Segundo ele, ao ato de ler
integra-se um desejo de restabelecer a unidade da performance, e esse
esforço é inseparável da procura do prazer. Com a presença física do
narrador, está-se diante do que ele denomina empenho do corpo. É através
do corpo que estamos no mundo, que tocamos, cheiramos, representamos
e sentimos. A voz faz o homem ir além dos seus limites corporais. Segundo
Zumthor, a voz “desaloja o homem do seu corpo”, pois é um
prolongamento dele. Na literatura oral tradicional, a voz e suas
modificações são parte indispensável da performance dos narradores. Mais
do que nos gestos, o cuidado maior é com a entonação de voz e a expressão
facial. Ao explorar esse recurso, o narrador aperfeiçoa a narrativa,
demarcando tempo, espaço, personagens.
O narrador é instigado pela plateia. Contextualiza o seu texto. Sua
forma de narrar é viva. Na narrativa, observa-se claramente sua intenção
de prender a atenção do público, o suspense na apresentação das
personagens, assumindo corpo e voz de várias delas, o aproveitamento
total do espaço e a centralização da narrativa na sua pessoa. O texto passa
através do corpo, que é um instrumento, emprestado ao texto para esse
fim.
O corpo fixa o texto porque também tem memória. Nossas
lembranças, tanto individuais como coletivas, podem ser evocadas a partir
dele. Ao narrar, o corpo do narrador repete os atos do instante do
acontecimento narrado. Naquele momento, o tempo físico fica em
suspenso, e tanto o narrador como seus ouvintes embarcam no tempo da
narrativa. Seu corpo sofre uma espécie de transporte no tempo e transita
entre o passado e o presente. A memória está impressa nesse corpo e
através da performance se manifesta. A força da palavra e da memória
coloca-nos diante da criação e da organização do mundo pela palavra.
Ao entrar em ação, o narrador aciona e fortalece a memória coletiva.
E, ao relatar a memória individual, afirma-se a identidade pessoal, só
passível de se revelar conectada com a identidade coletiva. Das relações da
memória individual com a memória cultural, percebe-se um estado de
coesão e de organização de um sistema simbólico que se mantém e faz da
memória uma metáfora da cultura4.
Mas, afinal, quem é esse sujeito a quem chamamos narrador? O
estudo do perfil de narradores do Acervo de Memória e Tradições Orais da
Bahia revela que a grande maioria é do sexo feminino e tem entre 30 e 60
anos. Quanto à escolaridade, a maior parte dos entrevistados é de não
escolarizados, analfabetos ou semianalfabetos. Em seguida, estão os que
não completaram o curso primário.
Se narradoras são maioria quando se trata de contos de
encantamento, os homens são melhores narradores de facécias e de
exemplos, ainda que haja brilhantes exceções. As atividades femininas,
mais voltadas ao interior da casa e da família, certamente contribuem para
esse fato, embora se tenha observado que, na presença do homem, a
mulher tenda a calar. O domínio e o exercício da palavra é, sem dúvida,
uma expressão de poder que, em uma sociedade patriarcal, é privilégio
masculino, com exceção do ambiente familiar, espaço para a educação dos
filhos – tarefa eminentemente feminina; aí a palavra feminina é o
instrumento de transmissão da literatura oral.
Considerando esses aspectos da performance do narrador tradicional,
podemos elaborar algumas questões: qual é o espaço da narrativa
tradicional no mundo contemporâneo? Como os narradores tradicionais
se portam hoje? Qual é sua função no meio social? Quais são as formas de
narrar existentes na sociedade contemporânea? E quais narrativas
permanecem?
Para pensar essas questões, proponho analisar o repertório de uma
narradora e de sua participação no projeto da coleção Histórias do Fundo
do Baú5 para tentar mapear as apropriações/recriações das narrativas
tradicionais por outros meios e linguagens que veiculam essas produções
culturais.

A PERFORMANCE NARRATIVA DE DONA LUIZA

O livro Contos de dona Luiza é o primeiro volume da coleção Histórias


do Fundo do Baú e reúne sete contos populares narrados pela senhora
Luiza Cruz do Nascimento. Nascida em Salvador, dona Luiza é, além de
matriarca de uma numerosa família, líder comunitária e mestra
organizadora do Terno de Reis Rosa Menina. Fundado por seu marido, o
senhor Silvano Nascimento, o Terno Rosa Menina é o mais antigo ainda
em atividade em Salvador. A família mora nos Pernambués, bairro popular
que a matriarca ajudou a construir e que atualmente é um dos mais
populosos da capital baiana. A casa de dona Luiza e do senhor Silvano
sediou uma rádio comunitária, cuja atuação na comunidade resultou em
ganhos importantes para os mais carentes, como o posto de saúde,
melhorias no transporte e distribuição de alimentos. Mulher de luta, dona
Luiza é também uma doce senhora, narradora de histórias que aprendeu
com a madrinha, com o pai e com a mãe.
Em seu repertório destacamos os contos de exemplo, embora, na
verdade, o que ela faz seja transformar qualquer narrativa em um conto
exemplar, uma forma de educar e de promover a sabedoria calcada na ética
e no catolicismo popular. Assim, contos de encantamento, religiosos ou
facécias6 são todos narrados como contos de exemplo. Reforçam essa
afirmação os comentários da narradora ao final de cada conto.
Chamarei os comentários de margens do texto, momento em que a
narradora se coloca, personalizando a narrativa de forma mais evidente e
deixando a sua marca. Observando as narrativas de dona Luiza,
percebemos claramente quão importante e decisivo é o papel de quem
narra não só na continuidade da tradição, mas na própria composição do
texto.
A seguir discorrerei sobre alguns exemplos dessa voz autoral no
conjunto das narrativas. O primeiro conto é “O peixinho dourado”, história
de um pescador que pesca um peixe encantado disposto a atender todos os
seus desejos, mas sua mulher ambiciosa põe tudo a perder. Ela começa a
narrativa da seguinte forma: “Olhe: era um casal muito pobre… Eles moravam
num lugarzinho muito pobre e não tinham nada. O homem, o esposo, vivia da
pesca”.
O verbo no imperativo, “olhe”, chama a atenção do ouvinte para uma
mensagem importante e é uma marca de dona Luiza. A voz é calma,
pausada, re lexiva, mas uma forma clara de controle. O conto termina com
um provérbio posto na boca da personagem: “‘Você quis demais, não é,
mulher? Pois! Quem quer tudo nada tem!’ Assim termina a história do peixinho
dourado”.
A segunda história é “A caveira”, cujo tema é a desventura de um
homem linguarudo que encontra uma caveira falante e pergunta: “‘Caveira,
quem te matou?’ A caveira responde: ‘Foi a língua, meu senhor. É quem há de te
matar também…’”. Como já era de esperar, a profecia da caveira se
concretiza, e o homem é morto. Dona Luiza conclui a sua narrativa com as
seguintes observações:
A minha avó, quando chamava pra dar conselho, dizia assim: “Olhe, minha
filha, lá a gente viu, lá a gente deixa. Se você for a qualquer casa estranha ou
conhecida e ouvir alguém conversando, você não chegue a contar a ninguém!
Se uma pessoa lhe contar um segredo, guarde, que o segredo é um tesouro,
não se entrega a ninguém”. Assim, ela ensinava como a Bíblia, que ensina com
aquelas parábolas.

Nessas colocações observamos de que modo a contadora compara a


prática de contação de histórias ao ato de ensinar e à doutrina religiosa. Os
contos são como parábolas. Essa comparação nos informa claramente a
concepção que a narradora tem de seu texto e de sua função. Não basta
contar, é preciso passar uma mensagem educativa, doutrinária, que sirva
como exemplo de conduta; é uma ação que está colada a essa prática. No
ambiente escolar, ela indagava às crianças, buscava a opinião delas a fim
de comparar com as ações das personagens, deixando sempre claro o que
seria o certo e o errado.
Até mesmo na narrativa de encantamento, que tem elementos
fantásticos tão claros, como em “A pintinha coxa” – uma pintinha mágica
tem um lado decepado e substituído por uma cumbuca de barro –, ela
finaliza da seguinte forma para explicar a má conduta da irmã da
protagonista: “Joana ficou chorando de inveja. Porque foi gulosa, não teve amor ao
que a mãe deixou, não é? Terminou aqui a história…”.
O texto “A mulher preguiçosa” é farto material para um estudo de
gênero. A graça do texto é o castigo à preguiça da moça com a aplicação de
um corretivo que inclui a violência física. Está bem definido o papel da
mulher e do homem na sociedade e no casamento. Pressuposto
evidenciado na fala do marido: “Você é boba, mulher? Você já viu capote fazer
nada? Eu quis foi lhe bater mesmo, que é pra você saber que mulher, quando casa,
tem que cuidar da casa! Eu não sou sua mãe, não!”.
A outra mulher em cena, a mãe, aprova a surra que a filha leva e o
ardil do marido que consegue educar a preguiçosa. O texto é facecioso, mas
traz questões sérias e delicadas. A violência doméstica, tão em discussão
hoje, é abordada com uma perigosa naturalização que revela as formas
tradicionais de lidar com o assunto.
Todas essas narrativas são, assim, reveladoras dos valores e crenças
que perpassam as comunidades populares e das maneiras pelas quais os
sujeitos resolvem seus impasses. Mas é no conto “Viva Deus e nada mais”,
que parece ser um dos preferidos da narradora, que o caráter exemplar de
suas narrativas fica mais evidente. Faço um resumo da história: um
pescador tinha fé inabalável em Deus e isso intrigou e incomodou o rei,
que decidiu testá-lo tramando uma armadilha: deu-lhe um anel para
guardar e devolver depois de um ano, mas ao mesmo tempo mandou um
empregado roubar a joia. Seu objetivo era fazer o homem enxergar que o
poder do rei também era grande, e sua vida dependeria disso. O pescador
não teve como recusar o desafio e sempre repetia: “Viva Deus e nada mais!”.
Não tendo lugar seguro onde guardá-lo em casa, enterrou o anel em uma
montanha e marcou o lugar. O empregado roubou e devolveu a joia ao rei,
e este a jogou no mar. Na véspera de completar um ano, o pescador
procurou o anel e não o encontrou. Sabendo que morreria no dia seguinte,
resolveu pescar para deixar comida para a mulher e os filhos e mantê-los
por pelo menos alguns dias. Pescou uma anchova (dito alcova) e pediu para
a esposa prepará-la. A mulher encontrou o anel no bucho do peixe, e assim
a vida do pescador foi salva. Observemos a sequência final do conto:

O pescador tinha uma fé inabalável em Deus. Eles pegaram a joia e ele


conheceu que era a joia mesmo, na caixinha, a mesma onde o rei tinha
guardado o anel. No outro dia, às três horas da tarde, hora marcada pelo rei
para a entrega do anel, tinha muita gente na frente do palácio real. Todo
mundo queria conhecer o homem que só acreditava em Deus. A forca já estava
armada e tudo, quando é vindo o homem mais a mulher, felizes da vida! Então
o rei disse: “Meu bom pescador, que é que hai de novo?”. Ele disse: “Rei, meu
senhor, viva Deus e nada mais!”. O rei tornou: “Meu bom pescador, o que é que
hai de novo?!”. Ele disse: “Viva Deus e nada mais, rei, meu senhor!”. Ele
perguntou três vezes, e três vezes o homem confirmou. Disse: “Esse homem,
inda mesmo sabendo que vai morrer, tem essa fé no poder tão grande desse
Deus?!”. O anel é devolvido, para a surpresa do rei, que passa a acreditar que
só Deus tinha poder. Então ele deu muito dinheiro ao pescador como
recompensa, e o tirou daquela vida de pescar, daquela casinha onde ele
morava. O pescador ficou rico e foi viver uma vida mais digna, menos sofrida,
com a mulher e os filhos, a quem ele botou pra estudar e tudo.
Todo o conto é uma provação para esse homem, que não se deixa
abater nem vacilar em sua fé. Três vezes ele é interrogado, três vezes ele
confirma. Destaco ainda o fato de a educação dos filhos ser uma
preocupação do pescador. Ciente de sua função educativa, dona Luiza
conclui assim: “Eu sei que essa história é mais um conto da carochinha. Mas ela
também podia ter acontecido de verdade, não é?”.
Sempre instigando o ouvinte a uma re lexão, relaciona o fato
narrado com o cotidiano, atualizando seu texto e procurando reforçar a
crença na recompensa pela boa conduta. Essa ideia de que poderia ser
verdade nos remete ao que diz Paul Zumthor7 a respeito das narrativas:
que o narrador experimenta através do narrar, vive uma cosmogonia, e
que seu ato está intimamente ligado ao seu cotidiano e às suas práticas. O
texto não pode existir desconectado disso tudo. Sua voz de autoridade
tanto institui uma verdade como contribui para reforçar as verdades que o
texto carrega e que vêm de muito além.

DIÁLOGOS ENTRE O PASSADO E A CONTEMPORANEIDADE

No século XXI, os meios tecnológicos oferecem uma diversidade de


novos suportes para as narrativas, sejam elas tradicionais ou não. Pensar a
tradição oral na contemporaneidade é incluir esses suportes. A pesquisa
em oralidade não pode deixar de observar como as narrativas persistem e
encontram novos caminhos. Não obstante as falas que profetizam o fim
das narrativas tradicionais por causa do avanço das novas tecnologias, o
hábito de narrar permanece assumindo novas formas e suportes. A
narração necessita do coletivo, do estar com o outro, da presença e do
contato (ainda que virtual), assim como os seres humanos. Mesmo na
contemporaneidade, em que o tempo é cada vez mais escasso, isso é
essencial e favorece a interação do narrador com seu público, seja por meio
de uma anedota, seja por meio de um acontecimento corriqueiro. Essa
necessidade de narrar e de estabelecer laços nos aproxima dos nossos
ancestrais. Entretanto, de que modo as narrativas são reorganizadas no
contexto atual?
Entendidas como memória individual, as narrativas transportam os
narradores e ouvintes ao seu passado. Como memória coletiva, remontam
a tempos longevos. Narra-se um acontecimento, mesclando o real e o
fictício, mas sempre algo que já foi concluído. No entanto, é importante
dizer que a tradição é mais que a rememoração do passado; é uma prática
cotidiana. Assim se constrói a memória e se reafirmam identidades.
De que modo falar de identidade hoje, nesse contexto? A identidade
é apresentada em nossos dias como uma celebração móvel8, embora as
culturas nacionais sejam uma das principais fontes de identidade cultural
no mundo moderno. Diante da fragmentação das paisagens culturais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça, nacionalidade, que no passado
forneciam sólidas localizações para os indivíduos sociais, os sujeitos
entram em crise, e até mesmo a ideia que fazemos de nós mesmos fica
abalada9. Embora o homem sempre tenha sido fragmentado, dúbio e
multifacetado, a percepção dessa condição na contemporaneidade, aliada
à rapidez das mudanças, parece gerar a angústia e a necessidade de novos
aprendizados. Na modernidade tardia, ou pós-modernidade, o chamado
processo de globalização provoca deslocamentos que afetam as
identidades culturais, sendo mais apropriado falar em formas de
identificação, e é preciso aprender a lidar com as metamorfoses com muita
agilidade.
Na verdade, a identidade unificada é uma construção facilitadora:
construímos uma cômoda história sobre nós ou uma confortadora
narrativa do eu, uma fantasia. A literatura, e as narrativas de modo geral,
tem um papel importante nesse processo de construção de um discurso
sobre um povo ou uma nação, sendo registro da memória cultural desse
grupo. Na medida em que transmite situações e valores, a literatura
tradicional reforça vínculos e é, sem dúvida, um modo de os indivíduos se
situarem no mundo10. Por sua posição à margem, de certa forma se
resguarda das rápidas mudanças impostas pela modernidade. Os textos da
tradição constituem parte de um lastro que fundamenta a cultura.
Poderíamos nos perguntar por que há interesse nessas velhas
histórias, ou por que tantas paródias ou pastiches dos contos de fadas
ganham as telas do cinema e da televisão. A sociedade muda e, embora
mais lentamente que os recursos tecnológicos, os valores também vão
sendo adaptados aos novos modos de vida e anseios sociais. As narrativas
de encantamento encenam as possibilidades de lidar com as carências, o
amadurecimento do herói (ou heroína) e o comportamento exemplar, pois
a boa conduta é recompensada, e o mal, punido.
As narrativas de dona Luiza, como visto, revelam posturas
conservadoras e valores bastante rígidos. Posturas que confirmam a
coesão da comunidade narrativa – entenda-se por comunidade narrativa
um grupo de pessoas que compartilham narrativas comuns e laços de
afinidade – de caráter tradicional, apesar das pressões da sociedade
globalizada e do avanço das novas tecnologias.
As transformações sociais e os avanços tecnológicos, que apressam e
favorecem as trocas, intensificando a hibridização cultural, resultam
também na relativização dos valores morais. A confusão e o
embaralhamento do bem e do mal favorecem o surgimento de novas
versões das narrativas, como ocorre no filme Deu a louca na Chapeuzinho.
Nessa versão cinematográfica, Chapeuzinho Vermelho se associa ao Lobo
Mau para salvar a vovozinha (que, na verdade, não precisava ser salva)11.
Do mesmo modo, em Shrek, o ogro12 é o herói que desencanta a princesa
com o beijo do amor verdadeiro.
As velhas e novas (ou renovadas) roupagens que os textos ganham
na cena contemporânea merecem cuidadosa atenção. A inversão, a paródia
ou os pastiches dos contos de fadas vão tomando formas e encontrando
novas linguagens para se expressar. O livro impresso ganhou versão em
áudio e e-books, e a palavra concorre com o avanço da imagem. O cinema, a
literatura infantil e a televisão estão cheios de exemplos da apropriação do
texto tradicional na contemporaneidade. Velhas histórias continuam
encantando crianças, interessando adultos e oferecendo temas para outras
narrativas.
Para se pensar em uma poética da voz na contemporaneidade, deve-
se incluir a oralidade midiatizada por esses suportes, para além da
presença física de um narrador e de uma situação de transmissão
idealizada (à sombra de uma árvore ou em volta de uma fogueira). Além
disso, a contação de histórias tem se profissionalizado. Bibliotecas, escolas,
feiras de livros, oficinas de griôs são espaços que oferecem, com o
compromisso de formar leitores, experiências de ouvir/narrar, tentando
recuperar a instituição de transmissão nos moldes tradicionais. Também
nesses espaços as narrativas tradicionais são repaginadas, pois, apesar da
grande quantidade de publicações voltadas ao público infantojuvenil, os
velhos contos orais continuam encantando e são parte do repertório dos
contadores, pois são textos consagrados pelo gosto popular. O exemplo de
dona Luiza, que é convidada a participar de contação de histórias na
escola, é ilustrativo.
Como disse, há um interesse pelos contos de fadas na sociedade
contemporânea, e a apropriação dessas narrativas pelas novas mídias é
uma comprovação disso. A televisão e o cinema têm trazido nos últimos
anos muitos exemplos desse interesse. Não obstante, a difusão do texto em
outros suportes reforça sua permanência e recriação nos meios mais
tradicionais e também na oralidade, que incorpora as novidades,
selecionando os elementos de acordo com o contexto de produção do texto.
A atualização dos contos de fadas na sociedade contemporânea aponta
para o discurso de aceitação e convivência com as diferenças, o que de
certo modo provoca fissuras nos valores tradicionais e conservadores.

NARRATIVAS E NARRADORES NAS FRONTEIRAS DO NOVO SÉCULO

Como se procurou mostrar, longe de atrapalhar o caminho da


tradição oral, as adaptações a novas linguagens e suportes reforçam o
sucesso das boas narrativas no mundo contemporâneo. Embora o
principal meio de transmissão dos textos tradicionais seja a oralidade, é
indiscutível a importância dessas outras formas para vitalizar e fixar o
texto na memória coletiva. As relações intertextuais, no sentido amplo do
termo, contribuem para sua variação e permanência, dado o processo
dialógico e de realimentação mútua, nos diversos níveis.
Desse modo, as narrativas dão testemunho da memória cultural, e
suas transformações documentam as transformações da sociedade e das
comunidades narrativas. Nos meios rurais e periféricos, os laços de
solidariedade que unem as pessoas deixam mais claras as fronteiras
comunitárias. No espaço urbano, no espaço virtual, nas redes sociais,
novos laços comunitários vão se tecendo e outras formas de solidariedade
e de comunidades narrativas se constituem, ainda que com fronteiras
mais diluídas.
Apesar de serem expressões localizadas – e talvez por isso mesmo –,
os textos tradicionais fazem parte de um lastro subterrâneo, silencioso e
poderoso que fundamenta a cultura. O registro desses contos e sua análise,
acompanhados da interpretação da cultura da comunidade narrativa que
os acolhe e transmite, dará sentido às fragmentações identitárias. Seja a
comunidade em presença ou virtual, as identidades fragmentadas estão
relacionadas às fragilidades dos valores percebidos nas renovações da
trama narrativa na cena contemporânea.
As novas versões encontram novos suportes, mas não excluem a voz.
O cinema, a literatura infantil e a televisão, para além do espaço urbano,
transformam o texto tradicional, acentuando um traço essencial para a sua
existência: a movência13. A poética da voz encontra na mobilidade, na
capacidade de mover-se, transformar-se e adequar-se ao novo, a potência
para revitalizar-se. Revela, assim, os valores e os modos de vida de um
grupo e de uma época, e a rejeição desses valores e a assimilação de outros
ao longo do tempo.
A literatura oral é movente, assim como são moventes as leituras e as
recriações do texto oral, e desse modo só funciona se conectada a uma
teoria da cultura e da comunicação, pois abarca diversas linguagens. A
dinâmica da cultura é também a da produção do texto. As transformações
de sentido que os textos apresentam a cada apropriação igualmente
denunciam a fragmentação das identidades na cena contemporânea, o
esgarçamento dos valores morais e éticos e a preocupação com um
discurso politicamente correto que só é assim definido porque as relações
humanas são tão frágeis hoje como foram desde sempre.
Não mais restritas a comunidades narrativas fechadas, mas a novas
configurações de comunidades reais ou virtuais, cujas fronteiras são cada
vez mais permeáveis e frágeis, as narrativas continuam servindo como
entretenimento e ensinamento, e seguem moldando e sendo moldadas
pela sociedade. A tradição se faz presente nessas referências ao passado, ao
já dito, ao “quem me contou foi…”. Mas o contemporâneo está tão vivo e
interfere de tal modo no processo de criação e vitalidade do texto que não
pode ser ignorado. A arte de narrar é contemporânea e viva. As formas
mudam, mas o homem ainda preza no seu dia a dia uma boa história. É aí
que ele se reconhece.
As molduras, formas de abrir e fechar os contos, são contornos da
narrativa e nos inserem e retiram do universo do texto. No entanto, há a
demarcação dessas fronteiras que ficam permeadas pela relação que o
narrador estabelece entre o ficcional e o real: por exemplo, dona Luiza diz
“poderia ter acontecido”, ou até “eu acho que essa história aconteceu mesmo”.
Essas são formas de relacionar a história com o cotidiano e trazer às
personagens aspectos de pessoas conhecidas, possuidoras de vida própria
e muito próximas de nós. Ela faz também o exercício de vestir-se como as
personagens quando nos indaga a respeito da história, buscando entre nós
exemplos da vida real: “E você, já agiu assim? O que faria em uma situação como
essa?”. Essas são questões que levam os ouvintes a participar da
composição do texto.
Os motivos da tradição que compõem o lastro da narrativa são assim
complementados, enriquecidos, substituídos por outros que o narrador vai
colhendo no próprio fazer narrativo. A urdidura do texto é algo semelhante
à prática mais contemporânea, em que a autoria se esgarça na apropriação
de elementos diversificados, postos à disposição do autor, às vezes quase
oferecidos, em outras, raptados. Isso não é descolado da vida do narrador,
tampouco da de seus ouvintes e coautores do texto. Assim, esse
movimento da tradição pode ser visto com algo de vanguarda, e as
fronteiras do tradicional popular permeiam-se, estabelecem-se em um
continuum com outros textos e formatos.

1 No decorrer do livro, optaremos por esta grafia do termo, salvo exceção


assinalada na p. 155. (N. E.)
2 Paul Zumthor, Introdução à poesia oral, São Paulo: Hucitec, 1997, p. 55.
3 Idem, Performance, recepção e leitura, São Paulo: Educ, 2000.
4 Jerusa Pires Ferreira, “‘Quero que vá tudo pro inferno’: cultura popular e
indústria cultural”, Comunicação e Sociedade – Revista Semestral de Estudos de
Comunicação, São Paulo: Imes, 1985, ano VII, n. 13, pp. 5-13.
5 A coleção Histórias do Fundo do Baú é formada por cinco volumes de contos
populares recolhidos da tradição oral da Bahia e adaptados para a escola. O
projeto contou com o apoio do BNB, e os livros foram distribuídos
gratuitamente em cinco escolas de Salvador e Alagoinhas, com a participação
de narradores da comunidade. Na ocasião, realizaram-se oficinas com
narradoras e monitores do Proler-Alagoinhas. Trata-se de uma extensão do
Acervo de Memória e Tradições Orais da Bahia (Amtro), que recolhe e estuda a
tradição oral na região de Alagoinhas, município a 110 quilômetros de
Salvador que sedia o campus II da Universidade do Estado da Bahia (Uneb).
6 Sigo a classificação de Luís da Câmara Cascudo.
7 Paul Zumthor, Introdução à poesia oral, op. cit.
8 Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
9 Ibidem, p. 9.
10 Paul Zumthor, Introdução à poesia oral, op. cit., p. 52.
11 Nos filmes Deu a louca na Chapeuzinho e sua continuação, a avó de
Chapeuzinho Vermelho pratica esportes radicais e é empresária do comércio
de doces. O filme transforma a história de Chapeuzinho Vermelho em um
conto do gênero policial, pois as personagens têm de desvendar o mistério do
roubo das receitas da vovozinha.
12 Shrek é uma série de quatro filmes. Trata-se de uma narrativa com
procedimentos parodísticos: o ogro protagonista tem conduta ética e bons
sentimentos, revelando-se o herói da história, que salva a bela princesa de um
casamento com um tirano. Quando o encanto da princesa é quebrado pelo
beijo do amor verdadeiro (do ogro), ela assume sua verdadeira e definitiva
forma: a de uma ogra.
13 Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval, São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
Câmara Cascudo e os contadores de “estórias”:
entre a tradição e a transmissão
HUMBERTO HERMENEGILDO DE ARAÚJO

No posfácio à tradução brasileira de A letra e a voz: a “literatura” medieval, de


Paul Zumthor, Jerusa Pires Ferreira1 resume o valor do livro Histoire
littéraire de la France médiévale2, do escritor suíço, do seguinte modo: “O
trabalho nos leva a pensar na urgência da sistematização histórica da
nossa literatura popular, na necessidade de escrever outra história da
literatura oral, aproveitando o legado de Câmara Cascudo, dando porém
alguns passos além, rumo a uma ‘Poética’”. Ainda nesse posfácio, aparecem
indicativos de alguns princípios a serem considerados na construção da
poética referida: “a observação do texto poético vivo, em suas diversas
formas de oralidade, em suas gradações, na relação vária com o escrito e
com os meios mediatizantes”; a ideia de que “o texto, em suas gradações, é
historicamente provisório mas poeticamente definitivo”; a noção básica de
performance como “a ação complexa pela qual uma mensagem poética é
simultaneamente transmitida e percebida no momento”3.
Seguindo esses indicativos básicos, torna-se possível verificar, nos
dados coletados por Luís da Câmara Cascudo para a sistematização do que
ele denominou Literatura oral no Brasil4, indícios dessa “Poética” sugerida
pela tradutora de Paul Zumthor. Assim, o conhecimento acumulado pelo
consagrado folclorista faz-se atual como registro útil, indispensável, para a
construção de um novo modo de perceber a interação entre a voz e a letra
enquanto formas intencionalmente estetizantes no Brasil. Esses indícios
aparecem, o mais das vezes, nas notas elaboradas para a fixação dos textos
coletados por ele. Contudo, as anotações marginais carecem de um status
que lhes permita passar da periferia para o centro do texto, na perspectiva
de uma atualização do legado registrado.
A VELHA LUÍSA FREIRE: INTÉRPRETE DAS “PERMANENTES”

Na Seleta5 de textos cascudianos, Américo de Oliveira Costa6 destaca


a atividade de Câmara Cascudo como “colecionador, publicador e
comentador de contos populares”, e reproduz a nota da primeira das Trinta
“estórias” brasileiras7, livro que reúne narrativas contadas pela velha Luísa
Freire, Bibi (1870?-1953). O seguinte trecho apresenta a “intérprete”:

[…] branca, octogenária ama da casa do meu Pai, e até falecer, na minha
companhia. Nascida e criada na faixa litorânea do Rio Grande do Norte, de
onde nunca saiu, descendente de lavradores, sem saber ler e escrever, nem
mesmo “assinar o nome” como o fazia Sancho Pança, representa fiel e
legitimamente a tradição oral na autenticidade do fidelismo mnemônico.
Ouvi-la é pesquisar as permanentes da literatura popular, identificar o que
existe, nos processos modificativos das variantes e acréscimos locais. […]
Outro aspecto será constatar a percentagem dos contos indígenas,
africanos e europeus na confidência dessa Sherazade humilde e analfabeta. A
região em que ela nasceu e viveu as primeiras décadas foi terra dos indígenas
Tupis e devia possuir boa in luência negra a deduzir-se pela proximidade do
vale do Ceará-Mirim, zona dos engenhos de açúcar, com vasta escravaria
durante o Império8.

Na apresentação, tem-se a construção de uma imagem da intérprete,


seguindo padrões tradicionais da figura do narrador: idoso, do gênero
feminino, originário do campo, circunscrito à cultura da oralidade,
possuidor de grande memória. O fato de ser branca indica uma possível
origem portuguesa e reforça o que o anotador quer ressaltar: “a herança
dos povoadores de outrora nas manhãs do Brasil colonial. Trata-se de uma
‘permanente’. Na literatura oral brasileira o elemento decisivo é a
reminiscência portuguesa”9.
A posição social do anotador também se revela no trecho citado,
quando se fica sabendo que a intérprete era “ama da casa do meu Pai”,
permanecendo como criada do famoso folclorista até falecer. Bibi era
“figura familiar, inseparável das minhas recordações de menino”, declara.
Essa posição privilegiada parece ter gerado as condições de uma coleta,
segundo ele, ideal: “Os textos […] comprovam o realismo do anotador,
desapaixonado e devoto do seu trabalho na melhor intenção
esclarecedora”10.
Com essas declarações sobre o perfil da intérprete, tem-se também a
construção de uma autoimagem do pesquisador, o que tem continuidade
na descrição do seu método de coleta, sem distanciamento11. Nesse caso,
apenas as posições sociais são diferentes, pois as histórias da intérprete e
do anotador formam um só relato que dá conta de um universo
aparentemente harmônico. O envolvimento afetivo, familiar até, entre as
duas personagens responsáveis pela reprodução dos contos é apresentado
de forma prazerosa e reiterada:

[…] Os velhos e velhas contadores de “estórias” vinham para narrar os contos


populares e Bibi escutava-os para depois dar-me uma variante ou comentar,
deliciada, os episódios que a satisfaziam. […]
[…] anos e anos, aproveitando os momentos de expansão, fui obtendo as
notas que constituem este volume. Muitos episódios apareceram no fio de
outros assuntos, surgidos como ilustrações. Noutras ocasiões fi-la, sem que
percebesse, repetir contos, verificando os pormenores. […]
[…] é preciso naturalmente a confiança que a convivência credencia
para obter-se uma “estória” sem constrangimento, sem a redução dos
elementos expressivos. A presença do estranho anula fatalmente essa
espontaneidade e a narradora condensa o enredo, eliminando parte da
gesticulação, acanhando-se em imitar as vozes dos personagens, atropelando
as peripécias. […]
[…] As trinta “estórias” contadas pela mesma pessoa denunciam outro
merecimento para o folclorista, a intimidade. Esta assegura que a narrativa
não foi deturpada nem resumida e todos os valores foram fixados no enredo12.

O anotador cria, por meio dos seus comentários, a ilusão de um


realismo – “Não haverá documento mais puro nem mais digno de registo”,
garante ele – e arremata ao final, reforçando circunstancialmente o seu
testemunho: “ouvi, comentei e transmiti fielmente, as ‘estórias’ brasileiras da
velha Luísa Freire”13. O desejo do anotador é, pois, manter-se fiel ao modo
oral da intérprete na reprodução dos contos. Contudo, se aplicarmos aos
comentários cascudianos a teoria de Paul Zumthor sobre os estudos
medievais, veremos que estamos diante de uma perspectiva da tradição
oral, que difere da transmissão oral: “[…] a primeira se situa na duração; a
segunda, no presente da performance”14.

A PERSPECTIVA DA TRADIÇÃO ORAL

Em Literatura oral no Brasil, Câmara Cascudo afirma que o seu


propósito é verificar uma “continuidade na transmissão das estórias orais
sem prejuízo da fixação culta que também é divulgadora”15. O seu projeto é
fazer um registro da tradição oral no Brasil, e o conceito de tradição é dado
como transmissão de um processo divulgativo do conhecimento – no caso,
o conhecimento ágrafo colaborador da criação primitiva. À constatação de
que as três raças formadoras da cultura brasileira possuíam “uma já longa
e espalhada admiração ao redor dos homens que sabiam falar e entoar”,
segue-se a tese de que a literatura oral brasileira é composta “dos
elementos trazidos pelas três raças para a memória e uso do povo atual”16.
O funcionamento de tal sistema se dá pela sua expressividade anônima,
mas é possível verificar, no anonimato das composições, a marca peculiar
das civilizações formadoras, graças à persistência da tradição peculiar de
cada uma que, pelo folclore, mantém viva na nova civilização formada a
tradição antiga. Nessa relação, o folclore caracteriza-se pela antiguidade, a
persistência, o anonimato e a oralidade, elementos que dão funcionalidade
à tradição. Na sua pesquisa, o autor chega à conclusão de que o português,
por razões materiais, foi o contingente maior da nossa formação cultural.
Com base teórica em Paul Sébillot – o criador oficial do termo
“literatura oral”, em Littérature orale de la Haute-Bretagne17, então assimilada
a “popular” e “analfabeta” –, Câmara Cascudo adota a perspectiva de
historiar o processo formativo da tradição de um Brasil que se expressava
pelo folclore (e não necessariamente pelo popular): “nem toda produção
popular é folclórica. Afasta-a do Folclore a contemporaneidade. Falta-lhe o
tempo”18. Essa tradição era transmitida pela oralidade, mesmo nos casos
em que existia a fixação tipográfica (os folhetos e livrinhos feitos “para o
canto, a declamação, para a leitura em voz alta”, esclarece ele).
Tal perspectiva não se coaduna, portanto, com a visão de Paul
Zumthor sobre a questão. Segundo Santos19, Zumthor denuncia, em
Introdução à poesia oral20, a abstração do termo “oralidade” e daquilo que se
denomina literatura oral, preferindo o termo “vocalidade”, e fala das
“literaturas da voz”, evitando a identificação entre oralidade e tradição
com o objetivo de incluir no campo da oralidade práticas modernas, não
tradicionais.
A perspectiva da tradição, adotada por Câmara Cascudo, tem como
desdobramento a aplicabilidade de um padrão universal à cultura
brasileira. Em Literatura oral no Brasil21, verifica-se uma caracterização das
manifestações culturais populares da colônia portuguesa, com o objetivo
de reconstituir, sobretudo através das informações dos cronistas coloniais,
a participação, a sobrevivência e a permanência do legado tradicional das
etnias formadoras do Brasil. O resultado é uma ideia nebulosa da
participação indígena, uma noção de amálgama como resultado da
estratégia de sobrevivência da cultura afronegra que se adaptou ao regime
da escravidão e uma noção de tradição que exprime a permanência
portuguesa na oralidade. Enquanto colonizador, o elemento português
teria exercido uma pressão no sentido de apagar da memória a
participação indígena e a sobrevivência afronegra. Contraditoriamente, foi
a permanência dessa cultura dominante, europeia, que deu um caráter
universal à cultura que surgiria da Colônia, permitindo assim um
entroncamento, uma interdependência e uma base comum entre a cultura
brasileira e a cultura europeia, que é definidora do padrão de
universalidade e civilização do nosso autor.
No seu livro clássico, Câmara Cascudo apresenta o material que
constitui a literatura oral brasileira já como tradição: as fontes impressas,
os romances, as técnicas da narrativa popular, seguidos de uma antologia
do conto popular, assim como os gêneros, tipos e modelos da poesia oral.
Dedica, finalmente, um capítulo aos autos populares e danças dramáticas
do Brasil.
Ao apresentar, no capítulo VII de Literatura oral no Brasil, a técnica da
narrativa popular na sua universalidade, o folclorista afirma que as
variantes brasileiras não modificam as linhas gerais dessa generalização. O
passo seguinte é uma exposição sobre os estudos em torno do conto
popular e os métodos que buscaram uma sistemática capaz de concretizar
uma classificação de formas e tipos essenciais. O ponto de chegada da
exposição é a classificação de “motivos-centros” de Antti Aarne,
complementada pela sistematização de elementos de Stith Thompson22.
Com base nos dois estudos, Câmara Cascudo explicita o seu método
universalizante.
O estudo em questão tem como método, portanto, uma classificação
que entronca a literatura oral brasileira na tradição universal, mantendo-
se, ao mesmo tempo, os traços distintivos dos elementos nacionais e
típicos. No capítulo VIII de Literatura oral no Brasil, tal classificação toma
forma na “Pequena antologia do conto popular brasileiro”, na qual os
contos são agrupados com base nos gêneros e a partir da nomenclatura
tradicional de Antti Aarne e de Stith Thompson, método que já fora
utilizado em Contos tradicionais do Brasil23 e em Os melhores contos populares
de Portugal24. Nessa classificação, os contos aparecem em uma ordem
divergente à dos estudos precedentes (de Sílvio Romero25, Gustavo
Barroso, Lindolfo Gomes, Basílio de Magalhães, Teófilo Braga etc.) e com
uma breve apresentação da estrutura de cada tipo (sempre generalizantes
e característicos da “humanidade”), seguida de comentários sobre as
versões das estórias em variados países, de acordo com a tradição.
A universalidade perseguida por Câmara Cascudo é representada na
forma dos gêneros da literatura oral, em elementos como horário de
contação, início e fim das narrativas, gestos, motivos, moral, técnica de
exposição e personagens, por meio de arquétipos. Dentre as personagens
destaca-se Pedro Malasartes: “Não haverá melhor nem mais claro exemplo
para os processos de convergência temática, substituição de pormenores,
num incessante método natural de adaptação e sobrevivência local”26.
Parece contraditória, nessa perspectiva universalizante, a já sabida posição
“nacionalista” ou “regionalista” do autor, que, ao fim e ao cabo, apresenta o
dado local apenas como uma variante do dado universal:

As variantes brasileiras não modificam as linhas gerais dessa generalização.


Tenho ouvido sul-rio-grandenses e mineiros, paulistas e cariocas,
amazonenses e sergipanos, paraenses e baianos, contando estórias. Não há
diferença de maior no processo de exposição. A prosódia, a crítica, a maneira
de comentar o destino final do conto, o timbre que vai emprestando aos
imaginários componentes do dramatis personae constituem o elemento
regionalista, o copyright local27.

A perspectiva do autor de Literatura oral no Brasil é, por fim, reiterada


nas anotações das Trinta “estórias” brasileiras:

Ninguém discutirá mais a importância dessa geografia dos temas universais,


o milagre de sua emigração e expansão e os segredos de sua permanência,
criando variantes, adaptando-se, formando novos ciclos, teimando em
continuar, duzentos, quinhentos, mil anos, de povo a povo, numa
continuidade assombrosa. Como já não é possível dividir os homens pela sua
forma craniana, apela-se para outras “constantes”, outras “permanências” que
revelam nitidamente a existência de motivos culturais de um povo ou de um
momento de cultura noutro povo e noutro momento de civilização. Os meios
dessa permanência explicam o fenômeno da assimilação e este é o processo
poderoso dessa digestão coletiva de motivos distantes e velhos tornados
nacionais e contemporâneos28.

Da mesma forma, reitera-se a sua posição conciliatória no que diz


respeito ao elemento local nas suas relações com o “universal”:

Examinando-se o Trinta “estórias” brasileiras sente-se a ausência do elemento


indígena. Os contos vindos de África estão em minoria. Quase todos
chegaram com o português, motivos comuns à Europa e muitos de origem
oriental. As notas denunciam essas raízes eruditas, coincidindo com as
novelas da Itália e da França, com os manuscritos venerandos do século XIV.
Todas estão modificadas, com maior ou menor importância. Esta
modificação, não determinando a criação, fixa a variante, o traço nacional, o
copyright by Brazil. Desta forma as “estórias” correm o tempo e o espaço.29

O DESEJO DA FIDELIDADE À TRANSMISSÃO ORAL

As anotações têm muito a dizer sobre os textos que acompanham e


revelam intenções do autor em relação à obra que produz. Em uma relação
entre os textos das Trinta “estórias” brasileiras e as anotações cascudianas,
podemos verificar nestas últimas, que podem ser vistas como observações
marginais30, elementos associados a essas intenções: o estabelecimento de
um vínculo com a tradição (uma relação de dependência com o padrão
universal); a solicitação, ao leitor médio, de atenção relativa ao que lhe falta
como conhecimento de detalhes históricos e culturais, assim como a
especialistas, que se enriquecem com novos esclarecimentos e
paralelismos; a necessidade, por parte do anotador, de recorrer a arquivos
em busca de uma distância histórica como forma de legitimar pela
tradição o caráter erudito daquilo que é visto como popular; a estratégia de
recorrer ao passado para compreender o presente que se apresenta como
resíduo de uma organização social superada, localizada no campo, mas
com um destinatário localizado na posteridade, ou seja, no futuro como
forma de perpetuar a tradição; a identificação das fórmulas, das regras
específicas dos gêneros, como meio para explicar as variantes dos
arquétipos universais.
As anotações podem ter a função, portanto, de servir ao controle da
recepção. Segundo Pfersmann31, “elas devem garantir a única leitura
apropriada do texto e conduzir a apropriação individual do sentido, a priori
incontrolável, para os caminhos corretos, no decorrer da leitura”. O
controle da leitura está ligado à indicação de suas verdadeiras fontes,
juntando ao anonimato da oralidade a tradição que chegou ao presente,
em boa parte, pela escrita – “As notas denunciam essas raízes eruditas,
coincidindo com as novelas da Itália e da França, com os manuscritos
venerandos do século XIV”, afirma o próprio Câmara Cascudo32.
Esses paratextos trazem a linguagem do autor, sem dissimulação
ficcional, revelando o sujeito da escrita. Verifica-se neles a sua
subjetividade. São o lugar para re lexões inconcebíveis no corpo textual
dos contos, mas deles decorrentes.
As anotações apresentadas por Câmara Cascudo, no conjunto de
textos referido, caracterizam-se por uma tensão entre a necessidade de
vincular os contos à tradição e o desejo de fidelidade ao modo de
transmissão oral. O desejo de fidelidade aparece, sobretudo, nas anotações
sobre o vocabulário da intérprete (arcaísmos, construção sintática) e sobre
o comportamento no ato da contação (hábito de segurar o cachimbo,
mímica, timbres, movimentação para representar figuras evocadas). Essas
observações revelam-nos uma imagem fugidia da intérprete e sugerem
momentos em que a comunicação e a recepção coincidem no tempo, ou
seja, quando coincidem no tempo esses elementos e acontece, segundo
Paul Zumthor, uma situação de performance. Aquela situação, vivida pela
intérprete e pelo anotador como um momento único, é tornada literária
quando adquire a forma escrita.
Já como literatura, assim nos aparece o conto “A disputa por acenos”,
narrado por Bibi e anotado por Câmara Cascudo:

Um homem muito inteligente dava um grande prêmio a quem fosse discutir


com ele por acenos. Em vez de falar um com o outro, faziam gestos. Muita
gente compareceu para ganhar o dinheiro, mas ninguém vencia o homem e
muitos nem mesmo entendiam as mungangas.
Uns estudantes moravam numa casa perto do palácio do homem e
também não tinham vencido a questão. Numa manhã chegou o leiteiro para
entregar o leite e um dos estudantes, para mangar e rir do pobre do vaqueiro,
disse que ele era bem capaz de vencer o homem, dizendo as coisas por acenos.
Os outros estudantes fizeram muita algazarra e o leiteiro acabou ficando
convencido de tudo e lá se foi para a casa do homem. Veio muita gente para
assistir e na hora o homem ficou no meio da sala e mostrou um dedo ao
leiteiro que mostrou dois dedos. O homem apontou com três dedos e o leiteiro
fechou a mão como se fosse dar um murro. Então o homem mostrou uma
laranja ao leiteiro e esse, tirando do bolso um pedaço de pão, mostrou
também. O homem veio abraçar o leiteiro e entregou o prêmio, dizendo que
tinha encontrado uma pessoa inteligente para entender e responder aos
acenos.
Os estudantes levaram o leiteiro na charola e foram perguntar o que ele
entendera dos gestos do outro. O leiteiro disse: “Foi a coisa mais besta do
mundo. O homem mostrou um dedo dizendo com isto que ia furar-me um
olho. Mostrei dois, para dizer-lhe que ele ficaria sem as duas vistas. Passou ele
a mostrar os três dedos, para arranhar-me a cara e mostrei que lhe quebraria o
focinho com um murro. Parece que ficou manso e mostrou uma laranja, como
quem diz que só tinha aquilo para me dar. Mostrei o resto do pão, mostrando
que não precisava da laranja dele”.
Os estudantes procuraram o homem para saber a significação dos
gestos. O homem explicou: “Eu disse que havia um só Deus e ele respondeu
que esse Deus era Deus e era homem. Repliquei que eram três pessoas
distintas e ele disse muito bem que se reuniam num só Deus verdadeiro.
Disse-lhe que o homem havia perdido o Paraíso por causa de uma fruta e ele
respondeu que o homem achara a salvação no Pão, que é a Hóstia divina”.
Os estudantes ficaram muito espantados com a estória, pois o leiteiro e
o homem inteligente tinham entendido os acenos cada qual de uma maneira
diferente. O caso é que o pobre do vaqueiro ganhou o prêmio33.

Nesse conto, o significado dos gestos demonstra a gama de


possibilidades de apropriação individual do sentido, “a priori
incontrolável”, na situação de performance. De modo simultâneo, as
mensagens são transmitidas pelos dois sujeitos participantes da
comunicação e da recepção, em uma coincidência temporal. A interlocução
de ambos com terceiros (os estudantes) revela que os sentidos
provenientes dos gestos eram diversos, de acordo com vários fatores –
provavelmente, a posição social, o repertório cultural de cada um, o grau
de distanciamento em relação ao mundo da escrita.
Chama a atenção a caracterização dos estudantes como
interlocutores das duas personagens em disputa. Pertencentes ao mundo
da escrita e da urbanidade, eles veem como pitoresco o leiteiro, zombam
da sua ingenuidade e se espantam com o desfecho da disputa. Aquele que
dá origem à competição, no entanto, é apresentado como “um homem
muito inteligente”, não cabendo aos estudantes zombar dele, e, sim,
respeitá-lo – inclusive pelo fato de que eles próprios já haviam sido
derrotados naquele jogo. Percebe-se, na situação, uma distância acentuada
entre a posição social do leiteiro/vaqueiro e a das outras personagens.
A compreensão do desnível social não é, no entanto, um elemento
que interesse ao anotador do conto, que se satisfaz com aquilo que une o
texto particular a todos os outros: “A moral do conto popular é o elogio da
habilidade vitoriosa”34. Além desse traço, que poderia ser mais bem
especificado por meio de análises de texto, interessa ao coletaneador “a
simples, honesta e pura exibição do conto”35. Tal posicionamento é
explícito:

Os problemas da interpretação não devem aparecer numa divulgação,


periférica e modesta, pretendendo apenas resumir e apresentar os múltiplos
complexos culturais interdependentes e preexistentes na massa anônima da
literatura oral.
Não atingimos ao estado do conhecimento que autorizaria a pesquisa
das origens e a significação intrínseca dos elementos componentes, mas
simplesmente sua exposição no conjunto sempre mais vasto das modificações
nas variantes e de persistência nas versões, numa tentativa de fixação dos
motivos mais antigos e mais universais36.

Com esses limites, a pesquisa dos contos como folclore cria uma
interdição quanto ao estudo do presente da sua enunciação, uma vez que
passa a ser desinteressante o contexto da performance. Recorrendo a H. R.
Jauss, Paul Zumthor37 reafirma, contudo, a necessidade de “pressupor
sempre, na medida do possível, as perguntas a que a obra respondia em
seu tempo, antes daquelas que lhe fazemos hoje”.
Tendo em mente a provisoriedade histórica do texto, esta leitura
reconhece o caráter moralizante do conto e o seu vínculo com uma
universalidade estabelecida na cultura ocidental, mas procura sentidos
que possam advir das circunstâncias históricas. Com essa perspectiva,
cria-se uma tensão originada no confronto entre tradição e modernidade,
peculiar de uma sociedade ainda presa a tradições coloniais enraizadas na
Idade Média e, ao mesmo tempo, já sob o domínio do mundo da escrita e
urbano.
No texto do conto coletado, o narrador apresenta os fatos e
arremata-os com a moral da história. Mas é aos estudantes, por força da
iniciativa da interlocução, que cabe a mediação que possibilita o
entendimento das circunstâncias históricas. Esses representantes do
mundo urbano, da escrita, veem com estranhamento a relação entre a voz
e a gestualidade que a representa – uma relação absolutamente aberta,
determinante da imprevisibilidade de significados.
O espanto dos estudantes tem origem na racionalidade estabelecida,
em princípio, no mundo da escrita, em que os significados têm limites,
ainda que dentro de um amplo leque de possibilidades. Mas a vitória do
leiteiro abre uma fenda nesse mundo já todo convencionado e aponta para
um passado apenas imaginável, não necessariamente universal. Entre a
imaginação criadora e o registro das formas residuais da tradição, assim
como graças à sua atualização por meio da performance, abre-se, portanto,
um método de colaboração crítica às formas de construção permanente do
patrimônio cultural brasileiro.

1 Jerusa Pires Ferreira, “Posfácio”, in: Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura”
medieval, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 293.
2 Paul Zumthor, Histoire littéraire de la France médiévale (VIe-XIV e siècles), Paris:
PUF, 1954.
3 Jerusa Pires Ferreira, “Posfácio”, in: Paulo Zumthor, op. cit., pp. 288, 290 e 295.
4 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1984.
5 Idem, Seleta, Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
6 Américo de Oliveira Costa, “Perfil de Luís da Câmara Cascudo”, in: Luís da
Câmara Cascudo, Seleta, op. cit., pp. VI-X.
7 Luís da Câmara Cascudo, Trinta “estórias” brasileiras, Lisboa: Portucalense, 1955.
8 Idem, Seleta, op. cit., pp. 39-40.
9 Ibidem, p. 40.
10 Ibidem, p. 41.
11 Em vários momentos da sua vasta obra, o intelectual Câmara Cascudo deixa
transparecer que a posição social privilegiada permitiu-lhe a apresentação de
elementos para a construção da sua própria biografia, que é usada como
ponto de apoio para reafirmar uma tradição na qual se insere a sua vida
pessoal. Cf., a esse respeito, Humberto Hermenegildo de Araújo, “‘Um Brasil’:
perspectivas de Câmara Cascudo e de Gilberto Freyre”, in: Leituras sobre
Câmara Cascudo, João Pessoa: Ideia, 2006, pp. 27-36.
12 Luís da Câmara Cascudo, Seleta, op. cit, pp. 41-3.
13 Ibidem, p. 45 (grifo meu).
14 Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval, op. cit., p. 17.
15 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit., p. 17.
16 Ibidem, p. 29.
17 Paul Sébillot, Littérature orale de la Haute-Bretagne, Paris: Librairie Orientale et
Américaine, 1913.
18 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit., p. 24.
19 Idelette Muzart F. dos Santos, Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e
o movimento armorial, Campinas: Unicamp, 1999, p. 16.
20 Paul Zumthor, Introdução à poesia oral, São Paulo: Hucitec, 1997.
21 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit.
22 “Em 1910, Antti Aarne publicou Verzeichnis der Marchentypen, traduzido e
ampliado pelo norte-americano Stith Thompson, em 1928: The Types of the Folk-
Tale, A Classification and Bibliography”. Segundo Câmara Cascudo, Antti Aarne
reuniu 2.399 motivos-tipos (os assuntos que eram os enredos dos contos mais
conhecidos na Europa). Stith Thompson fixou, pelos cálculos cascudianos,
24.260 elementos. Cf. Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit.,
pp. 243-4.
23 Luís da Câmara Cascudo, Contos tradicionais do Brasil, São Paulo: Global, 2000.
24 Idem, Os melhores contos populares de Portugal, Rio de Janeiro: Ediouro, 1969.
25 Câmara Cascudo discorda da classificação de Sílvio Romero, que se orientava
pelas possibilidades de origem étnica: “Dizer que tal conto pertence a tal raça
é impossível. Os contos são tecidos cujos fios vieram de mil procedências.
Cruzam-se, recruzam-se, combinam-se, avivados, esmaecidos, ressaltados na
trama policolor do enredo”. Cf. Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no
Brasil, op. cit., p. 257.
26 Ibidem, p. 255.
27 Ibidem, p. 242.
28 Luís da Câmara Cascudo, Seleta, op. cit, p. 43.
29 Ibidem, p. 44.
30 Os elementos enumerados a seguir, no parágrafo, têm por base o texto de
Andreas Pfersmann, “O debate sobre a prosa em notas: fragmentos de uma
teoria da observação”, in: Seplic – Seminário Permanente de Literatura Comparada,
Rio de Janeiro: UFRJ, 1998, n. 8.
31 Ibidem, p. 13.
32 Luís da Câmara Cascudo, Seleta, op. cit., p. 44.
33 Ibidem, pp. 45-6.
34 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, op. cit., p. 239.
35 Ibidem, p. 242.
36 Idem, p. 248.
37 Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval, op. cit., p. 23.
A Compadecida e o romanceiro nordestino1
ARIANO SUASSUNA

Em 1947, escrevi minha primeira peça, que era, também, a primeira ligada
ao Romanceiro Popular Nordestino: Uma mulher vestida de Sol. Ganharia,
com ela, um concurso instituído pelo Teatro do Estudante de Pernambuco.
E, saindo publicado o resultado do concurso no começo do ano seguinte,
1948, dei, à Folha da Manhã, do Recife, uma entrevista na qual, entre outras
coisas, afirmava:

Quanto à feitura da peça, o que fiz foi tomar um romance popular do Sertão e


tratá-lo dramaticamente, nos termos da minha Poesia – ela, também, filha do
Romanceiro nordestino e neta do ibérico… Procurei conservar, na minha peça,
o que há de eterno, de universal e de poético no nosso riquíssimo Romanceiro,
onde há obras-primas de Poesia épica, especialmente na fase denominada do
pastoreio.

Por aí se vê como, aos 20 anos, já era grande minha preocupação


com essa forte e pura raiz popular da Arte e da Literatura nordestinas que
são os folhetos e repentes do Romanceiro. E em 1949 lá vinha nova
experiência, desta vez com uma ligação ainda mais profunda entre a peça
Auto de João da Cruz e o Romanceiro Popular do Nordeste. Em Uma mulher
vestida de Sol, o romance popular fornecera, apenas, quase que só, o fio
central da história: mesmo assim, seria essa ligação com a rica veia poética
dos Cantadores que iria fazer desta minha peça algo diferente dos
chamados “romances regionalistas do Nordeste”. Mas o Auto de João da Cruz
era, já, inteiramente baseado em três folhetos nordestinos: História de João
da Cruz, História do príncipe do Reino de Barro Branco e a princesa do Reino do
Vai-não-Torna e O príncipe João sem Medo e a princesa da Ilha dos Diamantes –
folhetos “dos quais são autores ou divulgadores, respectivamente, Leandro
Gomes de Barros, Severino Milanês da Silva e Francisco Sales Areda,
poetas populares do Nordeste”, segundo eu explicava na introdução escrita
para a peça.
Ao mesmo tempo, naquele ano de 1949, eu publicava, no suplemento
literário do Jornal do Commercio, do Recife, uma tentativa de ensaio, na
qual, comparando o Romanceiro nordestino ao ibérico, eu escrevia:

O ambiente noturno em que se passa a tragédia [de Bernal Francês] é


puramente ibérico […]. A hora comum no romance sertanejo é tarde […]. Há
uma identificação completa entre o autor e seu povo […]. Aliás, este é um traço
peculiar ao clássico. Os poetas eruditos de Portugal e da Espanha, na era
clássica, eram, apenas, Cantadores promovidos […]. Como esses gênios,
nossos Cantadores investem pela mitologia adentro, criando dentro de um
sentido rigorosamente épico.

Saliento todos esses fatos para mostrar como minhas ligações com o
Romanceiro são bastante antigas e, ao mesmo tempo, como mantive,
nisso, uma certa coerência desde o tempo dos 20 anos até agora. Cito mais
dois fatos, para corroborar a afirmação. O primeiro é de 1958, quando
escrevi para uma certa “Coletânea da Poesia Popular Nordestina” –
publicada pela revista Deca em 1964 – uma introdução2 na qual propunha o
estudo do Romanceiro, dividindo-o em dois grandes grupos, o da Poesia
improvisada e o da Literatura de cordel – nome mais popularizado e
melhor do que aquele proposto no meu ensaio, por in luência de Gustavo
Barroso (Poesia tradicional, ou de composição literária). O que ainda hoje
considero válido, nessa introdução, é a tentativa de distribuir e classificar
os folhetos e romances nordestinos em seis ciclos principais – o ciclo
heroico, trágico e épico; o ciclo do maravilhoso; o ciclo religioso e de
moralidades; o ciclo cômico, satírico e picaresco; o ciclo histórico e
circunstancial; e o ciclo de amor e fidelidade3. Não sou um erudito nem
tenho espírito muito sistemático. Não é, portanto, por pura vaidade que
empreendo essa distribuição, de valor meramente didático. O que aí está é
somente uma sugestão, da qual poderemos partir, todos nós que nos
interessamos pelo assunto, para uma sistematização dos estudos sobre o
Romanceiro. Eu mesmo parti, aliás, de uma ideia de Gustavo Barroso,
exposta, se não me engano, em Ao som da viola, ideia que acredito ter levado
um pouco adiante, estando pronto a reformular qualquer coisa diante de
sugestão melhor. Creio, porém, ainda hoje, que, no todo, Gustavo Barroso
tinha razão e estava em caminho mais correto do que aqueles que
distribuem os folhetos nordestinos em torno não de assuntos, e sim de
personagens, como o “ciclo de Antônio Silvino”, o “ciclo de Lampião”, o “ciclo
de padre Cícero” etc. Os eruditos ibéricos agiram assim em relação ao seu
Romanceiro, com o “ciclo do Cid”, o “ciclo dos Infantes de Lara” etc. Mas é
que o Romanceiro ibérico só conta quase que só com o ciclo que, entre nós,
seria o heroico. Por isso, é explicável que assim fizessem. Mas o nosso
Romanceiro é muito mais rico e variado, principalmente porque é vivo e
atuante, cheio de força e vitalidade nos dias de hoje, e não somente uma
sobrevivência arcaica, como lá.
Finalmente, a data mais recente de minhas insistentes afirmações
sobre a importância do Romanceiro como fonte para uma Literatura
erudita brasileira é de 1967, e a afirmação foi feita na revista Cultura, do
Rio, a propósito do centenário de nascimento de Rodrigues de Carvalho.
Eu falava sobre esses ciclos do nosso Romanceiro e dizia que dentro deles
tudo cabia:

É todo um cortejo da vasta humanidade que desfila livremente por aí, na força
da Literatura coletiva, enquanto a nossa Literatura de salão, acadêmica,
acanhada, sufocada de preconceitos e de bom gosto, se estiola, sem fôlego, no
formalismo e no individualismo. Baste um pormenor para mostrar a
diferença: quantas obras não já deixaram de ser escritas por causa da
preocupação mesquinha, orgulhosa e estéril da criação individual? O
Cantador nordestino não se detém absolutamente diante dessas
considerações: apropria-se tranquilamente dos filmes, peças de teatro,
notícias de jornal e mesmo dos folhetos dos outros. Que importa o começo se,
no final, a obra é sua? Ele, depois de tudo, acrescentou duas ou três cenas,
torceu o sentido de três ou quatro outras, de modo que a obra resultante é
nova. Não era assim que procediam Molière, Shakespeare, Homero e
Cervantes? […] Os Cantadores procedem do mesmo jeito. Há, mesmo, uma
palavra que, entre eles, indica o fato, o verbo versar, que significa colocar em
verso a história em prosa do outro. Quando Shakespeare escreveu Romeu e
Julieta não fez mais do que versar as crônicas italianas de Luigi da Porto e
Bandello.
Assim, sendo essas as minhas preocupações, não admira que Uma
mulher vestida de Sol e o Auto de João da Cruz fossem dois marcos no caminho
de identificação entre meu trabalho de escritor e o Romanceiro. De fato,
porém, se de ambas essas tentativas resultaram peças que não renego, foi
somente em 1955, com o Auto da Compadecida, que realizei pela primeira vez
uma experiência satisfatória de transpor para o Teatro os mitos, o espírito
e os personagens dos folhetos e romances, aos quais se devem sempre
associar seus irmãos gêmeos, os espetáculos teatrais nordestinos,
principalmente o Bumba meu boi e o Mamulengo. É que o Romanceiro
Popular Nordestino, dentro daquelas características de “Grande
Romanceiro Moderno da Língua Portuguesa” que Thiers Martins Moreira
com justiça lhe atribui, só se completa com a parte teatral, formada por
esses espetáculos, com seus mitos, figuras fabulosas, histórias e
personagens tradicionais. A interpenetração, a in luência mútua existente
entre a Literatura de cordel e o Mamulengo ou o Bumba meu boi, por
exemplo, é de tal modo evidente, que um exame superficial é bastante para
demonstrá-la. Quanto aos tipos, basta lançar uma vista sobre o ciclo
heroico ou o ciclo cômico, satírico e picaresco – o “ciclo do herói sagaz”,
como o mesmo Thiers Martins Moreira gosta de chamar. O “Pedro
Quengo” e o “João Grilo” do Romanceiro, o “Benedito” e “O Negro
Preguiçoso” do Mamulengo, o “Mateus” e o “Bastião” do Bumba meu boi
são, todos, variantes do mesmo pícaro que herdamos da Literatura ibérica
de origem popular e que, lá também, tanto se parece com os graciosos do
Teatro de Calderón de La Barca ou Lope de Vega. O Sancho Pança, do Dom
Quixote, também é da mesma família.
Foi, portanto, dessa raiz popular do Romanceiro e dos espetáculos
populares do Nordeste que surgiu o Auto da Compadecida. Recentemente,
em artigo publicado na revista Comentário (4º trimestre de 1969), Anatol
Rosenfeld escreveu que o Auto da Compadecida se apoia

[…] na tradição católico-didática dos fins da Idade Média, dos milagres e dos
famosos autos de Gil Vicente. É a esta tradição principalmente, não tanto à
in luência de Claudel e ainda menos de Brecht, que a peça certamente deve o
seu caráter épico e o jogo dirigido ao público, jogo acentuado pela intervenção
de um comentador e pelos aspectos fortemente circenses e populares. Uma
grande cena que representa o tribunal celeste e na qual a Virgem Maria se
compadece dos pecadores retoma uma velha tradição do teatro cristão.
Suassuna […] conseguiu fundir […] o legado católico, os intuitos de crítica
social e o folclore nordestino.

Anatol Rosenfeld, com extraordinária agudeza e com a penetração


crítica de sempre, notou que meu teatro era, sim, aproximado do de Gil
Vicente, dos milagres medievais e – acrescento eu – do de Plauto, do de
Goldoni, do de Lope de Vega, do de Calderón de la Barca etc. – e não do de
Claudel ou Brecht. É verdade, e fico muito satisfeito que ele o tenha
notado. Eu não conhecia nada de Brecht, nunca nem sequer ouvira falar
dele quando escrevi o Auto da Compadecida. Detesto o teatro marxista dele
tanto quanto não gosto do teatro católico e hierático de Claudel. Não gosto,
de modo nenhum, agora que os conheço, nem da fragmentação das
unidades de tempo, ação e lugar, nem do tal “afastamento”, do
“distanciamento” brechtiano, que, começando sua oposição contra alguma
coisa também a meu ver errada, o “ilusionismo teatral”, termina
prejudicando de modo funesto a própria “ilusão do Teatro”, que é
fundamental, sem a qual morre o teatro, isso queiram ou não queiram os
brechtianos. A emoção é, para a Arte, tão fundamental quanto a re lexão:
um teatro sem riso, sem cólera, sem amores, sem luta, sem choro, é um
teatro frio e desumanizado, intelectualizado e castrado pela Política
sectária e sufocante. É por isso que o teatro sectário e político de Brecht
nunca chegará nem perto de Shakespeare, que não tinha medo do choro
nem do riso, e que por isso trata de Política sem fazer teatro político, trata
de problemas filosóficos sem fazer teatro filosófico, faz de sua Arte uma
forma superior de diversão sem cair no vulgar, e apresenta o riso, o choro,
a cólera, o sangue, sem fazer dramalhão ou teatro sentimental.
Anatol Rosenfeld tem, portanto, toda razão quando nota que, no
Auto da Compadecida, o que existe de épico vem do Teatro antigo, e não de
Brecht ou de seu mestre e precursor católico, Claudel. Anotou ele, ainda, a
importância do folclore nordestino para a feitura do Auto da Compadecida.
O que não disse – talvez pela natureza panorâmica de seu ensaio, que não
permitia maiores análises de cada autor – foi que o Romanceiro e os
espetáculos populares nordestinos foram também decisivos para aquelas
características que ele anotou no Auto da Compadecida – o jogo dirigido ao
público e acentuado por um comentador, a cena representando o tribunal
celeste e a intervenção de Nossa Senhora. Tudo isso, em minha peça, vem
do Bumba meu boi, do Mamulengo, da oralidade dos desafios de
Cantadores e mesmo de autos populares religiosos publicados em folhetos,
no Nordeste. Não digo isso para omitir ou diminuir a importância das
in luências por mim recebidas em meu trabalho de escritor. Não sou
desses. Creio, mesmo, que conheço poucas pessoas tão dispostas a
confessar suas dívidas quanto eu. É verdade que devo muito ao Teatro
grego (e a Homero e Aristóteles), ao latino, ao italiano renascentista, ao
elisabetano, ao francês barroco e sobretudo ao ibérico. É verdade que devo,
ainda mais, aos ensaístas brasileiros que pesquisaram e publicaram as
obras, assim como salientaram a importância do Romanceiro Popular do
Nordeste – principalmente a José de Alencar, Sílvio Romero, Leonardo
Mota, Rodrigues de Carvalho, Euclides da Cunha, Gustavo Barroso e, mais
modernamente, Luís da Câmara Cascudo e Théo Brandão. Mas a
in luência decisiva, mesmo, em mim, é a do próprio Romanceiro Popular
do Nordeste, com o qual tive estreito contato desde a minha infância de
menino criado no Sertão do Cariri da Paraíba.
Quem quiser tirar a prova disso leia o Cancioneiro do Norte, de
Rodrigues de Carvalho, e Violeiros do Norte, de Leonardo Mota. Bastam
esses dois. O Auto da Compadecida é inteiramente baseado em dois
romances e num auto popular, publicados por esses dois pesquisadores do
Romanceiro, que exerceram, com isso, um papel decisivo na criação da
peça.
O primeiro ato do Auto da Compadecida é baseado no folheto O enterro
do cachorro, folheto do ciclo cômico, satírico e picaresco, publicado por
Leonardo Mota sem indicação de autoria. Revelou-me recentemente
Evandro Rabelo – outro pesquisador dedicado, atualmente trabalhando no
Nordeste – que o folheto publicado por Leonardo Mota é um fragmento de
outro, O dinheiro, de autoria de Leandro Gomes de Barros. De fato, porém,
como demonstrou agudamente o Professor Enrique Martínez López –
professor de Literatura hispânica na Universidade da Califórnia –, a
história do testamento do cachorro, que aparece no Auto da Compadecida, é
um conto popular de origem moura e passado, com os árabes, do norte da
África para a Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste. Quando
escrevi a peça, ignorava esse fato, que, aliás, é comum na Literatura
popular e na erudita que dela se origina, e que nada significa contra o
caráter perfeitamente nordestino e brasileiro da versão de Leandro Gomes
de Barros na qual me baseei: quem diz brasileiro e nordestino diz ibérico,
mouro, negro, vermelho, judeu, e mais uma porção de coisas que seria
longo enumerar.
Na nossa versão, o personagem inicial é um inglês, que suborna o
Padre e o Bispo para conseguir o enterro, em latim, do seu cachorro. O
Sacristão que acrescentei na peça é apenas um desdobramento, inferior
pela hierarquia, dos outros dois, de modo que se pode dizer,
perfeitamente, que os três personagens – Bispo, Padre e Sacristão – são
todos originados do folheto popular citado por Leonardo Mota. Aliás, no
Bumba meu boi, o Padre é também um personagem indispensável, dada
sua importância na pequena e fechada sociedade sertaneja.
Foi por motivo semelhante que, na peça, substituí o inglês – que não
teria sentido numa cidadezinha sertaneja – pelo Padeiro e sua Mulher. Foi
um processo de substituição e desdobramento, o que propiciava a aparição
de dois personagens ligados à Burguesia urbana das pequenas cidades do
Sertão, e ao mesmo tempo uma aproximação com dois personagens do
Bumba meu boi, o “Doutor” e a “Catarina”.
O segundo ato da peça é baseado na História do cavalo que defecava
dinheiro, também citada por Leonardo Mota em Violeiros do Norte. Nesse
folheto, um Duque tem um “compadre pobre” que é um típico “herói
sagaz”, um pícaro, um “quengo”, como se diz, no Nordeste e no
Romanceiro, das pessoas astutas, “de quengo fino” e muito juízo para
enrolar os outros. A vida de Cancão de Fogo e seu testamento começa assim:

Leitor, se não se enfadar


desta minha narração,
leia a vida deste ente
– e preste toda atenção –
que foi o quengo mais fino
dessa nossa geração.
Aliás, “bicho de quengo passado” é como o autor anônimo do folheto
classifica o “Compadre Pobre” do Duque. Na história, o “Compadre Pobre”
enfia umas moedas no fiofó do cavalo, convence todo mundo de que ele
caga dinheiro, e é assim que o vende por uma fortuna ao velho Duque,
interesseiro e cruel. Quando este, descobrindo tudo, vem reclamar da
trapaça, o compadre coloca uma borrachinha cheia de sangue no peito de
sua mulher, dá-lhe uma facada, ressuscitando-a ao som de uma rabeca,
diante do Duque embasbacado. O Duque, sempre interesseiro, compra a
rabequinha por outra fortuna, vai para casa e, lá, termina matando sua
mulher, certo de ressuscitá-la pelo poder miraculoso da rabeca.
Logo quando montei o Auto da Compadecida, não foram poucos os
risos superiores, às vezes complacentes, que sublinharam meu espírito de
adulto que não tinha pejo de se interessar “pelas histórias ingênuas do
Povo”. Eu não me abalava: não considero essas histórias ingênuas e,
depois, é desse tipo de história que eu gosto; de modo que continuava e
continuo. E depois iria ter uma surpresa agradável, ao descobrir que um
dos maiores gênios que já houve também gostava delas. Foi o seguinte:
quando o Auto da Compadecida foi montado em Madri, o escritor espanhol
Pedro Laín Entralgo aproximou a visão do mundo que aparece na peça
com aquilo que chamou de “mirada cervantina”. Afirmou que, em mim,
não era só gilvicentismo que havia, era também, “num sentido muito
amplo e muito fundo, cervantismo”.
Orgulhoso e intrigado ao mesmo tempo, reli o Dom Quixote e
encontrei três coisas que poderiam estar no meu subconsciente, quando
escrevi a peça, e no subconsciente do escritor espanhol, quando fez a
aproximação. A primeira é o parentesco que tenho com a literatura oral
picaresca do Nordeste e que Cervantes também tinha com a espanhola,
seja nas Novelas exemplares, seja no próprio Dom Quixote. A segunda é a
presença da dupla formada por João Grilo e Chicó. Minha dupla vem, é
claro, do “Mateus” e do “Bastião” do Bumba meu boi, do “Palhaço” e do
“Besta” do circo etc. Mas, re letindo sobre a dupla cervantina, vi que Dom
Quixote é um sonhador, como Chicó (mentiroso lírico, alucinado pelo sol
do Sertão), e que Sancho Pança é um pícaro, como João Grilo. Estas são as
aproximações que se poderiam fazer entre os quatro tipos. A diferença
entre eles seria que, no Dom Quixote, o corajoso é o Cavaleiro sonhador, e o
covarde é o pícaro popular, enquanto que, no Auto da Compadecida,
acontece o contrário: João Grilo, o pícaro, é que tem arrancos quixotescos
de coragem, e Chicó, o mentiroso sonhador e lírico, é que tem a covardia,
tocada de bom senso, de Sancho. Esclareço, de passagem, que estou
falando de semelhanças de temperamento e de linhagem literária, e não de
qualidade e grandeza, pois tenho lucidez e bom senso suficientes para
entender que, de outra forma, não se pode aproximar, sem ridículo, as
obras de Lope de Vega ou Cervantes de uma peça como o Auto da
Compadecida. é dentro desse sentido, portanto, que passo à terceira
semelhança que encontrei, relendo o Dom Quixote, após o artigo do escritor
espanhol: é o episódio das bodas de Camacho, história muito semelhante à
da borrachinha do “Compadre Pobre” ou à da bexiga do cachorro do Auto
da Compadecida; o que prova, mais uma vez, como é verdade aquilo que eu
afirmava em 1948 na entrevista que citei, isto é, que minha Literatura era
filha da Literatura popular nordestina e neta da ibérica.
O personagem João Grilo, do Auto da Compadecida, foi criado e
recriado, portanto, a partir desse mundo estranho e poderoso do
Romanceiro. Existem nele, ainda, é verdade, reminiscências de duas
pessoas que conheci na realidade, um sujeito chamado pela alcunha de
“Piolho” e que morava em Taperoá, e outro, também esperto, astuto e meio
mau-caráter, que vivia no Recife – um gazeteiro por sinal chamado João,
que mora hoje no Rio de Janeiro e que tinha o apelido de “João-Grilo”,
colocado nele por causa de suas espertezas e trapaças, das “quengadas” que
lembravam o tipo picaresco do “João Grilo” do Romanceiro, irmão gêmeo
de Pedro Malazarte, do Mateus, de Bastião, de Pedro Quengo e de outros
graciosos do mundo real, poético e popular do Nordeste.
Aproximações idênticas poderiam se fazer a respeito dos outros
personagens do Auto da Compadecida. Todos eles, como sempre acontece,
são, afinal, retrabalhados pela imaginação criadora, sem o que ficam frios,
mortos, como se feitos de pedaços e retalhos reunidos pela observação.
Mas, de fato, todos eles têm uma parte de real e uma parte herdada da
Literatura popular. Chicó, por exemplo, é também baseado em
personagem real, um sujeito que, aliás, tinha este mesmo nome – Chicó de
Berto. Mas, além dessa parte real, o mentiroso é um personagem
indispensável de inúmeros contos e racontos populares nordestinos, é
mito dos mais poderosos e simpáticos em todo o nosso novelário popular,
fonte contínua do Romanceiro. Aliás, os Poetas populares nordestinos
parecem ter consciência de que eles mesmos, como “contadores de casos e
histórias” que são, não passam, mesmo, de mentirosos profissionais e
líricos. Os mais sérios e graves dizem isso assim, como no Romance de João
Besta com a Jia da Lagoa:

O Poeta é um repórter
das ocultas tradições,
revelador dos segredos,
guiado por gênios bons,
Pintor dos dramas poéticos,
em todas composições.

Já os mais satíricos e gargalhadores abrem jogo mais franco:

Nesta vida de Poeta,


a gente vê coisa errada,
coisa certa e coisa torta,
coisa que não foi passada,
coisa que vem se passando,
coisa que traz presepada.

Em ambas essas estrofes, o que se nota é a consciência que têm seus


autores de que o Poeta é parente próximo do mentiroso, ambos
necessitados de criar um mundo transfigurado e poético, um mundo que
faz violência à realidade para ser mais fiel ao real – esse enigma que só
poeticamente pode ser atingido e sugerido.
O Major Antônio Morais também partiu de pedaços de pessoas reais
e do Duque invejoso e mau da História do cavalo que defecava dinheiro, assim
como também, um pouco, do “Capitão” do Bumba meu boi. Severino do
Aracaju é reminiscência de um Cangaceiro real, ligado à minha família e
que, na vida, foi morto pela Polícia. Mas ele e o Cabra se originam também
é da figura legendária do Cangaceiro dos folhetos, herói às vezes épico, às
vezes cômico, mas sempre justificado em sua vida de crimes pela morte
cruel do Pai – como, de fato, aconteceu, na vida, com Antônio Silvino e
Lampião.
Quanto ao Encourado e ao Demônio, secretário dele, são recriações
teatrais dos diabos do Romanceiro – principalmente o Demônio que
aparece no auto popular O castigo da soberba, ao qual me referirei adiante. O
nome “Encourado” é de criação minha, mas alusivo à crença sertaneja de
que o Diabo costuma se vestir de Vaqueiro em suas andanças pelas
estradas e encruzilhadas sertanejas. Aliás, no Bumba meu boi e no
Mamulengo, são frequentes as aparições de diabos, ora mais, ora menos
convencionais.
O Palhaço do Auto da Compadecida vem dos circos sertanejos que vi na
minha infância. Um desses palhaços ficou mítico, no Sertão e para mim:
“Gregório”, do Circo Estringuine. Mas, ao mesmo tempo que, na peça,
representa o Autor, o Palhaço é, também, um Cantador. O Professor Mark
Curran, da Universidade de Arizona, Estados Unidos, escreveu, aliás, um
ensaio que, para mim, foi tão revelador sobre isso quanto o artigo do
espanhol Pedro Laín Entralgo sobre o que já disse. Nesse ensaio, o
Professor Curran mostra como o Palhaço do Auto da Compadecida faz, no
início, a “propaganda moralizadora” da peça, exatamente como os Poetas e
Cantadores populares nordestinos costumam fazer em alguns dos seus
folhetos. E de fato, no fim, meu personagem arranca a máscara de palhaço
para, de viola em punho, revelar sua natureza também de Cantador e
cantar a estrofe final do Romanceiro que praticamente encerra a peça.
Finalmente, temos aqueles personagens que, no Auto da Compadecida,
são as versões populares do Cristo e da Virgem Maria, isto é, “Manuel” e “A
Compadecida”. Anatol Rosenfeld, na generosa, lúcida e já citada referência
que fez à minha peça, vê, no terceiro ato e na aparição do Cristo e da
Virgem, “uma velha tradição do teatro cristão”. De fato, houve, em mim,
essa in luência, como já disse: lembro-me bem de quanto estava em meu
espírito O grande teatro do mundo, de Calderón, quando fiz a peça. Mas essa
in luência ibérica foi muito menos direta, para a criação do terceiro ato, do
que a de um auto popular nordestino, O castigo da soberba, citado por
Leonardo Mota e Rodrigues de Carvalho – sendo que a versão citada por
este último chama-se A peleja da alma e tem autor conhecido, o Cantador
paraibano Silvino Pirauá Lima. O que pode acontecer é ser esta história,
como as outras duas, também de origem moura ou ibérica, com as raízes
fincadas nesse mundo mítico mediterrâneo que é tanto peninsular como
árabe-negro, e, portanto, brasileiro e nordestino.
De qualquer modo, é de O castigo da soberba que se origina
diretamente o terceiro ato do Auto da Compadecida. Até o nome de Manuel,
atribuído ao Cristo, é de lá: achei que a forma castiça portuguesa, Manuel,
em vez de Emanuel, seria mais expressiva para indicar que o que estava ali
era uma versão popular nordestina de Cristo, e não o Cristo, mesmo. Aliás,
de propósito, eu procurei deixar rastros de todas essas in luências, na
peça, tanto na escolha dos nomes dos personagens, como, às vezes, em
frases que se repetem e que vêm dos versos populares do Romanceiro
Nordestino. É o caso, por exemplo, da frase que o Padre e o Bispo repetem,
quando tomam conhecimento de que o cachorro morto deixara dinheiro
para eles:

Que animal inteligente!


Que sentimento nobre!

Agora, no terceiro ato, lembro-me de que o Encourado, na peça, diz:


“Manuel é justo, e agora vocês vão ver que com o Diabo não se brinca.” No
auto popular que venho citando, o Cão e os Demônios dizem:

Manuel é reto e justo,


Nós hoje carrega ela! [a alma]

Como se vê, é o mesmo con lito entre a Justiça e a Misericórdia: os


Diabos apelam pela justiça divina, e a alma, que se vê perdida, apela para a
misericórdia, que aparece sob a forma da Virgem. Na peça, quando Nossa
Senhora aparece, o Encourado diz: “Lá vem a Compadecida! Mulher em
tudo se mete!”. Na Peleja da alma, citada por Rodrigues de Carvalho, assim
falava o Cantador Silvino Pirauá Lima:

Os diabos quando foram vendo


a Virgem para a partida,
Lúcifer dizia aos outros:
– “Lá vai a Compadecida!
Pelo jeito que estou vendo,
esta sentença é perdida!”

Posso concluir, portanto, dizendo que, de fato, como acontece


sempre na criação literária, é um pedaço do meu mundo interior que está
no Auto da Compadecida – mesmo sendo o Teatro a menos subjetiva das
Artes literárias. Tudo aquilo é exteriorização de impulsos, invenções e
aspirações que vivem dentro de mim. Como Severino do Aracaju, tenho
impulsos frustrados de Cangaceiro, impulsos que não levo adiante, por um
lado, por causa de meu Catolicismo de segunda ordem, parecido com o do
Padre, e, por outro, por causa da covardia de Chicó. Chicó também vive em
mim, com seus casos e histórias, às vezes possuidores de um núcleo de
verdade, mas sempre ajeitados e recriados pela imaginação de todo escritor.
Tenho, também, algo de João Grilo e muito do Palhaço, pois, além de
Cangaceiro, sou também um Palhaço e Cantador frustrado, um homem
que, gostando de divertir um auditório, é, porém, impedido pela timidez, e
que, não sabendo enfrentar a multidão, escolheu o Teatro como a Arte
literária na qual a oralidade original da Literatura mais permaneceu. E
assim por diante.
Mas, se isso é verdade, não é menos verdade que, em mim, a
imaginação criadora sente verdadeira necessidade de trabalhar com as
raízes fincadas nessa inesgotável e rica fonte brasileira que é o Romanceiro
Popular Nordestino. É que também acredito – tanto com a cabeça quanto
com o sangue – que só assim é que tenho a garantia da aprovação coletiva,
que o povo brasileiro dá aos folhetos, e a segurança de estar ligado a uma
corrente literária que me identifica, ao mesmo tempo, com o Povo e com a
tradição mediterrânea e ibérica que forma o núcleo da Cultura brasileira.

Recife, 2 de março de 1970

1 Este texto encontra-se no livro Almanaque Armorial, de Ariano Suassuna (Rio de


Janeiro: José Olympio, 2008, pp. 173-88, © by herdeiros de Ariano Suassuna).
2 “Nota sobre a Poesia Popular Nordestina”, Deca – Revista do Departamento de
Extensão Cultural e Artística da Secretaria de Estado dos Negócios da
Educação e Cultura, Recife: 1962, ano IV, n. 5, pp. 15-28. A “Coletânea” de
Suassuna, referente aos romances do “ciclo heroico”, foi publicada em três
partes, em três números consecutivos da revista (ano IV, n. 5, 1962; ano V, n. 6,
1963; ano VI, n. 7, 1964). [Nota de Carlos Newton Júnior, organizador do
Almanaque Armorial.]
3 Em texto posterior, publicado como introdução a uma antologia de Leandro
Gomes de Barros (Literatura popular em verso – antologia, tomo III, Leandro
Gomes de Barros – 2, MEC/Fundação Casa de Rui Barbosa/Universidade
Federal da Paraíba, 1977, pp. 1-7), Suassuna reformula sua classificação dos
folhetos nordestinos acrescentando mais três “ciclos” (ciclo erótico e obsceno;
ciclo político e social; ciclo de pelejas e desafios). [Nota de Carlos Newton
Júnior, organizador do Almanaque Armorial.]
Folguedos, brincantes e a contação de histórias
VALDECK DE GARANHUNS

Ao re letir sobre o folguedo, o brincante1 e o contador de histórias,


inerentes ao meu percurso como artista, o fiz em um tom prosaico,
intercalando com versos, para não ser discrepante com a minha grande
fonte de experiência – a cultura popular. É por isso que

Os versos aqui presentes


resultam da resistência
e são frutos da essência
do meu lado cantador,
eles sempre me acompanham,
pra qualquer lugar que eu for.

Eu posso escrever em prosa


toda hora todo dia,
mas sinto que meu escrito
ganha mais, mais alegria,
quando minha planta nasce
regada com poesia.

Caro leitor, sinta-se ao meu lado, conversando comigo, em prosa e


em verso. Só vai faltar um mamulengo nessa prosa, um dos meus grandes
companheiros de causos, mas não se preocupe que a gente se encontra por
aí.
Ser um contador de histórias é ser conhecedor do imaginário
popular, mergulhar no baú do tempo, em busca das mais fantásticas
narrativas para encantar espectadores de todas as idades. E minha
experiência me levou a perceber isso, pois já conto histórias há muito
tempo.
Creio que, como grande parte das pessoas, comecei a ouvir histórias
contadas pela minha mãe, que narrava as passagens bíblicas para mim e
minhas irmãs quase todas as noites. Aquilo muito nos encantava. Era
costume também ouvir histórias na igreja onde frequentávamos as escolas
dominicais e os cultos à noite. Desde pequeno já escutava as famosas
fábulas de La Fontaine, e meu avô materno, Odilon Teotônio Costa, me
contava histórias populares, quer dizer, “que o povo conta”, e ele sabia
muitas. Eram histórias fantásticas, de heróis e anti-heróis, de príncipes e
princesas, de assombrações, e por aí vai. Creio que muitas delas eram
tiradas da literatura de cordel, que eu conheço também desde criança.
O imaginário popular é de uma riqueza extraordinária, e o do nosso
país, então, creio que seja um dos mais ricos, especialmente pela
diversidade cultural. Encantado por esse imaginário que estudo e conheço
há muito tempo, através das minhas andanças, e por estar tête-à-tête com o
povo, é que nele baseio toda a minha contação de histórias – inclusive meu
primeiro livro, Mitos e lendas brasileiros em prosa e verso2, como também o
que ainda estou escrevendo, Histórias que o povo conta.
Comecei a contar histórias com meu avô materno, com quem
aprendi não só isso como muitas outras coisas. Com ele, andava no mato
vivenciando a natureza e aprendendo a conhecer as plantas, os pássaros e
os outros animais do agreste e da caatinga. Com ele, aprendi ética e moral
– a moral daquela época, que era diferente da de hoje.
O contador de histórias é um brincante, um folgazão que deve usar
inúmeros artifícios para executar essa tarefa tão sublime perante as mais
variadas plateias. Alguns dos nossos folguedos são verdadeiros celeiros de
contação e de contadores de histórias. Os brincantes do bumba meu boi,
cavalo-marinho, nau catarineta e do teatro de mamulengo, por exemplo,
são contadores de muitas histórias. As fontes de muitos desses folguedos
são as histórias que passam de geração para geração através das
narrativas, mas também através da própria brincadeira dramática, que
não deixa de ser uma narrativa. As histórias caminham com seus
contadores nas casas de farinha, nas esquinas, nas brechas onde estiverem
um ouvinte e um narrador.
Muitos são os exemplos de que a cultura popular é uma fonte
riquíssima. Eles estão em todas as artes, mas quero mencionar um dos
exemplos da literatura para ilustrar este texto: Ariano Suassuna. Em um
texto publicado no Recife em 1970, Ariano dizia:

[…] com o Auto da Compadecida, […] realizei pela primeira vez uma experiência
satisfatória de transpor para o Teatro os mitos, o espírito e os personagens
dos folhetos e romances, aos quais se devem sempre associar seus irmãos
gêmeos, os espetáculos teatrais nordestinos, principalmente o Bumba meu
boi e o Mamulengo”3.

Ainda nesse texto, ele completa dizendo que há uma interpenetração


mútua entre a literatura de cordel e vários folguedos.
O bumba meu boi do Maranhão traz em seu enredo a célebre
história de Catirina, que quer, de qualquer jeito, comer a língua do boi
preferido do fazendeiro, por conta do seu desejo de mulher grávida. Essa
história, muito conhecida e divulgada, é recontada por grupos de teatro,
pela literatura de cordel e por diversos pequenos grupos que se formam
Brasil afora.
Já o bumba meu boi de Pernambuco é representado de maneira
diferente. Seu enredo se constitui de pequenas passagens ou casos que o
barraqueiro vai soltando para serem resolvidos pelo Capitão, que é o líder
do brinquedo e trabalha acompanhado por seus dois ajudantes, Mateus e
Bastião. Trata-se de pequenas cenas, histórias dentro de uma história
maior, que consiste na morte e na ressurreição do boi, personagem
principal do folguedo. Segue em versos minha definação de boi:

BUMBA MEU BOI


Um bumba meu boi brincando
À frente seu Capitão
Com Mateus e Bastião
E o povo participando
É festa de poesia
Onde reina a alegria
Na alma de seus brincantes
A noite fica menina
Com a graça de Catirina
E o riso dos militantes.
É folguedo brasileiro
Do norte ao sul do país
Onde a gente bem feliz
Brinca no nosso terreiro
Pernambuco, Maranhão
Em Floripa o de mamão
E em quase todo o Brasil
O bumba brinca dançando
Contando história e cantando
Encantos de um céu de anil.

O cavalo-marinho segue também essa mesma linha de


representação, com os participantes trocando uma peça de roupa ou
máscaras para representar as figuras que chegam, com seus problemas e
suas histórias. É praticamente igual ao bumba meu boi. Seguem
transcritos alguns trechos da pesquisa, realizada pela professora Maria
Ângela de Faria Grillo, sobre o cavalo-marinho que demonstram como os
folguedos populares trabalham com a contação de histórias:

O Cavalo-Marinho é um folguedo típico da Zona da Mata Setentrional de


Pernambuco e Agreste da Paraíba. […]
[…] A história é contada através de diálogo de forma poética, por meio de
toadas e loas, sendo o enredo conduzido pelas figuras. […]
[…] Depois de o banco se instalar, a toada de Abertura ou de Alevante é
cantada e tocada dando boa noite a todos. É hora de o Capitão se posicionar
ao lado do banco. Em seguida o Mergulhão inicia, e a partir disso vem a
sequência de entradas e saídas de figuras. O espaço já está demarcado pela
roda que se forma a partir do posicionamento do banco. As figuras entram
sempre no “pé da roda”, do lado oposto ao banco, portanto de frente ao
Capitão. Elas chegam ao som de uma toada própria fazendo seu trupé e saem
ao som de outra toada que serve para indicar o fim de sua apresentação.
Dentro da roda se relacionam com o Capitão, com Mateus e Bastião, que
fazem parte da brincadeira do começo ao fim. Durante essas relações travam-
se diálogos, muitas vezes permeados por loas. Entre cada etapa da
brincadeira, dada pelo contato entre Capitão, Mateus e Bastião e a figura ou as
figuras – pois há cenas em que suas histórias estão encadeadas com duas ou mais delas
–, o banco toca as toadas soltas, momento em que público e brincantes,
principalmente os galantes, batem trupés variados. São como intervalos entre
as etapas […] o episódio do Soldado que aparece no brinquedo é contado como
fato ocorrido no passado, na época de formação do Cavalo-Marinho […]4.

Com a Nau Catarineta ocorre o mesmo. As narrativas sobre as


viagens aventureiras de intrépidos marujos são histórias contadas por essa
bela dança dramática que, segundo o escritor português Almeida Garrett,
tem sua origem na tumultuada viagem da nau Santo Antônio, que em 1565
transportou Jorge de Albuquerque Coelho de Olinda para Lisboa. É um
auto no qual, dentro de um grande enredo, são contados vários episódios
menores, quer dizer, temos novamente os brincantes contando histórias.
Segue mais uma estrofe onde faço uma homenagem a nossa chegança.

NAU CATARINETA
Viagens de marinheiros
Pelejas de navegantes
Dança a Nau Catarineta
E seus marujos brincantes
Alegrando nosso povo
Com casos hilariantes.
É Chegança, é Marujada
Folguedo pra se dançar
É Barca na Paraíba
Pra muita gente encantar
Que conta histórias fantásticas
Vividas em alto-mar.
Um dos folguedos mais fantásticos é o teatro de mamulengo, que
também é feito por meio de passagens, ou seja, pequenas cenas que
narram, entre outras, histórias relativas ao comportamento humano, com
muita graça, ironia, picardia, pancadaria e música, que enfeita e alegra
ainda mais todo o brinquedo.

TEATRO DE MAMULENGO
Um folguedo dos mais fenomenais
Que é teatro, é dança e improviso
Onde o mestre trabalha várias horas
Cavucando as veredas do juízo
Pra tirar das entranhas das pessoas
Sua paga maior que é o riso
Seu Mané Pacaru, dona Quitéria
Com Simão, Marieta e muito dengo
Por detrás da empanada a bonecada
E o artista que usa mãos e quengo
Pra fazer a plateia delirar
No teatro feliz do mamulengo

Vou contar, em síntese, três das inúmeras histórias do teatro de


mamulengo para ilustrar este escrito. A primeira é “As bravatas do
professor Tiridá na usina do coronel de Javunda”, do mamulengueiro
pernambucano Januário de Oliveira, o mestre Ginu.

O coronel de Javunda é um homem mau, carrasco. Um déspota que governa


sua fazenda com mão de ferro maltratando e explorando todos os
trabalhadores, sem distinção. Ele precisa fazer uma viagem e deixa seu
capataz, Simão de Lima Condessa, administrando a propriedade em seu
lugar. Suas ordens são para que Simão não perdoe ninguém e aja da mesma
forma que ele, e quem não obedecer seja colocado para fora das suas terras
sem direito a nada. Acontece que Simão, que também é oprimido pelo patrão,
quando se vê de posse do poder, age muito pior do que o coronel na tentativa
de vingança contra seus próprios pares.
Chega então à fazenda o professor Tiridá procurando emprego, e Simão
o recebe com quatro pedras na mão e o manda pegar uma enxada e brocar o
mato. Tiridá, que não é chegado ao trabalho pesado, começa a fazer um monte
de perguntas, o que deixa Simão muito irritado, querendo dar-lhe uma surra.
Tiridá revida as ameaças e Simão diz que, se ele tiver a sorte de passar da
porteira da fazenda antes que ele lhe pegue, estará livre, mas, se não
conseguir, vai levar uma pisa que vai ver o começo, mas não vai ver o fim. Aí,
Simão dá-lhe uma carreira, mas ele consegue passar a porteira da fazenda
antes que Simão o pegue, escapando da pisa.
O coronel volta da viagem querendo saber das novidades, e Simão conta
que botou uns moradores para fora, e que eles deixaram suas roças para o
coronel. Mas o coronel soube que Tiridá tinha perturbado a fazenda e Simão
não tinha lhe dado uma boa pisa. Simão dá um monte de desculpas, porém o
coronel não aceita e o bota pra fora debaixo do cacete.
Simão foge para o Recife e procura emprego em uma fábrica. É
admitido e, quando chega ao setor de trabalho, encontra como chefe
exatamente o professor Tiridá, que o reconhece imediatamente. Simão tenta
disfarçar de toda maneira, mas Tiridá não perdoa e se vinga, dando uma pisa
em Simão, que foge na carreira em situação semelhante à de Tiridá.

A segunda história é a abertura apresentada no mamulengo do


mestre Zé de Vina, de Lagoa de Itaenga (PE), o mestre mais importante do
mamulengo tradicional. É uma passagem muito engraçada.

Seu Mané Pacaru, grande fazendeiro da região, vai viajar e precisa de um


empregado para ficar tomando conta da fazenda e da sua mulher, que é muito
fogosa. Aparece Simão de Lima Condessa, que é personagem fixo do
mamulengo mais tradicional, e pleiteia o tal emprego. O fazendeiro faz um
monte de perguntas; Simão responde da sua maneira, o que torna o diálogo
bem pitoresco, e, por fim, consegue o emprego com a recomendação do
fazendeiro para cuidar da sua esposa e não promover nenhuma dança
durante a sua ausência. Quando ele sai aparece a patroa, toda bonitona e
doida pra dançar. Era só o que Simão queria – agarra a patroa e arrocha ela na
dança. Quando estão no bem-bom chega o patrão e diz que vai botar Simão
pra fora e a mulher também, mas o negócio muda de figura quando ela diz
que ele não vai fazer nada disso porque não tem nada e nem é dono de nada,
pois tudo pertence a ela, que recebeu de herança do pai e é a dona de tudo. Aí,
na verdade, quem sai é seu Mané, e dona Quitéria fica na dança com Simão.
Depois ele volta pedindo perdão e ela o aceita sob a condição de nunca mais
ele se intrometer na sua vida. Ele aceita e termina a história.

A terceira história é “As aventuras de João Doido nas terras de Zé


Ninguém”, de minha autoria.

A história começa com João Setembrino, mais conhecido como João Doido,
recebendo alta do manicômio em que esteve internado por vários anos. O Dr.
Damião chama a enfermeira e pergunta se o paciente já está pronto para o
teste final que o fará receber a liberdade. Ela diz que sim e manda João Doido
subir. Ele sobe todo envergonhado e o doutor faz umas perguntas
enigmáticas, por exemplo: “Seu João, um pato vai subindo uma ladeira, ele
bota um ovo, o ovo desce ou sobe?”. João Doido pede ajuda à plateia e
responde que pato não bota ovo, mas sim a pata. Dr. Damião faz outras
perguntas e por fim concede alta, que deixa o paciente muito feliz.
João Doido sai eufórico do hospital e vai procurar um trabalho, pois
precisa ganhar dinheiro para viajar até a casa dos pais. Aparece um turco
procurando uma pessoa destemida para desenterrar uma botija ganha em
sonho, mas que ele não tem coragem de arrancar, pois está dentro do
cemitério e o serviço tem de ser feito à meia-noite em ponto. Ele promete
ainda que dará metade do tesouro para o corajoso que o ajudar na sinistra
missão. O sanfoneiro chama João e diz que arranjou um trabalho meio
perigoso para ele. João Doido conversa com o turco e aceita a empreitada sob a
promessa de ganhar metade do conteúdo da botija. Quando é meia-noite ele
vai ao cemitério e começa a cavar no local indicado pelo gringo. Durante a
cavação ele vai tirando coisas, e dentre elas ele arranca a morte e uma figura
horrenda de duas caras. Livra-se das duas à base de cacetadas e por fim
encontra o tesouro esperado. Quando procura o turco para entregar a
mercadoria e receber a sua parte, fica decepcionado, pois o “patrão” diz que
não vai dividir nada com ele. João Doido, com muita raiva, pede ajuda à
plateia, que fica ao seu lado contra o gringo mentiroso. O farsante reclama,
mas a vontade do público prevalece, e ele deixa o recinto raivoso e
praguejando contra todos.
Nesse momento tem início a grande saga de João Setembrino em
direção à casa dos pais, dona Mariquinha e seu Odilon. Até ele chegar lá, passa
por muitas situações problemáticas e vai resolvendo algumas com parte de
sua fortuna, ajudando necessitados e melhorando a vida de muitos. Por fim,
chega à casa desejada, encontra a família, uma antiga namorada, se casa e vive
muito feliz.
Essas histórias são parte de um universo riquíssimo, de narrativas
maravilhosas do imaginário popular que estão não só no teatro, mas na
literatura de cordel, na música e, principalmente, na boca do povo.
A literatura de cordel está repleta de histórias de príncipes e princesas,
de heróis e anti-heróis, de cavaleiros lutando com dragões para salvar
donzelas presas em torres inacessíveis, de monstros e assombrações, e
diversos outros assuntos. São mais de 90 mil títulos, a maioria histórias
fantásticas, hilárias, lúdicas.
A música também conta histórias: vejamos, por exemplo, “Geni e o
zepelim”, de Chico Buarque de Holanda, que conta a história de uma
personagem que se prostitui desde criança e por isso é odiada pela
comunidade, que, por ironia do destino, é salva por ela da total destruição.
Outro exemplo é “Serafim e seus filhos”, de Ruy Maurity e José Jorge, que
conta a história de uma família que vive sob tragédias, incluindo a morte dos
irmãos por Lourenço, o mais novo, que vira lobisomem. Além de tudo, o pai
ainda morre e reencarna sete vezes, até abrir caminho para o paraíso.
Mais uma história bonita e triste é contada pela música “Amanhã eu
vou”, composta em 1951 por Beduíno e Luiz Gonzaga, que narra a história de
Rosabela, uma moça que é encantada pela carimbamba, uma ave misteriosa
que cantava durante a noite entre as taboas de um lago mal-assombrado.
Rosabela escutou seu canto inebriante e se afogou nas águas escuras do lago,
desaparecendo para sempre – essa é uma das histórias que preparei para o
novo livro, Histórias que o povo conta.
Sobre histórias contadas por meio da música, gostaria também de falar
das modas de viola cantadas pelas duplas caipiras do Sudeste, do Sul e do
Centro-Oeste do Brasil, as canções de vaqueiros cantadas pelas duplas de
aboiadores e as de amor interpretadas pelos violeiros repentistas nordestinos.
Essas canções, na sua maior parte, narram histórias emocionantes como
“Cabocla Tereza”, “Pingo d’água” e “História de um prego”, de João Pacífico;
“Menino da porteira”, de Teddy Vieira e Luizinho, da dupla Luizinho e
Limeira; “Chico Mineiro”, de Tonico e Francisco Ribeiro; e tantas mais que
preencheriam um grosso volume. Já entre as canções de vaqueiros
encontramos várias histórias, como “Ela não me quis” e “O velho Jacinto
Machado”, de Vavá Machado e Marcolino, dupla de aboiadores de Garanhuns
(PE); e “Pranto e morte de um vaqueiro”, de Galego Aboiador. Os violeiros
repentistas interpretam verdadeiras joias musicais em forma de histórias, e
aqui cito algumas: “O velhinho do roçado”, de Expedito Sobrinho; “A canção
do lenço”, de Severino Pelado; e “Nas portas dos cabarés”, do Cego Oliveira.
Para fechar este parágrafo, queria citar a triste e emocionante narrativa de
Patativa do Assaré sobre o êxodo rural do nordestino para São Paulo: “A triste
partida” é uma obra-prima imortalizada pelo rei do baião Luiz Gonzaga.
Os poetas populares também são mestres na arte de contar histórias por
meio de seus belos, lúdicos e engraçados poemas, como “A bala de ouro”, de
Téo Azevedo; “Eu e Vicença” ou “Me enganei com minha noiva”, de Luiz
Campos; “O abilolado”, de Chico Pedrosa; “Matuto no fitibó”, de José
Laurentino; “Festa de inleição”, de Pompílio Diniz, e muitos mais. Reproduzo
aqui o poema “Matuto no fitibó”, do poeta paraibano José Laurentino, que
conta o caso de um caipira que participou de um jogo de futebol e se deu
muito mal. Escolhi esse texto pela sua linguagem matuta, pela narrativa
engraçada e pelo tema, pois o futebol é um assunto sempre em plena
evidência e uma das maiores paixões do nosso povo5.

“MATUTO NO FITIBÓ”6
Hoje o pessoá do mato
Já tá se acivilizando
Já tem rapaz istudando
Pras bandas da Capitá
Já tem moça qui namora
Cum us imbigo de fora
Eticetra coisa e tá.

Mai, essas coisa eu istranho


Mim dano e num acompanho
A tar civilização
E nem qui a morte me mate
Eu nunca fui numa buate
E nunca vi televisão.

E esse tar de cinema


Qui eu num sei nem cuma é
Si é home, si é mulé
Si vem da lua ou do só
Um triato eu nunca vi
E tombém nunca assisti
Um jogo de fitibó.

É isso mermo patrão


Eu nasci pra ser matuto
Vivê qui nem bicho bruto
Dando di cumê ao gado
Eu só sei mermo qui sô gente
Pruquê um véi meu parente
Disse que eu sô batizado.

Mas, por arte dos diabo


Um fi de cumpade Xico
O fazendeiro mai rico
Daquele meu arrebó
Cum priguiça de istudá
Inventaro de inventá
Um jogo de fitibó.

E nu paito da fazenda
Mandaro butá duas barra
E eu fui ispiá a farra
Do lote de vagabundo
Que quando vi, afroxei
Acredite qui eu achei
A coisa mió do mundo?!

Eu, caboclo lazarino


Com dois metros de artura
Os braços dessa grossura
Medo pra mim é sulipa
De jogar tive um parpite
Aceitei logo um convite
Pro mode jogar de quipa.

Me deram um carção listrado


E um par de joeieira
Também um par de chuteira
E uma camisa de gola
Que eu gritei: – arra diabo!!!
Se eu já peguei touro brabo
E derrubei pelo rabo
Pruquê num pego uma bola?

Aí o jogo começou
Com um juiz bom e honesto
E por siná era Hernesto
O nome do apitadô
Que, metido a justiceiro
Pra mode o jogo pará
Bastava a gente chutá
A cara do companheiro.

Bola vai e bola vem…


Um tal de Zé Paraíba
Inventou de dá um driba
No fí de Xica brejeira
Esse deu-lhe uma rasteira
Que o pobre do matuto
Passou uns cinco minuto
Imbolando na puêra

O juiz mandou chutar


Uma bola contra eu
Pruquê meu fubeque deu
Um chute no Honorato
Aí o juiz errou!!!
Se o fubeque que chutou
Ele que pagasse o pato

Mas afiná, meu patrão


Não gosto de confusão
Mandei o cabra chutar
E fiquei isperando o choque.
Tanta força a bola vinha!
Vinha tão pequenininha!

Feito bola de badoque


A danada escorregou
Passou pelas minhas mãos
Deslizou pelos meus dedos
Bateu numa região
Foi batendo e eu caindo
Me espuliando no chão

O povo batero em rima


Me déro um chá de jalapa
Uns três copos de garapa
E um chá de quixabeira
Quando eu tive uma miora
Joguei a chuteira fora
E saí batendo a pueira

Daquele dia pra cá


Nem mode ganhar dinheiro
Num jogo mais de golêro
Nem cum chuva nem cum só
Nem aqui nem no deserto
Nunca mais passo nem perto
De um jogo de fitibó…

Quantas histórias infantis são contadas por meio da música e


quantos brinquedos populares contam histórias a partir de seus enredos
teatrais e musicais. Seguem outros versos meus sobre o pastoril, que é uma
representação do drama hierático do nascimento de Jesus e um belo auto
de Natal, com bailados e cânticos próprios, predominante nos estados de
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Alagoas.

PASTORIL
Uma dança bem bonita
Toda enfeitada de fita
Que veste cetim e chita
Com graciosas mocinhas
Que dançam com todo amor
Cânticos de paz e louvor
Pra Jesus o Salvador
As queridas pastorinhas.

Esse é o Pastoril
Encarnado, azul anil
Folguedo desse Brasil
Belo, rico, artesanal
Das pastoras atraentes
Que encantam todas as gentes
Brincando nas noites quentes
Do nosso alegre Natal.

Contar histórias é, antes de tudo, um ato individual. Cada pessoa


tem sua própria história de vida, que consiste em uma decorrência de fatos
que formam uma história maior, composta de inúmeras passagens
relacionadas a outras pessoas, lugares, fantasias… O que são as biografias?
Histórias individuais e suas relações com os mais variados universos;
umas contadas pelos próprios atores, outras contadas por terceiros, que
esmiúçam a vida das personagens, apresentando-as de maneira literária
para o conhecimento de muitos.
Nossos folguedos e seus brincantes são mágicos contadores de
histórias que encantam as plateias com o colorido de suas vestimentas,
com o som melodioso de seus intrumentos e a beleza e a poesia de suas
músicas. Também com suas ações teatrais e, acima de tudo, com toda a
alegria contagiante de suas apresentações, que levam horas a dialogar com
o povo, transformando cada função em um momento lúdico e de rara
beleza. Como dizia o dramaturgo Hermilo Borba Fiho, “um verdadeiro ato
poético”.

REFLETINDO SOBRE ALGUMAS EXPERIÊNCIAS DE BRINCANTE

Nessa lida de brincante de mamulengo e contador de histórias,


tenho muitas coisas para dizer sobre a vivência experimental da relação
com as mais distintas plateias. Desde criancinhas da mais tenra idade até
adultos de idade bem avançada, moradores das comunidades de baixa
renda e abastados, em escolas, igrejas, empresas, teatros, ruas e praças e
agremiações de todo tipo, tenho levado à cena minha arte para o
encantamento dos espectadores de todos os matizes.
Conto histórias profissionalmente já faz muitos anos, sempre
trabalhando com temas relacionados à nossa cultura popular, como
lendas, mitos, assombrações e casos de personagens do inconsciente
coletivo. Busco sempre ouvir o povo, resgatar os fatos e as fantasias,
trabalhar esse conteúdo dando-lhe forma literária para, depois de
transformado em arte, fazê-lo retornar à mesma fonte de onde saiu.
É tão grande o campo de observação da cultura popular que se torna
uma fonte inesgotável de rico material para quem quiser colher frutos para
sua retroalimentação artístico-cultural. Nas palavras de Ariano Suassuna,
“não é menos verdade que, em mim, a imaginação criadora sente
verdadeira necessidade de trabalhar com raízes fincadas nessa inesgotável
e rica fonte brasileira que é o Romanceiro Popular Nordestino”7.
Em minha experiência, sempre observei que as pessoas gostam de
histórias, simplesmente. Sejam as das Mil e uma noites contadas por
Sherazade, sejam as fabulosas fábulas de Esopo ou de Jean de La Fontaine,
sejam os contos dos Irmãos Grimm ou as presepadas de João Grilo e Pedro
Malasartes narradas na literatura de cordel. História é história.
Boa ou ruim, alegre ou triste, trágica ou cômica, de herói ou de
bandido, com música ou sem música, contada por meio da oralidade ou da
escrita, em prosa ou em verso, no teatro, na rua ou na cama na hora de
dormir, todo mundo gosta de ouvir e curtir a interessante narrativa de
uma história. Se isso ocorrer de forma poética, finca-se um laço profundo
de experiência.
Minha preferência pela cultura popular brasileira se deve ao contato
que tive com ela desde pequeno, convivendo diretamente com as
manifestações culturais do nosso povo, o que muito me ajudou na
formação da identidade cultural que agora tenho. A literatura de cordel, o
bumba meu boi, o pastoril, o reisado, o guerreiro, o maracatu, o frevo, a
ciranda, os caboclinhos, os papangus, o mamulengo, a nau catarineta, a
cavalhada, a congada e muitos outros folguedos e danças dessa
extraodinária cultura continuam alimentando a minha criação e a
alimentarão sempre, pois, como já disse antes, é fonte inesgotável de
inspiração e matéria-prima fértil para uma obra de qualidade e me
possibilitou várias andanças como artista.
Destaco, entre as experiências mais interessantes em minha
carreira, uma série de programas, intitulados Lá vem história, que gravei
para a TV Cultura em 1989. São vinte lendas brasileiras gravadas em estúdio
com voz e violão e em duas formas literárias: prosa e verso. Também
participei algumas vezes do Viola, minha viola, com Inezita Barroso, e de
um especial de contação de histórias que a emissora promoveu. Os
programas ficaram cerca de dois anos no ar com grande audiência,
passando depois para a TV Rá Tim Bum!, e até o final de 2012 ainda eram
transmitidos.
Sei que teria ainda muito mais a dizer, pois foram essas experiências
que me fizeram crescer, amadurecer e continuar a grande e incrível saga
de artista popular e contador de histórias.

CONSIDERAÇÕES
Contar histórias é um costume milenar, e grande parte do
conhecimento humano tem sido transmitida de geração a geração pelas
narrativas orais e escritas. Os fatos históricos, ou seja, os acontecimentos
que marcam e modificam o comportamento da humanidade, são
estudados e se incorporam à história como ciência. Já as histórias
fantásticas e imaginárias, criadas por uma pessoa ou pelo inconsciente
coletivo, fazem parte do acervo da arte e estão presentes nas culturas de
todos os povos, contribuindo também com mudanças de comportamento
de indivíduos e grupos sociais.
Lembro muito bem que, quando era menino lá em Recife, as pessoas
tinham medo de sair de casa nas noites de lua cheia por causa do
lobisomem. Vilarejos inteiros fechavam as portas por esse mesmo motivo.
Conheci também muita gente que não entrava no mato para fazer
qualquer coisa sem antes colocar um pedaço de fumo em cima de uma
pedra para agradar a Comadre Florzinha, que é a Caipora lá em
Pernambuco. São contos, fábulas e lendas que estão nos livros e na boca do
povo, prontos para serem lidos, narrados, ouvidos e vividos. Histórias de
bruxas, de fadas, de personagens exóticas e fantásticas, que encantam,
assombram e fazem as pessoas viverem o mundo imaginário da fantasia.
Contar histórias é criar e alimentar a fantasia dentro do imaginário
do ser individual e do ser coletivo, abrangendo o consciente e o
inconsciente em todos os graus de intelectualidade, em todas as idades,
em todos os povos e culturas. É transmitir saberes, conceitos, ilusões,
realidades e tudo mais que se possa imaginar para formar e transformar o
comportamento do ator social.
O contador de histórias sempre teve grande importância no
desenvolvimento do pensamento humano, tanto por meio da oralidade da
escrita como por todas as formas de manifestação do pensamento, pois as
histórias estão na boca das pessoas, dentro dos livros, de fato, mas estão
também em suas danças-narrativas, seus folguedos, suas brincadeiras,
suas manifestações populares, sua cultura.
Hoje existem vários tipos de contadores de histórias, e o papel de
cada um varia significativamente. Alguns se especializam na área da
educação, seja formal ou informal, enfantizando as questões
metodológicas e pedagógicas, com o objetivo de transmitir determinados
conteúdos para que essa prática possa auxiliar o processo educacional.
O contador de histórias de hoje não é mais somente o avô, a avó, o
pai, a mãe ou qualquer outro familiar. Até mesmo pela dinâmica da vida
contemporânea, é também o professor, o mediador de leitura, o ator etc.
Geralmente, aqueles que se profissionalizam recorrem a cursos livres, que
são oferecidos por outros contadores atuantes e até por instituições
culturais ou de ensino, e não são mais ou menos importantes do que os
contadores populares, conhecedores de suas próprias metodologias e
recursos. Todos são guardiães de sua sabedoria passada de mão em mão, e
muitas vezes de olho a olho.
Hoje são contadas histórias para públicos infantis, adultos e mistos,
e os contadores profissionais são contratados pelas mais diversas
agremiações para apresentar suas narrativas de várias formas, com os
mais diversos conteúdos, usando a música, a dança e os elementos
plásticos como auxiliares do processo, a fim de que as contações se tornem
espetáculos que encantem, deveras, as plateias. Há um mercado para essa
prática, mas não podemos comparar esse contador de histórias com os
contadores da cultura popular.
Não é difícil relacionar os folguedos com o ato de contar histórias,
pois o folguedo em si é pura narrativa dramatizada. É só observar as
narrativas dos gestos dos brincantes, das suas indumentárias, dos seus
adereços, expressões, do ritmo dos corpos e dos instrumentos, de todos os
elementos visuais e sonoros etc.; tudo está cheio de narrativas. E também
das narrativas de vida de cada brincante, que estão entrelaçadas às
narrativas das vidas das personagens representadas, vividas.
Contar histórias é falar com o corpo todo, falar de amor, ódio,
alegria, tristeza, medo, angústia, solidão, ternura, carinho e todos os
sentimentos inerentes ao ser humano, que sonha para viver e vive para
sonhar; dentro de um mundo real e imaginário, em que a fantasia se
mistura com a realidade, dando ao contador e à plateia a oportunidade de
um momento mágico, quando o pensamento voa e a imaginação se
estabelece como realidade dentro de um fragmento de tempo que nos
torna, simplesmente, felizes: BRINCANTES.
1 Essas expressões são complementares: onde tem folguedo tem brincante.
Brincante é aquele que brinca, na cultura popular, e o folguedo é uma
brincadeira-dança dramática popular. No Norte e no Nordeste é grande a
quantidade de folguedos, que também se estendem por várias partes do
Brasil, mas com outras denominações. De modo geral, são uma representação
dramática popular de cunho lúdico, mas também religioso, ritualístico etc.
2 Valdeck de Garanhuns, Mitos e lendas brasileiros em prosa e verso, São Paulo:
Moderna, 2011.
3 O texto de Ariano Suassuna encontra-se neste livro, nas páginas 48-56 (a
citação remete especificamente à página 50 desta obra). Ele também está
presente na publicação Almanaque Armorial, Rio de Janeiro: José Olympio, 2008
(nesse caso, a citação se refere à p. 177).
4 Maria Ângela de Faria Grillo, “Cavalo-marinho: as representações do povo
através do folguedo pernambucano”, Anais do XXVI Simpósio Nacional de
História – Anpuh, São Paulo, 2011.
5 Sobre esse assunto muito mais poderia falar e exemplificar, mas acresceria
demasiadamente este escrito, por isso sugiro ao leitor que pesquise na
internet para encontrar os textos, os discos e vários vídeos que demonstram
toda essa riqueza.
6 Por se tratar de um registro oral, o poema apresenta variações quanto à grafia
e à existência ou não de alguns versos de acordo com a fonte. (N.E.)
7 Ariano Suassuna, op. cit., p. 188.
Causos e cuentos da fronteira sul do Brasil
LUCIANA HARTMANN

PRA COMEÇO DE CONVERSA

“Ah, não… Aqui não tem nenhum contador…”. Essa talvez tenha sido a
resposta que mais escutei desde que iniciei minha primeira pesquisa
etnográfica sobre os contadores de causos da fronteira entre o Brasil, a
Argentina e o Uruguai, ainda em 1997. Fui surpreendida com as veementes
negativas, da parte de todos que me recebiam, de que ali houvesse algum
contador. Embora todos os contadores com os quais tive contato, inclusive
os reconhecidos como tal, hesitassem em assumir ou negassem, em um
primeiro momento, sua habilidade – “eu tô com a cabeça muito ruim”, “eu
não sei nada…” –, invariavelmente conheciam um grande contador,
normalmente alguma pessoa mais velha que morava nas proximidades. E
não demorei muito para compreender que, logo após sugerirem, “Ah! O
meu pai é que ia te contar uma história boa…”, continuavam:

Uma vez, o meu pai estava voltando da casa de minha mãe, quando eles ainda eram
noivos. Era uma noite de lua clara como um dia, e, de repente, quando ia passar numa
picada, o cavalo negaceou e não quis ir adiante. Ele então viu, de longe, aquele
cachorrão preto, com os olhos de fogo. Era um lobisomem, guria! (seu Romão, 88
anos, Uruguaiana – RS)

Compreendi assim, a partir das reiteradas respostas da mesma


natureza, que as pessoas que sinalizavam com uma negação já estavam me
contando as primeiras histórias. A partir do “eu não sei contar, mas fulano
sabe”, diversas narrativas aconteciam. Isso não apenas fez com que eu
compreendesse a negação como uma estratégia de performance1 como
também abriu meu caminho para a extensa rede de contadores de causos da
fronteira. O fato de normalmente chegar a fazendas2, bolichos (armazéns) e
casas dos contadores com indicações fornecidas por outros contadores
facilitou muito a realização da pesquisa e permitiu que eu compreendesse
as tradições orais da região como vivas, dinâmicas, interligadas, enfim,
como um fenômeno social que tinha sentido.
Dessa forma, embora seu Antônio, de Uruguaiana (RS), dissesse que
não era contador, acabava contando muitos causos a partir da referência a
outro contador: “Tem uma que o Antero conta…”. Ao procurar seu Antero,
em outra fazenda, este me dizia:

A minha cabeça já tá fraca… Mas um que tem um poder bárbaro é um irmão meu, que é
meio um tipo Pedro Malasartes. Mas ele conta um que eu vou te contar: diz que o cara
tava caçando com aquelas armas de… soltar pelo cano, né. Ele limpou a arma com uma
vara de marmelo e se esqueceu da vara de marmelo dentro da arma. E um dia tava
caçando, deu um tiro num veado, com aquela vareta, e o veado se foi. Um dia tava…
enxergou um marmeleiro carregado no mato e ele subiu pra comer marmelo. Quando
viu, o marmeleiro saiu correndo com ele. O marmeleiro tinha brotado em cima do
veado! (seu Antero, Uruguaiana – RS)

O universo narrativo dessa região de fronteira brasileira, na qual os


causos estão presentes em boa parte das conversas cotidianas – embora
nem sempre formalmente anunciados –, é o tema deste artigo. Nas
páginas que seguem farei o difícil exercício de sintetizar os dados
provenientes de quinze anos de pesquisa na região. Espero que minhas
escolhas resultem em uma narrativa coerente para o(a) leitor(a), porque eu
não sei contar, mas uma vez me contaram…

UMA CULTURA DA ORALIDADE

A formação social da fronteira sul brasileira está majoritariamente


calcada nas estâncias ou fazendas, e estas foram e são até hoje, a despeito
de todas as transformações, espaços onde a oralidade domina todos os
aspectos da vida cotidiana. Para o historiador Dante de Laytano3, “o falar
também se abrigou de forma típica na estância”, dando origem às diversas
formas narrativas utilizadas na região. Atualmente, apesar de grande parte
dos moradores da zona rural ser alfabetizada, com exceção de alguns
idosos e de uma ou outra família, a escrita ainda tem pouca inserção nesse
meio. A maior parte das informações circula de boca em boca, e os
contadores de causos, trabalhadores que muitas vezes transitam entre
uma fazenda e outra, têm um papel importante na produção e na
circulação de narrativas. Também as estações de rádio AM são
fundamentais na transmissão das notícias, e os programas que
transmitem avisos são aguardados por todos, tanto no campo como na
cidade, pois informam desde o estado de saúde de um parente
hospitalizado até o cancelamento de um rodeio por causa da chuva. O
estilo peculiar e muitas vezes lacônico dos avisos funciona como mote para
a criação de anedotas4.
Nessa região, a imaginação e a capacidade criativa da população
estão bastante direcionadas para os eventos narrativos. Apesar de a
música, a dança e a trova também terem fortes representantes e
usufruírem de grande popularidade, a narração de causos parece ser a
manifestação comunicativa/artística de maior abrangência, especialmente
devido a aspectos como a lexibilidade de horário e local para sua
ocorrência e, especialmente, creio, pelo fato de que não há um processo
formal de aprendizagem, o que habilita todos a participar, alternando,
inclusive, seus papéis de ouvinte e narrador.

ONDE E QUANDO SE CONTAM CAUSOS?

Apesar de os contadores de causos serem figuras formalmente


reconhecidas na sociedade fronteiriça, como pudemos perceber pela
descrição feita no início do texto, todos podem conhecer e contar histórias.
E, do mesmo modo que contadores e audiência se confundem em muitos
momentos, há poucas limitações reais no estabelecimento do tempo e do
espaço em que os causos podem ser contados – ainda que tradicional ou
emicamente o horário considerado ideal seja à noitinha, depois do
trabalho, e o local ideal seja uma roda em volta do fogo, em um galpão e
com um mate passando de mão em mão. No entanto, durante toda a
pesquisa de campo ouvi causos antes do almoço, no meio da tarde ou tarde
da noite, durante as refeições ou a lida com o gado, em uma barbearia ou
em um ponto de táxi, viajando para uma fazenda ou caminhando na rua,
perto do fogão a lenha ou debaixo de chuva. Com tempos e espaços tão
diferenciados, fui buscar a categorização do contexto das narrativas na
análise do maior ou menor grau de envolvimento de contadores e
audiência durante o evento narrativo. Dessa forma, durante as refeições,
os traslados ou o trabalho, no campo e na cidade, tanto a performance do
contador como a atenção da audiência não estão focalizadas nas
narrativas, mas na execução de outras tarefas, ou seja, ocorrem em um
contexto informal, em que a narrativa participa de um evento outro que
não o dela próprio. De outro lado, os momentos de lazer e de reunião após
o trabalho propiciam o contar e o ouvir histórias e, por esse motivo, exigem
um preparo maior dos contadores, pois também a exigência dos seus
ouvintes será maior. Esse será o contexto formal, no qual as narrativas
comporão um evento específico. Mas existem variantes internas ao próprio
contexto formal, pois tanto horário como local podem ser modificados de
acordo com a composição de seus membros, assim como diferirão os
gêneros das narrativas abordadas. Assim, uma roda com mulheres ou
crianças possivelmente ocorrerá não no galpão, mas em frente à lareira, na
sala de estar ou em volta do fogão a lenha, na cozinha, e pode mesclar
causos de assombração, anedotas e histórias de vida. Já em uma roda
composta exclusivamente de homens, além do chimarrão poderá circular
uma garrafa de cachaça, e, além dos causos “de salão”, é provável que
surjam as famosas anedotas “impróprias”5.
As noções de formalidade e informalidade, bem entendido, devem
ser tratadas aqui como categorias analíticas que permitem uma melhor
compreensão do contexto narrativo em questão. Na prática não há,
necessariamente, distinção precisa entre os diferentes contares.

QUEM SÃO OS CONTADORES?

Os contadores são pessoas que “têm muita vida para contar”, que
“servem pra livro”, que “viveram muita história nesse mundo”, “que têm
queda pra contar”. A categorização dos contadores, porém, não foi
realizada emicamente, ou seja, não foi feita pelos próprios contadores; fui
eu, a pesquisadora, que senti necessidade de realizar uma distinção entre
os tipos de contadores, tanto para entender melhor o universo em questão
como para proporcionar maior compreensão, àqueles que não pertencem a
essa comunidade narrativa, sobre os sujeitos que são legitimados por seus
pares para contar histórias. Foi a partir de extensa análise dos dados
etnográficos que decidi categorizar os contadores de acordo com os
gêneros6 e temáticas das histórias que narravam. Cheguei, assim, a cinco
categorias: as mulheres, que inicialmente eu não via como “contadoras”,
pois não participavam da imagem construída pela literatura e pela história
da região, mas mostravam-se hábeis em performances nas quais contavam
histórias de família, de intimidade e até mesmo “fofocas”, que me
ajudaram a compor um quadro mais completo e sensível da sociedade e da
oralidade local; os idosos, que narram suas histórias de vida, especialmente
relacionadas ao trabalho em suas antigas profissões, como tropeiros,
carreteiros, domadores, esquiladores (tosadores de lã de ovelha) e peões; os
historiadores autodidatas, em geral homens que se dedicaram a estudar e
recontar, de forma oral e escrita, a história e as tradições da região, o que
lhes confere grande legitimidade; os tradicionalistas, especializados em
narrar os feitos épicos do gaúcho em revoluções gloriosas e em peleas
(lutas, brigas) em busca de justiça; e, finalmente, os borrachos (bêbados),
talvez os maiores performers, pois, sob o efeito do álcool, têm liberdade para
agir e falar sobre temas que em outras circunstâncias seriam vetados,
como sobre as estratégias de um grande contrabandista de gado, o
encontro com alguma assombração ou mesmo alguma anedota mais
obscena. Essas categorias, evidentemente, são analíticas e não
excludentes, pois há mulheres idosas, autodidatas tradicionalistas, idosos
borrachos e outras combinações.
É importante assinalar que a análise das características que
identificam quem são os contadores representa uma dificuldade, já que
tanto as razões que levam à sua indicação quanto às suas habilidades são
bastante variadas. As categorias são, portanto, uma tentativa de
sistematizar essas características, agrupando os contadores de acordo com
as semelhanças de suas narrativas e performances e com as motivações da
audiência para indicá-los como seus porta-vozes.

O QUE CONTAM OS CAUSOS?

Os causos podem tratar de “histórias de assustar crianças”, “fatos


acontecidos”, “histórias picantes”, “mortes, peleas e desgraças” e muitos
outros assuntos. As narrativas orais dessa região de fronteira, portanto,
podem ser agrupadas de acordo com as temáticas que abordam. A partir
da classificação inicialmente feita por temáticas, é possível distinguir
gêneros narrativos locais. O conceito de gênero com o qual trabalho, no
entanto, não é aquele tradicionalmente empregado nas classificações das
narrativas literárias ou folclóricas, voltado aos seus aspectos exclusivamente
discursivos. Ao contrário, sigo a linha do antropólogo Richard Bauman7,
que indica que novas perspectivas têm sido orientadas mais em direção à
prática comunicativa do que a tipologias, e o gênero é examinado como
uma moldura para a produção e a interpretação do discurso. Os gêneros,
aqui organizados de acordo com informações dos próprios contadores ou
da audiência, representam um processo dinâmico, estabelecido a partir da
relação dialógica entre produção e recepção.
Utilizo-me também da noção de gênero de Bakhtin8, segundo o qual
cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciado, que serão denominados gêneros do discurso. Cada esfera da
comunicação verbal gera um determinado gênero, relativamente estável
do ponto de vista temático, composicional e estilístico, e, nas unidades
composicionais, são particularmente importantes o tipo de estruturação e
de conclusão de um todo e o tipo de relação entre o locutor e os outros
parceiros da comunicação verbal9.
Dessa forma, cada gênero será aqui definido não somente pelo seu
conteúdo e abordagem, mas pelo seu contexto de uso e pelo estilo da
performance, pois são esses fatores que, tomados conjuntamente,
prepararão a audiência para participar de determinada maneira10,
construindo-se assim, coletivamente, o(s) significado(s) da narrativa.
Na fronteira sul do Brasil, a designação primeira para as narrativas
tradicionais é o causo. Ondina Leal, em pesquisa na mesma região,
observa: “de um ponto de vista êmico, tudo são causos, o que melhor
corresponderia à noção de evento da fala, pois trata-se de uma conjunção de
situação social para que este discurso ocorra, com um determinado estilo
de narrativa e com temáticas específicas”11. A princípio, os causos
realmente recobrem todas as formas narrativas, mas logo podem ser
notadas nuances nesse etnogênero: há contadores que distinguem causos de
fatos acontecidos, aproximando-os da mentira12, anedotas ou, ainda,
modinhas; e mesmo entre o que é considerado um causo há diferenças.
Em minha análise, optei por seguir de perto as designações dadas pela
própria comunidade narrativa para os seus diferentes tipos de narrativas,
como veremos a seguir.

CAUSOS OU CUENTOS

Como foi dito, os causos, também chamados de cuentos (em


espanhol, idioma frequentemente acionado pelos contadores brasileiros
da fronteira sul), servem para designar toda e qualquer narrativa oral
contada na região. Porém, de acordo com o contador ou com o contexto da
performance, surgem pequenas, mas significativas, diferenciações, que
serão explicitadas a seguir. Neste momento é importante salientar que o
causo é, na maior parte das vezes, tratado como um episódio vivenciado
pelo próprio contador ou ouvido por este: “Tem uma história engraçada
que eu conto, que aconteceu comigo… claro, cada vez que eu conto eu
aumento mais um pouco […] Mas no fim, claro… mas assim que conta, né”
(seu Antônio, Uruguaiana – RS). O causo, assim, pode conter o exagero,
situando-se ambiguamente entre o fato real e a mentira, embora não seja
exclusivamente mentira. Embora eu não vá trabalhar aqui com a diferença
entre os causos verídicos e as mentiras, é interessante notar como ela é
assinalada pelos contadores: “Teria sido verdade ou é causo mesmo? Não
houve… não tem nada que ver com verdade? Eu vou começar com um
causo verdadeiro” (seu Zeno, Caçapava do Sul – RS).
Os causos podem ser contados em toda e qualquer ocasião, mas os
contadores costumam preferir a reunião de várias pessoas em rodas de
causos. Dificilmente um causo se refere a uma ocorrência genérica, ou seja,
uma bruxa ou uma história de guerra sempre é assinalada com nomes ou
locais específicos: “Tinha uma parenta minha que era bruxa. A Doralina”
(dona Lina, Barra do Quaraí – RS). E, nessa busca pela autenticidade e pela
verossimilhança, os contadores também não perdem a oportunidade de
confirmar as informações com outros membros da roda, como se percebe
neste diálogo entre seu Solon, dona Eva e a neta dela, Daiane:

Seu Solon – Nas época das revolução a senhora já morava aqui, dona Eva?
Dona Eva – Não, eu não, não… eu não sou desse tempo.
Daiane – Mas e quando o teu avô era matador dos cristão?
Dona Eva – Mas quando o meu avô era matador das pessoa eu era pequenininha…

O contexto de horário e local em que os causos devem ser contados é


definido por algumas regras, mencionadas por diversos contadores: “a
gente não se conta causo de dia, tem que ser perto do fogo e de noite. […]
Quem conta causo de dia a lenda diz que cria rabo, fica rabudo…” (seu
Valter Seixas, Caçapava do Sul – RS). Na prática, entretanto, essas regras
nem sempre vigoram. Para contar causos “tem que ter o dom”, “tem que
ter queda”, e é necessária alguma experiência de vida: “E os guris lá de
casa, bem quietos, eu digo: nunca que eu vi contar causos e não pode, guri
tão novo não conta” (dona Zilda, Caçapava do Sul – RS). Em relação à idade
do contador também há exceções, como esta apontada por um contador,
também jovem: “o cara é bem novo, mas conta causo barbaridade!”.
Trago a seguir alguns exemplos dos principais tipos de causos e
cuentos contados na fronteira, organizados de acordo com os princípios
explicitados acima.

OS SUBGÊNEROS

Causos de assombração
Os causos de assombração, como o próprio nome já diz, narram
algum tipo de contato – e de assombro – com seres sobrenaturais. Podem
incluir histórias de mulher de branco, lobisomem13, bruxa14, mula sem
cabeça e outras aparições sobrenaturais15. Embora muitos desses causos
remetam a estruturas de contos tradicionais e se repitam em diferentes
contextos, durante as performances narrativas eles normalmente são
referidos como experiências reais, ocorridas com o próprio contador ou
contadora, como na narrativa de dona Eládia:

Eu… até eu conheço uma moça que casou com um lobisomem. Se chama Dália. Tu sabe
que ela contou que… Isso toda Livramento sabe. Que ela casou com um rapaz – e já
casou moça velha, trinta anos… Tá. Aí, ela vinha vindo… porque ela trabalhava num
restaurante. Ela vinha vindo do emprego, altas horas da noite… Aí, menina, diz que
aquele cachorro se botou… se botou nela, se botou nela… e ela disse que se viu mal! E,
lembra de uma saia que a gente usava que chamava pele de pêssego? Que era toda
peludinha, te lembra que foi uma fazenda [tecido] muito usada? Bueno, ela disse que
toda a saia dela era daquilo. Tá. Aí ela chegou em casa e disse: “Aquele cachorro me
pegou e me mordeu toda…”. Ele não mordeu, só apertava ela, apertava. Menina de
Deus! A saia chegou em farrapo. Diz que no outro dia de manhã, ela sentada…
conversando com o marido… diz que o marido foi rir assim e toda a felpa do vestido, da
saia, apareceu nos dente dele! Todita as felpa da saia diz que no dente dele! Ela disse:
“Tu mesmo”. Isso faz muitos anos. Ela disse: “Tu que é o lobisomem”. Existe sim, guria,
é verdade isso. Disse: “Tu que é o lobisomem”. E se separou dele pro resto da vida! Não
teve um filho. Mas não se casou também. Eu tenho medo! (dona Eládia, 58 anos,
Santana do Livramento – RS)16

Causos de enterro de dinheiro


Esses causos remetem a tesouros enterrados pelos proprietários
como forma de guardá-los – já que “nesses tempos não existia banco” – ou
na tentativa de escondê-los de ladrões. São histórias sobre panelas de barro
ou ferro enterradas com moedas de ouro, sonhos com indicações do local
onde estava o dinheiro, maldições sobre quem encontra o ouro e não segue
as prescrições etc. Entre as inúmeras e ricas narrativas sobre essa questão,
veremos uma contada por Mesquita:

Na Revolução de 23, 24, o finado Deusinho tinha um… uma… bastante dinheiro em
moeda, e naquele tempo os piquetes provisórios… que na Revolução de 23, 24, o… eles
foram aglutinando pessoas e formando um piquete provisório. E aí o sentinela
avançado do finado Deusinho montou a cavalo e chegou em casa, e disse: “Olha, tá
chegando uma força… um provisório com mais ou menos 150 homens, e o que que eu
faço?”. Aí o finado Deusinho disse pro negro, esse que era o sentinela avançado dele:
“Pega uma pá e uma picareta que nós vamos esconder o que eu tenho de valor em casa.
Cavalo e gado não têm importância que eles levem, mas nós precisamos esconder o meu
dinheiro”. Então ele tinha um canudo de taquara, dizem as más línguas que esse
canudo tinha três palmos de comprimento. Isso dá em torno de 60, 65 centímetros, né.
Cheio de onças de ouro. Uma onça pesa em torno de 22 gramas de ouro. E a onça de
ouro, o material, é ouro de 22 quilates. É bem mais puro do que o 18, né. Diz que o negro
pegou a ferramenta, e o finado Deusinho e o negrinho foram pra um capão de mato, um
capão na frente da propriedade do Nelson, lá onde tinha a fonte, lá em cima. E
enterraram lá. E quando o negro tá saindo do capão de mato o provisório bateu e matou
o negro, e o finado Deusinho não sabe… não ficou sabendo onde é que o negrinho
escondeu o dinheiro, e a força provisória não achou, porque achou que o negro tava
escondendo cavalo. E a família toda procurou… eu fui um que tive no capão de mato
procurando o tal do dinheiro… Claro, não procurei com sonda, procuramos… talvez
vestígios, coisa assim, né? Mas nunca ninguém viu nada. (Mesquita, 50 anos,
Caçapava do Sul – RS)

A peculiaridade desses causos é que eles estimulam de tal forma os


ouvintes que muitas vezes acabam por desencadear novas ações de
procura por tesouros escondidos, as quais, por sua vez, geram novas
narrativas, como podemos acompanhar a seguir, neste contado por Felipe:

Até hoje eu conto, até hoje eu conto! Eu olhei assim um cara de cavalo, na beira da cerca.
Olhei, cheguei a diminuir a marcha do carro pra olhar o cara, olhei, aí, quando eu
olhei, que eu segui o cara, fiquei olhando pelo retrovisor, que eu olhei pra trás, cadê o
cara? Não vi mais. Eu vi quando eu passei, depois quando eu tornei a olhar ele não tava
mais. Pra mim foi uma visão, alguma coisa. Porque o meu avô… o meu avô e o meu pai,
eles procuravam enterro de dinheiro lá. O meu pai procurava com as varinhas, aquelas,
sabe? Cansei de ir pra lá e coisa… e tem as taperas, né… que chamam tapera. E na
frente da estância tinha uma tapera assim, longe, então de noite, na sala onde nós ia
jantar, a minha finada avó servia a janta e de lá a gente via correr às vezes aquela bola
de fogo. [dirige-se a Fabrício, seu amigo, meu interlocutor, presente no local.]
Não te falei hoje? E eu era guri, piá, mas isso há muitos anos. […] Existe, sim, essa bola
de fogo, é bem amarelona assim, forte assim. É plana assim. E não é muito distante do
chão, ela fica só desta altura, depois ela… O meu finado pai, eu ia com ele pra lá, ele
levava um colega pra procurar [o dinheiro enterrado] nas pedras, aquelas cercas de
pedra, né, mangueiras de pedra, com as varinhas. (Felipe, 38 anos, Uruguaiana –
RS)

Depois de Felipe confirmar que o avô e o pai nunca encontraram


nada, perguntei se souberam de alguém que tivesse achado algo: “Ah, sim!
Eu tenho um tio meu que tem uma estância ali no interior de Quaraí, que
também é de lá daquela região do Garupá. Mas eu nunca me esqueço. […]
Que daí eles contavam os causos, né?”.
Podemos perceber que os contadores recorrem a experiências que
possam ser contadas como histórias, ou seja, as histórias muitas vezes
produzem, mais do que simplesmente re letem a conduta humana. No
caso das histórias de enterro de dinheiro, revela-se um contínuo entre
experiência, narrativa, experiência, novas narrativas… Essa situação
também re lete aquilo que Bauman17 chamou de “a radical
interdependência entre os eventos narrados e os eventos narrativos”18.

Causos de guerra
Esses causos são relacionados às histórias de vida do próprio
contador, ou foram ouvidos de familiares ou pessoas próximas, e são
recorrentes especialmente entre os mais idosos. As guerras pelo
estabelecimento dos limites geográficos dos países fronteiriços (Brasil,
Argentina e Uruguai) ou por disputas políticas internas fizeram parte da
história da região por mais de duzentos anos e, por esse motivo, estão
muito presentes na memória da população local ainda hoje. Alguns causos
de guerra, que envolvem fatos especialmente dramáticos, podem ser
contados várias vezes pelo mesmo contador, em performances emocionadas.
Outros denotam as estratégias de sobrevivência e resistência das famílias
que não estavam envolvidas diretamente nos con litos, como vemos no
relato de dona Yolanda, que mora em Moirones, no Uruguai, cidade
próxima à linha de fronteira com o Brasil:

A minha mãe contava, sim, ela contava, sim. Ela contava, sim. Era horrível, né, [os
guerreiros] chegaram a passar, sim. Que a mãe dela era velhinha, e ela contava que de
noite saíam e se deitavam nuns… nuns jujo, nuns mamono que tinham pra trás da
casa. Ela dizia que se deitava com as crianças ali pra não ficar na casa porque [os
soldados] chegavam e revisavam as casas. E ela saía com as crianças pra fora assim e
se deitava. Pois diz que, quando viam luz que chegava, se agarravam e se escondiam
com elas no meio dos mamono! Nuns jujal que havia pra trás da casa. De noite se
iam pra ali, se escondiam ali. Pro caso… se abriam a porta, qualquer coisa, não tinha
ninguém, né. […] Porque vinham os maus e vinham os bons também, né… Levavam os
maridos delas, os homens, levavam… Algum dava volta, porque… havia a parte boa e a
parte ruim deles, não é? E levavam muita cosa… a minha avó, né, dizia que eles
levavam cosas de comer, levavam bastante cosa. A minha avó conhecia mesmo.

Por outro lado, Gaúcho Pampa, de Santana do Livramento, relata o


impacto que a participação na Revolução de 1923 representou em sua
trajetória. A história de vida desse velho peão já falecido (que contava, em
2002, 101 anos) é tão impressionante que passou a fazer parte do
imaginário da guerra na fronteira:

Eu me achei no combate da Ponte do Alegrete. […] Eu fui ordenança do doutor Flores da


Cunha. E a gente brigou com Honório Lemes na Ponte do Alegrete. E o combate pegou
ali pelas 8h do dia… ali pelas 9h do dia, ali era uma fumaceira que não se enxergava
nada, ali caíam de parte a parte. Na Ponte do Alegrete. Ali foi. E chegou as três horas
da tarde tocou a retirada… e ali foi um… um toca de correr, os bons – e os tiros – e o velho
Honório, ninguém contou vitória na Ponte do Alegrete. Ali ficou historiado o ano 23…
foi a 24 de outubro, às 8h, minha senhora. […] Ali eu m’encontrei… ali eu m’encontrei.
Que eu m’escapei que era pólvora, a pólvora era braba, me larguei n’água.

Histórias dos antigos, histórias de vida


São narrativas autobiográficas, que dão conta da trajetória de vida
dos sujeitos/contadores. Não são necessariamente referentes a um
passado distante, podendo retratar episódios da vida cotidiana. As
performances dessas narrativas variam muito, de acordo com o contador ou
a contadora, com o conteúdo abordado, com a audiência presente, o local e
o horário. A seguir podemos acompanhar uma parte da narrativa de seu
Santos Reis, 66 anos, de Uruguaiana (RS), contada a mim, com a presença
de sua esposa:

Eu nasci aqui na beira dessa ponte internacional, que não tinha. Eu nasci no dia 6 de
janeiro, e o doutor Getulio Vargas marcou essa ponte no dia 8 de janeiro, então toda a
vizinhança queria que o meu nome fosse Getulio, porque naquela época o doutor Getulio
Vargas ainda era um homem do povo. Até hoje ele é lembrado, muito, né? Então
queriam que o meu nome fosse… Mas a minha mãe era daquelas que… Existia uma
folhinha, do tempo das folhinhas. […] Trazia os dias, os nomes. A maioria dos nomes…
[os nomes dos] meus irmãos eram tirados da folhinha. Nós somos dez agora. Nós
seríamos quinze se fôssemos todos vivos. E o meu pai sempre conta que… na história da
campanha dele que… Homem com 20 anos ele foi na guerra, na de 23, que naquela
época… A minha vó sempre contava que eles recrutavam. Aqui nessa zona tinha o
Batista Luzardo, né. Na zona de Livramento tinha o Flores da Cunha. Em Alegrete
tinha o Borges de Medeiros, e tinha outros grandes líderes, então essa gente sempre
tava em contato. Então isso eles sempre nos contavam. Inté isso eu noto que
antigamente os pais sentavam e contavam histórias pros filhos. Hoje em dia até nessa
parte existe dificuldade, sabe, dialogar com os filhos é tão difícil hoje, né. Mas eu sempre
digo que… eu ainda sinto saudade daquela época.
Anedotas
As anedotas ou piadas invariavelmente têm final cômico e, em geral,
envolvem gauchadas, aventuras malsucedidas de trabalhadores rurais,
gaúchos, peões campeiros quando chegam à cidade, ou descrevem alguma
confusão resultante da “grossura” desses homens. As anedotas têm um
caráter bem mais ficcional, diferentemente dos causos, que são
detalhadamente contextualizados. O fato relatado dificilmente diz respeito
ao próprio contador, mas a alguma personagem alegórica: o gaúcho, a
guria, a velha ou ainda algum conhecido que se torna vítima do deboche.
Dessa forma, ainda que tratem de temas ou sujeitos alegóricos, as
anedotas são autorreferentes – ou referentes aos vizinhos castelhanos
(uruguaios ou argentinos), correntinos (argentinos da província de
Corrientes) ou brasileros – e permitem ao grupo rir de si mesmo, como se
pode acompanhar nesta contada em uma roda de causos em Quaraí (RS):

Lenço Branco – Mas o Honório Pedruzzi… tinha um torneio de bocha em Quaraí, em


1962. E ele convidou o Castilhano pra ir junto, e o Castilhano gostava de um
vinho e gostava de dar uma volta nas gurias, né. Tá bom. Aí chegaram em
Quaraí, terminou a partida acho que uma da manhã, e o Pedruzzi falou: “Tchê,
Castilhano, agora vamos nas gurias”. “Pero, nós não semo de aqui, como…
Pero es muy tarde”. “Não, vamos!”. Aí diz que lá nas cansadas, ele: “Tchê, tchê,
tchê, vem cá!”, que é bem assim que ele fala: “Tchê, tchê, tchê, vem cá!”. Aí o
Castilhano pergunta pra um cara: “Tu é daqui, tchê?”. “Sou.” “Me diz uma coisa,
onde é que tem uma casa de uma mulher protestante [prostituta] aqui?”. [risos] O
senhor conheceu ele, né?
Luís Carlos – Conheci…
Lenço Branco – Era fiel, era honesto, trabalhador, mas aí depois que ele começou a
tomar cachaça, aí se terminou! Honório Pedruzzi…
Barreto – Onde é que ele morava aqui?
Lenço Branco – Ele morava na baixada da Silveira Martins, e a mulher dele era
enfermeira, então diz que um dia… Ele me contou: “Tchê, a pobre da mulher
chegou às seis da manhã. A pobre da mulher chegou às seis da manhã, tchê. Um
ricaço lá, uma operação bárbara!”. “Ah, é?”. “é, uma operação de não sei quantas
horas!”. “E de que operaram?”. E ele diz: “Olha, tchê, me parece que foi do
minhocão.” [risos] Era do miocárdio, né. E ele disse: “Olha, tchê, me parece que
foi do minhocão”. Mas ele era fabuloso!
Seu Valter Prata, de Alegrete (RS) fez uma interessante classificação
das anedotas, segundo os locais onde elas ocorrem: “Eu tenho anedota de
galpão, anedota de acampamento, anedota de pescaria… é porque anedota,
nem todas podem ser contadas… e anedotas de salão”. é bem mais comum
que haja, durante as performances de anedotas, mais que nas de causos,
comentários por parte da audiência, ainda que isso não seja uma regra.
Por sua comicidade, as anedotas exigem performances elaboradas dos
contadores, que frequentemente caracterizam as personagens por meio da
mudança de postura ou de algum gesto específico, do uso de vozes
diferenciadas, com alterações dramáticas no volume, e da forma de
utilização do vocabulário local.
Apesar de essa classificação dar conta da maioria das narrativas,
algumas não se enquadram nela; e outras, ao contrário, podem englobar
duas ou três. É importante salientar ainda que, entre os contadores da
fronteira, as rimas e entonações poéticas muitas vezes permeiam as
narrativas, mesclando-se ou dando um colorido e um ritmo especial ao que
é contado. Isso ocorre porque, como já foi dito, muitos contadores são
também poetas, declamadores ou payadores (cantores ou contadores que
falam por meio de rimas)19. Em toda a região da fronteira sul há uma
tradição de declamação em “tertúlias” ou peñas folklóricas, que são reuniões
ou festivais em que se apresentam talentos nas áreas de música, dança ou
declamação.

PARA CONCLUIR A CONVERSA, ATÉ QUE SURJA OUTRO CAUSO

Como procurei explicitar ao longo do texto, entendo que a oralidade


nessa região está inserida em um processo dinâmico, que envolve
contadores, ouvintes e todo o contexto (horário, local, temperatura
ambiente, relação entre os presentes etc.) no qual as histórias são
contadas. Embora seja possível perceber que várias narrativas tradicionais
se repetem, o significado delas passa a adquirir novas conotações
conforme os diferentes contadores nos seus respectivos eventos narrativos20.
Tenho reforçado, ao longo de minhas pesquisas com os contadores
de causos, que esse maravilhoso processo de aprendizagem, criação e
transmissão de tradições orais se mantém forte e pulsante na região,
sobretudo porque é considerado, entre a população fronteiriça, ainda hoje,
uma importante fonte de prazer, entretenimento e produção de
conhecimento. Como aprendi com eles e com elas, todos podem e sabem
contar – é só parar para ouvir. E, para finalizar, vamos ouvir o que a
Simone, de Santana do Livramento, nos fala sobre isso:

Tu imaginas que eu tinha 5, 6, 7 anos quando comecei a ouvir essas histórias, né. Claro
que eu fui acabar destrinchando toda a realidade quando eu já era adulta, que aí eu ia
lá pro quarto com a tia Iaiá e dizia assim: “Tia, me conta uma coisa, eu me lembro que
uma vez tu me disse assim…”. “Mas como é que tu te lembras disso, menina?”. “Ah, isso
eu não sei, mas como é que foi essa história?”. Claro que essas lembranças não são da
infância, são as lembranças adultas da recontagem da coisa.

1 Richard Bauman, Verbal Art as Performance, Rowley: Newbury House


Publishers, 1977; Story, Performance and Event: Contextual Studies of Oral
Narrative, Cambridge: Cambridge University, 1986. Como tenho formação em
artes cênicas, minha relação com os contadores de causos sempre esteve
pautada pela perspectiva do gestual, da expressividade corporal e vocal, da
movimentação do contador no espaço e de sua relação com o público. Para
melhor analisar e compreender esses elementos, passei a trabalhar, a partir do
campo da antropologia, com a noção de performance, utilizando, sobretudo, a
definição fornecida por Deborah Kapchan (“Common Ground: Keywords for
the Study of Expressive Culture – Performance”, Journal of American Folklore,
Illinois: 1995, v. 108, n. 430, pp. 479-508) às práticas estéticas que envolvem
padrões de comportamento, maneiras de falar, maneiras de se comportar
corporalmente – cujas repetições situam os atores sociais no tempo e no
espaço, estruturando identidades individuais e de grupo. Desenvolvo uma
análise das performances dos contadores de causos no texto “Performance e
experiência nas narrativas orais da fronteira entre Argentina, Brasil e
Uruguai, Horizontes antropológicos, Porto Alegre: 2005, ano 11, n. 24, pp. 125-53.
2 Embora tenha priorizado o trabalho na zona rural da fronteira, percebi que há
grande circulação e estreitas relações entre campo e cidade, o que me levou a
realizar a pesquisa também nas zonas urbanas.
3 Dante de Laytano, O linguajar do gaúcho brasileiro, Porto Alegre: Escola Superior
de Teologia São Lourenço de Brindes, 1981, p. 22.
4 Ondina Fachel Leal, “The Gauchos: Male Culture and Identity in the Pampas”,
tese (doutorado em antropologia), 345f., Universidade da Califórnia, Berkeley,
1989. Seu José Augusto Ferrari, contador de causos de Alegrete, dá exemplos
desses avisos curiosos em um de seus livros: “O rapaz adoeceu porque deram
um banho no guri quente, depois comeu um arroz com espinhaço e saiu a
cavalo, com canjica”. Cf. José Augusto Ferrari, Rodeio de causos, Alegrete: Edição
do Autor, 1998, p. 96.
5 Aprofundo as diferenciações de gênero nas narrativas orais da fronteira no
texto “Tradições orais e performance na fronteira entre Brasil, Argentina e
Uruguai”, in: R. G. Oliven, M. E. Maciel e C. K. Brum (org.), Expressões da cultura
gaúcha, Santa Maria: UFSM, 2010, v. 1, pp. 139-67.
6 Esta é uma noção difícil de ser aplicada na região, afinal, segundo Ondina Leal
(“Duelos verbais e outros desafios: representações masculinas de sexo e
poder”, Cadernos de Antropologia n. 7: Cultura e identidade masculina, Porto
Alegre: PPGAS/UFRGS/Ceue, 1992, p. 8, fascículo de circulação restrita), aqui
“tudo são ‘causos’”. Opto, por esse motivo, por trabalhar com a noção de
“etnogênero”, privilegiando as classificações feitas pelos próprios sujeitos.
7 Richard Bauman (org.), Folklore, Cultural Performances and Popular
Entertainments, New York / Oxford: Oxford University, 1992.
8 Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, São Paulo: Martins Fontes, 1997.
9 Também me baseei no artigo de Trudier Harris (“Common Ground: Keywords
for the Study of Expressive Culture – Genre”, Journal of American Folklore,
Illinois: 1995, v. 108, n. 430, pp. 509-27), que faz uma revisão dos estudos sobre
o tema e, a partir dos trabalhos de Bauman e Briggs, salienta a importância de
considerar o gênero em seus aspectos intertextuais, englobando o texto
escrito, a representação oral ou a performance do texto, o contexto, a audiência,
as variações da performance, entre outros elementos.
10 Cf. Elizabeth Tonkin, Narrating our Pasts: the Social Construction of Oral History,
Cambridge: Cambridge University, 1992.
11 Ondina Leal, “O mito da salamandra do Jarau: a constituição do sujeito
masculino na cultura gaúcha”, Cadernos de Antropologia n. 7: cultura e identidade
masculina, Porto Alegre: PPGAS/UFRGS/Ceue, 1992, fascículo de circulação
restrita (p. 8 – grifos da autora).
12 A mentira – e sua relação com o causo – é um tema que me intriga
sobremaneira e sobre o qual tenho dedicado intensa pesquisa na atualidade.
Como primeiro resultado dessa pesquisa produzi o artigo “‘Não sendo
mentira, são sempre verdade’ – aprendizagem e transmissão da mentira entre
contadores de causos”, Ilha – Revista de Antropologia, Florianópolis: 2011, v. 13, n.
1-2, pp. 139-61.
13 Para maior detalhamento sobre as características simbólicas do lobisomem e
das narrativas que o envolvem, ver a dissertação de mestrado de Sheila Maria
Doula, A metamorfose do humano: estudo antropológico sobre o lobisomem. s.f. –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990.
14 Sônia Maluf, em Encontros noturnos: bruxas e bruxarias na lagoa da Conceição (Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993), apresenta uma bela pesquisa sobre as
narrativas de bruxaria em Florianópolis (SC).
15 Angelita Ribeiro apresentou recentemente sua dissertação de mestrado sobre
o tema, intitulada Bruxas, lobisomens, anjos e assombrações na costa sul da lagoa dos
Patos – Colônia Z3, Pelotas: etnografia, mitologia, gênero e políticas públicas. 121f. –
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2012.
16 Dona Eládia, como se pode perceber, usa diversos recursos performáticos em
suas narrativas. Trabalho detalhadamente sobre a performance dessa grande
contadora de causos no texto “Histórias do tempo delas: performances de
contadoras de causos da Campanha do Rio Grande do Sul”, in: Carmen Sílvia
Rial e Maria Juracy F. Tonely (orgs.), Genealogias do silêncio: feminismo e gênero,
Florianópolis: Mulheres, 2004, pp. 95-103.
17 Richard Bauman, Story, Performance and Event, op. cit., p. 2.
18 Um dos conceitos-chave na obra de Bauman (cf. Verbal Art as Performance, op.
cit.), o evento – subdividido em evento narrativo e evento narrado – é um dos
princípios organizadores da etnografia da performance. O termo é usado para
designar um segmento limitado e culturalmente definido do luxo de
comportamento e da experiência, que constitui um contexto significativo para
a ação.
19 Sobre os payadores ou trovadores – como são conhecidos no Brasil – e sua
forma especial de performance oral e corporal, consultar a tese de doutorado de
Inês Alcaraz Marocco, Le geste spetaculaire dans la culture ‘gaucha’ du Rio Grande
do Sul, Brésil, 598f., Université Paris VIII, Saint-Denis, Vincennes, 1996.
20 Também para Adolfo Colombres (“Oralidad y literatura oral”, Oralidad n. 9:
Lenguas, identidad y memoria de América, Havana: Orcaic/Unesco, 1998, pp. 15-
21), o relato oral está sempre em transformação, o que lhe permite ser não só
tradição, mas devir, projeto.
Além da escrita: processos narrativos, cordel e
transmissão oral no Nordeste
JULIE CAVIGNAC

Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos


humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar, das Estrelas, dos morros
silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao
encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço.
Percepção medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família
Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha
Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. [LUÍS DA CÂMARA CASCUDO]

A tradição narrativa nordestina apresenta grande diversidade de


expressões escritas e orais: declamada ou cantada, em prosa ou poesia,
improvisada ou decorada, ocupa um lugar de destaque nas expressões
culturais1. Em ocasiões e contextos variados – nas zonas rurais do sertão,
durante as romarias ou, ainda, nas megalópoles brasileiras que
concentram migrantes nordestinos –, percebemos como a voz é
onipresente no cotidiano, sob todas as suas formas. São mecanismos
complexos que podem ser observados durante a coleta e a análise dos
textos: a memória dos folhetos, os contos, as cantigas, as parlendas, os
provérbios, as histórias de santos, as genealogias, as crenças, os mitos, o
relato íntimo ou, ainda, o discurso sobre o passado se misturam em uma
grande saga que parece não ter fim. Escolhemos privilegiar a via das
narrativas, pois os textos contêm não somente fatos reais reinterpretados
pelos locutores, mas também se constituem em marcas memoriais e
identitárias: as lembranças da infância ou de episódios sofridos, como o
exílio, que remetem a um modo de vida que não existe mais e transmitem
uma carga afetiva que vai além das palavras. Sem querer encontrar nelas
um re lexo fiel dos acontecimentos históricos, as narrativas informam,
antes de tudo, sobre as formas de apreensão do mundo. Procuramos, com
o estudo das temáticas e da morfologia textual, entender a interpretação
autóctone dos fatos contados ou, quando esta não existir claramente,
tentamos aproximar elementos definidores de uma identidade local que
deixam aparecer os mecanismos da tradição oral. Para exemplificar a
importância da voz nas expressões culturais, apresentaremos alguns
exemplos, sejam eles pertencentes ao registro oral ou escrito, que tratam
do passado e do universo sobrenatural. Para isso, iniciamos uma viagem
através da literatura oral e escrita a partir da nossa experiência no Rio
Grande do Norte.

A MEMÓRIA DO CORDEL

Os elos que unem a literatura popular escrita de origem nordestina


com a tradição oral não se limitam a uma simples repetição do texto pela
leitura ou pelo viés da declamação pública. Tradicionalmente, o folheto
circula no mesmo universo cultural das narrativas orais, ultrapassando as
fronteiras materializadas da escrita. O que parece estranho, à primeira
vista, é que o livro só adquira uma funcionalidade quando lido em voz alta
e que o interesse do comprador se limite apenas à história contida nele.
No caso do cordel, parece difícil separar a linguagem escrita da
oralidade, pois elas seguem modalidades semelhantes: como na tradição
oral, encontramos importantes variações textuais, pois são publicadas
várias versões de um mesmo texto, existem diferentes autores ou edições
para uma mesma história ou, ainda, vários folhetos são escritos sobre um
mesmo tema. Constatamos, além disso, um grau elevado de formalização
das narrativas, tanto no oral como no escrito, pois, se o verso nem sempre
é lembrado, por outro lado a estrutura narrativa muda pouco, o que facilita
a memorização dos elementos textuais. Na mesma ocasião, reencontramos
a marca da oralidade na linguagem escolhida para contar a história
impressa: nos folhetos, a utilização de fórmulas ou de expressões da língua
falada produz certa “mobilidade” do texto escrito, a partir do momento em
que a trama narrativa é memorizada pelo “leitor” ou quando é criada uma
nova versão por outro poeta. De fato, o suporte material da poesia não é
importante: configura-se como um complemento ou uma continuação do
texto oral. O leitor ou comprador de folheto, que pode ser analfabeto e ter
decorado a história após ouvi-la várias vezes, reproduzirá de modo
idêntico o verso na sua integralidade, geralmente sem aceitar ser
interrompido. Assim, não é raro que a referência a uma personagem
famosa ou a um verso provoque, na memória do locutor, a lembrança de
outro folheto. É o que acontece quando se lê a primeira estrofe do Romance
do pavão misterioso, um dos romances mais famosos do gênero2:

Eu vou contar uma história


de um pavão misterioso
que levantou voo na Grécia
com um rapaz corajoso
raptando uma condessa,
filha dum conde orgulhoso

De autoria disputada, o romance continua sendo uma referência


literária e um best-seller, sobretudo após ter sido transformado em música
e, mais recentemente, virar um sucesso da televisão e tema de escola de
samba3. É provável que tenha sido inicialmente uma obra feita, quer dizer,
uma peça cantada nas cantorias pé-de-parede antes de ser impressa4.
Assim, é difícil separar o texto escrito do texto oral do ponto de vista da
forma, dos temas abordados, ou mesmo os produtores dos consumidores.
Personagens, temas-chave da cultura local, esquemas narrativos e formas
linguísticas são recorrentes, o que dá a impressão de familiaridade ao
escutar uma história que não se conhecia. Como foi demonstrado por Ruth
Brito Lêmos Terra, na produção dos romances e folhetos de cordel há uma
interpenetração do oral e da escrita:

Nos poemas de época, temos a interferência do modelo narrativo dos


romances, do imaginário e da tradição oral, que leva o poeta a comparar a um
dragão o perverso feitor de engenho, ou, ainda, os feitos de alguns
combatentes aos de Roldão. Cangaceiros, ou qualquer valente que mereça
respeito, têm suas façanhas descritas à moda de Carlos Magno e seus Pares,
paradigma desta literatura. A gesta carolíngea ultrapassou os romances nos
quais foi descrita, povoa pelejas e narrativas de valentes e cangaceiros5.

Da mesma forma, no texto produzido oralmente encontramos a


in luência da escrita com a presença de modelos narrativos oriundos da
chamada literatura de cordel ou de outros livros que circulavam no
Nordeste entre o final do século XIX e início do século XX (a Bíblia, A história
do imperador Carlos Magno e dos doze pares de França, romances de prateleira
etc.)6.
Se o escrito e o oral se misturam até se confundirem, parece
necessário reavaliar os conceitos teóricos e as ferramentas metodológicas
utilizadas pelos pesquisadores, tanto na literatura como na antropologia.
Nessa perspectiva, e ao avaliar os estudos sobre as produções narrativas,
aparecem duas tendências opostas. A primeira hipótese de trabalho
seguida pelos pesquisadores privilegia o caráter manifestamente oralizante
da literatura popular (escrita), e a segunda aponta para a diferença de
natureza entre as duas formas de produção (oral/escrita). Sem poder
demonstrá-lo, a literatura do povo é definida por suas relações estreitas com
a oralidade, pressuposto que leva a determinar uma continuidade com as
tradições poéticas europeias desde a Idade Média7. Nos exemplos
europeus, são geralmente pesquisas realizadas por folcloristas ou
historiadores, como no caso da Bibliothèque bleue de Troyes. Essa literatura
popular circulava na França até o século XIX; na Espanha e em Portugal, as
folhas volantes eram histórias que relatavam fatos da época, as quais eram
lidas nos serões e terminavam fundindo-se com outras narrativas da
tradição oral8. Existiria, então, uma continuidade histórica entre os
gêneros, e o cordel seria uma herança direta da época medieval – o que
parece pouco provável.
A mesma hipótese é lançada no Nordeste com a literatura de cordel.
Seria possível encontrar a poesia europeia nos folhetos nordestinos graças
à força da tradição capaz de reproduzir histórias de modo idêntico, em um
período histórico longo. São teses que se aproximam da teoria das
sobrevivências e que foram integradas automaticamente à análise, sem
que haja nenhuma referência clara. Por exemplo, na obra Cinco livros do
povo9, Luís da Câmara Cascudo examina a herança medieval que existiria
no sertão nordestino: de acordo com o autor, a tradição oral ibérica teria
atravessado o oceano com os primeiros colonos, se manteve durante mais
de quatro séculos e se faria presente ainda nos folhetos lidos hoje no
Nordeste brasileiro. A tese da permanência de uma “oralidade pura” torna-
se ainda mais clara no caso do romanceiro de origem ibérica, transmitido
essencialmente pelas mulheres10. Além de ser uma hipótese dificilmente
verificável em nível empírico, não leva em conta a presença do livro e a
in luência da tradição letrada, até mesmo em uma cultura essencialmente
oral na qual parcela importante da população é analfabeta, inclusive os
próprios compradores dos folhetos! Estes não deixam de ter contato com a
escrita, tendo em vista a circulação de textos impressos no cotidiano. A
teoria da herança medieval não funciona no nosso exemplo nordestino,
mas mesmo assim perdura até hoje.
No entanto, no caso d’A história do imperador Carlos Magno, temos a
prova de que houve a mediação da escrita e que a transmissão não foi
somente oral: os trabalhos de Câmara Cascudo e de Jerusa Pires Ferreira11
demonstram a presença de um livro, com grande circulação desde o século
XVII, em Portugal e na Espanha. Tinha como objetivo consolidar a união
nacional ainda comprometida, ressaltando a figura de Carlos Magno
lutando contra os mouros e disseminando o cristianismo no Império. O
grande livro conheceu um sucesso editorial inédito em Portugal e foi
trazido para o Brasil, sendo comumente encontrado nas fazendas
nordestinas até o século XX, onde teve uma boa recepção pelo seu valor
narrativo e épico. Essa gesta tornou-se fonte de inspiração privilegiada e
natural para os poetas de cordel e os cantadores de viola, pois era uma das
poucas obras escritas disponíveis. Desse modo, podemos realmente falar
em oralidade pura? Quando examinamos a importância de outros grandes
livros, como a Bíblia, chegamos a conclusões semelhantes12. Assim, não há
uma adequação perfeita entre os dois processos narrativos (escrito e oral),
mas há correlações no que diz respeito à estrutura dos textos e aos temas
tratados.
A outra hipótese geralmente encontrada nos estudos sobre a
tradição oral é que haveria uma oposição entre as duas tradições de um
ponto de vista formal: além de depender de outros mecanismos cognitivos
utilizados pela oralidade, a escrita fixa o texto de uma vez por todas e,
consequentemente, o empobrece13. Até nos seus estudos mais recentes,
Jack Goody considera a escrita e o oral processos fundamentalmente
opostos que, no entanto, podem conviver: ao contrário do texto impresso,
as tradições narrativas orais são, antes de tudo, definidas por sua
variabilidade e seu poder de criação literária. Tedlock14 concorda em dizer
que diferem tanto do ponto de vista da elaboração das narrativas como da
sua transmissão. Porém, no caso dos folhetos nordestinos e da tradição
oral, é possível colocar essas duas formas discursivas em um mesmo nível:
o folheto é considerado apenas uma versão impressa de uma narrativa,
não tem importância por si só, é um suporte memorial; a trama discursiva,
ou apenas a referência a uma personagem, desencadeia outras histórias.
Se o cordel e a tradição oral divergem no plano do processo da produção
textual – pois a escrita requer obrigatoriamente a forma versificada,
enquanto o texto encenado pode utilizar a poesia, a gestualidade do
locutor, a palavra cantada ou a simples contação –, quando examinamos a
finalidade e a transmissão narrativa, os dois processos funcionam de
modo similar: a palavra foi escrita para ser transmitida oralmente e, no
caso dos folhetos, o texto é decorado e declamado em voz alta. A oralidade
contamina a escrita: o estilo oral, que é tradicionalmente definido pelo uso
de fórmulas e de repetição, se reencontra no texto impresso. Observa-se
então um tratamento semelhante no oral e no escrito: existem marcas da
oralidade no texto impresso, como podemos verificar nos romances de
sucesso ou nos folhetos sobre cangaceiros. Da mesma forma, os gêneros se
misturam: orações são impressas nos folhetos religiosos – sobretudo os
que descrevem os milagres do frei Damião, do padre Cícero, do padre João
Maria – ou, ainda, nos almanaques encontrados nos centros de romarias.
O estudo comparativo entre os diferentes níveis narrativos revela
um uso oral da escrita assim como tem uma coerência formal e temática
das performances poéticas: a memória reformula histórias já conhecidas,
adaptando-as segundo um padrão estabelecido pela tradição oral. É como
se houvesse uma matriz narrativa que gera, de modo constante, novas
histórias; nelas, o tratamento e a interpretação dos fatos é relativamente
previsível. Mesmo na hora de improvisar, o cantador “pé-de-parede”15
lança um mote, obedece a regras métricas de um gênero poético, a um
ritmo e a uma melodia determinados, recuperando versos já utilizados em
outras performances. Se considerarmos o folheto uma versão escrita de um
texto oral e um discurso do poeta (retomado por um leitor) sobre a sua
realidade, então coletamos ao mesmo tempo um texto – ou as suas
diferentes versões e seus diferentes contextos de produção –, uma
explicação da narrativa, o discurso nativo e tudo o que se encontra ao redor
do texto ou do tema abordado. A partir daí, a comparação entre o escrito e
o oral torna-se possível, e a análise das formas narrativas – quando
estudadas nos seus contextos de enunciação – se torna mais rica, deixando
visível a importância da oralidade na cultura e no processo de transmissão
desta. Corresponde ao que se chama situação de oralidade mista, em que se
nota um uso limitado da escrita16. No nosso caso, além da simples leitura,
as histórias são comentadas, criando ocasiões para lembrar elementos da
cultura local: versos famosos, folhetos clássicos, histórias exemplares,
valores morais, a doutrina cristã, uma concepção singular da história e
uma interpretação bastante normativa dos eventos, deixando espaço
apenas para a criação poética, o talento oratório e a imaginação dos
locutores. Ao escrever sua história, o poeta de cordel recria um mundo
desaparecido e torna-o vivo para seus leitores. É também o caso das
narrativas sagradas, que trazem para o presente um mundo adormecido,
mas ainda muito vivo.

AS HISTÓRIAS DE TRANCOSO E AS COISAS DO PASSADO

O tempo antigo, categoria nativa para designar o passado remoto, é


evocado constantemente nos folhetos e nas narrativas orais. Ele parece ter
se escondido nas entranhas da terra ou nas águas – lagoas, poços, túneis,
fontes –, nos monumentos históricos ou nos sítios arqueológicos: marcos
da memória e sinais de resistência de uma história que não foi escrita. O
universo maravilhoso descrito nas histórias de trancoso – conforme são
chamados os contos de Gonçalo Fernandes Trancoso –, nos
encantamentos, nas lendas de fundação das cidades, ou, ainda, nos
registros narrativos menores, informa sobre as representações nativas do
passado colonial e as configurações simbólicas da cultura, como a
atribuição sistemática da autoria da construção dos monumentos
históricos aos holandeses: o forte dos Reis Magos, as casas de pedras, os
letreiros etc. No cotidiano, notamos a repetição de um detalhe pertencente
a um acontecimento histórico que geralmente difere da versão dos
historiadores: há relatos da presença de monstros subterrâneos (aquáticos
ou terrestres) povoando o subsolo de igrejas, montanhas e lagoas. Assim,
não é raro escutar relatos deste tipo:
Antigamente, ouvi contar, eu aprendi. Se for história mal contada, foi dos velhos
antigos, eu não tenho culpa realmente não. Eu ouvi contar essa história que existiu
antigamente no tempo da inocência… Diziam que existia milagre, existia inocência,
eles falavam que gente virou santo. Tinha, minha filha. Tinha os reinados, os reinados
desabitados com aquelas casas grandes, naquelas fazendas que ninguém habitava.
Existiam casas desabitadas, aquelas matas, aquelas montanhas. Com leoa, leão, onça.
Os leões devoradores. E realmente ainda existe. Assim como vê aqueles livros que a
gente estudou. Ciência. Tinha aqueles animais ferozes mesmo17.

O relato de dona Vitória nos transporta para um mundo imaginário,


mas muito real para os moradores de Carnaúba dos Dantas e, de forma
mais ampla, para todos os sertanejos. O que são os reinados encantados?
Como continuam a ser invocados em pleno século XXI e o que dizem sobre
a cultura local? O que seria “o tempo da inocência”? Como explicar a
concentração de botijas, visagens, santificações, almas, assombrações,
encantamentos e outros fenômenos curiosos que rodeiam a cidade? O
Monte do Galo, reinado encantado e santuário, reúne todos os elementos
do imaginário e do sagrado que estão presentes na cosmografia
seridoense. Ao contar as lendas que deram início à cidade, muitos são
transportados à infância, quando gostavam de escutar as histórias de
trancoso e os romances de cordel. Assuntos privilegiados das debulhas de
feijão ou das conversas de fim de tarde, ritmadas pelas cadeiras de
balanço, nos alpendres ventilados das casas antigas, nos sítios hoje
abandonados. Os relatos nos introduzem em um mundo tenebroso e em
um tempo primordial, no universo do mito. O encantamento, o mistério, o
mundo subterrâneo, a escuridão, a natureza virgem desenham uma
configuração simbólica homogênea. Esta se expressa em formas narrativas
diversas: os romances de cordel, as lendas de fundação, as histórias de
trancoso, as histórias de almas e de botijas ou uma única referência no
discurso cotidiano anunciam a entrada para um universo fantástico.
Os grandes poetas de cordel – Leandro Gomes de Barros, João
Martins de Ataíde, Francisco das Chagas Batista – escreveram os
romances, reeditados regularmente desde o século passado, que evocam
reinos encantados: A filha dum pirata, A louca do jardim, Alfredo e Julinha,
Cidrão e Helena, Coco Verde e Melancia, História da princesa da Pedra Fina, João
da Cruz, Juvenal e o dragão, O capitão do navio, Romance do pavão misterioso, O
príncipe e a fada, Pedrinho e Julinha, Roberto do Diabo, Valdemar e Irene, Zezinho
e Mariquinha. Em História da princesa da Pedra Fina encontramos uma
descrição circunstanciada que corresponde aos nossos reinos
encantados18:

[…] Dentro tem lobo, elefante,


urso e camelo urrando,
cobra e serpente assanhada,
leão e leoa rosnando,
pantera e porco do mato,
sobre as laranjas avançando […]

[…] Quando batia seis horas


ia o portão se abrindo
ele entrou e foi vendo
feras de dente rangindo
debaixo da tal limeira
tinha um leão dormindo […]

Os animais fabulosos e as almas coexistem nas grutas, nos rochedos,


nas casas de pedras, que são as ruínas abandonadas pelos holandeses ou as
igrejas das antigas missões capuchinhas, tomadas pela vegetação nativa e
destruídas pelos caçadores de tesouros. São serpentes, baleias, princesas
ou curiosos que foram capturados e que se encantaram. Não voltaram mais
e pertencem, a partir de então, a um mundo adormecido. Escutam-se os
gemidos, as súplicas e as tristes melopeias dos condenados à errância
eterna. Nas serras, nos reinados encantados, veem-se princesas e sereias,
ouvem-se bandas tocando música e barulhos de locomotiva que dão
calafrios aos passantes solitários.
Os encantamentos são os mesmos, seja nos romances de cordel, seja
na tradição oral. Informam sobre a ocupação sobrenatural do espaço
inabitado, relacionando-a a um tempo passado indefinido, anterior à
chegada dos antepassados dos atuais moradores. Não é raro escutar:
“Naquele tempo, era só mato”. Designando um momento anterior à
colonização, nossos interlocutores nos levam de volta para o registro do
mito: “No tempo em que os bichos falavam”. Começa aqui uma longa
história de trancoso que, geralmente, termina por falta de ouvintes.
História mítica por excelência, é uma fábula em que os animais dominam
a cena, chamando-se de “camarada macaco” ou de “comadre onça”.
Nos textos coletados, encontramos assombrações que aparecem sob
os traços das mesmas figuras humanas e animais (reis, princesas ou
sereias, carneiros, serpentes, onças etc.), ou são evocados fenômenos
similares, de origem sobrenatural (roda ou bola de fogo, luzes, estrondos,
música, gemidos, cheiros). A onipresença do carneiro de ouro voador em
Carnaúba, por exemplo, lembra aos moradores a presença dos monstros
subterrâneos, impedindo a entrada no reinado, fechado por, no mínimo,
três portas. Também, as assombrações e os fenômenos sobrenaturais são
sinais que indicam a localização do tesouro, como no caso das botijas. São
temas recorrentes que atestam a existência de uma homogeneidade das
imagens mentais relativas à história e ao sobrenatural: fazem parte da
paisagem natural, pois pertencem ao outro tempo, o tempo dos antigos, o
tempo do mito.
O subsolo contém os seres ligados ao fim do mundo – sobretudo
serpentes e animais aquáticos como baleias e peixes gigantes –, almas ou
seres humanos encantados, no caso das princesas adormecidas. Assim, a
descrição minuciosa desse mundo repleto de monstros, espíritos e santos,
que surgem como os primeiros colonizadores da região, é relatada pelos
moradores por meio dos discursos narrativos: textos míticos, “histórias de
almas”, milagres, romances de cordel ou histórias de trancoso. O espaço
sagrado segue de perto os limites do mundo habitado pelos homens: a
in luência do sobrenatural se faz sentir na fronteira da cidade, ao entrar
no cemitério ou em uma casa abandonada. Ao atravessar qualquer zona
deserta, os homens devem proteger-se contra as agressões dos agentes do
mundo extra-humano ou, ainda, procurar ganhar os seus favores,
realizando rezas, práticas mágicas, oferendas e, no caso das aparições de
Nossa Senhora, súplicas. Essa representação da natureza como lugar do
sagrado, associada a um passado longínquo, pode também ser vista como
resultado de uma resistência, de uma memória oprimida por vários
séculos de dominação de todo tipo. O passado, localizado no subsolo e nas
águas, foi encoberto, aterrado com os testemunhos da história sangrenta.
Essa representação do mundo natural-sagrado se apresenta, de um
modo metafórico, como sendo o resultado do processo colonizador.
Podemos então começar a enxergar a amplitude do fenômeno. Como é
demonstrado em outros países latino-americanos, sobretudo no México19,
o invasor conseguiu tomar posse de terras, eliminar fisicamente as
populações nativas e impor, com a ajuda da Igreja, uma legitimidade da
ocupação colonial – análise que, sem dúvida, se aplica perfeitamente ao
contexto nordestino. Ao mesmo tempo, essas narrativas nos mostram que
a elaboração da autoctonia passa necessariamente por uma
reinterpretação singular da história.

O PODER DOS SANTOS

Nesse cenário, as figuras divinas – os santos católicos que vieram


junto com os primeiros europeus – têm um papel fundamental. São elas
que dão origem às cidades, pois foram achadas em um meio inóspito: em
pleno sertão, perdidas “no meio do mundo”, perto de uma pedra, no tronco
de um juazeiro, no mofumbal ou protegidas das águas de um rio caudaloso
por um pé de aninga, afogadas no mar, no rio ou em uma lagoa turva.
Quando levados para longe do seu lugar de vida, os santos – que têm vida,
pois são poderosos –, retornam obstinadamente até o local de origem, para
seus devotos construírem uma capela.
Encontramos várias narrativas em que os santos auxiliaram os
colonos a entrar em um espaço ainda selvagem: são fazendeiros,
vaqueiros, caçadores, tropeiros cujas aventuras levam a um universo
desconhecido, em que a manifestação dos poderes de um santo ajuda a
resolver todas as dificuldades com que se defrontam. A revelação dos
poderes sobrenaturais, sejam eles autóctones ou santificados, se dá sob a
forma de uma aparição milagrosa, de uma manifestação do além ou de um
sonho, motivo para a construção de uma capela que se tornará local de
celebrações religiosas. Assim, na lenda de fundação de Caicó, hoje centro
da maior festa religiosa do estado do Rio Grande do Norte, Sant’Ana ajuda
duas vezes seguidas o vaqueiro, afastando as figuras maléficas20. Entre as
diferentes versões existentes, escolhemos o depoimento de Walfredo, que
resume os fatos:

[…] Por volta de 1630, 1635, um vaqueiro andava perdido, por dentro da mata… do
sertão, à procura do gado. Ele entrou num mufumbal, é uma mata muito fechada, e lá
ele se deparou com um touro, um touro bravio enfurecido, e ele não tinha como sair.
Então ele fez uma prece a Nossa Senhora de Sant’Ana, avó de Maria… Mãe de Maria e
avó de Jesus, para que ela salvasse ele daquele atropelo e, como por encanto, o touro
desapareceu. Daí ele edificou no mesmo local uma capela dedicada a venerar Nossa
Senhora Sant’Ana… Quando o vaqueiro iniciou a construção da capela, a região estava
passando por uma seca muito forte, muito grande, e ele encontrou um poço. E ele
novamente recorreu a Sant’Ana, pedindo a ela que nunca deixasse esse poço secar. E até
em 1977, e até 82, 83, nós tivemos uma seca muito grande e, mesmo assim, o poço não
secou. Nunca na história de Caicó se tem notícia de que esse poço tenha secado […]21.

Esse trecho ressalta a existência de um milagre que está na origem


da aldeia que se transformará, mais tarde, em uma cidade. Com algumas
variações, a história da fundação de Caicó retoma os mesmos elementos:
encontramos uma versão mais completa da lenda de fundação da cidade,
escrita por Manoel Dantas, que contém pelo menos dois mitos22. Um
primeiro, contando a origem da cidade, põe em cena os inícios da
colonização, com dois representantes do divino em confronto – Santa Ana
(Sant’Ana) e Tupã –, ambos utilizando o milagre como arma. Um segundo
mito pode ser lido nas entrelinhas: a ameaça dos índios continua presente
por meio da possível destruição da cidade pela seca ou pela inundação. A
divindade indígena, metamorfoseada em um animal feroz – touro (animal
terrestre) ou cobra (animal aquático) –, encarna então as características
principais dos ancestrais primordiais transformados em animais ou almas
que vagam pelas lorestas, nas fontes d’água ou debaixo da terra. A
metamorfose do índio em animal selvagem, seguido do seu
desaparecimento, mostra claramente o poder da mãe de Maria. Entre
Sant’Ana, o touro, as cobras e as baleias, um combate é travado e continua
até hoje. Representando o poder divino, a padroeira domina e canaliza as
forças da natureza com o auxílio dos seus fiéis. Esses elementos narrativos
ressaltam a autoctonia da santa católica, que defende incansavelmente os
habitantes da cidade contra todas as adversidades.
Assim, definidores de identidade local são associados aos fenômenos
sobrenaturais e se constituem em lugares de memória23. Nesse sentido, a
lenda de Sant’Ana, rememorada a cada ano durante a festa dedicada à
santa padroeira, reativa a memória, produtora de identidade, seja ela
individual, familiar ou do grupo24.

EXEMPLOS E PROFECIAS

Nas outras narrativas de cunho religioso com as quais nos


deparamos, o mundo sobrenatural aparece integrado em uma
representação do universo em que deve haver necessariamente harmonia.
Quando surge uma desordem biológica – uma doença – ou meteorológica,
geralmente a seca, deve-se procurar um especialista humano (curandeiro,
rezadeira, profeta) ou divino (santo). Precisa também ser realizada uma
série de práticas rituais para consertar o presente, garantir o futuro e
agradecer por um pedido concedido (passado). Há uma multiplicidade de
interlocutores divinos e sobrenaturais, com destaque para os santos
católicos. A temática é tratada exaustivamente na literatura popular.
O poder dos santos vivos é ilustrado por um grande número de
relatos, orais ou escritos, que seria impossível analisar aqui, dado o volume
dessa produção narrativa. Examinaremos, então, dois tipos de textos, em
versões orais ou escritas: os exemplos, que são relatos de milagres
realizados por uma figura missionária – frei Ibiapina, frei Herculano,
padre Cícero ou frei Damião; e as profecias, que anunciam geralmente a
iminência do fim dos tempos. O ideal missionário, ainda que reavaliado,
ressurge com força. Como nas prédicas dos irmãos mendicantes
franciscanos que eram impressas – mas que eram destinadas à leitura25 –,
notamos apenas que o exemplum nordestino é impresso em folheto e
resulta da compilação de histórias edificantes. De caráter moralista ou
didático, essas histórias são constantemente atualizadas, inspiradas em
fatos locais26. Nelas, os santos clássicos são geralmente substituídos por
figuras históricas, consideradas santas pela fé nordestina. Nesses relatos,
padre Cícero e frei Damião se tornam atores, são representados em plena
ação, realizando milagres ou dando múltiplas demonstrações dos seus
poderes sobrenaturais. Sua força vem da palavra divina que receberam e
transmitiram: descobrem segredos, esmeram-se, castigam, ressuscitam os
mortos, caçam demônios, predizem o futuro e anunciam o fim do mundo.
Mas seu poder se exprime, antes de tudo, nos relatos de seus exemplos:
textos edificantes que ilustram seu papel de justiceiros divinos.
As provas da onipotência desses sacerdotes ou missionários são
dadas pelas metamorfoses dos humanos em animais. Vários relatos orais,
em geral bastante curtos, vêm juntar-se ao testemunho dos poetas: os
pecadores, as mulheres adúlteras, os blasfemadores, os feiticeiros ou os
protestantes se acham reduzidos a animais perigosos, malfazejos ou
repugnantes – antas, cavalos, cachorros, serpentes – ou são transformados
em monstros peludos, lobos e até mesmo no diabo. Esse castigo se estende
às crianças que desrespeitam as mães, ou quando mães pecadoras
abandonam os recém-nascidos no mato.
Assim, podemos citar a história da menina que mostrou, ou pôs a
língua, para a mãe, e a língua ficou pendurada para fora da boca. Em casos
como esses, após um homem ter dado um chute na mãe, teve os pés presos
às costas. Uma criança que levantou a mão para a mãe teve o braço
paralisado e colado às costas. Em uma viagem a Juazeiro, e após terem
consultado o padre Cícero, que ordenou que os membros deslocados
voltassem ao seu lugar inicial, os pecadores se curaram, ao menos por
algum tempo.
No caso das metamorfoses de seres humanos em animais, a
maldição é forte demais, e as pessoas permanecem deformadas, portando
o estigma de seu pecado. Os relatos se limitam, assim, a ilustrar os poderes
de padre Cícero. Quem, no Rio Grande do Norte, nunca ouviu falar do
monstro de Carnaubais ou aquele do Açu? O primeiro parece uma serpente
peluda da qual não se pode aproximar, sob pena de morte imediata. O
outro é descrito como um enorme dragão: frei Damião ordenou metê-lo
em um caixão chumbado e jogá-lo no fundo do mar, caso contrário
conseguiria escapar e destruiria o mundo. Sem lembrar as causas da
metamorfose, pode-se imaginar que se trata de uma maldição – as palavras
pronunciadas produzem efeito direto – em consequência de uma falta
grave ou transgressão descoberta por um homem santo: adultério, incesto,
feitiçaria etc. Outros relatos, orais e escritos, tratam de modo idêntico
desse tema, dando pistas para explicar as metamorfoses.
Podemos assim analisar os relatos orais que tratam de um humano –
sempre uma jovem pecadora – transformado em serpente e os vários
folhetos dedicados ao tema. A história A moça que virou cobra tem várias
edições em folhetos, e encontramos registros narrativos que colocam em
cena metamorfoses seguindo a mesma estrutura27:

Só creio no padre Cícero


quando ele me castigar
fizer cair as pernas
meus braços se deslocar
criar ponta e nascer dente
correr virada em serpente
mordendo quem encontrar.

Em textos desse tipo, a metamorfose pode ser atribuída a diferentes


causas, como a de “quem nega a filiação do humilde pároco de Juazeiro à
Santíssima Trindade”28. Mas, por trás dessas metamorfoses, há um
cenário relativamente fixo. O tema da sexualidade não controlada e
moralmente reprovada também passa frequentemente pela referência à
serpente lasciva e tentadora do Jardim do éden. Tanto nos folhetos como
nos causos orais, encontramos o mesmo tema. Nesses relatos que foram
colhidos na cidade ou nas áreas rurais, em momentos diferentes,
percebemos uma homogeneidade no tratamento do tema e na organização
narrativa.
A partir da observação da recorrência temática e da presença de uma
matriz narrativa homogênea, torna-se possível a comparação de folhetos e
relatos orais que aparecem, após análise, ligados à esfera religiosa e, mais
especificamente, à missão evangelizadora dos representantes do
catolicismo popular. Além disso, podemos perceber um tratamento
idêntico entre diferentes gêneros narrativos: se os romances e as
chamadas histórias de trancoso terminam bem, os relatos exemplares
restauram virtudes e valores ameaçados ou perdidos e designam o mal ao
eliminá-lo: o pecado desaparece com a morte do indivíduo. Por trás dos
exemplos que encenam metamorfoses de humanos em animais ou
monstros, vários folhetos reproduzem os sermões proféticos do padre
Cícero e do frei Damião. Em todos os casos, a palavra divina, da qual eles
são portadores, insiste mais sobre a iminência do final dos tempos do que
sobre a espera milenarista de um reinado celestial na terra.
A imagem do profeta que desfaz feitiços é atrelada à ambivalência
do estatuto do sacerdote sem igreja, presente em outros precursores da “fé
nordestina”. A perseguição supostamente não justificada dessas figuras,
por parte da Igreja oficial, pode inclusive estar na origem de sua
santificação. Ela certamente é incorporada ao modelo simbólico dos
santos29. Com efeito, esses sacerdotes autóctones – pelo lugar que eles
ocupam no pandemônio nordestino – gozam dos mesmos favores que os
santos oficiais – se não mais – porque, além de profetas, são taumaturgos,
padrinhos próximos e atentos às preces dos seus fiéis, mesmo após a morte.
Apoiando-se no passado e na experiência – “a tradição” – para enviar sua
mensagem, atualizam a palavra divina que os poetas retransmitem. Assim,
a voz se torna o veículo da verdade divina, do último julgamento e da
tradição poética.
Ao constatar uma grande recorrência temática entre os textos, e ao
verificar as pontes que existem entre os diferentes gêneros narrativos,
entendemos melhor como funciona a tradição oral e verificamos que os
mesmos mecanismos estão presentes na oralidade e na criação poética
escrita. Novas personagens e situações encontram-se revestidas com as
velhas estruturas narrativas, retomando temáticas conhecidas
(encantamento, mistério, metamorfose, milagre etc.). Quer no oral, quer
no cordel, aparecem imagens relativas a um passado comum que
informam sobre a percepção da história e do mundo sobrenatural.
No entanto, hoje verificamos mudanças no funcionamento da
tradição narrativa. Mesmo se partilham dos mesmos registros culturais, os
poetas de cordel, os contadores de histórias e os violeiros nem sempre
frequentam os mesmos espaços. Acompanhando as transformações da
sociedade contemporânea, o folheto se deslocou do seu espaço tradicional
de circulação (fazendas, feiras livres, romarias etc.), e um novo público
urbano surgiu. Também a figura do poeta-folheteiro mudou: hoje ele
aparece pouco nas feiras, é um intelectual, militante ou tem uma
aproximação com o mundo acadêmico. Da mesma forma, os folhetos de
cordel, os romances e os contos, que eram os veículos da cultura
tradicional, aparecem cada vez menos como a via de aprendizagem dos
códigos morais, dos elementos da cultura e da apreensão da realidade.
Antes eram comprados na feira ou durante as romarias, lidos para os
parentes e vizinhos; as notícias, os problemas sociais, políticos e
econômicos eram traduzidos em uma língua poética, formatados em uma
linguagem próxima do estilo oral e encapsulados em uma estrutura
narrativa conhecida por todos.
O que encontramos hoje são pequenas histórias engraçadas – muitas
do gênero romances de safadeza e putaria – que glosam sobre a atualidade,
em particular a política, e são vendidas nas rodoviárias, nas bancas de
revistas, nas lojas para turistas etc. É como se a tradição poética tivesse se
afastado da literatura oral. Tradicionalmente, o corpus narrativo era
associado à vida na fazenda e suas personagens (fazendeiro, capataz,
vaqueiro, cangaceiro) e a um tempo mítico repleto de princesas e
monstros; na ocasião da enunciação, essas imagens vindas da infância no
campo são reativadas.
Assim, os textos da tradição, romances de época que são publicados
até hoje, funcionam como espelhos nos quais os leitores e os locutores
podem reviver as mesmas aventuras que as personagens e, sobretudo,
compartilhar os mesmos valores. Cada vez mais, os textos clássicos têm
uma função identitária por não mais fazerem parte da prática de leitura
coletiva e do processo de educação das crianças, pois a sociedade
agropastoril se transformou e os folhetos de feira rarearam, mas
permanecem vivos na memória dos que aprenderam a ler neles. Restam as
boas histórias, que continuam suas andanças pelo mundo…

Quando sabia que era Leandro Gomes ou João Martins de Ataíde, sabia que o verso era
bom, eu comprava muito. Peleja, que é dos cantadores, e verso, que era dos poetas… O
príncipe e a fada foi um dos primeiros, O cachorro dos mortos já tinha comprado.
Esse, li umas poucas de vez, aí decorei tudinho… eu tinha a história todinha, aquela
história, o livro do Carlos Magno… veio versado a Peleja de Oliveiro mais Ferrabraz, aí,
tinha vez, eu lia duas ou três vezes, aí eu decorava algum pé de Oliveiro e Ferrabraz […]

Era quinze reis guerreiros


Todos amigos do Almirante
Já de água morto, instante
Encontraram os cavaleiros
Insultaram os mensageiros
Do Imperador Cristão […]30.

1 Minha pesquisa sobre tradição oral no Rio Grande do Norte foi iniciada em
1990 nos municípios de Carnaúba dos Dantas e Campo Grande (na época,
foram mais de dezesseis meses de pesquisa empírica). A memória dos folhetos
de cordel foi o objeto da tese de doutorado intitulada Mémoires au quotidien.
Histoire et récits du sertão du RN (Brésil) (721f., Université Paris X, Nanterre, 1994),
publicada parcialmente sob o título A literatura de cordel no Nordeste do Brasil: da
história escrita ao relato oral (Natal: EDUFRN, 2006). Reuni quinhentos folhetos e
romances escritos, que foram coletados no Nordeste entre 1988 e 1993, e
comparei esse corpus com cem narrativas orais colhidas durante a pesquisa de
campo no sertão do Rio Grande do Norte – Seridó e Oeste – entre 1990 e 1991.
2 Ver o texto completo em
<www.dominiopublico.gov.br/download/texto/jn000008.pdf>. Acesso em:
jan. 2015.
3 Há uma controvérsia sobre a autoria do romance, que foi publicado
inicialmente nas décadas de 1920; José Camelo de Melo Resende e João
Melchíades Silva publicaram um romance com este nome, com poucas
modificações textuais. A edição mais antiga que encontrei data de 1951. M. A.
Pereira escreveu a continuação da história com as aventuras do filho de
Evangelista, e existem várias reedições assinadas por J. B. da Silva e Franklin
Maxado. Sobre o assunto, ver Jerusa Pires Ferreira, Armadilhas da memória:
contos e poesia popular, Salvador: Fundação Casa de Jorge Amado, 1991. A música
“O romance do pavão mysteriozo”, de autoria de Ednardo, foi gravada em 1974
e virou tema da novela Saramandaia (com nova versão em 2013). A escola de
samba Acadêmicos do Salgueiro, no carnaval carioca de 2012, escolheu o
Pavão Misterioso para representar o cordel nordestino.
4 Ruth Brito Lêmos Terra, Memória de lutas: primórdios da literatura de folhetos do
Nordeste – 1893-1930, São Paulo: Global/Secretaria de Estado da Cultura, 1983,
pp. 68-9.
5 Ibidem, p. 77.
6 Ver, sobre o assunto, a obra de Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria em cordel: o passo
das águas mortas, São Paulo: Hucitec, 1979.
7 Idelette Muzart Fonseca dos Santos, La Littérature de cordel au Brésil. Mémoire des
voix, grenier d’histoires, Paris: L’Harmattan, 1997, pp. 13-4. Para uma crítica do
conceito popular, aplicado às expressões culturais, ver a discussão na minha
tese de doutorado (op. cit., pp. 66-70).
8 Existe uma ampla bibliografia sobre a literatura popular na Europa. Cf.
Geneviève Bollème, Le Peuple par écrit, Paris: Seuil, 1986; Robert Mandrou, De la
Culture populaire aux XVIIe et XVIIIe siècles, Paris: Stock, 1964; Charles Nisard,
Histoire des livres populaires ou de la littérature de colportage…, Paris: Maisonneuve
et Larose, 1968; e, de Paul Zumthor, “L’écriture et la voix”, (Critique, Paris: 1980,
n. 394, pp. 228-39), “De l’Oralité à la littérature de colportage” (L’écrit du Temps,
Paris: 1982, v. 1, pp. 129-40) e Introduction à la poésie orale, Paris: Seuil, 1983.
9 Luís da Câmara Cascudo, Cinco livros do povo, Rio de Janeiro: José Olympio,
1953.
10 Idelette Muzart Fonseca dos Santos, op. cit., p. 13.
11 Luís da Câmara Cascudo, op. cit.; Jerusa Pires Ferreira, 1979, op. cit.
12 Muirakytan Macêdo demonstra o impacto da leitura do livro na formação da
elite do Seridó, em particular na obra de Manoel Dantas, que adota um estilo
profético nos seus escritos. Cf. A penúltima versão do Seridó, Natal: EDUFRN,
2012.
13 Cf. os estudos de Jack Goody: “Mémoire et apprentissage dans les sociétés avec
ou sans écriture: la transmission du Bagre”, L’Homme, Paris: 1977, v. XVII, n. 1,
pp. 29-52; La Raison graphique. La domestication de la pensée sauvage, Paris:
éditions de Minuit, 1978; Pouvoirs et savoirs de l’écrit, Paris: La Dispute, 2007.
14 Dennis Tedlock, “On the Translation of Style in Oral Narrative”, Journal of
American Folklore, Illinois: 1971, v. 84, n. 331, pp. 114-33; e The Spoken Word and the
Work of Interpretation, Philadelphia: University of Pennsylvania, 1983.
15 A expressão designa a forma mais tradicional das performances poéticas,
reservada aos conhecedores: os cantadores sentam-se em frente ao público
(geralmente encostados em uma parede) e deixam uma cesta na qual é
depositado o dinheiro que servirá para pagar os violeiros, além de pedidos que
servirão de mote para os poetas improvisarem.
16 Jack Goody, La raison graphique…, op. cit., p. 254; Paul Zumthor, Introduction à la
poésie orale, op. cit.
17 Vitória Ivoneide de Oliveira foi entrevistada em 25 de maio de 1991, em seu
domicílio, no Monte do Galo, Carnaúba dos Dantas.
18 Leandro Gomes de Barros, História da princesa da Pedra Fina, Juazeiro: J. B. da
Silva (org.), 1909, pp. 17-21.
19 Cf. Jacques Galinier, La Moitié du monde. Le corps et le cosmos dans le rituel des
indiens otomi, Paris: PUF, 1997; Serge Gruzinski, La Colonisation de l’imaginaire.
Sociétés indigènes et occidentalisation dans le Mexique espagnol XVIe-XVIIIe siècles,
Paris: Gallimard, 1988; Nathan Wachtel, Le Retour des ancêtres: les indiens Urus de
Bolivie, XXe-XVIe siècles. Essai d’histoire regressive, Paris: Gallimard, 1990.
20 Localizada no semiárido da região do Seridó norte-rio-grandense, a principal
cidade do Seridó teve a sua origem em 1687 com a construção da casa Forte do
Cuó e, em 1735, com o povoamento da fazenda Penedo, posteriormente
denominada Vila Nova do Príncipe. Em 1890 foi elevada à categoria de cidade:
recebeu os nomes de Cidade do Príncipe, Cidade do Seridó e, finalmente,
Caicó. A Festa de Sant’Ana de Caicó foi registrada como patrimônio cultural
imaterial brasileiro pelo IPHAN em 2010.
21 Walfredo Dantas foi entrevistado em 27 de julho de 1991 durante a festa de
Caicó.
22 Manoel Dantas, Homens de outrora, Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1941, p. 97.
Um poeta de Caicó, Nilson de Brito, fez uma versão em folheto da lenda, e
Chico Motta, violeiro, compôs a música “Poço de Sant’Ana em Caicó”.
23 Pierre Nora, Les Lieux de mémoire, Paris: Gallimard, 1984.
24 Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio”, Estudos Históricos, Rio de
Janeiro: 1989, v. 2, n. 3, pp. 3-15.
25 Jacques Le Go f, História e memória, Campinas: Unicamp, 1996.
26 Candace Slater, A vida no barbante. A literatura de cordel no Brasil, Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984, p. 15. Podemos citar vários folhetos vendidos nos
centros de romaria: O filho que levantou falso à mãe e virou bicho, de R. C.
Cavalcante; Mãe que xingou o filho no ventre e ele nasceu com chifre e com rabo em
São Paulo, de M. F. da Silva; A moça que virou cachorro porque deu banana ao padre
frei Damião, de J. J. de Andrade.
27 Encontramos ao menos três folhetos diferentes: 1. Anônimo, A moça que virou
cobra, Recife: s.d., 8 p. – datação aproximada: anos 1950, lugar de edição e
distribuição: Recife, Nordeste e São Paulo (Luzeiro); 2. S. G. de Oliveira, A moça
que virou cobra, s.l.: 8 p. – datação aproximada: antes dos anos 1950, lugar de
edição e distribuição: Recife e Nordeste; 3. A. A. dos Santos, A moça que virou
cobra e quis engolir a mãe, Rio de Janeiro, 8 p. – datação aproximada: depois dos
anos 1950, lugar de edição e distribuição: Rio de Janeiro e Campina Grande.
Também, vários contos e lendas que foram coletados pelos folcloristas põem
em cena metamorfoses de jovens pecadoras em serpentes: “A lenda do poço
feio” e “O tesouro de Extremoz” (palestra de dom José Pereira Alves transcrita
no Diário de Natal em 31 de março de 1928), in: Gumercindo Saraiva, Lendas do
Brasil, Belo Horizonte: Itatiaia, 1984; “A serpente no fundo do poço”, in:
Ademar Vidal, Lendas e superstições: contos populares brasileiros, Rio de Janeiro:
Gráfica O Cruzeiro, 1950.
28 Iaperi Araújo, A medicina popular, Natal: Nossa, 1985, p. 24.
29 Julie Cavignac, A literatura de cordel no Nordeste do Brasil, op. cit.
30 Francisco (Chico) Nogueira, Sítio Caiana, Campo Grande, abril de 1991.
A literatura oral na Amazônia paraense: estrutura, forma e
modelos culturais
JOSÉ GUILHERME FERNANDES

DO OUVINTE AO PESQUISADOR

Antes de iniciar este estudo, faço uma re lexão sobre como trabalhar com
narrativas orais populares significa trazer à tona a cena primitiva de minhas
descobertas na região, tão distantes, mas, ao mesmo tempo, tão próximas e
gerenciadoras do que sou e faço hoje. Mais do que “histórias pra boi dormir”, as
narrativas acalentavam e acalentam uma necessidade de compreender o espaço
amazônico.
A partir de 1994, iniciei coletas de campo de narrativas em Castanhal, Santa
Izabel do Pará, São Caetano de Odivelas e Magalhães Barata – cidades no entorno
do campus universitário de Castanhal, da Universidade Federal do Pará. No ano
seguinte, com o apoio de bolsistas de iniciação científica divididos em três equipes,
outras cidades do nordeste paraense puderam ser mapeadas: Vigia, Colares,
Curuca, Santa Bárbara, Marapanim, Maracanã, Nova Timboteua, Santa Maria do
Pará, Bragança e Garrafão do Norte.
A ida ao campo de pesquisa foi muito além do contato entre pesquisador e
objeto de estudo: foi a oportunidade do encontro entre sujeito e objeto elididos, o
assomo da infância a cada narrativa não apenas escutada, mas também auscultada.
Percebi que o tempo não fez com que as histórias se perdessem porque ali o espaço
é a dominante que preservou a existência de entes míticos que comungam essa
existência com o homem: é o homem ao natural ou a natureza do homem na
primeira compreensão de si e do mundo. O tempo se rendeu ao espaço e se
esvaeceu daquilo que o constitui como tempo: o transitório.
Posso até dizer que aquelas comunidades, aqueles homens, pertencem a uma
sociedade atemporal, porque seus totens são tão presentes como o foram para a
minha infância. Há um termo mais adequado: todos estamos inseridos em um
tempo mítico1, pois o que fora narrado em nossa infância, para que
compreendêssemos a cosmogonia às margens do rio Mojuim, em São Caetano de
Odivelas – litoral da Amazônia paraense –, ressurgia em outras vozes, fazendo do
acontecimento do passado um produzir-se constante a cada momento em que era
narrado, nas imagens de personagens nossas velhas conhecidas: as personagens
míticas das matas e das águas da Amazônia.
O QUE É LITERATURA ORAL

O termo “literatura oral” surgiu em 1881, a partir de denominação criada por


Paul Sébillot em sua obra Littérature orale de la Haute-Bretagne: “La littérature orale
comprend ce qui, pour le peuple qui ne lit pas, remplace les productions littéraires”2. O que
podemos depreender, na origem, é que o termo está delimitado socialmente, ou
seja, a literatura oral é produção vinculada àqueles que não sabem ler, por mais
que, segundo o autor, haja uma equivalência entre essa produção oral e as
produções literárias. Aqui reside uma primeira incongruência, pois nem toda
produção oral pode ser popular, se esse termo se refere a povo não escolarizado,
não alfabetizado. A oralidade é uma das modalidades da língua; o fato é que ela é
mais usual em grupos sociais não praticantes da escrita. Nesse particular, podemos
considerar que se trata de uma cultura oral, o que compreende bem mais que uma
modalidade da língua e abrange todas as práticas culturais e suas produções,
ligadas a um caráter mais interativo e comunal de existência, por mais que a mídia
utilize a oralidade como uma via de mão única.
Cascudo, em seu livro Literatura oral no Brasil, caracteriza essa produção
como vinculada ao folclore, embora diga que “a literatura folclórica é totalmente
popular, mas nem toda produção popular é folclórica”3. Talvez já indicie que o
fenômeno da massificação da produção cultural, pela modernidade, separa esse
tipo de produção (folclórica) das produções mais populares, ligadas ao que
denominamos populações tradicionais, consideradas a partir de Diegues4, que
utiliza a expressão “população tradicional” para se referir às sociedades em que: 1) o
modo de vida se constrói em estreita dependência e simbiose com os ciclos da
natureza e os recursos naturais; 2) o conhecimento é repassado oralmente entre
gerações; 3) a noção de território se relaciona à produção econômica e social das
gerações, mesmo que existam deslocamentos para outros territórios, o que a liga
ao autorreconhecimento de uma identidade e ao reconhecimento desta por
terceiros; 4) é reduzida a acumulação de capital em função de atividades de
subsistência; 5) são importantes as relações de parentesco e compadrio nas
atividades econômicas, sociais e culturais; 6) os mitos e os ritos estão
preferencialmente associados à caça, à pesca e ao extrativismo, havendo também
reduzida divisão técnica e social do trabalho; e 7) o poder político é fraco ou
inexistente em relação aos grupos de poder dos centros urbanos.
Sem negar ou contrariar o que dispõe Diegues, acrescemos ao sentido de
tradicional a concepção de populações periféricas, uma vez que nossa abordagem
sociocultural e histórica as percebe como grupos subalternos em relação a outros
grupos sociais que se querem hegemônicos e que ditam um centramento social,
político e cultural por deterem o poder econômico na sociedade capitalista. Essa é
uma questão que transcende espaços físicos, sendo uma condição da luta de
classes, por mais que em cada processo histórico haja diferentes nuances.
No caso amazônico, temos observado a questão presente tanto no meio rural
como no urbano, exatamente naqueles espaços em que as populações estão à
margem ou são semiatendidas pelos bens e serviços da modernização, isto é, vivem
na periferia da sociedade moderna, não são ouvidas ou são pouco consideradas
pelas políticas públicas. Essa periferia também pode ser considerada urbana, não
existente apenas no campo ou na zona rural. No entanto, esses grupos sociais
criam um éthos próprio que lhes confere uma identidade por vezes híbrida, mas
pautada nos aspectos elencados por Diegues e que também consideramos no
presente trabalho. Para Cascudo, a literatura oral tem algumas características, a
saber: antiguidade, persistência, anonimato e oralidade; acrescento, ainda,
performance, interlocução, apropriação, atualidade, adaptação e coletividade.
Uma das questões mais con litivas ao tratarmos da literatura oral é sua
relação com a concepção de folclore. Esse termo surgiu em 1846, em carta enviada
por William Thomas, em 22 de agosto, à revista The Athenaeum, de Londres:

[…] as vossas páginas têm dado prova, tão frequentemente, do interesse que tendes por
aquilo que nós, na Inglaterra, designamos como Antiguidades Populares ou Literatura
Popular (se bem que seja mais um lore do que uma Literatura, que seria descrito de
maneira mais adequada por uma boa palavra saxã composta, folclore – o saber do povo)
que eu não estou sem esperança de obter a vossa ajuda para reunir as poucas pessoas
que se encontram disseminadas naquele campo no qual os nossos antepassados
fizeram uma boa colheita5.

O que observamos é que folclore adquire um caráter passadista, como uma


cultura engessada e anacrônica, na contramão do que podemos considerar cultura
em um conceito moderno, ou seja, como dinamicidade e adaptabilidade em
processos de hibridação e transculturação. É por isso que, na atualidade, nos
estudos da cultura, separa-se cultura popular de folclore, uma vez que este atende
muito mais ao caráter de turismização das produções culturais, ou melhor, se
importa mais com o produto do que com o processo, o que implica dizer que
estamos descolados do meio de produção de um evento em vez de estarmos em
face de uma manifestação, esta mais cíclica e antenada com a dinâmica das
populações tradicionais.
Ao entendermos a literatura oral muito mais como uma produção de cultura
popular, podemos considerar que a produção de literatura dessa modalidade da
cultura é muito mais dinâmica e intercambiante com outras modalidades
culturais, como a cultura acadêmica, erudita e midiática. Por sinal,
as manifestações de cultura popular são necessariamente contraditórias. Veiculam
concepções de mundo que atuam no sentido de manter e reproduzir a dominação, a
exploração econômica, enfim, as desigualdades entre os diversos setores da população.
Simultaneamente, expressam a consciência que seus produtores têm dessa
desigualdade e de sua própria situação, subordinada, na estrutura social, veiculando,
também, pontos de vista e posições que contestam a ideologia dominante, podendo,
portanto, contribuir não para a reprodução, mas para a transformação da estrutura
social vigente6.

Nessa citação, percebemos que há um constante tráfego de mão dupla entre


subalternos e hegemônicos, ora implicando reproduções, ora criações ou recriações
entre manifestações que se colocam nesses extremos, o que nos leva a concluir que
não existe purismo em termos de cultura, e, sim, matrizes que dialogam em maior
ou menor intensidade.
Dessa forma, também poderemos entender a literatura produzida a partir de
produções da literatura oral na Amazônia paraense. O que queremos afirmar é que
não devemos procurar essencialismos, ou seja, uma produção totalmente autêntica
e local, uma vez que a literatura oral na região foi composta dialeticamente de
outras narrativas que se puseram em contato a partir do processo de colonização
da região, principiado decisivamente no século XVII, na região da Amazônia
oriental – nordeste do estado do Pará e noroeste do estado do Maranhão. Em
particular, a região do nordeste do Pará adquire maior importância nesse contexto,
em razão de o trânsito entre a Amazônia e o restante do Brasil ocorrer
primeiramente por esse corredor7. Para o padre Vieira, segundo Cruz, a navegação
marítima entre Pará e Maranhão era muito desgastante e perigosa pela falta de
ventos, o que deixava à deriva os navegantes por semanas e meses. Segundo Cruz:

Os perigos a que se expunham os navegadores que se arriscavam a atravessar a


distância que ia de São Luís a Belém justificavam as providências reais. Daí as
recomendações da corte para que se acabasse o caminho terrestre iniciado por
Cristóvão da Costa Freire, e onde, advertia o rei, havia a utilidade de ser feito com mais
segurança o comércio entre os dois portos8.

O nordeste do Pará constituiu-se em espaço promissor por se transformar,


com o tempo, em local de convergência de populações que transitavam entre Belém
e São Luís, mesmo porque já havia o hábito de, para alcançar o Maranhão, partir-se
de Belém, subir o rio Guamá até Ourém, percorrer o caminho dos índios até
Bragança, no rio Caeté, descer esse rio até a costa do Turiaçu e, de lá, por via
marítima, chegar a São Luís. Portanto, essa região desde cedo adquiriu
característica de espaço de trânsito de homens e suas culturas – heterogeneidade
cultural e transculturação narrativa –, o que se consolidou, no início do século XX,
com a estrada de ferro Belém-Bragança. Toda essa diversidade estabeleceu um
primeiro amálgama cultural na Amazônia, o que faz do nordeste do Pará um
imenso laboratório sócio-histórico e cultural da região: culturas em contato ou já
permeadas, com suas construções discursivas narrativas e identitárias
sedimentadas, e a constituição de seus saberes e fazeres há muito solidificada,
mesmo que haja um constante processo de misturas. E as narrativas míticas orais
são resultado, enquanto produtos, desse processo de contatos culturais.
Sabedores de que o texto narrativo é uma das formas de organização do
pensamento e do conhecimento, pois são variáveis a percepção e a representação
da realidade (que produz cultura), acreditamos que haja, nas formas narrativas
míticas e orais, a possibilidade de compreender, mediante os elementos da
narrativa que trazem a impressão do narrador e, por extensão, de sua coletividade
– conforme o contrato social afirmado ou negado na narração –, como dada prática
de cultura organiza, representa e valora um grupo social. Daí a necessidade de
estudar a estrutura da narrativa para que possamos desvelar os sentidos de uma
prática, em relação analítica de quantificação e qualificação, conforme a
ocorrência, predominância e relevância de certos fatores de representação da
realidade pelo narrador (tipo de narrador, relação narrador-narrado, função
actancial do protagonista, forma do protagonista, entre outros fatores). Esses
aspectos analíticos podem nos dar a dimensão sociocultural da região e caracterizar,
após quantificação de ocorrências e predominâncias, a identidade regional que
marca a Amazônia oriental.
Isso é possível a partir do momento em que consideramos a narrativa
história, isto é, sistema de personagens e acontecimentos. Para tanto, não nos
interessou proceder à análise e à interpretação de grande número de narrativas
coletadas na região. Consideramos, basicamente, dois aspectos na seleção do
material: a) identificar as personagens míticas presentes na região sem recorrer às
suas variantes; b) selecionar aquelas que apresentassem uma lógica de ações ou
acontecimentos mais nítidos. Assim, estabelecemos o privilégio da lógica sobre a
cronologia, o que possibilitou dividir as narrativas em sequências – primeiro passo
para uma proposta de análise estrutural. A partir dessa metodologia detectamos
nove personagens: curupira, ataíde ou sarambui, princesa, mãe-d’água, cobra-
grande, Maria Vivó, boto, matintapereira, vira-bicho.
A necessidade de estabelecer um modelo com base nas sequências das nove
narrativas não nos impediu de ratificar, e mesmo retificar, nossas hipóteses com
outras narrativas do corpus coletado, pois acreditamos que um objeto de pesquisa
merece, antes de se adentrar em sua origem e nos processos de transformações, ou
seja, no seu histórico, um estudo descritivo de sua composição e construção. Para
tanto, partindo de um corpus limitado, não queremos fechar a análise, mas, ao
contrário, construir um modelo que seja ponto de partida para outras análises e que
sirva a outros companheiros que se lancem à mesma empreitada. Segundo Barthes:
“Ou bem a narrativa é uma simples acumulação de acontecimentos, caso em que só
se pode falar dela referindo-se à arte, ao talento ou ao gênio do narrador (do autor)
– todas formas míticas do acaso, ou então possui em comum com outras narrativas
uma estrutura acessível à análise”9.
É por acreditarmos na existência de uma estrutura matricial das narrativas
coletadas que objetivamos a construção de um modelo hipotético de descrição, em
procedimento dedutivo, não obstante crermos na dialética desta análise: a dedução
se constrói na aplicação da teoria, que está sujeita a transformações; a estrutura é o
primeiro momento para a explicação dos processos.
Devemos, então, determinar as sequências narrativas de cada mito
selecionado, que devem ser compreendidas como unidades narrativas mínimas10,
que se conformam em blocos semanticamente coesos e intuitivamente
reconhecidos por essa coesão. As sequências são ordenações lógicas de elementos
nucleares (cardinais) das narrativas, em torno dos quais ocorrem expansões
(catálises). É como se em cada sequência houvesse uma ação dominante (oração
principal) e, internamente, uma rede de sub-rogações, isto é, de sintagmas
subordinados, mas que estabelecem solidariedade, em número mínimo de núcleos
que podem ser entendidos como verbos de orações interligadas sintaticamente.
Assim, as narrativas estudadas neste texto podem ser resumidas do seguinte
modo, a partir de seus sintagmas principais (orações/ações consideradas por nós
mais importantes):

Narrativa 1 (N1) – Curupira


Nelson era um garoto meigo, brincalhão e conhecido no povoado do
Catumbi. Um dia, quando estava com 8 anos, andava sozinho pela mata e
encontrou a curupira11 transformada em João Monteiro, homem muito conhecido
no povoado. João Monteiro convidou Nelson para apanhar patauá; ele aceitou, pois
era amigo de João Monteiro. Nelson foi até o centro da mata12 e desapareceu. A
família de Nelson e os demais moradores do povoado foram procurá-lo. Outro
grupo de amigos foi a Jundiaí pedir ajuda a um pajé. O pajé preparou um remédio
que foi colocado no local onde aconteceu o encantamento. Poucas horas depois
Nelson apareceu, mas desaparecia intermitentemente. Em um dos
reaparecimentos conseguiram recapturá-lo. Nelson, porém, passou a ser um
menino triste e isolado; espumava, urrava e gemia feito bicho. Ele viveu nesse
sofrimento até os 13 anos, quando morreu.
Narrativa 2 (N2) – Ataíde ou sarambui
Antigamente, os pescadores que viviam nos ranchos viam o sarambui13; por
isso, sempre estavam em grupo. Uma noite, um pescador resolveu tapar um
igarapé. O pescador ficou na canoa esperando a maré vazar e ouviu gritos
medonhos vindos da direção do igarapé. O sarambui atravessou um tronco no
igarapé e veio na direção da canoa. O pescador colocou a canoa para o meio do
igarapé. O sarambui avançou até certo ponto do igarapé, até onde a água não batia
em um buraco que ele tem na barriga. Os pescadores deixaram amanhecer para
poder tirar os peixes, pois o sarambui, à noite, poderia estar por perto.

Narrativa 3 (N3) – Princesa


Havia uma princesa que habitava um lago. Ela apareceu três vezes para um
rapaz muito corajoso. A princesa pediu a ele que a desencantasse. Era para o rapaz
furar o barril que viesse na terceira onda. Quando houvesse o desencanto, a vila de
Algodoal se tornaria uma grande cidade. Com um arpão na mão, o rapaz foi para o
local determinado esperar as três ondas. Na terceira onda veio um enorme barril;
ele ficou com medo e correu. No outro dia, a princesa foi saber a razão de o homem
não tê-la desencantado. O encanto piorou e a princesa viria transformada em cobra
na terceira onda. O medo do rapaz aumentou e ele não teve mais coragem. A
princesa continuou encantada e foi embora para a praia dos Lençóis, no Maranhão.

Narrativa 4 (N4) – Mãe-d’água


O marido saiu de casa e deixou a mulher só com a filha. Quando amanheceu,
a mulher foi para o igarapé lavar louça, deixando a criança sozinha, dormindo.
Quando a mãe chegou, não encontrou a criança na rede. A mulher saiu à procura
da filha. À tarde, ela ouviu um choro no mato. A criança estava em um lugar limpo;
em volta, só espinhos e tiriricas. A mãe-d’água estava observando da sapopema de
um pau. A mãe levou a filha para casa. À noite, a mãe-d’água ficou rondando a casa,
assobiando e querendo levar a criança. A mãe da criança esfregou um alho em cruz
e passou nos cantos da casa. A mãe-d’água foi embora.

Narrativa 5 (N5) – Cobra-grande


Coió foi pescar juntamente com Zé Neto. Passaram por uma madorna
[modorra, sono leve]. Quando Zé Neto acordou, Coió não se encontrava mais na
canoa. Coió desapareceu misteriosamente, até hoje, da popa da canoa, na camboa,
no pesqueiro: caiu na água ou a cobra-grande o tragou? Em Marudá de Cima um
menino pulou do trapiche e desapareceu em um redemoinho. Uma semana depois
foi encontrado vomitado e são. Dizem que a cobra-grande engoliu e depois
vomitou o menino. O menino ficou desidratado e descascado.

Narrativa 6 (N6) – Maria Vivó


Uma senhora muito idosa engravidou e deu à luz Maria Vivó, uma cobra.
Maria Vivó foi lançada ao rio Tupinambá. Antes, um pajé pegou um olho de Maria
Vivó. A cobra se encantou embaixo das pedras do farol. O lado que ela olha para a
terra é cego, o lado que ela olha para o mar é um facho. Maria Vivó é bem visível aos
pescadores nas águas de janeiro a abril. Maria Vivó vive com o boto, o seu grande
amado pescador.

Narrativa 7 (N7) – Boto


Azevedo e Saboia resolveram pescar e foram tapar um igarapé. Quando a
maré secou, notaram um boto dentro da cerca. Azevedo tentou matar o boto, mas
foi impedido por Saboia. Saboia o alertou do perigo que era ferir um ser mítico.
Azevedo tentou atingir o boto com duas facadas. A segunda facada resvalou e
atingiu a coxa de Azevedo. Azevedo teve paralisia imediatamente. Saboia foi buscar
socorro, retornou e levou Azevedo. Os pajés foram chamados para salvá-lo. Nada
deu resultado positivo – Azevedo morreu em menos de vinte e quatro horas depois
do ocorrido.

Narrativa 8 (N8) – Matintapereira


O pai e os filhos fizeram barraca na beira do rio para cortar seringa. Todos
resolveram, certo dia, ir para a localidade de Trindade. Um dos filhos resolveu ficar.
O pai advertiu sobre a presença de uma matintapereira nos arredores. O rapaz
ficou sozinho e à noite ouviu um assobio. Ele avistou na beira do rio uma
matintapereira. O rapaz deu um tiro. Mais tarde ouviu barulho já próximo da
barraca. Preparou-se para dar mais um tiro, mas sentiu frio e ficou tremendo. A
matintapereira deitou sobre ele e o manietou; advertiu-o para que não repetisse a
atitude de enfrentá-la. Ela foi embora, voando sobre o rio.

Narrativa 9 (N9) – Vira-bicho


Um senhor da vila de Areal sempre se queixava do sumiço dos filhotes de sua
cadela. Decidiu pegar o bicho que atacava. Ferveu uma panela com água e esperou
o bicho atacar. À meia-noite o bicho estava embaixo do jirau, roçando para
encontrar os cachorrinhos. O senhor abriu a janela e derramou a água. Largou a
panela e pegou a espingarda, saindo atrás do animal. O bicho desapareceu. Pela
manhã, o rastro do bicho estava cheio de pele. Mais tarde, soube-se que uma velha
foi encontrada deitada no chão, com as unhas grandes e a pele soltando, toda
queimada. Os moradores do lugar levaram-na para casa; a velha não queria que
ninguém fosse visitá-la. Dona Raimunda foi fazer curativos e levou uma dentada
da velha. Mesmo assim, continuou a cuidar dela.

ESTRUTURA E FORMA NA NARRATIVA:


A CONSTITUIÇÃO DE MODELOS CULTURAIS

A noção de estrutura já existia para os romanos, proveniente da palavra


structura, derivada do verbo struere, construir. É certo que nos dias de hoje, para
muitos, perdeu-se no tempo e no uso esse caráter de construção permanente que o
infinitivo confere à palavra, permanecendo ou sendo unicamente considerada a
noção de algo definido e acabado. Para o estudo, foi necessário nos atermos à
forma, mas sem perder de vista que a estrutura é um processo de construção
interativo e permutável, em que, dependendo da elaboração determinada
(sintagma), um elemento ganha lugar e peso específico no conjunto: daí a noção de
função, quando certo elemento tem o seu significado determinado pela posição
que ocupa no todo.
Partindo desse princípio, é providencial em nossa análise definir essa
estrutura e ocupações, os espaços dos elementos estruturais, nas narrativas de nosso
corpus. Primeiramente, é bom levarmos em conta – relegando as características
particulares das personagens – que a narrativa, qualquer que seja, está assentada
em uma relação de desigualdades, confrontos, que provocam a eliminação de um
sujeito e o benefício de outro. Equacionadamente, uma narrativa mínima seria da
seguinte forma: S1 ∪ O ∩ S2, e vice-versa – em que S1 e S2 são os sujeitos 1 e 2, O é o
objeto visado pelos sujeitos, ∪ é a relação de disjunção entre sujeito e objeto, e ∩, a
relação de conjunção entre sujeito e objeto.
A narrativa, então, é um devir em que os sujeitos/personagens participantes
têm entre si relações combativas ou solidárias: as primeiras são destrutivas, as
segundas, produtivas. Partindo desse princípio, cremos que a narrativa é
modelizadora de cultura. Prestemos atenção no quadro a seguir, relativo às nove
narrativas do corpus do trabalho:

SUJEITO 1 (S1) OBJETO (O) SUJEITO 2 (S2)


NARRATIVA RELAÇÃO RELAÇÃO
ANTROPOMÓRFICO ANTROPOMÓRFICO MITOMÓRFICO

1 Nelson ∪ Mata ∩ Curupira


1.1 –– –– Mata ∩ Nelson

2 Pescadores ∪ Igarapé ∩ Ataíde

3 Caboclo ∪ Praia ∩ Princesa

4 Mãe/filha ∪ Igarapé ∩ Mãe-d’água

4.1 Mãe/filha ∩ Casa ∪ Mãe-d’água

5 Coió/menino ∪ Maré ∩ Cobra-grande

6 Mãe/sociedade ∪ Maré ∩ Maria Vivó

7 Azevedo ∪ Igarapé ∩ Boto

8 Filho ∪ Tapera/beira ∩ Matintapereira

9 Senhor/comunidade ∩ Cidade ∪ Vira-bicho

Levando em consideração que o presente trabalho se preocupa com o


cultural, ou seja, com a compreensão das relações entre homem/sujeito e
espaço/mundo, observamos que nas nove narrativas há conjunções ou disjunções
entre sujeito 1 e sujeito 2 e o objeto (espaço14); isso porque, em uma acepção
antropológica, o homem e a sua cultura são produtos das ligações com o espaço – a
natureza –, uma vez que “cultura” vem do latim cultura-ae, e significa, entre outras
coisas, morar, cultivar uma terra, um espaço. Na coluna S1 (antropomórfico) estão
discriminadas as personagens humanas, pertencentes ao cultural (em suma, toda
forma de conhecimento, de produção material e imaterial, gerada pelo homem).
Entendemos que essa produção/domínio é decorrente do espaço em que
determinado grupo social habita e cultiva a terra; por isso, esse espaço é o urbano
das vilas e cidades do nordeste paraense onde foi realizada a pesquisa. São espaços
marcados pela conjunção com o homem, a exemplo do que acontece com N9: em
seu hábitat, o homem/senhor da narrativa consegue impor-se ao ente mítico, o
vira-bicho, pondo-o para correr e vencendo-o ao desmetamorfoseá-lo.
Ressaltamos que os sujeitos antropomórficos aqui referenciados são os que
obrigatoriamente têm a aparência física ou atitudes humanas, ou que pertencem
originariamente ao mundo dos homens. Na coluna S2 estão relacionados os
sujeitos por nós intitulados mitomórficos, ou seja, personagens da narrativa que,
mesmo originárias do mundo dos homens, do cultural, assumem função de
antagonistas das personagens antropomórficas, seja enfrentando-as diretamente,
desafiando-as em tarefas ou impondo interdições às atitudes e aos valores das
personagens antropomórficas. Aqui se enquadram, portanto, as personagens
humanas viradas (transformadas) seres míticos, pois, uma vez metamorfoseadas na
narrativa, sua função é a de se opor aos seres humanos no domínio do objeto, ou
seja, do espaço. Eis uma das razões por que primeiro trabalharemos a função que
os elementos adquirem no sintagma narrativo: interessam-nos as relações
combativas ou solidárias em um primeiro momento. Por isso é importante
percebermos que os sujeitos pertencentes ao mundo mítico – mundo realizado pela
narrativa – entram em conjunção com o espaço natural, seja este a mata, o igarapé,
a praia, a maré ou a beira do rio. E, ao que parece, a grande maioria das narrativas
prima por afirmar essa relação conjuntiva: oito das nove narrativas ligam os seres
mitomórficos aos espaços naturais, como se eles tivessem a primazia e o domínio
desses lugares. Surge uma primeira afirmativa em nossa análise estrutural: as
narrativas orais populares em que ocorre a presença de seres/personagens míticos
no nordeste paraense apresentam, em princípio, no estado inicial, relações
solidárias desses seres com a natureza – água, terra e ar –, contrariamente ao
homem (sujeito antropomórfico), que se sente fragilizado nesses espaços, devendo
obedecer aos obstáculos impostos nesses lugares, sob o risco de ser penalizado,
como ocorre em N7. Ao que parece, o estado inicial de equilíbrio apontado pela
narrativa se estabelece com a ordem imposta pelos seres mitomórficos, que os
sujeitos antropomórficos desestabilizam, provocando o con lito que deslancha o
sintagma narrativo.
Como ser desejante, o sujeito constitui o seu objeto como propósito único,
intento natural do sujeito ao combate, oportunidade em que ele pode medir-se ante
o adversário e, finalmente, eliminar ou ser eliminado, não sem antes alternar
sucessos e reveses ao longo da trajetória, que é a história da luta pela posse do
objeto: o ato narrativo é a figuração dessa tendência do ser humano, pois não há
história nem discurso sem ação. Assim é que, movido pelo objeto do desejo, o
sujeito constrói uma história pautada na satisfação real do desejo, ou seja, no
desejo de realidade, que por si só já é palco de con litos. Ora, se o sujeito tem seu
antagonista é porque, nessa relação con lituosa, o que está em jogo é pôr em
prática o que se deseja que venha a ser real. Sendo o corpo a medida, pois o que não
pode ser relacionado ao corpo é morte, o que se deseja que seja real é onde
procuramos ter o prazer, já que o desprazer, o desconforto, está na ilusão do real,
em outras palavras, na alucinação.
Procede questionarmos se a existência dos seres mitomórficos é obra da
realidade ou da alucinação. Assim como Kehl, acreditamos que
As relações entre realidade psíquica e a realidade externa ao psiquismo estão longe de
ser de pura oposição. Para entender um pouco do que as constitui, temos de admitir no
mínimo que: primeiro, toda fantasia toma como suporte algum acontecimento da
experiência real; segundo, nem tudo o que é recalcado são fantasias – percepções da
realidade externa que podem ser sentidas como ameaçadoras para o ego em função de
sua associação com o desejo também são recalcadas e se incorporam ao conjunto de
imagens que vão formar a tal realidade psíquica15.

Se a dimensão do real é o corpo, então aquilo que aparentemente é


alucinação apresenta existência concreta porque, vale lembrar, a fantasia é o
roteiro imaginário em que o sujeito (o corpo) está presente, sendo, pois, de forma
parcialmente deformada a realização do desejo de ter o objeto. O ser
antropomórfico das narrativas pode até não deter o objeto (o domínio do espaço),
mas o ser mitomórfico o detém, vindo à luz pela fala do narrador e existindo
unicamente na sua história, em suma, no seu imaginário, na sua fantasia. Assim, o
sujeito antropomórfico é dominador do espaço às avessas porque também está
presente na trajetória de seu antissujeito, uma vez que toda narrativa é constituída
de dois percursos narrativos. Além do mais, só sabemos que existe um objeto
porque é perceptível através dos sentidos (dimensão do corpo). É certo que,
estigmatizados como alucinação, os seres mitomórficos causam desconforto; mas
tal desconforto ainda não seria re lexo do homem civilizado (urbano) diante da
natureza de um novo mundo?
O certo é que a estrutura básica da narrativa contempla a necessidade de
satisfação de um desejo no encontro e na posse de dado objeto. Enquanto
satisfação de desejo, a narrativa traz, mesmo implicitamente, a lembrança do
objeto na percepção de sinais que, articulados, constituem a fantasia (entendida
como narrativa). Os traços mnésicos do desejo realizam-se pela reprodução
alucinatória, o que permite a Freud distinguir desejo de necessidade: esta tem
muito mais a ver com uma ação específica de satisfação, que fornece um objeto
adequado. Em nosso caso, a existência dos seres mitomórficos é mnemônica, isto é,
se dá na realidade psíquica. Não existe uma única narrativa que contemple a
necessidade de satisfação na posse do objeto, mas os seres mitomórficos são
fugazes e estão em várias situações como prova de um imaginário amazônico; são,
por isso, deslizantes: são o próprio desejo, uma permanente insatisfação, e assim
são indestrutíveis.
Contando a história de desejos, as narrativas também são, por outro lado,
histórias de tabu. Vale lembrar que o tabu, proveniente do polinésio tapu, foi
comportamento registrado pelo navegante inglês James Cook (1728-79) nas ilhas
Tonga, na Oceania, e consiste em proibição aos profanos de se relacionarem com
seres animados, objetos ou lugares determinados, ou mesmo de se aproximarem,
por seu caráter sagrado; do contrário, os profanos poderiam sofrer consequências,
isto é, os castigos divinos. É curioso observar a relação entre transgressão e tabu,
uma vez que transgredir, longe de ser uma provocação ao sagrado, serve para
reforçar o poder político do mito (narrativa de fundação de realidades e de
ordenação de um grupo social). As narrativas orais amazônicas têm o compromisso
de lembrar ao nativo esse poder: balizando os limites do permitido e do proibido,
os desejos podem ser policiados.
O livro Morfologia e estrutura no conto folclórico16, de Alan Dundes, nos remete à
questão da transgressão do tabu ao sustentar um modelo estrutural dos contos
indígenas norte-americanos que se assenta, primordialmente, em carência; em
outras palavras, estamos diante de uma falta, da privação de algo que desejamos e
que se constitui em necessidade na nossa vida. Dundes também acredita que a
narrativa folclórica (que preferimos chamar de popular) seja a história de desejos e
de privações e, algumas vezes, de realizações desses desejos. Por isso, o autor
assegura que a sequência narrativa nuclear é composta bimotivemicamente por
carência (C) mais reparação da carência (RC). Ele considera esses motivemas17
mínimos para que se tenha a narrativa, por estabelecerem a tensão da diferença
que almeja a semelhança, isto é, a disjunção que se quer conjunção, em um
movimento do desequilíbrio ao equilíbrio, o primeiro marcado por abundância ou
propriamente carência. É importante compreender que, partindo dessa sequência
bimotivêmica, podemos obter expansões na sintaxe narrativa básica anunciada
com outros motivemas interpostos e mesmo finais, isto é, que possam ser
acrescidos ao bimotivema porque os motivemas de Dundes são invariantes, mas os
motivos não se comportam da mesma maneira:

[…] existem sequências estruturais de motivemas, mas não de motivos. Os motivos em


um conto popular têm uma relação estrutural entre si apenas na medida em que os
motivemas que eles expressam também a têm. Contudo, a sequência estrutural de
motivemas é mantida independentemente dos motivos específicos que podem
expressar esses motivemas18.

O motivo é a entidade variável figurada por uma proposição que predica uma
ação a uma personagem (ex.: “Nelson foi à mata” – N1); os motivos são os elementos
que preenchem os motivemas, a narrativa propriamente. No entanto, nosso
objetivo agora é, partindo dos motivos/narrativas, verificar a ocorrência dos
motivemas de Dundes no corpus. Mas, antes, conheceremos as demais sequências
motivêmicas.
O autor assevera que na maioria dos contos observados por ele, e que
apresentam a sequência nuclear bimotivêmica (C e RC), aparecem motivemas
interpostos, em número limitado. As três principais sequências são: 1) tarefa (T) e
realização da tarefa (RT); 2) interdição (Int) e violação (Viol); e 3) ardil (Ard) e
engano (Eng). Há casos em que a carência inicial (C) não está explícita, mas é
depreendida de alguma ação no conto; também pode ocorrer que a tentativa de
eliminação do estado de desequilíbrio (tentativa de realização do desejo) provoque
outro desequilíbrio: o demasiado e o muito pouco são equivalentes.
A sequência seguinte anunciada por Dundes é a tetramotivêmica, composta
de interdição (Int), violação (Viol), consequência (Conseq) e tentativa de fuga da
consequência (TF). O motivema tentativa de fuga é opcional, podendo o conto
terminar na consequência; esta pode, por seu turno, conduzir a um estado de
carência ou abundância. A tentativa de fuga é vista pelo autor como uma tendência
cultural, bem como o sucesso ou o fracasso da fuga. É importante saber nessa
sequência que a grande maioria dos contos populares dos nativos norte-
americanos, segundo Dundes, está assentada na interdição seguida da violação, à
semelhança do que ocorre em nossas narrativas do nordeste paraense. Qual será a
razão? Dundes nos responde:

As interdições, e os tabus em geral, são frequentemente regulamentos destinados a


manter o universo em equilíbrio. A violação de uma interdição ou tabu perturba o
equilíbrio, causando um estado de desequilíbrio que perdura até que o efeito
consequente seja anulado, eliminado ou evitado19.

Devido a esse caráter matricial nos contos observados, a sequência


motivêmica interdição-violação pode ocorrer por si mesma, a despeito da
sequência nuclear bimotivêmica. O autor ainda nos chama a atenção para a
presença de um motivo explicativo (mot explic), que, por mais que não desempenhe
propriamente um papel estrutural por seu caráter aleatório, foi observado com
frequência no final: os contos indígenas norte-americanos tendem a ser concluídos
com alguma forma explicativa, constituindo-se esse final como uma característica
geral desses contos, segundo o autor. A função do motivo explicativo é assinalar o
término de um conto.
Outra sequência tetramotivêmica é constituída pela carência (C), ardil (Ard),
engano (Eng) e reparação da carência (RC). Para Dundes, contrariamente ao que
Propp considera, o ardil não é obra unicamente do vilão, podendo ser empregado
muitas vezes pelo herói, o herói astuto. A questão é que a análise de Propp está
respaldada em contos indo-europeus que acentuam elementos do tradicional
dualismo entre o bem e o mal, herói e vilão – maniqueísmo que cabe tão bem à
civilização ocidental, por razões óbvias do colonialismo europeu. Ressalta também
o autor que o logro requer um disfarce enganador, que geralmente está ligado a um
elemento ou uma personagem insuspeita, como um bebê ou uma inocente criança;
esse disfarce pode ser observado em N1, quando a curupira se disfarça como uma
pessoa amiga.
Os motivemas de Dundes podem ser utilizados convenientemente para a
análise das narrativas de nosso corpus? Isso é o que veremos a seguir. Inicialmente,
admitamos que o sujeito 1 tenha uma relação de transitividade com o objeto
(normalmente em posse do sujeito 2), que passa a ser o objeto do desejo, uma vez
que o sujeito 1 institui a modalidade do querer em relação ao objeto, o que é o
primeiro passo para a construção do fazer, isto é, do percurso narrativo (PN): aqui,
estaríamos vislumbrando a sequência nuclear bimotivêmica carência (C) mais a
reparação da carência (RC). Em todas as nove narrativas foi detectada a carência,
seja explícita ou implícita: em N1, N3 e N9 temos explicitamente a necessidade
manifesta do desejo, do querer, quando é anunciado que Nelson gosta de passear
pela mata, quando a princesa manifesta a vontade de se desencantar, quando o
senhor manifesta a vontade de pegar o vira-bicho; nas demais narrativas, podemos
depreender a carência, que, não estando manifesta, implicitamente ocorre: nesse
caso, o objeto desejado é o espaço, que, interdito, provoca a carência e,
consequentemente, leva o sujeito a violá-lo – é o pescador que se lança às águas
para garantir a sua sobrevivência (N2, N5 e N7); a dona de casa que vai ao igarapé
realizar um trabalho doméstico (N4); o menino que vai à maré para o lazer (N5); pai
e filhos que realizam o trabalho extrativista para garantir o sustento (N8). A exceção
ocorre na narrativa N6, pois o proibido não é relativo ao espaço, mas ao indivíduo
(proibição da mulher idosa de engravidar, por não se admitir o desejo sexual em
pessoas mais velhas); de qualquer maneira, a consequência (Conseq) é o
isolamento de Maria Vivó (resultante de uma transgressão) no espaço de
interditos, a água.
Vale lembrar que o sujeito desejante, operador de transformações, é
naturalmente elemento da sintaxe narrativa: o homem é narrativa. E ele só o é
porque seus desejos automaticamente estão ligados a interdições e violações.
“Somos tentados a conjecturar que qualquer conto baseado na sequência nuclear
bimotivêmica pode ser narrado com uma sequência interdição-violação que causa
a carência inicial”20. Deve-se considerar também o fato de o objeto ser local de
investimentos dos valores ou determinações que facultam o preenchimento
semântico do sujeito. Em outras palavras, podemos afirmar que, por meio do
espaço (objeto), temos condições de conhecer o sujeito e de desenhar sua
idiossincrasia. Mediante o estatuto modal (querer, fazer, poder) do sujeito em face
do objeto, podemos delinear o sujeito semiótico, em suas ações e virtualidades.
Ao aceitarmos a narrativa como a história de carências e desejos e
correspondentes interdições e violações, nós a aceitamos também como uma
narrativa dupla, não homogênea, que pode ser desdobrada em dois percursos
narrativos (PN), competentes a cada um dos sujeitos (sujeito e antissujeito).
Lembrando Reis e Lopes21, a “circulação do(s) objeto(s) pode dar origem a uma
estrutura narrativa polêmica (luta/competição de dois sujeitos em torno do mesmo
objeto) ou contratual (troca de objetos entre sujeitos)”. Greimas22 intitula esta
última estrutura narrativa de transacional.
É evidente que, para existir a narrativa, em algum momento os dois
percursos narrativos se encontram e se sobrepõem para que se produza a
confrontação. Esquematicamente teríamos:

O resultado dessa operação é a transferência de objetos de valor de um


sujeito a outro; e a narratividade, propriamente, é a circulação dos objetos, na qual
cada transferência é um eixo narrativo a partir do qual podemos ter o recomeço de
uma narrativa.
Nossa próxima tarefa nesta análise será identificar o momento do
cruzamento dos percursos narrativos, acusando a sequência motivêmica que mais
se ajusta. Ao que parece, a sequência motivêmica nuclear do corpus é interdição-
violação, momento em que mais nitidamente há deslocamento de objetos.
Queremos dizer que essa predestinação é justificável em Dundes, conforme
informamos anteriormente neste trabalho. Chamamos a atenção, no entanto, para
a consideração dos percursos narrativos, como a história de um sujeito e a história
de um antissujeito e vice-versa. Isso significa que não podemos acatar a tradicional
caracterização de que o herói é quase sempre o ser antropomórfico, e o vilão, o ser
mitomórfico, como ocorre nesses exemplos. Lembremos que, antes de serem
papéis actanciais, são sujeitos que devem ser lidos semanticamente à luz de uma
cultura, e, mesmo que o fossem, os actantes não são rótulos fixos, mas se
constroem à medida que a história avança, podendo permutar de uma sequência a
outra.
Uma milenar tradição cultural ocidental e eurocêntrica investiu na figura do
protagonista sempre representado por um herói:
A postulação teórica do conceito de herói relaciona-se diretamente com uma concepção
antropocêntrica da narrativa: trata-se de considerar que a narrativa existe e desenvolve-
se em função de uma figura central, protagonista qualificado que por esta condição se
destaca das restantes figuras que povoam a história23.

Fica, portanto, evidente a ligação do herói ou protagonista com o ser


antropomórfico da narrativa. Pórem, em nosso corpus, isso nem sempre acontece.
Considerando que a narrativa é a história de seres que se locomovem no espaço
com o intuito de dominá-lo, promovendo a circulação desse objeto para possuí-lo,
nem sempre acontece o antropocentrismo narrativo nos moldes que Propp
apresentou em sua morfologia. Podemos afirmar que a perspectiva triunfalista se
liga àquele que está em conjunção com o espaço; daí apenas a narrativa N9
apresentar a sobreposição do antropomórfico ao combater o mitomórfico: é
afirmada a nossa premissa de que o espaço urbano é reduto do homem, e a
natureza é o espaço do mítico.
Não existe, em nossas narrativas, o herói na configuração do tradicional, do
elemento marcado para ser o vitorioso. Ao contrário, ocorre o percurso narrativo
mitomórfico, como na narrativa N3: a princesa atribui a tarefa (T) de desencantá-la
ao rapaz, que não a realiza por temer o desconhecido, fato que não ocorreria no
conto proppiano. O herói antropocêntrico se aliaria ao sobrenatural, ao mágico,
para a realização da tarefa (RT); a narrativa N3 é o único caso, no corpus, em que essa
sequência motivêmica aparece, mas não é plenamente realizada.
Outra incidência no corpus é o do duplo percurso narrativo (PN), em que se
alternam momentos de domínio do mitomórfico (Mm) e do antropomórfico (Am).
É o caso da narrativa N4, em que primeiramente a mãe-d’água vence ao impor a
consequência (Conseq) da violação (Viol) da mãe24 por meio do rapto da filha, mas
posteriormente a mãe realiza a tentativa de fuga (TF) ao espantar a mãe-d’água com
uma simpatia. A narrativa N6 também demonstra a duplicidade do percurso
narrativo (PN), principiando por uma interdição-violação aos valores
antropomórficos – a gravidez de uma mulher idosa – e, posteriormente, estabelece
o PN de um ser mitomórfico.
Nas demais narrativas, observamos o predomínio do percurso narrativo (PN)
dos seres antropomórficos (Am) – N1, N2, N5, N7 e N8 –, mas apenas em um caso o
elemento Am é vitorioso, talvez por uma fatalidade natural, pois o sarambui não
pode avançar na água por possuir um orifício na barriga, que o levaria a, talvez, se
afogar. Nos demais casos, o Am é penalizado na consequência, mesmo que antes
procure a tentativa de fuga (TF): ocorre com Nelson em N1 e com o pescador
Azevedo em N7.
Na narrativa N1, única em que se realiza o motivema ardil-engano, há o
indício de nossa conjectura sobre a relatividade do herói na narrativa. Mesmo que
Propp classifique o ardil e o engano como expedientes do vilão, o que corresponde
à função 6 e à função 7 (em Propp), respectivamente, Dundes as afirma, como já foi
citado, como operações do herói astuto. É bom lembrar que a curupira se
transforma em João Monteiro, amigo de Nelson, para enganá-lo e levá-lo mata
adentro. Seria a curupira vitoriosa em seu espaço e hábitat natural, constituindo-
se, portanto, em herói?
Afinal, podemos afirmar que existem heróis no corpus em análise? No perfil
clássico do herói, citado anteriormente por Reis e Lopes25, acreditamos que não.
Preferimos anunciar o protagonista no sentido proposto por Ferreira26: pessoa que
desempenha ou ocupa o primeiro lugar em um acontecimento. É claro que essa
primeiridade, ou iniciativa da ação, é relativa, e no nosso entendimento tal
relatividade remonta a quem ultraja o proibido, o que lembra o teatro grego: o
protagonista é o primeiro ator do drama, quem desenvolve o páthos, o sofrimento; é
quem viola o proibido em nome do desejo e do amor. Talvez nossos protagonistas
estejam mais próximos do herói grego, pois apenas em duas narrativas (N2 e N4)
acontece verdadeiramente a tentativa de fuga (TF), do castigo, da consequência
(Conseq): em N2, o pescador consegue fugir do sarambui indo para o meio do
igarapé; em N4, a mãe espanta a mãe-d’água com uma simpatia. Poderíamos até
perceber a TF nas narrativas N1 e N7, quando, na primeira, Nelson é salvo pelos
pajés da mesma forma que Azevedo recorre à ajuda deles; mas, em ambos os casos,
o fim é a morte. Dundes ressalta que o motivema TF é opcional nos contos
indígenas norte-americanos, e ao que parece ocorre o mesmo em nossas
narrativas: esse motivema pode estar associado a uma tendência cultural. O
protagonista pode ser tanto um ser antropomórfico (Am) como mitomórfico (Mm),
dependendo unicamente de quem principia a ação, e ele realizará a violação ao
tabu, sofrendo a consequência (Conseq). Ao que tudo indica, o aspecto cultural de
nossas narrativas é que o mito, como valor social, está fortemente arraigado, quase
não permitindo o ultraje aos valores: ao infrator, a penalidade. Mais uma vez
chamamos a atenção: é punido o elemento Am que invade a natureza sem respeitá-
la, bem como o elemento Mm que assim proceda em relação ao urbano.

QUASE CONCLUSÕES

À guisa de concluir nossa análise, esboçaremos, pautados em Dundes, a


sequência motivêmica mais recorrente nas narrativas de nosso corpus: interdição-
violação-consequência. Isso não sem antes anunciarmos que essa sequência não é
inviolável, visto que nos exemplos ocorrem variações, com o acréscimo de outras
sequências. O próprio autor alerta para o conceito de profundidade motivêmica,
que é a quantidade de motivemas interpostos entre os componentes de um par
motivêmico: ele diz que os contos tradicionais dos indígenas norte-americanos
têm uma profundidade motivêmica menor que os populares europeus, à
semelhança do que ocorre entre nossas narrativas e as estudadas por Propp, por
exemplo; oriundas de espaço semelhante, isto é, o espaço do continente americano,
além de expostas a condições similares de produção cultural, essas narrativas
talvez estejam estruturalmente mais próximas, apesar de haver uma transfusão
cultural, com acréscimos e cortes na estrutura. O certo é “que a sequência
motivêmica interdição – violação ocorre por si mesma”27, na maior parte das vezes,
trazendo a carência (C) implícita, como nas narrativas N2, N4, N5, N6, N7 e N8; e,
nas demais, a carência vem explícita, o que acontece em N1, N3 e N9. Em todas as
narrativas foi observada, sub-repticiamente, a reparação da carência (RC), que,
porém, se confunde com a própria interdição-violação: em N1, Nelson satisfaz a
vontade de estar na mata, mas a mata é espaço proibido; em N2, N5, N7 e N8, os
pescadores e os extrativistas atendem à necessidade de sobrevivência, mas
adentram um espaço inviolável sem a devida precaução; em N3, o rapaz, à
semelhança do herói em Propp, começa a reparar a carência da princesa, mas
fraqueja diante da possibilidade de violar o espaço simbólico do mar (enfrentar o
barril); em N4, a mãe, ao lavar louça, penetra no domínio da mãe-d’água, o igarapé,
e esta, buscando reparar a perda da criança, viola o espaço humano, a casa; em N6,
a reparação da carência pela concepção de uma vida é sinônima à violação de uma
lógica social, a aberrante gravidez de uma idosa; em N8, a satisfação da necessidade
de sobrevivência (RC) por meio do extrativismo implica a violação do espaço da
matintapereira; em N9, a busca de alimento pelo vira-bicho corresponde à violação
do espaço do homem, tendo como consequência o castigo daquele (a escalda).
Esquematicamente, nossa sintaxe narrativa assim se afigura, conforme os
motivemas: carência-reparação da carência/interdição-violação-
consequência/tentativa de fuga → carência (?).
Ao final, levantamos a hipótese da conservação da carência, lembrando o já
anunciado por Dundes de que a interdição-violação causa uma carência inicial. É
provável que isso ocorra porque os percursos narrativos dos sujeitos mitomórficos
(Mm) e antropomórficos (Am) dificilmente se confrontam e têm como resultado,
uma relação transacional, isto é, de troca, e, contrariamente, uma relação polêmica
ou combativa na maior parte das vezes.

1 Lembramos Benedito Nunes, que nos diz: “a rigor não há um tempo mítico, porque o
mito, história sagrada do cosmo, do homem, das coisas e da cultura, abole a sucessão
temporal”. Cf. O tempo na narrativa, São Paulo: Ática, 1988, p. 66.
2 “A literatura oral compreende o que, para a população não alfabetizada, corresponde às
produções literárias” (tradução do autor). Paul Sébillot, Littérature orale de la Haute-
Bretagne, Paris: Librairie Orientale et Américaine, 1913.
3 Luís da Câmara Cascudo, Literatura oral no Brasil, Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1984, p. 24.
4 Antonio Carlos Diegues, O mito moderno da natureza intocada, São Paulo:
Annablume/Hucitec/Edusp, 2002.
5 William Thomas apud Luigi Lombardi Satriani, Antropologia cultural e análise da cultura
subalterna, São Paulo: Hucitec, 1986, p. 76.
6 Marcos Ayala e Maria Ignez Novais Ayala, Cultura popular no Brasil, São Paulo: Ática,
1995, p. 58.
7 Por ser a costa do Pará extremamente recortada – formada por um litoral de rias, que
são pequenos braços de mar –, desde o início da colonização na região amazônica, por
volta de 1753, procurou-se encontrar um caminho continental que ligasse o estado do
Pará ao restante do Brasil, via Maranhão.
8 Ernesto Cruz, A história do Pará, Belém: Governo do Estado do Pará, 1955, p. 62.
9 Roland Barthes et al., Análise estrutural da narrativa, Petrópolis: Vozes, 1973, p. 20.
10 Para Tzvetan Todorov (As estruturas narrativas, São Paulo: Perspectiva, 1979), as unidades
narrativas mínimas são representadas por uma oração, em que os agentes são sujeitos e
objetos dela, e o predicado é sempre um verbo (ação). Optamos por considerar a
sequência num sentido que não se limitasse a uma única oração, uma vez que, em
nosso entender, ela pode apresentar subordinações importantes à compreensão do
sintagma narrativo, mesmo porque a narrativa é virtualmente catalisável. Assim,
consideramos a sequência como combinação de proposições, uma vez que estas são
vistas, por alguns autores, como verdadeiras narrativas mínimas, compostas por
actantes e suas correspondentes predicações, aqueles distribuídos em diferentes papéis
– agente e paciente –, estas em duas classes, verbal e adjetival.
11 A respeito do gênero variável dessa entidade, ver, na parte “Verbetes”, a explicação das
pp. 428-9.
12 A expressão “centro da mata” apresenta especificidade regional, significando o local
mais fechado da mata e de difícil acesso.
13 Sarambui é uma variante da personagem mitomórfica curupira; aquele ocorre em áreas
de manguezal e praias, e este, na mata de terra firme.
14 A proposta deste trabalho prioriza o espaço como elemento estrutural que faz as ações
míticas deslancharem. Chamamos a atenção para a hipótese de que o espaço – em uma
tendência à poética do espaço bachelardiana – é o elemento natural que favorece certa
ordenação diegética em narrativas de nossa realidade.
15 Maria Rita Kehl, “O desejo da realidade”, in: Adauto Novaes (org.), O desejo, São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 365.
16 Alan Dundes, Morfologia e estrutura no conto folclórico, São Paulo: Perspectiva, 1986.
17 Motivema ou motivo êmico, para Dundes, corresponde à função de Propp; são
entidades invariantes da história, que se dispõem em uma sintaxe narrativa pouco
lexível.
18 Alan Dundes, Morfologia e estrutura do conto folclórico, op. cit., p. 95.
19 Ibidem, p. 103.
20 Ibidem, p. 127.
21 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, Dicionário de teoria da narrativa, São Paulo: Ática, 1988,
p. 187.
22 A. J. Greimas apud Joseph Courtés, Introdução à semiótica narrativa e discursiva, Coimbra:
Almedina, 1979.
23 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, op. cit., p. 210.
24 Pode-se entender a violação como a entrada da mãe no espaço natural – o igarapé – sem
a devida precaução de reverenciar os entes da mata. Isso ocasionou a “vingança”,
facilitada pelo fato de a criança estar sozinha. Mas entendamos que os mitos são
culturais e, sendo assim, podem suscitar a compreensão de práticas exemplares em
uma sociedade, justificando certo éthos, como não deixar crianças sozinhas, conforme
preceitua a Lei quando trata do abandono de incapazes.
25 Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, op. cit., p. 210.
26 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa, Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
27 Alan Dundes, op. cit., p. 104.
Histórias da história da narração: o Centro-Oeste
em perspectiva
FREDERICO FERNANDES

Para A. Dimas

Este artigo trata mais diretamente da questão da história da narração de


histórias no Brasil, tendo como enfoque a região Centro-Oeste brasileira.
Ficar face a face com um tema dessa natureza implica ter de solucionar
dois problemas iniciais. O primeiro é a necessidade de delimitar com qual
história da narração vou trabalhar, e o segundo diz respeito ao método
historiográfico para uma história da narração.
Para introduzir o debate, devo esclarecer que compreendo narração
como uma ação, a ação de contar uma história, e a narrativa como um
texto decorrente do ato de narrar. Assim, a narração modela a narrativa. A
história da narração joga luzes, desse modo, sobre o ambiente nascedouro
da narrativa: a contação de histórias.
Todos contam histórias. O corpo conta uma história: traz em si
posturas, estilos e cicatrizes que revelam quem o sujeito é para o mundo.
Nas conversas diárias com vizinhos, filhos e nas rodas com amigos, é
exercitada a arte de narrar. Conta-se uma história quando se faz piada,
quando são trocadas experiências sobre como fazer, onde comprar,
quando se está formando opinião sobre alguém ou alguma instituição. Os
ancestrais contavam histórias com seus desenhos nas cavernas; hoje se
continua desenhando, pintando, filmando, utilizando-se de diferentes
suportes para narrar histórias. Um álbum de fotos pode ser uma narração
pictórica da história de uma família.
Muitas canções são histórias narradas: a música sertaneja de raiz
pode ser um exemplo admirável de uma história do cotidiano caipira, e o
pop rock e o rap brasileiros não ficam atrás. Canções como “Cabocla Tereza”,
“Faroeste caboclo” ou o rap “Tô ouvindo alguém me chamar”1 são alguns
exemplos de histórias contadas e cantadas, em ritmos e culturas
diferentes. Não menos importante para uma história da narração foi o
fenômeno literário após a invenção da prensa de Gutenberg, que
popularizou a escrita e foi a base para o boom do romance (ocorrido dois
séculos mais tarde). O jornal e o telejornal também narram histórias ao
darem notícias.
Seria possível preencher páginas e páginas tratando das múltiplas
formas de narrar, mas isso só nos afastaria da solução do problema aqui
colocado, pois, como diria Roland Barthes2, a narrativa (e poderia
acrescentar a narração) começa com a própria história da humanidade.
Por ora, é importante chegar ao consenso de que histórias são contadas
para entreter, para sociabilizar, para que decisões sejam tomadas, para
ensinar e, não menos importante, para o autoconhecimento. O ser
humano narra porque é dotado de uma memória proativa, isto é, que age
sobre o presente e dá um sentido a ele. Talvez isso o diferencie das demais
espécies com as quais tem contato e permita denominá-lo homo narrator.
Por causa disso tudo, quem narra, o que narra, de onde, como e para
quem narra são questões que conduzem a uma “política da narração”. Por
política da narração entendo como são constituídos os espaços de narração
na vida social, como os sujeitos, por meio da prática de narrar e das
histórias que contam, re letem um modo de ser e estar no mundo. Definir
essa política implica compreender e analisar melhor os discursos nas
histórias contadas em um contexto de enunciação específico. Implica um
olhar atento do intérprete sobre as intervenções de ouvintes, leitores,
espectadores, sobre as mídias e linguagens empregadas, sobre as
intenções dos narradores de impactar ou despertar quaisquer outras
reações de seus receptores. Trata-se de perceber como ideologias são
positivadas ou não e como o ato de narrar institui, também, uma relação
de poder.
Pensar uma história da narração de histórias por esse prisma já é um
começo, mas ainda não se configura um delimitador, pois a relação de
poder se opera em qualquer dos modos de narrações já apontadas:
canções, telejornais, filmes, contadores de histórias, peças de teatro etc.
Nas disciplinas que ministro sobre oralidade e literatura, costumo
observar duas das inúmeras práticas muito comuns à narração de
histórias, as quais denomino narração enraizada e narração experimental.
Um exemplo muito prático que serve para diferenciá-las encontra-se na
definição que estabeleço entre o narrador e o contador de histórias.
Há um privilégio do narrador, em relação ao nível discursivo em
detrimento do técnico, sobre o contador de histórias, ou seja, do performer
que encena uma narrativa. Uma máxima silogística elucida a questão: todo
narrador pode ser um bom performer, mas nem todo performer é um
narrador. A principal diferença entre os dois assenta-se no fato de que o
narrador apresenta um vínculo com a comunidade narrativa (como já
assinalava Walter Benjamin3 no seu célebre ensaio “O narrador”) e não
prioriza a técnica em detrimento do conteúdo. O gesto e a impostação da
voz são empregados para direcionar a atenção do ouvinte, mas não são
determinantes na formação do narrador como “guardião da memória
coletiva”, uma vez que esta se constitui na relação com a comunidade
narrativa. O contador de histórias, por sua vez, compromete-se com o
espetáculo; mesmo que ele esteja fundamentado em um repertório de
histórias de determinada comunidade narrativa, seu papel será o de
intermediar a poesia oral4. Assim, o contador não está implicado com as
práticas sociais e com a identidade, nem seu discurso com o grupo
representado. Além disso, o elenco de histórias estudadas e tratadas para o
espaço cênico pode transitar por diferentes grupos e apresentar costumes
e valores para uma plateia também distinta.
Aprofundando ainda mais a questão, a diferença principal entre o
contador de histórias e o narrador está no fato de que o primeiro é um
ator, que tem por objetivo principal a interpretação; o segundo é um
membro da comunidade narrativa que compartilha experiências, é porta-
voz do que Jean-Nöel Pelen denomina etnotexto. Desprezando uma noção
simplista de folclore que entende o texto como algo acabado, esse
antropólogo francês identifica textos produzidos em comunidades que
re letem hábitos, costumes, valores, que se tornam a ideologia de todo o
grupo. Em suas palavras, etnotextos são textos nos quais a “comunidade se
espelha, se reproduz, se codifica e se decifra, se desenrola e,
principalmente, se garante e se legitima”5.
Responsável pelo etnotexto, ou seja, o texto ligado diretamente à
comunidade para a qual narra, o narrador encontra-se menos preocupado
com a potencialidade de materialização do texto do que com a mensagem
que ele pretende comunicar. A voz do narrador é dupla: ruído e discurso,
sendo este uma peça fundamental no ato de narrar, e aquele, uma
habilidade de alguns. No caso do contador de histórias, a habilidade de
narrar é o fator fundamental, e não importa se o que se conta está em
sintonia com os anseios coletivos e etiquetas sociais do grupo que está
ouvindo.
Diante dessa constatação, é possível delimitar o que será tratado
como uma história da história narrada: analisarei aqui etnotextos,
narrativas artesanais no sentido benjaminiano, cujos narradores se
encontram voltados para a comunidade a que pertencem e se valem deles
como forma de representar os anseios de seu grupo social.
O segundo problema está voltado para a questão do método. A
pergunta que me faço é a seguinte: como trabalhar uma história da
contação de histórias sem registros de áudio ou audiovisuais? Cabe
observar que a questão não é bem válida para os dias de hoje, quando se
detecta uma popularização da internet, em nível mundial, e o YouTube
conta cerca de 1 bilhão de acessos diários, mas é bastante pertinente se se
levar em conta que o primeiro registro fonográfico foi feito por Thomas
Edison em 1877. Sendo assim, a história da narração antes da
popularização do gravador deve passar por uma re lexão a respeito do
suporte, ou melhor, das pistas que foram deixadas sobre a contação de
histórias e pelas quais podemos ter uma ideia do que foi contado e como o
foi. Em outras palavras, uma tentativa de verificar a política da narração
em um contexto específico.
E como chega uma narração de história que não teve nenhum tipo
de registro sonoro ou fílmico até os dias de hoje? Quais são as fontes a que
o pesquisador deve recorrer para tratar da história da contação de
histórias em um contexto pré-fonógrafo?
Em The Winged Words, Berkley Peabody, ao tratar de textos de
circulação oral na Grécia antiga, parte de um pressuposto fonético para
identificar o problema muito semelhante ao que estou elucidando. Afirma
ele:

A língua falada não produz fósseis. O estudante da oralidade não pode se


basear, como o arqueólogo, nas provas “sólidas” dos artefatos. Ao fim e ao
cabo, suas pesquisas, mesmo fazendo uso pleno de elementos de comparação,
têm de fundar-se muito consideravelmente em uma mistura de intuição
psicológica e senso comum, evitando, se possível, adesão ao dogma. Ainda que
elas sejam fundamentais – como neste caso me parecem ser –, as críticas se
formulam como interrogativas6.

Analisado o problema de outro ângulo, o que chega ao pesquisador


são textos escritos e visuais com os quais deve lidar para significar a
história da narração. A intuição torna-se um elemento fundamental, pois
os resultados, como afirma Peabody, nunca são “provas sólidas”, mas
sempre são indicativos. O mesmo caminho parece seguir Paul Zumthor ao
analisar o contexto de atualização de poemas medievais. Em sua empreita,
ele fornece com maior clareza as etapas de um procedimento
metodológico para tecer a história da contação de histórias, por meio
daquilo que denomina índice de oralidade:

Por “índice de oralidade” entendo tudo o que, no interior de um texto,


informa-nos sobre a intervenção da voz humana em sua publicação – quer
dizer, na mutação pela qual o texto passou, uma ou mais vezes, de um estado
virtual à atualidade e existiu na atenção e na memória de certo número de
indivíduos7.

Detecta-se o índice de oralidade tanto por aspectos imanentes ao


texto escrito como por textos complementares que podem auxiliar na
reconstituição de um modo de contar histórias. São indicadores de
oralidade a presença dos verbos “contar”/“ouvir” e seus correlatos, a
descrição do ambiente de narração, o narratário e suas estratégias de
atuação sobre o receptor, dados sobre a vocalidade do texto, entre outros
aspectos. Esses índices, observados por meio das fontes escritas e visuais,
pelas quais se torna possível intuir uma história da narração, ajudam a
constituir o que denomino paisagem oral.
Para chegar ao conceito de paisagem oral, é necessário passar
primeiro pelo de paisagem. Tomo, ad hoc, paisagem como tudo aquilo que,
captado pelos sentidos, como cor, som, cheiro, volume, textura etc., se
aglomera em um texto discursivo e externa um posicionamento do sujeito
(remetente) diante do objeto (referente), para um receptor ou narratário.
Assim, o limite da paisagem não é somente uma linguagem visual, mas
também aquilo que se intui dela. Na paisagem, encontra-se infiltrada uma
cultura oral pela qual se comunicam formas de transmissão, de articulação
do saber popular, e pela qual são reunidas diferentes vozes por meio de
conversas, ritos, comentários de situações cotidianas, explicações, cantos,
folhetos.
As narrativas do Centro-Oeste que chegam até nós pela escrita
trazem informações e mensagens transmitidas por diferentes vozes, que
podem ser captadas pelo índice de oralidade presente no texto. A captação
dessa polifonia é imprescindível para os primeiros passos de uma história
da narração – e é a essência da paisagem oral. Não se trata de um registro
escrito do som (barulho das águas para identificar cachoeiras nos rios,
cantos de pássaros ou outros ruídos de animais, muito menos de sons de
instrumentos artesanais), mas da marca cultural da voz de quem enuncia
em relação ao seu contexto de enunciação, ou em relação à narração.
Trata-se de intuir na paisagem oral a cultura oral dos sujeitos envolvidos
na narração. E as narrativas, nos relatos investigados, versam sobre
boatos, crenças, mitos, assombros. Alguns com dados sobre sua narração,
outros nem tanto.
A paisagem oral é tudo aquilo que no registro escrito dá indícios de
ter sido escutado, e, para extrair da narrativa a sua narração, pergunto-me
onde, quem e como procedeu a narração. A captação da paisagem oral é
um exercício re lexivo e uma tentativa de “amolecer a narrativa”, ou seja,
de ir além do sentido petrificante da escrita, responsável por fazer da
história um texto acabado. A história da narração é a intuição de um
momento nascedouro da narrativa, cujo sentido envolve as pessoas que a
contam.
A história da narração do Centro-Oeste que passo a tecer é uma
entre inúmeras outras que poderão vir a ser contadas e está centrada no
século XIX, mas não tem o objetivo de percorrer todo o século. Ela foca a
crônica de Joaquim Ferreira Moutinho8 e o relato de Karl von den Steinen9
sobre os aborígenes do Brasil central. Foco esses textos como forma de
demonstrar os pressupostos metodológicos de uma história da narração, já
apontados, sem a pretensão de dar conta de cobrir todo o campo territorial
da região e muito menos me estender para os séculos anteriores e
posteriores ao dos escritores em questão10. A história da narração
escolhida implica personagens ouvintes que, de alguma maneira,
registraram o que ouviram e dão inúmeras pistas para intuir a narração.
Assim, proponho nesse espaço mais um exercício de interpretação do que
uma história propriamente dita, já que tal empreita é assunto para um
longo estudo.
Outro aspecto a esse respeito deve ser sinalizado: se a noção
geocultural que perpassa este artigo é histórica, ou seja, o Brasil central é
uma construção que surge a partir dos colonizadores, a narração é anterior
a esse processo, e – não é demais observar – os indígenas já faziam circular
histórias antes que os senhores da escrita a registrassem. Por isso, o tema de
uma história da narração do Centro-Oeste representa um movimento do
colonizador sobre o colonizado, do leste para o oeste, e a rota de fuga do
domínio sígnico eurocêntrico não parece clara à primeira vista. A
alternativa mais eficaz para não embarcar no luxo de uma história
colonialista é questionar as fontes escritas, perscrutar sua construção e
buscar auscultar a voz das pessoas ali presentes.

ASSOMBROS E BOATOS SOBRE UM CERTO CAMA-QUENTE

De Notícia sobre a província de Mato Grosso, seguida de um roteiro de


viagem da sua capital a S. Paulo e Itinerário da viagem de Cuiabá a São Paulo,
com edição de 1869, de autoria de Joaquim Ferreira Moutinho11,
depreende-se um modo peculiar de contar histórias: a verve romântica, a
narrativa de boatos e os assombros do cama-quente.
A perspectiva em que se encontra o narrador homodiegético, que se
coloca como portador de uma cultura superior, permite observar em seu
discurso a posição de homem ilustrado, desbravador, civilizador, diante do
selvagem ou culturalmente atrasado. Situa, nesse sentido, os hábitos e
costumes locais, veiculados pela cultura oral, em um nível inferior ao do
europeu: “Não há muito tempo ainda, eram os costumes mais atrasados;
hoje estão muito regulares, e mais tornarão à medida que o estrangeiro for
entrando; e que se tornar conhecida a vida de outros países, onde a
civilização já tenha suplantado antigos prejuízos”12. A gradação entre
atrasados e regulares e, implicitamente, melhores, prescreve que a cultura
local se refina com a chegada do estrangeiro. Nesse sentido, a crônica de
Moutinho, em que ele enaltece as potencialidades de exploração do meio
(terra, minérios, fauna etc.), alinha-se com a ideologia de que a ocupação
dos sertões brasileiros era mais do que necessária, no momento em que o
Brasil passava pela iminência de um con lito com o Paraguai, na disputa
territorial que culminou na guerra de 1864-70.
Moutinho situa-se na extremidade tentacular de um projeto
romântico, cujo objetivo era o registro de costumes e do pitoresco de várias
regiões brasileiras. Digo romântico porque o discurso é envolto por uma
aura exótica decorrente do lugar de onde é proferido (com paisagens
peculiares e isolado do restante do país), ou seja, o extremo oeste
brasileiro. Outros artifícios românticos também estão presentes em seu
texto, como a idealização de personagens ao retratar os fatos históricos
nos quais enaltece a bravura, a coragem e a destreza de alguns oficiais
perante o inimigo (o paraguaio).
A linguagem grandiloquente e a ênfase nas tensões (que evidenciam
a coragem, a cólera e as grandes paixões) levam a crer que Moutinho estava
propenso a não simplesmente registrar, mas também a moldar certos fatos
e comunicá-los através de uma linguagem arrebatada e exclamativa. A
paisagem oral começa a se constituir pelo uso de diálogos com predomínio
de uma tensão dramática e, principalmente, pelos registros que o autor faz
da cultura popular ao incorporar ao texto, em forma de versos, diferentes
narrativas, entoadas em festas ou até em conversas corriqueiras. A questão
central é saber como Moutinho lia as lendas contadas pela população, as
simpatias, as modinhas dos cururueiros e as curas populares narradas em
seu livro. Em outras palavras, em que grau a paisagem oral está sob efeito
de seu ato criativo. Se o estilo do autor, como foi indicado, apresenta
traços românticos, é necessário investigá-los e indicar o caráter teleológico
ao agregá-los em seu discurso.
O registro da narração de histórias passava pelo crivo do escritor.
Seu enfoque era a história, poucos são os dados a respeito dos narradores,
bem como era desconsiderada a presença corporal da performance no ato de
contar histórias. O que se tem nas mãos é a reelaboração do oral para o
escrito, com a interferência do gesto criador de quem a promove no
momento em que conta a história e a possibilidade de haver mudanças
entre o que é ouvido e o que é registrado.
Se realmente há modificações do texto oral ao ser transcriado, a
trajetória do autor de ouvinte a “transcriador” da narração pode dar pistas
e esclarecer algumas situações. Logo no início, o autor aconselha os
viajantes a ouvir os habitantes, sem formar um vínculo muito forte de
amizade. A escrita dá-se a partir de relações pessoais estabelecidas com os
naturais, a quem o viajante deverá “ouvir com atenção”. Contudo, não se
trata de um laço afetivo, nem de uma aceitação passiva daquilo que é
ouvido. O ouvinte deverá ponderar as agressões e os ataques pessoais
decorrentes do “fraco caráter” daqueles que falam. Dessa maneira, o autor,
mais do que indicar um artifício para ouvir, traça também um perfil moral
das pessoas ouvidas. O ato de ouvir, dessa forma, matiza uma diferença de
identidade (quem ouve é superior a quem fala), na medida em que
Moutinho aconselha seus leitores a evitarem relações mais íntimas com os
cuiabanos. Seja ao propagar a desconfiança do ouvinte sobre o narrador,
seja ao prescrever explicitamente a manutenção de um distanciamento
entre eles, muito do que se ouve passa a ser, desse modo, tratado como
boato.
O boato, no contexto em que se encontrava Moutinho, dificilmente
distinguia-se da notícia, chegando a gozar de relativa importância no
cotidiano dos cuiabanos na segunda metade do século XIX, conforme fica
subentendido nesse autor. Por causa do boato, os habitantes tanto
poderiam ficar em estado de vigília contra a iminente invasão paraguaia
como de alerta sobre uma avassaladora onda de doenças
infectocontagiosas, ou, ainda, sobre um assalto de bandos de silvícolas. O
fato é que o próprio Moutinho chega a se referir a um ente sobrenatural
chamado de cama-quente como um grande boato. Essa narrativa, apesar de
não ser apresentada como o registro direto da voz, dá várias pistas para
intuir a paisagem oral.
Correu pela cidade de Cuiabá o boato de que nas imediações havia um ente
sobrenatural, ao que diziam. Amigos de crismas são os cuiabanos, que lhe
deram o apelido de cama-quente. Na Itália não havia um celerado de mais
nomeada. José do Telhado em Portugal, eternizado nas Memórias do cárcere de
Castelo Branco, estava muito aquém do cama-quente. O povo andava
assustado com as múltiplas notícias desse fantasma, que todos tinham visto,
todos conheciam e nunca apareceu.
Cama-quente raptava moças e restituía as raptadas por outros; roubava
e denunciava roubos; prevenia desordens e fomentava desordens, estava em
toda parte; dia e noite cama-quente era o cabrion daquele povo. Ou ele existia,
ou os exorcismos dos velhos o levaram ao caldeirão de Pedro Botelho.
Cama-quente foi afinal o cometa anunciador da catástrofe de 1867 [o
surto de cólera e a Guerra do Paraguai]. O povo adivinhava a tormenta. Ela
veio.
Cama-quente, se existia, foi maior em fama do que em feitos.
Asseguram-nos ser cama-quente um soldado desertor13.

É perceptível a apropriação de várias vozes, cuja sequência dá curso


aos feitos do cama-quente. Além disso, é possível aferir que o cama-quente
é famoso por diferentes narrativas que se contradizem, ora apresentando-
o como responsável por vários delitos, ora como combatente de tantos
outros. Ao longo de suas inúmeras narrações, ajambradas em forma de
boato em uma narrativa, era dada à entidade sobrenatural status de deus e
de diabo ao mesmo tempo. Havia na sociedade cuiabana uma
estratificação de ilustrados, incultos e primitivos que se generalizava a ponto
de se confundir com o poder econômico das pessoas. Embora a
convivência diária entre as classes altas e baixas (classificação recorrente
em Moutinho) fosse inevitável, espaços como igrejas, clubes e salões de
baile eram frequentados por seletos. Escravos e índios ou bugres, por sua
vez, ora se relacionavam com os mais pobres da cidade, ora formavam seus
próprios guetos. Essa sociedade, com divisões muito peculiares, apresenta
homogeneidade à medida que o boato ganha força e atua como uma
função de vínculo, ligando pobres e ricos, ilustrados e analfabetos em uma
mesma crença ou na evidência de uma premonição que se concretiza.
A noção de povo, pelo prisma de uma cultura predominantemente
oral, deve estar respaldada pela circularidade de diferentes hábitos e
valores, os quais passam a ser compartilhados ou até ouvidos pelas pessoas
para serem questionados. Em outros termos, a cultura oral pretere o
conceito de divisão de classes, ao mesmo tempo que as pessoas, ilustradas
ou não, tendem a fazer uso de narrativas, simpatias, medicina popular,
benzimentos etc. Embora haja diferenças quanto aos modos de uso e
leituras (que, às vezes, chega a um paroxismo), a crítica, velada ou
explícita, a uma prática ou crença popular demonstra que o responsável
por ela está, antes de tudo, inserido em um conjunto de ouvintes, como é o
caso de Moutinho. Assim, a transmissão de notícias, de crenças e a
circulação de um heterogêneo repertório poético em uma cultura oral não
são artifícios comunicativos restritos aos mais humildes e aos
marginalizados. Ilustrados ricos, ou não, certamente assimilavam,
modificavam e repassavam, na época de Moutinho, os conteúdos advindos
da convivência com pessoas cujo universo comunicativo se define pela
oralidade e pela prática de contar histórias.
O conjunto de narrativas do cama-quente é alimentado pela
atualização, que pressupõe inúmeras variantes em situação performática.
O povo, formado também por ouvintes e narradores, desdobra o mito em
muitas histórias e, com isso, passa a produzir variados sentidos – seja ao
conduzir o mito do bem para o mal, e vice-versa, ao se apoiar nele para
justificar os prenúncios da desgraça, ao exercitar uma genealogia, entre
outros, que até podem ter escapado aos ouvidos de Moutinho.
O texto de Moutinho reúne as histórias por ele ouvidas em um único
cadinho, concatenando as ocorrências, suas distinções e algumas funções
do “fantasma”. Agindo dessa maneira, ele acaba por conferir outro
significado à narrativa, cuja tensão poética fica esmaecida. Não há um
narrador da maneira conceituada anteriormente, há um escritor cujos
vínculos com a comunidade narrativa não são sólidos a ponto de dizer que
se trata de um etnotexto.
Pensando em uma cultura oral do século XIX, no sertão brasileiro,
imaginam-se as expectativas que o cama-quente poderia gerar ou romper
em seus ouvintes: como as moças poderiam ficar temerosas ao saber que
cama-quente poderia raptá-las, quantas emoções e entusiasmos a
narrativa despertou nos garotos, ou, ainda, como os viajantes temiam seus
ataques, acampados em estradas ermas ou no meio das matas.
As maneiras pelas quais eram narradas as histórias do cama é outro
fator que alimenta uma discussão sobre a poética da voz. Na hipótese de
terem sido contadas ao pé do fogo, à noite e em lugares ermos, as histórias
teriam a seu favor a espacialização da performance, que as deixaria ainda
mais próximas do real, levando o ouvinte a participar de um pacto
narrativo com o narrador. A narrativa oral apresenta, dessa forma, uma
dupla espacialidade: há que se levar em conta o(s) lugar(es) onde
transcorrem as ações das personagens na narrativa e, também, o ambiente
onde o relato é atualizado.
O último aspecto vincula-se à performance e pode intensificar ou
abrandar passagens, bem como aproximar ou distanciar o ouvinte da
narrativa, despertando-o para sensações marcantes ou irrelevantes. Todo
um mundo verossímil poderia ser aberto com as narrativas do cama-
quente, ajustado ao cotidiano do mato-grossense da segunda metade do
século XIX.
Desse primeiro retrato da história da narração no Centro-Oeste
depreende-se que, ao classificar a narrativa do cama-quente como boato,
Moutinho obscurece seu veio poético: apaga os narradores e os espaços de
narração, nega o corpo e a voz implicados na contação da história, e dela
não se extrai mais do que um valor sobre o cama-quente, negando os
sentidos que ele poderia causar. Com a tensão poética esvaziada, a
narrativa, em uma cultura oral, tende a seguir para o esquecimento, pois a
narração é o que faz pulsar a narrativa. A tensão poética é, no que postulo,
a principal engrenagem do complexo sistema de variantes e de
atualizações de um relato em uma cultura oral, porque é ela que desperta a
atenção, provoca inquietações, modifica ou atende expectativas, leva o
ouvinte a viver os dilemas do outro e, ao fim, acaba por transformá-lo em
narrador.

“ALGUÉM DEVE TER ASSOPRADO PARA O SOL FICAR COMO FOGO”

Sem querer fazer disso uma regra e uma condição para tratar
qualquer narrativa, valho-me da diferença entre as descrições de paisagens
orais do viajante quando em trânsito e dos lugares onde as capta pela
permanência mais estendida, como procede Moutinho em Notícia sobre a
província de Mato Grosso. A transitividade é um traço marcante da literatura
de viajantes, fonte privilegiada para uma história da narração. É o olhar
em trânsito que engendra o enunciado e permite visualizar no texto do
viajante o acúmulo de inserções e de diferenciações espaciais e temporais.
A sucessão de imagens é responsável ainda pelo dinamismo narrativo e por
provocar um efeito plástico na narrativa.
No caso da paisagem oral, quando se leva em conta a situação de
trânsito, os dados sobre o narrador são recheados com mais pormenores.
Deve-se acrescentar a isso o fato de que o viajante convive na sua travessia
com um guia, geralmente um detentor da cultura local. Aparecem nos
relatos duas personagens em trânsito, com traços pouco comuns: o
camarada e o hospedeiro. O camarada é quem acompanha o viajante e, por
isso, apresenta uma relação mais intensa, permeada pela desconfiança ou
pela gratidão; ele também é de enorme valia para os viajantes na
identificação de marcos geográficos, animais e plantas e, às vezes, o ajuda
na comunicação com outras etnias. Os camaradas geralmente são
mestiços de ascendência indígena, ou mesmo índios – conforme observam
Auguste Saint-Hilaire (guiado pelo botocudo Firmino), Guido Boggiani
(com o chamacoco Felipe e o cadiuéu Sabino) e o próprio Karl von den
Steinen (com o bacairi Antônio) –, o que facilitava a localização de certos
territórios e informava sobre tribos inimigas, antropófagas ou
hospedeiras14.
A paisagem oral, decorrente do diálogo com o camarada, se passa
nas paradas. Essa denominação é incerta, mas a emprego para designar os
acampamentos levantados às margens das estradas e dos rios, ou em
retiros de acomodação precária. A intenção, então, é diferenciá-las dos
pousos, onde o viajante recebe abrigo, geralmente sob o mesmo teto do
proprietário.
No trecho a seguir, de 1937, Karl von den Steinen (1855-1929)
descreve como a cultura oral em uma parada alcança múltiplas
segmentações:

Muito tempo depois de haver emudecido a nossa roda, continuava, a pouca


distância, a conversa dos camaradas que, sentados em torno da fogueira,
cozinhavam o feijão para o dia seguinte. Ressoava a voz alta do contador
principal, limitando magnificamente e com afetação os personagens da
anedota e ultrapassando o falsete mais alto no ponto culminante na narração;
seguiam-se os aplausos entusiásticos dos outros, ouviam-se as suas
gargalhadas e suas exclamações entre cusparadas: “oh que ladrão!”. “Só os
negros e os alemães sabem rir”, afirmava Ehrenreich15.

Em 1939, Steinen16 registrava que não se deve esquecer de que os


locais também atuam sobre o imaginário do viajante e do camarada,
despertando temores de fantasmas, de ataques de animais ferozes, de
cavalos sem cabeça, entre outros17. A espacialidade transitória adquire
valor quando reafirma os laços entre os viajantes e os camaradas, tendo em
vista que ambos estão juntos em vários lugares, podendo trocar
experiências. A recorrente citação do camarada no relato de viagem põe a
nu os encadeamentos da performance. As estratégias do narrador que se
desvelam, bem como os sinais dados pela recepção do viajante, são índices
de oralidade preciosos para uma história da narração. Na verdade, trata-se
de uma análise discursiva, mas que sobretudo visa assinalar, para além da
correlação de poder agregada ao discurso, os posicionamentos do narrador
diante do ouvinte, bem como suas implicações nos usos da tradição e nas
variações do relato oral.
O bacairi Antônio é um dos informantes mais citados pelo
antropólogo alemão em seus escritos, resultado de duas expedições
realizadas em 1884 e 1887-8, as primeiras com finalidade de estudar a
povoação xinguana, em Mato Grosso18. Evidencia-se a descrição da relação
entre narrador e ouvinte (leia-se também camarada e viajante), a qual
resulta em um tipo diferente de paisagem oral. Nesse embate, desvelam-se
estratégias do narrador, com implicações diretas na atualização e na
variação do relato oral e, além disso, clareiam-se intenções e
comportamentos do ouvinte. Quando esses aspectos são retratados em um
relato de viagem – e são raros os relatos que trazem informações dessa
estirpe –, é possível ter-se ideia de como lui o poético na performance, já
que ele não é captado apenas pelo conteúdo do narrado, mas também pelo
contexto da narração. O conteúdo da lenda ou do mito fica menos
engessado devido às tensões que permeiam sua atualização.
Esse registro, do qual foram recortados diálogos, observações e
re lexões do viajante, é “Entre os aborígenes do Brasil central”, que, com
suas mais de seiscentas páginas, está disposto ao longo dos 24 números
(entre 1937 e 1939) da Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, cujo
conteúdo versa sobre a segunda viagem. Ao etnólogo viajante cabia
encontrar materiais ou completar coleções da primeira expedição, com a
intenção de comprovar a teoria evolucionista de Adolf Bastian, com quem
tivera contato no Havaí. O olhar de Steinen agrega ora uma atitude
etnocêntrica, conferindo à cultura indígena uma “lógica ingênua”, ora
comparatista, ao apontar pontos em comum entre os xinguanos e culturas
orientais, e, contraditoriamente, apresenta em determinados momentos
uma sensível interpretação acerca das representações míticas indígenas.
Ao contrapor a crença de Antônio com a filosofia especulativa, Steinen
intenta nivelar as representações culturais. Ele é o ouvinte que deseja
esvaziar o sentido exótico e ilógico da crença do bacairi, contundente,
sobretudo, na percepção do homem de ciência do século XIX. Para tanto,
seu jogo interpretativo parte do pressuposto de que na filosofia
encontram-se prerrogativas quase idênticas àquelas das quais Antônio se
vale. Apesar de residir nisso uma intenção clara de tornar as
representações bacairis menos estranhas e, portanto, menos exóticas,
Steinen não se livra das armadilhas de seu próprio olhar.
Desse modo, não custa a Steinen entender que as lendas e os mitos
encontram-se em um tempo mítico, e que a lógica responsável por
engendrá-los atende à sólida imbricação entre cultura e natureza, além da
necessidade constante de o homem explicar o desconhecido.

Seus contos e lendas, que se nos afiguram simples mitos ou fábulas e nos
quais confundem homens e animais, ele [o bacairi] os toma tão a sério quanto
nós os livros sagrados e os ensinamentos que contêm. […] Toda a sua arte
mesmo, extremamente rica, se baseia em uma existência de caçadores e só
loresceu quando uma vida mais tranquila deu proteção às suas primeiras
manifestações19.

Por isso, os questionamentos feitos ao narrador Antônio são


balizados em certas passagens pela sensação de culpa, notadamente
quando Steinen faz valer o papel de um ouvinte logocêntrico, que não
aceita o sobrenatural, tal como aceitaria outro bacairi.

Objetei discretamente a Antônio: “mas o Sol é quente, e as penas não o são?”.


Foi uma pergunta que, apenas proferida, me causou profundo
arrependimento. Pois Antônio, bastante inteligente para sentir a contradição
logo que lhe fosse indicada, mostrou-se francamente melindrado. “Pode ser”,
declarou ele, afinal, entristecido, “que mais tarde alguém tenha juntado o fogo
por meio de feitiçaria; em todo caso, antigamente o Sol não era quente”20.

Quase todo fabulário bacairi deriva de um tempo mítico, que tem


como protagonistas, quase sempre, os gêmeos Keri (Sol) e Kame (Lua). É
nesse tempo que vai ser engendrado o mundo sobrenatural com o qual os
bacairis convivem. No entanto, apesar de compreender, o ouvinte parece
aceitar com restrições o tempo mítico do qual o narrador se vale, pois, para
ele, o mundo sobrenatural alinha-se contrariamente à lógica do mundo
real e, por conseguinte, de argumentos científicos: “Temos aqui outra vez
uma motivação tipicamente indígena para a absurda relação de parentesco
entre a estirpe dos jaguares e das galinhas silvestres”21.
De fato, os bacairis compreendiam o mundo sobrenatural como uma
possibilidade de intervenção no mundo real, o que fazia deles habitantes
de um mundo mágico. Conforme explica o pesquisador Fernando
Altenfelder Silva22, os bacairis do sexo masculino penetram o mundo
sobrenatural através do fumo petüm (levemente narcotizados) e, pela ação
sobre o que se pode grosseiramente chamar de espírito (iamüra),
modificam no mundo anímico seu correspondente no mundo real. A roda
de fumantes, ao final da tarde, figurava como portal de acesso de adultos
do sexo masculino para o mundo mágico. Para Steinen, essa dimensão
parecia ser inacessível, algo que não era para o seu narrador Antônio.
Dessa maneira, ele provoca um embate discursivo mediante a recusa da
interferência do mundo sobrenatural no mundo real. Isso limita seu
envolvimento com a narração e, também, com a narrativa contada por
Antônio.
No reverso do olhar do viajante, encontram-se os mecanismos pelos
quais Antônio assegura a legitimidade do que enuncia, apesar dos
questionamentos de Steinen. É, pelo contrário, ao tempo mítico a que o
narrador recorre quando quer reafirmar sua autoridade de porta-voz
bacairi. Ao dizer “antigamente o Sol não era quente”, Antônio desarma o
mecanismo logocêntrico de seu ouvinte e toma fôlego para continuar o seu
relato. Do ponto de vista de um contato intersubjetivo, a fala do narrador
revela-se como uma estratégia interessante, pois se apoia em uma base
temporal pela qual o passado referenda a narrativa no presente, mesmo
que ela não seja condizente com os fenômenos da atualidade. Entre as
várias possíveis respostas, o silêncio, a lógica sobrenatural e o tempo
mítico resumem o tipo de reação do narrador ao embate proposto pelo
ouvinte.
A tônica das interferências de um ouvinte ativo, como Steinen, será
a competência do narrador para contra-argumentar. Não se pode esquecer
de que o contato entre o camarada e o viajante, nesse caso, vem de longa
data; suas conversas foram entabuladas por um período de quase dois
anos. O fato de Antônio estar com Steinen desde a primeira expedição, em
1884, já os torna – narrador e ouvinte – menos desconhecidos um do outro.
A forma pela qual Steinen põe em xeque as histórias de Antônio não
dispensa certa proximidade e confiabilidade mútua preexistentes, para
além de situações da narração. Ambos apresentam interesses
dessemelhantes nas conversas entabuladas ao longo das paradas.
Enquanto Steinen corre em busca de peças alocadas em uma tradição oral
para emendar um disforme quebra-cabeça genealógico, Antônio, então
com pouco mais de 20 anos, quer falar de si e de como ele percebe e atua
sobre as coisas do mundo. Os diálogos revelam, desse modo, um narrador
benjaminiano na paisagem oral que intuímos de Steinen. Identidade,
crenças, formas de narrar e a intenção de persuadir são algumas das
observações lançadas na escritura de Steinen sobre a voz de Antônio.
Quando a identidade é a tônica das conversas, imprevistos e
discordâncias atuam como fagulhas dentro de uma câmara in lamável. Se
o narrador bacairi não desvincula o mundo mítico da realidade, as
histórias de seu povo têm, de imediato, uma ligação com as coisas de seu
dia a dia. Questionamentos inesperados abalam certezas e provocam a
necessidade de respostas. O narrador, ao sentir que o chão não está mais
sob seus pés, tende a realçar uma intenção: no caso, a de que seu
comunicado é verdadeiro. Daí, a narração do bacairi Antônio recorreu à
tradição, como registrou Steinen:

Naquele tempo a Lua era formada de penas de japu, o Sol era de penas de
tucano e de arara-vermelha, e o arrebol de penas de tucano. Era isso que
ensinavam os antigos. Se agora, como o senhor diz, não é mais assim, eu não
sei nada disso e ninguém sabe. Então alguém deve ter soprado para o Sol ficar
como fogo23.

Acender o Sol com o sopro revela-se muito mais que uma tentativa
de estabelecer a aparente lógica do mundo natural à narrativa mítica: é,
em síntese, uma estratégia de narração, atravessando e significando a
narrativa. O sopro do Sol demonstra como as narrativas se estabelecem em
meio às relações de poder, e como a base na qual se assenta o pensamento
dominante pode ser corroída. Trata-se de um sopro capaz de ressignificar
o Sol, na medida em que o narrador se (re)inventa bacairi. O Sol de penas
que alguém soprou é a demonstração de que a história da narração é
permeada por embates ideológicos, jogos de identidade e, por isso, revela-
se política.
Por último, não poderia deixar de observar que é com a mesma força
irradiadora do Sol que inúmeras narrativas se difundiram Centro-Oeste
afora.

1 Respectivamente: de João Pacífico, imortalizada por Tonico e Tinoco; de


Renato Russo, da Legião Urbana; e de Mano Brown, Racionais MCs.
2 Roland Barthes, “Introdução à análise estrutural da narrativa”, in: Roland
Barthes et al. (org.), Análise estrutural da narrativa, Petrópolis: Vozes, 1976, p. 19.
3 Walter Benjamin, “O narrador”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1996, pp. 197-221.
4 Na década de 1980, o filósofo e historiador cultural Walter J. Ong publicou o
livro Orality and Literacy: The Technologizing of the Word (traduzido para o
português como Oralidade e cultura escrita), no qual questiona o paradoxo da
expressão “literatura oral” pelo fato de literatura derivar de letra e não se
ajustar à produção poética circulada nas culturas orais. De lá para cá, vários
estudiosos vêm adotando poesia oral em detrimento de literatura oral. Aqui,
poesia não se aplica ao gênero literário, mas é tomada em seu sentido grego de
poiesis, ou seja, o de “fazer”, “produzir algo”. Desse modo, a poesia oral diz
respeito tanto a narrativas orais como a repentes e canções, por exemplo.
5 Jean-Nöel Pelen, “Memória da literatura oral. A dinâmica discursiva da
literatura oral: re lexões sobre a noção de etnotexto”, Projeto História (PUC-SP),
2001: v. 22, p. 73.
6 Berkley Peabody apud Eric Havelock, A revolução da escrita na Grécia e suas
consequências culturais, São Paulo/Rio de Janeiro: Unesp/Paz e Terra, 1996, p. 138
(grifo do autor).
7 Paul Zumthor, A letra e a voz: a “literatura” medieval, São Paulo: Companhia das
Letras, 1993.
8 Joaquim Ferreira Moutinho, Notícia sobre a província de Mato Grosso, seguida de
um roteiro de viagem da sua capital a S. Paulo; e Itinerário da viagem de Cuiabá a São
Paulo. São Paulo: Typographia de Henrique Schroeder, 1869. Para este
trabalho, utilizo apenas a primeira.
9 Karl von den Steinen, “Entre os aborígenes do Brasil central”, Revista do
Arquivo Municipal, São Paulo: Departamento de Cultura, n. XXXIV-LVIII, 1937-9.
10 Muitos foram os trabalhos produzidos na academia que poderiam subsidiar a
história da narração no Centro-Oeste nas últimas décadas do século XX e nos
primeiros dez anos do século XXI. Para tanto, destaco nas referências
complementares títulos acadêmicos e literários que podem contribuir com o
pesquisador mais interessado no desenvolvimento de uma história da
narração no Centro-Oeste.
11 Joaquim Ferreira Moutinho, ao que se sabe, foi opositor ferrenho do governo
do general Couto de Magalhães, em Cuiabá. Nasceu na cidade do Porto
(Portugal), em 1833, e em 1846 partiu para o Rio de Janeiro, onde se dedicou à
vida comercial como caixeiro. Em 1851, foi para a cidade de Cuiabá. Regressou
a Portugal por volta de 1870, onde foi articulador de um projeto de associação
de caridade (Associação de Servas de Santa Tereza de Jesus, formada por
senhoras e destinada a comemorar a visita da imperatriz do Brasil à cidade do
Porto) e tesoureiro para uma escola de surdos e na mesma cidade, mudos.
Colaborou em diversos jornais, entre eles Comércio do Porto. Publicou, sobre
Mato Grosso, além de Notícia e Itinerário, Apontamentos para a história das
Bexigas em Cuiabá, no ano de 1861, e fatos provados da infalibilidade da vacina –
trabalho oferecido em 1870 ao dr. Brandt – e Os Guaicurus, no Folhetim do
Comércio do Porto de 11 de janeiro de 1871.
12 Idem, Notícia sobre a província de Mato Grosso, op. cit., p. 16.
13 Ibidem, pp. 176-7.
14 A denominação camarada, como índio ou mestiço, aparece nos relatos a partir
do século XIX. Há que se levar em conta também o trabalho do escravo negro
nessas viagens, mais evidenciado nos relatos de viagem dos sertanistas e
monçoeiros, como Camello (1843 e 1976), Araújo (1976), Valmaseda (1976),
Rebello (1976) e outros, o qual desempenha algumas funções que viriam a ser
as do camarada. Todavia, o escravo via nessas viagens uma grande chance de
fuga e de liberdade, o que punha em risco a expedição.
15 Karl von den Steinen, op. cit., 1937, n. XXXV, p. 149.
16 Ibidem, op. cit., 1939, n. LVIII, p. 105.
17 São inúmeros os exemplos que podem elucidar essa relação; o mais
contundente atribuo a Hercule Florence: “À entrada da mata, à esquerda,
dormia nossa camaradagem. Saindo da barraca de madrugada, achei-os todos
eles sentados nas redes e tolhidos de medo. Perguntei-lhes a causa e disseram-
me que não haviam toda a noite pregado o olho, por isso que desde meia-noite
lhes tinham sido atiradas da outra margem pedradas que caíam à direta, à
esquerda, nas árvores e no chão. Ora a margem de lá ficava em uma distância
tripla da que poderia alcançar uma pedra jogada por braço de um homem, o
que mostra a que ponto chega a superstição dessa gente”. Cf. Hercule
Florence, Viagem luvial do Tietê ao Amazonas: de 1825 a 1829, São Paulo:
Melhoramentos, 1948, p. 315.
18 Egon Schaden apud Vera Penteado Coelho (org.), Karl von den Steinen: um século
de antropologia no Xingu, São Paulo: Edusp/Fapesp, 1993.
19 Karl von den Steinen, op. cit., 1938, n. XLII, pp. 99-100.
20 Idem, op. cit., 1938, n. LI, p. 137.
21 Ibidem, p. 156.
22 Fernando Altenfelder Silva apud Vera Penteado Coelho, op. cit.
23 Karl von den Steinen, op. cit., 1938, n. LI, p. 157.
Estórias do povo das Minas e dos Gerais
OLAVO ROMANO

ASSUNTANDO O MUNDO, APANHANDO GOSTO

Desde muito cedo aprendi a reparar no mundo, na natureza e seus sinais,


nas pessoas e suas prosas. As primeiras lições de geografia foram as rotas
dos aviões. O céu estrelado, no pequeno arraial sem luz elétrica, me fazia
cogitar em mundos inalcançáveis. No Brasil rural de então, os relatos da
vida e da lida varavam porta adentro e não saíam mais. Histórias de
encantamento e assombração povoavam os serões de minha infância.
Depois de muita água debaixo da ponte, fui estudar planejamento
educacional nos Estados Unidos. O professor Edwin Sirken, economista
canadense que ensinava como educar mais e melhor com recursos
escassos, como alfabetizar todas as crianças, me surpreendeu com uma
frase inesquecível: “Você já notou que não há analfabetos orais?”. Dito de
outro modo, a sabedoria não é privilégio de quem estuda, ou, no inspirado
verso de Noel Rosa, “ninguém aprende samba no colégio”1. Ou, ainda,
como canta Paulinho da Viola, “as coisas estão no mundo, só que eu
preciso aprender”2.
Ao reunir lembranças do meu próprio caminho para este texto,
penso nas estratégias da gente analfabeta ou semialfabetizada do nosso
país para ler o mundo e nele sobreviver sem os recursos do saber formal e
das possibilidades que ele abre.
Os habitantes da zona rural de então, cujas vidas eram diretamente
afetadas pelas condições do clima, aprenderam a ler sinais de mudança do
tempo no vento, na lua, no comportamento dos insetos, das aves e dos
animais. Uma vez, menino curioso querendo puxar conversa com o avô
sisudo, perguntei se eram verdadeiros ditados como: “neblina na serra,
chuva na terra” e “neblina baixa, sol que racha”. Seco, ele respondeu:
“Tempo de chuva, todo sinal é de chuva”.
Anos depois, convidado para contar casos na Onda Rural da Rádio
Inconfidência, ouvi do diretor este argumento roceiro, baseado na crença
de que em ambiente úmido o som se propaga melhor: “Vamos fazer logo
porque no tempo de chuva o rádio pega looonnnge!”
Acostumado a matutar, a pôr sentido (todos os sentidos), nosso
homem do interior manifesta na fala a topografia do corpo associada a
sentimentos e emoções – desde uma dor “que dói no peito e responde na
cacunda”, passando por “botar o coração à larga”, traduzida hoje, na batida
do pagode, pelo popular “deixa a vida me levar”3, até “bater a passarinha”,
expressão traduzível por “estar a fim” – com o esclarecimento de que
“passarinha” é o baço, sede dos humores, segundo me explicou antigo
clínico geral, ensinamento corroborado pela medicina chinesa tradicional
no capítulo das funções do baço e do pâncreas.
Meu gosto por recolher relatos orais ganhou força em 1978. Aos 40
anos, embora grato pelas muitas oportunidades de estudo, pela carreira e
pela família que havia constituído, faltava-me cumprir o desejo da alma:
escrever um romance em que abordasse saga familiar, que sempre me
fascinou.
Tomado por inadiável urgência e embalado pelo ditado de que a vida
começa aos 40, lembrei-me de que tanto Guimarães Rosa como García
Márquez, altíssimos paradigmas do meu ambicioso projeto, só haviam
chegado às suas obras-primas depois de prolongado e paciente exercício
da escrita – “comendo a sopa pelas beiradas”, como dizemos por aqui.
Assim, resolvi principiar pelos casos (muitos preferem causos) mineiros
que eu tanto ouvira na infância.
Após um ano de preparação, comecei a publicar semanalmente no
Estado de Minas o material obtido em minhas pesquisas (inclusive na
memória), que acabou resultando na edição de meus quatro primeiros
livros4. Com o passar do tempo, de tanto ouvir e escrever casos mineiros,
acabei passando a contá-los – sozinho ou junto com violeiros e cantadores,
em animados saraus por muitas cidades mineiras e, até mesmo, fora do
estado.
Entre minhas experiências mais marcantes, destacam-se três
viagens ao rio São Francisco. Na primeira, em 1987, com um grupo de vinte
educadores e artistas de diversos naipes, integrei o Museu Fluvial
Benjamim Guimarães, instalado no vapor de mesmo nome que, depois de
navegar pelo Mississippi, deu com o casco no Velho Chico. Durante duas
semanas, entre Pirapora e Manga, tomamos um banho de cultura
barranqueira. O meu privilégio foi ouvir e gravar relatos de pescadores,
caçadores, benzedores e escultores de carrancas, além de mergulhar nas
danças, nos cantos e na alegria que povoa expressiva parte do território
mineiro que eu não conhecia. O rico material rendeu a extensa reportagem
“Vai, Benjamim, subir este rio mágico”, publicada na revista Globo Rural de
fevereiro de 1988, com fotos de Oswaldo Maricato.
Na segunda viagem, em 1995, acompanhei meu amigo Manuelzão,
anfitrião e personagem de Guimarães Rosa, à nascente do São Francisco,
no Dia do Meio Ambiente, não por acaso o dia do santo padroeiro do rio.
Meu irmão Paulo, então secretário Nacional de Recursos Hídricos,
sugerira ao ministro Gustavo Krause promover o encontro de Manuelzão
com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que chefiaria a comitiva à
nascente.
Incumbido de conduzir o ilustre convidado, pernoitei em Três
Marias para, na manhã seguinte, voarmos até o campo de pouso mais
próximo. No trajeto por terra, embrenhados entre maciças plantações de
eucalipto, ficamos inseguros diante dos muitos caminhos possíveis.
Quando avistamos um trator, perguntamos ao tratorista, de bermuda,
boné e sandália, se estávamos no rumo certo. Ele olhou para o motorista do
nosso carro e, como se falasse a um cavaleiro afobado, disse: “Direto! Senta
o relho!”.
Depois dos discursos, rodeado pelos jornalistas que queriam sua
opinião, o velho vaqueiro, abusando de intimidade ao se referir ao
presidente da República, repetiu o que acabara de dizer no palanque: “O
Fernandinho prometeu este mundo e a metade do outro, mas não vai ter
tempo de cumprir tanta promessa”. Publicada no dia seguinte, a
declaração teria inspirado o esquema da reeleição, introduzido logo a
seguir na nossa legislação eleitoral.
Manuelzão, com quem convivi de perto por mais de quinze anos,
hospedou Guimarães Rosa na fazenda da Sirga, que ele administrava em
nome do dono, Francisco Guimarães Moreira, primo do escritor. Saído das
páginas do celebrado autor, tornou-se personagem de si mesmo,
encantando todo mundo com sua prosa inteligente e bem-humorada.
Convidado pela TV Globo para a festa de aniversário de Walter Avancini,
Manuelzão fez dois pedidos: conhecer o mar e visitar a viúva Porcina,
interpretada por Regina Duarte na novela Roque Santeiro. Voltou de lá se
gabando de haver passado a barba no cangote da viúva.
No ano 2000, integrando o projeto “Caminho das Águas”, participei
da caravana educativa, cultural e ecológica que percorreu o rio São
Francisco de Pirapora até a foz. A experiência, registrada pelo fotógrafo
José Israel Abrantes, resultou no livro São Francisco: rio abaixo5, com belas
fotos dele e legendas poéticas de minha autoria, e na reportagem “Diário
de bordo”, publicada na revista Palavra em setembro de 2001.
Das muitas lembranças dessa emocionante viagem, duas cenas
permanecem na memória: o cemitério invadido pelas águas em Piaçabuçu,
na foz do grande rio, e, na viagem de volta, em pequeno barco, o sol quase
se pondo, um curimatá insistia em saltar à nossa frente, fazendo um arco,
barbatanas brilhando à luz poente. Com voz casual, o piloto do barco disse:
“Esse peixe adora o sol…”.
O texto que segue relata um pouco da minha experiência com
contadores de histórias, exemplificados nas figuras de seu Quinho e
Henrique Mateus, ambos residentes na zona rural de Morro do Ferro,
distrito de Oliveira, onde nasci, e de tia Onofra, sábia catadora de papel
que conheci em Belo Horizonte nos primeiros anos da década de 1960. A
maior parte do relato, no entanto, sintetiza os apanhados da viagem ao rio
São Francisco, em 1987.

SEU QUINHO

O primeiro grande contador de histórias que conheci foi seu


Quinho, apelido de Francisco Lemes da Silva (1905-79). Ele trabalhava na
fazenda de um tio-avô meu, em Morro do Ferro, para onde gostávamos de
ir na infância, atraídos por suas histórias “de encantamento”, ou
“encantadas”, que às vezes levavam dois, três serões, antecipando as atuais
minisséries da televisão.
Anos depois, preocupado por seu Quinho não haver deixado um
sucessor, procurei seu filho José Maria, meu amigo e colega do curso
primário, a quem disse: “Esse lugar é seu, e você tem que assumi-lo”. Com
relutância, aceitou que eu voltasse à noite. Junto com Dalila, sua mãe, um
primo e algumas crianças muito interessadas, fizemos um encontro
inesquecível. Na mesma casa simples e aconchegante, de chão batido,
aconteceu a cerimônia de entronização do José Maria no lugar do pai, o
que acabou fazendo dele um contador de histórias muito requisitado na
região.
A primeira história que ele contou foi a do príncipe Jacinto. Dalila, a
mãe, ajudava indo e vindo da sala para a cozinha, de onde vinha um
irresistível cheiro de biscoito frito. Ele foi se firmando, como um filhote de
passarinho que se orienta pelo pio da mãe, seguindo-a em voos curtos, até
ganhar confiança e voar sozinho. Na cadeira do pai, os meninos sentados
em volta, como eu próprio estivera há tantos anos, foi ocupando o trono
vazio – um momento de poder e encantamento. Voltei recentemente a
procurá-lo. Queria saber que histórias seu Quinho contava e de onde as
tirava. Ele citou O estrangulador e um segundo livro, com a história longa e
bonita dos tugues e dos tigres da Malásia – ambos emprestados e não
devolvidos. Como José Maria ainda não sabia ler, aprendeu as histórias
ouvindo o pai contar. Recorri à ajuda de amigas que trabalham na área
para encontrar os livros.
Atrás dos tigres da Malásia, cheguei a Emilio Salgari (1862-1911)6,
cuja obra serve de base à farta safra de livros e filmes de piratas – do Caribe
e de outros mares. Dos nomes lembrados por José Maria, pelo menos
Tremal Naike e Sodukan7 figuram no rol de personagens salgarianas,
presentes também no seriado veiculado em 1976 pela italiana RAI, empresa
estatal de rádio e televisão. Sodukan, o Tigre da Malásia8, é um príncipe
malaio que, despojado de seu direito de herança ao trono, tornou-se um
corsário, um vingador, um assaltante de navios carregados de tesouros. É
fácil imaginar o quanto essas aventuras eram marcantes no Brasil rural e
isolado de então.
A meu pedido, José Maria contou duas histórias que compunham o
repertório de seu Quinho: a do príncipe Jacinto, já citada, e a da água da
vida. Quando lhe pedi para contar determinada história, do tipo
tradicional, ele respondeu, peremptório: “Isso é história infantil; eu gosto
de contar é história encantada”.
“A água da vida”, por exemplo, segue o padrão em que o terceiro
filho, ingênuo, muito novo, de bom coração, parece o menos preparado.
Mas, exatamente por suas características, atrai aliados poderosos, na
figura de um animal encantado, de um velho sábio, e acaba conseguindo
sucesso, enquanto seus irmãos mais velhos nem sequer tentaram alcançar
um objetivo. Em “A água da vida”, cada um dos três filhos do rei sai à
procura da água milagrosa para devolver a visão ao pai. Os dois primeiros,
indagados se queriam dinheiro ou bênção, preferem dinheiro, que gastam
em farras na primeira aldeia do caminho. Quando é sua vez de tentar, o
caçula pede muita bênção e um pouco de dinheiro. Protegido por um velho
da loresta – na verdade, o rei dos pássaros – e ajudado por um urubu
muito idoso, acha o palácio onde fica a água milagrosa, a princesa se
apaixona por ele, ele volta, se livra das ciladas dos irmãos e, cumprida a sua
missão, o palácio do futuro sogro vem voando até junto do seu, ele entra e
vai embora pelos ares.
O segundo livro de seu Quinho, citado como O estrangulador, talvez
seja O rei dos estranguladores9, de Henri Tessier. Localizei um exemplar na
Biblioteca Nacional de Portugal e dois outros em sebos. Comprei um,
muito usado, mandei colar a capa e dei de presente a José Maria. Mas,
infelizmente, não era o livro imaginado.

HENRIQUE MATEUS

Henrique Mateus era viúvo, já bem idoso. Miúdo e esperto, morava


sozinho em uma casa muito simples no Quebra Cangalha, a cerca de três
quilômetros de Morro do Ferro, o distrito de Oliveira onde nasci. Tido
como benzedor e raizeiro, conhecia as propriedades medicinais das
plantas e era, sobretudo, um grande contador de histórias. Alegre e
histriônico, impressionou meu amigo Ronaldo Simões Coelho, psiquiatra e
reconhecido escritor, que testemunhou os benefícios da contação de
histórias na saúde de Henrique. Cardiopata grave, respirava com extrema
dificuldade quando lá chegamos. No correr da prosa, as histórias luindo,
Henrique representando gestos, falas, sestros de personagens, a falta de ar
desapareceu. Ronaldo, prontamente, atestou que contar histórias é
excelente remédio para o coração, válido para cardiopatas ou sofredores do
mal do amor. Hoje, aliás, sabe-se que a memória retém o que é
afetivamente relevante. Então, decorar, saber de cor, é guardar no coração,
junto com os tesouros afetivos.
Em seu jeito vivo de falar, Henrique falava, por exemplo, de “um
fazendeiro imensio de rico que morava numa casa invesive”, ou seja,
indescritível. Entendê-lo se transformava, muitas vezes, em instigante
exercício de adivinhação. Ele vivia se referindo, por exemplo, à beleza das
princesas. Um dia, curioso por conhecer seu padrão estético, fui fazendo
perguntas específicas, cujas respostas resultaram em estranha figura, de
olhos gateados, cabelo comprido, batendo no carcanhá, laibos grossos, com
buço de barba. Um personagem agigantado era um urco de home, que me
fazia pensar no enorme morro da Urca; e Houaiss registra, no verbete
“urca”, “de grandes proporções; avantajado”.
Uma de suas histórias nos remetia ao mercador de Veneza, que ele,
certamente, jamais lera: determinada personagem, se não realizasse a
tarefa que lhe cabia, perderia uma libra de carne do próprio corpo,
lembrando que libra é medida de peso do sistema inglês, muito usada no
Brasil colonial, ao lado da onça, da jarda etc.
A última vez que eu estive com ele era época de frio e ventava muito.
Henrique se agasalhava com um capote pesado, feito de lã muito grossa, a
mesma da capa Ideal, muito usada antigamente no interior de Minas, e
que cobria o corpo do cavaleiro e o cavalo quase todo.
Para puxar assunto, perguntei:
– Uai, Henrique, por onde você andou? O que aconteceu?
– O senhor não soube, não? Eu morri! – respondeu ele, prontamente.
– Ah, já tem um bom tempo, viu?
– Mas, como é que você está aqui agora?
– Não, eu vim cá só buscar esse capote porque lá tá muito frio. Lá?
Ah, tem de tudo: uns rindo, outros chorando, muitos com saudade da
família.
E a conversa rendeu um texto chamado “Um capote do outro
mundo”10, porque ele disse que estava ali só por poucos dias, logo estaria
voltando. “O senhor deu sorte, se o senhor demora três dias não me
encontrava mais aqui”, garantiu, cheio de bizarria.
O gravador que sempre me acompanhava nunca despertou a
curiosidade de Henrique. Um dia, porém, quando resolvi conferir a
rotação e ver se as pilhas ainda estavam boas, ele ouviu pela primeira vez a
própria voz. Intrigado no início, depois se espantou. Passado o susto,
mudou a narrativa, rindo de si mesmo e intercalando comentários do tipo
“eta! homem bobo!”, “nunca vi tanta bobagem numa pessoa só”. Fascinado,
queria saber se estava ficando bom. Depois, queria conferir, divertindo-se
com o próprio desempenho e admirando a tecnologia. A partir daí, as
entrevistas passaram a demorar muito mais, de modo que meu amigo
pudesse ter seu quinhão de alegre e merecida diversão, dialogando com a
personagem cujo papel ele até então desconhecia.

CONTAR HISTÓRIA DE DIA…

Na época em que eu saía muito atrás de contador de histórias, era


sempre muito bem recebido, a conversa ia luindo normal, a gente tomava
café, comia quitanda, esse ritual de cortesia do povo do interior.
Perguntavam pelos parentes, especulavam sobre uma porção de coisas, até
que, gravador em punho, eu propunha passarmos à contação. Aí, a porca
torcia o rabo. Escorregadia, a pessoa negaceava: “Quem sabe o senhor vem
outra hora, outro dia”. Mas era fim de semana, dia de folga, qual a
dificuldade? – matutava eu. Então, alguém começou a puxar a ponta do
novelo: “Vem de noite, eles falam que não é bom contar histórias de dia”.
Finalmente, tomando coragem, completou, de supetão: “O povo fala que
nasce rabo”.
“Eles falam”, “o povo fala”, sujeito indeterminado escondendo
crenças, eu sempre havia lidado com a negaça e, na minha ignorância,
havia constrangido pessoas a contar histórias de dia… sem saber que podia
nascer rabo… Depois de muito procurar, cheguei a Câmara Cascudo, o
oráculo que nunca falha em questões de sabedoria popular. E lá estava o
provérbio: “Contar histórias de dia nasce um rabo de cutia”. Esquartejado,
o provérbio ameaça; completo, intriga: como pode nascer rabo de cutia se a
cutia é rabuca, não tem rabo?
Moral da história: o perigo não é contar histórias de dia, é não saber
o provérbio inteiro e ficar com medo do que não existe – em plena luz do
dia.

LEREIA DE PRETA VELHA

Baixinha, mulata, atarracada, muitas roupas sobrepostas, tia Onofra


catava papel nas repartições públicas da praça da Liberdade, em Belo
Horizonte, para vender “na rua das comadres”.
No começo da década de 1960, morava em um barracão nas
proximidades da república de estudantes onde eu vivia e, muitas vezes, à
noite, me convidava para conversar em um dos muitos bancos da praça.
Ela se apresentava como “filha do Tomás de Aquino, aquele
maquinista que morreu queimado num desastre da Central do Brasil. Eles
falam que quem morre queimado vai pro céu”. E emendava: “Outro dia eu
vi o nome dele numa casa bonita. Tava escrito lá: ‘Escola São Tomás de
Aquino’”.
Veio para Belo Horizonte nos primeiros tempos da nova capital.
Trabalhou na casa de gente rica, manteve atento olhar na vida da cidade e
na política. Falava de um governador beberrista, daquele outro que morreu
afogado na banheira. Contando do prefeito que “deu a Barroca11 pros
pobres”, produz uma frase de rara expressividade: “Eu fiz meu barraco lá.
Um dia, eu tava trabalhando, deu um temporal. Cheguei em casa, os
cachorro miava que nem gato. Tava tudo no chão, meu filho. Em pé só ficou os
arvoredo”.
O filho Sérgio morreu jovem e foi enterrado no cemitério do Bonfim,
onde ela havia comprado um túmulo com dinheiro de papel catado.
Orgulhava-se do filho, que “sabia tudo que era inteligência, até avião”.
Fiz uma foto dela, que se perdeu em uma das minhas muitas
mudanças. Encarava a câmera como enfrentava a vida: olhar resoluto,
semblante sereno, um pano na cabeça, um enorme saco às costas. De suas
muitas histórias, guardo esta, publicada no meu primeiro livro, Casos de
Minas12:

Ah, meu filho, a velha aqui já viu tanta coisa! Pelejou demais, labutou um colosso. Uma
campanha, essa vida. Mas não fui sempre catadeira de papel não. Tive meu bom tempo,
pois sim! Tive até no estrangeiro. Trabalhei na casa de gente importante, de prefeito e
de parente do governo. Morei na casa do dono de São Paulo, um tal Sô Shimite, sócio
do Matarazzo. Gozava de toda consideração. Tinha até garrafa de vinho no quarto só
pra mim. Onde é que já se viu empregada, ainda mais preta, beber vinho nessa nossa
capital? Pobre hoje em dia bebe vinho algum? Qual o quê, bebe nada, meu filho.
Um dia, na hora da limpeza, achei uma História Sagrada grandona e grossona
assim. Peguei o livro e danei a ler. Uma beleza que só vendo. Aí o patrão descobriu, e
quem disse que eu tive tempo de esconder? Me pegou no sufragante mas não ralhou
comigo não. Achou foi graça do meu susto e acabou me dando o livro de presente. Aí eu
li tudo, no sossego, de consciência limpa. Li desde o principinho, desde a criação do
mundo.
No Paraíso Terrestre, morava Deus Nosso Senhor, Nossa Senhora, Adão e Eva e
aquela bicharada toda. E tinha também um tal de Messias, um menino regulando seus
11 ano, muito bonzinho. Vivia passeando dum lado pro outro, fazendo amizade com
todo mundo, gente e bicho. Era muito bonzinho mesmo. Eu vou até mandar celebrar
uma missa pra ele um dia desse. Todos combinava muito, amizade verdadeira. Os
bicho, mansinho, falava com o povo de lá, todo mundo se entendia. Tinha esse
negócio de sofrimento e amolação não, ocê pensa?
Mas um dia Adão e Eva fizer’um pecado, não lembro mais que pecado foi. Só sei
que depois vier’os filho: Caim e Abelo. Por conta disso Deus Nosso Senhor ficou muito
aborrecido e tocou todo mundo do Paraíso. Na hora de tocar o povo com uma espada de
fogo, um anjo falou com eles na porta: “Agora vão ter de comer o pão com o suor do
rosto. E as dona daqui pra frente vão sofrer muito, principalmente pra ter menino”.
Foi dito e feito. Desde aquele dia tudo desandou. A maldade mais a inveja chegou no
mundo e depois virou isso que ocê anda vendo por aí.
Por riba das dificuldade do Adão e da Eva, tinha as briga dos dois filho deles.
Abelo era muito bom e Deus Nosso Senhor aceitava com gosto os presente que ele
oferecia. Também, era só fruta escolhida, carneiro de primeira, gordo assim… Tudo do
bom e do melhor. Por isso a fumaça da fogueira dele subia direto pro céu. A do Caim,
não. Ficava na terra mesmo porque as coisa que ele dava era ruim e dada de má
vontade: só carneiro pesteado e fruta podre. Quando viu que só a fumaça do Abelo
subia, a dele não, jurou o irmão de morte. Uma vez, não sei pra onde é que o Adão mais
a Eva andava, os dois ficaro sozinho. Aí o Caim aproveitou, pegou um facão e sentou
uma facãozada na cabeça do Abelo. Foi uma só. É onde que eu falo: a inveja, essa é
pouquinho mais nova que o mundo.
Se eu ainda tenho o livro? Ficou guardado um tempão. Meu pessoal viu, queria
que muita gente olhasse. Tinha tanta história bonita que eu nem não dou conta de
contar tudo. Um dia, eu trabalhava fora, quando cheguei em casa, cadê? Tinham
vendido pra comprar feijão.

A última vez que a vi foi na praça da Liberdade. Eu saía do trabalho


com Nelson Paraíso, tio do ex-ministro Pimenta da Veiga. Perto do Xodó,
lanchonete da esquina, ela olhava para um vira-lata enroscado no chão.
Quando a cumprimentamos, ela disse, alegremente surpreendida: “Oh! Eu
aqui, conversando com esse cachorro, de repente chega meus menino”.
Andava sumida, disse que estava morando na Concórdia, “na rua Urandi,
debaixo dum pé de abacate”. Fui lá, não estava mais.

NAS BARRANCAS DO VELHO CHICO

O conteúdo a seguir resulta da primeira viagem ao São Francisco,


em 1987, a bordo do Benjamim Guimarães, último dos muitos vapores que
circulavam entre Pirapora e Juazeiro. Aquelas duas semanas entre
Pirapora e Manga, um mergulho na rica cultura popular ribeirinha, e
trabalhando com estudantes e professores das quatro cidades visitadas,
marcaram a minha vida.
Foram dias e noites de prosa, trabalho e festa, carne de sol e cachaça,
muita alegria, batido de caixa, dança e cantoria: dança de São Gonçalo,
caninha-verde, suça (lundu), chega-chiá, dança do carneiro, boi de reis
(bumba meu boi), reisado, rei do cacete (moçambique) e variadas
incelenças. Sem falar nos seresteiros com seus violões, violinos,
cavaquinhos, bandolins e pandeiros, harmonioso fundo para o cancioneiro
da região e das Minas em geral.
Na véspera da despedida de Pirapora, cantaram “Zabelê”, ave do
sertão do São Francisco que enfeita o folclore das Gerais: “Xô meu sabiá, xô
meu zabelê/ toda madrugada eu sonho com você/ Se você não acredita, vou
sonhar pra você ver/ No sertão de Pirapora, zabelê piou chorando/ Ah,
morena, saudade tá me matando”.
Um personagem de muitas histórias é o caboclo-d’água, também
chamado nêgo-d’água, sobre quem ninguém quer falar em Pirapora. Na
Bahia, onde é tratado de “compadre”, apresenta-se também na figura de
um moleque safado que abaixa a bermuda e mostra a bunda para as
lavadeiras. Não é mera coincidência que, na primeira parada do vapor,
somente dona Minervina Pereira de Araújo, baiana da região de Xique-
Xique, tenha concordado em abordar o tema.

Quando fomo pra Amarra Couro, perto de Xique-Xique, eu tinha 8 anos. Um dia eu vi
aquele moleque assim, a cabeça toda pelada, lumiando. Ele saía da água, avançava na
galha do pau, puxava, puxava, e com pouco caía na água. Tornava a subir lá, até que
derrubou o pé de jureminha. Derrubou o galho e a barreira de água subiu. Ele não tem
cabelo. O povo fala que isso é lenda. É nada! Nêgo-d’água, a mãe-d’água, isso tudo já
teve lá pra Bahia.
Meu marido contava história de um moço que ia descendo pra pôr os anzol. Lá
pros lado de Bem-Bom. E tinha uma mulher sentada numa pedra dentro da água.
Mas um cabelo que só vendo! O moço assuntou: “Vixe, mas que dona é aquela?”.
Quando ele viu, ela com um gainho de planta na mão, disse pra ele: “Mas ninguém
sabe avaliar o valor do artimijo13… Ninguém sabe avaliar o valor do artimijo”. Aí ele
falou: “Pra que serve o artimijo?”. Ela não respondeu. Sumiu.

A partida está assim registrada no livro São Francisco: rio abaixo14,


enriquecido com inspiradas fotos de José Israel Abrantes:

Em Pirapora, o peixe salta, o rio chora,


a cachoeira para e o barco zarpa.
Mas espera ainda um pôr de sol além da ponte,
dourada despedida, e matinal adeus
com missa, banda, cantoria.
Então, um vento impetuoso varre o cais,
e a nave, em baleia transformada,
abre seu ventre aos passageiros da transmutação.
A carranca, velha e sábia em águas e mistérios,
vigia rio e vida com sorriso de malícias e magias.
Com capacidade para 24 passageiros em 12 cabines duplas, 26
tripulantes, viajando a dezesseis quilômetros por hora e consumindo dois
metros cúbicos de lenha por hora, o Benjamim Guimarães partiu
carregado de emoção, batendo tábua rio abaixo, como dizia o comandante
Aniceto, em alusão ao constante barulho das pás de madeira na água. A
primeira parada é em Barra do Guaicuí, onde a água verde do rio das
Velhas não se mistura com a água barrenta do São Francisco. Alguns
convidados descem, despedem-se com o primeiro choro da viagem.
Lembrando ensinamento do lendário Pedro Manduca, que, como o
personagem de García Márquez no rio Madalena, encheu o barco de
comida, cerveja e mulheres alegres, embarcou um pianista e passou longo
tempo subindo e descendo o rio sem parar em porto algum: “O que se
passa no rio, fica no rio. O segredo fica nas águas”.
Mãos no leme, quarenta anos embarcado, Deoclécio fala de sua
relação com as águas: “O rio é amigo; inimigo é um pau, uma pedra. Sem o
rio a gente não ganha o pão de cada dia. O apito dá pra mandar recado, dá
uma correspondência pra qualquer pessoa. Apita, alguém que tá lá já sabe.
Nem precisa combinar, já tá tudo entendido”.
No leme à esquerda, Antônio Carlos explica: “O canal do rio a gente
sabe igual uma estrada”. Depois, mudando de assunto: “Antigamente tinha
tempo à vontade; encostava no porto, marinheiro namorava, arrumava
alguma coisa. Dizem que amor de marinheiro é só meia hora, e é mesmo.
Eu, tendo folga, dou uma escapulidinha. Eu sou casado lá em Pirapora.
Aqui, não”.
Durante a viagem, muitos falam dos remeiros, que subiam e
desciam o rio em seus barcos carregados. Deixaram muitas histórias e
diversas cantigas. Rio abaixo, todos descansavam, deixando só um de
vigia, para evitar que o barco se agarrasse em uma galhada, batesse em
uma tábua. “Mas não tinha perigo?”, pergunto, admirado. “Não. O barco
conhece o canal do rio.” Batendo tábua, lá vamos nós: Buritizeiro, Ilha da
Martinha, Cascata Joana Preta, Jatobá do Pereira, Pedra do Cobre… Nove
da noite, sob céu estrelado, o barco apita: São Romão, nosso pouso dos
próximos dois dias.
De manhã cedo, demos com o Paz e Amor, um cirquinho mambembe
deixado para trás pelo empresário, que levou o dinheiro.
Geraldo Caires, chefe de um terno de moçambique na cidade e
conhecido benzedor local, explica que, para benzer, qualquer ramo serve,
menos pimenta, que corta o efeito. A nosso pedido, ensina rezas de olho
ruim, de dor e de rebater o mal:

[Enquanto reza a oração de olho ruim, vai benzendo] José é nascido, nascido é.
Cruz de Maria Santíssima, sem pecado é. Livrai-me… – o nome do senhor? – …sô Olavo
de olho ruim, meu Jesus de Nazaré. Com os poderes de Deus e da Virgem Maria. Amém.
[“Faz três vez”, explica.]
[Para dor] José da ermida e‘vém. Suba e desça nas minhas passada. Quem essa
reza rezar, dor de pontada não morrerá. Com os poder de Deus e da Virgem Maria.
[“Três vez também.”]
A Cruz de Jesus Cristo, coroada a Virgem Maria, guardai-me por essa noite e
amanhã por todo o dia. A cruz de Jesus Cristo, deitada sobre mim, se nela eu morrer,
Deus responsará por mim.
Meus inimigos, nem morto, nem vivo, não chegues a mim. Com os poder de
Deus da Virgem Maria. [“Essa é de rebater os mal”, finaliza.]

Recebemos no barco a visita de João Torres, elegante Apolo caboclo


que nos presenteia com doce de buriti, recita de cor discursos de Getulio
Vargas e o belo poema “Um buriti perdido”, de Afonso Arinos, inspiração
para batizar a sede do governo do Distrito Federal.
Mas foi com o pequeno circo que tivemos a experiência inesquecível
em São Romão. Na empreitada de ajudá-lo, pintamos uma nova bilheteria,
colocamos faixas pela cidade, saímos pelas ruas cantando e tocando,
chamando o povo para o espetáculo de despedida, no qual atuamos. Contei
a história de um pescador que enfrentou o caboclo-d’água, pescou uma
caixinha de música, cuja bailarina surgiu no palco com minúscula saia de
papel crepom, Marku Ribas tocou tambor e cantou “Tamarreira”, Lili foi
degolada viva. Sula Mavrudis, que aprendeu a andar sobre vidro moído
para se apresentar naquela noite memorável, escreveu recentemente belo
livro sobre os circos que ainda sobrevivem pelo interior de Minas.
Soubemos depois a imagem que deixamos na cidade: um bando de loucos
do vapor se apresentando no circo, duro de gente como nunca havia
conseguido até então.
No porto, de volta do circo, o barco iluminado surpreende e encanta.
Ele será minha casa ainda por muitos dias e parece guardar algum
segredo, algum mistério do rio que não consigo decifrar. Mas sinto-o,
verdadeira e fortemente.
Os sessenta quilômetros de água e margens entre São Romão a São
Francisco cumprem-se em exatas seis horas. Passado o povoado Barra do
Urucuia, ancoramos em Barreira dos Índios, cortesia do comandante para
refresco do corpo e refrigério da alma. Às 18h em ponto, escoltados por um
cortejo de barcos com tochas acesas, aportamos no cais de São Francisco, o
rio mergulhado em rubro pôr do sol.
De manhã, depois do café, chegam os visitantes locais. Seu
Brasiliano Brás, pesquisador da história da região, nos guia na viagem ao
mundo encantado da cidade e do rio: mãe-d’água, caboclo-d’água, que se
torna compadre-d’água… “Aprendi a nadar, depois aprendi a atravessar o
rio, aí… Esta paixão é eterna e sem volta; morre comigo”. E ensina: “O
barranqueiro não desce o São Francisco. Ele sempre procura subir o rio. A
nossa paixão é São Paulo, e as cidades só crescem pra cima”.
Atento, comandante Aniceto compara: “As cidades querem conhecer
a nascente do rio, parece. Como o peixe. Até o peixe só procura subir. Peixe
só sobe, não desce”.
Seu Brasiliano explica por que a carranca, sempre presente na proa
dos barcos, tem de ser tão feia: é para espantar os maus espíritos durante a
viagem. Mas revela outra função, a de augúrio: gemendo três vezes, ela
anuncia que o barco vai afundar. Assim, as pessoas têm tempo de se salvar.
Ainda sobre as viagens no rio, ele nos fala sobre o caboclo-d’água:

A lenda mais importante que nós temos aqui é o caboclo-d’água. É um ente que o senhor
não pode convencer nenhum barranqueiro que ele não existe. E acham que é preciso
haver amizade entre eles – o barranqueiro, o barqueiro, o canoeiro – e caboclo-d’água. A
arma dessa amizade é o fumo. Eles deixam o fumo num determinado local, certos de
que o caboclo irá apanhar. Aí, fica celebrada a aliança e ele viaja tranquilo. Sem isso,
vira barco, quebra barranco, encalha… Isso é o caboclo-d’água, perseguição dele.
No fim da viagem, em Manga, ouviríamos de Lindemberg Lopes,
policial reformado e caçador profissional, uma crítica aos barranqueiros
que oferecem fumo e cachaça ao caboclo-d’água, tachando-os de crédulos e
supersticiosos. No entanto, falando de sua experiência como caçador, diz
que o bicho mais arisco que existe é a paca: “foge até de vaga-lume”. E
explica como caçá-la, cevando-a com milho, depois cercando o lugar para
dificultar sua fuga. Informa haver aprendido isso com um chefe xakriabá
da região, a quem retribuía com um pedaço de fumo e uma garrafa de
cachaça. Quando observo que ele fez a mesma coisa que o barranqueiro
com o caboclo-d’água, ele discorda, dizendo que o índio está lá na venda,
sentado, qualquer um pode ver, falar com ele. “O caboclo-d’água não existe,
é pura invenção.” Retomando o relato de Brasiliano Brás, acrescenta ele:

Temos também a história do Romãozinho. Como disse um escritor mineiro, é um ente


urbano e rural. Realmente eu já li em jornais do Rio estrepolias desse ente naquelas
casas derrubando móveis etc., duma casa passava pra outra… é um capetinha. Agora,
aqui nós temos uma fazenda, Fazenda Sítio Novo, distante uns trinta quilômetros,
houve aparição dele. Apareceu de fato: ninguém via. Contam que ele era um mau filho e
intrigava a mãe. Então, lançou uma maldição contra ele: que ele não havia de morrer
nunca e viver pelo mundo como um judeu errante. Ele apareceu por aí, de vez em
quando se via um cavalo sair disparado. Dentro dessa casa havia uma moça e ele a
surrava constantemente. Acabaram tirando essa moça daqui e levaram para São Paulo,
em casa de parentes. Jogava esterco nos pratos de comida… Chamaram o padre, o padre
foi lá, mas ele continuou. Até que o próprio casal não resistiu, foi obrigado a mudar de
lá do Sítio Novo pra outra região, abandonou a fazenda.

Outro destaque nas conversas da tarde foi seu Henrique Lopes


Soares. Miúdo, atento e ágil, ele conta o caso da moita que, de repente,
virou mareta15.

Eu tenho visto tanta coisa nesse rio que era pra eu nem pescar.
Uma vez eu ia viajando para Pedras de Maria da Cruz, de madrugada. Eu vi
assim uma moita muito grande parada no meio do rio. Depois, eu andava, mais um
irmão, nós ia levar carga em Januária, porque eu sou de Januária. Antonce eu falei
pra ele assim: “Vamos tirar nossa canoa mais pra beirada, que ela tá muito
carregada”. Mas estava silenciozinho de vento, não tinha vento nenhum. Quando nós
chegamos a uma distância assim de uns vinte metro, aquela moita desapareceu. Virou
uma mareta só, igual um motor quando passa no rio.
Muita força! Aquela maretona: subiu, que incomodou as canoa nossa,
incomodou as outras canoa do trecho, ficou aquela zoada esquisita. Que a moita
sumiu.
Que tem coisa esquisita no rio, tem, mas eu vou falar: eles não come ninguém
não. Só faz algum medo, né? Não come porque, se tivesse pra comer, não tinha um
pescador mais no rio, que ele comia.
Quando eu era rapazinho, moleque assim de uns 10 anos, eu tava pescando na
beira de um riacho. O rio tava enchendo. E antonce, eu joguei a linha dentro d’água.
Joguei e tô ali. Vez em quando eu via estralar uma coisa qualquer aqui do meu lado.
Quando eu pensei que não, eu já tava lá no meio d’água. Aquele barranco correu
comigo, eu saí em pezinho, fiquei aprumado lá no meio d’água. Eu nem gritar gritei. Eu
nem pensava. Fiquei sozinho lá. Ali, ao romper do dia. Meu pai tava dormindo ainda.
Mas, quando as menina falou, disse: “Henrique morreu!”. Eu tava numa
distanciazinha de pouco mais de metro do barranco, a água passando. Eu fiquei firme
lá no pedaço de barranco. E meu pai chegou e me puxou pelo braço. Puxou eu, jogou lá
fora. Quando jogou lá fora, a água cabou de derreter aquele pedaço lá.

Encerrados os trabalhos do dia (17 de agosto de 1987), deixamos o


barco e saímos para uma volta pela cidade – antiga, bem cuidada, povo à
porta conversando, antiquíssimo jeito mineiro de viver e conviver. No
posto telefônico, a moça me contou que seu Henrique, pai dela, tinha
estado comigo no barco e voltaria no dia seguinte para me mostrar alguma
coisa. Sem internet nem celular, soube da morte de Drummond por
telefone e espantei-me com minha tristeza. Lembrei-me da generosa carta
do Poeta elogiando Casos de Minas, meu livro de estreia. E do telefonema
que lhe dei, pedindo autorização para publicar a carta no segundo livro,
coisa que não cheguei a fazer.
Seu Henrique apareceu de manhã, mostrando foto dele com um
surubi de setenta quilos. “Um bicho desses, na água, pode mais do que a
gente, não pode? Como o senhor explica isso?” A resposta é serena e firme:
“é o poder de Deus. Um homem não derruba um boi, que é muito mais
pesado, até uma baleia?”. Vendo na foto uma isca para prosa mais
comprida, pedi que me levasse de barco ao lugar onde ele costumava
pescar. Longe do burburinho, ele falou de linhas, anzóis, a paciência que a
pescaria pede, a vida no rio, pra baixo, pra cima, seca e água. A uma certa
altura, eu perguntei se ele acreditava em caboclo-d’água, cavalo-d’água,
porco-d’água. “Eu acho que tudo que tem na terra, Deus botou debaixo
d’água. Mas não é bicho que come gente, garanto. Desde menino rodo esse
rio pra todo lado, dormindo nas croas, e bicho nenhum nunca me comeu!”
De repente, o primeiro apito do vapor. Motor ligado, rumamos para
o porto. Na hora de despedir, ele diz: “Foi muito bom conhecer o senhor. Se
algum dia voltar por aqui, aparece lá em casa”. Depois de uma pausa,
completou: “Se eu não estiver mais aqui, a gente encontra na Glória”.
O apito comprido do Benjamim Guimarães, repicando na manhã
luminosa, anuncia a partida. Mais uma. São 11h. O cais, apinhado, é puro
adeus. Lento, o vapor desliza.
Meia légua abaixo, em Cabo Chico, encalhamos em um banco de
areia. Ao poder de muita manobra – a procura do canal do rio, a descida da
âncora (o “ferro”, no dizer dos marinheiros), o guindaste a toda força, o
infrutífero retorcer do casco na areia –, o navio finalmente desencalha: às
6h da tarde, iluminado por mais um inesquecível poente. Uma hora depois,
ancoramos, guardando para a luz do dia o arriscado trecho pedregoso. Ao
longe, avistávamos as luzes de São Francisco, de onde havíamos partido
oito horas antes.
Antes do café da manhã, como de hábito, saí para caminhar. E me
surpreendi com o vapor amarrado a uma árvore, boi brabo na chincha,
queixo encostado no moirão. A proa, voltada para a barranca, apontava
para espantosa estrada entre a plantação de milho e o mandiocal, revelação
das coisas que me esperavam, um surpreendente e novo caminho do outro
lado do rio. Travessia.
Sob o claro sol da manhã, rumamos para Januária, 75 quilômetros
em seis horas, passando pela barra do rio Pandeiros, berçário de peixe
ameaçado pelo progresso, e pelo então distrito de Pedras de Maria da Cruz,
nome que lembra poderosa fazendeira que atemorizou a região e, segundo
o comandante Aniceto, mantinha os empregados em cativeiro, enterrando
em seu cemitério particular os que tentassem fugir.
Recebidos em Januária com a ofuscante luminosidade do meio-dia,
calor e umidade, vamos direto para a Casa da Memória, onde se realizam
as oficinas e o museu local mostra a riqueza das grutas de Montalvânia,
cidade sertaneja cujas ruas têm nome de filósofos famosos. A tarde é curta
para tanta atividade, falar das rezadeiras da cidade, provar da famosa
cachaça, emendar com dança e cantoria noite adentro.
Madrugadinha, atraído pelo cheiro do café, fui ao porão do navio.
Haroldo acende a caldeira pelo “buraco da viúva”, dona Rita já limpou os
banheiros e vai varrer o convés. Durmo pouco. “Também, pra quê? Perder
essas belezas aí?”, pergunta, apontando a barra do dia. Ouvidos atentos aos
barulhos das correntes, diz: “Já pediu máquina”, sinal de que os motores
logo serão ligados.
Lá em cima, o São Francisco espreguiça entre neblinas. Aqui, o rio-
lago vai-se colorindo. Na cozinha, cheira a carne da farofa. Amanhece. Às
7h, o Benjamim Guimarães desatraca, pega o lombo do rio, água sumindo
entre barrancas.
Vagaroso, vai rompendo: Moradeiras, Rodeador, Russinho,
Itacarambi – margens coalhadas de roupas, crianças e lavadeiras –, Pedra
de Fogo, Correnteza, Matias Cardoso, cuja igreja matriz é uma das mais
antigas de Minas… Umburana, Curimatá.
De repente, sol caindo de vermelho, um colorido presépio desenha-
se na barranca. No cais, com escadaria e majestoso portal,
desembarcamos. É Manga, última cidade do projeto. E do memorável
trajeto.
No calor úmido do lugar, saborosa carne de sol com coentro e
mandioca, o gostinho de despedida foi-se anunciando enquanto o trabalho
prosseguia.
Duas presenças fortes do lugar são Anísio e Lindemberg. Deste já
falamos um pouco e continuaremos depois. Anísio Pereira Soares – alto,
mestiço de negro e índio, impressiona pelo porte, pela veemência da fala e
pela fama de “pescar no escuro”: sentado na proa, de olho no rio, arco
retesado, orienta o piloto, calibra a toada do barco e, de repente, sem
tempo para pontaria, dispara a lecha certeira.

ANÍSIO, O QUE FLECHA NO ESCURO


Quando lhe mostrei um arpão, que ele chama de batim, Anísio
interrompeu o que dizia, fez um gesto com o braço em forma de arco e
disse: “Quando eu vejo um batim, eu me rupeio16. Porque eu lembro o meu
tempo de luta, que eu comecei os meus inícios de trabalho assim como um
pescador. Que eu sou filho do rio, nasci a bem dizer no rio. Hoje eu não sou
mais um pescador”.
Anísio conta sua aprendizagem da vida e do mundo: peão em
fazenda, montando burro e derrubando boi – “Até hoje tenho marca no
corpo” –, pescador de anzol, descobrindo a isca para cada peixe. O lado
índio no sangue aprendeu a lechar de pequeno: “Treinava em calango,
partia sabugo, pedaço voando pra todo lado”. Um dia, a emoção de lechar
o primeiro peixe, um curimatá de quatro quilos – João Xerém, o mestre,
instruindo para não ir longe, ficar com água na canela, que o alagadiço é
perigoso.

Logo eu entrei, tinha um pé de pau lá, um azulão, era a curimatá. Ela veio, acho que fez
pouco de mim. Rodava, olhava pra mim, acho que rupiada assim. No que ela foi
andando eu atirei a lecha, foi “tá!”. O pau bateu, ela correu com a lecha, mandei em
cima, mas foi uma carreira! Juntei em cima, querendo sair com ela no seco. Quando
peguei, que fui saindo no seco, ela rasgou e fugiu. Mas eu caí em cima dessa curimatá e
rolei, e rolei, mas foi uma briga! Mas eu saí com ela. Cês credita que nesse momento eu
fiquei quase meia hora sem equilibrar? Tremendo, mas tremendo!?
[Anísio lembrou que os barcos passavam] cinco, seis dias aqui no porto de
Manga fazendo carga. E não era madeira, nem carvão, nem carne de boi, nem boi. Era
arroz, era feijão, era milho, algodão, mamona, que o homem produzia na terra. Eram
os homens mão-calejada. E cada um tinha seu terreiro, sua roça, seu cavalo pra andar
montado, sua tropa, jumento, carregava as coisas no lombo dos animais. Tinha suas
dez, vinte, quarenta, cinquenta vaca pra dar leite pra quem quisesse. O mais
pobrezinho, que não tinha vaca, tinha cabra pra dar leite. Ou apanhava com o
companheiro, não custava nem um tostão. Trocava uma coisa pela outra. Leite dava a
troco de amizade, uns dos outros…

DE ENTREMEIO, MAIS DOIS CAUSOS

Mais duas histórias17 que ouvi nessa memorável viagem: a pescaria


com um trem estranho e o caso de um bicho esmigalhado que correu…
Em 1922, eu tava mais meu irmão mais velho pescando. Eu no piloto, ele sentado na
proa. Aí ele falou: “Evém acolá um cavalo atravessando o rio”. Eu disse: “Mas, menino,
donde que vem, que não tem terra aqui por perto?”. O rio tava cheio, as margens
sumiram, só tinha uns pé d’arve grande onde a gente ficava pescando. Eu digo: “E
aquele cavalo parece o do véio Isidro!”. Depois de rapaz, eu até casei com a filha dele.
Ele tinha um cavalo muito bonito, com uma faixa branca e preta do lado. Mas era
bonito!
“João, aquele cavalo é do véio Isidro”, disse meu irmão. Eu falei: “Não pode.
Olha a distância que fica da roça dele”. Aí, ele veio vindo assim, o dique fazia um
remanso muito grande, depois estourava uma água fora assim. E ele ficava só rodando
ali, rodando. Ia lá embaixo, dava uma volta na correnteza e tornava a vim. Tornava a
vim, com pouco ele sumia. Meu irmão falou: “Vamo lá!”. Falei: “Benvindo, não é não!”
Desatracamo o barco do pé d’arve, chegamo perto do cavalo. Tinha tudo de cavalo. O
cabelo atrás, a cauda grande e ele assim no meio do rio. Meu irmão disse: “João, aquilo é
um trem estranho. Não é cavalo do véio Isidro, não!”. Porque ele vinha assim, entrava
naquela água corrente, ele metia os peito assim, subia contra a corrente. Contra!
Chegamos a uns cinquenta metros dele assim. Ele levantou a cabeça, dançou e
sumiu. Aí deu uma coisa na água, aquela água voou assim em cima. Ele desapareceu.
Meu irmão disse: “Isso é o cavalo-d’água”.

Um amigo meu, Pedro, conta um caso que ele tava indo à noite e, quando ele deu fé, o
filho dele chegou e chamou: “Pai, aqui tem um bicho”. Aí ele chegou, que olhou, diz que
era um bichinho preto assim. O cachorro latindo, ele ralhando com o cachorro, mas ele
não via a cabeça do bicho. Ele foi, apanhou um pau e chegou e meteu nele assim, pra
jogar pra fora. Ele correu, entrou debaixo da cama do menino. Aí ele cutucou esse bicho,
o bicho saiu, o cachorro enfrentou, quando ele olha – o bicho tinha uma orelhona assim
– ele mandou o pau nesse bicho. O bicho caiu, ele mandou o cacete. O bicho levantou. E
ele tornou a enfrentar. Aí machucou, meteu o pau e jogou ele lá no meio do terreiro.
Quando ele entrou, que acabava de deitar, o cachorro avisou alguma coisa. O menino
gritou: “Ai, ai, ai!”. Ele: “O que é, menino?”. “O bicho, ó!” Que ele olhou, tá o bicho,
dentro de casa. Aí ele apanhou uma foice e mandou no bicho. Diz ele que deixou
esmagado lá no terreiro. Entrou pra dentro. Aí o menino gritou: “Pai, o bicho correu! O
bicho correu!”.
Diz ele que nunca viu um trem daquele. Matou a primeira vez. Na segunda,
esmigalhou. Mas não adiantou, o bicho continuou vivo. Matou duas vez, a terceira o
bicho foi embora, não matou mais não. Tinha de matar três vez.

LINDEMBERG, DIA DE CAÇADOR


Lindemberg Lopes é um militar reformado que se tornou caçador.
Revela segredos do rio e da mata, fala da educação no meio das espécies, os
cuidados com a segurança entre os animais, o caititu na frente da manada,
os filhotes no meio, a mãe atrás. “Caçador respeita a caça. Não tira ninhada
de bicho.” Ilustra o incontrolável instinto de liberdade contando do pato
selvagem criado em sua casa, cruzando com as fêmeas de lá. Mas, mesmo
chocando debaixo de uma galinha, vendo gente todo dia, não amansa, não
acostuma: “Toda hora que tem oportunidade, bate asa, vai embora”.
Conta como é a arribada, nome barranqueiro da piracema. Atrás das
manjubas, sobem os predadores, e o pescador aproveita para pegar o
surubi, o dourado. O que está subindo para desovar só se pega na rede ou
na tarrafa. No anzol, só o predador. Se tudo der certo, o peixe sobe, desova
e volta em 24 horas. Mas pode morrer depois da desova. Então, o lugar do
nascimento é também o lugar da morte.
A lua governa a vida de peixes e pescadores. Na nova, dentes
amolecidos, peixe não pega a isca. Madeira tem de ser tirada na
minguante, no escuro; na nova, caruncha. Nas luas claras peixe enxerga a
rede. Não caminha na lua cheia. Peixe é muito arisco. Surubi, naquela
lerdeza, se estiver viajando, não adianta lechar. Na chegada da
minguante, peixe sobe para a lor-d’água, “começa a lavar”, na linguagem
do pescador. É a melhor época para pesca. Cheia não presta nem para caça
nem para pesca.
Cada bicho controla um território, onde mantém seu harém de
fêmeas. É o contrário do ser humano. “A fêmea vende caro, pisa bonito,
mas se ele levasse no critério do bicho do mato, ela vinha arrastando pra
ele. Vinha! Principalmente nos nossos dias.”
O caçador usa pio para atrair a caça. “Se vai piar inhambuxororó, o
inhambu-de-pé-roxo, eu pio macho. As fêmeas todas respondem, eles
também. Agora, o macho não vem no pio. De maneira nenhuma! Quem
quiser que vá a ele. A fêmea vem arrastando as asas, vem piando: ‘Pó, pó,
pó, pó…’”. Às vezes mata os dois com um tiro enquanto eles brigam, por
ciúme. Ela piou em um canto, ele piou em outro, o caçador pia também,
invadiu o espaço dele. “Aí você pia fêmea e pia macho em seguida, como se
tivesse também um casal ali. É um pio diferente, um pio longo pra saber
onde estão. Pio curto pra provocação. Se piou macho e fêmea dentro do
domínio deles, pode esperar que os dois vêm pra expulsar os invasores.
Então, é o momento de aproveitar.”
Lindemberg tinha falado nas duas esperas de veado – no tamboril e
na cagaiteira. “Os veados do mundo inteiro estão pisando lá.” E falou da
sua cabana, “com uma foto da Xuxa”.
Atento, o comandante Aniceto participava da conversa. Nas horas
vagas ele é fazendeiro, caçador e pescador. No rancho em sua fazenda,
mandou escrever: “Aqui se reúnem pescadores, caçadores e outros
mentirosos”. Acabamos combinando uma ida aos domínios de
Lindemberg no fim da tarde.
Pilotados pelo Adson, cruzamos o rio – Lindemberg, comandante
Aniceto, meu amigo Herculano e eu. Esperamos na venda enquanto
Lindemberg ia até uma fazenda vizinha procurar condução. Voltou em um
caminhão dirigido por um sujeito gordo, de sandália de dedo, andar
desengonçado, de menino.
Com medo de ficar (ou voltar) sozinho, acabou nos acompanhando,
apavorado com o tanto de rastro de bicho que Lindemberg ia mostrando e
explicando no trilheiro: “Isso aqui é de onça, este é de veada: a fêmea
assenta o pé todo no chão; este aqui é de macho: olha como é que só tem a
ponta do casco; aqui, o mão-pelada…”.
Quando chegamos à ceva, o comandante se acomodou no jirau
(pequenas varas pregadas em paralelo em duas árvores vizinhas, onde o
caçador espera a caça) e nós seguimos para a cabana, logo adiante, em uma
clareira recente.
Lindemberg vai lá dentro, pega a maria-chiquinha (tripé feito com
três varinhas, de onde sai um gancho no qual se pendura uma lata para
ferver a água) e começa a fazer o café na fogueira recém-acesa.
O motorista, medroso, se espanta com a cabana sem porta. “Não
entra onça?”, pergunta. Lindemberg responde na bucha: “Se quiser, entra.
Mas ela sabe que aqui dentro mora uma onça também”. Zabelê pia longe.
“Despedindo da tarde”, diz Lindemberg. Piou fêmea. O fogo arde.
Tomamos café. Na tampa de uma garrafa térmica, em um copinho
de plástico e em uma lata de creme de leite. Lindemberg busca o pio na
cabana. Pia fêmea de inhambu. Depois pia macho. Responde fêmea,
depois macho. Orgulhoso, ele diz: “Faço o que quero com eles. Domino a
natureza”.
Ele recolhe o pio. Outros cantam, ele não responde. O inhambu, pelo
canto, está próximo. “Por que não continua piando, até ele chegar mais
perto?”, indago. O motorista, meio trapalhão, fala alto, pode interferir na
caçada do comandante, lá no jirau. Ele não acredita e continua falando
espalhafatosamente.
A noite fecha e não ouvimos nem um tiro. Resolvemos regressar. “O
veado chegou pertinho, mas, escutando barulho na cabana, fugiu”, conta o
comandante, contente de poder ver os bichos de perto, de ficar um bom
tempo apreciando a natureza.

COMANDANTE ANICETO, ABRAÇO DE COMPADRE

De caminhão, seguimos até o porto. Ao combinado sinal de lanterna,


Adson vem nos buscar de barco. Enquanto ele não chega, apreciamos (já
meio nos despedindo) a beleza do Benjamim Guimarães, todo iluminado
na outra margem do rio. Herculano lembra o céu estrelado acima das
copas. “é a árvore de Natal brasileira”, diz.
Outra manhã chegando, o sol apontando, Vênus ainda no céu.
Vendo o rio luminoso pelo sol quase nascente, escrevo no meu bloco: “O rio
de luz fez de mim um novo homem”.
Às 6h, zarpamos de volta a Januária, onde havíamos deixado tarefas
por terminar e de onde voltaríamos para casa. Na hora do café, aparece o
comandante, como sempre, cordial: “Então, compadre, como passou? Eu
estava procurando você”. Surpreso com sua fala descontraída, respondo,
formal: “Uai, comandante, eu estava tomando banho”. Ele, enérgico,
retruca: “Que comandante, que nada. Nós não caçamos juntos ontem?
Então agora a gente é compadre!”. E me deu um abraço de despedida, bem
apertado, um verdadeiro abraço de compadre.
1 Noel Rosa e Vadico,“Feitio de oração”, Evocação III – Vadico (LP), São Paulo,
Eldorado, 1979.
2 Paulinho da Viola, “Coisas do mundo, minha nega”, Paulinho da Viola (LP), Rio
de Janeiro, EMI, 1968.
3 Zeca Pagodinho (Serginho Meriti e Eri do Cais), “Deixa a vida me levar”, Deixa
a vida me levar (CD), São Paulo, Universal Music, 2002.
4 Casos de Minas, São Paulo: Paz e Terra, 1982; Minas e seus casos, São Paulo: Ática,
1984; Dedo de prosa e Prosa de mineiro, Belo Horizonte: Lê, 1986.
5 José Israel Abrantes e Olavo Romano, São Francisco: rio abaixo, Belo Horizonte:
Conceito, 2005.
6 Emilio Salgari, Sandokan, o Tigre da Malásia, Lisboa: Verbo, 2000; e Sandokan, o
pirata da Malásia, Lisboa: Pi, 2011.
7 Variação de Sandokan.
8 Sandokan, o Tigre da Malásia, é mencionado pela primeira vez na história “Os
tigres de Mompracem”, publicada na revista italiana La Nuova Arena em 1883 e
1884. O título definitivo do livro foi, a partir de 1900, La tigre della Malesia, em
edição italiana de Anton Donath.
9 Henri Tessier, O rei dos estranguladores, Paris/Lisboa: Guillard, Aillaud & Cia.,
1819.
10 Olavo Romano, Minas e seus casos, São Paulo: Ática, 1984, pp. 120-2.
11 Bairro de Belo Horizonte.
12 Op. cit.
13 Artemija ou artemísia.
14 José Israel Abrantes e Olavo Romano, São Francisco: rio abaixo, op. cit.
15 Onda de rio.
16 “Eu me arrepio.”
17 Contadas, respectivamente, pelo pescador João Félix e pelo lavrador Francisco
José Santana.
As negras vozes dos quintais: acordes da canção
Moçambique-Brasil
ROSE AVIZ

Não basta apenas cumprimentar, é preciso trazer e levar as notícias. Tem que saber da
saúde, de como estão as coisas, porque aquilo é nossa jornada. Contar o que aconteceu
ontem, o que aconteceu hoje, tem que meter tudo. Cumprimentamo-nos bem para saber
da saúde, da família, isso antes de começar qualquer conversa ou trabalho. É preciso
saber como a pessoa está. As pessoas, aqui em Maputo, já estão começando a só
cumprimentar, e isso me incomoda muito. [JOSÉ NTILA]

Sempre que me vejo remexendo nos cadernos de viagem (ou diários de


campo1), nas gravações e, muito especialmente, nas minhas memórias,
sinto que de algum modo estou a me perguntar: que outras escutas esses
cadernos podem proporcionar? E isso porque o que aprendi com
Malangatana Ngwenya, Obelino Magaia, José Ntila, Camilo de Sousa, Ezra
Chambal, Nilza Maesso e tantos outros homens e mulheres rongas ou
changanas2 em Moçambique foi conseguido vivendo com eles, partilhando
seu cotidiano, ouvindo e aprendendo a sentir a seu modo as histórias
contadas e recontadas. Re letir a escuta a partir da sabedoria coletiva fora
do estar que a todos é comum no contexto moçambicano é observar a
realidade sob outra ótica, deslocada dos limites dos modelos e conceitos
próprios da cultura europeia. A experiência em uma cultura africana, a
vivência na sua história oral pode mesmo nos fazer re letir e seguir o
conselho de Tierno Bokar, o velho peul (fula) contador de histórias, ao
professor Hampâté Bâ3:

Se queres saber quem sou,


Se queres que te ensine o que sei,
Deixa um pouco de ser o que tu és
E esquece o que sabes.
Assim, uma trilha possível para melhor compreender como a escuta4
é percebida entre rongas e changanas é ficcionalizar uma das ocasiões em
que ela mais está presente – no desenrolar de uma cerimônia em
homenagem aos mortos ou no kenguelekezê5 –, reproduzindo em alguns
fragmentos a complexidade do contexto em que acontece, tentando uma
imagem da maneira de estar e do modo que os rongas e changanas
integram o mundo dos vivos com o mundo dos mortos.

CENA 1

O quintal foi organizado para receber parentes e amigos íntimos da


falecida. Os homens acomodam-se em um dos lados, sentados às cadeiras.
As mulheres se apressam preocupadas com as panelas espalhadas pelo
quintal, preparando a melhor comida. Não se esqueceram dos alimentos
favoritos da pessoa homenageada, pois de algum modo ela está presente.
Depois, todos juntos, em círculo, servem-se e são servidos em comunhão.
Nesse dia, no quintal imenso, os velhos recordam a falecida. As
mulheres velhas, ora em seu silêncio, ora em seu canto, ora em sua dança,
também falam dela. Quase parecem mundos distantes: homens e mulheres
caminham separadamente após ultrapassarem o marco da diferenciação
sexual. Sentados no mesmo quintal, a demarcação é visível, mesmo que em
alguns casos todos os presentes estejam em um único círculo. É nesses
momentos que os homens e as mulheres exercem tarefas definidas e
específicas, e cada qual obedece a uma socialização que cumpre
estritamente os conhecimentos que as histórias de vida, contadas e
recontadas nas grandes conversas do dia a dia, lhe ensinaram.
Malangatana Ngwenya6, o mais velho e respeitado na família, fala
pausadamente, cumprindo o ritmo do tempo, sem angústia. Na roda,
mesmo estando entre os homens, mulheres chegam e, sentadas aos pés do
artista, ouvem e contam as notícias dos últimos tempos. Os panos com que
se vestem são as capulanas7, vestimenta obrigatória às mulheres nessas
ocasiões. De resto, o amendoim pilado misturado ao caril de frango, a
matapa feita do milho branco produzido e debulhado na própria
comunidade bastam àquela presente presença. As mulheres em volta de
Malangatana ouvem-no contar que a falecida, uma mulher exemplar,
convivera com a mãe dele desde criança, pois eram primas. A evocação da
mãe, de quem Malangatana recebeu os primeiros ensinamentos sobre as
tintas, o faz apressar as palavras e falar da grande vocação artística que ela
tinha. Não fosse sua mãe despertá-lo para a arte em criança, certamente
não teria se tornado artista.
É assim que as histórias, contadas sempre como se estivessem a
ocorrer no presente e na primeira pessoa, transplantam todos para algum
tempo muito anterior. Nesses momentos a noção de tempo se torna ainda
mais indefinida, e o passado, o presente e o futuro não podem ser bem
detalhados.
Malangatana conta sobre as plantas, ainda existentes naquela
região, cujos pigmentos ele usou muitas vezes para pintar. Fala como
reconhece cada uma e as cores que têm, sem descrever muito
pormenorizadamente. Lembra então como a prima falecida também
reconhecia nas plantas outros benefícios, com relação às doenças, sempre
que alguém necessitava de cura. Ela era a melhor conhecedora das plantas
medicinais; não havia ninguém igual para encontrar nas plantas a
medicação correta. As mulheres em volta de Malangatana ouvem-no em
silêncio, vivendo um dia cheio de coisas da vida e embrenhando-se ainda
mais no modo de estar que a todas é comum.
Os homens conversam, entre longos silêncios, das coisas de
antigamente e também das suas vidas, em especial dos seus animais, de
quando era possível ainda ter algum animal naquele lugar. E fazem
confidências sobre os animais em que depositam mais esperanças.
Lembram que o próprio Malangatana foi um grande pastor.

CENA 2

Agora, o cenário é outro quintal. É dia de domingo. Dia de


celebração. Dia de kenguelekezê – cerimônia para dar nome ao bebê, dia de
dar nome à Ince, filha de Safira, que nasceu há um mês e meio. Dessa vez,
a canção está presente:

Hitlangela xin’wanana xingapsaliwa namuntlha


Hitlangela xin’wanana xingapsaliwa namuntlha
Hitlangela xin’wanana xingapsaliwa namuntlha
[Agraciamos/felicitamos o bebê que hoje nasceu]

Ambuwetela ambuwetela, ambuwetela


[Anina, anina, anina o bebê]
Mamani wa kona ambuwetela ambuwetela, ambuwetela
[A mãe do bebê anina, anina, anina o bebê]
Papayi wa kona ambuwetela ambuwetela, ambuwetela
[O pai do bebê anina, anina, anina o bebê]
Titiya wa kona ambuwetela ambuwetela, ambuwetela
[A tia do bebê anina, anina, anina o bebê]

Hitlangela xin’wanana xingapsaliwa namuntlha


Hitlangela xin’wanana xingapsaliwa namuntlha
Hitlangela xin’wanana xingapsaliwa namuntlha
[Agraciamos/felicitamos o bebê que nasceu hoje]
Vovote wa kona ambuwetela ambuwetela, xingapsaliwa namuntlha
[A avó do bebê anina, anina, anina o bebê]8

Homens e mulheres cantam acompanhados de palmas, pés e jogos


com o corpo, além dos sonoros uncunlunguanu9 das mulheres. Depois volta
o silêncio. Mulheres nas esteiras e homens nas cadeiras confidenciam
histórias. As mulheres em volta de Safira ouvem-na contar que o parto de
Ince não foi difícil. Dessa vez, não foi pelas mãos de sua tia, a maior
especialista de partos e doenças de crianças, que a filha veio ao mundo.
Além de a tia já ser falecida, Safira mora na cidade, por isso o parto não foi
em casa. E, não fosse essa tia, muitos dos presentes certamente não teriam
o privilégio de crescer.
A avó de Safira, ao tomar a palavra, fala ainda com maior segurança
sobre a filha parteira. Ela conta sobre os vários amuletos que preveniam
contra os males, em especial os próprios para recém-nascidos, os mais
indefesos. A avó conta que ninguém se arriscava a deixar o próprio bebê
sem determinada imunização, feita muitas vezes de planta ou do animal
que tinha a força que se pretende transmitir, como forma de vaciná-lo. E é
assim que, nesse dia, as mulheres velhas, no seu canto, também falam dela.
É assim que o segundo nome da bebê a unirá para sempre à falecida
representada. Desse modo, mais do que uma homenagem, isso representa
a encarnação desse parente falecido.
Ao encerrar a fala, a avó vai devagarinho pondo-se em movimento e
começa a entoar outra canção. Não demora muito e todas as mulheres a
acompanham:

Vanavela va kuchava kuveleka vanavela!


[Os que têm medo de ter filhos cobiçam!]
Va kuchava kuveleka!
[Os que têm medo de ter filhos!]
(repete-se o verso várias vezes)

Ampfilwa lowu hi lowu wopsala sviyukuku


Ampfilwa lowu hi lowu wopsala sviyukuku
[Esta mpfilwa10 é aquela que dá bons frutos]
Aloko anini male anitophindha kambe!
[Se tivesse dinheiro, repetia de novo!]
Phindha kambe!
Phindha kambe!
[Repetia de novo!]11

Como em uma roda brincante de vozes que afetam o imaginário de


todos os participantes, escuto vozes que mostram o quanto a dança faz
parte da intimidade desse lugar. As canções dos “quintais” são trazidas dos
guardados da memória e apresentadas em performance porque, “tão logo
enunciado, o texto oral não mais existe, a não ser na lembrança, e, para
manter sua existência, são necessárias realizações sucessivas”12.
Assim, não seriam momentos como esses, recheados de voz, tão
propícios à aprendizagem da escuta?
A VOZ E A ESCUTA

Roland Barthes argumentou sobre a voz a partir da escuta. Para ele,


ambas as habilidades são a corporeidade do falar, por essa razão situam-se
na articulação e no movimento do corpo e do discurso. Estudioso da escuta
psicanalítica, Barthes defende que ela seja livre13, que, por sua mobilidade,
circula, permuta, desagrega a rede fixa dos papéis atribuídos à palavra: “a
liberdade de escuta é tão necessária como a liberdade de palavra”14, mas
para isso não basta que cada um tome a palavra. Para ele, “a voz é, em
relação ao silêncio, como a escrita (no sentido gráfico) sobre o papel
branco”15, como a letra em um envelope. Indica-nos o sujeito, a sua
maneira de ser, a sua alegria ou sofrimento: “Por vezes, a voz de um
locutor atinge-nos mais do que o conteúdo do seu discurso, e damos por
nós a escutar as modulações e as harmonias dessa voz sem ouvir o que ela
nos diz”16.
Tal qual Paul Zumthor, estudioso da poética da voz, Barthes
recupera a finalidade arcaica da escuta, sua presença nos mitos ocidentais
– como o de Ulisses preso ao mastro para não sucumbir ao canto das
sereias. E é partindo desse mito que o autor argumenta sobre a principal
lição de escuta que os mitos deram à psicanálise: “escuta já não imediata,
mas diferida, levada para o espaço de outra navegação feliz, infeliz, que é a
da narrativa, o canto já não imediato, mas contado”17, relembrando quanto
o sonho é feito também de imagens acústicas.
Para Barthes e Havas, historicamente, a escuta se constituiu e se
compreendeu como a forma pela qual o humano se “apropria de seu
espaço, pelo reconhecimento dos sons que lhe são familiares”18, reduzindo-
a a uma função fisiológica.

A escuta é essa atenção prévia que permite captar tudo o que seria suscetível
de perturbar o sistema territorial; é uma forma de defesa contra a surpresa; o
seu objeto, aquilo para que tende, é a ameaça, ou, inversamente, a
necessidade; a matéria-prima da escuta é o índice, quer assinale um perigo,
quer permita a satisfação da necessidade. Desta dupla função, defensiva e
predadora, restam vestígios da escuta civilizada19.
Todas essas considerações explicam que a escuta é confundida com
a posição de decodificar: dar voz ao silêncio, iluminar o que está obscuro,
traduzir o que está confuso. Trata-se de uma escuta que Barthes e Havas
classificam como religiosa, isto é, uma linguagem que pertence ao mundo
dos deuses, o verbo evangélico por excelência. À medida que se escuta a
palavra divina surge a fé, uma vez que é por essa escuta que o homem se
une a Deus. É uma escuta que procura decifrar o futuro que pertence aos
deuses e a culpa que nasce do confronto com o ser supremo.
Tais pensadores nos chamam a atenção para tentarmos perceber que
a escuta não depende só dos ouvidos. Hábitos, preferências, vivências
anteriores, principalmente na infância, in luenciarão direta ou
indiretamente a percepção sensorial, construindo ou interferindo na
maneira como se ouve ou se dá sentido aos eventos sonoros e explicitando
de forma peculiar como se desenvolvem as diferentes escutas do mesmo
objeto e, principalmente, de si mesmo. É a partir dos sentidos de escuta
que Zumthor evoca a possibilidade de duas formas dela: a interior e a real.
Uma se refere à audição física; a outra, à audição mental.
A audição física corresponde à percepção sensorial do som, depende
da natureza de um estímulo externo, daquilo que o órgão sensorial
transmite e de registros da mente atenta ou como memória do real, ou
como “preparação mental de recepções ulteriores”, conforme argumenta
Susanne Langer20. Diferentemente da audição física, na audição mental
aplicam-se exatamente as questões opostas, isto é, em comparação com o
ouvido físico, a percepção sobrevive mesmo ao escutar desatento. São
escutas que podem ser bem vagas ou mesmo completamente inexistentes
para o ouvido interior. A audição interior é trabalho da mente, que começa
com concepções de forma e termina com sua completa apresentação na
experiência sensorial imaginada.
Roland Barthes distingue o ato de ouvir, que ocorre a partir dos
mecanismos orgânicos do homem, como um fenômeno fisiológico do ato
de escutar: ato fisiológico que ocorre em função do objeto. Para ele, a
escuta acontece em três níveis: de alerta, na tentativa de identificar algum
índice (os passos da mãe para a criança); de decifração, que procura captar
determinado código identificável em algum som; de interiorização daquele
ou daquilo que emite a mensagem. A partir da apropriação interna desse
emissor, ocorre a transferência da informação, baseada nos referenciais do
interlocutor. Uma capacidade de seleção que só a escuta pode
proporcionar para que o ser humano se aproprie do seu território, o que
ocorre nesse nível de escuta, a começar por sua própria casa: bater de
portas, panelas, talheres… Subestimar essas escutas significará a perda do
reconhecimento dos espaços ambientais, o não estabelecimento de seu
território – seu espaço de segurança: “rede polifônica de todos os ruídos
familiares: os que posso reconhecer, desde então, são os sinais do meu
espaço”21. Porque, assim, não procura os indícios de perigo.
Barthes prossegue em seus argumentos e diz que “a injunção de
escutar é a interpelação total de um indivíduo a outro: coloca acima de
tudo o contato quase físico desses dois indivíduos (pela voz e pelo
ouvido)”22. É dessa escuta que surge a escuta psicanalítica – de
inconsciente para inconsciente, daquele que fala e do que ouve, mas sem a
preocupação do que se diz, mas do como diz: sua maneira de ser, sua alegria,
tristeza, as modulações harmônicas dessa voz.
Isso talvez explique o que Paul Zumthor, em sua grande obra no
campo da literatura oral, esclarece: “através da voz, a palavra se torna algo
exibido e doado, virtualmente erotizado, e também um ato de agressão,
uma vontade de conquistar o outro, que a ela se submete, pelo prazer de
ouvir”23. Para ele, “fazer ouvir” não tem relação com o ouvido nem com o
som, ou seja, “fazer ouvir” está sempre no campo do outro, é de lá que a voz
provém.
Tais considerações vêm ao encontro do que Malangatana Ngwenya
dizia sobre a escuta, ao falar da importância dos saberes da cultura e sua
inserção na escola. Ao se referir à tradição oral, opinou que “não é só
empilhar uma coisa em cima da outra”24. Para esse artista, a escuta tem a
ver com o tempo, não com o conteúdo. Não seria o que seu José Ntila, cuja
voz a epígrafe evidencia, tenta nos explicar? Podemos verificar tais
considerações também nas palavras de Homi Bhabha ao citar Lyotard:

[…] eis a grande diferença do desejo do Ocidente […] “esquecer o tempo e


preservar, acumular conteúdos; transformá-los no que chamamos história e
pensar que ela progride porque acumula. Nada se acumula, ou seja, as
narrativas devem ser repetidas o tempo todo porque são esquecidas todo o
tempo. Mas o que não é esquecido é o ritmo temporal que não para de enviar
as narrativas para o esquecimento”25.

Tratando-se do que observamos na tradição dos rongas e changanas,


especialmente no desenrolar de uma cerimônia em homenagem aos
mortos ou no kenguelekezê, há que se prestar mais atenção aos modos de
escuta do que propriamente à história. A história acontecia sempre que se
reuniam, se sentavam e ocupavam o tempo a contar coisas de outros
tempos. Um dos presentes começava então a falar de qualquer
acontecimento até chegar ao nome do(a) falecido(a), todos os seus feitos e
façanhas. Imperceptivelmente, o narrador passava a ator, ao passado, ao
presente, ao acontecido, à parte de uma vida. E, sempre que de uma
história se ia para outra, sempre que o narrador era levado a reencarnar
outro antepassado, acontecia um silêncio maior, e sua expressão alterava-
se ligeiramente. Então o agora já não era o dia a dia vivido em cada
vilarejo, no campo ou na aldeia, no tempo em que “o velho Macalele
mandava dois jovens buscarem dois cabritos a cinco quilômetros, antes
que a saliva que ele cuspisse no chão secasse”, como contava Malangatana.
Ele também falava de um tempo ainda mais remoto, o tempo da despedida
dos que eram levados como escravos para São Tomé e como se despediam
cantando Salani26 sem saber aonde iam.
Todas as histórias, incluindo as que reproduzem os tempos mais
remotos, que a memória coletiva dos rongas e changanas preserva e que,
certamente, aconteceram há alguns séculos, são sempre contadas na
primeira pessoa e no tempo verbal presente. Para contar cada uma,
Malangatana e a avó de Safira personificavam o antepassado que a vivera.
Assim, só a boca era sua, as palavras pertenciam a quem vivera o
acontecimento. Ao contar sobre essas vidas passadas, nem o contador nem
os ouvintes pretendiam só recordar, mas, antes, trazer ao presente o que
havia muito acontecera e que todos pretendiam viver agora. Malangatana,
ao contar, coloria com muitos pormenores – as cores e os nomes de certos
animais, as plantas usadas para determinados fins, a descrição de um
ritual, as melodias cantadas para cada ocasião –, sem resumir nenhuma
história. Fazê-lo significava retirar força do que se estava revivendo.
Igualmente, nunca me foi contado qualquer feito de um ronga ou
changana separado do contexto de sua vida. Os seres humanos necessitam
ser apreendidos no todo da sua existência e viver conforme os valores e
motivos que condicionam cada agir. No entanto, o significado dessa
história não está relacionado ao conteúdo, mas ao tempo, à repetição, às
formas de vidas, tudo isso, modos de escutas.
É olhando nessa direção que Henri Meschonnic diz que o lugar onde
essa escuta se dá é no ritmo27. Que escuta seria essa? O autor argumenta
sobre o ritmo como um conceito cultural e relativo, não apenas individual.
O ritmo seria uma espécie de formulação expectante do desejo de escutar,
como pudemos perceber na escuta que Barthes evoca: aquela que nos deixa
fissurados por um poema, por um romance, uma canção, uma peça de
teatro. O ritmo seria, então, a subjetivação do tempo que a linguagem
retém do corpo. O poema seria um momento de uma escuta, e o signo não
faz mais do que dar a ver. Ele opõe a escuta do poema à noção de signo. A
noção de signo é uma noção visual para Meschonnic, pois, para ele, signo é
surdo e nos torna surdos28. Só o poema pode levar-nos a voz, fazernos
passar de voz em voz, fazer de nós uma escuta, porque “o poema não sabe
mais. Não ensina um saber. Não ensina”29.
Tudo isso para entendermos que essa escuta nos é mostrada pela
oralidade, uma escuta que não se liga apenas à boca e à orelha, mas ao
ritmo que embala todos os participantes e os torna cúmplices do seu
movimento. Tudo isso para nos mostrar que a voz não é expressa pelas
palavras, mas no modo como essas palavras se realizam no que nos é
contado, ou seja, no ritmo e na entonação que recebem.
Essa constatação nos mostra que, mais do que o conteúdo, isto é, o
que se diz, a história oral valorizada pelos rongas e changanas privilegia o
como se diz. Afinal, o encontro não se dá pelo que cada contador(a) diz, mas
pelo como diz, ou seja, por meio de um falar específico que não diz sobre
ele(a), mas que é ele(a) próprio(a), sujeito (in)comunicável da linguagem.
Nas palavras de Meschonnic:

O que ela [a linguagem] mostra melhor é o que você faz dela. Por isso somos
todos, nós mesmos, inteiramente, conteúdo da linguagem. A linguagem é, a
cada vez, o sujeito inteiro. Sua história. Que significa mais o que ele não diz do
que o que ele diz. O que interessa é descobrir como. O incomunicado é o que
se comunica antes de tudo30.

No caso das histórias que contamos, onde então encontrar o sujeito


em sua presença não preocupante na palavra? Meschonnic diz que ele vive
no ritmo: “o ritmo, que não está em nenhuma palavra separadamente, mas
em todas juntas, é o gosto do sentido, sua física”31.
Tal compreensão será certamente impossível se pretendermos
apreendê-la segundo uma perspectiva cartesiana que separe a realidade
em categorias distintas e analise o tempo segundo uma sucessão cíclica de
unidades iguais. Essa abstração não tem nenhum significado no modo de
pensar ronga ou changana. A parte e o pormenor não se desligam do todo.
Esses povos globalizam a sua presença na vida sem dissociar o
conhecimento em diferentes perspectivas, o que lhes impossibilita
totalmente separar as realidades materiais das espirituais, como lhes
impossibilita dividir um ser ou um objeto nos vários órgãos ou partes que
os constituem. Cada todo nunca é um somatório. Cada parte
individualizada torna-se ela própria um todo.
Isso nos faz pensar na obra O inconsciente maquínico, em que Félix
Guattari faz uma longa exposição sobre os ritornelos capitalistas, por
exemplo, para enfatizar questões relativas ao tempo, afirmando que “o
tempo não é suportado pelo homem como qualquer coisa que lhe
sobrevenha do exterior”. No entanto, quase não paramos para pensar
sobre “o tempo em geral” e o “homem em geral”. Para a sua re lexão,
Guattari faz referências a sociedades antigas, como as africanas: “elas não
separam, como o fazem as sociedades capitalistas, os componentes de
canto, de dança, de palavra, de ritual, de produção etc.”, inclusive suas
línguas, em que “uma palavra mudará de sentido conforme alguns de seus
fonemas sejam produzidos sobre um tom agudo ou sobre um tom grave”.
Mas por que isso acontece? Segundo Guattari, porque, “nesse tipo de
sociedade, desconfia-se de uma divisão muito acentuada do trabalho e dos
modos de semiotização”32. O autor mostra como especialistas como o
ferreiro, na África,
[…] estão localizados no seio de castas; sua habilidade supõe certas
conveniências com os poderes mágicos. Eles confiam nos agenciamentos
heterogêneos (associando o ritual ao produtivo, o sexual ao lúdico, ao político
etc.) o cuidado para efetuar as transições de fase da vida social – pelo menos as
que têm uma importância coletiva acentuada33.

Guattari traz essas referências para mostrar que, enquanto em


sociedades como a mencionada há certa desconfiança em relação ao puro –
puro especialista, pura matéria, tal como o ferro”34 –, no Ocidente, nas
sociedades capitalistas, o heterogêneo, o misto, o vaporoso, o assimétrico
inquietam.
Assim, nas experiências dos rongas e changanas o tempo é uno, a
história não se apresenta como uma sequência linear dos acontecimentos.
Os fatos contados vivem por si, para lá do antes e do depois. Nesse sentido,
o tempo africano é absoluto e essencialmente atemporal – só quem
partilha das suas vidas sabe que a história nos rongas e changanas, com a
sua dimensão social, o seu ritmo e a sua simbologia, mais do que para ser
analisada, é para ser vivida.
Não estaria aí a razão de a escuta constituir-se como algo que se dá
para além de uma percepção sensorial? Ao pensarmos assim não
estaríamos colocando escuta, visão, tato, todos os nossos sentidos, desejos,
tanto quanto formas de vida, modos de escuta, nesse plano? Um plano que
mostra o quanto nosso mundo sensível está conformado com trabalhar,
produzir, instituir morais e desejos, tanto quanto formas de vida, ou
melhor, modos de escuta?
Tudo isso para dizer como as negras vozes moçambicanas puderam
evidenciar questões sobre as negras vozes que ecoaram e ecoam no Brasil.
Nesse sentido, Moçambique, nos tempos em que lá estive, me fez retornar
a outros quintais: os quintais invisíveis dos afrodescendentes também
invisíveis35 do Sul do Brasil, especialmente os de Santa Catarina. Quintal
que, como diz o poeta Manoel de Barros, eu só descobri depois de grande.

CENA 3
Era assim que, lá pelos anos 1940, na localidade de Cachoeira,
Biguaçu (SC)36, onde meu pai nasceu, a família se reunia sempre no quintal
para celebrar. Meu tio Francisco assim me contou:

Eram treze homens: nosso avô, o papai, nossos primos e nós. Seis de um lado e seis do
outro, e o vovô Domingos, que era o capitão. O papai, eu e o teu pai tocávamos tambor,
mas era pra ter mais, só que quase não tinha mais família. A minha avó sempre dizia
que era pra coroar, pra coroar alguém, agora eu já não me lembro mais, mas lembro
que ela falava isso37.

O cacumbi, para a família, além de fazer parte da sua crença, era


uma luta. Luta ao som dos instrumentos musicais. Sons que dominavam o
jogo. E o jogo era ter a posse do próprio corpo. Luta porque só uma pessoa
em estado de adoração podia dançar durante dias e dias com os pés, as
mãos e todo o corpo em completa harmonia com as vozes das pessoas, dos
tempos e de outros, e de tudo o que estava à volta: “O vovô Domingos era
muito bom no cacumbi, ele desafiava os mais novo, sabe? Ele era tão rápido.
Ficava com a espada, e a pessoa tinha que se defender tocando o
pandeiro”38.
Traduzir o cacumbi era entrar na dança. E traduzir bem era
conhecer a tática do jogo proposto pela narrativa. A narrativa era a
coreografia, a notação dos passos a serem reexecutados. A família entrava
na dança com os meneios próprios de outra geração e encontrava, então, o
melhor jeito de acertar o passo. “E a espada era grande e toda de prata
mesmo, menina! Até hoje não sei onde ela foi parar.”39
Tudo isso porque “a dança é o rastro de uma luta – não é por acaso
que a palavra dança pode tomar, em várias línguas, o sentido coloquial de
briga (‘buena dança se armo!’)”40. Pode-se imaginar o significado disso para
pessoas cujo corpo era propriedade de outros, que haviam conhecido a
escravidão na infância ou que se lembravam de seus pais escravos?
Mas cacumbi, mais do que dançar, é brincar. E brincar engloba a
dança, a canção, a música, a poesia. E a brincadeira envolve o encontro:
um encontro com o outro, um brincar com o outro. Porque brincar é uma
expressão desse viver com o outro, é um aprendizado de como viver, mas
também de como agir nesse contexto. No entanto, esse tempo acabou por
completo. Acabou quando os homens da família já não encontraram
motivos para se encontrar, não encontraram motivos para continuar.
Depois que abandonaram a obrigação, muita coisa mudou na família.
Vovô Agostinho, o último remanescente, e que teria a responsabilidade
pelo grupo, adoeceu. Não demorou muito para que os familiares
encontrassem em sua doença a justificativa para sair de onde vivia. A nova
cidade era-lhes sedutora porque prometia o esquecimento. Não sabiam
que, fugindo de certas obrigações, fugiam de si mesmos.
Meu pai, quando me contou, soltou faísca dos olhos. Tio Francisco
chorou quando disse: “Muitas pessoas recebiam os espíritos dos
antepassados no meio da brincadeira, sabe? Um dia, veio meu avô, vovô
Domingos, eu sabia que era ele, já havia morrido, mas eu reconheci a sua
voz no meio da roda”. Perguntei por que eles não haviam me contado essa
história antes. Meu tio, com pesar, respondeu-me: “Vocês nunca
perguntaram! A gente não sabia que vocês queriam saber”.
O que meu pai e meu tio me contaram era algo de dentro da vida.
Sua família deixou de praticar o cacumbi, porém a experiência ainda está
ali guardada, em seu íntimo. Aqueles eram trechos longos daquela
brincadeira dramática há tantos anos praticada41.
Re letir sobre a escuta a partir da sabedoria coletiva fora do estar que
a todos é comum – tendo como ponto de partida as negras vozes dos
quintais no contexto moçambicano e afro-brasileiro – pode constituir uma
via possível de acesso à compreensão de outra escuta que demande uma
fruição sinestésica, na qual a percepção está para além do ouvido. Escuta
que, como registra Walter Benjamim42 em seu exemplar estudo do
narrador, acarreta outra temporalidade. Tal escuta nos faz valorizar, a
partir do reconhecimento, o quanto nossas histórias, danças, canções e
saberes tradicionais têm in luência das negras vozes que vieram da Terra-
Mãe. No entanto, como esperar tal reconhecimento se a maioria das
comunidades afrodescendentes, herdeiras de alguma prática tradicional,
como é o caso do cacumbi, têm sido empurradas de seus territórios –
consequência de um processo de exclusão social de longa duração
histórica?
É necessário ressaltar aqui que, embora compreenda que há uma
forte relação entre os quintais africanos e os quintais afro-brasileiros,
considero também que existem diferenças produzidas pela trajetória
histórica desses dois quintais. Nos quintais brasileiros, a diferença
fundamental se relaciona à presença da escravidão, que impõe a tensão
entre a cultura branca europeia e as culturas africanas, impactadas, além
de tudo, pela diáspora imposta pelos senhores brancos aos lotes de
escravos chegados ao Brasil, que dispersou famílias e grupos tribais com o
intuito de evitar qualquer consolidação entre aquelas culturas. São as
características presentes nos quintais afro-brasileiros que produziram
diferenças que não podem ser ignoradas.
Fica então o alerta de que uma análise das semelhanças e diferenças
exigiria outro espaço, outras enunciações43. Neste texto, detive-me aos
aspectos que considero semelhantes entre os quintais moçambicanos e os
afro-brasileiros.
Por fim, o objetivo deste texto é fazer um convite: um convite à
leitura; um convite a estarmos mais atentos; um convite para contarmos
mais histórias, as histórias esquecidas. Um convite para que voltemos
nossa escuta à nossa própria voz, a partir das vozes tão belas e potentes
quanto as que constituem os quintais: as vocalidades afro-brasileiras.

1 Produzidos em 2010, em Moçambique, durante a coleta de dados para minha


tese de doutorado: Khilá: (des)encontros da voz na travessia Brasil-Moçambique
(457f., UFSC, 2012).
2 A língua changana pertence ao grupo tshwa-ronga. Esse grupo é designado
pelo termo tsonga. As três línguas são mutuamente inteligíveis. O changana é
falado em Moçambique nas províncias de Maputo, Gaza e parte de
Inhambane, Manica e Sofala. É ainda falado na África do Sul e no Zimbábue.
Cf. Bento Sitoe, Dicionário changana-português, Maputo: Inde, 1996.
3 Amadou Hampâté Bâ, “A tradição viva”, in: Josef Ki-Zerbo (ed.), História geral
da África: metodologia e pré-história da África, São Paulo: Unesco, 1982, pp. 167-
212. Esse ensaio está reproduzido na íntegra no próximo capítulo.
4 A questão da escuta é uma das perguntas centrais que venho fazendo e que
tem estado ao lado dos meus questionamentos sobre a voz. Este texto é parte
do desdobramento e aprofundamento de uma investigação sobre a voz como
devir, experienciada em minha tese de doutorado.
5 Kenguelekezê é uma expressão proferida (na verdade, gritada) nesse tipo de
cerimônia enquanto alguém que segura o bebê o balança e lhe mostra a Lua.
Na realidade, é uma dupla apresentação: apresenta-se o bebê à Lua e, ao
mesmo tempo, a Lua ao bebê. Nas tradições bantas acredita-se que muitas
doenças que atacam os recém-nascidos têm a ver com esse astro, inclusive
uma conhecida como doença da lua, que se manifesta como uma epilepsia.
Durante a cerimônia de dar nome ou de “tirar o bebê” (tirar bebê significa:
apresentação do bebê, geralmente um mês após o nascimento – kenguelekezê),
que geralmente coincidem, deve-se mostrar o bebê à Lua para que ela seja
mais piedosa e generosa, e assim ele cresça com saúde. Esses hábitos tendem
a desaparecer sobretudo nas cidades, onde os jovens já dão nome aos filhos
sem nenhuma cerimônia – em geral, são escolhidos antes mesmo do
nascimento. Mas no campo ainda se faz todo o ritual: mesmo quando o bebê
sai da maternidade, caso tenha nascido na cidade, fica sem nome e aguarda
essa cerimônia para recebê-lo.
6 Considerado o maior artista plástico do continente africano. Sua projeção na
África e fora dela se fez notável: África do Sul, Nigéria, Portugal, Brasil,
Londres, entre outros. Além de pintor, foi poeta, músico, ator, escultor, enfim,
um homem de várias qualidades e virtudes. Malangatana faleceu em 5 de
janeiro de 2011, em Portugal, para onde viajara a trabalho. Nos murais da vida,
sua voz ecoará sempre.
7 Vestuário tradicional das mulheres moçambicanas. Em geral, são
confeccionados com tecidos coloridos e estampados. Foram trazidos ao
continente africano no século XIX por mercadores que vinham do Oriente.
8 Esta canção, “Xin’wanani”, é específica para a ocasião de partos tradicionais,
ou seja, que não são realizados na maternidade, mas pelas anciãs da
comunidade, com experiência no assunto. A canção é bastante cantada
também nas cerimônias de tirar o bebê e nas de kenguelekezê.
9 Uma espécie de som vocal emitido pelas mulheres, especialmente com a
língua.
10 Árvore frutífera cujos frutos são mapfilwa. Em português, poderia
corresponder à figueira. Na língua changana, as variações de grafia de uma
mesma palavra correspondem a diferenças de sentido.
11 “Vanavela va kuchava kuveleka”, canção tradicional “cantada geralmente nas
cerimônias de kuhumesa n’wana = tirar a criança: tirar bebê recém-nascido
(apresentação do bebê, geralmente um mês após o nascimento), kenguelekezê,
lobolo, casamento ou em qualquer cerimônia em que os pais se sentem felizes e
orgulhosos por algo de positivo que os filhos tenham feito. A minha avó entoa
essa canção sempre que eu lhe dou alguma coisa, seja capulana, roupa,
dinheiro etc., é como se dissesse: ‘eu tenho isto porque tive filhos, e os que não
têm cobiçam’” (depoimento de Ezra Chambal, caderno de viagem, 2 out. 2010).
12 Henri Meschonnic, Linguagem, ritmo e vida, Belo Horizonte: Fale/UFMG, 2006,
p. 51.
13 Uma escuta livre é essencialmente uma escuta que circula, que permuta, que
desagrega, pela sua mobilidade, a rede fixa dos papéis da palavra: não é
possível imaginar uma sociedade livre se aceitarmos antecipadamente
preservar nela os antigos lugares de escuta: os do crente, do discípulo e do
paciente. Cf. Roland Barthes, O grão da voz, entrevistas, 1961-1980, São Paulo:
Martins Fontes, 2009, p. 247.
14 Idem, O neutro, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 248.
15 Ibidem, p. 243.
16 Ibidem.
17 Ibidem, p. 245.
18 Roland Barthes e Roland Havas, “Escuta”, in: Oral/escrito: argumentação, Porto:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987, p. 138.
19 Ibidem.
20 Susanne Langer, Sentimento e forma, São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 102.
21 Ibidem.
22 Roland Barthes, O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1990, p. 217.
23 Paul Zumthor, “A permanência da voz”, Correio da Unesco, s.l.: n. 10, out. 1993, p.
8.
24 Trecho de entrevista concedida a mim em abril de 2010.
25 Homi Bhabha, O local da cultura, Belo Horizonte: UFMG, 1998.
26 Canto de despedida dos homens e mulheres moçambicanos mandados a São
Tomé como escravos – ressalte-se que o sentido de “escravos” difere daquele
dos que eram trazidos para as Américas; para São Tomé eram enviados os que
não pagavam impostos ou outras dívidas.
27 Henri Meschonnic, op. cit.
28 Ibidem.
29 Ibidem, p. 6.
30 Ibidem, p. 4.
31 Ibidem.
32 Félix Guattari, O inconsciente maquínico: ensaios de psicanálise. Campinas:
Papirus, 1988, p. 103.
33 Ibidem, p. 104.
34 Ibidem.
35 O conceito de invisibilidade da população negra no Sul do Brasil, em especial
em Santa Catarina, é trabalhado por Ilka Boaventura Leite em Negros no Sul do
Brasil: invisibilidade e territorialidade (Florianópolis: Letras Contemporâneas,
1996).
36 Há referência a um grupo de cacumbi registrado pelo pesquisador Walter
Piazza, no interior de Biguaçu, na localidade de Cachoeira, onde havia um
reduto de negros. Segundo o pesquisador, a discriminação racial se
manifestava pela existência de bailes de negros e bailes de brancos, o que
incentivaria o “quicumbi” nessa localidade. Na época, só havia um grupo de
treze elementos no quicumbi, e já faria mais de cinquenta anos que não havia
reis, rainhas nem juízes. Cf. Jucélia M. Alves, Rose M. Lima e Cleidi
Albuquerque (orgs.), Cacumbi: um aspecto da cultura negra em Santa Catarina,
Florianópolis: UFSC/Secretaria da Cultura e do Esporte, 1990, pp. 33-4.
37 Caderno de viagem 3. Depoimento de Francisco Agostinho de Aviz, o “tio
Chico”, 13 jan. 2011.
38 Ibidem.
39 Ibidem.
40 Roland Barthes, Aula, São Paulo: Cultrix, 2007, p. 66.
41 Fragmento retirado da minha tese de doutorado, op. cit.
42 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994.
43 Evidencio alguns desses aspectos em minha tese de doutorado.
A tradição viva1
AMADOU HAMPÂTÉ BÂ2

A escrita é uma coisa, e o saber, outra. A escrita é a fotografia do saber, mas não o saber
em si. O saber é uma luz que existe no homem. A herança de tudo aquilo que nossos
ancestrais vieram a conhecer e que se encontra latente em tudo o que nos transmitiram,
assim como o baobá já existe em potencial em sua semente. [TIERNO BOKAR3]

Quando falamos de tradição em relação à história africana, referimo-nos à


tradição oral, e nenhuma tentativa de penetrar a história e o espírito dos
povos africanos terá validade a menos que se apoie nessa herança de
conhecimentos de toda espécie, pacientemente transmitidos de boca a
ouvido, de mestre a discípulo, ao longo dos séculos. Essa herança ainda
não se perdeu e reside na memória da última geração de grandes
depositários, de quem se pode dizer são a memória viva da África.
Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência sobre a
oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da herança cultural,
durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita eram povos sem
cultura. Felizmente, esse conceito infundado começou a desmoronar após
as duas últimas guerras, graças ao notável trabalho realizado por alguns
dos grandes etnólogos do mundo inteiro. Hoje, a ação inovadora e corajosa
da Unesco levanta ainda um pouco mais o véu que cobre os tesouros do
conhecimento transmitidos pela tradição oral, tesouros que pertencem ao
patrimônio cultural de toda a humanidade.
Para alguns estudiosos, o problema todo se resume em saber se é
possível conceder à oralidade a mesma confiança que se concede à escrita
quando se trata do testemunho de fatos passados. No meu entender, não é
esta a maneira correta de se colocar o problema. O testemunho, seja escrito
ou oral, no fim não é mais que testemunho humano, e vale o que vale o
homem.
Não faz a oralidade nascer a escrita, tanto no decorrer dos séculos
como no próprio indivíduo? Os primeiros arquivos ou bibliotecas do
mundo foram os cérebros dos homens. Antes de colocar seus pensamentos
no papel, o escritor ou o estudioso mantém um diálogo secreto consigo
mesmo. Antes de escrever um relato, o homem recorda os fatos tal como
lhe foram narrados ou, no caso de experiência própria, tal como ele mesmo
os narra.
Nada prova a priori que a escrita resulta em um relato da realidade
mais fidedigno do que o testemunho oral transmitido de geração a
geração. As crônicas das guerras modernas servem para mostrar que,
como se diz (na África), cada partido ou nação “enxerga o meio-dia da
porta de sua casa” – através do prisma das paixões, da mentalidade
particular, dos interesses ou, ainda, da avidez em justificar um ponto de
vista. Além disso, os próprios documentos escritos nem sempre se
mantiveram livres de falsificações ou alterações, intencionais ou não, ao
passarem sucessivamente pelas mãos dos copistas – fenômeno que
originou, entre outras, as controvérsias sobre as “Sagradas Escrituras”.
O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio
valor do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da
qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o
valor atribuído à verdade em determinada sociedade. Em suma: a ligação
entre o homem e a palavra.
É, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da memória é
mais desenvolvida, mas também a ligação entre o homem e a palavra é
mais forte. Lá onde não existe a escrita, o homem está ligado à palavra que
profere. Está comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um
testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no
valor e no respeito pela palavra. Em compensação, ao mesmo tempo em
que se difunde, vemos que a escrita pouco a pouco vai substituindo a
palavra falada, tornando-se a única prova e o único recurso; vemos a
assinatura tornar-se o único compromisso reconhecido, enquanto o laço
sagrado e profundo que unia o homem à palavra desaparece
progressivamente, para dar lugar a títulos universitários convencionais.
Nas tradições africanas – pelo menos nas que conheço e que dizem
respeito a toda a região de savana ao sul do Saara –, a palavra falada se
empossava, além de um valor moral fundamental, de um caráter sagrado
vinculado à sua origem divina e às forças ocultas nela depositadas. Agente
mágico por excelência, grande vetor de forças etéreas, não era utilizada sem
prudência.
Inúmeros fatores – religiosos, mágicos ou sociais – concorrem, por
conseguinte, para preservar a fidelidade da transmissão oral. Pareceu-nos
indispensável fazer ao leitor uma breve explanação sobre esses fatores, a
fim de melhor situar a tradição oral africana em seu contexto e esclarecê-
la, por assim dizer, a partir do seu interior.
Se formulássemos a seguinte pergunta a um verdadeiro
tradicionalista4 africano: “O que é tradição oral?”, por certo ele se sentiria
muito embaraçado. Talvez respondesse simplesmente, após longo silêncio:
“é o conhecimento total”. O que, pois, abrange a expressão tradição oral?
Que realidades veicula, que conhecimentos transmite, que ciências ensina
e quem são os transmissores?
Contrariamente ao que alguns possam pensar, a tradição oral
africana, com efeito, não se limita a histórias e lendas, ou mesmo a relatos
mitológicos ou históricos, e os griots5 estão longe de ser seus únicos
guardiães e transmissores qualificados.
A tradição oral é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona
todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o
segredo e desconcertam a mentalidade cartesiana acostumada a separar
tudo em categorias bem definidas. Na tradição oral, na verdade, o
espiritual e o material não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o
exotérico, a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens,
falar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de acordo
com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo tempo religião, conhecimento,
ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma
vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade
primordial.
Fundada na iniciação e na experiência, a tradição oral conduz o
homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode-se dizer que contribuiu
para criar um tipo de homem particular, para esculpir a alma africana.
Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da
comunidade, a cultura africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser
isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor
dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como
um Todo onde todas as coisas se religam e interagem.
A tradição oral baseia-se em certa concepção do homem, do seu
lugar e do seu papel no seio do universo. Para situá-la melhor no contexto
global, antes de estudá-la em seus vários aspectos, devemos, portanto,
retomar o próprio mistério da criação do homem e da instauração
primordial da Palavra: o mistério tal como ela o revela e do qual emana.

A ORIGEM DIVINA DA PALAVRA

Como não posso discorrer com autenticidade sobre quaisquer


tradições que não tenha vivido ou estudado pessoalmente – em particular,
as relativas aos países da loresta –, tirarei os exemplos em que me apoio
das tradições da savana ao sul do Saara (que antigamente era chamada de
Bafur e constituía as regiões de savana da antiga África ocidental
francesa).
A tradição bambara do Komo6 ensina que a Palavra, Kuma, é uma
força fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador
de todas as coisas. Ela é o instrumento da criação: “Aquilo que Maa Ngala
diz, é!”, proclama o chantre do deus Komo.
O mito da criação do universo e do homem, ensinado pelo mestre
iniciador do Komo (que é sempre um ferreiro) aos jovens circuncidados,
revela-nos que, quando Maa Ngala sentiu falta de um interlocutor, criou o
Primeiro Homem: Maa.
Antigamente, a história da gênese costumava ser ensinada durante
os 63 dias de retiro imposto aos circuncidados, aos 21 anos de idade; em
seguida, passavam mais 21 anos estudando-a cada vez mais
profundamente.
Na orla do bosque sagrado, onde Komo vivia, o primeiro
circuncidado entoava de modo ritmado as seguintes palavras:

Maa Ngala! Maa Ngala!


Quem é Maa Ngala?
Onde está Maa Ngala?
O chantre do Komo respondia:

Maa Ngala é a Força infinita.


Ninguém pode situá-lo no tempo e no espaço.
Ele é Dombali (Incognoscível)
Dambali (Incriado – Infinito).

Então, após a iniciação, começava a narração da Gênese primordial:

Não havia nada, senão um Ser.


Este Ser era um Vazio vivo,
a incubar potencialmente as existências possíveis.
O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um.
O Ser-Um chamou-se de Maa Ngala.
Então ele criou “Fan”,
Um Ovo maravilhoso com nove divisões
No qual introduziu os nove estados fundamentais da existência.
Quando o Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que
constituíram a totalidade do universo, a soma total das forças existentes do
conhecimento possível.
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a tornar-se
o interlocutor (kuma-nyon) que Maa Ngala havia desejado para si.
Assim, ele tomou uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e
misturou-as; então, insu lando na mistura uma centelha de seu próprio hálito
ígneo, criou um novo Ser, o Homem, a quem deu uma parte de seu próprio
nome: Maa. E assim esse novo ser, através de seu nome e da centelha divina
nele introduzida, continha algo do próprio Maa Ngala.

Síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força


suprema e con luência de todas as forças existentes, Maa, o Homem,
recebeu de herança uma parte do poder criador divino, o dom da Mente e
da Palavra.
Maa Ngala ensinou a Maa, seu interlocutor, as leis segundo as quais
todos os elementos do cosmo foram formados e continuam a existir. Ele o
intitulou guardião do Universo e o encarregou de zelar pela conservação
da Harmonia universal. Por isso é penoso ser Maa.
Iniciado por seu criador, mais tarde Maa transmitiu a seus
descendentes tudo o que havia aprendido, e esse foi o início da grande
cadeia de transmissão oral iniciatória da qual a ordem do Komo (como as
ordens do Nama, do Kore etc., no Mali) se diz continuadora.
Tendo Maa Ngala criado seu interlocutor, Maa, falava com ele e, ao
mesmo tempo, dotava-o da capacidade de responder. Teve início o diálogo
entre Maa Ngala, criador de todas as coisas, e Maa, simbiose de todas as
coisas.
Como provinham de Maa Ngala para o homem, as palavras eram
divinas porque ainda não haviam entrado em contato com a
materialidade. Após esse contato, perderam um pouco de sua divindade,
mas se carregaram de sacralidade. Assim, sacralizada pela Palavra divina,
por sua vez a corporeidade emitiu vibrações sagradas que estabeleceram a
comunicação com Maa Ngala.
A tradição africana, portanto, concebe a fala como um dom de Deus.
Ela é ao mesmo tempo divina no sentido descendente e sagrada no sentido
ascendente.

A FALA HUMANA COMO PODER DE CRIAÇÃO

Maa Ngala, como se ensina, depositou em Maa as três


potencialidades do poder, do querer e do saber, contidas nos vinte
elementos dos quais ele foi composto. Mas todas essas forças, das quais é
herdeiro, permanecem silenciadas dentro dele. Ficam em estado de
repouso até o instante em que a fala as ponha em movimento. Vivificadas
pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase,
tornam-se pensamento; numa segunda, som; numa terceira, fala. A fala é,
portanto, considerada a materialização, ou a exteriorização, das vibrações
das forças. Assinalemos, entretanto, que, nesse nível, os termos “falar” e
“escutar” referem-se a realidades muito mais amplas do que as que
normalmente lhes atribuímos. De fato, diz-se que, “Quando Maa Ngala
fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala”. Trata-se de
uma percepção total, de um conhecimento no qual o ser se envolve na
totalidade.
Do mesmo modo, sendo a fala a exteriorização das vibrações das
forças, toda manifestação de uma só força, seja qual for a forma que
assuma, deve ser considerada sua fala. É por isso que no universo tudo
fala: tudo é fala que ganhou corpo e forma.
Em fulfulde, a palavra que designa “fala” (haala) deriva da raiz verbal
hal, cuja ideia é “dar força” e, por extensão, “materializar”. A tradição peul
ensina que Gueno, o Ser Supremo, conferiu força a Kiikala, o primeiro
homem, falando com ele. “Foi a conversa com Deus que fez Kiikala forte”,
dizem os Silatigui (ou mestres iniciados peul).
Se a fala é força, é porque ela cria uma ligação de vaivém (yaa-warta,
em fulfulde) que gera movimento e ritmo e, portanto, vida e ação. Esse
movimento de vaivém é simbolizado pelos pés do tecelão que sobem e
descem, como veremos adiante ao falarmos sobre os ofícios tradicionais.
(Com efeito, o simbolismo do ofício do tecelão baseia-se inteiramente na
fala criativa em ação.)
À imagem da fala de Maa Ngala, da qual é um eco, a fala humana põe
em movimento forças latentes, que são ativadas e suscitadas por ela –
como um homem que se levanta e se volta ao ouvir seu nome.
A fala pode criar a paz, assim como pode destruí-la. É como o fogo.
Uma única palavra imprudente pode desencadear uma guerra, do mesmo
modo que um graveto em chamas pode provocar um grande incêndio. Diz
o adágio malinês: “O que é que coloca uma coisa nas devidas condições (ou
seja, a arranja, a dispõe favoravelmente)? A fala. O que é que estraga uma
coisa? A fala. O que é que mantém uma coisa em seu estado? A fala”.
A tradição, pois, confere a Kuma, a Palavra, não só um poder criador,
mas também a dupla função de conservar e destruir. Por essa razão a fala,
por excelência, é o grande agente ativo da magia africana.

A FALA, AGENTE ATIVO DA MAGIA

Deve-se ter em mente que, de maneira geral, todas as tradições


africanas postulam uma visão religiosa do mundo. O universo visível é
concebido e sentido como o sinal, a concretização ou o envoltório de um
universo invisível e vivo, constituído de forças em perpétuo movimento.
No interior dessa vasta unidade cósmica tudo se liga, tudo é solidário, e o
comportamento do homem em relação a si mesmo e ao mundo que o cerca
(mundo mineral, vegetal, animal e a sociedade humana) será objeto de
uma regulamentação ritual muito precisa, cuja forma pode variar segundo
as etnias ou regiões.
A violação das leis sagradas causaria perturbação no equilíbrio das
forças que se manifestaria em distúrbios de diversos tipos. Por isso a ação
mágica, ou seja, a manipulação das forças, geralmente almejava restaurar
o equilíbrio perturbado e restabelecer a harmonia, da qual o Homem,
como vimos, havia sido designado guardião por seu Criador.
Na Europa, a palavra magia é sempre tomada no mau sentido,
enquanto na África designa unicamente o controle das forças, em si uma
coisa neutra, que pode se tornar benéfica ou maléfica conforme a direção
que se lhe dê. Como se diz: “Nem a magia nem o destino são maus em si. A
utilização que deles fazemos os torna bons ou maus”.
A magia boa, a dos iniciados e dos “mestres do conhecimento”, visa
purificar os homens, os animais e os objetos a fim de repor as forças em
ordem. E aqui é decisiva a força da fala.
Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças cósmicas
que dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana anima, põe
em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas. Mas, para
que a fala produza um efeito total, as palavras devem ser entoadas
ritmicamente, porque o movimento precisa de ritmo, estando ele próprio
fundamentado no segredo dos números. A fala deve reproduzir o vaivém
que é a essência do ritmo.
Nas canções rituais e nas fórmulas encantatórias, a fala é, portanto,
a materialização da cadência; e, se se considera que ela tem o poder de agir
sobre os espíritos, é porque sua harmonia cria movimentos, movimentos
que geram forças, forças que agem sobre os espíritos, que são, por sua vez,
as potências da ação.
Na tradição africana a fala, que tira do sagrado o seu poder criador e
operativo, encontra-se em relação direta com a conservação ou com a
ruptura da harmonia no homem e no mundo que o cerca. Por esse motivo,
a maior parte das sociedades orais tradicionais considera a mentira uma
verdadeira lepra moral. Na África tradicional, aquele que falta à palavra
mata sua pessoa civil, religiosa e oculta. Ele se separa de si mesmo e da
sociedade. Seria preferível que morresse, tanto para si próprio como para
os seus.
O chantre do Komo Dibi de Kulikoro, no Mali, cantou em um de seus
poemas rituais:

A fala é divinamente exata,


convém ser exato para com ela.

A língua que falsifica a palavra


vicia o sangue daquele que mente.

O sangue simboliza aqui a força vital interior, cuja harmonia é


perturbada pela mentira. “Aquele que corrompe sua palavra, corrompe a si
próprio”, diz o adágio. Quando alguém pensa uma coisa e diz outra,
separa-se de si mesmo. Rompe a unidade sagrada, re lexo da unidade
cósmica, criando desarmonia dentro e ao redor de si.
Agora podemos compreender melhor em que contexto mágico-
religioso e social se situa o respeito pela palavra nas sociedades de tradição
oral, especialmente quando se trata de transmitir as palavras herdadas de
ancestrais ou de pessoas idosas. O que a África tradicional mais preza é a
herança ancestral. O apego religioso ao patrimônio transmitido exprime-
se em frases como “Aprendi com meu mestre”, “Aprendi com meu pai”,
“Foi o que suguei no seio de minha mãe”.

OS TRADICIONALISTAS

Os grandes depositários da herança oral são os chamados


“tradicionalistas”. Memória viva da África, eles são suas melhores
testemunhas. Quem são esses mestres?
Em bambara, chamam-nos de doma ou soma, os “conhecedores”, ou
donikeba, “fazedores de conhecimento”; em fulâni, segundo a região, de
silatigui, gando ou tchiorinke, palavras que contêm o mesmo sentido de
“conhecedor”. Podem ser mestres iniciados (e iniciadores) de um ramo
tradicional específico (iniciações do ferreiro, do tecelão, do caçador, do
pescador etc.) ou possuir o conhecimento total da tradição em todos os
seus aspectos. Assim, existem os doma que conhecem a ciência dos
ferreiros, dos pastores, dos tecelões, assim como das grandes escolas de
iniciação da savana – por exemplo, no Mali, o Komo, o Kore, o Nama, o Do,
o Diarrawara, o Nya, o Nyaworole etc.
Mas não nos iludamos: a tradição africana não corta a vida em fatias
e raramente o “conhecedor” é um “especialista”. Na maioria das vezes, ele é
um “generalizador”. Por exemplo, um mesmo velho conhecerá não apenas
a ciência das plantas (as propriedades boas ou más de cada planta), mas
também a “ciência das terras” (as propriedades agrícolas ou medicinais
dos diferentes tipos de solo), a “ciência das águas”, astronomia,
cosmogonia, psicologia etc. Trata-se de uma ciência da vida, cujos
conhecimentos sempre podem favorecer a utilização prática. E quando
falamos de ciências “iniciatórias” ou “ocultas”, termos que podem
confundir o leitor racionalista, trata-se sempre, para a África tradicional,
de uma ciência eminentemente prática que consiste em saber como entrar
em relação apropriada com as forças que sustentam o mundo visível e que
podem ser postas a serviço da vida.
Guardião dos segredos da Gênese cósmica e das ciências da vida, o
tradicionalista, geralmente dotado de uma memória prodigiosa,
normalmente também é o arquivista de fatos passados, transmitidos pela
tradição, ou de fatos contemporâneos. Uma história que se quer
essencialmente africana deverá necessariamente, portanto, apoiar-se no
testemunho insubstituível de africanos qualificados. “Não se pode pentear
uma pessoa quando ela está ausente”, diz o adágio.
Os grandes doma, os de conhecimento total, eram conhecidos e
venerados, e as pessoas vinham de longe para recorrer ao seu
conhecimento e à sua sabedoria.
Ardo Dembo, que me iniciou nas coisas fulâni, era um doma peul
(um silatigui). Hoje é falecido. Ali Essa, outro silatigui peul, ainda vive.
Danfo Sine, que frequentava a casa de meu pai, na minha infância, era um
doma quase universal. Não somente era um grande mestre iniciado do
Komo, mas também possuía todos os outros conhecimentos de seu tempo
– históricos, iniciatórios ou relativos às ciências da natureza. Era
conhecido por todos na região que se estende de Sikasso a Bamako, isto é,
os antigos reinos de Kenedugu e de Beledugu.
Seu irmão mais jovem, Latif, que havia experimentado as mesmas
iniciações, era também um grande doma. Além disso, tinha a vantagem de
ler e escrever árabe e de ter prestado o serviço militar (nas forças
francesas) no Chade, o que lhe permitira coletar grande quantidade de
conhecimentos na savana chadiana, que se revelaram análogos aos
ensinados no Mali. Iwa, pertencente à casta dos griots, é um dos maiores
tradicionalistas do Mande vivos no Mali, assim como Banzoumana, o
grande músico cego.
Nesse ponto é preciso esclarecer que um griots não é
necessariamente um tradicionalista “conhecedor”, mas que pode se tornar
um, se for essa a sua vocação. Não poderá, entretanto, ter acesso à
iniciação do Komo, da qual os griots são excluídos7.
De maneira geral, os tradicionalistas foram postos de lado, se não
perseguidos, pelo poder colonial, que naturalmente procurava extirpar as
tradições locais a fim de implantar suas próprias ideias – pois, como se diz,
“Não se semeia nem em campo plantado nem em terra alqueivada”. Por
essa razão, a iniciação geralmente buscava refúgio na mata e deixava as
grandes cidades, chamadas de Tubabudugu, “cidades de brancos” (ou seja,
dos colonizadores).
No entanto, nos diversos países da savana africana que formam o
antigo Bafur – e, sem dúvida, outras partes também – ainda existem
“conhecedores” que continuam a transmitir a herança sagrada àqueles que
aceitam aprender e ouvir e que se mostram dignos de receber os
ensinamentos por sua paciência e discrição, regras básicas exigidas pelos
deuses.
Dentro de dez ou quinze anos, os últimos grandes doma, os últimos
anciãos herdeiros dos vários ramos da tradição, provavelmente terão
desaparecido. Se não nos apressarmos em reunir seus testemunhos e
ensinamentos, todo o patrimônio cultural e espiritual de um povo cairá no
esquecimento juntamente com eles, e uma geração jovem sem raízes ficará
abandonada à própria sorte.

AUTENTICIDADE DA TRANSMISSÃO

Mais do que todos os outros homens, os tradicionalistas-doma,


grandes ou pequenos, obrigam-se a respeitar a verdade. Para eles, a
mentira não é simplesmente um defeito moral, mas uma interdição ritual
cuja violação lhes impossibilitaria o preenchimento de sua função.
Um mentiroso não poderia ser um iniciador, nem um mestre da
faca8, e muito menos um doma. Se, excepcionalmente, acontecesse de um
tradicionalista-doma revelar-se um mentiroso, jamais voltaria a receber a
confiança de alguém em qualquer domínio, e sua função desapareceria
imediatamente.
De modo geral, a tradição africana abomina a mentira. Diz-se:
“Cuida-te para não te separares de ti mesmo. É melhor que o mundo fique
separado de ti do que tu separado de ti mesmo”. Mas a interdição ritual da
mentira afeta, de modo particular, todos os “oficiantes” (ou sacrificadores,
ou mestres da faca etc.)9 de todos os graus, a começar pelo pai de família
que é o sacrificador ou o oficiante de sua família, passando pelo ferreiro,
pelo tecelão ou pelo artesão tradicional – pois a prática de um ofício é
atividade sagrada, como veremos adiante. A proibição atinge todos os que,
tendo de exercer uma responsabilidade mágico-religiosa e realizar os atos
rituais, são, de algum modo, os intermediários entre os mortais comuns e
as forças tutelares; no topo estão o oficiante sagrado do país (por exemplo,
o hogon, entre os dogon) e, eventualmente, o rei. Essa interdição ritual
existe, de meu conhecimento, em todas as tradições da savana africana.
A proibição da mentira deve-se ao fato de que, se um oficiante
mentisse, estaria corrompendo os atos rituais. Não mais preencheria o
conjunto das condições rituais necessárias à realização do ato sagrado, das
quais a principal é estar ele próprio em harmonia antes de manipular as
forças da vida. Não nos esqueçamos de que todos os sistemas mágico-
religiosos africanos tendem a preservar ou restabelecer o equilíbrio das
forças, do qual depende a harmonia do mundo material e espiritual.
Mais do que todos os outros, os doma sujeitam-se a essa obrigação,
pois, enquanto mestres iniciados, são os grandes detentores da Palavra,
principal agente ativo da vida humana e dos espíritos. São os herdeiros das
palavras sagradas e encantatórias transmitidas pela cadeia de ancestrais,
palavras que podem remontar às primeiras vibrações sagradas emitidas
por Maa, o primeiro homem. Se o tradicionalista-doma é detentor da
Palavra, os demais homens são os depositários do palavrório…
Citarei o caso de um mestre da faca dogon, do país de Pignari
(departamento de Bandiagara), que conheci na juventude e que, certa vez,
foi forçado a mentir a fim de salvar a vida de uma mulher procurada que
ele havia escondido em sua casa. Após o incidente, renunciou
espontaneamente ao cargo, supondo que já não mais preenchia as
condições rituais para assumi-lo de modo lídimo.
Quando se trata de questões religiosas e sagradas, os grandes
mestres tradicionais não temem a opinião desfavorável das massas e, se
acaso cometem um engano, admitem o erro publicamente, sem desculpas
calculadas ou evasivas. Para eles, reconhecer quaisquer faltas que tenham
cometido é uma obrigação, pois significa purificar-se da profanação.
O tradicionalista ou “conhecedor” é tão respeitado na África porque
ele respeita a si próprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais
deve mentir, é um homem “bem equilibrado”, mestre das forças que nele
habitam. Ao seu redor, as coisas se ordenam e as perturbações se
aquietam.
Independentemente da interdição da mentira, ele pratica a
disciplina da palavra e não a utiliza imprudentemente. Pois se a fala, como
vimos, é considerada uma exteriorização das vibrações de forças
interiores, inversamente, a força interior nasce da interiorização da fala.
A partir dessa ótica, pode-se compreender melhor a importância que
a educação tradicional africana atribui ao autocontrole. Falar pouco é sinal
de boa educação e de nobreza. Muito cedo o jovem aprende a dominar a
manifestação de suas emoções ou de seu sofrimento, aprende a conter as
forças que nele existem, à semelhança do Maa primordial que continha
dentro de si, submissas e ordenadas, todas as forças do cosmo. Dir-se-á de
um “conhecedor” respeitado ou de um homem que é mestre de si mesmo:
“é um Maa!” (ou um Neddo, em fulfulde), quer dizer, um homem completo.
Não se deve confundir os tradicionalistas-doma, que sabem ensinar
enquanto divertem e se põem ao alcance da audiência, com os trovadores,
contadores de histórias e animadores públicos, que em geral pertencem à
casta dos dieli (griots) ou dos woloso (“cativos de casa”)10. Para estes, a
disciplina da verdade não existe; e, como veremos adiante, a tradição lhes
concede o direito de travesti-la ou de embelezar os fatos, mesmo que
grosseiramente, contanto que consigam divertir ou interessar o público.
“O griot” – como se diz – “pode ter duas línguas.”
Ao contrário, nenhum africano de formação tradicionalista sequer
sonharia em pôr em dúvida a veracidade da fala de um tradicionalista-
doma, especialmente quando se trata da transmissão dos conhecimentos
herdados da cadeia dos ancestrais.
Antes de falar, o doma, por deferência, dirige-se às almas dos
antepassados para pedir-lhes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a
língua troque as palavras ou que ocorra um lapso de memória, que o
levaria a alguma omissão.
Danfo Sine, o grande doma bambara que conheci na infância em
Bougouni, e que nessa época era o chantre do Komo, antes de iniciar uma
história ou lição costumava dizer:

Oh, Alma de meu Mestre Tiemablem Samaké!


Oh, Almas dos velhos ferreiros e dos velhos tecelões,
Primeiros ancestrais iniciadores vindos do Leste!
Oh, Jigi, grande carneiro que por primeiro soprou
Na trombeta do Komo,
Vindo sobre o Jeliba (Níger)!
Acercai-vos e escutai-me.
Em concordância com vossos dizeres
Vou contar aos meus ouvintes
Como as coisas aconteceram,
Desde vós, no passado, até nós, no presente,
Para que as palavras sejam preciosamente guardadas
E fielmente transmitidas
Aos homens de amanhã
Que serão nossos filhos
E os filhos de nossos filhos.
Segurai firme, ó ancestrais, as rédeas de minha língua!
Guiai o brotar das minhas palavras
A fim de que possam seguir e respeitar
Sua ordem natural.

Em seguida, acrescentava: “Eu, Danfo Sine, do clã de Samake


(elefante), vou contar tal como o aprendi, na presença de minhas duas
testemunhas, Makoro e Manifin11. Os dois, como eu, conhecem a trama12.
Eles serão a um tempo meus fiscais e meu apoio”.
Se o contador de histórias cometesse um erro ou esquecesse algo,
sua testemunha o interromperia: “Homem! Presta atenção quando abres a
boca!”. Ao que ele responderia: “Desculpe, foi minha língua fogosa que me
traiu”.
Um tradicionalista-doma que não é ferreiro de nascença, mas que
conhece as ciências relacionadas à forja, por exemplo, dirá, antes de falar
sobre ela: “Devo isto a fulano, que deve a beltrano etc.”. Ele renderá
homenagem ao ancestral dos ferreiros, curvando-se em sinal de devoção,
com a ponta do cotovelo direito apoiada no chão e o antebraço erguido.
O doma também pode citar seu mestre e dizer: “Rendo homenagem a
todos os intermediários até Nunfayri…”13, sem ser obrigado a citar todos os
nomes. Existe sempre referência à cadeia da qual o próprio doma é apenas
um elo. Em todos os ramos do conhecimento tradicional, a cadeia de
transmissão se reveste de uma importância primordial. Não existindo
transmissão regular, não existe “magia”, mas somente conversa ou
histórias. A fala é, então, inoperante. A palavra transmitida pela cadeia
deve veicular, depois da transmissão original, uma força que a torna
operante e sacramental.
Essa noção de “respeito pela cadeia” ou de “respeito pela
transmissão” determina, em geral, no africano não aculturado, a tendência
a relatar uma história reproduzindo a mesma forma em que a ouviu,
ajudado pela memória prodigiosa dos iletrados. Se alguém o contradiz, ele
simplesmente responde: “Fulano me ensinou assim!”, sempre citando a
fonte.
Além do valor moral próprio dos tradicionalistas-doma e de sua
adesão a uma “cadeia de transmissão”, uma garantia suplementar de
autenticidade é fornecida pelo controle permanente de seus pares ou dos anciãos
que os rodeiam, que velam zelosamente pela autenticidade daquilo que
transmitem e que os corrigem ao menor erro, como vimos no caso de
Danfo Sine.
No curso de suas excursões rituais pelo mato, o chantre do Komo
pode acrescentar as próprias meditações ou inspirações às palavras
tradicionais que herdou da “cadeia” e que canta para seus companheiros.
Suas palavras, novos elos, vêm, então, enriquecer as palavras dos
predecessores. Mas ele previne: “Isto é o que estou acrescentando, isto é o
que estou dizendo. Não sou infalível, posso estar errado. Se estou, não se
esqueçam de que, como vocês, vivo de um punhado de painço, de uns goles
de água e de alguns sopros de ar. O homem não é infalível!”. Os iniciados e
os neófitos que o acompanham aprendem essas novas palavras, de modo
que todos os cantos do Komo são conhecidos e conservados na memória.
O grau de evolução do adepto do Komo não é medido pela quantidade
de palavras aprendidas, mas pela conformidade de sua vida a essas palavras.
Se um homem sabe apenas dez ou quinze palavras do Komo e as vive, então
ele se torna um valoroso adepto do Komo no interior da associação. Para
ser chantre do Komo, portanto mestre iniciado, é necessário conhecer
todas as palavras herdadas e vivê-las.
A educação tradicional, sobretudo quando diz respeito aos
conhecimentos relativos a uma iniciação, liga-se à experiência e se integra
à vida. Por esse motivo, o pesquisador europeu ou africano que deseja
aproximar-se dos fatos religiosos africanos está fadado a deter-se nos
limites do assunto, a menos que aceite viver a iniciação correspondente e
suas regras, o que pressupõe, no mínimo, um conhecimento da língua. Pois
existem coisas que não “se explicam”, mas que se experimentam e se
vivem.
Lembro-me de que em 1928, quando servia em Tougan, um jovem
etnólogo chegara ao país para fazer um estudo sobre a galinha sacrifical
por ocasião da circuncisão. O comandante francês apresentou-se ao chefe
de cantão indígena e pediu que tudo fosse feito para satisfazer o etnólogo,
insistindo para que “lhe contassem tudo”. Por sua vez, o chefe de cantão
reuniu os principais cidadãos e expôs-lhes os fatos, repetindo as palavras
do comandante.
O decano da assembleia, que era o mestre da faca local, portanto o
responsável pelas cerimônias de circuncisão e da iniciação
correspondente, perguntou-lhe:
– Ele quer que lhe contemos tudo?
– Sim – respondeu o chefe de cantão.
– Mas ele veio para ser circuncidado?
– Não, veio buscar informações.
O decano voltou o rosto para o outro lado e disse:
– Como podemos contar-lhe tudo se ele não quer ser circuncidado?
Você bem sabe, chefe, que isso não é possível. Ele terá de levar a vida dos
circuncidados para que possamos ensinar-lhe todas as lições.
– Uma vez que por força somos obrigados a satisfazê-lo – replicou o
chefe do cantão –, cabe a você encontrar uma saída para essa dificuldade.
– Muito bem! – disse o velho. – Nós nos desembaraçaremos dele sem
que ele perceba, “pondo-o na palha”.
A fórmula “pôr na palha”, que consiste em enganar uma pessoa com
alguma história improvisada quando não se pode dizer a verdade, foi
inventada a partir do momento em que o poder colonial passou a enviar
seus agentes ou representantes com o propósito de fazer pesquisas
etnológicas sem aceitar viver sob as condições exigidas. Muitos etnólogos
foram vítimas inconscientes desta tática… Quantos não pensavam ter
compreendido completamente determinada realidade quando, sem vivê-
la, não poderiam verdadeiramente tê-la conhecido.
Além do ensino esotérico ministrado nas grandes escolas de
iniciação – por exemplo, o Komo ou as demais já mencionadas –, a
educação tradicional começa, em verdade, no seio de cada família, onde o
pai, a mãe ou as pessoas mais idosas são ao mesmo tempo mestres e
educadores e constituem a primeira célula dos tradicionalistas. São eles
que ministram as primeiras lições da vida, não somente através da
experiência, mas também por meio de histórias, fábulas, lendas, máximas,
adágios etc. Os provérbios são as missivas legadas à posteridade pelos
ancestrais. Existe uma infinidade deles.
Certos jogos infantis foram elaborados pelos iniciados com o fim de
difundir, ao longo dos séculos, certos conhecimentos esotéricos cifrados.
Citemos, por exemplo, o jogo do Banangolo, no Mali, baseado em um
sistema numeral relacionado com os 266 siqiba, ou signos, que
correspondem aos atributos de Deus.
Por outro lado, o ensinamento não é sistemático, mas ligado às
circunstâncias da vida. Esse modo de proceder pode parecer caótico, mas,
em verdade, é prático e muito vivo. A lição dada na ocasião de certo
acontecimento ou experiência fica profundamente gravada na memória da
criança.
Ao fazer uma caminhada pela mata, encontrar um formigueiro dará
ao velho mestre a oportunidade de ministrar conhecimentos diversos, de
acordo com a natureza dos ouvintes. Ou falará sobre o próprio animal,
sobre as leis que governam sua vida e a classe de seres a que pertence, ou
dará uma lição de moral às crianças, mostrando-lhes como a vida em
comunidade depende da solidariedade e do esquecimento de si mesmo, ou
ainda poderá falar sobre conhecimentos mais elevados, se sentir que seus
ouvintes poderão compreendê-lo. Assim, qualquer incidente da vida,
qualquer acontecimento trivial pode sempre dar ocasião a múltiplos
desenvolvimentos, pode induzir à narração de um mito, de uma história
ou de uma lenda. Qualquer fenômeno observado permite remontar às
forças de onde se originou e evocar os mistérios da unidade da Vida, que é
inteiramente animada pela Se, a Força sagrada primordial, ela mesma um
aspecto do Deus Criador.
Na África, tudo é “História”. A grande história da vida compreende a
história das terras e das águas (geografia), a história dos vegetais (botânica
e farmacopeia), a história dos “filhos do seio da Terra” (mineralogia,
metais), a história dos astros (astronomia, astrologia) e assim por diante.
Na tradição da savana, particularmente nas tradições bambara e
peul, o conjunto das manifestações da vida na Terra divide-se em três
categorias ou classes de seres, cada uma delas subdividida em três grupos:

• Na parte inferior da escala, os seres inanimados, os chamados seres mudos,


cuja linguagem é considerada oculta, uma vez que é incompreensível ou
inaudível para o comum dos mortais. Essa classe de seres inclui tudo o que se
encontra na superfície da terra (areia, água etc.) ou que habita o seu interior
(minerais, metais etc.). Dentre os inanimados mudos, encontramos os
inanimados sólidos, líquidos e gasosos (literalmente, “fumegantes”).
• No grau médio, os animados imóveis, seres vivos que não se deslocam. Essa é a
classe dos vegetais, que podem se estender ou se desdobrar no espaço, mas
cujo pé não pode se mover. Dentre os animados imóveis, encontramos as
plantas rasteiras, as trepadeiras e as verticais, estas últimas constituindo a
classe superior.
• Finalmente, os animados móveis, que compreendem todos os animais, inclusive
o homem. Os animados móveis incluem os animais terrestres (com e sem
ossos), os animais aquáticos e os animais voadores.

Tudo o que existe pode, portanto, ser incluído em uma dessas


categorias14. De todas as “Histórias”, a maior e mais significativa é a do
próprio homem, simbiose de todas as “Histórias”, uma vez que, segundo o
mito, ele foi feito com uma parcela de tudo o que existiu antes dele. Todos
os reinos da vida (mineral, vegetal e animal) encontram-se nele,
conjugados a forças múltiplas e a faculdades superiores. Os ensinamentos
referentes ao homem baseiam-se em mitos da cosmogonia, determinando
seu lugar e papel no universo e revelando qual deve ser sua relação com o
mundo dos vivos e dos mortos.
Explica-se tanto o simbolismo de seu corpo como a complexidade de
seu psiquismo: “As pessoas da pessoa são numerosas no interior da
pessoa”, dizem as tradições bambara e peul. Ensina-se qual deve ser seu
comportamento perante a natureza, como respeitar-lhe o equilíbrio e não
perturbar as forças que a animam, das quais não é mais que o aspecto
visível. A iniciação o fará descobrir a sua própria relação com o mundo das
forças e, pouco a pouco, o conduzirá ao autodomínio, sendo a finalidade
última tornar-se, tal como Maa, um “homem completo”, interlocutor de
Maa Ngala e guardião do mundo vivo.

OS OFÍCIOS TRADICIONAIS

Os ofícios artesanais tradicionais são os grandes vetores da tradição


oral. Na sociedade tradicional africana, as atividades humanas continham
frequentemente um caráter sagrado ou oculto, principalmente as que
consistiam em agir sobre a matéria e transformá-la, uma vez que tudo é
considerado vivo.
Toda função artesanal estava ligada a um conhecimento esotérico
transmitido de geração a geração e que tinha sua origem em uma
revelação inicial. A obra do artesão era sagrada porque “imitava” a obra de
Maa Ngala e completava sua criação. A tradição bambara ensina, de fato,
que a criação ainda não está acabada, e que Maa Ngala, ao criar a nossa
terra, deixou as coisas inacabadas para que Maa, seu interlocutor, as
completasse ou modificasse, visando conduzir a natureza à perfeição. A
atividade artesanal, em sua operação, deveria “repetir” o mistério da
criação. Portanto, ela focalizava uma força oculta da qual não se podia
aproximar sem respeitar certas condições rituais.
Os artesãos tradicionais acompanham o trabalho com cantos rituais
ou palavras rítmicas sacramentais, e seus próprios gestos são considerados
uma linguagem. De fato, os gestos de cada ofício reproduzem, no
simbolismo que lhe é próprio, o mistério da criação primeira, que, como
foi mostrado anteriormente, ligava-se ao poder da Palavra. Diz-se que:

O ferreiro forja a Palavra,


O tecelão a tece,
O sapateiro a amacia curtindo-a.
Tomemos o exemplo do tecelão, cujo ofício vincula-se ao simbolismo
da Palavra criadora que se distribui no tempo e no espaço. O tecelão de
casta (um maabo, entre os peul) é o depositário dos segredos das 33 peças
que compõem a base fundamental do tear, cada uma delas com um
significado. A armação, por exemplo, constitui-se de oito peças principais:
quatro verticais, que simbolizam não só os quatro elementos-mãe (terra,
água, ar e fogo), mas também os quatro pontos cardeais; e quatro
transversais, que simbolizam os quatro pontos colaterais. O tecelão,
situado no meio, representa o homem primordial, Maa, no centro das oito
direções do espaço. Com sua presença, obtêm-se nove elementos que
lembram os nove estados fundamentais da existência, as nove classes de
seres, as nove aberturas do corpo (portas das forças da vida), as nove
categorias de homens entre os peul etc.
Antes de dar início ao trabalho, o tecelão deve tocar cada peça do tear
pronunciando palavras ou ladainhas correspondentes às forças da vida que
elas encarnam. O vaivém dos pés, que sobem e descem para acionar os
pedais, lembra o ritmo original da Palavra criadora, ligado ao dualismo de
todas as coisas e à lei dos ciclos. Como se os pés dissessem o seguinte:

Fonyonko! Fonyonko! Dualismo! Dualismo!


Quando um sobe, o outro desce.
A morte do rei e a coroação do príncipe,
A morte do avô e o nascimento do neto,
Brigas de divórcio misturadas ao barulho de uma festa de casamento…

De sua parte, diz a naveta:

Eu sou a barca do Destino.


Passo por entre os recifes dos fios da trama
Que representam a Vida.
Passo do lado direito para o lado esquerdo,
Desenrolando meu intestino (o fio)
Para contribuir à construção.
E de novo passo do lado esquerdo para o lado direito,
Desenrolando meu intestino.
A vida é eterno vaivém,
Permanente doação de si.

A tira de tecido, que se acumula e se enrola em um bastão que


repousa sobre o ventre do tecelão, representa o passado, enquanto o rolo
do fio a ser tecido simboliza o mistério do amanhã, o desconhecido devir.
O tecelão sempre dirá: “Ó amanhã! Não me reserve uma surpresa
desagradável!”.
No total, o trabalho do tecelão representa oito movimentos de
vaivém (movimentos dos pés, dos braços e da naveta e o cruzamento
rítmico dos fios do tecido), que correspondem às oito peças da armação do
tear e às oito patas da aranha mítica que ensinou sua ciência ao ancestral
dos tecelões. Os gestos do tecelão, ao acionar o tear, representam o ato da
criação, e as palavras que lhe acompanham os gestos são o próprio canto
da Vida.
Quanto ao ferreiro tradicional, ele é o depositário do segredo das
transmutações. Por excelência, ele é o mestre do fogo. Sua origem é mítica
e, na tradição bambara, chamam-no de “Primeiro Filho da Terra”. Suas
habilidades remontam a Maa, o primeiro homem, a quem o criador Maa
Ngala ensinou, entre outros, os segredos da forjadura. Por isso a forja é
chamada de Fan, o mesmo nome do Ovo primordial, de onde surgiu todo o
universo – ele foi a primeira forja sagrada.
Os elementos da forja estão ligados a um simbolismo sexual, sendo
esta a expressão, ou o re lexo, de um processo cósmico de criação. Desse
modo, os dois foles redondos, acionados pelo assistente do ferreiro, são
comparados aos testículos masculinos. O ar com que são enchidos é a
substância da vida enviada, através de uma espécie de tubo, que representa
o falo, para a fornalha da forja, que representa a matriz onde age o fogo
transformador.
O ferreiro tradicional só pode entrar na forja após um banho ritual
de purificação preparado com o cozimento de certas folhas, cascas ou
raízes de árvores, escolhidas em função do dia. Com efeito, as plantas
(como os minerais e os animais) dividem-se em sete classes, que
correspondem aos dias da semana e estão ligadas pela lei de
correspondência analógica15. Em seguida, o ferreiro se veste de modo
especial, uma vez que não pode entrar na forja vestido com roupa comum.
Todos os dias, pela manhã, purifica a forja com defumações
especiais feitas com plantas que ele conhece. Terminadas essas operações,
lavado de todos os contatos com o exterior, o ferreiro encontra-se em
estado sacramental. Voltou a ser puro e assemelha-se agora ao ferreiro
primordial. Só então, à semelhança de Maa Ngala, pode ele “criar”,
modificando e moldando a matéria. (Em fulfulde, ferreiro traduz-se por
baylo, palavra que literalmente significa “transformador”.)
Antes de começar o trabalho, invoca os quatro elementos-mãe da
criação (terra, água, ar e fogo), que estão obrigatoriamente representados
na forja: existe sempre um receptáculo com água, o fogo da fornalha, o ar
enviado pelos foles e um montículo de terra ao lado da forja.
Durante o trabalho, o ferreiro pronuncia palavras especiais à medida
que vai tocando cada ferramenta. Ao tomar a bigorna, que simboliza a
receptividade feminina, diz: “Não sou Maa Ngala, mas o representante de
Maa Ngala. Ele é quem cria, não eu”. Em seguida, apanha um pouco de
água, ou um ovo, oferece-o à bigorna e diz: “Eis teu dote”. Pega o martelo,
que simboliza o falo, e aplica alguns golpes na bigorna para “sensibilizá-la”.
Estabelecida a comunicação, ele pode começar a trabalhar.
O aprendiz não deve fazer perguntas. Deve apenas observar com
atenção e soprar. Esta é a fase muda do aprendizado. À medida que vai
avançando na assimilação do conhecimento, o aprendiz sopra em ritmos
cada vez mais complexos, cada um deles contendo um significado. No
decorrer da fase oral do aprendizado, o mestre transmitirá gradualmente
todos os seus conhecimentos ao discípulo, treinando-o e corrigindo-o até
que adquira a mestria. Após uma “cerimônia de liberação”, o novo ferreiro
poderá deixar o mestre e instalar a própria forja. Comumente, o ferreiro
envia os próprios filhos para outro ferreiro para que iniciem seu
aprendizado. Como diz o adágio: “As esposas e os filhos do mestre não são
seus melhores discípulos”.
Assim, o artesão tradicional, imitando Maa Ngala, “repetindo” com
seus gestos a criação primordial, realizava não um trabalho no sentido
puramente econômico da palavra, mas uma função sagrada que
empregava as forças fundamentais da vida e em que aplicava todo o seu
ser. Na intimidade da oficina ou da forja, participava do mistério renovado
da criação eterna.
Os conhecimentos do ferreiro devem abranger um vasto setor da
vida. Renomado ocultista, a mestria dos segredos do fogo e do ferro faz
dele a única pessoa habilitada a praticar a circuncisão, e, como vimos, o
grande mestre da faca na iniciação do Komo é invariavelmente um
ferreiro. Não apenas sabe tudo o que diz respeito aos metais, como
também conhece perfeitamente a classificação das plantas e suas
propriedades.
O ferreiro de alto-forno, que ao mesmo tempo extrai e funde o
mineral, é o mais avançado em conhecimentos. À ciência de ferreiro
fundidor acrescenta o conhecimento perfeito dos filhos do seio da terra
(mineralogia) e dos segredos das plantas e da mata. De fato, ele conhece as
espécies de vegetais que contêm determinado metal e detecta um veio de
ouro simplesmente examinando as plantas e os seixos. Conhece as
encantações da terra e as encantações das plantas. Uma vez que se
considera a natureza viva e animada pelas forças, todo ato que a perturba
deve ser acompanhado de um comportamento ritual destinado a preservar
e salvaguardar o equilíbrio sagrado, pois tudo se liga, tudo repercute em
tudo, toda ação faz vibrarem as forças da vida e desperta uma cadeia de
consequências cujos efeitos são sentidos pelo homem.
A relação do homem tradicional com o mundo era, portanto, uma
relação viva de participação, e não uma relação de pura utilização. É
compreensível que, nessa visão global do universo, o papel do profano seja
mínimo.
No antigo país Baúle, por exemplo, o ouro, que a terra oferecia em
abundância, era considerado metal divino e não chegou a ser explorado
exaustivamente. Empregavam-no sobretudo na confecção de objetos reais
ou cultuais, mas igualmente o utilizavam como moeda de câmbio e objeto
de presente. Sua extração era livre a todos, mas a ninguém era permitida a
apropriação de pepitas que ultrapassassem certo tamanho; toda pepita
com peso superior ao padrão era devolvida a Deus e se destinava a
aumentar o ouro real, depósito sagrado do qual os próprios reis não
tinham o direito de usufruir. Certos tesouros reais foram dessa maneira
transmitidos intactos até a ocupação europeia. A terra, acreditava-se,
pertencia a Deus, e ao homem cabia o direito de usufruir dela, mas não o de
possuí-la.
Voltando ao artesão tradicional, ele é o exemplo perfeito de como o
conhecimento pode ser incorporado não somente aos gestos e ações, mas
também à totalidade da vida, uma vez que deve respeitar um conjunto de
proibições e obrigações ligadas à sua atividade, que constitui um
verdadeiro código de comportamento em relação à natureza e aos
semelhantes.
Existe, desse modo, o que se chama “costume dos ferreiros”
(numusira ou numuya, em bambara), “costume dos agricultores”, “costume
dos tecelões” e assim por diante; e, no plano étnico, o que se chama
“costume dos peul” (lawol em fulfulde), verdadeiros códigos morais, sociais
e jurídicos peculiares a cada grupo, transmitidos e observados fielmente
pela tradição oral.
Pode-se dizer que o ofício, ou a atividade tradicional, esculpe o ser
do homem. Toda a diferença entre a educação moderna e a tradição oral
encontra-se aí. Aquilo que se aprende na escola ocidental, por mais útil que
seja, nem sempre é vivido, enquanto o conhecimento herdado da tradição
oral encarna-se na totalidade do ser. Os instrumentos ou as ferramentas
de um ofício materializam as palavras sagradas; o contato do aprendiz
com o ofício o obriga a viver a Palavra a cada gesto. Por essa razão a
tradição oral, tomada no seu todo, não se resume à transmissão de
narrativas ou de determinados conhecimentos. Ela é geradora e formadora de
um tipo particular de homem. Pode-se afirmar que existem a civilização dos
ferreiros, a civilização dos tecelões, a civilização dos pastores etc.
Limitei-me aqui a examinar os exemplos particularmente típicos dos
ferreiros e dos tecelões, mas, de modo geral, toda atividade tradicional
constitui uma grande escola iniciatória ou mágico-religiosa, uma via de
acesso à Unidade, da qual, para os iniciados, é um re lexo ou uma
expressão peculiar.
Em geral, a fim de conservar restritos à linhagem os conhecimentos
secretos e os poderes mágicos deles decorrentes, todo grupo devia
observar proibições sexuais rigorosas em relação a pessoas estranhas ao
grupo e praticar a endogamia. A endogamia, portanto, não se deve à ideia
de intocabilidade, mas ao desejo de manter dentro do grupo os segredos
rituais. Assim, podemos perceber como esses grupos, rigorosamente
especializados e harmonizados com as “funções sagradas”, gradualmente
chegaram à noção de “casta”, tal como existe atualmente na África da
savana. “A guerra e o nobre fazem o escravo – diz o adágio –, mas é Deus
quem faz o artesão (o nyamakala).” A noção de castas superiores ou
inferiores, por conseguinte, não se baseia em uma realidade sociológica
tradicional. Ela surgiu com o decorrer do tempo, apenas em determinados
lugares, provavelmente como consequência da aparição de alguns
impérios onde a função de guerreiro, reservada aos nobres, lhes conferia
uma espécie de supremacia. No passado distante, a noção de nobreza era,
sem dúvida, diferente, e o poder espiritual tinha precedência sobre o poder
temporal. Naquele tempo eram os silatigui (mestres iniciados peul), e não
os ardo (chefes, reis), que governavam as comunidades peul.
Contrariamente ao que alguns escreveram ou supuseram, o ferreiro é
muito mais temido do que desprezado na África. “Primeiro Filho da Terra”,
mestre do fogo e manipulador de forças misteriosas, ele é temido, acima
de tudo, pelo seu poder.
De qualquer maneira, a tradição sempre atribuiu aos nobres a
obrigação de garantir a conservação das castas ou classes de nyamakala
(em bambara; nyeenyo, plural nyeeybe, em fulâni). Tais classes gozam da
prerrogativa de obter mercadorias (ou dinheiro) não como retribuição de
um trabalho, mas como o reclamo de um privilégio que o nobre não podia
recusar.
Na tradição do Mande, cujo centro se acha no Mali, mas que cobre
mais ou menos todo o território do antigo Bafur (isto é, a antiga África
ocidental francesa, com exceção das zonas de loresta e da parte oriental
da Nigéria), as “castas”, ou nyamakala, compreendem:

• os ferreiros (numu em bambara, baylo em fulfulde);


• os tecelões (maabo em bambara e em fulfulde);
• os trabalhadores da madeira (tanto o lenhador como o marceneiro; saki em
bambara, labbo em fulfulde);
• os trabalhadores do couro (garanke em bambara, sakke em fulfulde);
• os animadores públicos (dieli em bambara; em fulfulde, eles são designados
pelo nome geral de nyamakala ou membro de uma casta, isto é, nyeeybe): eles
são mais conhecidos pelo nome griot.

Embora não exista noção de “superioridade” propriamente dita, as


quatro classes de nyamakala-artesãos têm precedência sobre os griots, pois
demandam iniciação e conhecimentos especiais. O ferreiro está no topo da
hierarquia, seguido pelo tecelão, pois seu ofício implica o mais alto grau de
iniciação. Ambos podem escolher indistintamente esposas de uma ou de
outra casta, pois as mulheres são oleiras tradicionais, tendo, portanto, a
mesma iniciação feminina. Na classificação do Mande, os nyamakala-
artesãos se dividem sempre em grupos de três.
Existem três tipos de ferreiro (numu em bambara, baylo em fulfulde):

• o ferreiro de mina (ou de alto-forno), que extrai os minérios e funde metal; os


grandes iniciados entre eles podem, igualmente, trabalhar na forja;
• o ferreiro do ferro negro, que trabalha na forja, mas não extrai minérios;
• o ferreiro dos metais preciosos, ou joalheiro, que geralmente é cortesão e,
como tal, instala-se nos pátios externos dos palácios de um chefe ou nobre.

Existem três tipos de tecelões (maabo):

• o tecelão de lã, que possui o maior grau de iniciação; os motivos dos


cobertores são sempre simbólicos e estão associados aos mistérios dos
números e da cosmogonia; todo desenho tem um nome;
• o tecelão de kerka, que tece imensos cobertores, mosquiteiros e cortinas de
algodão, que podem ter até seis metros de comprimento, com uma infinita
variedade de motivos; cheguei a examinar uma dessas cortinas, com 165
motivos. Cada motivo recebe um nome e tem um significado; o próprio nome
é um símbolo que representa várias realidades;
• o tecelão comum, que confecciona faixas simples de tecido branco, não passa
por uma grande iniciação.
Às vezes, ocorre de a tecelagem comum ser feita por nobres. Assim,
alguns bambaras confeccionam faixas de tecido branco sem serem tecelões
de casta. Como não são iniciados, porém, não podem tecer nem kerka, nem
lã, nem mosquiteiros.
Existem três tipos de carpinteiros (saki em bambara, labbo em
fulfulde):

• aquele que faz almofarizes, pilões e estatuetas sagradas; o almofariz, onde os


remédios sagrados são triturados, é um objeto ritual feito apenas com
determinados tipos de madeira; como na ferraria, a carpintaria simboliza as
duas forças fundamentais: o almofariz representa, como a bigorna, o polo
feminino, enquanto o pilão representa, como o martelo, o polo masculino; as
estatuetas sagradas são executadas sob o comando de um iniciado-doma, que
as carrega de energia sagrada, prevendo algum uso particular; além do ritual
de carregamento, a escolha e o corte da madeira também devem ser realizados
sob condições especiais, cujo segredo só o lenhador conhece. O próprio
artesão corta a madeira de que precisa, portanto é também um lenhador, e sua
iniciação está ligada ao conhecimento dos segredos das plantas e da mata;
sendo a árvore considerada viva e habitada por outros espíritos vivos, não
pode ser derrubada ou cortada sem determinadas precauções rituais,
conhecidas pelo lenhador;
• aquele que faz utensílios ou móveis domésticos de madeira;
• aquele que fabrica pirogas, devendo ser iniciado também nos segredos da
água.

No Mali, os somono, que se tornaram pescadores sem pertencer à


etnia bozo, também começaram a fabricar pirogas. São eles que podemos
ver trabalhando às margens do Níger, entre Kulikoro e Mopti.
Existem três tipos de trabalhadores do couro (garanke em bambara,
sakke em fulfulde):

• os que fazem sapatos;


• os que fazem arreios, rédeas etc.;
• os seleiros ou correeiros.
O trabalho do couro também envolve uma iniciação, e os garanke
geralmente têm a reputação de feiticeiros.
Os caçadores, os pescadores e os agricultores não correspondem a
castas, mas, sim, a etnias. Suas atividades estão entre as mais antigas da
sociedade humana: a “colheita” (agricultura) e a “caça” (que compreende
“duas caças”, uma na terra e outra na água) representam também grandes
escolas de iniciação, pois não há quem se aproxime imprudentemente das
forças sagradas da Terra-Mãe e dos poderes da mata, onde vivem os
animais. A exemplo do ferreiro de alto-forno, o caçador, de modo geral,
conhece todas as encantações da mata e deve dominar a fundo a ciência do
mundo animal.
Os curandeiros (que curam por meio de plantas ou pelo dom da fala)
podem pertencer a qualquer classe ou grupo étnico. Normalmente eles são
doma.
Cada povo possui como herança dons particulares, transmitidos de
geração a geração através da iniciação. Assim, os dogon do Mali têm a
reputação de conhecer o segredo da lepra, que sabem curar muito
rapidamente sem deixar uma única marca, e o segredo da cura da
tuberculose. Além disso, são excelentes restauradores, pois conseguem
recolocar no lugar os ossos quebrados, mesmo em caso de fraturas graves.

OS ANIMADORES PÚBLICOS OU GRIOTS (DIELI EM BAMBARA)

Se as ciências ocultas e esotéricas são privilégio dos “mestres da


faca” e dos chantres dos deuses, a música, a poesia lírica e os contos que
animam as recreações populares, e normalmente também a história, são
privilégios dos griots, espécie de trovadores ou menestréis que percorrem o
país ou estão ligados a uma família. Sempre se supôs – erroneamente – que
os griots fossem os únicos “tradicionalistas” possíveis. Mas quem são eles?
Classificam-se também em três categorias:

• os griots músicos, que tocam qualquer instrumento (monocórdio, guitarra,


cora, tantã etc.); normalmente são excelentes cantores, preservadores,
transmissores da música antiga e, além disso, compositores;
• os griots embaixadores e cortesãos, responsáveis pela mediação entre as
grandes famílias em caso de desavenças; estão sempre ligados a uma família
nobre ou real, às vezes a uma única pessoa;
• os griots genealogistas, historiadores ou poetas (ou os três ao mesmo tempo),
que em geral são igualmente contadores de histórias e grandes viajantes, não
necessariamente ligados a uma família.

A tradição lhes confere um status social especial. Com efeito,


contrariamente aos horon (nobres), os dieli ou griots têm o direito de ser
cínicos e gozam de grande liberdade de falar. Podem manifestar-se à
vontade, até mesmo impudentemente e, às vezes, chegam a troçar das
coisas mais sérias e sagradas sem que isso acarrete graves consequências.
Não têm compromisso algum que os obrigue a ser discretos ou a guardar
respeito absoluto para com a verdade. Podem às vezes contar mentiras
descaradas e ninguém os tomará no sentido próprio: “Isso é o que o dieli
diz! Não é a verdade verdadeira, mas a aceitamos assim”. Essa máxima
mostra muito bem de que modo a tradição aceita as invenções dos dieli,
sem se deixar enganar, pois, como se diz, eles têm a “boca rasgada”.
Em toda a tradição do Bafur, o nobre ou o chefe não só é proibido de
tocar música em reuniões públicas, mas também deve ser moderado na
expressão e na fala. “Muita conversa não convém a um horon”, diz o
provérbio. Assim, os griots ligados às famílias acabam por desempenhar
naturalmente o papel de mediadores, ou mesmo de embaixadores, caso
surjam problemas de menor ou maior importância. Eles são “a língua” de
seu mestre.
Quando ligados a uma família ou pessoa, geralmente ficam
encarregados de alguma missão corriqueira e particularmente das
negociações matrimoniais. Para dar um exemplo, um jovem nobre não se
dirigirá diretamente a uma jovem para dizer-lhe de seu amor. Fará do griot
o porta-voz que entrará em contato com a moça ou com sua griote para
falar dos sentimentos de seu mestre e louvar-lhe os méritos.
Uma vez que a sociedade africana está fundamentalmente baseada
no diálogo entre os indivíduos e na comunicação entre comunidades ou
grupos étnicos, os griots são os agentes ativos e naturais nessas
conversações. Autorizados a ter “duas línguas na boca”, se necessário
podem se desdizer sem que causem ressentimentos. Isso jamais seria
possível para um nobre, a quem não se permite voltar atrás com a palavra
ou mudar de decisão. Um griot chega até mesmo a arcar com a
responsabilidade de um erro que não cometeu a fim de remediar uma
situação ou de salvar a reputação dos nobres.
É aos velhos sábios da comunidade, em suas audiências secretas, que
cabe o difícil dever de “olhar as coisas pela janela certa”; mas cabe aos griots
cumprir aquilo que os sábios decidiram e ordenaram. Treinados para
colher e fornecer informações, eles são os grandes portadores de notícias,
mas igualmente, muitas vezes, grandes difamadores.
O nome dieli em bambara significa “sangue”. De fato, tal como o
sangue, eles circulam pelo corpo da sociedade, que podem curar ou deixar
doente, conforme atenuem ou avivem os con litos através das palavras e
das canções.
É necessário acrescentar, entretanto, que se trata aqui apenas de
características gerais, e que nem todos os griots são necessariamente
desavergonhados ou cínicos. Ao contrário, entre eles existem aqueles que
são chamados de dieli-faama, ou seja, “griots-reis”. De maneira nenhuma
estes são inferiores aos nobres no que se refere a coragem, moralidade,
virtudes e sabedoria, e jamais abusam dos direitos que lhes foram
concedidos por costume.
Os griots foram importantes agentes ativos do comércio e da cultura
humana. Em geral dotados de considerável inteligência, desempenhavam
um papel de grande importância na sociedade tradicional do Bafur devido
à sua in luência sobre os nobres e os chefes. Ainda hoje, em toda
oportunidade, estimulam e suscitam o orgulho do clã dos nobres com suas
canções, normalmente para ganhar presentes, mas muitas vezes para
também encorajá-los a enfrentar alguma situação difícil.
Durante a noite de vigília que precede o rito da circuncisão, por
exemplo, eles encorajam a criança ou o jovem a mostrar-se digno de seus
antepassados, permanecendo impassível. Entre os peul, canta-se o
seguinte: “Teu pai”16, fulano, que morreu no campo de batalha, engoliu o
‘mingau do ferro incandescente’ (as balas) sem piscar. Espero que amanhã
tu não sintas medo da ponta da faca do ferreiro”. Na cerimônia do bastão,
ou Soro, entre os peul bororo do Níger, as canções do griot animam o jovem
que deve provar sua coragem e paciência mantendo um sorriso, sem
tremer as pálpebras, enquanto recebe fortes golpes de bastão no peito.
Os griots tomaram parte em todas as batalhas da história, ao lado de
seus mestres, cuja coragem estimulavam relembrando-lhes a genealogia e
os grandes feitos dos antepassados. Para o africano, a invocação do nome
de família é de grande poder. Ademais, é pela repetição do nome da
linhagem que se saúda e se louva um africano.
A in luência exercida pelos dieli, ao longo da história, adquiria a
qualificação de boa ou má, conforme suas palavras incitavam o orgulho
dos líderes e os impeliam a excessos ou, como era o caso mais frequente,
chamavam-nos ao respeito de seus deveres tradicionais. Como se vê, os
griots participam efetivamente da história dos grandes impérios africanos
do Bafur, e o papel desempenhado por eles merece um estudo em
profundidade.
O segredo do poder da in luência dos dieli sobre os horon (nobres)
reside no conhecimento que têm da genealogia e da história das famílias.
Alguns deles chegaram a fazer desse conhecimento uma verdadeira
especialização. Os griots dessa categoria raramente pertencem a uma
família e viajam pelo país em busca de informações históricas cada vez
mais extensas. Desse modo, certamente adquirem uma capacidade quase
mágica de provocar o entusiasmo de um nobre ao declamar para ele a
própria genealogia, os objetos heráldicos e a história familiar, e,
consequentemente, de receber dele valiosos presentes. Um nobre é capaz
de se despojar de tudo o que traz consigo e possui dentro de casa para
presentear um griot que conseguiu lhe mover os sentimentos. Aonde quer
que vão, esses griots genealogistas têm a sobrevivência largamente
assegurada.
Não se deve pensar, entretanto, que se trata de uma retribuição. A
ideia de remuneração pelo trabalho realizado é contrária à noção
tradicional de direito dos nyamakala sobre as classes nobres17. Qualquer que
seja sua fortuna, os nobres, mesmo os mais pobres, são tradicionalmente
obrigados a oferecer presentes aos dieli ou a qualquer nyamakala ou woloso
– mesmo quando o dieli é infinitamente mais rico do que o nobre. De modo
geral, é a casta dos dieli a que mais reclama presentes. Quaisquer que sejam
seus ganhos, porém, o dieli sempre é pobre, pois gasta tudo o que tem,
contando com os nobres para seu sustento. “O!” – canta o dieli solicitante –
“a mão de um nobre não está grudada ao seu pescoço com avareza; ela está
sempre pronta a buscar em seu bolso algo para dar àquele que pede.” E, se
por acaso isso não ocorrer, é melhor que o nobre esteja precavido dos
problemas que terá com o “homem da boca rasgada”, cujas “duas línguas”
podem arruinar negócios e reputações!
Do ponto de vista econômico, portanto, a casta dos dieli18, como
todas as classes de nyamakala e de woloso, é dependente da sociedade,
especialmente das classes nobres. A progressiva transformação das
condições econômicas e dos costumes alterou, até certo ponto, essa
situação, e antigos nobres ou griots passaram a aceitar funções
remuneradas. Mas o costume não morreu, e as pessoas ainda se arruínam
por ocasião de festas de batismo ou casamento para dar presentes aos
griots que vêm animar as festas com suas canções. Alguns governos
modernos tentaram pôr fim a esse costume, mas, que se saiba, ainda não
conseguiram.
É fácil ver como os griots genealogistas, especializados em histórias
de famílias e geralmente dotados de memória prodigiosa, tornaram-se
naturalmente, por assim dizer, os arquivistas da sociedade africana e,
ocasionalmente, grandes historiadores. Mas é importante lembrar que eles
não são os únicos a possuir tal conhecimento. Os griots historiadores, a
rigor, podem ser chamados de “tradicionalistas”, mas com a ressalva de
que se trata de um ramo puramente histórico da tradição, que contém
muitos outros ramos.
O fato de ter nascido dieli não faz do homem necessariamente um
historiador, embora o incline para essa direção, e muito menos que se
torne um sábio em assuntos tradicionais, um “conhecedor”. De modo
geral, a casta dos dieli é a que mais se distancia dos domínios iniciatórios,
que requerem silêncio, discrição e controle da fala. A possibilidade de se
tornarem “conhecedores” está ao alcance deles tanto quanto ao de
qualquer outro indivíduo. Assim como um tradicionalista-doma (o
“conhecedor” tradicional no verdadeiro sentido do termo) pode vir a ser ao
mesmo tempo um grande genealogista e historiador, um griot, como todo
membro de qualquer categoria social, pode tornar-se um tradicionalista-
doma se suas aptidões o permitirem e se ele tiver passado pelas iniciações
correspondentes (com exceção, no entanto, da iniciação do Komo, que lhe
é proibida).
No desenvolvimento deste estudo, mencionamos o exemplo de dois
griots “conhecedores” que atualmente vivem no Mali: Iwa e Banzoumana, o
qual é ao mesmo tempo grande músico, historiador e tradicionalista-doma.
O griot que é também tradicionalista-doma constitui uma fonte de
informações de absoluta confiança, pois sua qualidade de iniciado lhe
confere alto valor moral e o sujeita à proibição da mentira. Torna-se outro
homem. É ele o “griot-rei” do qual falamos anteriormente, a quem as
pessoas consultam por sua sabedoria e seu conhecimento, e que, embora
capaz de divertir, jamais abusa de seus direitos consuetudinários.
Quando um griot conta uma história, geralmente lhe perguntam: “é
uma história de dieli ou uma história de doma?”. Se for uma história de dieli,
costuma-se dizer: “Isso é o que o dieli diz!”, e então se podem esperar
alguns embelezamentos da verdade, com a intenção de destacar o papel
desta ou daquela família – embelezamentos que não seriam feitos por um
tradicionalista-doma, que se interessa, acima de tudo, pela transmissão
fiel.
É necessário fazer uma distinção: quando estamos na presença de
um griot historiador, convém sabermos se se trata de um griot comum ou
de um griot-doma. Ainda assim deve-se admitir que a base dos fatos
raramente é alterada; serve de trampolim à inspiração poética ou
panegírica, que, se não chega a falsificá-la, pelo menos a “ornamenta”.
Um mal-entendido que ainda tem sequelas em alguns dicionários
franceses deve ser esclarecido. Os franceses tomavam os dieli, a quem
chamavam griots, por feiticeiros (sorciers), o que não corresponde à
realidade. Pode acontecer de um griot ser korte-tigui, “lançador de má
sorte”, assim como pode acontecer de um griot ser doma, “conhecedor
tradicional”, não porque nasceu griot, mas porque foi iniciado e adquiriu
sua proficiência, boa ou ruim, na escola de um mestre do ofício. O mal-
entendido provavelmente advém da ambivalência do termo francês griot,
que pode designar o conjunto dos nyamakala (que incluem os dieli) e, mais
frequentemente, apenas a casta dos dieli. A tradição declara que os
nyamakala são todos subaa, termo que designa um homem versado em
conhecimentos ocultos a que só têm acesso os iniciados, uma espécie de
ocultista. A tradição exclui dessa designação os dieli, que não seguem uma
via iniciatória própria. Portanto, os nyamakala-artesãos são subaa. Entre
estes, encontra-se o garanke, trabalhador do couro, que possui a reputação
de ser um subaga, feiticeiro no mau sentido do termo.
Quanto a mim, sou propenso a acreditar que os primeiros
intérpretes europeus confundiram os dois termos – subaa e subaga
(semelhantes na pronúncia) – e que a ambivalência do termo griot fez o
restante. Uma vez que a tradição declara que “todos os nyamakala são subaa
(ocultistas)”, os intérpretes devem ter entendido “todos os nyamakala são
subaga (feiticeiros)”, o que, devido ao duplo uso, coletivo ou particular, da
palavra “griot”, tornou-se “todos os griots são feiticeiros”. Daí o mal-
entendido. Seja como for, a importância do dieli não se encontra nos
poderes de bruxaria que ele possa ter, mas em sua arte de manejar a fala,
que, aliás, também é uma forma de magia.
Antes de deixarmos os griots, assinalemos algumas exceções que
podem causar confusão. Por vezes, alguns tecelões deixam de exercer seu
ofício tradicional para se tornarem tocadores de guitarra. Os peul
chamam-nos de bammbaado, literalmente “aquele que é carregado nas
costas”, porque suas despesas são sempre pagas por outrem ou pela
comunidade. Os bammbaado, que são sempre contadores de histórias,
também podem ser poetas, genealogistas e historiadores.
Alguns lenhadores também podem trocar suas ferramentas por uma
guitarra e se tornar excelentes músicos e genealogistas. Bokar Ilo e Idriss
Ngada – que, pelo que sei, se encontravam entre os grandes genealogistas
do Alto Volta [atual Burkina Faso] – eram lenhadores que se tornaram
músicos. Mas trata-se aqui de exceções.
Do mesmo modo, alguns nobres desacreditados podem se tornar
animadores públicos, mas não músicos19, e são chamados de tiapourta (em
bambara e em fulfulde). Assim, são mais impudentes e cínicos do que o
mais impudente dos griots, e ninguém leva a sério seus comentários.
Pedem presentes aos griôs com tal insistência que estes chegam a fugir ao
ver um tiapourta…
Se a música é, em geral, a grande especialidade dos dieli, existe
também uma música ritual, tocada por iniciados, que acompanha as
cerimônias ou as danças rituais. Os instrumentos dessa música sagrada
são, portanto, verdadeiros objetos de culto, que tornam possível a
comunicação com as forças invisíveis. Por serem instrumentos de corda,
sopro ou percussão, encontram-se em conexão com os elementos terra, ar
e água. A música própria para “encantar” os espíritos do fogo é apanágio
da associação dos comedores de fogo, que são chamados de kursi-kolonin ou
donnga-soro.

COMO SE TORNAR UM TRADICIONALISTA

Na África do Bafur, como já foi dito, qualquer um podia tornar-se


tradicionalista-doma, isto é, “conhecedor”, em uma ou mais matérias
tradicionais. O conhecimento estava à disposição de todos (a iniciação
onipresente era feita sob uma forma ou outra) e sua aquisição dependia
simplesmente das aptidões individuais.
O conhecimento era tão valorizado que tinha precedência sobre tudo
e conferia nobreza. O “conhecedor”, em qualquer área, podia sentar-se no
Conselho dos Anciãos encarregado da administração da comunidade, a
despeito de sua categoria social – horon, nyamakala ou woloso. “O
conhecimento não distingue raça nem ‘porta paterna’ (o clã). Ele enobrece
o homem”, diz o provérbio.
A educação africana não tinha a sistemática do ensino europeu,
sendo distribuída durante toda a vida. A própria vida era educação. No
Bafur, até os 42 anos, um homem devia estar na escola da vida e não tinha
“direito à palavra” em assembleias, a não ser excepcionalmente. Seu dever
era ficar “ouvindo” e aprofundar o conhecimento que veio recebendo desde
a sua iniciação, aos 21 anos. A partir dos 42 anos, supunha-se que já tivesse
assimilado e aprofundado os ensinamentos recebidos desde a infância.
Adquiria o direito à palavra nas assembleias e tornava-se, por sua vez, um
mestre, para devolver à sociedade aquilo que dela havia recebido. Mas isso
não o impedia de continuar aprendendo com os mais velhos, se assim o
desejasse, e de lhes pedir conselhos. Um homem idoso encontrava sempre
outro mais velho ou mais sábio do que ele, a quem pudesse solicitar uma
informação adicional ou uma opinião. “Todos os dias” – costuma-se dizer –
“o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu.” Assim, a educação podia durar
a vida toda.
Após aprender o ofício e seguir a iniciação correspondente, o jovem
nyamakala-artesão, pronto para voar com suas próprias asas, ia geralmente
de cidade em cidade, a fim de aumentar seus conhecimentos aprendendo
com novos mestres. “Aquele que não viajou nada viu”, diz-se. Assim, ele ia
de oficina em oficina, percorrendo, o mais extensamente possível, o país.
Os homens das montanhas desciam às planícies, os das planícies subiam
às montanhas, os do Beledugu vinham ao Mande, e assim por diante.
Com o propósito de logo se fazer reconhecer, o jovem ferreiro, em
viagem, trazia sempre o fole a tiracolo; o lenhador, o machado ou a enxó; o
tecelão carregava às costas o tear desmontado, mas mantinha a naveta ou
o carretel bem à mostra, nos ombros; o trabalhador do couro levava seus
pequenos potes de tinta. Quando o jovem chegava a uma cidade grande,
onde os artesãos viviam em corporações agrupadas por ofício, era
automaticamente conduzido ao local dos trabalhadores do couro ou dos
tecelões etc.
No curso das viagens e investigações, a extensão do aprendizado
dependia da destreza, da memória e, sobretudo, do caráter do jovem. Se
era cortês, simpático e serviçal, os velhos lhe contavam segredos que não
contariam a outros, pois se diz: “O segredo do velho não se compra com
dinheiro, mas com boas maneiras”.
Quanto ao jovem horon, passava a infância na corte do pai e na
cidade, onde assistia a todas as reuniões, ouvia as histórias que se
contavam e retinha tudo o que podia. Nas sessões noturnas de sua
“associação de idade”, cada criança contava as histórias que havia
escutado, fossem elas de caráter histórico ou iniciatório – neste último
caso, sem compreender bem todas as implicações. A partir dos 7 anos,
automaticamente fazia parte da sociedade de iniciação de sua cidade e
começava a receber os ensinamentos, que, como já explicamos, abrangiam
todos os aspectos da vida.
Quando um velho conta uma história iniciatória em uma
assembleia, desenvolve-lhe o simbolismo de acordo com a natureza e a
capacidade de compreensão de seu auditório. Ele pode fazer dela uma
simples história infantil com fundamento moral educativo ou uma
fecunda lição sobre os mistérios da natureza humana e da relação do
homem com os mundos invisíveis. Cada um retém e compreende
conforme a sua capacidade.
O mesmo ocorre com os relatos históricos que dão vida às reuniões,
narrativas em que os grandes feitos dos antepassados, ou dos heróis do
país, são evocados nos mínimos detalhes. Um estranho de passagem
contará histórias de terras distantes. A criança estará imersa em um
ambiente cultural particular, do qual se impregnará segundo a capacidade
de sua memória. Seus dias são marcados por histórias, contos, fábulas,
provérbios e máximas.
Via de regra, o jovem horon não viaja para o exterior, uma vez que
está preparado para a defesa do seu país. Trabalha com o pai, que pode ser
agricultor, alfaiate ou exercer qualquer outra atividade reservada à classe
dos horon. Se o jovem é peul, muda-se de acampamento com os pais,
aprende muito cedo a cuidar sozinho do rebanho em plena mata, tanto
durante o dia como à noite, e recebe a iniciação peul relativa ao
simbolismo do gado.
De modo geral, uma pessoa não se torna tradicionalista-doma
permanecendo em sua cidade. Um curandeiro que deseja aprofundar seus
conhecimentos tem de viajar para conhecer as diferentes espécies de
plantas e se instruir com outros “conhecedores” do assunto. O homem que
viaja descobre e vive outras iniciações, registra diferenças e semelhanças,
alarga o campo de sua compreensão. Aonde quer que vá, toma parte em
reuniões, ouve relatos históricos, demora-se com um transmissor de
tradição especializado em iniciação ou em genealogia, entrando, desse
modo, em contato com a história e as tradições dos países por onde passa.
Pode-se dizer que o homem que se tornou tradicionalista-doma foi um
pesquisador e um indagador durante toda a vida e jamais deixará de sê-lo.
O africano da savana costumava viajar muito. O resultado era a troca
e a circulação de conhecimentos. É por esse motivo que a memória
histórica coletiva, na África, raramente se limita a um único território. Ao
contrário, está ligada a linhas de família ou a grupos étnicos que migraram
pelo continente. Muitas caravanas abriam caminho pela região servindo-se
de uma rede de rotas especiais, protegidas tradicionalmente por deuses e
reis e nas quais se estava livre de pilhagens e ataques. De outro modo,
arriscavam-se a um ataque ou à violação involuntária, por
desconhecimento, de algum tabu local e a pagar caro pelas consequências.
Quando da chegada a um país desconhecido, os viajantes iam “confiar sua
cabeça” a algum homem de posição que dali em diante se tornava seu
garante, pois “tocar o ‘estrangeiro’ é tocar o próprio anfitrião”.
O grande genealogista é sempre um grande viajante. Enquanto um
griot pode contentar-se em conhecer a genealogia da família a que está
ligado, o verdadeiro genealogista – seja griot ou não –, a fim de aumentar
seus conhecimentos, deverá necessariamente viajar pelo país para se
informar sobre as principais ramificações de um grupo étnico, e depois
viajar para o exterior para traçar a história dos ramos que emigraram.
Assim, Molom Gaolo, o maior genealogista peul que tive o privilégio de
conhecer, conhecia a genealogia de todos os peul do Senegal. Quando a
idade avançada não mais lhe permitiu que viajasse para o exterior, ele
enviou o filho Mamadou Molom [Gaolo] para continuar o levantamento
junto às famílias peul que haviam migrado pelo Sudão (Mali) com al-
Hadjdj’Umar.
Na época em que conheci Molom Gaolo, ele havia conseguido
compilar e fixar a história passada de quase quarenta gerações. Ele tinha
como hábito ir a todos os batizados ou funerais das principais famílias, a
fim de registrar as circunstâncias dos nascimentos e mortes, que
acrescentava ao rol já guardado em sua memória fabulosa. Era capaz,
também, de declamar para qualquer peul importante: “Você é o filho de
fulano, nascido de beltrano, descendente de sicrano, ramo de fulano… que
morreram em tal lugar, por tal causa, e que foram enterrados em tal local”,
e assim por diante. “Fulano foi batizado em tal dia, a tal hora, pelo marabu
tal e tal…” Logicamente toda essa informação era, e ainda é, transmitida
oralmente e registrada apenas na memória do genealogista. Não se pode
fazer ideia do que a memória de um iletrado pode guardar. Um relato
ouvido uma vez fica gravado como em uma matriz e pode, então, ser
reproduzido intacto, da primeira à última palavra, quando a memória o
solicitar.
Molom Gaolo, parece-me, faleceu por volta de 1968, aos 105 anos. Seu
filho, Mamadou [Molom] Gaolo, agora com 50 anos, vive no Mali, onde
continua o trabalho do pai, pelo mesmo método, exclusivamente oral,
sendo também ele iletrado. Wahab Gaolo, contemporâneo de Mamadou
[Molom] Gaolo, e ainda vivo, realizou um levantamento das etnias de
língua fulfulde (povos peul e tukulor) no Chade, nos Camarões, na
República Centro-Africana e até no Zaire [atual República Democrática do
Congo] para informar-se sobre a genealogia e a história das famílias que
emigraram para aqueles países. Os gaolo não são dieli, mas uma etnia de
língua fulfulde semelhante à classe dos nyamakala e que desfruta das
mesmas prerrogativas. Muito mais oradores e declamadores que músicos
(salvo suas mulheres, que cantam com o acompanhamento de
instrumentos rudimentares), podem ser contadores de histórias e
animadores, existindo, entre eles, muitos genealogistas.
Entre os marka (etnia mandê), os genealogistas têm o nome de
guessere. Dizer genealogista é dizer historiador, pois um bom genealogista
conhece a história, as proezas e os gestos de todas as personagens que cita
ou, pelo menos, das principais. Essa ciência se encontra na própria base da
história da África, pois o interesse pela história está ligado não à
cronologia, mas à genealogia, no sentido de poder estabelecer as linhas de
desenvolvimento de uma família, clã ou etnia no tempo e no espaço.
Assim, todo africano tem um pouco de genealogista e é capaz de
remontar a um passado distante em sua própria linhagem. Do contrário,
estaria como que privado de sua “carteira de identidade”. No antigo Mali,
não havia quem não conhecesse pelo menos dez ou doze gerações de
antepassados. Dentre todos os velhos tukulor que vieram para Macina com
al-Hadjdj’Umar não havia um que não soubesse sua genealogia no Futa
Senegal (seu país de origem) e seu parentesco com as famílias que lá
permaneceram. Foram eles que Mamadou Molom [Gaolo], filho de Molom
Gaolo, consultou quando veio ao Mali para dar prosseguimento à pesquisa
de seu pai. A genealogia é, desse modo, ao mesmo tempo sentimento de
identidade, meio de exaltar a glória da família e recurso em caso de litígio.
Um con lito por um pedaço de terra, por exemplo, poderia ser resolvido
por um genealogista, que indicaria qual ancestral havia limpado e
cultivado a terra, para quem ele a dera, sob que condições etc.
Ainda hoje encontramos entre a população muitos conhecedores de
genealogia e história que não pertencem nem à classe dos dieli nem à dos
gaolo. Temos aí uma importante fonte de informações para a história da
África, pelo menos ainda por certo tempo. Cada patriarca é um
genealogista para seu próprio clã, e os dieli e gaolo vêm frequentemente
lhes pedir informações com o propósito de complementar seus
conhecimentos. De modo geral, todo velho na África é sempre um
“conhecedor” em algum assunto histórico ou tradicional. O conhecimento
genealógico não é, portanto, exclusividade dos dieli e dos gaolo, mas são
eles os únicos especialistas em declamar genealogias perante os nobres
para obter presentes.

INFLUÊNCIA DO ISLÃ

As peculiaridades da memória africana e as modalidades de sua


transmissão oral não foram afetadas pela islamização, que atingiu grande
parte dos países da savana ou do antigo Bafur. De fato, por onde se
espalhou, o Islã não adaptou a tradição africana a seu modo de pensar,
mas, ao contrário, adaptou-se à tradição africana quando – como
normalmente ocorria – esta não violava seus princípios fundamentais. A
simbiose assim originada foi tão grande que, por vezes, se torna difícil
distinguir o que pertence a uma ou a outra tradição.
A grande família árabe-berbere Kunta [originada entre o povo
kounta] islamizou a região bem antes do século XI. Logo que aprenderam o
árabe, os autóctones passaram a se utilizar de suas tradições ancestrais
para transmitir e explicar o Islã. Grandes escolas islâmicas puramente
orais ensinavam a religião nas línguas vernáculas (exceto o Corão e os
textos que fazem parte da oração canônica). Podemos mencionar, entre
muitas outras, a escola oral de Djelgodji (chamada Kabe), a escola de
Barani, a de Amadou Fodia em Farimaké (distrito de Niafounké, no Mali),
a de Mohammed Abdoulaye Souadou em Dilli (distrito de Nara, no Mali) e
a do xeique Usman dan Fodio na Nigéria e no Níger, onde todo o ensino
era ministrado em fulfulde. Mais próximas de nós estavam a Zauia de
Tierno Bokar Salif, em Bandiagara, e a escola do xeique Salah, o grande
marabu dogon, ainda vivo.
Das crianças que saíam das escolas corânicas, a maioria era capaz de
recitar de cor o Corão inteiro, em árabe e no salmo desejado, sem entender
o sentido do texto, o que demonstra a capacidade da memória africana.
Em todas essas escolas os princípios básicos da tradição africana não eram
repudiados, mas, ao contrário, utilizados e explicados à luz da revelação
corânica. Tierno Bokar, tradicionalista em assuntos africanos e islâmicos,
tornou-se famoso pela intensa aplicação desse método educacional.
Independentemente de uma visão sagrada comum do universo e de
uma mesma concepção do homem e da família, encontramos, nas duas
tradições, a mesma preocupação em citar as fontes (isnad, em árabe) e
nunca modificar as palavras do mestre, o mesmo respeito pela cadeia de
transmissão iniciatória (silsila, ou “cadeia”, em árabe) e o mesmo sistema
de caminhos iniciatórios (no Islã, as grandes congregações sufi ou tariga,
plural turuq, cuja cadeia remonta ao próprio Profeta), que tornam possível
aprofundar, através da experiência, aquilo que se conhece pela fé.
Às categorias de “conhecedores” tradicionais já existentes vieram
juntar-se as dos marabus (letrados em árabe ou em jurisprudência
islâmica) e a dos grandes xeiques sufi, embora as estruturas da sociedade
(castas e ofícios tradicionais) fossem preservadas, inclusive nos meios
mais islamizados, e continuassem a veicular suas iniciações particulares. O
conhecimento de assuntos islâmicos constituía uma nova fonte de
enobrecimento. Assim, Alfa Ali, falecido em 1958, gaolo de nascimento, foi a
maior autoridade em assuntos islâmicos no distrito de Bandiagara, assim
como seus antepassados e seu filho20.

HISTÓRIA DE UMA COLETA

Para dar uma ilustração prática de como narrativas históricas, entre


outras, vivem e são preservadas com extrema fidelidade na memória
coletiva de uma sociedade de tradição oral, contarei de que maneira
consegui reunir, unicamente a partir da tradição oral, os elementos que
me permitiram escrever a história do império peul de Macina no século
XVIII21.
Pertencendo à família de Tidjani, chefe da província, tive, desde a
infância, condições ideais para ouvir e reter. A casa de Tidjani, meu pai, em
Bandiagara, estava sempre cheia de gente. Noite e dia havia grandes
reuniões em que todos falavam sobre uma grande variedade de assuntos
tradicionais. Estando a família de meu pai muito envolvida nos
acontecimentos da época, os relatos eram normalmente sobre história, e
cada pessoa narrava um episódio bem conhecido de alguma batalha ou de
outro acontecimento memorável. Sempre presente nessas reuniões, eu não
perdia uma palavra sequer, e minha memória, como cera virgem, gravava
tudo.
Foi lá que, ainda criança, conheci Koullel, o grande contador de
histórias, genealogista e historiador de língua fulfulde. Eu o seguia por toda
parte e aprendia muitos contos e narrativas, que orgulhosamente
recontava aos camaradas de meu grupo de idade, a ponto de me
apelidarem “Amkoullel”, que significa “pequeno Koullel”.
Circunstâncias alheias à minha vontade levaram-me a viajar,
seguindo minha família, por diversos países onde pude sempre estar em
contato com grandes tradicionalistas. Assim, quando meu pai se viu
obrigado a fixar residência em Bougouni, para onde Koullel nos havia
acompanhado, travei conhecimento com o grande doma bambara, Danfo
Sine, e, em seguida, com seu irmão mais novo, Latif.
Mais tarde, em Bamaco e em Kati, a corte de meu pai foi
praticamente reconstituída, e tradicionalistas chegavam de todos os países
para se reunir em sua casa, sabendo que lá encontrariam outros
“conhecedores” em cuja companhia poderiam avaliar ou mesmo alargar
seus próprios conhecimentos, pois sempre se encontra alguém mais sábio.
Foi ali que comecei a aprender muitas coisas referentes à história do
império peul de Macina, tanto na versão macinanke (isto é, a versão do
povo originário de Macina, partidários da família de Sheikou Amadou),
como na versão dos tukulor, seus antagonistas, e ainda na versão de outras
etnias (bambara, soninke, songhai etc.) que haviam presenciado ou
participado dos acontecimentos.
Tendo, assim, adquirido uma formação básica bastante sólida,
decidi coletar informações sistematicamente. Meu método consistia em
gravar, primeiramente, todas as narrativas, sem me preocupar com sua
veracidade ou com um possível exagero. Em seguida, comparava as
narrativas dos macinanke com as dos tukulor ou com as de outras etnias
envolvidas. Dessa maneira, sempre se podem encontrar, em qualquer
região, etnias cujas narrativas permitam controlar as declarações dos
principais interessados.
Foi um trabalho de fôlego. A coleta de informações exigiu-me mais
de quinze anos de trabalho e de jornadas que me levavam do Futa Djalon
(Guiné) a Kano (Nigéria), a fim de retraçar as rotas que Sheikou Amadou e
al-Hadjdj’Umar haviam percorrido em todas as suas viagens. Desse modo,
registrei as narrativas de pelo menos mil informantes. No final, mantive
apenas os relatos concordantes, os que eram conformes tanto às tradições
macinanke e tukulor, como também às das demais etnias envolvidas (cujas
fontes citei no livro). Constatei que, no conjunto, meus mil informantes
haviam respeitado a verdade dos fatos. A trama da narrativa era sempre a
mesma. As diferenças, que se encontravam apenas em detalhes sem
importância, deviam-se à qualidade da memória ou à verve peculiar do
narrador. Dependendo do grupo étnico a que pertencia, podia tender a
minimizar certos reveses ou a tentar encontrar alguma justificativa para
eles, mas não mudava os dados básicos. Sob a in luência do
acompanhamento musical, o contador de histórias podia deixar-se levar
pelo entusiasmo, mas a linha geral permanecia a mesma: os lugares, as
batalhas, as vitórias e as derrotas, as conferências e os diálogos mantidos,
os propósitos das personagens principais etc.
Essa experiência provou-me que a tradição oral era perfeitamente
válida do ponto de vista científico. É possível comparar as versões de
diferentes etnias, como fiz, a título de controle, mas a própria sociedade
exerce autocontrole permanente. Com efeito, nenhum narrador poderia
permitir-se mudar os fatos, pois à sua volta haveria sempre companheiros
ou anciãos que imediatamente apontariam o erro, fazendo-lhe a séria
acusação de mentiroso.
O professor Montet certa vez referiu-se a mim como tendo relatado,
no livro O império peul de Macina, narrativas que seu pai havia coletado
cinquenta anos antes, das quais nenhuma palavra tinha sido alterada. Isso
dá uma ideia da fidelidade com que os dados são preservados na tradição
oral!

CARACTERÍSTICAS DA MEMÓRIA AFRICANA

Entre todos os povos do mundo, constatou-se que os que não


escreviam possuíam uma memória mais desenvolvida. Demos o exemplo
dos genealogistas que conseguem reter uma inacreditável quantidade de
elementos, mas poderíamos mencionar também o caso de certos
comerciantes iletrados (ainda conheço muitos deles) que dirigem negócios
envolvendo por vezes dezenas de milhões de francos, e emprestam
dinheiro a muitas pessoas no curso de suas viagens, guardando de
memória a mais precisa contabilidade de todos esses movimentos de
mercadorias e dinheiro sem uma única nota escrita e sem cometer o
menor engano. O dado a ser retido fica imediatamente inscrito na
memória do tradicionalista, como em cera virgem, e lá permanece sempre
disponível, na sua totalidade22.
Uma das peculiaridades da memória africana é reconstituir o
acontecimento ou a narrativa registrada em sua totalidade, tal como um
filme que se desenrola do princípio ao fim, e fazê-lo no presente. Não se
trata de recordar, mas de trazer ao presente um evento passado do qual
todos participam, o narrador e sua audiência. Aí reside toda a arte do
contador de histórias. Ninguém é contador de histórias a menos que possa
relatar um fato tal como aconteceu realmente, de modo que seus ouvintes,
assim como ele próprio, se tornem testemunhas vivas e ativas desse fato.
Ora, todo africano é, até certo ponto, um contador de histórias. Quando
um estranho chega a uma cidade, faz sua saudação dizendo: “Sou vosso
estrangeiro”. Ao que lhe respondem: “Esta casa está aberta para ti. Entra
em paz”. E em seguida: “Dá-nos notícias”. Ele passa, então, a relatar toda a
sua história, desde quando deixou a sua casa, o que viu e ouviu, o que lhe
aconteceu etc., e isso de tal modo que seus ouvintes o acompanham em
suas viagens e com ele as revive. É por esse motivo que o tempo verbal da
narrativa é sempre o presente.
De maneira geral, a memória africana registra toda a cena: o
cenário, as personagens, suas palavras, até mesmo os mínimos detalhes
das roupas. Nos relatos de guerra dos tukulor, sabemos qual bubu bordado
o grande herói Oumarei Samba Dondo estava usando em determinada
batalha, quem era seu palafreneiro e o que lhe aconteceu, qual era o nome
de seu cavalo e o que lhe sucedeu etc. Todos esses detalhes animam a
narrativa, contribuindo para dar vida à cena.
Por essa razão o tradicionalista dificilmente consegue resumir.
Resumir uma cena equivale, para ele, a escamoteá-la. Ora, por tradição, ele
não tem o direito de fazer isso. Todo detalhe tem a própria importância
para a verdade do quadro. Ou narra o acontecimento na sua integridade
ou não narra. Se lhe for solicitado resumir uma passagem, ele responderá:
“Se não tens tempo para ouvir-me, contarei em outro dia”.
Do mesmo modo, o tradicionalista não tem receio de se repetir.
Ninguém se cansa de ouvi-lo contar a mesma história, com as mesmas
palavras, como talvez já tenha contado inúmeras vezes. A cada vez, o filme
inteiro se desenrola novamente. E o evento está lá, restituído. O passado se
torna presente. A vida não se resume jamais. Pode-se, quando muito,
reduzir uma história para as crianças, resumindo certas passagens, mas
então não se a tomará por verdade. Tratando-se de adultos, o fato deve ser
narrado na íntegra ou calado. Essa peculiaridade da memória africana
tradicional ligada a um contexto de tradição oral é, em si, uma garantia de
autenticidade.
Quanto à memória dos tradicionalistas, em especial a dos
tradicionalistas-doma ou “conhecedores”, que abrange vastas áreas do
conhecimento tradicional, constitui uma verdadeira biblioteca em que os
arquivos não estão “classificados”, mas totalmente inventariados. Tudo
isso pode parecer caótico para um espírito moderno, mas, para os
tradicionalistas, se existe caos é à maneira das moléculas de água que se
misturam no mar para formar um todo vivo. Nesse mar, eles se
movimentam com a facilidade de um peixe.
As fichas imateriais do catálogo da tradição oral são máximas,
provérbios, contos, lendas, mitos etc., que constituem quer um esboço a
ser desenvolvido, quer um ponto de partida para narrativas didáticas
antigas ou improvisadas. Os contos, por exemplo, e especialmente os de
iniciação, contêm uma trama básica invariável, à qual, no entanto, o
narrador pode acrescentar loreados, desenvolvimentos ou ensinamentos
adequados à compreensão de seus ouvintes. O mesmo ocorre com os
mitos, que são conhecimentos condensados em uma forma sintética que o
iniciado pode sempre desenvolver ou aprofundar para seus alunos.
Convém considerar com atenção o conteúdo dos mitos, e não
“catalogá-los” muito rapidamente. Podem encobrir realidades de ordens
muito diversas e mesmo, por vezes, ser entendidos em vários níveis
simultaneamente. Enquanto alguns mitos se referem a conhecimentos
esotéricos e ocultam o conhecimento ao mesmo tempo em que o
transmitem através dos séculos, outros podem ter alguma relação com
acontecimentos reais. Tomemos o exemplo de Thianaba, a serpente mítica
peul, cuja lenda narra as aventuras e a migração pela savana africana a
partir do oceano Atlântico. Por volta de 1921, o engenheiro Belime,
encarregado de construir a barragem de Sansanding, teve a curiosidade de
seguir passo a passo as indicações geográficas da lenda que ele havia
aprendido com Hammadi Djenngoudo, grande “conhecedor” peul. Para
sua surpresa, ele descobriu o traçado do antigo leito do rio Níger.

CONCLUSÃO

Para a África, a época atual é de complexidade e de dependência. Os


diferentes mundos, as diferentes mentalidades e os diferentes períodos
sobrepõem-se, interferindo uns nos outros, às vezes in luenciando-se
mutuamente, nem sempre se compreendendo. Na África, o século XX
encontra-se lado a lado com a Idade Média, o Ocidente com o Oriente, o
cartesianismo, modo particular de pensar o mundo, com o animismo,
modo particular de vivê-lo e experimentá-lo na totalidade do ser.
Os jovens líderes “modernos” governam com mentalidades e
sistemas de lei, ou ideologias, diretamente herdados de modelos
estrangeiros, povos e realidades sujeitos a outras leis e com outras
mentalidades. Para exemplificar, na maioria dos territórios da antiga
África ocidental francesa, o código legal elaborado logo após a
independência, por nossos jovens juristas recém-saídos das universidades
francesas, está pura e simplesmente calcado no Código Napoleônico. O
resultado é que a população, até então governada segundo costumes
sagrados que, herdados de ancestrais, asseguravam a coesão social, não
compreende por que está sendo julgada e condenada em nome de um
costume que não é o seu, que não conhece e não corresponde às realidades
profundas do país.
O drama todo do que chamarei de “África de base” é o de ser
frequentemente governada por uma minoria intelectual que não a
compreende mais, através de princípios incompatíveis com a sua
realidade. Para a nova intelligentsia africana, formada em disciplinas
universitárias europeias, a tradição muitas vezes deixou de viver. São
“histórias de velhos”! No entanto, é preciso dizer que, de um tempo para
cá, uma importante parcela da juventude culta vem sentindo cada vez mais
a necessidade de se voltar às tradições ancestrais e de resgatar seus valores
fundamentais, a fim de reencontrar suas próprias raízes e o segredo de sua
identidade profunda. Por contraste, no interior da “África de base”, que em
geral fica longe das grandes cidades – ilhotas do Ocidente –, a tradição
continuou viva e, como já o disse antes, grande número de seus
representantes ou depositários ainda pode ser encontrado. Mas por
quanto tempo?
O grande problema da África tradicional é, em verdade, o da ruptura
da transmissão. Nas antigas colônias francesas, a primeira grande ruptura
veio com a guerra de 1914, quando a maioria dos jovens se alistou para ir
combater na França, de onde muitos nunca retornaram. Esses jovens
deixaram o país na idade em que deveriam estar passando pelas grandes
iniciações e aprofundando seus conhecimentos sob a direção dos mais
velhos. O fato de que era obrigatório a homens importantes enviarem seus
filhos a “escolas de brancos”, de modo a separá-los da tradição, favoreceu
igualmente esse processo. A maior preocupação do poder colonial era,
compreensivelmente, remover as tradições autóctones tanto quanto
possível para implantar no lugar suas próprias concepções. As escolas,
seculares ou religiosas, constituíram os instrumentos essenciais dessa
ceifada. A educação moderna, recebida por nossos jovens após o fim da
última guerra, concluiu o processo e criou um verdadeiro fenômeno de
aculturação.
A iniciação, fugindo dos grandes centros urbanos, buscou refúgio na
loresta, onde, devido à atração das grandes cidades e ao surgimento de
novas necessidades, os “anciãos” encontram cada vez menos “ouvidos
dóceis” a quem possam transmitir seus ensinamentos, pois, segundo uma
expressão consagrada, o ensino só pode se dar “de boca perfumada a
ouvido dócil e limpo” (ou seja, inteiramente receptivo).
Estamos hoje, portanto, em tudo o que concerne à tradição oral,
diante da última geração dos grandes depositários. Justamente por esse
motivo, o trabalho de coleta deve ser intensificado durante os próximos
dez ou quinze anos, após os quais os últimos grandes monumentos vivos
da cultura africana terão desaparecido e, junto com eles, os tesouros
insubstituíveis de uma educação peculiar, ao mesmo tempo material,
psicológica e espiritual, fundamentada no sentimento de unidade da vida e
cujas fontes se perdem na noite dos tempos.
Para que o trabalho de coleta seja bem-sucedido, o pesquisador
deverá se armar de muita paciência, lembrando que deve ter “o coração de
uma pomba, a pele de um crocodilo e o estômago de uma avestruz”. “O
coração de uma pomba” para nunca se zangar nem se in lamar, mesmo se
lhe disserem coisas desagradáveis. Se alguém se recusa a responder sua
pergunta, inútil insistir; vale mais instalar-se em outro ramo. Uma disputa
aqui terá repercussões em outra parte, enquanto uma saída discreta fará
com que seja lembrado e, muitas vezes, chamado de volta. “A pele de um
crocodilo”, para conseguir se deitar em qualquer lugar, sobre qualquer
coisa, sem fazer cerimônia. Por último, “o estômago de uma avestruz”,
para conseguir comer de tudo sem adoecer ou enjoar.
A condição mais importante de todas, porém, é saber renunciar ao
hábito de julgar tudo segundo critérios pessoais. Para descobrir um novo
mundo, é preciso saber esquecer seu próprio mundo, do contrário o
pesquisador estará simplesmente transportando seu mundo consigo em
vez de manter-se à escuta.
Através da boca de Tierno Bokar, o sábio de Bandiagara, a África dos
velhos iniciados avisa o jovem pesquisador:

Se queres saber quem sou,


Se queres que te ensine o que sei,
Deixa um pouco de ser o que tu és
E esquece o que sabes.

1 Amadou Hampâté Bâ, “A tradição viva”, in: Josef Ki-Zerbo (ed.), História geral
da África I: metodologia e pré-história da África, Brasília: Unesco; MEC; UfsCar,
2010, capítulo 8. As quatro fotografias do texto original não estão
reproduzidas nesta versão. (N. E.)
2 Especialista em tradições orais, é autor de várias obras sobre os antigos
impérios africanos e a civilização africana.
3 Tierno Bokar Salif, falecido em 1940, passou toda a sua vida em Bandiagara,
no Mali. Grande Mestre da ordem muçulmana de Tijaniyya, foi igualmente
tradicionalista em assuntos africanos. Cf. Amadou Hampâté Bâ; Marcel
Cardaire, Tierno Bokar: le Sage de Bandiagara, Paris: Présence Africaine, 1957.
4 O termo “tradicionalista” significa aqui detentor do conhecimento transmitido pela
tradição oral. [N.T.]
5 Neste texto, excepcionalmente, respeitaremos a grafia deste termo de acordo
com o original publicado em 1982.
6 Uma das grandes escolas de iniciação do Mande, no Mali.
7 Os griots serão abordados adiante.
8 Aquele que realiza as circuncisões. (N.E.)
9 Nem todas as cerimônias rituais incluíam necessariamente o sacrifício de um
animal. O “sacrifício” podia consistir em uma oferenda de painço, leite ou
algum outro produto natural.
10 Os woloso, ou “cativos de casa” – literalmente, “os nascidos na casa” –, eram
empregados ou famílias de empregados ligados há gerações a uma mesma
família. A tradição concedia-lhes liberdade total de ação e expressão, bem
como consideráveis direitos materiais sobre os bens de seus senhores.
11 Makoro e Manifin eram seus dois condiscípulos.
12 Uma narrativa tradicional contém sempre uma trama ou base imutável que
não deve jamais ser modificada, mas a partir da qual se podem acrescentar
desenvolvimentos ou embelezamentos, segundo a inspiração ou a atenção dos
ouvintes.
13 Ancestral dos ferreiros.
14 Cf. Amadou Hampâté Bâ, Aspects de la civilisation africaine, Paris: Présence
Africaine, 1972, pp. 23 e ss.
15 A respeito da lei de correspondência analógica, ver Amadou Hampâté Bâ,
Aspects de la civilisation africaine, op. cit., pp. 120 e ss.
16 “Teu pai”, em linguagem africana, pode muito bem designar um tio, um avô
ou um antepassado. Significa toda a linha paterna, inclusive as colaterais.
17 “Nobre” é uma tradução bastante aproximativa de horon. Em verdade, horon é
toda pessoa que não pertence nem à classe dos nyamakala nem à classe dos jon
(“cativos”), sendo esta última constituída por descendentes de prisioneiros de
guerra. O horon tem por dever assegurar a defesa da comunidade, dar sua vida
por ela, assim como garantir a conservação das outras classes.
18 Os dieli, sendo nyamakala, devem em princípio casar-se dentro das classes de
nyamakala.
19 Cabe lembrar que os horon (nobres), peul ou bambaras, jamais tocam música,
pelo menos em público. Os tiapourta conservaram, em geral, esse costume.
20 De modo geral, a islamização, vinda do norte e do leste, afetou mais
particularmente os países da savana, enquanto a cristianização, vinda por
mar, tocou mais as regiões de loresta da costa. Não podemos falar do
encontro entre a tradição e o cristianismo por não possuirmos nenhuma
informação sobre esse assunto.
21 Cf. Amadou Hampâté Bâ e Jacques Daget, L’Empire peul du Macina, Paris:
Mouton, 1962.
22 Esse fenômeno poderia estar relacionado ao fato de as faculdades sensoriais
do homem serem mais desenvolvidas onde há necessidade de grande uso
delas e se atrofiarem em meio à vida moderna. O caçador africano tradicional,
por exemplo, pode ouvir e identificar determinados sons a vários quilômetros
de distância. Sua visão é particularmente acurada. Alguns têm a capacidade
de “sentir” a água, como verdadeiros adivinhos. Os tuaregues do deserto
possuem um senso de direção que está próximo do miraculoso. E como esses
há dezenas de exemplos. O homem moderno, imerso na multiplicidade de
ruídos e informações, vê suas faculdades se atrofiarem progressivamente.
Está cientificamente provado que os habitantes das grandes cidades perdem
cada vez mais sua capacidade auditiva.
Acho que é o compromisso mais avançado que eu tenho com a vida; nada me
enriquece mais do que quando eu passo em revista a realidade da criação; acho
que criar dá condições de pôr em prática os sentimentos pela vida, para se poder
contar a história do homem. Traz também um sentido muito social: a sua tarefa,
o seu ofício é que alguém precisa contar a história do homem, para que esse
homem, tão ocupado em viver essa história, se dê conta da realidade em que ele
tem vivido e que não havia percebido. [NÉLIDA PIÑON]

É possível existir algo sem nome? Acredito que nomear tudo seja a forma que o
humano encontrou para delimitar a vasteza, para visionar limites. Mesmo coisas
deslimitadas como Universo, Deus, Futuro, Infinito, são postos dentro de cinco ou
seis letras. A linguagem é nosso limite. A linguagem é nossa forma de estabelecer
as fronteiras para o sentido, ao mesmo tempo, a linguagem é nossa libertação,
nosso poder de ir além da realidade, ir além do limite, ir além da linguagem.
[RUBENS DA CUNHA]

O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É possível transver o


mundo. [MANOEL DE BARROS]
 
LINGUAGEM
Explicação1
RUBEM ALVES

Mosaicos são obras de arte. São feitos com cacos. Os cacos, em si, não têm
beleza alguma. Mas se um artista os ajuntar segundo uma visão de beleza
eles se transformam numa obra de arte.
Músicas são mosaicos de sons. Notas são cacos. Não são bonitas nem
feias. Mas se um compositor as organizar numa “frase” elas passam a dizer
algo. Transformam-se em temas. Sonatas e sinfonias são feitas com temas
entrelaçados.
Também nós somos feitos de cacos. Milan Kundera comparou a vida
a uma partitura musical. “O ser humano, guiado pelo sentido da beleza,
transpõe o acontecimento fortuito [o caco] para fazer dele um tema que,
em seguida, fará parte da partitura de sua vida. Voltará ao tema repetindo-
o, modificando-o, desenvolvendo-o, transpondo-o, como faz um
compositor com os temas da sua sonata.”2 Somos um mosaico espiral, à
semelhança do Bolero de Ravel.
As Escrituras Sagradas são um livro cheio de cacos. Nelas se
encontram poemas, estórias, mitos, pitadas de sabedoria, relatos de
acontecimentos, poemas eróticos, eventos sangrentos. Ao ler as Escrituras
comportamo-nos como um artista que seleciona cacos para construir um
mosaico ou como um compositor a compor sua sonata.
Os cacos das Escrituras Sagradas existiram por muito tempo como
estórias que eram contadas oralmente, antes de serem transformados em
textos para serem lidos. O registro escrito dessa tradição oral trouxe uma
vantagem: as estórias continuaram a existir mesmo depois da morte do
contador de histórias. E trouxe uma desvantagem: transformados em
textos escritos perdeu-se a figura do contador de estórias. Com isso, os
leitores começaram as ler as “estórias” como se fossem “história”.
“História” refere-se a coisas que aconteceram realmente no passado
e nunca mais acontecerão, como o naufrágio do Titanic, que pertence à
“história” e nunca mais acontecerá. Mas a parábola do Bom Samaritano
nunca aconteceu. Foi uma “estória” contada por um mestre contador de
estórias chamado Jesus.
As estórias são contadas no passado, mas elas não têm passado. Só
tem presente. Estão sempre vivas. Quando as ouvimos ficamos
“possuídos”, rimos, choramos, amamos, odiamos – embora elas nunca
tenham acontecido.
A “história” é criatura do tempo. As “estórias” são emissárias da
eternidade.
Muitos são os mosaicos que podem ser feitos com um monte de
cacos. Muitas são as músicas que podem ser feitas com as doze notas da
escala cromática. Horror, humor, amor, vida, morte, vingança... Tudo
depende do coração do artista. Como disse Jesus, o homem bom tira coisas
boas do seu bom tesouro; o homem mau tira coisas más do seu mau
tesouro. Coração feio faz mosaicos e músicas feias. Coração bonito faz
mosaicos e músicas bonitas. Os mosaicos e as sonatas são o retrato de
quem os fez.
Cada religião é um mosaico, um jeito de ajuntar os cacos. Cada
religião é uma sonata: uma rede de temas. Escolhi os cacos de que mais
gosto para fazer o meu mosaico, o meu livro de estórias, a minha sonata, o
meu altar à beira do abismo.

1 Este texto também está presente no livro Perguntaram-me se acredito em Deus, de


Rubem Alves (São Paulo: Planeta, 2007, pp. 15-17). Conheça:
www.institutorubemalves.org.br.
2 Milan Kundera, A insustentável leveza do ser, São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p. 58.
Contação de histórias: oralidade, escrita e
pensamento
ELIANA YUNES

Nossa diferença efetiva de natureza, como de alguma forma atesta


Aristóteles1 quando se refere ao homem como animal, está na palavra, na
capacidade misteriosa que tiveram nossos antepassados não só de ficar de
pé e saber usar o polegar opositor, mas, sobretudo, de articular uma
linguagem, fazendo o aparelho fonador nascer de uma conjugação do
respiratório e do digestivo.
O que então nos fez humanos é uma linguagem articulada que dá
origem a sons combinados e repetíveis formando segmentos a que
chamaríamos verbum, ou seja, palavra. De um ponto de vista antropológico,
como o de Lévi-Strauss2, a cultura nos tira da natureza in bruto e nos faz
passar do cru ao cozido, do incesto às regras de acasalamento, do
pensamento selvagem às narrativas históricas. Contudo, a nossos olhos,
até mesmo a natureza “chega” interpretada, vale dizer, o sol e a lua já
foram deuses, os ciclos do tempo ainda são sinais. Etimologicamente, tudo
o que é simples se faz complexo. Nossas sociedades são complexas, mas
também poderíamos dizer algo semelhante das formigas, das abelhas, dos
símios, dos felinos. Eles também estão organizados, segundo nos
demonstram zoólogos, conforme práticas, comportamentos e regras
definidas já em seus genes. Há algo como um sistema de comunicação
herdado pela espécie.
Nossa linguagem, ao contrário, é uma construção, uma montagem
resultante de um esforço milenar por domar o sistema biológico da
respiração e fazê-lo capaz de emitir sons resgatáveis para si e pelo outro, e,
assim, sistematizar uma quantidade de fonemas que enunciamos
atualmente sem grandes custos, quase sem ter consciência dessa prática
fundadora de nossa humanidade.
Essa adaptação conforma o aparelho fônico de tal maneira que os
falantes que aprendem uma língua estrangeira à perfeição não conseguem
impedir que pequenos efeitos da pronúncia em língua materna
contaminem a fonética da segunda língua, desvelando certo sotaque de
origem. O aparelho fonador não é capaz de desvencilhar-se de sutis
vibrações ordinárias que conformam diferenças linguísticas. Isso sem
falar de como o recorte antropocultural do mundo enreda na língua uma
visão de realidade particular.
Nossa linguagem não é, pois, “natural” como a dos outros animais,
mas resulta de um cultivo sofisticado e interminável de sons e sentidos que
também desenvolve a inteligência das coisas, ou seja, o entendimento do
mundo sob uma perspectiva cultural.
O que nos faz, portanto, humanos é uma linguagem complexa,
sofisticada e muito econômica, que permite à espécie, com muitos poucos
fonemas – os tais sons discretos e repetíveis, reutilizáveis ad infinitum –,
comunicar-se sobre quase tudo o que conhecemos, sobre o que apenas
intuímos e até mesmo sobre nosso próprio desconhecimento, como indica
Bakhtin3.
Criamos um sistema com normas e usos às vezes muito particulares,
de acordo com tempos, espaços e convivência cujas diferenças podem até
mesmo depender do estilo do falante. Mas essa linguagem permitiu de tal
modo nos associar e, com ela, nos organizar e organizar nossas ações
segundo desafios, necessidades, desejos e objetivos comuns. Nela
inventamos o humano e suas decorrências: das línguas nasceram as
nações, os valores, as ideologias de que o relato bíblico da torre de Babel é
testemunho. Dessa linguagem, se desdobram todas as demais: as das artes
e das matemáticas, a da cultura e dos rituais. Possivelmente, o esforço de
gerar a linguagem se deveu ao limite dos gestos, dos sons e das inscrições
com balizas impostas pelos espaços. A escrita que decorre da fala muito
tardiamente é o esforço de superar o tempo que engole a oralidade.
Estamos, na verdade, mergulhados na linguagem como no ar. Fora
da linguagem, nada há que possa nos ajudar a pensar, entender, organizar
e promover o mundo natural, o mundo que recebemos criado. Tudo o que
sentimos, vemos e pensamos tem nome e, sem nome, nada há que
possamos chamar e trazer à consciência e à comunicação.
Que realidade é possível apontar sem linguagem? Muito pouca; em
verdade, apenas a que está ao alcance comum da vista e do dedo indicador,
e ainda assim é da linguagem de gestos que dependemos. Por exemplo,
podemos abraçar – em uma expressão corporal da linguagem dos afetos –,
mas, quando o desejo de abraçar se faz pensamento a distância, sem a
palavra, nem um nem outro se manifestam fora da linguagem verbal. E
esta, por sua vez, pode carecer de expressão gráfica, índice de existência e
duração.
Vemos que a articulação do sujeito interior com o social é
dependente da linguagem (ou linguagens) e, mesmo quando ela falha,
recalca ou silencia, deixa marcas, pegadas, ou seja, sinais de sua existência.
O que somos é na linguagem que se representa. Claro está que o conceito
de representação já não corresponde ao que se tinha nos primórdios da era
moderna, quando a noção de ideologia não aparecia tão univocamente
associada ao desenho do mundo, conforme demonstra Foucault4.
Aqui estamos: a linguagem é uma representação ambígua,
imprecisa, multívoca do homem e do mundo que ele vê, mas indispensável
como aproximação ao real, instância do mundo que não alcançamos sem
mediações. Se o real fosse diretamente acessível, as representações, as
linguagens não seriam necessárias, uma vez que tudo nos seria
transparente – evidente – e estaríamos de acordo a priori sobre todas as
coisas. Isso não ocorre de verdade e por isso mesmo não sabemos o que é a
verdade. Todos a desejamos, desde o ser mais profundo e, depois de
séculos de estudos, seguimos brigando por ela.
Tinha, assim, razão o filósofo Wittgenstein5 quando disse que o
tamanho do mundo corresponde ao tamanho de nossa linguagem, o que
significa que conhecemos o que cabe nela. Se a linguagem, nosso recurso
de expressão e comunicação, por razões diversas é pobre, não podemos
nos apropriar de muita coisa além do automatismo cotidiano que nos
parece “natural”.
Desse modo, ampliar nossa visão de mundo, nossa concepção do si
mesmo e do outro, está diretamente relacionada ao nosso “dicionário”,
mas isso ainda será pouco ou quase nada se a disponibilidade léxica não
corresponder a um acervo de vida, a repertórios pessoais de experiências, a
uma narrativa pessoal ou compartilhada (coletiva) das vivências.
Portanto, a partir de uma linguagem compartilhada com outros, o
sujeito vai desenhando suas ideias, seus pensamentos, elegendo palavras
para expressar sentimentos, desejos e valores, mas também juízos e
análises, ou seja, opções e decisões. Durante esse processo, está em marcha
nossa formação como pessoas e, mais do que personas (máscaras através
das quais soam as vozes no teatro de arena), como sujeitos de um pensar e
agir, conforme, inclusive, nos ensinam sem muita filosofia as gramáticas;
não como seres submetidos à linguagem preexistente e alheia (langue),
mas os que “praticam a ação” (discurso). As gramáticas são filosóficas, o
que nunca nos contam na escola quando elas nos são apresentadas… Seria
muito interessante ensinar e aprender o jogo das línguas!
Fazer-se sujeito, homem, pois, tem a ver com o domínio do verbo.
Nesta civilização ocidental, que se cristianizou em bases gregas, o Verbo
de Deus6 é a forma mais nobre de referência ao Enviado. Se pensarmos
entre os antigos pagãos, Hermes, que traz as mensagens do Olimpo, é
tomado como o criador da linguagem (e, por consequência, o mediador),
ferramenta que “traduz” o inalcançável e utiliza os humanos para
representar as coisas e transmiti-las a outros – não sem dissensões.
Porém, mais que isso, Hermes está associado a uma função de
alteração: transformar tudo o que ultrapassa a percepção humana em algo
que o entendimento logra compreender. Com isso, chegamos à formulação
de filósofos como Heidegger7, que conclui ser a linguagem humana já uma
interpretação do mundo. Línguas com raízes distintas nos surpreendem
pelos significados comuns que atribuem a coisas que entendemos
diversas.
Os sentidos do mundo são uma construção da linguagem humana e
todo o nosso esforço é tornar compreensível tanto o mundo como nós
mesmos, função própria de Hermes, o mensageiro. Ao falar – escrever,
pintar, musicar, desenhar, fotografar, “cinemar” –, representamos coisas e
nos representamos diante delas. Dizê-las é dizer-nos – em parte, ao menos.
Como Hermes, todos nós sonhamos ser mensageiros, como ele o é
dos deuses olímpicos. Em algum momento, queremos tomar a palavra,
proclamar algo que trazemos desde longe, há muito, desde nossa
intimidade pessoal, e que acabamos de descobrir e não é possível calar.
Assim, o ato simples de dizer, afirmar, proclamar é um ato de
interpretação que expressa algo e, mais que um conteúdo, tem uma forma
em si mesma, um modo particular de expressão, o que equivale a uma
performance. Vejamos: usamos sem dificuldade a palavra “interpretação”
quando nos referimos ao modo pelo qual um artista apresenta uma
canção, uma dança, um conto, uma cena, uma sinfonia. Nesse sentido, o
que eles fazem é dizer algo com os gestos que arrebatam sons aos
instrumentos, imagens aos movimentos, ou, com entonações, ênfases e
pausas nos sons silábicos, sentidos ao ritmo das palavras. Logo, a recitação
oral é também uma interpretação, como já os gregos diziam da
declamação de Homero. Homens como ele, o demiurgo das epopeias, eram
considerados justamente mediadores entre os homens e os deuses.
Ao retomar a discussão sobre os poetas, Platão8 põe na boca de
Sócrates que eles são mensageiros de algo apenas entrevisto, de algo que
não foi inteiramente percebido, e que assim mesmo deve ser comunicado
aos demais. Mas esse mesmo traço de turbação do ver fez com que
parecessem perigosos à República platônica, quer porque veem demasiado
longe (sem telescópios siderais), quer porque, vendo demasiado perto (sem
lupas e microscópios), percebem dimensões que não temos ao nosso
alcance. No mínimo, os poetas (assim como os místicos) percebem
mundos paralelos que não vislumbramos ou mal intuímos.
Antes de Homero, já estavam presentes as lendas e os mitos que a
memória reunira9 ou que o inconsciente coletivo, apontado por Jung10,
produzira, mas Homero os pôs em palavras nunca antes ditas de tal forma.
Assim se fez “intérprete” dos homens e “mensageiro” dos deuses.
Podemos, então, deduzir que o dizer e a recitação oral têm um nível
que muitos tendem a desprezar ou esquecer e que se constitui
seguramente a primeira manifestação interpretativa do mundo na
história, que se dá pela palavra falada. Muito do poder da literatura deriva
do poder da oralidade.
Desde tempos imemoriais, grandes obras da linguagem foram
ditadas para serem oralizadas em voz alta e escutadas. Quando
Shakespeare escrevia, suas obras, mais que em cópias ou em folhetos,
chegavam encenadas às gentes em praças públicas, como vimos em A
viagem do Capitão Tornado, de Ettore Scola11. Sabemos que Cervantes teve de
escrever seu segundo volume de Dom Quixote para não perdê-lo na boca de
contadores que o haviam apropriado12.
Os poderes da linguagem falada deveriam lembrar-nos de algumas
fraquezas da linguagem escrita. A esta falta a expressividade primordial da
palavra falada. Sabemos todos que a passagem do oral ao escrito o fixa e o
conserva, dando-lhe certa estabilidade preciosa à história e à própria
literatura. No entanto, enfraquece a comunicação com uma demanda de
interpretação que o texto tem para com a vida, com o mundo que nos toca.
De algum modo era o que estava na célebre visão de Paulo Freire, pois o
mundo do texto só faz sentido se lhe aportamos algo do texto do mundo13.
Em Fedro14, torna Platão a enfatizar que toda linguagem grafada
apela a uma reconversão à sua forma falada, apela a um poder perdido. O
autodistanciamento da fala pela palavra escrita é uma espécie de alienação
que os paratextos, os prólogos, os prefácios, as orelhas, as notas e as
quartas capas tentam suprir.
As palavras orais parecem ter um poder mágico e, ao se tornarem
visuais, perdem muito dele: como Deus no Gênesis hebraico, Ali Babá ou
He-Man, ao criarem forças capazes de mover o mundo, não escrevem as
palavras em pedras, mas as pronunciam – são “palavras mágicas”. Por essa
razão, a leitura busca recursos mágicos no papel – rimas, pés, compassos,
métrica e pausas para emprestar o ritmo da oralidade e alcançar eficácia
ou manter sua sedução quando passa da audição à visualidade –, o mundo
silencioso do espaço em que se dilui boa parte do poder expressivo que se
dá no tempo. E, por conseguinte, do significado.
Não se está propondo recuar para a transmissão apenas oral da
literatura; entretanto, é fascinante escutar a oralização de um texto escrito
ou a declamação de um texto poético. A leitura oral não é uma resposta
passiva aos signos no papel, como se um fonógrafo lesse um CD; a leitura é
antes uma interpretação no estilo de um pianista que “interpreta” uma
partitura musical. E, para fazê-lo, todo músico dirá que é necessário
encontrar, construir e comunicar o sentido das frases em uma expressão
pessoal.
O mesmo ocorre com a leitura de um texto escrito que se faz obra –
segundo Roland Barthes15, quando pomos o texto para funcionar. O
“conta-contos” tem seu relato de memória, seja ele autoral ou da tradição
popular oral e coletiva, mas, quando se põe a fazer a narração oral, agrega
o que a narrativa não tem, nem mesmo como o teriam as marcações
dramatúrgicas: as entonações de voz, as variações de ritmo, as ênfases, os
ecos, os gestos, os movimentos de olhos e faciais que a tornam viva outra
vez. Sem os ouvidos humanos, que recolhem o que nos contam, perdemos
para o olvido da desmemória, a história, como indicam obras literárias ou
cinematográficas como Fahrenheit 45116. Uma vez mais, quem lê em voz alta
ou pronuncia um relato oral tem de chegar a recriá-lo dando-lhe sentido,
de forma que possa ser expresso.
Como se dá essa misteriosa apreensão do sentido? é um paradoxo,
efetivamente: para ler algo, é preciso compreender (apreender consigo)
previamente o que foi dito e, no entanto, essa compreensão vem da leitura,
do encontro entre o eu (o sujeito) e o texto, para lhe dar um sentido a ser
proclamado.
A interpretação oral, ou seja, a leitura em voz alta tem pelo menos
duas vertentes: é necessário compreender algo para que o possamos
expressar, não obstante a própria compreensão nasça da expressão
interpretativa. Ler de improviso um texto que se desconhece é uma tarefa
de equilibrista, artística, que supõe agilidade de pensamento, sentimento e
expressão. Mas ela tem, sim, suas bases na compreensão prévia de um
contexto que nos permite “adivinhar” o que está por vir, o que pode vir, o
que deve preencher o que ainda não lemos na sequência. O contexto
permite que a locução não perca o rumo, não perca o “sentido”.
Para os que amam a literatura e querem ensiná-la como quem
partilha uma experiência transformadora, não há como recorrer apenas a
teorias e análises, à história dos movimentos e estilos, mas é preciso
mediar o gosto pelo descobrimento do literário enquanto sequência
criadora de mundos, “palavra mágica”, e isso tem muito a ver com o fato de
que a linguagem falada é um ato interpretativo17. Eis, portanto, um dado
metodológico desprezado nas salas de aula em que a dicção oral em
português esteja desvalorizada no ensino da literatura. Interessante é ver
que isso, no entanto, não desaparece do ensino de língua e literatura
estrangeiras.
Os velhos e experientes leitores, nós, leitores que muito depois de
Agostinho praticamos a leitura com os olhos e não com a boca, não nos
furtamos a admitir que as palavras nos soam aos ouvidos secretamente
enquanto lemos. É como se tivéssemos uma audição interna. O sentido
estaria estreitamente ligado às entoações auditivas que apuramos no
círculo de um contexto que está na obra e fora dela, em nosso entorno
pessoal. Quando “ouvimos”, muitas vezes voltamos sobre o texto para reler
ou fazer marcações.
Verdade seja dita: o leitor oferece a expressão do texto segundo a
compreensão que dele tem. A interpretação oral não apenas tem a ver com
as técnicas que exprimem um sentido que se supõe registrado na língua,
como advertiu Umberto Eco, insistindo na “intenção do texto”18. Ao lado
desta estão as presumíveis intenções do autor, mas, sobretudo, a intenção
do leitor, que, mesmo lendo para si, carrega suas motivações que pinçam
certos sentidos adormecidos em si mesmo ao se colocar diante do texto.
Então, não pomos intenções ao ler um texto e, com mais razão ainda, ao
devolvê-lo ao seu estado “natural” de palavra viva?
E mais:

• toda leitura silenciosa de um texto literário é uma forma disfarçada de


interpretação oral; e não haveria uma performance imaginária para alcançar
um nível interpretativo?
• toda crítica literária é um esforço para compensar essa debilidade da escrita
com relação ao sentido: ela tenta devolver a obra às dimensões do discurso
oral – e não estaria a crítica em busca de substituir com outras palavras o que
se perdeu dos sons da palavra não pronunciada?

A interpretação oral tem, pois, seus enlaces tanto com a oralidade


como com a crítica literária. Ela ajuda esta a recordar a intenção secreta
quando considera a obra não como essência atemporal, coisa estática,
conceitual, fechada e reificada, mas como existência que real-iza seu poder
de existir enquanto acontecimento atual, retomado na voz de cada tempo.
Por outro caminho, como querem os teóricos pós-modernos, a
palavra tem de deixar de ser palavra – um lexema no dicionário – para
fazer-se evento que, de fato, acontece em sua performance oral, secreta ou
pronunciada.
Voltemos ao enlace da interpretação oral com a oralidade em si. Ao
falar, ainda sem termos consciência disto, interpretamos a nós mesmos e à
vida que identificamos sob o sistema de linguagem convencionado por um
grupo e o qual, da sintaxe aos pronomes, se revela como uma visão de
mundo. As línguas fazem uma tradução – que efetivamente é uma
interpretação cultural – da experiência de mundo que uma comunidade
linguística materializa em verbo.
Estranha a língua escrita literária que muitas vezes carece de
“interpretação” de um ledor para alcançar o coração do ouvinte/leitor e
cativá-lo para uma comunicação direta com a palavra. Quando se
acompanha uma oficina de ledores para cegos e para práticas leitoras,
verifica-se que não são as técnicas de impostação ou vocalização o foco do
trabalho. Fica claro que a vocalização depende substantivamente do
sentido que se quer imprimir à narrativa, operação semelhante à dos
“conta-contos”, isso seja em praças públicas, seja à beira da cama das
crianças na hora de dormir.
Por isso, faz sentido pensar no contador de histórias como um
mediador de leituras. O Programa Nacional de Leitura (Proler), em seus
inícios na Biblioteca Nacional do Brasil, propôs que autores clássicos da
literatura brasileira fossem oralizados por vozes distintas como forma de
aproximar não leitores do gozo e do gosto da palavra escrita. Lemos por
várias semanas Machado de Assis, Adélia Prado, Lygia Bojunga, entre
outros. Em um fim de sessão, fomos surpreendidos por um eletricista
terceirizado da casa que nos pedia uma cópia do conto que relatava uma
passagem de sua vida: era um conto de Machado de Assis. Assim como
Clarice Lispector “contada” pareceu ao público bastante “legível, bem
diferente da autora difícil de que todos falam”.
Portanto, a ideia de sentido de que se ocupam a oralidade, a escrita e
o pensamento carece da leitura como expressão que põe o ser diante do
som e transforma esse em signo. Assim, interpretar nasce com o dizer,
com o enunciar – em seu tratado sobre a interpretação, Aristóteles a define
como enunciação19 –, e se estende ao explicar, uma vez que dizer algo
sobre alguma coisa também é clareá-la segundo um juízo: se os oráculos
“diziam” coisas, uma segunda camada de pensamento passava à
necessidade de explicar o dito.
Uma questão que aí se coloca sobre os textos escritos ou gráficos em
geral diz respeito ao fato de que sua explicação pode indicar certas relações
presentes entre autor, texto e tempo, mas não resgata uma apropriação
pelo leitor da hora, da vida que nele se guarda. A explicação não dá conta
dos efeitos do texto, que os teóricos alemães da história e da teoria da
literatura no século XX privilegiaram ao focalizar os estudos poéticos no
leitor.
A locução, entendida como uma interpretação no sentido já
proposto, pode integrar-se a uma explicação como ampliação do processo
interpretativo e decorrente de uma compreensão prévia. Às vezes, lendo
um texto escrito em voz alta, o interrompemos para dar nuances do
significado a que aludimos. Em outras palavras, para ampliar o contexto
de compreensão. Talvez seja esta a função interpretativa da explicação:
comentar alargando a contextualização do tema.
Consideremos que a in lexão do sujeito (leitor) sobre o objeto (texto)
não se dá como uma operação entre corpos distantes, mas como
aproximação na ordem do interesse e da percepção que não é gerada de
forma meramente reativa, ou ainda meramente subjetiva, como se o
campo do sentimento estivesse desterrado do conhecimento ou devesse
ser expurgado de uma interpretação de segundo grau ou complexa20.
O papel do intérprete é o de mediador para si mesmo e para outros;
no caso do professor de literatura, em vez de ser dissecador de textos e
estilos, ele deve oferecer uma ponte de compreensão que torne
humanamente significativas as narrativas de ontem e hoje, ou as
ressignifique no horizonte da vida urbana da contemporaneidade. A essa
busca é que deve proceder um contador de histórias, que, na sua
enunciação, põe toques interpretativos aos textos que oraliza, segundo o
próprio mundo e seu arquivo/memória de experiências e saberes.
Quem poderia entender Homero ou Isaías sem esse procedimento?
E, no entanto, para a condição humana, esses pensadores e outros são,
primeiramente, lições para o reconhecimento de si, razão primeira para
educar-se (etimologicamente). Depois, a emersão da realidade subjacente
dá a ver qual outra é a de nosso tempo. O choque entre os universos permite
iluminar horizontes pessoais e sociais que estão à volta, mas à sombra.
Por isso, não lemos, apenas. Quando lemos uma obra, é o seu
entorno histórico, sua sociedade e seus valores que assomam; lemos todo
um conjunto, compreendemos um mundo estranho a nós, e é quase
impossível não transferir o pensamento para o nosso próprio tempo de
leitor, comparar e ampliar os horizontes de entendimento. Como há dois
mundos, pelo menos, o exercício hermenêutico é uma exigência enquanto
mediação, tal como Hermes ensinara.
A palavra falada, com sua circunstância contextual, incluía o
comentário em sua explicitação. Quanto mais se sofistica a comunicação
pelo texto escrito, que permitiu à lógica forçar a poética, mais o exercício
sobre a proclamação do sentido demanda recursos complementares que
correspondam à cena da locução: resgatada por olhos e ouvidos de outros
tempos, a cena “muda” e instaura um debate que, em suas contraposições,
guarda a mesma pergunta sobre o real.
É com essa extraordinária velha nova matéria que trabalham os
contadores de histórias, os narradores orais, os oralizadores de textos
escritos: com a inseparável percepção e amadurecimento paulatino de sua
união com o conto, com o discurso que se desenrola perante uma plateia.
Ele narra e narra o que de dentro vem como luxo de vida emprestado a
palavras alheias que vão se tornando suas.

1 Aristóteles, Política, São Paulo: Ícone, 2007.


2 Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, São Paulo: Papirus, 2005.
3 Mikhail Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, São Paulo: Hucitec, 1979.
4 Michel Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo: Martins Fontes, 2007.
5 Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas, Petrópolis: Vozes, 2005.
6 João 1,1-10. Cf. Bíblia, Evangelho de São João, São Paulo: Loyola, 1986.
7 Martin Heidegger, Ser e tempo, Petrópolis: Vozes, 2006.
8 Platão, A República, São Paulo: Edipro, 2006; Idem, Íon, Cambridge: Harvard
University, 1992.
9 Cf. Eric Havelock, A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais,
São Paulo/Rio de Janeiro: Unesp/Paz e Terra, 1996.
10 Carl Gustav Jung, Psicologia do inconsciente, Petrópolis: Vozes, 1995.
11 A viagem do Capitão Tornado. Direção: Ettore Scola. França/Itália, 1990.
12 Miguel de Cervantes Saavedra, El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha,
Madrid: Juan de la Cuesta, 1605; Idem, Segunda parte del ingenioso caballero Don
Quijote de la Mancha, Madrid: Juan de la Cuesta, 1615.
13 Paulo Freire, A importância do ato de ler em três artigos que se completam, São
Paulo: Cortez, 1981.
14 Platão, Fedro, Lisboa: Edições 70, 1998.
15 Cf., entre outras obras do autor, Roland Barthes, O prazer do texto, São Paulo:
Perspectiva, 2002.
16 Ray Bradbury, Fahrenheit 451, New York: Ballantine Books, 1953; Fahrenheit 451.
Direção: François Tru faut. França/Reino Unido, 1966.
17 Richard E. Palmer, Hermenêutica, Lisboa: Edições 70, 1989.
18 Umberto Eco, Interpretação e superinterpretação, São Paulo: Martins Fontes,
2005.
19 Aristóteles, Ética a Nicômaco, Rio de Janeiro: Atlas, 2009.
20 Paul Ricoeur, Tempo e narrativa, São Paulo: Papirus, 1994.
Nas asas da poesia: contação de histórias como
linguagem artística
GISLAYNE AVELAR MATOS

Este texto propõe uma re lexão sobre as questões da poética na linguagem


artística própria do contador de histórias. Essa re lexão se apoia em duas
obras muito esclarecedoras sobre essa temática: Le Poète1 e L’Oiseau aux ailes
d’or2, ambas de Yi Mun-yol, o mais célebre escritor da Coreia do Sul, e não
sem razão. A meu ver, ele é um dos mais refinados autores
contemporâneos.
Em L’Oiseau aux ailes d’or, o personagem central, Kochuk, é um
aprendiz de calígrafo. O romance se desenrola a partir de sua relação com
o rigoroso mestre Soktam, para quem, antes do início na caligrafia e na
pintura, é necessário formar a alma e o corpo. “Nada deve ser legado ao
homem que não é formado”, diz o mestre.
Em Le Poète, o autor (re)cria hipoteticamente a história de uma
figura legendária que teria vivido na Coreia. É Kim Sakkat (1807-63),
conhecido como o poeta vagabundo. O autor se utiliza desse personagem
para, novamente, re letir de forma magistral sobre a formação do artista.
Diz ele: “Seguir a trajetória de um poeta implicaria seguir as diferentes
etapas de sua consciência, o poema sendo o produto desta última. Mas
seria impossível apreender inteiramente a consciência, em razão de suas
inúmeras ramificações”3.
Enfim, nessas duas obras, Yi Mun-yol trata da natureza da arte,
realçando nela valores da espiritualidade. Sob essa ótica, presente também
na re lexão ocidental, a poética coloca no centro do “fazer artístico” o “ser
do artista”. Esses dois livros, por sua vez, me remeteram a um terceiro, que
nos anos 1980 também me encantou: Cartas a um jovem poeta, de Rainer
Maria Rilke4.
Assim, decidi inspirar-me nessas obras, pois, por meio delas, é
possível re letir sobre a poética da arte de contar histórias tendo como
elemento central o contador. Antes, no entanto, vamos situar-nos
brevemente na poética em geral e na poética da arte de contar histórias em
particular, uma vez que é desse eixo que partimos.

A POÉTICA DA ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS

A poética está relacionada às artes e à criação, ou seja, ao que é


próprio da linguagem artística. Para Valéry, a poética é uma “ciência da
arte”5, pois ela se refere a tudo o que envolve o processo de criação da obra:
cultura, meio, exame e análise de técnicas, procedimentos, instrumentos,
materiais, recursos e suportes da ação. Essa ciência engloba, além das
exigências cognitivas, as afetivas e as relacionais. Passeron dirá ainda que
a poética está acima da obra a ser feita, pois o artista tem “um gosto e
emoções que o mobilizam, uma visão de mundo em que os afetos
precedem a criação”6.
Para falar de poética na arte de contar histórias, partimos da
modalidade de comunicação própria a essa linguagem artística: a
oralidade.
Na oralidade, a conexão entre o gesto e a palavra e a palavra e o gesto
é evidente, pois a palavra oral não é puramente verbal. Ela acontece em um
processo amplo que implica determinado contexto e uma situação sobre a
qual interfere, seja alterando-a ou explicitando-a, e engaja o corpo do
ouvinte nesse processo. Um corpo que fala desperta um corpo que ouve e
age sobre ele. No ato da expressão, deve haver a participação ativa e a
coordenação de três constituintes fundamentais da pessoa: a palavra, o
som que a transmite e suas raízes corporais. A palavra é um gesto, como
mostrou Marcel Jousse: “O gesto é a raiz da palavra […] Em uma palavra
sempre estarão contidas a forma e a lógica da organização do corpo que a
produziu”7.
No âmago da oralidade está a intenção de comunicar. Para isso, a
polissemia dos sentidos será inteiramente implicada. O olhar do meu
ouvinte revela se o que digo está sendo entendido no sentido em que digo.
Caso não seja entendido, posso fazer as correções no momento mesmo em
que falo, mudando o ritmo e a entonação e lançando mão de gestos e
expressões para que a comunicação aconteça.

Digamos, em termos simples, que na oralidade o estilo é a maneira de se


servir ao mesmo tempo da língua falada e dos meios orais de expressividade.
Também propomos definir o estilo em termos de variação, de diferença de
nível entre a língua da conversa coloquial e a da formulação “literária” que
implica uma preocupação estética. […] mesmo quando se conta com palavras
simples, sem preocupação excessiva, o ritmo do discurso, as entonações, os
gestos são diferentes (e também a sintaxe, o tempo dos verbos, as preposições
etc.)8.

Na poética da arte de contar histórias, a oralidade deverá contar,


também, com os elementos e os recursos estéticos da produção criadora –
a musicalidade das palavras, o ritmo, a entonação, o silêncio e a
gestualidade – de uma forma muito particular, pois seu objetivo, mais do
que comunicar, é comunicar com prazer para implicar e envolver o
ouvinte. Mas não só isso: é preciso também encantá-lo, para, dessa forma,
levá-lo a uma viagem pelas águas do imaginário. Nesse lugar, ele poderá
desenvolver e enriquecer sua consciência, pois a arte não é apenas prazer:
sua função maior é aprimorar a consciência humana.
Grande estudioso da poesia oral, Paul Zumthor mostra que “a
estruturação poética, em regime de oralidade, opera menos com a ajuda de
procedimentos de gramaticalização (como o faz, de forma quase exclusiva,
a poesia escrita) do que por meio de uma dramatização do discurso”9.
A dramatização do discurso pressupõe um corpo comunicante: não é
apenas a voz, mas gestos e expressões faciais. Por isso, a poesia oral conta
com regras mais complexas que as da escrita. Essa é uma ação complexa,
pois a mensagem poética deverá ser transmitida e percebida
simultaneamente, o que só é possível se quem conta e quem ouve
estiverem ao mesmo tempo no mesmo espaço.
Ainda com a intenção de marcar as nuances da poesia oral, Zumthor
faz uma distinção entre a obra, o poema e o texto. Diz ele:
A obra é o que é comunicação poeticamente, aqui e agora: texto, sonoridades,
ritmos, elementos visuais; os termos abarcam a totalidade dos fatores da
performance. O poema é o texto […]. O texto, enfim, será a sequência cujo
sentido global não é redutível à soma dos efeitos particulares produzidos por
seus componentes sucessivamente percebidos10.

É requisito dessa poética que o texto seja criado na cena da


performance11, a partir da interatividade com os ouvintes e da observação de
suas reações ao que se diz pela voz e pelo corpo.

As formas linguísticas como tais, incluindo as estruturas narrativas,


profundas ou superficiais, constituem um elemento inerte e, do ponto de vista
dos ouvintes, esteticamente neutro. O texto torna-se arte no seio de um lugar
emocional, manifestado em performance, e de onde procede e de onde tende à
totalidade das energias, constituindo a obra viva. É assim a performance que, de
uma comunicação oral, faz um objeto poético […]12.

Isso faz que cada texto seja único, embora as histórias contadas
possam se repetir inúmeras vezes. Impermanência e inexatidão são, em
geral, aspectos da oralidade e, em particular, da contação de histórias.
Esse é o principal requisito no processo criador do contador de
histórias. Desenvolver a capacidade artística significa preparar-se para
criar seu texto diante dos ouvintes. Nesse processo, gesto e voz, juntos,
compõem o sentido do texto que é dito. Separados, chamam a atenção
para o fato de que quem fala não está ali, ou seja, não há “presença” e, sem
esta, o conto “não passa”, ou seja, não se torna semente na consciência do
ouvinte.
Juntar ao enunciado de forma coerente e sincrônica a entonação e o
ritmo expressos pela voz e também os gestos é imprescindível para a
veiculação da mensagem. Portanto, um dinamismo vital deve ligar a
palavra que se diz ao olhar que se lança e à imagem que o corpo oferece.

O CONTADOR DE HISTÓRIAS NO CENTRO DA POÉTICA

Não sem fundamento, tratarei aqui o contador de histórias como um


artista poeta da palavra. Na África ocidental, um dos berços mais
importantes da arte de contar histórias, considera-se que a profissão de
griô (contador de histórias) é a profissão do poeta. Ela se associa tanto à
missão13 como à inspiração poética necessária a seu desempenho.
Considero que o “conto do contador de histórias” é o tradicional e é o
popular. Por isso, antes de prosseguir, vale a pena abordar algumas
questões que, embora possam parecer óbvias, ainda suscitam dúvidas em
muitos que se aventuram nas veredas da “arte de contar histórias”.
A primeira dessas questões é com relação à forma. Ao tratar a
contação de histórias como linguagem artística, falamos necessariamente
de forma, já que arte é forma. A forma é a expressão manifesta do artista
que atua sobre o homem em sua totalidade. Na arte de contar histórias,
podemos dizer que, por meio do conto, criado na cena da performance, o
contador dá forma à sua expressão.
Na segunda dessas questões, trabalhando há muitos anos com
ateliês de contos, percebo frequentemente que alguns participantes desses
ateliês costumam confundir o “dar forma à sua expressão” com o
“reinventar a estrutura de um conto tradicional”, desfigurando o conteúdo
original do texto. Por esse motivo, costumo sugerir exercícios e vivências
sobre a estrutura dos contos, chamando a atenção para os papéis e as
características das personagens – que, no caso dos contos maravilhosos,
são arquetípicas – e para a mensagem que o texto busca transmitir.
Diante disso, costumo ouvir muito frequentemente observações
como estas: “se não se deve criar nada de novo no conto tradicional, onde
está então a possibilidade de dar forma à minha expressão?” e “se na arte
tradicional o conteúdo importa mais do que a forma, de qual forma
estamos falando?”. Para responder a esses questionamentos, proponho
buscarmos compreender melhor o que é a arte tradicional, pois é nela que
o conto se insere.
A arte tradicional se ocupa principalmente de temas como bondade,
paz, beleza, amor, finais felizes e de outras coisas que, ao poderem impedir
tudo isso, deveriam ser evitadas. Em sua essência, a arte tradicional trata
do eterno tema do “aspirar a algo superior”.
Essa compreensão é de fundamental importância quando se lida não
só com os contos tradicionais, mas com qualquer material que venha do
universo tradicional. V. Zotov e V. M. Khodov, pintores de Palekh14,
afirmam que na arte tradicional a busca não é pela satisfação do ego. As
ponderações desses pintores sobre a arte da miniatura russa de Palekh
ajudam a ampliar nosso entendimento do assunto:

Para as pessoas educadas segundo os princípios da arte individualista, onde o


talento se mede pela originalidade e excentricidade da obra, é extremamente
difícil reconhecer o estatuto “popular” da arte de Palekh […]. Muitos artistas
não souberam compreender que renunciar ao “ego” pode ser recompensado
pela capacidade de vencê-lo15.

A tradição e a arte tradicional têm sua própria percepção do tempo, sua vida,
uma vida que nossa época tumultuada tem dificuldade de entender. Essa arte
não pode reagir instantaneamente às ideias e tendências sempre lutuantes.
Ela opera com os meios artísticos e poéticos que lhe são inerentes, com um
sistema de imagens bem próprio. O desejo atual é inovador e considerá-la arte
de terceira categoria se ela não responde às exigências da inovação é dar
provas de falta de discernimento tanto do ponto de vista histórico como do
artístico. […] A tradição […] não é de forma alguma um entrave para o criador,
muito pelo contrário, quando ele apreende exatamente a sua essência, ela
representa para ele a imensa experiência de inúmeras gerações de seus
antepassados, ela é linguagem artística graças à qual ele pode exercer seu dom
criador16.

“Os grandes”, dizia Iberê Camargo, “não queriam inovar. Queriam


dar uma resposta à vida, a pintura é isso – uma resposta à vida17.” O conto
também quer dar uma resposta à vida. Assim, fica esclarecido que, quando
se fala em “dar forma a algo”, fala-se, antes de tudo, no trabalho do artista
sobre si mesmo, desse ser prenhe de perguntas e sempre em busca de
respostas às questões da existência.
Na poética de toda linguagem artística, o criador deve extrapolar o
saber fazer. Para criar, ele deve apoiar-se em sua trajetória, pois ela é
elemento de sua obra. Nas palavras de Rainer Maria Rilke:

Tudo está em levar a termo e, depois, dar à luz. Deixar amadurecer


inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do inconsciente, do
inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de
sentimento e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto
de uma nova claridade: só isto é viver artisticamente na compreensão e na
criação18.

Escrita ou falada, a fonte da palavra poética está localizada no lugar


mais íntimo do ser humano. Nessa fonte, habitam as imagens, os sons, as
atmosferas, as impressões, as reminiscências, as lembranças, enfim, tudo
aquilo que faz de alguém um ser único.
Em Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke aconselha Franz
Xaver Kappus sobre os caminhos da poesia:

Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus


sonhos e os objetos de suas lembranças. Se a própria existência cotidiana lhe
parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante
poeta para extrair as suas riquezas. Para o criador, com efeito, não há pobreza
nem lugar mesquinho e indiferente. […] entrar em si e examinar as
profundidades de onde jorra a sua vida; na fonte desta é que encontrará a
resposta à questão de […] criar19.

Qualquer ser humano, à condição de não se perder no banal e no


vulgar, é dotado de poesia. Pode-se dizer mesmo que todos os seres
capazes de afetos profundos estão plenos de poesia. E o contador de
histórias, assim como o poeta, carrega em si um universo que, gerado no
interior de si mesmo, tem as bênçãos da musa da poesia.

O CONTADOR-ARTESÃO: PRIMEIRO ESTÁGIO

No que concerne à fidelidade ao mundo, ninguém pode ultrapassar os artesãos. […] Mas
sem elevação de espírito, tudo o que é preto não é mais que tinta, e tudo que é branco não
é mais que papel. [YI MUN-YOL]

Na poética da arte de contar histórias, as técnicas de voz e


gestualidade são meios para aperfeiçoar nossa expressão. A voz tem
qualidades materiais: o tom, o timbre, a amplitude, a altura e sua luência.
Ela pode criar climas, atmosferas que seduzem o ouvinte, levando-o a
descobrir paisagens, cenários e situações. A voz é o mais poderoso recurso
para a estimulação do imaginário. Mas ela também informa sobre a pessoa
e seus estados emocionais, desejos ou medos. Ela pode transmitir
serenidade ou agitação. A voz diz além das palavras proferidas porque não
é apenas um instrumento, é uma linguagem e, como qualquer linguagem,
tem seus códigos. Estes são produzidos por cada pessoa por meio do
pensamento e, pela ação do pensamento, a voz se torna mensagem.

Na voz, estão presentes de forma real as pulsões psíquicas, as energias


fisiológicas, as modulações da existência pessoal. Eu gostaria de dizer que a
voz re lete de forma imediata certa atitude do homem em relação a si mesmo,
aos outros, à sua consciência e sua palavra: atitude percebida pelos ouvintes
de forma empírica global20.

Da mesma forma, o olhar, a expressão do rosto e os gestos informam


muito ao ouvinte. A expressão gestual, quando desconectada da
enunciação, pode mudar o sentido do que se pretende dizer. E, da mesma
forma que os recursos vocais, as expressões e os gestos podem provocar
diferentes emoções no ouvinte, pois, dependendo da região do corpo de
onde provêm, o ouvinte se reconhecerá no corpo do contador.
Na poética da arte de contar histórias, a voz e os gestos são pilares.
Portanto, o domínio de técnicas que ajudam a ampliar os recursos do
desempenho vocal e gestual é uma condição básica.
Mas o domínio da técnica não é o objetivo final do artista, é apenas
um meio para dar forma à sua expressão. Como sabemos, a qualidade de
sua expressão não depende apenas do conhecimento das técnicas.
“Esforça-se para adquirir uma técnica na espera do caminho. Se pararmos
nessa técnica, nós nos tornamos artesãos. Um passo à frente é a arte. E
quando vem a harmonia, é o caminho21.”
Ao tratar da arte tradicional das miniaturas russas, V. Zotov22 faz
uma observação que esclarece essa questão. Segundo ele, aparentemente
são raras as pessoas que se dão conta de que um casal tecnicamente bem
desenhado e pintado pode ser tanto uma cópia sem alma como um idílio
charmoso ou um grandioso hino ao amor. Ele afirma que isso depende do
nível espiritual do artista, do poder de seu pensamento poético. Para o
contador de histórias que queira se aventurar além, é necessário re letir
sobre isso e saber que todo processo de criação tem suas dificuldades e elas
são necessárias.
Quando convidados a experimentar exercícios vivenciais que
ajudarão a abrir espaços internos para fazer brotar a poesia, alguns
participantes dos ateliês de contos têm uma reação inicial de recuo e medo
do ridículo e dizem que não vão conseguir porque os exercícios são “muito
difíceis”. Uns chegam a dizer: “pensei que esse negócio de contar histórias
fosse mais fácil”.
Tudo sempre pode ser mais fácil dependendo de onde se quer
chegar. Quando pensamos no contador como um artista, como um poeta,
o ato de contar histórias pode realmente parecer mais difícil. Mas é esse
“difícil” que guarda os grandes segredos. Um artista, independentemente
da linguagem que lhe dá suporte, não se esquivaria desse caminho.
Novamente é o grande poeta Rilke quem aconselha:

Tudo que vivo se agarra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende


segundo a sua maneira de ser; e faz-se coisa própria nascida de si mesma e
procura sê-lo a qualquer preço e contra qualquer resistência. Sabemos pouca
coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não nos
abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser
difícil deve ser um motivo a mais para que seja feita23.

O CONTADOR-POETA: SEGUNDO ESTÁGIO

O vinho contém água, açúcar, fruta, cor. Misture tudo isso e não produzirá vinho. A uva
é a forma primitiva do vinho. Esmagadas, elas produzem o suco. Mas a uva tem o
potencial de se tornar vinho e este leva ao inebriamento. O vinho é a essência da fruta.
Pode-se oferecer a uva, mas o vinho é processo de fermentação, de transformação em
cada tonel. [IDRIES SHAH, mestre sufi]

Interrogado sobre diversos pontos de vista em relação à “forma” em


suas composições, o grande poeta e místico ismaelita Nasir Udin Hunzai
deu respostas diferentes, mas todas apontavam para o fato de que, em sua
consciência poética, a “forma” não é um esquema, não “obedece” a
nenhuma regra porque ela é a regra, incessantemente recriada, e ganha
existência pela e na paixão particular de cada momento, de cada encontro
e a cada qualidade de luz24.
Pensando na perspectiva da arte tradicional, a forma que o
contador-poeta dará a seus contos deveria ancorar-se na intenção de servir
não ao ego, mas à palavra ancestral, eterna e mítica que é o conto.
É no tempo presente (espaço da performance) que o conto vem à luz e
é conhecido e reconhecido simultaneamente pelo contador-poeta e por
seus ouvintes. Mas foi no tempo espalhado pelo passado afora, com seus
inúmeros momentos, que o conto foi gestado paciente e
parcimoniosamente com as experiências do contador-poeta. Quantas
vezes nos deparamos com um conto pela primeira vez e nos reconhecemos
inteiramente nele? Há contos sobre os quais costumamos dizer, com
abençoada surpresa: “Esse conto fala de mim, essa é a minha história”. São
esses os contos que me ajudam a configurar minha própria trajetória em
um cenário que, embora situado “a mais de mil milhas daqui e em um
tempo tão distante”, me é tão familiar. Ele está tão longe e tão perto. Eu
nem me apercebera, mas esse conto já me habitava, já sussurrava em
minha alma, tantas vezes a lita em busca de respostas. Esse conto, cheio de
elementos estranhos e curiosas personagens, já estava sendo gerado no
mais fundo do meu ser.
Trazê-lo à luz na cena da performance é falar de mim mesmo sem
dizer quem sou eu. É assim que minhas experiências podem ganhar a
forma que darei ao conto. Se vivi uma situação que me parecia cruel e sem
saída e me senti injustiçado, hoje, a distância, posso rir de tudo isso? é essa
compreensão que o tempo traz sobre minhas experiências que ganhará
forma, e as personagens que descrevo também poderão rir em situações
semelhantes. A forma que darei ao conto não poderá sair de nenhum outro
lugar que não seja o meu mundo interior. É nesse processo de
autofermentação que a alma se depura e se transforma, como a uva que se
transforma em vinho.

Pense, caro senhor, no mundo que leva em si e chame o seu pensamento como
quiser: reminiscência da sua própria infância ou saudade do futuro – o que
importa apenas é prestar atenção ao que nasce dentro de si e colocá-lo acima
de tudo o que observar em redor. Os seus acontecimentos interiores merecem
todo o seu amor; neles de certa maneira deve trabalhar […]25.

Um homem perguntou a um pintor quanto tempo levaria para


produzir certo quadro, ao que o pintor respondeu: “Sessenta anos”. Essa
era a idade do pintor naquele momento. Quem me contou essa anedota
disse que o sujeito que fez a pergunta se espantou com o preço do quadro e
não sabia avaliar o seu valor. Comparando as horas de trabalho do pintor
com as próprias, pensou que aquele preço era absurdo.
A situação não é de se espantar, pois o tempo do mercado é bem
diferente do verdadeiro tempo do artista, e o que é valor para o mercado
muito frequentemente não o é para o artista. Diz Rilke:

Aí o tempo não serve de medida: um ano nada vale, dez anos não são nada. Ser
artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que
não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera,
sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir.
Entrar em si mesmo, não encontrar ninguém durante horas – eis o que se
deve saber alcançar26.

As imagens criadas nessas duas esferas do tempo iluminam a


consciência, abrindo-lhe novas possibilidades para os tempos futuros. É
dessa maneira e por essa razão que se faz arte. “Criar arte é ver o mundo
como que pela primeira vez. É buscar a origem, o gesto que o fundou. É
reaprender cada coisa, cada objeto, é dar novos significados às coisas
existentes, é re-inventar-se, re-conduzir-se, re-construir27.”

PREPARAÇÃO DO CONTADOR-POETA: PARA PENSAR E FAZER

A serviço do conto, poremos:

• nossa memória sensorial;


• nossas reminiscências;
• símbolos;
• histórias vividas e ouvidas;
• re lexões filosóficas;
• aprendizagens advindas da relação com o outro;
• estimulação dos sentidos.

1. Uma narrativa encanta quando propõe uma aventura, uma surpresa: se não
me for possível encontrar em determinado conto o espírito da aventura, será
difícil encantar alguém ao contá-lo. Mas, se encontro nele esse espírito,
poderei, através dos meus recursos vocais e gestuais, criar climas e ritmos que
levem o ouvinte a compartilhar desse espírito. Às vezes, um conto que me
pareceu ingênuo e que não fez sentido para mim é contado lindamente por
um contador que encontrou nele o espírito da aventura. Quando isso
acontece, esse conto passa a fazer parte da minha memória e pode me
ensinar. Você poderá se perguntar: “Mas por que não vi isso antes?”. A
resposta pode ser: “Não o li ou ouvi com interesse o bastante”. Nesse caso,
você se pergunta: “Por que não me senti interessado por esse conto?”. E se a
resposta for: “Não estou muito ligado ao tema nesse momento da minha vida”
ou “Esse tipo de conto não faz muito o meu gênero”, tudo bem, é assim
mesmo – não nos sentimos estimulados a contar algo que não tem nada a ver
com o nosso momento ou com o nosso jeito de ser. Mas, se você perceber que
não descobriu a riqueza desse conto porque ficou somente na superfície dele,
tente mais uma vez.
2. Uma história nos ajuda a formular questões sobre a nossa vida nas quais nem
tínhamos pensado: observe o tema de cada história e procure em sua
experiência situações em que viveu algo relacionado a ele. Escolha
personagens que mais tocam você, ponha-se no lugar delas e conte a história
dessas personagens em primeira pessoa. Construa para elas uma história.
3. A narrativa deve ir direto ao essencial. Para isso, as palavras devem ser fortes
e definitivas: tome consciência de seu tipo de discurso no dia a dia: você é
prolixo, não deixa claro o que deseja comunicar, fala demais ou de menos etc.?
Que palavras são essenciais ou se mostram repetitivas quando você fala sobre
determinado assunto?
4. O dom da narrativa é saber misturar, às histórias contadas, os sonhos que
teve dormindo ou acordado, as imagens que ficaram marcadas ao longo da
vida, as coisas ouvidas, os provérbios etc.: relacione o que pensa ser
significativo em suas lembranças e deixe tudo em um arquivo da memória
para lançar mão quando um conto precisar ou pedir.
5. Ter o dom da narrativa é também viver sua vida como uma história, ser a
personagem do próprio conto: conte a si mesmo a própria história como se ela
fosse um conto.
6. Saiba introduzir a própria vida nos relatos sem que isso seja uma
autobiografia. Use a carga emocional e afetiva experimentada na vida:
procure lembrar-se de situações, pessoas, lugares e sensações que foram
significativos em sua vida e marcaram você pela carga emocional que
continham.
7. Torne-se o herói de sua própria história, pois assim estará livre para
modificar-lhe o sentido e a saída: aprenda com os contos que conta e traga
esses aprendizados para sua vida, busque ver a si e ao mundo de forma
diferente, seja crítico em relação às suas “verdades”, confronte-as com os
contos e aprenda a rir de si mesmo.
8. Entrelace temas: pergunte-se qual é o tema das histórias das quais você mais
se lembra ou que mais lhe atraem.
9. Anote algo do cotidiano que chamou sua atenção: um estímulo, uma notícia
de jornal, um caso, impressões sobre uma casa abandonada etc.
10. Converse com objetos, plantas, animais e pergunte-lhes sobre eles.
11. Imagine funções e utilidades diferentes para os objetos.
12. Olhe para as pessoas, as coisas e os lugares como se fosse a primeira vez e
tente descobrir o que não tinha visto neles até então.

Esses são pequenos exercícios que precisam de uma imaginação


livre como a da criança para que belas imagens sejam criadas e as palavras
ganhem sentido.

As imagens criadas pela intencionalidade da imaginação poética fazem com


que a alma do poeta encontre a abertura consciencial de toda verdadeira
poesia […] Nas horas de grandes achados, uma imagem poética pode ser o
germe do mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio de
um poeta. A consciência de maravilhamento diante desse mundo criado pelo
poeta abre-se com toda ingenuidade28.

“O VASO TORTO”: UM CONTO PARA INSPIRAR

No conto a seguir, um mestre oleiro observa seu discípulo para


compreender o que o move a produzir potes de rara beleza:

Amid era um velho mestre oleiro de Samarcanda. Todas as tardes, Amid


examinava atentamente o trabalho de seus aprendizes. Entre todos, havia um
que Amid amava particularmente.
Era o jovem Namedin.
Namedin fazia progressos dia a dia na arte da cerâmica e, pelo
refinamento dos vasos que fazia, Amid podia reconhecer seu grande talento.
Mas havia um fato curioso: todos os dias, em meio a dezenas de vasos
perfeitos, delgados, finamente trabalhados, inspirados e inspiradores, um e
apenas um, aparecia torto, lamentavelmente malfeito e defeituoso.
Seria aquilo o equivalente a uma falha incorrigível no caráter ou um
simples capricho do aprendiz? Amid estava confuso e decidiu satisfazer sua
curiosidade. No dia seguinte, descobriria a razão daquilo.
Na manhã seguinte, postou-se bem próximo a Namedin e começou a
observá-lo. Tudo ia bem, até que uma linda jovem, suave, delicada, cruzou a
rua bem em frente do seu torno. Namedin podia vê-la, inteira e graciosa.
Todos os dias, naquela mesma hora, a jovem cruzava a rua.
Namedin apaixonara-se por ela.
Quando a via atravessar vagarosamente a rua, tornava-se perturbado,
suas mãos tremiam, e o vaso que, naquele momento, se encontrava no torno,
sofria as consequências daquela paixão. Os dedos de Namedin não podiam
dominar os voos de seus pensamentos nem a inquietação de seu coração.
O mestre Amid enterneceu-se com tal descoberta e, com mais carinho e
interesse, passou a conduzir seu discípulo.
Ao amor e não à imperícia do artista deveria atribuir o aparecimento do
vaso torto. Afinal, pensava Amid, o que importa a mutilação de uma peça em
meio a tantas obras-primas?
A mulher amada, com sua presença perturbadora, fazia surgir uma obra
defeituosa e, com sua ausência, inspirava dezenas de obras-primas.
Louvado seja Alá, que criou a poesia, a beleza e o amor29.

Desse modo, encerramos esta re lexão com o intuito de inspirar e


soltar as amarras da poesia interna que existe em cada um, contador de
histórias ou não. Como apontava Yi Mun-yol: “O percurso sentimental de
um poeta constitui quase sempre a parte mais brilhante de sua
biografia”30. Isso significa dizer que o percurso e a experiência de vida de
cada um é uma ferramenta única e extremamente rica para encantar o
outro no ato de contar uma história.
1 Yi Mun-yol, Le Poète, Arles: Actes Sud, 1992.
2 Idem, L’Oiseau aux ailes d’or, Arles: Actes Sud, 1990.
3 Idem, Le Poète, op. cit., p. 69.
4 Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta: a canção de amor e de morte do poeta
estandarte Cristóvão Rilke, Rio de Janeiro: Globo, 1985.
5 Paul Valéry apud Marly Meira, Filosofia da criação: re lexões sobre o sentido do
sensível, Porto Alegre: Mediação, 2003.
6 René Passeron, “Da estética à poética”, Porto Arte – Revista do Mestrado em Artes
Visuais, Porto Alegre: 1997, n. 15, v. 8, pp. 103-14.
7 Marcel Jousse apud Willy Bakeroot, “Ré lexions sur la musicothérapie active ou
‘le chant à penser’”, in: Jean-Pierre Klein, L’Art en thérapie, Revigny: Martin
Media, 1993, pp. 165-90 (tradução da autora, como todos os demais trechos
citados de obras estrangeiras).
8 Geneviève Calame-Griaule e Muriel Bloch apud Gislayne Avelar Matos, A
palavra do contador de histórias, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 54.
9 Paul Zumthor, Introduction à la poésie orale, Paris: Seuil, 1983, p. 80.
10 Ibidem, p. 81.
11 Zumthor utiliza o termo performance na acepção anglo-saxônica; assim, ela é “a
ação complexa através da qual uma mensagem poética é simultaneamente
transmitida e percebida, aqui e agora. Locutor, destinatário, circunstâncias
[…] se encontram concretamente confrontados” (Paul Zumthor, op. cit., p. 32).
12 T. P. Co fin e J. Dournes apud Paul Zumthor, op. cit., p. 81.
13 Como em toda sociedade tradicional, nas sociedades africanas o conto
também tem uma função educativa, no sentido amplo do termo.
14 A pintura do vilarejo russo Palekh retrata os mitos, os costumes, as lendas e a
harmonia da vida campesina em contato com a natureza. As caixas sobre as
quais essas pinturas são feitas são fabricadas em papel machê de acordo com
um processo apurado. São laqueadas geralmente em preto no exterior e
vermelho no interior. Sobre elas, os pintores gravam suas pinturas
delicadamente concebidas antes em papel. Um dos mais importantes centros
de arte popular russa, Palekh integra de forma orgânica as tradições plásticas
da pintura russa antiga à arte popular.
15 V. Zotov, “La Tradition n’est pas une question de forme, mais de contenu”, in:
Lioudmila Pirogova; Ivone de Sike; Simon Diner, Miniatures russes sur laque:
mythes et légendes, Paris: L’Oiseau de Feu, 1993, pp. 102-7.
16 V. M. Khodov, “Pensées sur l’art”, in: Lioudmila Pirogova; Ivone de Sike; Simon
Diner, op. cit., Paris: L’Oiseau de Feu, 1993, pp. 98-101.
17 Iberê Camargo, entrevista concedida a Daniel Piza, 5 abr. 1993, apud Frederico
Morais, Arte é o que eu e você chamamos arte: 801 definições sobre arte e o sistema da
arte, Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1998, p. 209.
18 Rainer Maria Rilke, op. cit., p. 32.
19 Ibidem, p. 23.
20 Paul Zumthor, entrevista a Gérard Le Vot, Dire, Montréal: 1991, n. 16, p. 22.
21 Yi Mun-yol, L’Oiseau aux ailes d’or, op. cit., p. 48.
22 V. Zotov, op. cit.
23 Rainer Maria Rilke, op. cit., p. 55.
24 Cf. Paul Zumthor, Introduction à la poésie orale, op. cit., p. 79.
25 Rainer Maria Rilke, op. cit., p. 49.
26 Ibidem, pp. 32-49.
27 Frederico Morais, op. cit., p. 205.
28 Gaston Bachelard, A poética do devaneio, São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 1-
5.
29 O conto foi contado por Malba Tahan e recontado pela autora.
30 Yi Mun-Yol, Le Poète, op. cit., p. 72.
Contador de histórias: um animador de palavras e
coisas
FÁBIO HENRIQUE NUNES MEDEIROS

Não havia nada, senão um Ser./ Este Ser era um Vazio vivo,/ a incubar potencialmente
as existências possíveis./ O Tempo infinito era a moradia desse Ser-Um./ O Ser-Um
chamou-se de Maa Ngala./ Então ele criou “Fan”./ Um Ovo maravilhoso com nove
divisões/ No qual introduziu os nove estados fundamentais da existência./ Quando o
Ovo primordial chocou, dele nasceram vinte seres fabulosos que constituíram a
totalidade do universo, a soma total das forças existentes do conhecimento possível./
Mas, ai!, nenhuma dessas vinte primeiras criaturas revelou-se apta a tornar-se o
interlocutor (kuma-nyon)/ que Maa Ngala havia desejado para si./ Assim, ele tomou
uma parcela de cada uma dessas vinte criaturas existentes e misturou-as; então,
insu lando na mistura uma centelha de seu próprio hálito ígneo, criou um novo Ser, o
Homem, a quem deu uma parte de seu próprio nome: Maa. E assim esse novo ser,
através de seu nome e da centelha divina nele introduzida, continha algo do próprio
Maa Ngala.

Síntese de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Força suprema e con luência
de todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de herança uma parte do poder
criador divino, o dom da Mente e da Palavra. [AMADOU HAMPÂTÉ BÂ]

Essa re lexão, com caráter de ensaio poético, tem em seu tripé as seguintes
abordagens: 1) o contador de histórias como animador, no sentido de dar
alma/vida a palavras e objetos; 2) o teatro como narrativa e a presença do
narrador no teatro; e 3) as formas diretas de utilização do teatro de
animação (entenda-se, especialmente, teatro de bonecos e objetos) na
contação de histórias, tendo a anima1 como o fio fundamental que tece
tudo.
O objetivo deste texto é provocar algumas questões sobre essa tênue
relação entre o contador de histórias e o animador de teatro. Para o
desenvolvimento de um raciocínio lógico, foram propostas algumas
categorizações, não estanques, mas como termos provisórios com a função
de alicerçar nossa discussão e abordagem. Este texto tem ainda várias
entradas e saídas. Cada tópico aborda provocações que foram despertadas
quase como um luxo de consciência em alguns momentos e que merecem
ser maturadas. Porém, pela necessidade de síntese, elas estão indicadas de
forma panorâmica. Portanto, as questões devem ser vistas como
provocações, pontos de partida para o germinar de outras re lexões.
O contador de histórias, seja ele o “natural” (aquele que herdou e
desenvolveu habilidades por meio da sabedoria popular ou pela
experiência vivida), seja o “especializado” (aquele que estudou técnicas
teatrais, oratória etc.) – na falta de melhor denominação –, se utiliza de
animação, especialmente a teatral. A priori, poderíamos mencionar dois
suportes para o “animar”: a palavra (que dorme na boca do imaginário ou
do livro) e as formas (bonecos, indumentárias, adereços etc.). Aqui, o
termo “animação” se refere ao teatro de animação ou de formas animadas,
ou seja, contempla o teatro de bonecos, os fantoches, as marionetes, o
teatro de sombras, os “dedoches” e até mesmo as formas abstratas; porém,
não contempla a animação cinematográfica.
O contador pode animar palavras, formas e objetos de forma
descritiva (ilustrativa) ou abstrata (com sugestões de decodificação e
metáforas). “Assim como a fala divina de Maa Ngala animou as forças
cósmicas que dormiam, estáticas, em Maa, assim também a fala humana
anima, põe em movimento e suscita as forças que estão estáticas nas coisas
(…)2.” Hampâté Bâ frisa que as ideias de “falar” e “escutar” não estão aqui
em seu sentido estrito, mas em um sentido alargado, e cita que, “‘Quando
Maa Ngala fala, pode-se ver, ouvir, cheirar, saborear e tocar a sua fala’.
Trata-se de uma percepção total […]”3. Tudo no universo “é fala que ganhou
corpo e forma”4. Essas citações parecem dizer tudo, uma vez que, para o
autor, a fala em seu sentido lato corresponde a todas as formas no
universo, formas essas que passam pelo “toque”, pela intervenção humana.
O ato de contar histórias é uma forma de nos transferirmos ao
mundo. E apenas nessa afirmação já reside a anima, já que ela passa pela
ideia de dar alma, dar sentido, dar vida a algo. Os registros mais antigos da
civilização estão cheios de histórias e de contadores, o que pode ser
demonstrado por meio das narrativas de desenhos rupestres, da roda ao
redor da fogueira, da música, do teatro, da dança e até mesmo das palavras
articuladas, que transferem vida aos objetos. As histórias existem apenas
porque são contadas. Elas são parte de um conhecimento acumulado
culturalmente que inspira e expira narrativas milenares, revisadas todo o
tempo, direta e indiretamente. Quando ouvimos histórias, vivenciamos
experiências únicas: a história nos dá a chave para uma atmosfera
imaginária – válvula de escape para a esmagadora vida real.
A própria função narrativa, ou seja, a articulação de uma
comunicação sequencial e linear, é intrínseca à estrutura do pensamento e,
com isso, da percepção. Tendemos a organizar tudo aquilo que olhamos de
forma narrativa, e isso fica bastante visível ao longo de toda a história da
arte. Todavia, nesse sentido, estamos diante de mudanças vertiginosas em
relação à arte.
A animação é um atributo energético dado a algo inanimado,
desprendendo do corpo humano vida, movimento, anima, para o corpo
inanimado (objetal). Esse recurso é bastante recorrente na prática do
contador de histórias, pois ele leva anima de si para os elementos de seu
uso, inclusive para a própria palavra, a qual já tem um potencial animístico
impregnado. O contador os carrega de alma, intenção e sentimento.
Nesse sentido ilustrativo, também é significativamente recorrente
um contador de histórias dar alma às palavras com voz e movimento e, na
hora de pegar um boneco, por exemplo, sacudi-lo de um lado para outro
sem lhe proporcionar vida, apenas trazendo esse recurso para “ilustrar”,
como mera alegoria visual. É importante sublinhar que o teatro de
animação é uma linguagem específica, com seu sistema e seus códigos
estéticos, e não uma arte “menor”, como muitos o percebem, por ser muito
bem recebido pelas crianças.
O contador, bem como o artista de teatro de animação, deve
trabalhar com princípios do pensamento “alógico” e fantástico, vivendo
nuances da fase do pensamento animista infantil, no qual o mundo real se
torna fantástico, e apresentando uma “extralógica” que tenha domínio
sobre códigos reais e irreais, para poder assim transitar livremente entre
eles. Para os contadores, o imaginário é uma espécie de brinquedo virtual
que pode ser acessado sem fronteiras e que se arquiteta e se dissipa no ar.
Uma das características do mundo contemporâneo é negligenciar o
onírico. Entretanto, sob o caos e as diversas direções para as quais se olha,
ainda se sonha. Nessa habilidade, estão calcadas duas práticas irmãs: o ato
de contar histórias e o teatro de animação. Está na imaginação o poder do
animador e do contador de dilatar sua vida para a voz, o objeto, o
movimento, entre outros elementos, transbordando desse modo sua
vitalidade ou capacidade de multiplicação vital.
Isso passa também pela percepção e o acesso da imaginação do
emissor (contador, animador) e do receptor (ouvinte, público), ou seja, por
mais virtuosa que seja a animação ou a contação, uma parte dessa
experiência se constrói na recepção, pois não se conta nem se anima para
si mesmo. O teatro e a contação de histórias são linguagens que dependem
do outro para existir: são uma espécie de espelhamento em que a sombra
do artista é o público. Quanto maior for o animismo, maior será o jogo
entre os dois. No caso de não existir o jogo, essa animação é unilateral,
percebida apenas de um ponto de vista – ou só pelo emissor, ou só pelo
receptor. A imaginação é, na verdade, um processo de escavação da
linguagem. O que vai lhe dar forma é dimensionado por seus códigos, com
base ou não em estereótipos.
Um intérprete, seja ele ator, contador de histórias ou leitor, tem a
capacidade de transcender seu objeto, seu suporte, e de extrapolar
semanticamente o sentido do texto ou do objeto. A voz, o som, os ruídos no
ato de contar histórias e de animar expandem o sentido, recodificando a
tessitura semântica e colorindo-a com suas intenções e com as intenções
do leitor. Segundo o griô Hassane Kouyaté, “a palavra é metade daquele
que diz e metade daquele que ouve”.
Kouyaté afirma ainda que a “palavra escrita está deitada”5, logo, o
livro é a cama do texto que adormece até que o leitor o acorde, dando-lhe
vida, em um ato muito íntimo e construindo uma relação de amor e ódio.
O contador de histórias tem condições de fazer uma festa dionisíaca com
esse texto. A partir daí, começa um jogo de prazeres entre três: a história
(textual-literária ou oral e visual), o ouvinte (público) e o contador, que
assume um papel divino, soprando e absorvendo vida. Testemunha dos
sonhos, o contador transcreve a imaginação e, para ele, não existe apenas
um mundo.
Essa ideia de não existir apenas um mundo, de expansão, se aplica a
todo artista, que, com sua percepção e olhar, é um atravessador de
linguagem, pois consegue ver além do que se vê comumente. Nas
linguagens orientadas pelo fantástico, essa questão ganha ainda mais
destaque pelo fato de a concepção e a elaboração estética partirem de um
descolamento perceptivo, de uma expansão mundana.
Por que é dada tanta veracidade à escrita, mera transcrição, desenho
do som que sai da palavra oralizada? Será que a escrita não seria a prisão
do pensamento que, no auge do suor, tem a porosidade sintetizada por
causa do rígido suporte? Quantas vezes ouvimos as pessoas dizerem frases
como “na verdade, não era exatamente isso o que eu queria dizer”, “não sei
se estou me expressando bem”, “você me interpretou errado” etc.? Temos
muitos exemplos dessa insuficiência comunicativa, tanto na escrita como
na oralidade. Entretanto, a favor da oralidade, o signo sonoro está
presente no instante em que é emitido. A escrita, por sua vez, é um
metacódigo da imagem e da fala.
O ato de ler, decodificar ou decompor está desprovido do som da
palavra oral e, com isso, deslizam alguns dos seus sentidos originais e
orgânicos. Esses sentidos são orgânicos porque a palavra não respira por
si. O leitor precisa dar-lhe o sopro da vida. Não se trata aqui de uma
apologia arbitrária à oralidade, mas de equiparar fala e escrita, já que,
historicamente, “durante muito tempo julgou-se que povos sem escrita
eram povos sem cultura”6.
No entanto, enquanto estiver vivo, o homem viverá suas múltiplas
formas de manifestação, sobretudo porque é na linguagem que ele
encontra comunhão. “[O homem] é a palavra, e a palavra encerra um
testemunho daquilo que ele é7.” A literatura ou as outras formas de
linguagem artística são depositários do estado de alma, e toda história da
alma está resguardada nas formas corporificadas pelo pensamento. Parece
que a arte é a maior evidência disso, pois, segundo Platão8, a alma é
multiforme.
A presença do livro no ato de contar histórias é uma questão muito
polêmica. Embora o próprio livro possa ser animado em uma sessão de
contação de histórias, podendo transformar-se em pássaro ou em qualquer
outra coisa, ele já é, em si, um elemento simbólico na sessão da contação.
Quando o vemos como objeto, já sabemos que ali há uma fonte de
possibilidades, inclusive de histórias e vida de seres. O livro é tão guardião
da memória quanto o céu é guardião da boca do narrador.
Levanto algumas perguntas para nos desestabilizar: de que forma o
livro pode integrar narração e audição e participar da própria narrativa?
Como o livro pode adquirir significados? Quais seriam as possibilidades de
explorá-lo sem perder a essência do ato narrativo? O olhar, um dos elos
entre contador e público, pode atravessar as páginas do livro e encontrar-
se com o ouvinte? Será que o livro é uma parede estéril no ato de contar
histórias? Walter Benjamin pode dar uma perspectiva para essas questões:
“Quem escuta uma história está em companhia do narrador; mesmo quem
a lê partilha dessa companhia”9, ou seja, contar histórias, seja com um livro
nas mãos ou não, é um ato de compartilhar experiências.

O TEATRO COMO NARRATIVA E A PRESENÇA DO NARRADOR NO TEATRO

A estrutura da linguagem teatral também é uma narrativa por


corresponder a uma sucessão de eventos contados por meio de códigos
emergentes das linguagens verbal e não verbal. Seu “texto” e seus
significados podem ser lidos por vários meios, do corpo do ator à
cenografia, construindo assim uma teia de sentidos espaciais e temporais.
Da linguagem verbal, podemos mencionar como códigos a letra da canção,
as legendas e tudo o que puder ser articuladamente expresso por meio de
palavras. Da linguagem não verbal, temos a música e tudo o que for
sensível à leitura dos olhos: cenário, figurinos, gestos, expressão,
iluminação, espaço, entre outros. Porém, essa divisão é especificamente
metodológica, pois as linguagens têm em suas matrizes uma constante
inter-relação.
Passemos a observar o texto dramático, um gênero literário que tem
na estrutura todas as condições para a ação. É um texto escrito para, de
modo geral, ser encenado e não contado. No sentido narrativo, como ato
de narrar, até aparece o gênero narrativo nessa estrutura textual, mas não
é comum ter um narrador na cena em si.
No gênero dramático, a narratividade aparece nas rubricas ou
didascálias, que quase sempre têm como função localizar a história no
tempo e no espaço, bem como dar indicações para os atores. Elas são uma
espécie de “voz” interna que narra para os atores onde eles estão, e estes
traduzem isso em ação para o público. A narrativa também pode aparecer
diretamente na encenação, como em propostas com metalinguagem ou
mesmo em concepções que tenham a presença de uma personagem que
narra.
Por mais que tenha falas das personagens em tempo presente, os
gêneros conto e romance se diferenciam do texto dramático por não haver
neste a recorrente figura do narrador. No ato de contar histórias, o
narrador quase sempre está presente, por intermédio de qualquer recurso,
e, nesse caso, quase sempre é a voz/o corpo que torna presente a
personagem na narrativa.
Vale salientar que me refiro ao teatro no sentido clássico, e não ao
teatro contemporâneo, infantil ou popular, já que a figura do narrador
aparece recorrentemente como mediador entre público e personagens,
como onipresente na camada ficcional ou real. “A fronteira entre narrativa
e ação dramática é, por vezes, difícil de ser traçada, pois a enunciação do
narrador permanece ligada à cena, de modo que uma narrativa é sempre
mais ou menos ‘dramatizada’10.”
No teatro infantil, o narrador/personagem ou o narrador está no
proscênio (primeira parte do palco, visível mesmo que as cortinas estejam
fechadas) ou na própria cena. Entretanto, muitos grupos desse gênero
propõem a presença do narrador como metalinguagem onipresente ou em
um tempo diferente do qual vivem as personagens da história. O narrador
está em uma camada discursiva de não lugar ou então entre lugares: não
está na história, nem no público, nem no real, nem na ficção. Pode-se
perceber com frequência no teatro infantil a contação de histórias, o que
pode ser considerado uma característica marcante que o diferencia do
teatro para adultos.
No Brasil, a prática do teatro infantil esteve por muito tempo ligada
às narrativas maravilhosas e aos contos de fadas. Essa ligação tem sido
mais explorada nas últimas décadas, uma vez que os estudos sobre a
infância vêm tomando novos rumos e vertentes.
A história do narrador no teatro é antiga. Já havia no teatro grego o
coro, que exercia uma espécie de função narrativa, assim como no teatro
de sombras já havia um narrador. Também nos primórdios do cinema,
quando ainda não havia fala, existia a presença do “explicador” contador,
como nos conta Jean-Claude Carrière: “de pé, com um longo bastão, o
homem apontava os personagens na tela e explicava o que eles estavam
fazendo. Era chamado explicador. Desapareceu – pelo menos na Espanha –
por volta de 1920”11.
Assim, o narrador ou a função narrativa sempre esteve presente,
direta ou indiretamente, na estrutura ou na forma da linguagem teatral, e
mais ainda no teatro de animação, ao qual é possível acrescentar os
elementos do sonho e do fantástico e de deslocamento temporal e espacial,
já que, nele, “o ‘Era uma vez’ constitui o ‘Abre-te, Sésamo’ de um universo
de liberdade onde tudo pode acontecer”12. O teatro de animação e a
contação de histórias são matérias efêmeras que ganham forma pela
linguagem em si, na qual a palavra e os seres podem voar, morrer, ganhar e
perder forma.
Essa aproximação se dá ainda por meio da voz: no teatro de
animação e na contação de histórias, a voz ganha maior dinamismo e
muda de tom e frequência, possibilitando a um único atuador fazer várias
personagens e transitar em vários tempos e espaços, entre as camadas
ficcional e real.
O contador de histórias anima palavras e objetos tendo por fim não
apenas a comunicação, mas o prazer, a estética, a comunhão. Essa prática
foi se modificando no tempo, pois a oralidade, bem como outras artes,
tinha uma função muito mais comunicativa do que propriamente estética.
Parece que o sistema nos empurra mais e mais para recusar e
negligenciar o onírico. Isso ocorre talvez pela falsa impressão de
improdutividade e ócio que o processo criador gera e também pela
dinâmica da vida moderna, que mensura as atividades humanas pela
lógica industrial.
O sonho, enquanto dormimos ou não, é a prova de que só
dominamos a nossa imaginação quando conscientes, pois o poder que
temos sobre ela somente se dá na consciência: apenas assim podemos
acessá-la controladamente, recheada de moral etc. Existe um choque de
poderes: imaginação consciente versus imaginação inconsciente. Durante
essa luta, alguns lapsos ocorrem.

CALEIDOSCÓPIO • Instrumento inventado pelos anjos para visitarmos as


imagens e seres que lutuam noutros mundos. Na verdade é uma espécie de
chave do tempo. Algumas pessoas conseguem abrir o passado e outras veem
fadas. É mágica a capacidade do caleidoscópio de criar imagens fantásticas,
mas isso ocorre pelo modo, ritmo e tempo em que giramos, pois, uma vez que
extrapolarmos a velocidade, ele matará a individualidade das cores e sua
capacidade de composição, virando então uma mancha fria cinzenta13.

Uma forma de sintetizar a figura do contador de histórias está nas


múltiplas possibilidades do caleidoscópio: tudo está associado ao modo
como ele é girado, ao movimento, à imaginação.

FORMAS DIRETAS DE UTILIZAÇÃO DO


TEATRO DE ANIMAÇÃO NA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

As possibilidades de utilização do teatro de animação no ato de


contar histórias são várias, pois a linguagem poética é viva como o homem
e veloz como sua capacidade de composição estética.
Um dos exemplos pode ser visto no uso recorrente de bonecos
(formas animadas) na cena junto ao narrador, fazendo um duplo (um
narra uma parte da história, o outro narra a outra parte) ou dialogando
entre si (o narrador está dentro e fora da história – ficção). O narrador
pode estar no real, e o boneco, no ficcional, e ambos não se veem, ou o
inverso, podendo ocorrer um jogo de esconde-esconde (quando um fala e o
outro procura a voz que fala, por exemplo).
Assim como há possibilidades de utilização do teatro de animação
no ato de contar histórias, o inverso também ocorre. No teatro de sombras
tradicional, por exemplo, temos a função narrativa e recorrentemente um
narrador. Podemos citar também o Bunraku, tradicional teatro de bonecos
do Japão, cuja técnica de manipulação direta de bonecos diante do público
tem sido assimilada por grupos de vários países. Dessa forma, faz-se
fundamental observar a presença da função narrativa, bem como do
narrador.
Conforme Sakae Giroux e Tae Suzuki, “a representação teatral do
bunraku é sustentada pelo narrador (tayú), pelo tocador de shamisen e pelos
manipuladores de bonecos, em um trabalho que possui um caráter
independente e, ao mesmo tempo, uma relação de apoio mútuo”14.
As autoras apontam que a função do narrador no bunraku é recitar e,
com isso, direcionar a representação. O narrador não observa apenas os
bonecos, mas observa o texto e segue também os arranjos musicais, que,
por sua vez, acompanham o tempo e o ritmo de sua voz e representam “a
voz do boneco revelando seus pensamentos”15. A função narrativa e o
narrador estão interligados em toda a encenação nas dimensões verbal,
visual e sonora, seja na estrutura, seja na forma.
Ainda conforme Giroux e Suzuki16, o ato de narrar nesse teatro de
bonecos não significa apenas colocar as palavras nas ações das
personagens, descrever a situação dramática e desenvolver as narrativas,
mas entender que a narrativa está manifestada em vários meios de
expressão, de forma que o tocador é um narrador que se utiliza da voz de
seu instrumento musical, desenvolvendo a mesma função do narrador. “O
narrador dá vida às palavras, assim como o tocador de shamisen dá vida ao
som, ou seja, o narrador e o músico ou se juntam em um único corpo, ou se
in luenciam e se apoiam mutuamente para desenvolver a representação
dos bonecos17.”
Nesse sentido, a vida do boneco resulta não apenas do gesto dos
manipuladores, mas desta massa de movimento: a voz do narrador, o som
do tocador e o gesto dos manipuladores em busca de uma respiração
única.

Os manipuladores de bonecos narram e retratam, através de bonecos, uma


variedade de emoções humanas surgidas de situações dramáticas e, nesse
sentido, eles se encontram em um mesmo estado artístico que seus parceiros,
narrador e instrumentalista. Suas técnicas devem ser perfeitas de forma que
lhes permitam captar o espírito de seu pedaço18.

A estética do bunraku requer atenção e estudo aprofundado – por


mais que no Brasil já exista uma quantidade significativa de estudos na
área. Ela não poderia deixar de ser mencionada em razão de sua
especificidade e de sua ambiguidade no que diz respeito à presença-
ausência do ator, animador e narrador com relação ao público, contexto
recorrente no caso de contadores que se utilizam de bonecos e formas
animadas.
Além dos bonecos, seja para o teatro ou para a contação de histórias,
é possível também utilizar objetos cotidianos ou da natureza para a
construção de personagens que se deseje representar. Nesse sentido, é
preciso observar que, a partir do momento em que se escolhe algum objeto,
é fundamental grudar nele um referente. Ou seja, tanto na seleção como
na atuação com “objetos” e recursos naturais, é necessário trazer um
elemento comum que o público possa identificar, seja no comportamento,
seja na fisicalidade. O descolamento do nexo de um referente para fundi-lo
com outro código é uma questão de primeira ordem para a construção de
uma metáfora.
Poderíamos listar ainda uma série de associações metafóricas
possíveis: um lenço de voile pode representar a pena de um pássaro, a
delicadeza da donzela, o voo, a morte, o fantasma, a juventude etc. – o
tecido é multiforme, maleável e muito eficiente na dinâmica de construção
e desconstrução de personagens. Um pedaço de cabo de vassoura pode
representar uma espada; o cabo de um guarda-chuva, uma bengala etc. O
importante é penetrar na vida intrínseca das matérias e construir sua
interpretação sobre o que se quer contar ou mostrar: a voz e os demais
elementos da cena vão comungar com isso.
É possível, ainda, dar vida e construir coisas no invisível e torná-las
visíveis, o que também passa pela animação como estado de percepção e
linguagem. Aqui, o material não tem carga expressiva, pois só existe na
imaginação e, consecutivamente, no gesto, no olhar, até alcançar o
espectador. Isso nos remete ao mimo e à pantomima19. O ponto de partida
é o acreditar. Se o ator ou o contador acredita, quem assiste a ele também
acredita. A seguinte frase de Clarice Lispector ilustra perfeitamente a
questão: “Ela acreditava em anjos e, porque acreditava, eles existiam”20.

O OLHAR: UM RECURSO EFICIENTE ENTRE O


TEATRO DE ANIMAÇÃO E A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

O olhar é um elemento fundamental da percepção sensível, embora


não seja o único. Assim como “falar” e “escutar” não estão estritamente
associados aos aparelhos fonético e auditivo, o olhar também não está
necessariamente ligado à visão, mas à dimensão da percepção. Retomando
a ideia de percepção total – que não se limita aos sentidos (tato, audição,
olfato, visão e gustação), mas a qualquer meio que se use –, nota-se a
completude do que se diz, uma vez que o corpo humano tem uma
capacidade ímpar de se adaptar mesmo desprovido de algum de seus
sentidos. Poderíamos provocar essa afirmação com a seguinte pergunta:
cegos e surdos não vivenciam histórias?
Entretanto, o olhar como recurso técnico pode ser um meio de
extrema importância para trazer o ouvinte e funciona como ferramenta de
animação. Tanto na contação de histórias como no teatro de animação, o
olhar pode estabelecer vários elos entre o contador/animador, o
ouvinte/espectador e os objetos, como cumplicidade, condução, destaque,
aproximação, afastamento, construção de espacialidade e temporalidade
etc.
Se, por exemplo, o animador olhar para um objeto, acreditar nele, e
olhar para o seu espectador, pode torná-lo cúmplice e levá-lo a acreditar
também. Se todos os que estão em cena olharem para o mesmo ponto, o
espectador vai levar o olhar para aquele ponto também, assim como um
olhar disperso e bêbado por parte dos atores/contadores pode gerar a
dispersão da plateia.
O pesquisador e artista de teatro de animação Valmor Níni
Beltrame21 lista uma série de princípios técnicos da linguagem do teatro de
animação, dentre os quais têm o olhar como ferramenta de foco, de
indicador da ação e de triangulação.
Segundo Beltrame22, o “foco é a definição do centro das atenções de
cada ação. A noção de foco pode ser exemplificada em momentos em que o
boneco projeta seu olhar para o objeto ou a personagem com que
contracena”, indicando a direção da ação e conduzindo o público para
onde se deve olhar. O olhar como indicador da ação é o momento em que o
boneco “olha” com a cabeça: “antes do início de determinadas ações, [o
boneco] olha para o ponto exato de deslocamento”23, a fim de indicar para
onde o espectador deve olhar. A triangulação, por sua vez, “é um recurso
que se realiza com o olhar e colabora para ‘dialogar’ com o espectador,
fazendo-o ‘entrar’ na cena […] O boneco interrompe a ação com o objeto
(congela), dirige o seu olhar ao público, volta a olhar para o objeto e reinicia
a ação”24. Ao observar sessões de contação de histórias, é possível constatar
que esses três princípios são frequentemente utilizados pelos contadores,
estejam eles ou não com bonecos e objetos.
Como o olhar é um dos princípios da linguagem do teatro de
animação, a discussão sobre ele nos leva a registrar dois momentos: 1) a
intervenção do griô Hassane Kouyaté no início de sua apresentação do
Sesc Ipiranga em 2011, na qual ele pediu que a luz sobre o público não fosse
apagada, pois não seria possível ele contar uma história sem ver para quem
o faria; e 2) a história contada por Yashinsky Dan, que se encontra mais
adiante, quando se questiona sobre o contador de histórias e a televisão, a
qual tem muito mais histórias do que o contador, mas não me conhece,
não me vê. Mais um exemplo, agora cotidiano: quando você está
conversando com alguém, contando algo, e a pessoa está olhando se o
ônibus está vindo, ou que horas o relógio está marcando, você não tem
vontade de esganar a pessoa? Sabe por quê? Porque o laço estabelecido
pelo olhar é profundíssimo. Afinal, o olhar não é a janela da alma?

O olho precisa encontrar o olho do outro. Olho no olho. O olhar estabelecendo


a confiabilidade do diálogo. O olhar do outro é o alimento solitário para eu me
pôr de frente, encontrando a respiração do outro. Necessito do olhar, do olho
do outro no meu olho. Pouso suave, convidativo, deposito meu olhar no olho
do outro, sem pressa de retirá-lo. O olhar ajuda a dizer e, principalmente,
ajuda a ouvir […] olhar no olho do outro é sublimar o narrado25.
Nas observações de Gregório Filho, feitas sob a perspectiva do
contador de histórias, podemos perceber uma grande relação com o teatro
de animação. Mesmo que o encontro do olhar com o outro possa não
existir diretamente como regra no teatro de animação, ele pode estar no
do jogo subliminar da cena, isto é, nos inúmeros recursos utilizados pelo
autor para ele ser visto perante a vida, que se apresenta em relevo e, assim,
se encontra com a respiração do outro, já que estamos no mesmo
ambiente, comungando do mesmo ar. O olhar pode abrir a percepção para
a escuta do gesto, do tempo e da pausa. Gregório Filho ainda afirma: “Só
posso contar uma história encontrando o olhar do outro; para minha voz
poder repercutir; tomar dimensão”26, ou seja, só é possível contar fazendo
visível o invisível, fazendo-se vivo, vendo os anjos de Clarice.

CONSIDERAÇÕES

Existem vários tipos de contadores: o literário, cuja boca é uma


caneta ou máquina de escrever; o conselheiro, que mede as dores do
mundo; o oráculo ou místico, que vê além do que se vê e especula
caminhos; o pintor e fotógrafo, que descobre seres nas formas; o cantador,
que tempera tudo o que vê com ritmo etc. O contador corta, amassa,
modela, esculpe, afina, pesca, desenha e escreve as histórias com a
intenção de que elas voem em ouvidos, olhos e corpos. Ele é um
partilhador de sonhos e viajante intermundano.

O que é o contador, quer se trate da história oral, quer se trate da escrita,


senão aquele que não deve se esquecer de sua infância, que se recusa a
esquecê-la e deixar-se “normalizar” completamente? Aquele que, por isso
mesmo, se torna cúmplice da criança, que a auxilia a prolongar sua
brincadeira, a construí-la, a enriquecê-la, que a faz passar da brincadeira de
símbolo comum para o que já toma forma de criação27.

O ato de contar histórias é uma prática animista por excelência, pois


o animismo parte da lógica de animar o inanimado, de dar vida ao que não
a tem. O texto, por sua vez, dorme e precisa ser iluminado pela anima,
vinda do ouvinte, do leitor ou do mediador que, nesse caso, é o contador de
histórias/animador, que acorda a palavra, dá-lhe intenção, respiração. “Na
tradição oral, na verdade, o espiritual e o material não estão dissociados28.”
Eu acrescentaria a isso uma frase perigosíssima de Platão, na qual
ele se refere ao orador (discursador). Deslocada do objetivo de persuasão, a
essência dessa ideia vem ao encontro da abordagem do contador como
animador: “A força da eloquência consiste na capacidade de guiar as
almas, aquele que deseja tornar-se orador deve forçosamente conhecer
quais formas existem na alma”29. O filósofo ainda acrescenta: “Com a arte
da retórica se passa mais ou menos a mesma coisa que com a medicina […]
uma se relaciona ao corpo, a outra, com a alma”30. Vejamos como essa
imagem de guiar almas nos remete ao animador.
Paul Claudel disse certa vez que a marionete é uma palavra que age,
que se anima na narração. O homem sempre contou histórias, o que pode
ser comprovado pelas paredes das cavernas, os livros dos mortos, os
papiros e pergaminhos egípcios, as mitologias greco-romanas e outras, as
iluminuras, as sherazades, os homeros, as culturas ágrafas e gráficas etc. O
homem também animou suas personagens, com vidas ou com almas, nas
formas mais primitivas ou mais atuais, estáticas ou em movimento, por
meio dos mitos, das fábulas etc.
As histórias só existem porque existe o homem, que as conta e as
anima. Elas são os testemunhos dos sonhos vestidas de várias formas: às
vezes em textos, outras oralmente, outras ainda por meio da música, do
teatro, do desenho etc. É função do contador/animador potencializar a
vida e acordar o “texto”, seja de que forma estiver.
A palavra narrada é como um braço que puxa o ouvinte para que ele
possa viver, sentir, imaginar, perceber e saborear outras atmosferas que a
palavra, em suas várias formas, pode proporcionar. Nas histórias que
vimos e ouvimos podemos perceber a riqueza das nossas culturas, porque
foi através dessas histórias que construímos as nossas, visto que da
fecundação de culturas nasce a identidade de um povo e sua história.
Pode-se dizer que está na gênese da natureza humana a capacidade de
contar e contar-se e de animar e animar-se.
Como mencionado acima, registro a história que Yashinsky Dan nos
conta:
Uma vez, um antropólogo chegou a uma tribo africana no mesmo dia em que
uma televisão foi levada para aquele lugar. Todos os habitantes da aldeia
passaram três dias em volta do aparelho, assistindo a todos os programas com
grande interesse. Depois, abandonaram a televisão e não quiseram mais saber
dela. O antropólogo perguntou-lhes se não iam mais assistir aos programas.
– Não – disse um deles –, preferimos o nosso contador de histórias.
– Mas a televisão – retrucou o antropólogo – não conhece muito mais
histórias do que ele?
– Pode ser – respondeu o homem –, mas o meu contador de histórias me
conhece31.

O extraordinário conhecimento e a sabedoria transmitidos pela


tradição oral são o maior indício de que o homem é um ser múltiplo e de
que o humano ainda vive no homem, pois existe a necessidade de
celebração, de encontro e de partilha.
A animação como ideia passa pela dualidade morte e vida. Para
provocar uma re lexão sobre isso, convoquemos as Moiras (ou Parcas para
os romanos), as três deusas da mitologia grega responsáveis pelos
fios/histórias/animae dos homens e dos deuses. Cloto fazia brotar o fio, e
Láquesis o acompanhava: ambas teciam a vida/história de cada ser.
Átropos, por sua vez, era aquela que cortava o fio, ou seja, a morte. Na
mitologia grega, a morte pode ter representações concretas ou abstratas.
Em seu sentido simbólico, poderíamos atribuí-la às três Moiras: Cloto,
como a morte da donzela e nascimento da mãe; Láquesis, como a morte no
parto, quando o corte do cordão umbilical separa mãe e filho, que nascem
como indivíduos e morrem como ser duplo; e Átropos, como a morte da
vida terrestre, que liberta a alma da prisão do corpo. Assim, a morte
também está associada ao sentido de nascimento e de vida.
Segundo Hampâté Bâ, acredita-se que Maa Ngala depositou três
potenciais no homem: o poder, o querer e o saber, que permanecem dentro
dele até o momento em que a fala os coloque em movimento: “Vivificadas
pela Palavra divina, essas forças começam a vibrar. Numa primeira fase,
tornam-se pensamento; numa segunda, som; numa terceira, fala. A fala é,
portanto, considerada a materialização, ou a exteriorização, das vibrações
das forças”32.
Com base nas ideias de vivificação, força e vibração (componentes
da anima), a analogia do contador/animador com as Moiras é
extremamente pertinente, uma vez que ele assume a divindade, soprando
e sugando anima e estabelecendo um elo entre os mundos real e irreal,
material e imaterial, morte e vida, entre tantos outros, infinitamente. E
assim o contador cria asas!
O contador de histórias é um animador, carrega vidas e almas
embaixo do braço para libertá-las quando elas se expandem no ato de
contar.
A narradora é uma bruxa com longa saia de figuras penduradas – na
medida em que ela roda a saia, ressuscita suas histórias: as figuras correm,
mas não conseguem escapar da roda da saia; as palavras gritam para a
narradora, doidas para ser contadas. As vidas de contadores e personagens
estão atreladas a essas vidas: os contos salvaram Sherazade e prologaram
sua vida; e quantos narradores de histórias acharam nessa prática um
motivo de existência?
O narrador “pode recorrer ao acervo de toda uma vida (uma vida que
não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a
experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima
aquilo que sabe por ouvir dizer). […] o narrador é o homem que poderia
deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de
sua vida”33.
Não é necessário muito esforço para cruzar a arte de contar histórias
com as demais linguagens artísticas, pois ela fica no ir e vir das artes,
direta ou indiretamente. Ela está na pintura, no teatro, na pantomima, na
dança, na música, na ópera, no cinema, na arte da animação, na
arquitetura, na escultura, nas artes tecnológicas, nos games, na televisão.
Ela está na alma do homem.

Tinham as mãos amarradas, ou algemadas, e ainda assim os dedos dançavam,


voavam, desenhavam palavras. […] Quando é verdadeira, quando nasce da
necessidade de dizer, a voz humana não encontra quem a detenha. Se lhe
negam a boca, ela fala pelas mãos, ou pelos olhos, ou pelos poros, ou por onde
for34.
1 Em uma perspectiva clássica, corresponde àquilo que dá alma e vida.
2 Amadou Hampâté Bâ, “A tradição viva”, in: Josef Ki-Zerbo (org.), História geral
da África: metodologia e pré-história da África, São Paulo: Unesco, 1982, p. 173. Esse
texto encontra-se nas páginas 155-188 desta coletânea.
3 Ibidem, p. 185.
4 Ibidem.
5 Palestra proferida pelo griô Hassane Kouyaté, no Sesc Ipiranga, em São Paulo,
em 18 de maio de 2011.
6 Amadou Hampâté Bâ, op. cit., p. 181.
7 Ibidem, p. 182.
8 Platão, Fedro, São Paulo: Martin Claret, 2004.
9 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura, São Paulo: Brasiliense, 2011, p. 213.
10 Patrice Pavis, Dicionário de teatro, São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 258.
11 Jean-Claude Carrière, A linguagem secreta do cinema, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1995, p. 13.
12 Jacqueline Held, O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica, São
Paulo: Summus, 1980, p. 44.
13 Fábio Henrique Nunes Medeiros, “Algumas impressões”, 2012. Disponível em:
<http://vagaludens.blogspot.com.br/p/nossos-textos.html>. Acesso em: nov.
2014.
14 Sakae M. Giroux e Tae Suzuki, Bunraku: um teatro de bonecos, São Paulo:
Perspectiva, 1991, p. 70.
15 Ibidem.
16 Ibidem.
17 Ibidem, p. 71.
18 Ibidem.
19 Mimo e pantomima são expressões que englobam a arte de representar ações,
emoções, ideias e até mesmo narrativas por meio da gestualidade, sem o uso
da expressão verbal.
20 Clarice Lispector, A hora da estrela, Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 39.
21 Valmor Níni Beltrame, “Princípios técnicos do trabalho do ator-animador”, in:
Teatro de bonecos: distintos olhares sobre teoria e prática, Florianópolis: Udesc,
2008, pp. 25-39.
22 Ibidem, p. 29.
23 Ibidem.
24 Ibidem, p. 30.
25 Francisco Gregório Filho, “Oralidade, afeto e cidadania”, in: Eliana Yunes
(org.), Pensar a leitura: complexidade, Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2002, p. 62.
26 Ibidem.
27 Jacqueline Held, op. cit., p. 221.
28 Amadou Hampâté Bâ, op. cit., p. 183.
29 Platão, op. cit., p. 114.
30 Ibidem, p. 112.
31 Yashinsky Dan apud Regina Machado, Acordais – fundamentos teórico-poéticos da
arte de contar histórias, São Paulo: DCL, 2004, p. 33.
32 Amadou Hampâté Bâ, op. cit., p. 185.
33 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura, São Paulo: Brasiliense, 2011, p. 220.
34 Eduardo Galeano, O livro dos abraços, Porto Alegre: L&PM, 1995.
A contação de histórias que parte do texto:
escritura e oralidade
MARLENE FORTUNA

Optamos por trabalhar com a contação de histórias advindas de textos


escritos e não criados pelo próprio contador. É indispensável para um
contador de histórias repertoriar técnicas que sustentam a lógica anexada
à sensibilidade, ao poder de interatividade e de driblar emoções, no
sentido de transfigurar as palavras “dormentes, imóveis, descansadas” da
escritura em palavras “viventes, móveis, cansadas” do performer. Os
códigos, os ícones e os símbolos na conquista dessa “postura de passagem”
foram capturados e decifrados por nós, sobre as teorias do medievalista
Paul Zumthor. O obelisco de suas experiências incide em provar que a
linguagem oral dos feirantes e mercadores analfabetos da Idade Média
empatizava o povo muito mais do que os doutos clericais e os nobres
aristocratas, que bastante sabiam, mas pouco comunicavam a qualquer
que fosse o ouvinte. Ou seja, o “conhecimento calado”, culto, perdia para o
“conhecimento propalado”, mesmo inculto. O ator contempla dialogias
pontuadas nas fronteiras que se seguem: ele, com a beleza da oralidade e
outros domínios, pode engolir o autor (o performer sobrepuja o discurso
caligrafado); na equiparação dimensional ou crítica entre ambos (são
igualmente exemplares ou medíocres), o intérprete não tem um farto
diligenciamento, levando a naufragar um enredo fantástico grafado em
suporte horizontal (a escritura supera a performance). Esbarramos em
limites plurais postados em um terreno de areia movediça, em que o
elemento sólido (texto) nem sempre dá conta do elemento líquido
(expressão vertical) e vice-versa. O ideal, para nós, implica o caráter
extraordinário de todos os envolvidos na contação de histórias,
principalmente um belo enredo ficcional no escrito para uma iluminada
interpretação dele, daí a instalação do “estado de graça” nas estéticas do
texto, do contador de histórias e na plateia como entidade reverberadora.
Por termos optado por trabalhar com a contação de histórias
advindas de textos escritos e não criados pelo próprio contador, falamos,
portanto, em interfacialidades horizontais e verticais, estando as
primeiras para os autores como as segundas estão para os
performatizadores.
O diálogo que os intérpretes de histórias estabelecem com a
escritura do contista (apoio indissolúvel) e sua passagem para o suporte
vivo (apoio solúvel) é complexo a ponto de sofrer permutas suscetíveis
entre encontros, confrontos e desencontros; entre ir à busca de, sair da
busca de e ir em busca a; ir ao encontro de, ir de encontro a e deixar o
encontro com; entre acordar, discordar e concordar, pois o texto
registrado, imperecivelmente, sedimenta o que a performance do contador,
em sua fugacidade, pulveriza. São naturezas completamente distintas de
abraçar um mesmo corpus. No discurso caligrafado, temos uma pontuação
léxico-gramatical (reinado da linguística) e, na expressão verticalizada,
uma pontuação léxico-emocional (reinado da sonoridade). São passagens e
travessias por registros diferentes que se interfaceiam, mesmo tendo
ambos as mesmas propriedades: escrituras contemplam emoções,
sentimentos, pontuações, sensações, sintaxes, semânticas; oralidades são
manifestações que cingem idênticos elementos líquidos e sólidos. A
oposição aparece porque, na textualidade registrada, as palavras estão
“adormecidas”, tendo sido idealizadas na racionalidade do “compositor
ausente”. Na contação, ao contrário, elas estão “acordadas”, apresentando-
se vitalizadas pelo intérprete presente. Este possui três bases fortes das
quais emana energia: os olhos, as mãos (sons vocais corpantes) e a voz
(fonte glótica pura), entendendo-as como inseridas no grande organismo.
A partir do conhecimento, reconhecimento e treino de cada uma delas,
somam-se outros tantos componentes que garantem domínio suficiente
para a realização esmerada do “fenômeno triádico de passagem”: escrito –
falado – recebido (público).
É mentira afirmar que basta começar a contar, de qualquer jeito, que
depois tudo sai contado, adequadamente, na interatividade com o outro. O
contador de histórias é um artista. É um ator. É um esteta. E, como tal,
carece de muito preparo para se tornar cada vez melhor: estudo, pesquisa e
treino são, no mínimo, apenas os seus primeiros passos. Parece que a
atividade aqui referenciada tem caráter de banalidade, de leviandade, de
uma singeleza tal como nossas avós que, sentadas nas varandas, nos
contavam histórias de assombração em geral. Em nossas premissas, esse
profissional é muito sério em sua jocosidade; por isso, afirmamos: não
basta contar, é preciso saber contar. Todos contam, mas saber contar é
virtuosismo de poucos.
Expressar-se, provocando a sedução do ouvinte, compreende a ação
de interpretar matizadamente, dando às emoções seus devidos desenhos;
portanto, o agente precisa de municiamento constante para a formação de
repertório técnico, intelectual e sensível. Assim, as respostas da plateia o
fortalecerão em termos de autoaprimoramento, de domínio lógico do
conteúdo e das sensações trabalhadas de forma inteligente, consistindo,
enfim, em trazer para si a assistência à medida do desenvolvimento da
performance. O escritor e o contador de histórias têm lidas imbricantes, ou
seja, o primeiro sente-se, às vezes, o coator, e o segundo, o coautor. O fato é
que, ao tratarmos de transposição, esbarramos, automaticamente, em
simbioses, osmoses e trocas. Nessa estrada de mão dupla existem
diretrizes singulares a ambos: a manutenção da coerência da narrativa, a
dosagem adequada entre o racional e o emocional, a criatividade, a
originalidade no ato de criar escrevendo e de criar interpretando. Algo de
incontestável se impõe: quanto mais iluminadamente vividos e bem
engendrados, mais encantadores são os contos expressos esteticamente e
maior é o índice de atenção recebido dos fruidores, que podem variar de
crianças a um público adulto. A matéria registrada precisa escapar do
papel e cair em um terreno fértil de expressividades, estilos e produções
sonoros, cinéticos, espaço temporais, maravilhosos e in loco. Esse terreno
pode ser traduzido nas salas de aula, nos pátios dos colégios, nas igrejas,
nas praças públicas – os contadores de histórias atuam também nos
teatros ao ar livre ou nos recintos fechados.
Esses são aspectos que se embaralham em um poço muito fundo,
propositadamente sem chegada, sem chão. Isso porque essa arte não tem
fim: ela lida apenas com algumas aproximações de negociatas entre os
contadores e os respectivos contistas em ostensivos embates, em
admirações mútuas ou em um absoluto silêncio (nenhum dos dois se
manifesta a respeito das estéticas recíprocas). O que temos, sem piedade, é
intérprete ampliando texto (muita consideração e reconhecimento) e autor
minimizado pelo falante (ressentimento sem pena).
O falante vai atrás de instrumentalizações eficazes e criativas que
deem conta da exteriorização dos enredos e, consequentemente, da
manutenção de um excelente tônus laríngeo-orgânico para a recifração de
um porto ao outro ocorrer sem quebras na corrente contínua do escrito
quando performatizado. A atitude do performer com a representação
animada dos sentimentos que envolvem os contos consiste, muitas vezes,
na perversão de certas pontuações da sintaxe do escritor, que ficam
transgredidas, desordenadas e fora do lugar de origem em nome da
chamada instantaneidade da poética interpretativa.
Embora esse seja um direito do ator, o dever permanece: respeitar o
eixo escritural e não contar outra história, a menos que ela seja criada pelo
próprio ator. Também lhe cabe administrar e saber passar os con litos, as
pequenas tensões, os embates deliciosos erigidos pela outra poética
(dramaturgo). A arte de convencer (argumentos) e a arte de bem dizer
(eloquência) nessa hora se resvalam. Em plena posição dialógica, o
representante presente de Dionísio frequentemente transfixa as medidas
demarcadas pelas estacas escriturais. Seriam licenças de uma poética de
gestualidade, oralidade e emoções soltas ou permissividades nocivas em
demasia? Munido de um arguto domínio técnico, o contador de histórias
metamorfoseia, em construções, desconstruções e reconstruções
sucessivas as categorias de linguagem do texto, priorizando o contraponto
das figuras sonoro-emocionais.
É oportuno pontuar algumas das argumentações do grande
medievalista Paul Zumthor, que cuidou, como ninguém, da poética da
verbalização falada na Idade Média, além de priorizar a infixidez do gesto,
da voz e da emoção sobre a fixidez do registro escrito:

PESQUISADORA: Hoje em dia o senhor parece interessado fundamentalmente nas


relações entre oralidade e escritura. Poderia nos falar desse interesse?
ZUMTHOR: São trabalhos mais recentes que fiz a partir de minha primeira
permanência no Brasil, no final de 1977. Eu descobri, graças a amigos brasileiros,
em particular etnólogos ou especialistas em literatura oral, de maneira concreta,
qual pode ser a in luência do som emanado pela cavidade bucal, da gestualidade
construída pelo corpo sobre o texto escrito. Depois dessa primeira permanência no
Brasil, pude aceitar, justamente porque me interessava por esse assunto, uma
missão na África central; eu lecionava lá, havia um pretexto acadêmico. Fiquei
alguns meses procurando cantores, contadores africanos, faladores. Pus-me na
situação de escuta, de um ouvinte, e tudo se passava em línguas que eu não
conhecia; portanto, claro que eu não compreendia o texto. Porém, o que eu
percebia era unicamente todo o aparelho corporal em funcionamento, associado a
certo lado sociológico, ao tipo de população que eu ouvia, à posição dominante do
cantor etc., e então atinei que esses elementos corporais, emocionais e sociais
desempenhavam um papel considerável; eu conseguia adivinhar o texto
simplesmente a partir deles. A reação dos africanos que entendiam o texto era bem
mais forte, mas, no final, muitas vezes eu notei, o resultado era quase o mesmo;
quer dizer, os africanos, ao cabo de uma performance, começavam a cantar e a
dançar e eu também tinha vontade de dançar. Então me convenci de que, na
presença do corpo em movimento, da voz, da audição, do olhar, dos hábitos
sociais, há um fator considerável que dá um sentido ao texto poético1.

Quanto às relações aludidas por Zumthor entre presença, palavra,


ilusão, sonho, ruído e organismo, alguns contadores de histórias têm
posicionamentos divergentes e convergentes aos do teórico, prevalecendo
os últimos. Em diálogo conosco, esses contadores confessaram não
acreditar na cisão entre performance, corpo e palavra, ou seja, somos o que
falamos e falamos o que somos. Nosso aparelho vivo é nossa fala, e nossa
fala é nosso aparelho vivo. É uma harmonia de elementos conectados, que
despreza, em absoluto, qualquer possibilidade de esquartejamento.
É o performer em ação quem coloca as duas pernas cruzadas e
esticadas sobre a mesa, por exemplo, na representação de um delegado; de
sua boca, sai um grito seco; suas mãos se cruzam e descruzam de
determinada maneira; e as emoções foram concebidas sob desenhos
selvagens. Pois bem, isso não significa separação, ao contrário, é uma
constituição orgânica que se põe à disposição da construção artística de
um tipo mimetizado por seu respectivo intérprete, no caso, o contador da
história. No recanto da performatização, atentamos que não somos uma
loja de departamentos separados: as partes se entrelaçam e falam porque
estão entremeadas. O corpo é palavra que fala, voz que verbaliza, emoção
que dialoga, sentidos que negociam, ações que discutem. As intenções são
corporificadas respondendo aos movimentos que, por sua vez, nascem de
uma inter-relação harmoniosa dos órgãos em sua totalidade.
Referindo-nos ao ato de exprimir artisticamente uma ideia na
pessoa do oralizador, as cordas vocais vibram de acordo com os comandos
cerebrais e intencionais da compleição do performer, sejam eles audíveis ou
não; mesmo quando este estiver calado e apenas gestualizando, as cordas
reagem a esses estímulos; da mesma forma, as vontades, os propósitos e os
desejos, que também estão registrados no córtex cerebral, na condição
natural da vida. No patamar da arte, esses elementos são forjados,
emprestados, construídos de dentro para fora e de fora para dentro,
manifestando-se estética e sempre holisticamente. O escopo prioritário é
estabelecer a melhor comunicação com os receptores. Nossa estrutura
física sabe tudo: pode suar ou não, ficar mais quente ou mais fria, retesar-
se ou relaxar, acelerar ou desacelerar de acordo com uma inteligência
única. Ele é uma máquina jamais escandida, jamais seccionada, e seus
pinos não são gerados de uma zona unicêntrica, mas policêntrica.
O medievalista Paul Zumthor continua a advogar sobre o poder
cativante da voz em si. Ela é a senha responsável por manter
comprometidos dramaturgos, intérpretes e contadores de histórias:

[…] através da voz, a palavra se torna algo exibido e doado. […] Em casos
extremos, o sentido dos vocábulos deixa de ter importância, é a voz em si
mesma que nos cativa, devido ao autodomínio que manifesta… Assim nos
ensinaram os antigos com o Mito das Sereias. Elas, em sua ilha, cantavam,
atraindo os navegantes pelo encantamento de suas vozes. Ulisses conseguiu
escapar pedindo que o amarrassem ao mastro de seu navio e tapando com
cera os ouvidos da tripulação. A voz é o instrumento da profecia, no sentido
em que ela a faz2.

Há estudos sérios em desenvolvimento sobre as fronteiras, às vezes


estreitas, às vezes espessas, entre escritura, oralidade e corporalidade na
contação de histórias. Pesquisas dão conta de detectar os preconceitos de
muitos em defender o prevalecimento do discurso registrado (para eles,
mais seguro, edificante, soberano, imperecível, “relativamente morto”,
apolíneo) sobre o discurso performatizado (perecível, leviano porque vai
embora facilmente, “efetivamente vivo”, dionisíaco). Apregoam haver uma
espécie de médium que se incumbe de iluminar os registros escritos sem
extirpar deles seu caráter hegemônico. Implica dizer que uma mensagem
oral não se reduz a seu conteúdo manifesto, mas comporta outro, latente,
emanado da inspiração de seu progenitor. A questão é dúbia. Alguns
escritores amam e outros desdenham os emissores que outorgam vida
emocional presente às suas dádivas.
Inúmeras são as posições que se articulam nesse contexto: alguns
julgam que o imaginário caligrafado, em vez de engolir qualquer
procedimento de verbalização (mesmo a que lhe dê conta), garante-o e, por
conseguinte, plenipotencializa-se com ele, encharcando-se de fogosidade,
pois as letras são o fogo de origem, o fogo primordial; outros entendem
que a escritura parece esvaziar-se quando performatizada pelos
contadores de histórias; e determinados estudiosos pensam ser a voz a
responsável por levar o texto a espargir-se, com a possibilidade de tornar-
se sublime depois de vivificado (ator). Assim, matrizes impressas se
rearticulam em matizes “voco-musicais”:

[…] determinado registro escrito destina-se ao consumo visual (em princípio


solitário e silencioso) pela leitura; outro se destina à audição (e, portanto, à
percepção de efeitos sonoros, estando por isso aberto ao consumo coletivo). O
primeiro apresenta-se como um objeto – folha de papel, livro, materialidade
tátil. O segundo, como uma imaterialidade – esvoaçante. Se considerarmos –
como a mim parece correto – que é no momento da comunicação que uma
obra atinge sua plenitude, o máximo de sua perfeição, a forma que nos revela
sua natureza mais íntima e a intenção original de seu autor (não
necessariamente consciente, mas determinante), se é assim, dizíamos, temos
então duas obras completamente diferentes: o texto lido é um, o mesmo texto
interpretado é outro. […] Meio século após a morte de Dante, a Divina comédia,
obra feita para ser lida, era recitada pelo povo de Florença, que cantava suas
“terzines” pelas ruas da cidade. Seria a mesma obra? Claro que não!3

É inegável o valor da textualidade escrita; aliás, cremos, é a gênese


do trabalho performático para a grande sequencialidade; no entanto, outro
poder se impõe, ameaçando encapsular o do contista: a interpretação. Os
contadores de histórias são titãs ceifando o que vem pela frente, em busca
constante pela vitória apoteótica! Tamanha é a força da voz, do corpo, da
expressão do evanescente (intérprete) sobre o perpétuo (redação original).
Entre os deveres dessa valentia, está o de imprimir emoção a frases,
orações, períodos enormes, sempre coerentes e contextualizados,
transformando-os em focos de luz.
A arte da contação de histórias, que, por natureza, contempla
também a musicalidade, a gestualidade, a oralidade, a poética dos sons,
consiste em potencializar animicamente a escritura sagrada e, muitas
vezes, consagrada do literato. Este, contundentemente, sabe que as
palavras e as onomatopeias, ordenadas de sorte a erguerem uma trama
con litante, são concedidas e passarão por tratamentos de mobilidade nem
sempre coincidentes com os do texto e contarão com uma visceralidade
própria e com uma “demência” no sentido de virar do avesso as ideias e
peregrinar rumo à fascinação. Por mais que se mantenha fidelidade ao
conteúdo originário ou à primeiridade da ideia, certo é que à literatura
dramática, em qualquer gênero, cabe o texto “deitado, surdo, ausente”,
enquanto ao contador de histórias cabe o mesmo texto “erguido, sonoro,
presente” e, nessa transposição, algumas alterações são, absolutamente,
inevitáveis.
As diacronias, as sincronias e até mesmo as anacronias entre o ato
solitário do escrever e o cinetismo público do expressar – volatilidade
performática – são tão saborosas quanto dilemáticas tanto para um como
para o outro sujeito criador. São impostos entre ambos tempos, espaços,
pesos, medidas e conceitos de valor ora convergentes, ora divergentes, mas
sempre con litantes. Plasmamo-nos sobre o que é mais vivo e o que é
menos vivo; o que é mais morto e o que é menos morto; o que é mais belo e
o que é menos belo; o que é mais feio e o que é menos feio; o que é mais
grotesco e o que é menos grotesco; o que é mais sutil e o que é menos sutil.
Sobre o que desejamos re letir com essas premissas? Na verdade, sobre a
personalidade ficcional: o que pode ser espantoso, inusitado, mágico,
adequado na grafia cravada pode não o ser para o mobilizador da
corporalidade e do tagarelar infixáveis do intérprete.
A voz é, dentre outros fatores, talvez o mais importante instrumento
desse artista; portanto, encerramos retornando aos sábios postulados de
Zumthor, quando atribui aos sons vocais valores sem conta, adjetivando-os
como quem quer sentir por dentro seu vigor persuasivo, sua virulência
positiva, seu poder de coerção, seus eletrodos in lamados. Na expressão
oral conquistada com a volúpia da voz, centraliza-se para ele algo em torno
de um poder sedutor epifânico, de uma pluralidade de entendimentos
responsável pela reoperacionalização de um mundo de significações.
Inspirando-nos no antropólogo, afirmamos ser a voz sensualidade,
eroticidade, “corpo de peixe e cintura fina – o cantar prostituto das
Sereias”. Ele admite ainda que, entre idas e vindas, volteios e mais volteios,
cruzamentos e entrecruzamentos, jamais a história conheceu uma era tão
consagrada à liquidez das artes e à performance como agora. Por quê? O
fenômeno da globalização e da espetacularização na sociedade líquida
contemporânea trouxe de presente à humanidade, mais forte do que em
outros tempos, a rapidez, a luidez, a perecibilidade, a suscetibilidade a
imediatismos. O presenteado mais forte desse novelo é o performer. O gesto
dos trovadores acompanha, mesmo com a inserção apriorística do
pensamento, as posturas aceleradas plasmadas no DNA do homem de hoje:

[…] tudo se passa como se, episódio de um con lito milenar, participássemos
hodiernamente de uma volta à força da oralidade provocada pela in lação do
impresso, ao findar o século XIX. […] Na sobreprodução do escrito, a função
deste perde toda a evidência, enquanto a voz encontra a sua. De maneira
selvagem, na busca aleatória de sua plenitude biológica. Depois de uma
dezena de anos, um dos pontos de convergência das ciências humanas, cada
vez mais apercebido como tal, não é outro senão a personalidade da voz4.

O discurso crítico conclusivo de Zumthor é de uma coerência


fabulosa. Ele prognostica, desde algum tempo, que o textual tem caráter de
permanência, tradição e conservação, enquanto o oral, o de multiplicação,
expansão e transformação, para melhor ou para pior. O discurso
registrado se basta, direcionando-se a preservar. A oralidade apela, com
tendência a dissipar. Esta é visivelmente cinestésica em plenitude, a outra
é invisivelmente cinestésica em sutileza.
A técnica em forma de repetição consciente e contínua leva à
identificação do sujeito (contador) com o objeto (história contada), não à
simbiose ou à osmose, o que seria nocivo. Assim, o imperador das palavras
faladas e dos sons vocálicos, como um romeiro que tem onde chegar
porque algo tem a dizer, poderá fazer caminhadas ousadas, lindamente
rebeldes, rumo a uma inteireza interpretativa e à poesia de uma
personagem que lhe cabe hiperbolizar em clareza narrativa.
Compreendem-se as emoções vibrantes, cheias de prismas, porém
verossímeis, se construídas dialeticamente e não idealisticamente. Dessa
maneira, o intérprete, notabilizado em qualidades, segue sua travessia ao
encontro da “melopeia aristotélica”, que se assemelha ao “fenômeno
samadhi”, ao “estado de graça”, ao “êxtase religioso”.

1 Marlene Fortuna, A performance da oralidade teatral, São Paulo: Annablume,


2000, p. 76.
2 Paul Zumthor, A letra e a voz, São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 34.
3 Ibidem, p. 91.
4 Ibidem, p. 111.
Literatura ouvida: a contação de
histórias como prática difusora do literário
TAIZA MARA RAUEN MORAES

Quando criança, eu era adicto à literatura, não podia ficar sem ler. A minha conexão
com a vida acontecia via literatura. Eu lia para aprender a viver, para saber o que
fazer. É claro que isso provoca muitas desilusões, muitos choques, porque a vida não é
literatura. Assim, quando comecei a escrever, foi porque lia. Outra razão é que meus
pais foram grandes contadores de histórias. Numa noite quente como esta, as pessoas do
meu bairro se reuniam para contar histórias, o que, desde muito cedo, se incorporou em
mim, passou a ser uma coisa que eu também queria fazer, só que à minha maneira,
escrevendo. [MOACYR SCLIAR]

PREÂMBULO

O fenômeno literário não está estritamente associado à escrita, mas


a outro suporte, à oralidade, a qual precede o surgimento da escrita.
Pressupõe-se que a arte da palavra fosse ligada inicialmente a um exercício
performático antes mesmo de ser corporificada na escrita e em um suporte
rígido, a pedra. Diferentemente da escrita, que é situada historicamente, a
prática de contar histórias é efêmera, se esvai no tempo, daí a
impossibilidade de datar seu surgimento. Porém, a hipótese de que essa
prática anteceda à escrita é aceita.
Contistas e contadores de histórias exercem práticas relativamente
diferentes, pois os recursos utilizados pelo escritor são centralizados na
palavra, e os do performer, no jogo entre palavra e corpo – embora as
relações entre a literatura e a performance sejam tênues, já que a escrita é
um gesto corpóreo (como indica a epígrafe de Moacyr Scliar, que se
autodenominava um contador de histórias por meio dela). A “matéria” do
escritor é a palavra escrita, e sua tarefa é estetizar a palavra; já a “escritura”
ou “matéria” do performer é seu corpo, sua voz e a audiência, e esses
elementos devem ser elaborados esteticamente e associados à palavra.
Ao fixar histórias/estórias e construir heróis positivos e negativos, a
literatura redimensiona realidades, propiciando ao leitor/ouvinte revisitar
as experiências vividas e questionar os impedimentos e as proibições
culturalmente demarcadas. As histórias/estórias estimulam a imaginação
do leitor e alimentam imagens mentais e representações que
simultaneamente se aproximam e se distanciam da realidade, permitindo
que ele se torne criador e participe do jogo de inventar e viver atmosferas
que se aproximam da realidade e, assim, constituam verdades
experimentadas.
Contar histórias é transmitir ao leitor ouvinte um texto autônomo
que é interpretado como outro sistema de referência, o que propicia
múltiplas experiências interpretativas, pois cada leitor aciona seus valores
culturais para dar sentido ao texto lido. Essa prática alarga horizontes,
pois o leitor ouvinte capta do texto lido traços culturais que atravessaram o
tempo e o espaço, abrindo assim perspectivas para o novo. Portanto, a
leitura agrega referências e, segundo Jean Foucambert, “ler significa
construir uma resposta que integra parte das novas informações ao que já
se é”1.
Assim, ao fazer circular o texto literário, o contador de histórias
impulsiona a percepção de valores. No entanto, uma abordagem semiótica
da leitura demonstra que a recepção leitora é parcialmente programada
pelo texto. Umberto Eco2 considera a leitura “uma transação difícil entre a
competência do leitor (o conhecimento de mundo do leitor) e o tipo de
competência que um dado texto postula a fim de ser lido de forma
econômica”. Dessa forma, o texto é (re)apropriado em diferentes contextos
culturais ou pessoais.

A LITERATURA AUTORAL E ORAL NAS PERFORMANCES DOS CONTADORES

Não há quem não possua, entre suas aquisições da infância, a riqueza das tradições,
recebidas por via oral. Elas precederam os livros, e muitas vezes o substituíram.
[CECÍLIA MEIRELES]

O contador de histórias é um intérprete em busca de apropriações


de sentido dos textos autorais a serem transmitidos/disseminados para
o(s) ouvinte(s), gerando novos significados interpretativos que só são
possíveis em uma situação de oralidade. Segundo Paul Zumthor, essa
situação ativa os sentidos – visão, audição, tato, olfato, gustação –, bem
como a intelecção e a emoção, mesclando-os em um jogo entre o “emissor
da voz e o receptor auditivo, no seio de um complexo sociológico único”3.
A performance é integrada ao ato de ler na prática de “contação de
‘estória’”, que se caracteriza como um exercício de postura corporal, ritmo
respiratório e imaginação em busca da promoção do prazer, pois aciona “a
presença corporal do ouvinte e do intérprete (…), carregada de poderes
sensoriais, simultaneamente em vigília”4. Assim, esse exercício se
distancia da leitura solitária, com ênfase no visual, e se abre para a
comunicação coletiva, pois promove reações diversas nos ouvintes/leitores
e gera uma situação de enunciação na qual o discurso é assumido como
um acontecimento que propicia vários níveis de apropriação. O contador
interpreta sinais da realidade exterior e fornece-as ao ouvinte, propiciando
opiniões interpretativas diversas.
Zumthor, ao recuperar seis teses de I. Fonagy, D. Vasse e A. Tomatis
sobre a voz, sinaliza aspectos a serem (re)avaliados nos estudos sobre a
leitura: (1) o lugar simbólico que ela ocupa, pelo fato de não poder ser
definida “por uma relação, uma distância, uma articulação entre o sujeito e
o objeto, entre o objeto e o outro. A voz é, pois, inobjetivável”; (2) “a voz,
quando a percebemos, estabelece ou restabelece uma relação de alteridade,
que funda a palavra do sujeito”; (3) “todo objeto adquire uma dimensão
simbólica quando é vocalizado”; (4) “a voz é uma subversão ou uma ruptura
da clausura do corpo. Mas ela atravessa o limite do corpo sem rompê-lo; ela
significa o lugar de um sujeito que não se reduz à localização pessoal”; (5)
“a voz não é especular; a voz não tem espelho. Narciso se vê na fonte. Se ele
ouve sua voz, isso não é absolutamente um re lexo, mas a própria
realidade”; (6) “escutar o outro é ouvir, no silêncio de si mesmo, a sua voz
que vem de outra parte”5. Essas teses propiciam a associação da voz com a
linguagem, desde que essa percepção seja compreendida como poética. A
articulação sonora gera uma experiência poética que, por sua vez, promove
espontaneamente efeitos de sentidos acoplando-se a elementos
extralinguísticos que emergem dos sons e são geradores de novas
significações para a realidade posta.
Em seu livro Uma história da leitura, Manguel6, ao abordar a leitura
ouvida, relata que a qualidade dos charutos cubanos está associada a uma
consciência do trabalho imbricada a uma consciência política dos
trabalhadores da indústria do tabaco. Em 1866, a fábrica de charutos El
Fígaro pôs em prática uma política de leitura, demarcada pela escolha
entre os operários de um lector oficial com a função de promover leituras
públicas entre os trabalhadores. Essa ação desencadeou práticas similares
em outras empresas produtoras de charutos, bem como um avanço
significativo da consciência do trabalho e, simultaneamente, de uma
consciência política entre esses trabalhadores.
No mesmo ano, Manguel sinaliza que o governo cubano instituiu
um decreto que visava impedir a leitura de livros e jornais e discussões em
fábricas de tabaco, tachando-as de “subversivas”, ou seja, o governo criou
barreiras legais para proibir a prática da leitura coletiva, coibindo a
circulação de valores e o subsequente avanço de espaços democráticos. No
entanto, a prática da leitura já estava impregnada no grupo e a legislação
não rompeu com o hábito instituído.
A leitura oral compreendida como uma experiência estética é um
espaço de libertação de algo e para algo, pois o leitor inicialmente se
distancia de sua realidade para absorver o universo ficcional e, em um
segundo momento, retorna ao real alimentado pela ficção. Daí a
significação social do contador de estórias/histórias, que, ao levar o texto
para os leitores partindo de performances leitoras, comunica suas ideias e
abre fissuras no conhecimento estabelecido ao afetar o que é conhecido e
intervir na ordem do desejo do ouvinte.
O texto transmitido oralmente instaura o poético em uma ação
performática, pois cria uma atmosfera própria no espaço e no tempo e
abre-se para as sensações cromáticas, auditivas e táteis, produzindo
efeitos geradores de prazer. A leitura em voz alta é coletiva, mas advém de
um ato privado, pois decorre de uma seleção de textos socialmente
aceitáveis para o leitor e para o seu público.
A prática da contação de estórias/histórias ultrapassa civilizações e
períodos temporais. As civilizações africanas preservam suas memórias na
e pela literatura ouvida, propagada pela ação dos griôs ou griotes7, que
contam a tradição pela força da palavra e do gesto. Em Homens da África8,
Ahmadou Kourouma explicita as múltiplas funções do griô: guardar na
memória a genealogia dos clãs e suas histórias e atuar como uma espécie
de arauto, que anuncia as notícias de interesse geral. O griô é contador de
estórias/histórias, poeta, músico e centralizador das reuniões
comunitárias, que agregam os indivíduos para recuperar e renovar as
tradições de povos que detêm a cultura fundada na oralidade. Esses
aspectos são enfatizados por Hampâté Bâ9 ao demarcar que, na sociedade
africana, prevalece o diálogo entre indivíduos e entre grupos étnicos,
cabendo aos griôs fazer pontes comunicativas. Por isso, eles são
considerados agentes culturais, transmissores de informações.
Clavert, ao pesquisar aspectos culturais do povo wongo10, identifica
que esse povo aprimora o uso da linguagem imitando as estruturas
linguísticas difundidas pelos griôs, pois eles “servem-se das estruturas
fascinantes dos contos para ensinar as estruturas autênticas da língua, de
maneira a orientar também a utilidade das palavras na comunidade com
eficácia, precisão e persuasão”11.
Já Pegoretti, ao transportar para a realidade brasileira a ideia do griô
em sua pesquisa A magia das narrativas africanas: o professor como griô
contemporâneo, opera analogias entre o professor contador de histórias e o
griô. Ela observa que o professor, ao assumir o papel de contador de
estórias/histórias, passa a ter uma ação social, transformando seu
exercício pedagógico em um trabalho de valorização cultural que
automaticamente reverbera na comunidade ao entender que “a mediação
operada pelo professor entre a ‘realidade’ e a ‘palavra inventada’ das
histórias perpetua saberes das gerações passadas e da nossa própria
geração com sensibilidade”12. Assim, o professor contador de
estórias/histórias se torna porta-voz da ancestralidade e amplia sua ação
de transmissor de valores culturais circulantes em uma experiência de
reconstruções de olhares sobre dada realidade transmitida oralmente.
Segundo Ariano Suassuana, a literatura de cordel ou Romanceiro
Popular Nordestino na tradição brasileira, na trilha medieval ibérica,
reúne o verbal, o visual e o gravador/pintor. O poeta cordelista imbrica as
linguagens, além de agregar “três setores normalmente separados: o
literário, teatral e poético dos versos e narrativas; o das artes plásticas em
associação com as xilogravuras da capa do folheto; o musical dos cantos e
músicas que acompanham a leitura e a recitação do texto”13. Assim, a
tradição espanhola do cordel e a francesa do colportage14 sinalizam a
passagem do oral para o escrito e fixam um modo de narrar no qual, para
Walter Benjamin, “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência dos ouvintes”15.
Esse movimento é seguido por Suassuana no Romance d’A Pedra do
Reino e o príncipe do sangue do vai e volta16, que integra a magia poética do
romanceiro, as xilogravuras e a música sertaneja. Nesse exercício poético,
a complementaridade artística da poesia/música/gravura intercambia
relações e promove a valorização do impresso e do oral, bem como inventa
mitos de uma tradição brasileira constituída pela cordialidade e pela
mestiçagem, em um espaço geográfico idealizado que resiste às culturas
importadas.
A transmissão de histórias de modo coletivo (re)alimenta tradições e
preserva memórias do corpo pela variação da voz e pelos movimentos
performáticos executados pelo contador, instaurando, dessa forma, o
poder encantatório da palavra, que se abre para a diversidade. A circulação
de valores promovida pela literatura não torna o homem melhor nem pior,
mas propicia a lexibilidade do olhar para a pluralidade cultural de modo a
estreitar as fronteiras, pois os mitos trazem a ideia da metamorfose, da
passagem de estado humano para animal, vegetal e mineral ou o inverso e,
assim, induzem os leitores/ouvintes à percepção de que a realidade é
multifacetada e que o real é uma construção que envolve o imaginado e o
experienciado.
O contador de estórias/histórias é aquele que trilha um caminho
dirigido a um projeto de sustentabilidade no qual os saberes deixam de ser
compartimentados e se tornam complementares, de modo a instaurar,
conforme diz Morin, uma “convivialidade tanto com nossas ideias como
com nossos mitos”17. Ouvir alguém ler em voz alta priva o leitor da
liberdade da escolha do ritmo e de retornar às passagens textuais julgadas
significativas, mas, em contrapartida, esse leitor ouvinte faz outros pactos
culturais, pois, ao conhecer os problemas do mundo, abre perspectivas
para reformular seus pontos de vista.
A literatura, seja ela oral ou autoral, alimenta a prática de “contação
de histórias”, todavia, constata-se a tendência contemporânea de
utilização de literatura autoral nas dinâmicas dos contadores de histórias,
recorrência que, por sua vez, estimula a elaboração de algumas questões:
de que forma o ato performático do contador recodifica os traços autorais?
No caso da literatura com ilustrações, como o contador se apropria
mimeticamente das imagens?
A contação de histórias autorais exige rigor em relação à construção
textual – com a memorização de elementos gramaticais e textuais de modo
geral, por exemplo –, diferentemente das histórias populares, que se
modificam a cada situação e mantêm fixa apenas a estrutura do enredo.
Em decorrência dos questionamentos postos, o ato de contar histórias está
associado à seleção textual e à apropriação da literatura oral ou escrita.
Portanto, a leitura literária em voz alta replica valores autorais enquanto a
“contação de histórias” recupera a tradição oral como testemunho da
coletividade.
Assim, em uma percepção dialética entre leitura e escrita, a leitura é
anterior à escrita, já que esta cifra os mundos com signos e
simultaneamente indica que há uma complexidade que extrapola a palavra
dita, pois, ao desvelar certos mundos, recobre outros que, no ato da escuta,
são perceptíveis. Na condição de narrador oral, o contador de histórias
projeta pela voz uma experiência de linguagem que (re)vive histórias
criadas e imaginadas.

1 Jean Foucambert, A leitura em questão, Porto Alegre: Artes Médicas, 1994, p. 5.


2 Umberto Eco, Interpretação e superinterpretação, São Paulo: Martins Fontes,
2005, p. 80.
3 Paul Zumthor, Performance, recepção, leitura, São Paulo: Educ, 2000, pp. 78-80.
4 Ibidem, p. 80.
5 Ibidem, pp. 97-8.
6 Alberto Manguel, Uma história da leitura, São Paulo: Companhia da Letras, 1997,
pp. 131-4.
7 Pessoas que têm por ofício guardar e transmitir oralmente a memória cultural
comunitária – crenças, costumes, lendas etc. –, recorrendo a memorizações.
Os homens são identificados como griôs, e as mulheres, como griotes. Cf.
Marina de Mello e Souza, África e Brasil africano, São Paulo: Ática, 2006.
8 Ahmadou Kourouma, Homens da África, São Paulo: SM, 2009.
9 Amadou Hampâté Bâ, “A tradição viva”, in: Josef Ki-Zerbo (org.), História Geral
da África: metodologia e pré-história da África, São Paulo: Unesco, 1982, v. I, pp.
167-212. Esse ensaio consta nas páginas 155-188 desta coletânea.
10 O wongo é um grupo étnico bantu que habita a região do Congo, no continente
africano.
11 Manisa Salambote Clavert, Da densa loresta onde menino entrei homem saí: rito
iromb na formação do indíviduo wongo, 153f., dissertação (mestrado em
psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009, p. 95.
12 Sonia Regina Reis Pegoretti, A magia das narrativas africanas: o professor como
griô contemporâneo, 132f., dissertação (mestrado em patrimônio cultural e
sociedade) – Universidade da Região de Joinville, Joinville, 2011, p. 21.
13 Cf. Ligia Vassalo, “O grande teatro do mundo”, Cadernos de Literatura, Instituto
Moreira Salles, São Paulo: 2000, n. 10, p. 148.
14 Cf. Jesús Martín-Barbero, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia, Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, pp. 148-9.
15 Walter Benjamin, “O narrador”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 201.
16 Ariano Suassuna, Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai e volta,
Rio de Janeiro: José Olympio, 2007.
17 Edgar Morin, Os sete saberes necessários à educação do futuro, São Paulo/Brasília:
Cortez/Unesco, 2000, p. 32.
A ilustração e a narrativa visual nos livros para a
infância1
MARIA LÚCIA COSTA RODRIGUES

A noção de infância como vemos hoje demorou a ser percebida e aceita.


Somente a partir do século XVII começaram a aparecer as primeiras
preocupações com a literatura infantil, que se consolidou apenas no século
XVIII. Um dos fatores para essa desatenção era a grande taxa de
mortalidade infantil, quadro que mudou gradativamente com a melhoria
nas condições de vida da população nos espaços urbanos. A percepção de
que essa faixa etária precisava de cuidados na formação de seu intelecto
gerou a necessidade de elaborar materiais que agregassem valor à cultura
da infância: livros de histórias dirigidas aos pequenos e com personagens
condizentes com eles eram mais do que bem-vindos. Mas, nesse início, a
imagem, essencial nos livros para crianças, não assumia seu papel
fundamental como linguagem próxima do entendimento delas – embora a
história da arte nos traga a importância da linguagem visual para a
compreensão das coisas do homem e da natureza por meio do irreal e
mítico. Pouco se deu valor a ela na literatura infantil como instrumento
eficaz de assimilação do texto verbal e potencializador de significações.
Falar de história da literatura infantil sem abranger as duas
linguagens que a compõem (verbal e visual) é, no mínimo, um equívoco. A
imagem é um texto visual promotor de valores, culturas distintas e
conhecimento. Portanto, é imprescindível abordar seu papel em qualquer
estudo histórico e analítico sobre o gênero.

A ILUSTRAÇÃO EM LIVROS INFANTIS

Primeiras obras europeias a circularem na mão de algumas crianças,


mesmo não sendo dirigidas somente a elas, os chapbooks2 (Figura 1) eram
livretos de impressão artesanal que traziam na capa uma pequena
ilustração xilogravada, disposta com o título e as informações do editor,
tudo dentro de uma moldura.
Do século XVI ao século XIX, grande parte dos livros que traziam as
fábulas e os contos para crianças tinha por base os temas moralistas,
característica que permanece até hoje em muitos livros destinados às
crianças, o que acaba em muitos casos por tolher a imaginação criadora e
entediá-las com lições explícitas de boa conduta. Contudo, Walter
Benjamin, ao comentar as primeiras publicações para crianças na
Alemanha do século XVIII, ressalta que “uma coisa salva o interesse mesmo
das obras mais antiquadas e tendenciosas dessa época: a ilustração”. Para
ele, a ilustração escapou “ao controle das teorias filantrópicas, e artistas e
crianças se entenderam, passando por cima dos pedagogos”3. Essa
observação enfatiza a liberdade que o ilustrador tem para criar suas
imagens.
Partindo do pressuposto de que pouca importância se deu à função
da ilustração no texto, o lugar dela em relação à infância determina,
todavia, uma atitude cuidadosa na criação das imagens, o que nem sempre
foi visto. Os estereótipos imagéticos circulam livremente nas mãos dos
pequenos sem critério nem preocupação com a formação do olhar sensível
e livre de preconceitos.
Muitas vezes, o ilustrador da capa era diferente do ilustrador da
história do livro. Não havia a preocupação com a unidade na imagem.
Ademais, o processo de impressão da imagem tinha de ser feito por um
gravador (gravurista), que passava o desenho original para uma prancha
de pedra (litogravura), para uma chapa de metal por meio de incisões e
ácidos (água-forte) ou ainda para uma prancha de madeira com entalhos
(xilogravura). Essas eram as matrizes entintadas e impressas
manualmente, como um carimbo no papel. Somente no fim do século XIX
desenvolveu-se um método mecânico de reprodução da imagem original
que dispensou a etapa descrita.
A reprodução mecânica em cores surgiu em 1837, com a utilização da
cromolitografia4, e o norte-americano John Henry Bu ford aperfeiçoou o
processo conseguindo a impressão em até cinco cores. O aparecimento
dessas novas ferramentas in luenciou o crescimento das ilustrações nos
livros infantis e também terminou com o extravio dos originais do
ilustrador, que planejava os desenhos de forma manual e os transferia para
diferentes gravadores que, com diversas aptidões, acabavam por
pasteurizar a expressão original do artista5.
Em muitos casos, as ilustrações internas do livro representam cenas
de narração, ou seja, imagens de pessoas narrando a história para grupos
de ouvintes (Figura 2), o que era uma prática muito comum. A oralidade
nas histórias era uma característica marcante nos primeiros séculos da
literatura infantil e continua até hoje. Um exemplo desse tipo de cena é a
publicação de Contos de Mamãe Gansa, de Charles Perrault. A obra traz uma
gravura baseada no original manuscrito do autor. No século XIX, a
ilustração de cenas de narração foi substituída por aquelas de caráter
narrativo, que se baseavam no texto verbal6.
A arte de ilustrar está muito ligada à arte visual em geral, e no século
XIX um movimento veio in luenciar de modo significativo esse contexto: o
simbolismo. Ele se encontrava na pintura e na literatura (poesia
simbolista), e a ilustração buscava sentido em seu conceito. Oliveira
explica a composição da poesia simbolista:

Seus poetas procuravam expressar um mundo de ambiguidades, dúvidas e


fugacidades. Profundamente metafórica e abstrata, a poesia simbolista
renunciava a qualquer procura de representação por meio de formas físicas.
Em outras palavras, um primado da evocação sobre os processos figurativos,
narrativos e descritivos, elementos básicos da ilustração7.

Embora os poetas simbolistas repudiassem a ilustração de seus


poemas, esses conceitos migraram para a pintura e, pautando-se em tal
fugacidade e ambiguidade de sentido, o movimento simbolista produziu
imagens “tangíveis e profundamente simbólicas”8. Esses pintores e muitos
outros oriundos do referido movimento vieram in luenciar
expressivamente os ilustradores, sobretudo aqueles da literatura
fantástica, com seus seres mágicos e irreais presentes nas fábulas e nos
contos que povoaram o imaginário da quase totalidade das culturas. Os
contos de fadas foram publicados com ilustrações diferenciadas. Por isso,
certos autores até os registram como um gênero de ilustração, por ter
características específicas.
Ao considerar a variedade de temas e formas textuais do universo
literário infantil, pressupõe-se que a ilustração também tenha seguido essa
diversidade formal. Talvez a ilustração para contos de fadas, por exemplo,
seja uma das mais esclarecedoras da diferenciação de uma forma de
ilustração para outra, principalmente pela criação de seres fantásticos em
mundos ilusórios que seguem até hoje nos livros, nos jogos eletrônicos e
nas produções audiovisuais, o que é “uma grande revivescência de um
medievalismo que se origina nas noites do tempo”9.
Por um longo período, a ilustração assumiu o papel de reproduzir de
maneira fiel o texto verbal. As imagens construídas ilustravam passagens
culminantes da história verbal, havendo, portanto, uma repetição por meio
de outra linguagem do texto verbal que se caracteriza, principalmente,
pela linearidade espaço-tempo. Esse fator é muito importante para
entender o processo de mudança ocorrido nas ilustrações através de sua
história.
A necessidade de enriquecer as histórias verbais com uma
linguagem imagética que acrescentasse e não repetisse o texto verbal fez
com que os ilustradores buscassem novos recursos de produção e
composição, alterando os dois pontos típicos da narrativa: a linearidade e a
espacialidade. Tais especificidades sofrem um salto quando as imagens
construídas para o texto verbal aparecem em óptica diferente, isto é, é
mudada sua posição no texto, a construção da composição, utilizando-se a
perspectiva aérea e não a frontal10. Isso resulta na valorização do signo
visual porque seus elementos principais (a cor, a linha e a forma) ganham
vida. A imagem passa a ter vida própria, afinal dialoga com o texto verbal e
acrescenta e abre possibilidades de leitura. Nesse sentido, Lins comenta:

Ilustração extremamente literal ou puramente ornamental e decorativa não


representa mais a diversidade, a pluralidade e a riqueza de informações
visuais a que as crianças de hoje têm acesso. Informações fragmentadas pelo
controle remoto e pela velocidade com que são transmitidas, superpostas e
tendo as mais variadas mídias como suporte. Não se trata de valorizar os
modismos. O conhecimento e a atualização constantes, quando calcados em
um olhar atento e crítico, impedem que as modas sejam seguidas
cegamente11.

Figura 1: Chapbook do conto “Robin Hood”


Figura 2: Gravura com cena de narração para a versão francesa do Contos de
Mamãe Gansa.

Para esse autor, mais importante que os modismos que acabam por
pasteurizar e estereotipar as produções para crianças é manter-se
atualizado quanto às inovações da área, mas sem se deixar seduzir por
elas. É preciso um olhar crítico e sensível, e essa percepção será mais
claramente desenvolvida se os ilustradores souberem dos estudos
realizados na área da imagem, que hoje se multiplicam pelo mundo.

O DESENVOLVIMENTO DA ILUSTRAÇÃO NO LIVRO INFANTIL BRASILEIRO

Os livros destinados às crianças surgiram pontualmente no Brasil no


final do século XIX. A ilustração também já era presente com ilustradores
que viriam a fazer parte das produções posteriormente destinadas a esse
público infantil em decorrência de suas imagens se distinguirem pelo
humor e pela charge, embora fossem categorias ilustrativas diferentes
daquelas criadas para livros infantis.
Um caso muito particular para a história da ilustração no Brasil é o
do ilustrador Angelo Agostini. Conforme consta no livro de ilustradores
brasileiros organizado pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil
(FNLIJ)12, em 1876 Agostini fundou a Revista Illustrada (Figura 3),
considerada a mais importante manifestação humorística do século XX no
Brasil. Em 1869, Agostini criou também As aventuras de Nhô-Quim e Zé
Caipora, as primeiras histórias em quadrinhos nacionais (Figura 4). Esses
dois personagens se caracterizam pela originalidade, são essencialmente
brasileiros e, por isso, relevantes fontes históricas para a pesquisa de
costumes e valores sociais.
Com a criação da Biblioteca Infantil pela Companhia
Melhoramentos, em 1915, traduziram-se muitos contos europeus, e as
ilustrações para esses contos foram produzidas por ilustradores do país.
Entre eles, os mais conhecidos são Calixto Cordeiro, Henrique Cavalleiro e
Julião Machado. Entre os exemplos desses trabalhos, estão as ilustrações
de Francisco Richter para a primeira edição em cores de O patinho feio, de
Andersen13, de 1915.
Os livros de Monteiro Lobato, que têm sido reeditados até os nossos
dias, constituem um caso à parte na literatura infantil brasileira pela
importância que o autor teve no desenvolvimento do gênero. Muitos foram
os ilustradores que se debruçaram sobre sua obra, materializando
visualmente seus personagens Narizinho, Pedrinho, Emília, Visconde de
Sabugosa, Tia Anastácia, Dona Benta e toda a turma do sítio. Quem abriu
essa trajetória foi Voltolino (Figura 5), ilustrador de algumas obras de
Lobato em suas primeiras edições. Belmonte, Villin, Rodolpho, Hirsh,
Odiléia Toscano, André Le Blanc, Jurandir Ubirajara Campos, Paulo
Ernesto Nesti, Manoel Victor Filho e Murilo Marques Mont14 foram outros
ilustradores que, nas décadas seguintes, ilustraram as obras do escritor.
Outras produções para crianças ficaram conhecidas no país por
muitos anos, como a primeira revista especializada em temas infantis, O
Tico-Tico, que apresentava quadrinhos em cores de pequenas histórias. Um
dos ilustradores que se tornaram referência da revista carioca foi Luiz Sá.
Ele criou personagens memoráveis, como Reco-Reco, Bolão e Azeitona,
sucesso nas décadas de 1930 e 1940.

Figura 3: Revista Illustrada, de Angelo Agostini, Rio de Janeiro, n. 1, 1876.


Técnica utilizada: pena, crayon e nanquim.
Figura 4: As aventuras de Nhô-Quim, de Angelo Agostini.

Figura 5: A menina do narizinho arrebitado, 1920, ilustrações de Voltolino.


Nos anos 1970, a ilustração teve um papel importante na literatura.
Ziraldo, por exemplo, lançou Flicts15 – um convite ao leitor para juntar a
linguagem verbal com a visual em um projeto gráfico inovador. Flicts conta
a história de uma cor muito rara e triste à procura de seu lugar no mundo.
Luís Camargo16 enfatiza que a obra está entre a narrativa visual – a história
é contada em imagens – e o livro ilustrado, pois a imagem ilustra um texto
verbal. O próprio Camargo, em uma revisitação ao conto “João e Maria”,
dos Irmãos Grimm, fez uso desse diálogo entre as linguagens. Em seu livro
Bruxas, longe daqui!17, cujos textos verbal e visual são de sua autoria, a
imagem narrativa tem autonomia sobre a narrativa verbal a ponto de
assumir por completo a narração, sobretudo na cena final (Figura 6).
Sueli Cagneti discute “a necessidade de ler as imagens que
acompanham o texto”:

Nosso mundo fala muito por meio delas e é preciso saber interpretá-las. As
ilustrações […] complementam o texto verbal, dialogam com ele. Muitas são as
vezes em que imagem substitui o texto também. Na verdade, os bons livros,
principalmente os infantis de hoje em dia, contam suas histórias por meio das
duas linguagens: a verbal e a visual18.

Essa afirmação é visível em Bruxas, longe daqui!19. Há um diálogo


entre as linguagens, começando pela palavra, que é completada pela
imagem. Um exemplo desse discurso aparece no momento em que o
menino percebe que precisa fugir – sabemos de sua intenção porque a
imagem mostra uma gaveta aberta, com uma chave aparecendo nela
(Figura 7).
No decorrer das últimas décadas, a imagem vem ganhando cada vez
mais espaço na literatura infantil. Uma importante mudança surgiu na
forma de construção e de disposição das ilustrações dos livros nos últimos
anos: os ilustradores passaram a fazer todo o projeto gráfico da obra, desde
a escolha dos tipos até sua localização nas páginas e a disposição das
ilustrações. Essa autonomia gerou uma unidade muito maior do texto com
as ilustrações, e muitas vezes o próprio formato do texto e a posição dele
formam uma imagem. Um exemplo significativo é Chiquita Bacana e as
outras pequetitas20 (Figura 8), com texto e ilustrações de Angela Lago. Nele,
o texto do livro aparece, muitas vezes, inserido na ilustração, adotando o
caráter representativo de um livro de páginas abertas, de maneira a revelar
o texto, isto é, a própria história contada pela protagonista. As referidas
mudanças foram dando ao ilustrador a autonomia de trabalho quanto ao
objeto livro como um todo, priorizando o formato e o diálogo entre as
linguagens, a passagem de tempo entre as páginas do livro e do texto
verbal e também a dobra das páginas. Todos esses elementos são
fundamentais para dar ritmo à leitura, enriquecendo-a e aumentando as
possibilidades interpretativas do leitor.
Figuras 6 e 7: Ilustrações de Bruxas, longe daqui!, de Luís Camargo (São
Paulo: Melhoramentos, 1988).

A partir do final dos anos 1970, um novo gênero na literatura infantil


começou a ganhar corpo e autonomia: a narrativa visual. Agora é a
imagem que assume caráter literário e dispensa a presença do texto verbal,
exceto quando este serve para ilustrar a imagem. O pioneiro do gênero no
Brasil foi Juarez Machado, com o livro Ida e volta, publicado em 197621.
Os anos seguintes foram decisivos para a consolidação da narrativa
visual: a FNLIJ criou o Prêmio Luís Jardim de Melhor Livro de Imagem, o
que incentivou ilustradores a assumir a autoria das produções de
narrativas visuais. Hoje, já são centenas de publicações nessa linguagem.
Entre os mais conceituados e atuantes na área estão Angela Lago, Rui de
Oliveira, Roger Mello, André Neves, Nelson Cruz e Mario Vale.
Nos dias de hoje, a literatura infantil brasileira está alinhada com as
tendências mundiais e ganha o reconhecimento dos maiores órgãos do
mundo na área.

O LIVRO DE NARRATIVA VISUAL:


CONCEITUAÇÃO E PROBLEMAS DE NOMENCLATURA
A narrativa visual em livros pode ser considerada um gênero da
literatura, pois os conceitos vêm da arte literária. Por isso, a fim de
compreender a narrativa visual, faz-se preciso buscar nessa fonte os
índices que permitam classificar tal produção imagética como livros de
narrativa visual. Para os autores que se dedicam à análise literária
narrativa, ela contém elementos próprios que a distinguem. A falta de
alguns desses elementos a leva a perder o sentido.
Segundo Cândida Gancho, “a maioria das pessoas é capaz de
perceber que toda narrativa tem elementos fundamentais, sem os quais
não pode existir”22. Em outras palavras, a narrativa é estruturada sobre
cinco elementos principais: enredo, personagens, tempo, espaço e
narrador. Esse último elemento também pode ser visto como “foco
narrativo ou ponto de vista”, segundo Camargo23, pois se refere à visão de
quem narra a história.
As imagens da arte ou da fotografia, por exemplo, podem ter grau
narrativo, porém, na maioria das vezes, não têm a sequência nem todos os
elementos que constituem uma narrativa, com começo, meio e fim,
mesmo que a história tenha um final aberto, já que o término do livro não
significa o fim da história. Uma imagem única fornece índices que podem
ser transformados em um texto narrativo por meio da sua descrição
verbal. Já a narrativa visual é um texto completo e não necessita de reforço
verbal, mas de interpretação, como qualquer texto literário.
Os livros que contam histórias apenas com imagens contêm todos os
elementos estudados na narrativa literária, como: o sentido lógico
edificado por intermédio de um enredo; um fio condutor, que pode ser
uma personagem ou um objeto; um tempo determinado de maneira
cronológica, psicológica ou ambas; e um espaço. Ademais, a narrativa
visual em livros traz diferenças sutis em relação a qualquer outra imagem
de cunho narrativo. Talvez por isso gere problemas quanto à sua
conceituação, que não é fechada.
Figura 8: Ilustração extraída do livro Chiquita Bacana e as outras pequetitas,
da autora e ilustradora Angela Lago (Belo Horizonte: RHJ, 1986).

A imagem tem função narrativa quando percebemos uma mutação


sequencial da figura com sentido claro ou quando ela demonstra
determinada ação. Essa função pode apresentar diferentes graus de
narratividade. Isso é notado nas narrações de uma história, de uma cena
ou de uma única ação. A função narrativa aparece, também, nas cenas
religiosas da Idade Média, nas histórias em quadrinhos e hoje, sobretudo,
nos livros de literatura infantil e juvenil. Ciça Fittipaldi afiança:

Quando as imagens em sua espacialidade incorporam a dimensão temporal,


seja pela representação de ações e eventos, seja pela articulação de vários
quadros ou cenas, em sequências, expondo uma ordem de acontecimentos
temporal, são imbuídas da luência narrativa24.
Referência no meio artístico que discute a leitura de imagens,
Alberto Manguel vê mudanças na concepção das imagens narrativas na
história da arte que talvez possam auxiliar na compreensão do porquê do
uso generalizado do termo para a arte visual e a literatura. Assim, afirma
ele:

Formalmente, as narrativas existem no tempo e as imagens no espaço.


Durante a Idade Média, um único painel poderia representar uma sequência
narrativa, incorporando o luxo do tempo nos limites de um quadro espacial,
como ocorre nas modernas histórias em quadrinhos, com o mesmo
personagem aparecendo várias vezes em uma paisagem unificadora, à medida
que ele avança pelo enredo da pintura. Com o desenvolvimento da
perspectiva, na Renascença, os quadros se congelam em um instante único: o
momento da visão tal qual como percebida do ponto de vista do espectador. A
narrativa então passou a ser transmitida por outros meios: mediante
“simbolismos, poses dramáticas, alusões à literatura, títulos”, ou seja, por
meio daquilo que o espectador, por outras fontes, sabia estar ocorrendo25.

A narrativa visual em livros aproxima-se da verbal, pois, segundo


Manguel26, o início e o fim do livro não estabelecem limites para o texto.
Este transcende o espaço e nunca vai existir integralmente em nossa
mente, apenas em lashes; pequenos recortes do texto resumirão a obra.
No caso da escrita e da oralidade, o narrador descreve uma cena em
palavras. Já na imagem, a história será narrada na sequência das cenas e
poderá ser oralizada, conforme o universo particular do leitor. Contudo,
nem todas as histórias presentes nos livros têm grau de narratividade
equivalente. Há histórias que se caracterizam pela leitura fechada, isto é, o
autor não permite interpretações abertas, e outras oferecem grandes
possibilidades de leitura: linear, aos saltos, de trás para a frente – gama
quase inesgotável de possibilidades que perpassam todos os tipos de
leitores.
A narrativa visual em livros é um gênero novo no Brasil. Por esse
motivo, sua classificação é confusa. As publicações de estreia datam do
final da década de 1970 a início da de 1980 e consolidaram-se de maneira
definitiva quando a FNLIJ, no ano de 1981, abriu o Prêmio Luís Jardim de
Melhor Livro de Imagem. Os primeiros a ganharem tal prêmio foram o
catarinense e pioneiro do gênero no país Juarez Machado, com o livro Ida e
volta27, e Eva Furnari, com a Coleção Peixe Vivo28. Desde então, a narrativa
visual vem se firmando cada vez mais, com uma produção contínua de
títulos.
A FNLIJ classificou o gênero como “livro de imagem”, nome adotado
pela maioria dos teóricos da área, e isso explica a força de uma instituição.
Porém, é necessário questionar quão abrangente é o termo para uma
linguagem tão específica. Um livro de imagem pode ser um livro de
fotografias, por exemplo, com imagens sem ligações umas com as outras,
que talvez tenham em si um discurso indicialmente narrativo, contudo,
não dependem das demais para com uma história. Entretanto, faz-se
preciso re letir sobre a condição pedagógica que essa literatura com pouco
ou nenhum texto verbal desempenha. Para facilitar a compreensão do
maior número de pessoas de diversos meios, o termo “livro de imagem” é
mais acessível. É pensando em facilitar que, muitas vezes, denominações
pouco apropriadas se difundem e ganham força. A discussão é de uma
determinada categoria pertencente a um gênero que, a cada década, ganha
mais força qualitativa e quantitativa no mundo: a literatura infantil e
juvenil. Portanto, deve-se ter clareza quanto ao termo a ser usado.
A escolha do termo “narrativa visual” para esse gênero deve-se ao
fato de que, independentemente da técnica empregada para obter a
imagem, o livro contará uma história com todos os elementos de uma
narrativa literária, sem importar a linguagem escolhida (verbal ou visual)
no suporte livro ou em outros.
No Brasil, além de Juarez Machado, há outros autores que trabalham
com a narrativa visual e produzem excelentes histórias que envolvem o
leitor com belas imagens. Entre eles, estão Angela Lago, Eva Furnari, Roger
Mello, Marcelo Xavier, Rui de Oliveira, Guto Lins, Ivan Zigg, Fernando
Vilela, André Neves, Nelson Cruz e tantos outros.
Ao analisar a produção de narrativas visuais mediante os títulos
premiados entre 1981 (ano em que a FNLIJ lançou o Prêmio Luís Jardim de
Melhor Livro de Imagem) e 2008, é possível transitar por entre inúmeras
temáticas: adaptações de contos, crítica social, ludismo, realismo social,
informação, poesia, humor etc. Alguns desses títulos são de difícil
classificação e transcendem as características de livros de narrativa visual
destinados à infância e à juventude, pois contêm grande sensibilidade
estética e deixam o leitor com aquela interrogação persistente, própria de
uma obra de grande valor artístico, que possibilita a leitura atemporal pela
característica aberta e repleta de signos do universo que representa.
O que mantém esse gênero vivo e circulando nas mãos de crianças e
adultos é a possibilidade de ligar os dois universos aparentemente
distintos, o infantil e o adulto, pois ele propicia diferentes leituras
condicionadas à visão de mundo do leitor e de sua cultura visual.
A imagem necessita de tradução. Imagens criadas por povos
ameríndios, como é o caso dos brasileiros, fogem dos cânones das belas-
artes com que os olhares europeus e norte-americanos estão acostumados.
Esse olhar é muito distinto do dos povos mestiços e tropicais do Brasil, que
trazem “con luências de tradições culturais diversas e de artesanatos
ricos”, como expõe Ana Maria Machado na introdução de um livro de Rui
de Oliveira29. Essa tradução pouco ocorre quando ilustradores brasileiros
transpõem fronteiras e levam a ilustração brasileira para fora. Ao valorizar
a imagem para a infância e auxiliar em sua manutenção como bem
cultural por meio de estudos a respeito do gênero, é possível gerar
discussões mais aprofundadas sobre seu papel para a cultura em geral.

O ESTUDO DA IMAGEM NARRATIVA

A imagem no contexto literário infantil, hoje, caminha com os


outros subgêneros da referida literatura. A forma de ler e analisar as
histórias já não supre as necessidades do novo olhar sobre o mundo; a
literatura infantil vem exigindo do leitor, como assegura Sueli Cagneti, um
conhecimento anterior ao texto lido para poder perceber “o que está nas
entrelinhas”30.
Os textos visuais e verbais cruzam-se entre si, o que torna necessária
uma nova forma de leitura, na qual o leitor é o autor e também
participante ativo da história, cujo sentido já não é mais fechado, pois
mudará de leitor para leitor com base na relação que cada um faz com o
texto, considerando suas vivências pessoais.
Rui de Oliveira31 comenta a importância de ler conscientemente o
universo visual e verbal como maneira de preservar a integridade cultural e
social, tendo em vista que o bombardeio de imagens massificadas e
mercantilistas invade o espaço destinado à imaginação e à formação da
identidade do indivíduo.
Oliveira ainda argumenta:

A imagem é realmente um gênero do pensamento, uma persuasão fortíssima


em nossos dias globalizados, e a nação que melhor usar suas imagens e ícones
dominará, numa primeira fase, todos os fenômenos culturais do planeta,
numa segunda fase, o real domínio econômico de outras nações. Logo, o
estudo da imagem impressa nos mais diversos suportes e transmitida pelos
mais diferentes veículos de alta tecnologia é fundamental para qualquer país
que tenha o mínimo de projeto sério quanto ao seu futuro como nação, como
povo e, sobretudo, como preservação de seus valores culturais32.

O uso da imagem como linguagem primeira vem crescendo


consideravelmente, e a narrativa visual no contexto literário infantil
brasileiro está inserida nesse panorama. O motivo pode estar na sua
função para a infância, mas também na crescente autonomia da imagem
acerca do texto verbal e na abertura de possibilidades que carrega em si,
tanto quanto a palavra.
Os signos são construídos em conjunto pela sociedade com o
principal objetivo de comunicar, o que não lhes confere caráter universal
de leitura, visto que eles representam distintas significações em diferentes
culturas. O signo é algo que representa ou torna legível algo para alguém
ou para grupos, e não para toda a humanidade. Por isso ele pode traduzir
culturas e distingui-las.
Ao se aventurar pela análise e leitura de imagens, é necessário saber
quais caminhos percorrer para não cair em contradição ou alçar voos cegos
diante do que é apresentado aos olhos em forma de representações
imagéticas.
A leitura de um texto, verbal ou visual, terá sempre um
encaminhamento dado pelo autor, que possibilitará ao leitor não fugir ou
se perder da mensagem predeterminada, como lembra Vincent Jouve.
Esses pontos de ancoragem estão nos signos visuais e linguísticos, mas
isso não garante o fechamento do texto determinado pelo autor: “O texto
[…] pode apenas encaminhar a leitura: é o leitor que vai concretizá-la”33.
Uma particularidade do texto narrativo visual está nos diferentes
meios de lê-lo. É de fundamental importância saber disso, dada a condição
da narrativa visual em livros. Esta consiste em uma linguagem híbrida que
se cruza com outras linguagens e ocupa espaços postulados apenas pela
linguagem verbal; na imagem, está normalmente como coadjuvante.
É importante fomentar a discussão a respeito dessa linguagem
visual para valorizá-la como bem cultural e instrumento para a
alfabetização visual em um espaço próprio da criança: a literatura infantil
e juvenil.

REFLEXÕES SOBRE A IMAGEM NA LITERATURA INFANTIL

Os livros infantis, segundo Benjamin34, não servem apenas para


introduzir seus leitores no mundo dos objetos, animais e seres humanos,
“serve para introduzi-los na chamada vida”. A criança, ao entrar em
contato com o livro, interiorizará as imagens e o texto. Somente depois
dessa correspondência o sentido da leitura se constitui no exterior. A
riqueza de linguagens desse gênero mostra que, apesar da pressão
mercadológica por trás da produção de livros para crianças e jovens,
excelentes autores e ilustradores têm contribuído para a construção da
nossa literatura infantil e juvenil. Estudos mostram que os livros
construídos com vista ao respeito a nossas crianças e jovens têm brigado
por espaço nesse mar de publicações de concepções duvidosas presentes
nas livrarias, bibliotecas e escolas de todo o país.
Quando somos crianças, um universo representativo descortina-se
diante dos nossos olhos. As imagens (além do som) são nosso primeiro elo
com o mundo das linguagens. Saber ler e procurar apreender os signos
presentes nas imagens, com um olhar que permaneça aberto em todas as
fases da vida, pode auxiliar e muito no entendimento de mensagens
implícitas em qualquer texto, visual ou verbal.
Peter Hunt35 analisa leitores adultos e sua visão acerca dos livros
para a infância, além daqueles que recomendam livros para tal público. O
autor argumenta que as crianças não veem o mundo como pensam os
adultos. Para estes, as escolhas têm finalidades, uma razão de ser. Por sua
vez, os pequenos não fizeram nenhuma escolha ainda. Por isso, seu olhar é
mais receptivo e minucioso. Enfatiza-se, em relação aos livros para
crianças, que oferecer obras com imagens e textos estereotipados é abrir
caminhos para que seu olhar permaneça tendencioso e superficial,
criando, no mínimo, possibilidades maiores de formatar o pensamento
delas ao limitar seu potencial leitor.
Cabe aos educadores e produtores de imagens a séria tarefa de
selecionar e produzir imagens que respeitem a cultura da infância e
encontrar caminhos que transcendam os espaços destinados ao universo
infantil, para que a impressão do que as crianças viram e leram nos livros
perpasse pelas várias fases de suas vidas, de modo a enriquecer o
pensamento e assumir novas significâncias, fazendo parte, assim, do
imaginário do leitor consciente e crítico.

1 Texto publicado originalmente no livro A narrativa visual na literatura infantil


brasileira: histórico e leituras analíticas, de autoria de Maria Lúcia Costa
Rodrigues, Joinville: Univille, 2012.
2 Barbara Jane Necyk, Texto e imagem: um olhar sobre o livro infantil contemporâneo,
167f., dissertação (mestrado em design) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
3 Walter Benjamin, Re lexões: a criança, o brinquedo, a educação, São Paulo: Editora
34, 2002, p. 58.
4 Método de impressão caracterizado pela decomposição da imagem em partes,
que recebem cores diferentes na impressão.
5 Rui de Oliveira, “Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil”, in:
Ieda de Oliveira (org.), O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil:
com a palavra, o ilustrador, São Paulo: DCL, 2008.
6 Barbara Jane Necyk, op. cit.
7 Rui de Oliveira, “Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil”, op.
cit., p. 40.
8 Ibidem.
9 Ibidem, p. 18.
10 Angela Lago, uma das principais ilustradoras brasileiras, faz uso desse recurso
em muitos de seus livros, como em Outra vez (Belo Horizonte: Miguilim, 1984)
e João Felizardo, o rei dos negócios (São Paulo: Cosac Naify, 2007).
11 Guto Lins, Livro infantil?: projeto gráfico, metodologia, subjetividade, São Paulo:
Rosari, 2003, p. 36.
12 Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), Ilustradores brasileiros de
literatura infantil e juvenil, Rio de Janeiro: Consultor, 1989.
13 Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), op. cit.
14 Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), “Brasil! A bright blend of
colors”, in: Mostra de Ilustradores Brasileiros – Feira do Livro Infantil de Bolonha,
Rio de Janeiro: Ática, 1995.
15 Ziraldo, Flicts, São Paulo: Melhoramentos, 1969.
16 Luís Camargo, Ilustração do livro infantil, Belo Horizonte: Lê, 1995, p. 64.
17 Idem, Bruxas, longe daqui!, São Paulo: Melhoramentos, 1988.
18 Sueli de Souza Cagneti, Uma história de tantas histórias, Florianópolis: Letras
Brasileiras, 2009, p. 21.
19 Luís Camargo, Bruxas, longe daqui!, op. cit.
20 Angela Lago, Chiquita Bacana e as outras pequetitas, Belo Horizonte: Lê, 1986.
21 Juarez Machado, Ida e volta, Rio de Janeiro: Primor, 1976.
22 Cândida Vilares Gancho, Como analisar narrativas, São Paulo: Ática, 1991, p. 5.
23 Luís Camargo, Ilustração do livro infantil, op. cit.
24 Ciça Fittipaldi, “O que é uma imagem narrativa?”, in: Ieda de Oliveira (org.),
op. cit., p. 109.
25 Alberto Manguel, Lendo imagens: uma história de amor e ódio, São Paulo:
Companhia das Letras, 2001, p. 24.
26 Ibidem.
27 Juarez Machado, op. cit.
28 Fazem parte dessa coleção os livros Cabra-cega, Esconde-esconde, De vez em
quando e Todo dia. (São Paulo: Ática, 1980).
29 Ana Maria Machado, “Introdução”, in: Rui de Oliveira, Pelos Jardins Boboli:
re lexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens, Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008.
30 Sueli de Souza Cagneti, “A literatura infantil e a nova concepção de leitor”,
Revista de Divulgação Cultural, Blumenau: 2001, ano 23, n. 73-74, p. 17.
31 Rui de Oliveira, “Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil”, op. cit.
32 Idem, Pelos Jardins Boboli: re lexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e
jovens, op. cit., p. 96.
33 Vincent Jouve, A leitura, São Paulo: Unesp, 2002, p. 74.
34 Walter Benjamin, Re lexões: a criança, o brinquedo, a educação, op. cit.
35 Peter Hunt, Crítica, teoria e literatura infantil, São Paulo: Cosac Naify, 2010.
Por onde anda Chapeuzinho Vermelho?
Os contos de fadas do clássico ao contemporâneo
CLEBER FABIANO DA SILVA

Para além dos centros de educação infantil, das escolas, dos livros
endereçados às crianças ou das leituras noturnas para chamar o sono dos
filhos, os contos de fadas ganham novos significados no mundo
contemporâneo. Carregados de fantasia e impregnados do maravilhoso,
frequentam os cinemas, causam frenesi nas campanhas publicitárias,
pontuam nos games, desfilam nas festas a fantasia e são motivos de
decoração em quartos de bebê e bolos de aniversário. Em tempos recentes,
tornaram-se parte constitutiva e significativa do que se relaciona ao
universo infantil, estreitando um amplo diálogo com outras faixas etárias.
No entanto, séculos depois de suas primeiras recolhas, qual é o sentido de
ainda circularem e se contarem tais narrativas? Por que esses contos
permanecem tão vivos e servem de matéria-prima para diferentes versões,
revisitações, intertextos, citações e outros procedimentos artísticos da pós-
modernidade?
As respostas a esses questionamentos devem ter início ao situarmos
que os chamados contos de fadas têm sua provável origem na Europa
moderna, embora haja quem acredite que sua existência remonte a um
período muito mais antigo na história da humanidade. Esse fato se
evidencia por essas narrativas estarem fortemente ligadas em sua gênese
aos ritos de passagem e de iniciação presentes nas histórias desde tempos
remotos. Para Nelly Novaes Coelho, “as inúmeras semelhanças de motivos,
episódios e personagens que todos apresentam revelam com evidência o
fundo comum das fontes orientais, célticas e europeias de onde
surgiram”1. Pode-se dizer o mesmo pelas características que evidenciam o
aparecimento do sobrenatural, do destino e das provas pelas quais passam
heróis e heroínas.
Mas por que essas narrativas são chamadas de contos de fadas se
não aparece, na maior parte das histórias, a tão desejada figura da fada
com sua varinha de condão? Para saber essa resposta, faz-se necessário
uma busca no verbete etimológico que melhor elucida a palavra “fada”.
Derivado do latim fatum, o termo significa destino, fatalidade.
Compreendendo a terminologia utilizada, fica simples imaginar que esses
contos mostram os desafios enfrentados pelas personagens e como elas, ao
resolver seus con litos, dão novo sentido a seus destinos. Basta
recordarmos as consequências advindas do abandono de João e Maria na
loresta, a infância reclusa de Rapunzel trancada na torre, as artimanhas
do Gato de Botas ao ajudar o Marquês de Carabás, a ascensão de Cinderela
em decorrência do baile, isso para citar apenas algumas das narrativas
mais conhecidas. Além dessas, há centenas de outras nas quais a fada não
aparece de modo personificado, mas, mesmo assim, são denominadas
contos de fadas.
A relevância deste estudo centra-se na oportunidade de aprofundar
a mundialmente famosa história da menina de capuz vermelho que
pretendia levar mantimentos para a avó doente. Mas para quais caminhos,
sendas ou veredas levariam os pés dessa garota em um mundo marcado
por inúmeras transformações desde sua primeira aparição? Estaria ainda
o lobo em seu encalço nas entranhas da loresta? E, decorridos tantos anos,
como encontraria a avó convalescente? Afinal de contas, por onde anda a
Chapeuzinho Vermelho em tempos pós-modernos? Para arriscar algumas
respostas, será inevitável seguir seus rastros na gênese de sua existência,
vasculhando velhos documentos que salvaguardam suas origens.

AS VERSÕES DE PERRAULT E DOS IRMÃOS GRIMM

Recolhidas da tradição oral pelo nobre Charles Perrault e publicadas


pela primeira vez em 1697, sob o título Contos de Mamãe Gansa2, ganharam
materialidade as narrativas que circulavam entre o populacho na corte
francesa do século XVII. Encontravam-se originalmente no opúsculo: “A
Bela Adormecida no bosque”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Barba-Azul”, “O
Gato de Botas”, “As fadas”, “Cinderela”, “Henrique do Topete” e “O Pequeno
Polegar”. Mais tarde, foram incluídos no mesmo volume os contos “Pele de
Asno”, “Os desejos ridículos” e “Griselda” (ou “Grisélidis”).
Na introdução aos Contos de Perrault3, em um texto intitulado “A
respeito dos contos de fadas”, Stahl4 considera a importância dessa
compilação, principalmente pela forma literária dada aos relatos dos
contadores de histórias anônimos que, devido às condições do contexto,
eram analfabetos e desprovidos do privilégio da escrita. Outrora, esse
vasto repertório circulava com a estrutura de literatura de cordel ou sob a
forma de mitos ou lendas na memória dos mais experientes. “Perrault
tirou-os das sombras em que eles modorravam e, graças à elegância da
forma de que os revestiu, deu-lhes uma existência real e definitiva e os
tornou imortais5.”
O título da obra refere-se a uma figura familiar do universo popular
da França – a Mamãe Gansa –, apresentada em companhia de seus filhotes,
atentos a ouvir suas histórias. Encantados, eles recebiam grande bagagem
de conhecimento doméstico e aquisição moral e linguística. Justamente
nessa coletânea compilada por Perrault, junto dos contos já citados, nasce
Chapeuzinho Vermelho, cuja trajetória e andanças desvelam-se neste
artigo.
Durante a escritura da narrativa, o autor de “Chapeuzinho
Vermelho” deixa transparecer elementos próprios da oralidade, que se
tornam visíveis em seu texto: “a mãe era louca por ela, a avó mais louca
ainda”; “atravessando um bosque deu com o seu lobo”; “para lá do moinho
que se vê lá longe, lá longe, na primeira casa da aldeia”6. Essas marcas
pressupõem a apropriação de uma obra sempre aberta, nascida dos
enunciados do folclore e, portanto, coletiva já em sua aparição.
Pela estrada afora e bem sozinha, Chapeuzinho se encontra com o
lobo na loresta e, após ser desafiada pelo vilão para saber quem chegaria
primeiro à casa da avó, a menina não segue seu destino conforme
recomendado: “Foi pelo caminho comprido, distraindo-se a colher avelãs, a
correr atrás das borboletas e a fazer buquês com as lorzinhas que
encontrava”7. Uma possível ingenuidade e um retrato da condição do
gênero infantil são descritos porque, como qualquer criança, ela faz seu
trajeto brincando.
A inclusão da moralidade, de forma explícita na versão de Perrault,
deve ser levada em consideração em qualquer análise crítica. Logo após o
conhecido discurso no qual Chapeuzinho questiona o porquê de o nariz, os
olhos, o ouvido e a boca do lobo serem tão grandes, este a devora sem
piedade, finalizando abrupta e tragicamente a narrativa para, em seguida,
ler-se a “Moral da história”:

Vimos aqui que os jovens, sobretudo, as mocinhas, belas, elegantes e gentis,


fazem muito mal de escutar toda sorte de gente. E não é coisa estranha que
por isso o lobo as devore. Eu digo o lobo, pois nem todos os lobos são da
mesma espécie. Existe um que é de humor cortês, sem fama, sem fel, nem
irritação. Acompanha complacente e com doçura as jovens senhoritas até suas
casas e seus quartos. Mas cuidado as que não sabem que esses doces lobos são
de todos os lobos os mais perigosos!8

O autor discute algo que na pós-modernidade se constata em


qualquer delegacia de polícia e nas literaturas científicas específicas: o fato
de o lobo seguir a menina para dentro de casa e do quarto para atacá-la.
Segue ainda re letindo sobre o comportamento de seu malfeitor, alertando
não se tratar de um ser malvado e irritadiço; pelo contrário, ele se
apresenta com elegância e bom humor, facilitando a aproximação
amistosa com a vítima.
Apesar do auge e do esplendor da França pós-feudal, soberanamente
governada pelo rei Luís XIV, é necessário contextualizar o período
histórico-social no qual viviam as crianças da época. Ainda que bem
cuidadas pelas amas de leite e instruídas na corte, as crianças eram
assoladas por epidemias, febres, viroses e outros problemas de saúde. Além
dessas complicações, não tinham visibilidade nem protagonismo,
restando-lhes uma passividade total em relação aos perigos e às agruras da
vida. Basta observar, por exemplo, a carteira de vacinação dos bebês na
atualidade e comparar com a falta de recursos existentes naquela época.
O segundo registro da história “Chapeuzinho Vermelho” ocorre na
Alemanha do século XIX. Também recolhida da tradição oral pelos Irmãos
Grimm, encontra-se na obra Kinder- und Hausmärchen (Contos para
crianças e para o lar)9. Nela, o conto está marcado por um desfecho
diferente do final trágico da primeira versão, especialmente pela aparição
do caçador, o elemento masculino que, redentoramente, salva a neta e a
vovó do terrível predador. Aqui, também é impossível ignorar as marcas do
contexto histórico: Chapeuzinho vive agora na sociedade pós-Revolução
Francesa, e sua sobrevivência atesta essa mudança de paradigma.
Na versão original dos Grimm, Chapeuzinho ainda coloca pedras
bem pesadas na barriga do lobo, ajudando o caçador a destruí-lo. Esse
gesto aparentemente simples serve de metáfora para representar um
discurso que sugere que a criança não precisa se sujeitar passivamente ao
mal do mundo, pois tem condições de propor soluções, colaborar e
interferir proativamente na resolução de seu destino.
Como uma fênix ressurgida das cinzas e cúmplice na morte de seu
algoz, esse ato anuncia um novo tempo. Parafraseando o enunciado do
norte-americano Neil Armstrong quando de sua chegada à Lua – “Um
pequeno passo para um homem, um grande passo para a humanidade” –,
aqui seria justo dizer: um pequeno gesto para uma criança, um grande
gesto para a história da criança no mundo. Afinal, simbolicamente, esse
pequeno ser passa a ter vez e voz nessa sociedade. Não poderia ser
diferente vindo de autores que ousaram dar ao destinatário o status de
protagonista, conforme prova o título da obra. Esses foram os avanços
trazidos pelos Grimm para a história da infância no Ocidente.
Na versão alemã, a genitora de Chapeuzinho demonstra pleno
conhecimento do comportamento da filha. As recomendações à menina
antes de sua empreitada rumo à casa da avó são elucidativas e permitem
localizar uma infância mais próxima da contemporaneidade: “Pegue esta
fatia de bolo e a garrafa de vinho e leve até a casa da vovó. […] Seja
boazinha e mande lembranças a ela. Ande direitinho e não desvie do
caminho, senão você vai cair e quebrar a garrafa e sua avó ficará sem
nada”10.
A moral da história não aparece expressa como apêndice após o
conto, mas na própria voz da protagonista durante o enredo: “De agora em
diante, não vou mais sair do caminho nem entrar na loresta sozinha
quando a minha mãe não deixar”11. Ao ouvir a voz de sua consciência, fica
evidente pela culpa a sensação de aprendizagem. A desobediente menina
transmite a impressão de convencimento, notadamente pela nova chance
que ganhou de seu destino e pela transformação operada pela experiência
adquirida.
Em uma leitura de contraponto entre as duas versões, percebe-se
que as diferenças existentes indicam pistas que realçam os diversos
contextos históricos de sua narração, de seu registro e de sua circulação.
Afinal, o mesmo fato provoca a perda da vida ou a possibilidade de
aprender pela experiência, mostrando o discernimento e a complexidade
do pensamento de seus compiladores.
No caso dos Irmãos Grimm, sua extensa obra está recolhida em dois
tomos. A primeira edição (1812-5) incluiu histórias em dez dialetos, além
do alemão formal, e a escrita reproduziu na íntegra a transmissão oral.
Após sucessivas atualizações e revisões, chegaram à última edição em 1857,
com modificações para eliminar conteúdos violentos e moderar elementos
perturbadores. A partir das mudanças ocorridas durante o processo de
recolha da coletânea, pode-se constatar que os valores e as ideologias da
época in luenciaram a construção dos arquétipos morais, sociais e
culturais.
O grau de efemeridade e, portanto, a necessidade de recolher tais
narrativas quando contadas por uma pessoa simples era uma preocupação
dos Irmãos Grimm, conforme prefácio à edição original, escrito pelos
próprios autores:

As pessoas que as guardam são cada vez mais raras, porque o costume está se
perdendo […]. Onde ainda sobrevivem, vivem de tal forma que não importa se
são boas ou ruins, poéticas ou sem graça, nós as conhecemos e as amamos […].
Não queremos aqui enaltecer os contos ou mesmo defendê-los de uma
opinião contrária: sua simples existência é suficiente para protegê-los12.

Eles tinham clareza acerca da autoria coletiva dessas narrações, do


estilo e do toque pessoal dos contadores, bem como das variações operadas
na transposição da linguagem oral para a escrita: “Não são estáticas,
transformam-se em todas as regiões, quase em todas as bocas, mas
mantêm fielmente o seu conteúdo”13. Insinuam ainda em seu discurso a
crença na antiguidade dos relatos: “Com a passagem do tempo os contos
sempre se renovam, por isso mesmo que suas raízes devem ser muito
antigas, se bem que a falta de notícias que o comprovem impossibilita sua
autenticidade”14.
Como se pode inferir, a inocente (ou seria curiosa?) menina “do
chapéu vermelho” teria nascido muito antes de seu primeiro registro
escrito. Embora sua “certidão de nascimento” literário seja datada de 1697,
Charles Perrault traz como subtítulo de seus Contes de ma Mère l’Oye
“Contos do tempo passado com moralidades”, uma informação relevante
que comunga com os irmãos folcloristas acerca da natureza ancestral
desses contos.

CHAPEUZINHO VERMELHO VISITA UMA VOVÓ BRASILEIRA

Em um belíssimo artigo intitulado “A criança é a humanidade de


amanhã”, o escritor Monteiro Lobato – considerado o pai da literatura para
crianças no Brasil – afirma sobre Chapeuzinho Vermelho: “Quem quiser
formar ideia do que tem de ser a literatura infantil basta que estude a
fundo essa história”15. No texto, ele diz estar convencido de que a narrativa
foi composta pelas próprias crianças por intermédio de suas mães ou avós
enquanto a contavam e, portanto, ouviam os pedidos e os atendiam.

“Era uma vez uma menina que usava um vestido azul”, teria começado uma
vovó lá no fundo da Germânia. A loura Gretchen, de quatro anos, vendo
através da vidraça a neve cair, interrompeu-a aí para a primeira colaboração:
“Vestidinho não, vovó, capinha”. Muito mais interessante com aquele frio,
uma capinha de lã, lã quente. “Azul também não, vovó, vermelha.” O azul é frio
e o vermelho é quente. E a história da menina do vestidinho azul passou a ser,
desde esse momento, a história da menina de capinha vermelha16.

Lobato é enfático: “Quem começa pela menina da capinha vermelha


pode acabar nos Diálogos de Platão, mas quem sofre na infância a ravage
dos livros instrutivos e cívicos não chega até lá nunca. Não adquire o amor
pela leitura”17. Em descobertas durante pesquisas sobre a obra de Monteiro
Lobato18, constatou-se que ele sugeria a revisitação dos clássicos,
antecipando o fenômeno do que se tem produzido em literatura infantil e
juvenil na atualidade, ou seja, a produção de versões com diferentes
personagens ou contextos sempre no intuito de questionar, chamar a
atenção, re letir e produzir novos conceitos e leituras para essas clássicas
histórias, sejam as de Perrault, as dos Irmãos Grimm ou quaisquer outras.
Lobato insinua uma renovação e atualização das personagens
clássicas logo em sua primeira obra destinada às crianças, Reinações de
Narizinho, lançada em 1931. No enredo, Dona Carochinha – a célebre
baratinha das histórias – aparece no Reino das Águas Claras à procura do
Pequeno Polegar, que fugiu do livro em que morava e foi percorrer outros
reinos encantados. Indagada sobre o motivo da fuga, ela responde: “Não
sei… mas tenho notado que muitos dos personagens das minhas histórias
já andam aborrecidos de viver toda a vida presos dentro delas. Querem
novidade. Falam em correr o mundo a fim de se meterem em novas
aventuras”19.
Essas criaturas sentiam-se cansadas, envelhecidas e questionavam
suas características principais: a Bela Adormecida queria dormir mais cem
anos, Branca de Neve queria pintar o cabelo de preto, Aladim reclamava da
ferrugem em sua lâmpada maravilhosa e até o Gato de Botas brigou com o
Marquês de Carabás. Descontentes, escaparam para o sítio de Dona Benta.
Quantas possibilidades na desconstrução dos padrões clássicos e do
cânone desse gênero literário. Esse procedimento utilizado hoje no
cinema, no teatro e na literatura parecia fazer parte do projeto literário
lobatiano:

Se a história está embolorada, temos de botá-la fora e compor outra. Há muito


tempo que ando com esta ideia – fazer todos os personagens fugirem das
velhas histórias para virem aqui combinar outras aventuras. […] o que eu não
daria para brincar neste sítio com a Menina da Capinha Vermelha […] Tenho
tanta simpatia por essa menina… aqueles bolos que ela costumava levar para a
vovó que o lobo comeu – que vontade de comer um daqueles bolos20.

E na magia-verdade da literatura, eis que se realizam os preparativos


para o casamento de Branca de Neve com o príncipe Codadade. Enquanto
todas as princesas dançam (com exceção de Cinderela, para não estragar
os seus sapatinhos!), o Visconde de Sabugosa anuncia a chegada de uma
convidada muito especial. Diretamente dos tempos do “Era uma vez…”, em
pleno interior do Brasil, Chapeuzinho aparece entre gritos entusiasmados
dos convivas que a aguardavam com profunda ansiedade. Durante a visita,
Emília questiona o seu verdadeiro nome. “Meu nome verdadeiro é Capinha
Vermelha. Mas, como vocês podem ver, esta capinha tem um capuz que às
vezes eu uso, outras não. De modo que tanto podem me chamar Capinha,
como Capuzinho ou mesmo Chapeuzinho Vermelho21.”
Na obra O Picapau Amarelo, publicada em 1934, Lobato consolida sua
ideia de transportar as personagens tradicionais a novos contextos. Dessa
vez, todos os heróis das histórias fantásticas mudam-se para o Sítio do
Picapau Amarelo: da mitologia grega à brasileira, dos grandes da literatura
universal às histórias orientais, mas, logicamente, com maior espaço para
o conhecido povo dos contos de fadas: “Pedrinho disparou a fazer projetos
de brincadeiras com Aladim. Narizinho queria conversas de não acabar
mais com Branca de Neve e a menina da Capinha Vermelha”22.
A criançada teria, mais uma vez, a companhia dos habitantes do
mundo da fábula em uma escrita inteligente, marcada pela sensibilidade e
pelo entendimento do universo infantil. Em sintonia total, trocavam
experiências com esses seres que fazem parte do patrimônio cultural da
humanidade e – como não poderia deixar de ser – com a ilustre presença
de Chapeuzinho Vermelho no sítio da mais brasileira das vovós.

CAMINHOS ALÉM DO UNIVERSO LITERÁRIO

A leitura de “Chapeuzinho Vermelho”, assim como dos demais


contos de fadas, permite reconhecer nessas tradicionais narrativas
percepções acerca da fisiologia e do comportamento humano com
magistral propriedade. Muito antes das discussões modernas sobre
aprendizagem, dos estudos da psicologia desenvolvimentista e até mesmo
precedendo Rousseau e seu manual sobre educação, publicado em 177623,
esses contadores de histórias – fonte segura de onde Perrault e os Irmãos
Grimm coletaram seus contos – sugerem o processo de aprendizado das
crianças pequenas.
A descoberta do lobo “transformado” em avó, por exemplo, se dá a
partir dos sentidos, e esse descortinar-se vai gradualmente ocorrendo a
partir da visão, da audição, do olfato e do tato até chegar finalmente ao
paladar, quando então o próprio lobo sabe que não tem mais como se
esconder. Para Mário e Diana Corso, “a boca cumpre múltiplas funções
quando se é muito pequeno, além de fonte de saciedade, prazer e
conhecimento, ela é uma espécie de portal” e “só aquilo que se engole é
factualmente passível de ser possuído e controlado”24. Isso faz lembrar a
cosmogonia grega na figura de Cronos – deus do tempo –, que devorava
seus filhos para só então conhecê-los como experiência real.
A “desobediência” de Chapeuzinho Vermelho sugere outra leitura
capaz de gerar ambiguidade acerca da emancipação sexual feminina.
Segundo Claude Lévi-Strauss, “em todo canto do mundo, o pensamento
humano parece conceber uma analogia tão estreita entre o ato de copular e
o de comer que muitas línguas designam essas duas coisas pela mesma
palavra”25. Para os Corso, Chapeuzinho “está interessada em saber no que
ele [o lobo] está interessado”, o que é mais uma “curiosidade, digamos
teórica, que a pretensão de chegar a algum tipo de envolvimento erótico
com seu sedutor”. Os autores acrescentam ainda que a história trabalha o
tema da sexualidade infantil no território do possível e necessário para as
crianças pequenas: “Ter uma sexualidade, sabê-la e exercê-la são três
coisas bem distintas”26. Em síntese: a menina pode não saber que jogo está
sendo jogado, mas é inegável seu interesse em participar.
Saindo do campo comportamental para o social, é esclarecedor o
estudo de Philippe Ariès, intitulado História social da criança e da família, ao
reconhecer a perspectiva da criança nos séculos passados: às vezes tratada
como um adulto em estado menor, outras, como um indivíduo à espera
das moralidades, dos valores, das regras, dos preceitos religiosos, da
capacidade linguística e dos demais saberes repassados pelos mais velhos.
Todavia, um estágio intermediário entre a infância e a vida adulta no qual
iniciaria o seu processo de inclusão social27.
Essa visão da criança como adulto em miniatura também se fez
presente nas imagens dos livros infantis. Um dos mais célebres
ilustradores dos contos de fadas, o francês Gustave Doré (1832-83) captou
em suas pinturas a essência de Chapeuzinho Vermelho (Figuras 1 e 2).
Muito mais do que representar ambientes domésticos ou elegantes salas
de estar com seus detalhes românticos e góticos – próprios da época –, o
artista buscou retratar as personagens presas e amedrontadas,
apequenadas pelas árvores das lorestas ou desorientadas em uma terra
que ameaça engolfá-las com sua imensa vastidão. Doré “capta toda a
amplitude de terror evocado pelos contos franceses, nunca hesitando em
representar o que a nossa imaginação é, por vezes, incapaz de admitir”28.
As ilustrações a seguir, datadas de 1861, mostram, respectivamente,
o dinamismo do ataque do lobo à avó e a astúcia e aparente calmaria do
falsário como apresentado na “Moral da história” de Charles Perrault.
Figuras 1 e 2: Charles Perrault, Chapeuzinho vermelho, ilustrações de
Gustave Doré, 1861.

A principal característica constitutiva da menina aparece no título


original, “Le Petit Chaperon Rouge”, permanecendo assim em todas as
versões e traduções. O adjetivo da cor é invariável (vermelho, rouge, rojo,
red, rosso…), enquanto o grau de seu substantivo está sempre no
diminutivo. Disso resulta uma leitura possível sobre o rito de passagem: a
transformação da fragilidade, da inexperiência, da ingenuidade ou mesmo
da curiosidade para a força, a garra, a experiência, o desejo. Ele também
suscita possibilidades a respeito da iniciação e da emancipação feminina
na delicada mudança menina-mulher durante todos os séculos de
existência do conto.
Na área da educação, a contação de histórias para crianças exige o
diálogo com os clássicos contos de fadas. Na exploração dessas leituras, há
uma experiência com o real a partir do simbólico como um produto do
saber humano. São narrativas que abordam experiências fundamentais do
existir e as dificuldades dos ritos de passagem que envolvem o
crescimento. Conforme Nelly Novaes Coelho, “esse movimento interno,
esse brincar interiorizado e imaginativo, é essencial para que outras
aprendizagens se possam fazer”29.
Nessa perspectiva, considera-se relevante que os contos possibilitem
uma mediação simbólica dos aspectos constitutivos da condição humana,
uma forma alternativa de lidar com o excesso de narrativas e imagens
veiculadas pelos meios de comunicação de massa que não chegam a
representar experiências significativas com os grandes con litos e
questionamentos humanos. Para Calvino, “em nossa memória se
depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens,
semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que
alguma delas adquira relevo”30.
Além do que psicólogos e psicanalistas vêm debatendo sobre o valor
terapêutico das histórias e outras questões do gênero, cabe aos pedagogos
e demais licenciados que trabalham com crianças, especialmente os que
atuam no campo da educação infantil, perceber as características e a
relevância desse gênero que são discussões próprias de sua área específica
– não para prescrever ou diagnosticar, mas para estimular e desenvolver
através desse gênero percepções cognitivas e enunciativas de modo a
ampliar o repertório cultural, social e estético dos alunos.

O prazer que experimentamos quando nos permitimos ser suscetíveis a um


conto de fadas, o encantamento que sentimos, não vem do significado
psicológico de um conto (embora isso contribua para tal), mas de suas
qualidades literárias – o próprio conto como uma obra de arte. O conto de
fadas não poderia ter seu impacto psicológico sobre a criança se não fosse
primeiro e antes de tudo uma obra de arte. […] Os contos de fadas são
ímpares, não só como uma forma de literatura, mas como obras de arte
integralmente compreensíveis para a criança, como nenhuma outra forma de
arte o é31.
Dessa forma, justifica-se a sua presença nas instituições de ensino e
convocam-se os educadores para o estudo e aprofundamento desses
contos como categoria de arte, atendendo ao estatuto estético e ético do
trabalho com a literatura destinada às crianças. Para a formação do leitor
competente, o conhecimento do clássico é a base para o melhor
entendimento e aproveitamento da literatura infantil pós-moderna, uma
vez que ela se caracteriza pela intertextualidade, a desconstrução das
personagens clássicas e as revisitações.
Para tanto, torna-se necessário que a escola proporcione momentos
de contação como os realizados nas antigas veillées, ou seja, nos encontros
para troca de notícias e histórias que faziam parte do cotidiano da
população que vivia nos campos e nas cidades.
Deve-se ter muita cautela com a qualidade das traduções, evitando
adaptações simplistas, moralistas e descarregadas de seu valor simbólico e
literariedade. De acordo com Ana Maria Lisboa de Mello, “é necessário que
o texto não sofra as mutilações da adaptação, pois os símbolos organizam-
se na história formando uma composição, cujos elementos não podem ser
dissociados, sob pena de prejudicar a sua significação global”32. Outro
cuidado diz respeito ao apelo exacerbado que a mídia exerce sobre as
crianças por meio de programas televisivos, filmes, desenhos animados,
so twares “educativos”, grifes de roupas infantis, brinquedos, discos, entre
outros produtos que exploram as personagens dos contos de fadas
subtraindo-lhes sua qualidade artística e sua complexidade humana.
Assim, percebe-se a dimensão das veredas e dos caminhos
percorridos por Chapeuzinho Vermelho nas mais variadas áreas do
conhecimento humano e os perigos do grande filão mercadológico em que
se transformaram os contos de fadas. Desse modo, torna-se
imprescindível um estreito diálogo com as fontes da tradição oral a partir
dos registros pioneiros de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm como uma
espécie de volta ao campo arqueológico original, que aprofunda,
contextualiza e permite avanços através dos vestígios iluminados pelas
luzes da contemporaneidade.
AFINAL, POR ONDE ANDA CHAPEUZINHO VERMELHO
EM TEMPOS PÓS-MODERNOS?

Para um leitor atento, a resposta a essa questão não parece difícil.


Afinal de contas, há séculos Chapeuzinho ruma para a sua dramática
travessia descortinando os meandros da loresta. Seu destino modifica-se
de acordo com os períodos históricos e renova-se em variados contextos
sociais e culturais. Devorada sem piedade por seu algoz, sucumbe em sua
primeira aparição para continuamente ressurgir das cinzas em todas as
versões posteriores. Em sintonia com a velocidade, a fragmentação, o
apelo midiático, o consumo desenfreado e outras situações que
caracterizam a sociedade e o pensamento pós-moderno, ela pode ser
encontrada em seu fatídico rito de passagem.
Para o público infantil, seu enredo pode enveredar por caminhos
inusitados, lúdicos e divertidos, como o proposto no livro-brinquedo A
verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho, de Agnese Baruzzi e Sandro
Natalini33. Decidido a ser bonzinho, o Lobo Mau empenha-se em novos
hábitos: adere ao vegeterianismo, leva lores para a mãe da menina e
surpresas deliciosas para a vovó e assiste ao jogo de futebol com o
lenhador, tornando-se um verdadeiro herói. As demais personagens dos
contos de fadas relatam admiradas no Jornal da Floresta essa
transformação, deixando Chapeuzinho “vermelha de ciúmes”.
Em obras literárias, não se pode esquecer que Chapeuzinho ficou
“amarelada de medo” na versão de Chico Buarque, dominando por meio da
palavra seu pavor pelo lobo34. Andou até mesmo na gostosa mineirice de
Guimarães Rosa e sua Fita verde no cabelo35 e deixou nada satisfeita a
vovozinha na visão irônica de Mário Prata, em cujo final, depois de tantos
questionamentos sobre o tamanho dos olhos, do nariz e da boca, a avó
levanta da cama com as mãos na cintura e pergunta irritada: “Escuta aqui,
queridinha: você veio aqui hoje para me criticar é?!”36.
Com estilo irreverente, Flávio de Souza recria para o teatro infantil
situações ocultas no enredo principal da menina: o cotidiano da mãe, o
modo de vida da vovó, o comportamento do lobo e até mesmo a aparição
do pai nunca citado. O livro-espetáculo Eram quatro vezes: comédia para
crianças de todas as idades traz quatro cenas com diálogos inteligentes e
bem-humorados nos quais novos pontos de vista são apresentados pela
narração do repórter Bromélio Antúrio: “Toda história tem outras histórias
dentro, que são a mesma história vista de outros jeitos”37.
Na chamada sétima arte, pode-se afirmar que o norte-americano
Walt Disney (1901-66) foi o responsável pelo ressurgimento e a valorização
dos contos de fadas a partir da estreia do desenho animado Branca de Neve,
em 1937. Recentemente, a visita da menina à casa da vovó tornou-se caso
de polícia, e o público de todas as idades pôde acompanhar o desenrolar
dessa confusão na animação Deu a louca na Chapeuzinho. A chamada
publicitária já antecipava a desconstrução da história insinuando que a
protagonista “não é tão inocente, a vovozinha ninguém engana, o lenhador
é burro como uma porta e o lobo não é tão mau assim”38. Com uma
narrativa contada sob diferentes pontos de vista, descortinam-se as
motivações, os sonhos e as frustrações dessas famosas personagens.
A história de Chapeuzinho também chegou aos cinemas com uma
pitada de terror, relativizando o antigo maniqueísmo bem versus mal. No
filme A garota da capa vermelha, a menina-mulher teve de se defender da
sociedade e da religião de sua época e até mesmo de sua família.
Experienciando seus ritos de passagem, depara-se com as múltiplas
identidades do lobo e, misteriosamente, descobre que além de correr ao
seu lado pode amar sua companhia39.
O sucesso dos contos de fadas alcançou as telas de TV com a série
estadunidense Grimm40, uma interessante mescla de fantasia e realidade
cujos argumentos se baseiam na obra dos irmãos germânicos. Em sua
trama, aparecem criaturas como o Lobo Mau, que possui aguçado olfato e
forte atração pela cor vermelha. Na versão de sua concorrente, Once upon a
time41, Chapeuzinho Vermelho deseja fugir com o seu companheiro; no
entanto, os dois tornam-se prisioneiros de um lobo sedento de sangue.
Vale ressaltar que nenhuma das duas é dirigida ao público infantil: ao
contrário, ambas têm forte apelo sexual, exibem cenas violentas e têm um
enredo carregado de suspense.
As recentes e arrojadas campanhas publicitárias lembraram-se de
Chapeuzinho para vender produtos e serviços. Em um comercial de
automóvel, a personagem questionou o porquê da existência de grandes
faróis, de imenso porta-malas e de gigante espaço interno. Uma conhecida
rede de fast-food mostrou pacificamente a avó, a menina e o lobo comendo
hambúrgueres. No intuito de chamar a atenção para produtos de beleza
feminina, associaram-na às diversas fases da mulher. Sua capa foi
emprestada como bandeira para as lutas contra o desmatamento e se
tornou símbolo contra as mais variadas formas de violência. Como se pode
perceber, em tempos de globalização cultural e econômica, a menina
contribui para capitalizar setores aparentemente desinteressados em sua
existência.
As diferentes leituras de Chapeuzinho Vermelho ao longo dos
séculos, sejam elas contadas, escritas, desenhadas, pintadas ou filmadas,
permitiram afirmar que alguns elementos básicos da história, além de
manter-se, são usados com muita frequência. Entre os mais comuns, estão
a adaptação e a atualização da narrativa, a desconstrução do clássico, a
intertextualidade e a revisitação a partir de formas distintas de
protagonismo, propondo a transformação da garota ingênua em esperta,
de passiva em proativa.
Atualmente, a vastíssima produção que envolve Chapeuzinho e os
demais contos de fadas é tão expressiva que não seria possível citar ou
aprofundar obras, títulos e autores – essa nem mesmo é a intenção deste
trabalho. Todavia, torna-se importante assinalar que sua permanência se
efetiva nessa longa caminhada por meio dos constantes elementos míticos
e ritualísticos que favorecem uma leitura subjetiva da complexidade que
envolve a condição humana.
Enfim, a amiga íntima de Narizinho nas reinações lobatianas
provocou emoções em famosos personagens reais. Luciano Pavarotti
afirmou: “Eu me identificava com Chapeuzinho Vermelho. Tinha os
mesmos medos que ela”. Já o escritor Charles Dickens teve uma paixão
arrebatadora pela menina: “Eu sentia que, se pudesse ter me casado com
Chapeuzinho Vermelho, teria conhecido a perfeita beatitude”42.
Ela também povoou o imaginário do autor deste artigo: em sua
infância, ele recebeu de presente dos pais uma coletânea ilustrada de
contos de fadas. Lá estava Chapeuzinho, embrenhada nas paisagens
gélidas e bucólicas de uma loresta em meio ao nada. Entre estilhaços de
imagens e memórias empoeiradas – ou talvez inventadas –, fixou sua
forma definitiva no tempo. O desejo de reencontrá-la gerou
intencionalidade acadêmica, possibilitou margens teóricas e estabeleceu
metodologia capaz de apresentar a um hipotético leitor curioso um pouco
de suas andanças.

1 Nelly Novaes Coelho, Contos de fadas, São Paulo: Ática, 2002, p. 89.
2 A obra se chamava, originalmente, Histoires ou contes du temps passé, avec des
moralités ou Contes de ma Mère l’Oye [Histórias ou contos do tempo passado
com moralidades ou Contos de Mamãe Gansa]. Esse segundo título pode ser
encontrado na tradução brasileira de Ivone C. Benedetti: Charles Perrault,
Contos de Mamãe Gansa, Porto Alegre: L&PM, 2012.
3 Charles Perrault, Contos de Perrault, Belo Horizonte: Villa Rica, 1999.
4 P. J. Stahl, “A respeito dos contos de fadas”, in: Charles Perrault, Contos de
Perrault, op. cit.
5 Ibidem, p. 38.
6 Charles Perrault, Contos de Mamãe Gansa, op. cit., p. 37.
7 Ibidem, p. 38.
8 Livre tradução a partir da obra original de Charles Perrault. Cf. Charles
Perrault, Contes en vers, contes en prose, Paris: Librairie Générale Française, 1990,
p. 197.
9 Jacob e Wilhelm Grimm, Kinder- und Hausmärchen, Düsseldorf: Null Papier,
2012.
10 Jacob e Wilhelm Grimm, Contos maravilhosos infantis e domésticos, São Paulo:
Cosac Naify, 2012, p. 137.
11 Ibidem, p. 139.
12 Ibidem, p. 26.
13 Ibidem, p. 28.
14 Ibidem, p. 29.
15 Monteiro Lobato, “A criança é a humanidade de amanhã”, in: Conferências,
artigos e crônicas, São Paulo: Brasiliense, 1964, p. 251.
16 Ibidem, p. 252.
17 Ibidem, p. 254.
18 Em pesquisas realizadas no Programa Institucional de Literatura Infantil
Juvenil (Prolij) da Universidade de Joinville (Univille), coordenado pela prof.
dra. Sueli de Souza Cagneti.
19 Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 14.
20 Ibidem, p. 40.
21 Ibidem, p. 126.
22 Monteiro Lobato, O Picapau Amarelo, São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 8.
23 Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou da educação, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
24 Mário Corso e Diana Corso, Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis, Porto
Alegre: Artmed, 2006, p. 57.
25 Claude Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, São Paulo: Edusp, 1970, p. 29.
26 Mário Corso e Diana Corso, op. cit., p. 55.
27 Philippe Ariès, História social da criança e da família, Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
28 Maria Tatar, Contos de fadas, Rio de Janeiro: Zahar, 2004, p. 363.
29 Nelly Novaes Coelho, op. cit., p. 38.
30 Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno, São Paulo: Nova Fronteira,
1989, p. 67.
31 Bruno Bettelheim, A psicanálise dos contos de fadas, São Paulo: Paz e Terra, 1998,
p. 78.
32 Ana Maria Lisboa de Mello (org.), “Apresentação”, in: Charles Perrault,
Chapeuzinho Vermelho, Porto Alegre: Kuarup, 1993, pp. 31-2.
33 Agnese Baruzzi e Sandro Natalini, A verdadeira história de Chapeuzinho Vermelho,
São Paulo: Brinque-Book, 2008.
34 Chico Buarque, Chapeuzinho Amarelo, Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
35 João Guimarães Rosa, Fita verde no cabelo: nova velha história, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1992.
36 Mário Prata, Chapeuzinho vermelho de raiva, São Paulo: Globo, 1970. Disponível
em: <http://marioprata.net/literatura-2/literatura-infantil/chapeuzinho-
vermelho-de-raiva/>. Acesso em: out. 2014.
37 Flávio de Souza, Eram quatro vezes: comédia para crianças de todas as idades, São
Paulo: FTD, 2009, p. 28.
38 Deu a louca na Chapeuzinho. Direção: Cory Edwards. Estados Unidos, 2005; Deu
a louca na Chapeuzinho 2. Direção: Mike Disa. Estados Unidos, 2011.
39 A garota da capa vermelha. Direção: Catherine Hardwicke. Estados
Unidos/Reino Unido, 2011.
40 Grimm (série televisiva). Roteiro: David Greenwalt e Jim Kouf. Estados
Unidos, 2011.
41 Once upon a time (série televisiva). Roteiro: Adam Horowitz e Edward Kitsis.
Estados Unidos, 2011.
42 Maria Tatar, op. cit., p. 13.
Fadas: três séculos ou três milênios?
ANGELA LEITE DE SOUZA

Rapunzel, Rapunzel,
jogue-me seus cabelos!
E a menina lançava então, janela abaixo, sua magnífica cabeleira dourada, tão
brilhante e tão longa que já atingira vinte e dois metros de comprimento!
Além de belos, seus cabelos eram fortíssimos, pois era agarrada a eles que a
bruxa subia até o alto da torre.

Contos, especialmente os de fadas, têm o condão de enfeitiçar, e não se


trata apenas de um jogo de palavras. O fato é que ninguém fica imune aos
encantos de narrativas como essas. A maioria das pessoas sempre volta a
algum momento da infância ou a alguma experiência especialmente
agradável com a leitura. De um modo ou de outro, todos “viajam” com as
personagens por um mundo diferente. Isso ocorre principalmente quando
quem narra o faz usando todo o seu poder de sedução e seu talento
dramático, mantendo a audiência com a respiração presa e o coração
suspenso, à espera do desfecho.
É preciso lembrar, antes de tudo, que esses contos vieram ao mundo
por meio da linguagem oral e apenas muito recentemente, no século XX,
comemoraram-se trezentos anos da publicação dos primeiros contos de
fadas, os famosos Contos de Mamãe Gansa, escritos por Charles Perrault
para divertir o filho do rei Luís XIV1.
É claro que três séculos não são nada em termos de história da
humanidade. Só então, portanto, é que os contos ganharam a forma
literária escrita e impressa, pois até então contar histórias era uma prática,
um hábito que se perpetuava de boca em boca, de geração em geração,
fazendo parte do que chamamos de tradição oral dos povos.
Em certas culturas, como a africana, ser contador de histórias
acabou por se constituir uma profissão conceituada. Chamados de akpalô,
os contadores no Brasil tiveram como figura correspondente a preta velha
que ia de engenho a engenho contando histórias.
Mas, com certeza, são as célebres narrativas de As mil e uma noites2
que melhor atestam a importância, de um lado, do conteúdo desses contos
e, de outro, do saber narrar bem. Para reavivar as lembranças, faço um
breve resumo da célebre coletânea. Na antiga Arábia, havia um sultão,
Shariar, que se tornou temível para os súditos a partir do dia em que
descobriu que sua esposa o traía. Ferido e transtornado, mandou que a
degolassem e decidiu que não mais se casaria, mas teria em seu leito todas
as moças do reino por uma única noite, pois, na manhã seguinte, elas
teriam o mesmo destino trágico da sultana infiel. E assim aconteceu, o que
instaurou o terror em todas as famílias que tinham donzelas. Até que,
certo dia, uma dessas donzelas, Sherazade, filha do Grão-Vizir, ofereceu-se
espontaneamente para passar uma noite com Sua Alteza. Apesar do
desgosto do pai de perder mais cedo do que esperava uma filha tão bonita,
inteligente e cheia de dotes, ela foi ao palácio e apresentou-se a Shariar,
que logo ficou fascinado por sua beleza. Antes de se deitarem, porém,
Sherazade anunciou ao sultão que lhe contaria uma bela história. Desse
modo, ela começou a narrar, usando seus melhores recursos de
interpretação.
O imperador foi se deixando envolver de tal maneira que nem
percebeu o passar das horas. Amanhecia quando Sherazade interrompeu a
narrativa, sob o pretexto de que histórias só devem ser contadas à noite
(talvez venha daí um dito muito popular em Minas de que “história de dia
cria rabo”). Curioso para saber o desenrolar da trama, o sultão resolveu que
pouparia a vida da moça por mais um dia, a fim de que ela pudesse
terminar o conto. Porém, na noite seguinte, Sherazade, muito sábia, pôs
em prática o mesmo estratagema, tendo o cuidado de interromper a
narrativa no momento mais empolgante. Ao mesmo tempo, tratava seu
senhor com delicadeza, sem demonstrar medo ou rejeição. Assim se
passaram mil e uma noites, ao final das quais Shariar estava
completamente apaixonado pela moça e esquecido de sua profunda e feroz
mágoa em relação às mulheres. O imperador voltou a ser o homem bom
que sempre fora, casou-se com Sherazade e, claro, devem ter sido felizes
para sempre.
O importante e significativo em As mil e uma noites é a demonstração
de que as histórias em que o elemento mágico está presente têm uma
capacidade transformadora – especialmente quando elas estão associadas
a uma grande afetividade. Em outras palavras, quando um vínculo de
amor e de afeto se estabelece entre o narrador e o ouvinte, não só aquele
preciso momento se torna prazeroso, mas o ato de ouvir histórias passa a
ser um dos valores mais caros à vida dessas pessoas. Consequentemente,
ele será buscado por elas sempre que houver oportunidade.
De outro modo, como explicar o fato de nós, adultos, sempre
ocupados com questões “sérias” (leia-se nessas aspas a referência a um dos
diálogos de Saint-Exupéry com o pequeno príncipe3), estarmos tão
ocupados hoje em discutir sobre fadas? O interesse pelo assunto na verdade
está ganhando mais espaço entre estudiosos das mais variadas áreas, ou
seja, o conto saiu do âmbito exclusivo dos antropólogos, dos folcloristas,
dos filólogos e dos literatos para entrar no cotidiano de psicanalistas,
psicoterapeutas, pediatras e educadores em geral.
Há dez anos, quando comecei a apurar as possíveis ligações dos
contos narrados pelos Irmãos Grimm com a nossa literatura oral, ou, mais
especificamente, com os contos orais do povo de Diamantina, não podia
imaginar em que incrível experiência embarcava nem quantas descobertas
pessoais inestimáveis faria.
Nesse trabalho, o que fiz foi utilizar uma coletânea de histórias que a
professora Maria Ângela Resende havia, com o propósito de estudá-las do
ponto de vista linguístico, recolhido na região de Diamantina, compará-las
com todos os contos de Grimm a que pude ter acesso e verificar o quanto
eles teriam in luenciado aquelas narrativas.
Para fazer isso, vasculhei mais de setenta obras, mergulhei nas
pesquisas de autoridades como Sílvio Romero e Câmara Cascudo e li vários
artigos contra e a favor dos contos de fadas como leitura para crianças.
Conheci ainda uma análise histórica interessante de Robert Darnton sobre
a gênese de contos como “Cinderela”4 e entrei em contato com a intrigante
visão psicanalítica das teses de Bruno Bettelheim, em A psicanálise dos
contos de fadas5, e Hans Dieckmann, em Contos de fadas vividos6. Cheguei até
mesmo a me divertir com os mirabolantes argumentos de Fausto Motta
que, em Contos e lendas interpretados pela psicanálise7, reduz todas as famosas
personagens da carochinha a neuróticos em último grau. Foi necessário
deter-me também no estudo pioneiro do russo Vladimir Propp sobre a
estrutura dos contos “maravilhosos”8. Precisei ainda conhecer um pouco
melhor a história da formação de Minas Gerais e, em especial, a do Arraial
do Tijuco, futura Diamantina, para tentar descobrir como teria se formado
aquela literatura não escrita da qual, por meio da pesquisa de Maria
Ângela, eu tinha uma amostra de 35 histórias9.
Finalmente, ao enveredar pela leitura dos contos de Grimm, percebi
o quanto eles haviam determinado minha trajetória adulta, meu futuro de
escritora e ilustradora que se especializaria em literatura infantil. A partir
de então, não tive a menor dúvida: o prazer de escutar e, mais tarde, de ler
aquelas histórias foi a semente de meu interesse prático e teórico pelos
livros.
Quando menina, tive diversos “contadores afetivos” para me incutir
esse gosto. Lembro-me de minha mãe contando-me histórias enquanto
lavava louças; de meu pai contando uma história sem fim e inesquecível
(sobre o herói Zé Prequeté, que fugia eternamente de uma lagartixa); da
costureira Dica, que ia à minha casa e era de uma paciência infinita
(nesses dias, eu tinha permissão de almoçar com ela no quarto de costura
e, entre uma garfada e outra e com certo estalar de língua, ela lia para mim
O gigante Jaraguá10); de tia Lilina, contando com muita graça e
dramaticidade a história da mula sem cabeça e de outras assombrações
que mexiam com a minha cabeça e o meu coração; e, entre outros, de tia
Diva, perita em improvisar histórias impagáveis, parodiando os contos
tradicionais.
Todas essas pessoas estavam ligadas a mim por laços afetivos
naturais ou criados justamente pela proximidade e cumplicidade que se
estabelecem entre os que compartilham uma aventura. Por mais que eu
tenha me esquecido de alguns enredos, trago a recordação das vozes, dos
ambientes, do aconchego e do grande prazer que eu experimentava
naqueles momentos. Em suma, fui bem nutrida com o alimento das
histórias na idade em que ele é mais necessário. É bom notar ainda que um
dos “contadores” lia e não apenas contava ou improvisava histórias para
mim, ou seja, minha iniciação literária também foi feita oralmente.
Com tudo isso, não estou querendo dizer que aqueles que ouvem
histórias de fadas em tenra idade serão necessariamente futuros escritores
e contadores de histórias, isso seria simplificar demais. O que penso é que
todos esses fatores contribuíram para fazer de mim uma leitora inveterada
e despertar e estimular minhas tendências de narradora e escritora. Sobre
outra pessoa, esses fatores teriam in luenciado de outro modo. Mas
acredito que esse tipo de experiência sempre terá efeitos mais tarde, na
criatividade e na afetividade de cada um.
A revelação principal a que cheguei em minha pesquisa foi a de que
os contos de fadas têm muito mais a dizer a todos nós, adultos e crianças,
do que possa parecer. Constatei que essas histórias têm caráter universal,
existem em variadas versões em qualquer parte do mundo, e mesmo os
que estudaram mais a fundo essa peculiaridade não conseguem encontrar
uma explicação definitiva para essa questão.
Ninguém pode ter certeza de que “Cinderela” surgiu na África, na
Europa ou em Diamantina porque foi levada pelos colonizadores ou
viajantes ou por causa das constantes migrações dos povos. Não é possível
ter essa certeza porque há até mesmo uma tese defendida pelos
psicanalistas de que a universalidade dos contos de fadas é determinada
pela existência do inconsciente coletivo, com seus arquétipos, que levariam
pessoas de culturas e latitudes diferentes a criar os mesmos mitos, as
mesmas fantásticas tentativas de explicar a aventura da existência
humana na Terra.
Apoiados nessa última hipótese, pensadores e terapeutas como
Bettelheim e Dieckmann não só chegaram a defender o uso dos contos de
fadas como recurso terapêutico – ou seja, como instrumento para sanar
problemas psicológicos e emocionais de pacientes adultos e crianças –,
mas também como medida profilática, isto é, um meio de prevenir o
aparecimento desses males desde a infância.
No livro Contos de fadas vividos, temos que Hans Dieckmann chegou a
suas descobertas no próprio consultório e, entre as muitas revelações
interessantes que seu livro traz, está a de que a maior parte das pessoas
tem um conto favorito, eleito desde a infância e que lhe servirá de modelo
pela vida afora, o que significa dizer que a trajetória de cada um será a
mesma de sua personagem predileta. Ao chegar a essa conclusão, o
psicanalista alemão pôde tratar melhor de seus pacientes, já que
trabalhava por meio das histórias e, nelas, o herói e a heroína sempre
encontram uma saída para seus impasses.
É verdade que essa saída muitas vezes conta com o precioso auxílio
de algum elemento mágico – um talismã, um animal encantado, uma fada,
um gnomo –, porém, sem a astúcia, o esforço, a virtude ou a perseverança
do herói, os obstáculos a seu sucesso não seriam vencidos.
Nesse aspecto, muitos estudiosos apontam que os contos de fadas
têm um caráter formador, argumento ao qual me alinho. Se repararmos
bem, personagens como Branca de Neve, Pequeno Polegar, Rapunzel,
Chapeuzinho Vermelho, Patinho Feio e tantos outros seguem rumos não
muito diferentes daqueles que cada um de nós percorre durante a vida. Às
vezes, nos sentimos sós e rejeitados; em outras, cheios de coragem e
motivação. Há aqueles que parecem já ter nascido com um objetivo
traçado e passam a vida empenhados em persegui-lo. Há os que parecem
perdidos ou estagnados e somente um acaso os tira do marasmo. Mas
nenhum de nós escapa dos “dragões” e das “bruxas” (medos, dúvidas,
inseguranças) nem deixa de encontrar pelo caminho “fadas” e “amuletos”
(coragem, determinação, bons relacionamentos, criatividade) para
desempenhar o papel que nos foi destinado. Se, no final dessa caminhada,
encontraremos um príncipe ou um sapo, a mão da princesa ou o
calabouço, dependerá da disposição individual para a “luta” que é a vida.
Em resumo, o conto de fadas – que segue sempre um padrão e, por
isso mesmo, pode ser adotado como recurso pedagógico –, contém uma
inegável analogia com a vida humana, motivo pelo qual tem merecido
atenção crescente de psicanalistas e psicoterapeutas.
Seminários e cursos para a discussão e o aprimoramento dos
métodos de trabalho terapêutico com os contos de fadas são
constantemente promovidos. O conto de fadas deixou de ser aquele
“proscrito” que certos críticos condenavam como alienante – a fantasia
como um meio de fugir à realidade em vez de enfrentá-la – ou artificial – as
personagens e as situações, tão distantes da realidade atual, seriam apenas
uma cultura “importada” sufocando a criatividade da cultura que os
assimila. Adequadamente dosada, a fantasia só traz benefícios para o
crescimento psicológico e espiritual. Os reis e as rainhas, com seus castelos
e seus problemas aparentemente tão anacrônicos funcionam exatamente
porque são habitantes de um mundo imaginário e podem ser “suportados” e
“decodificados” pelo ouvinte ou pelo leitor sem os traumas que causariam
se fossem pessoas e situações reais, como as que a televisão, por exemplo,
despeja diariamente em toda parte.
Mas o mais importante é ver o quanto os educadores despertaram
para a necessidade de voltar a oferecer esse “primeiro leite” cultural de que
todas as gerações antigamente se fartavam e que passou a ser cada vez
mais escasso – por inúmeras razões, inclusive pelo preconceito e pela
ignorância em relação a esse gênero de literatura.
Há pelo menos duas ou três gerações, a consciência de quão pouco
as crianças e os jovens brasileiros leem vem sendo ampliada, e não
podemos simplificar essa questão reduzindo sua causa principal à
economia. Ainda somos um país de analfabetos literais e funcionais.
Mesmo os que têm acesso à leitura não se beneficiam dela, e as razões
disso são muito mais complexas e sutis. A importação de formas de lazer
que excluem ou suplantam a leitura é apenas um entre os muitos dados
culturais responsáveis pelo desinteresse.
Se está comprovado que os contos de fadas ouvidos ou lidos desde
cedo desenvolvem, entre outros aspectos da personalidade, o gosto pelos
livros, é natural e desejável que se comece exatamente por eles o processo
de reversão de tal quadro.
Esse processo já se desenvolve há algum tempo e corresponde à
formação de uma nova, rica e original literatura para crianças e jovens. Na
década de 1970, época da ditadura militar e da pesada censura nos meios
de comunicação e na cultura em geral, alguns escritores perceberam que
essa literatura poderia ser a porta-voz de ideias e atitudes sobre as quais
era temerário até mesmo pensar. O simbolismo dos contos de fadas foi
visto como o veículo ideal: nesse período, começaram a ressurgir os reis e
as rainhas, ainda que para parodiar o gênero ou criticar alegoricamente a
situação política e social brasileira. Foi a fase de História meio ao contrário,
de Ana Maria Machado11, O reizinho mandão e outros na mesma linha, de
Ruth Rocha12, A fada que tinha ideias, de Fernanda Lopes de Almeida13, e
Sapomorfose, ou o príncipe que coaxava, de Cora Rónai14, obras que visavam,
acima de tudo, instalar dúvidas no pensamento do pequeno leitor sobre o
mundo ao seu redor.
A literatura infantil voltou então a ser mais contundente – algo que
não acontecera mais depois de Monteiro Lobato. Quando veio a abertura
política, o gênero já estava amadurecido o bastante para acolher outras
formas de aproveitamento dos contos de fadas. Muitos autores se
dedicaram a fazer “pastiches” desse gênero, como é o caso de Lino de
Albergaria, com Alice no metrô e Pio e Pinóquio15. Outros se dedicaram a
recontá-los à sua maneira, como Ciça Fittipaldi, Sônia Junqueira, a
Coleção Arco da Velha e inúmeras outras que vêm sendo publicadas por
diversas editoras brasileiras. Na década de 1990, muitas novas traduções,
reedições e recontos desaguaram no mercado.
No entanto, entre os muitos cultores do conto de fadas, talvez
ninguém mereça tantos aplausos quanto a escritora Marina Colasanti, que
se tornou uma especialista no gênero. Seu grande mérito é o de realmente
criar histórias, em vez de apenas dar uma forma literária ao folclore oral já
existente. Cito, como exemplo, o belo conto “Um palácio noite adentro”,
publicado em uma coletânea de sua autoria16. Com a alta qualidade
literária que caracteriza toda a obra dessa autora, ela tece sua história em
linguagem poética logo no primeiro parágrafo:

Sem nunca antes ter desejado uma casa, aquele homem surpreendeu-se
desejando um palácio. E o desejo que tinha começado pequeno rapidamente
cresceu, ocupando todo o seu querer com cúpulas e torres, fossos e porões, e
imensas escadarias cujos degraus se perderiam na sombra, ou no céu17.

Sempre seguindo os principais cânones de um conto de fadas a


partir de uma dicção particular, Marina chega a este desfecho inusitado e
profundo:
Olhou a lua no alto, sem saber que ela já tivera tempo de levantar-se e deitar-
se mais de uma vez. Olhou ao redor. Continuava sozinho, no topo da
montanha ventosa, ao desabrigo. Não habitava no palácio. Mas o palácio,
grandioso e imponente como nenhum outro, habitava nele, para sempre. E
talvez navegasse silencioso, noite adentro, rumo ao sonho de um outro
homem18.

Sem perder de vista a forma dos contos de fadas tradicionais,


Marina, sem dúvida uma perfeita artesã da palavra, soube preservar com
inteligência o “espírito” desse tipo de história, ou seja, as situações que se
repetem em geral três vezes, o herói que sai em busca de algo considerado
inatingível e a linguagem poética e metafórica que transporta o leitor a um
mundo irreal e, paradoxalmente, vívido.
Mas, como criadora que é, a autora dá seu toque pessoal a essa
reinvenção. No caso do conto em questão, o herói é simplesmente “um
homem” que caminha, como todas as personagens do mundo das fadas,
sobre a tênue linha divisória entre o real e o sonho. Contudo, embora
tivesse buscado seu objetivo com o afinco característico dos heróis, ele não
alcança no final aquilo que tanto almejava no plano real, mas o alcança no
plano imaginário. Assim, encontramos a chave desse conto, talvez o mais
significativo de todo o livro Longe como o meu querer: o recado de Colasanti é
que a imaginação pode suprir os nossos mais absurdos desejos e, ao fazê-
lo, impede que morra em nós a motivação para viver. Desse modo, ao
alimentarmos os sonhos, estaríamos sempre fortalecendo o espírito.
O que é preciso, portanto, é que, como pais, professores ou agentes
culturais, estejamos conscientes de que a contação de histórias contribui
de algum modo para a educação. Assim, tenhamos inspiração e empenho
suficientes para nos tornarmos Sherazades das gerações que viverão sua
maturidade neste milênio. Por meio de nosso amor pelas boas histórias,
procuremos induzir nelas o amor pela boa literatura.

1 Charles Perrault, Contos de Mamãe Gansa, Porto Alegre: L&PM, 2012.


2 Anônimo, Livro das mil e uma noites, São Paulo: Globo, 2005-11, 4 v.
3 “E tu pensas então que as lores…”/ “Ora, eu não penso nada. […] Eu só me
ocupo com coisas sérias”. Antoine de Saint-Exupéry, O pequeno príncipe, Rio de
Janeiro: Agir, 2006, p. 26.
4 Robert Darnton, “Histórias que os camponeses contam: o significado da
Mamãe Ganso”, in: O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural
francesa, Rio de Janeiro: Graal, 1986.
5 Bruno Bettelheim, A psicanálise dos contos de fadas, São Paulo: Paz e Terra, 1998.
6 Hans Dieckmann, Contos de fadas vividos, São Paulo: Paulinas, 1986.
7 Fausto Motta, Contos e lendas interpretados pela psicanálise, Petrópolis: Vozes,
1984.
8 Vladimir Propp, Morfologia do conto maravilhoso, Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1984.
9 Uma dessas histórias recebeu tratamento literário por parte da pesquisadora,
que é também autora de literatura infantil. Publicado na Coleção Arco da
Velha, o título do livro de Maria Ângela Resende é A história de Guiomar, Belo
Horizonte: Lê, 1996.
10 Willy Kloss, O gigante Jaraguá, São Paulo: Melhoramentos, s. d.
11 Ana Maria Machado, História meio ao contrário, São Paulo: Ática, 2010.
12 Ruth Rocha, O reizinho mandão, São Paulo: Salamandra, 2013.
13 Fernanda Lopes de Almeida, A fada que tinha ideias, São Paulo: Ática, 2006.
14 Cora Rónai, Sapomorfose, ou o príncipe que coaxava, São Paulo: Salamandra, 1983.
15 Lino de Albergaria, Alice no metrô, Belo Horizonte: Lê, 1993; Idem, Pio e Pinóquio,
Belo Horizonte: Lê, 1997.
16 A coletânea Longe como o meu querer, da mais alta qualidade literária, foi
vencedora do Prêmio Latino-Americano de Literatura Infantil e Juvenil
Norma-Fundalectura, da Colômbia.
17 Marina Colasanti, “Um palácio noite adentro”, in: Longe como o meu querer, São
Paulo: Ática, 1997.
18 Ibidem.
Palavra muda
ZEBBA DAL FARRA

Eis que agora os homens trocam entre si palavras/ como se fossem ídolos invisíveis,/
forjando nelas apenas uma moeda:/ acabaremos um dia mudos de tanto comunicar;/
nos tornaremos enfim iguais aos animais,/ pois os animais nunca falaram/ mas sempre
comunicaram muito – muito bem./ […] O fim da história é sem fala. [VALÈRE
NOVARINA]

A morte é condição de fecundidade. As palavras que minha voz


murmura, balbucia, pronuncia, mortas como realidade física quando
atiradas ao ar no sentido do outro, vivem pelo poder de nossas escutas,
fecundam nossos afetos, provocam nossos pensamentos, violam nossas
peles, ressoam nossas intimidades, impelem nossas ações. São palavras
úmidas que se opõem à palavra seca e desértica, são o pensamento divino
para os dogons habitantes da África atlântica. A palavra úmida é o som
audível, uma das expressões da semente masculina, o esperma: ela penetra
na orelha, que é outro sexo da mulher, e desce para enrolar-se em torno do
útero para fecundar o germe e criar o embrião. Sob a mesma forma espiral
da cóclea, o caracol da orelha interna, ela é a luz que desce à terra, trazida
pelos raios do sol1. A presença fugaz, mas viva, da palavra exige a presença
dos corpos: bocas e orelhas, olhos e peles, narizes e pulmões, carnes e
sangues, pulsações e pensamentos, emoções e desejos. Um risco desenha o
limite entre vida e morte. Na época de Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho, arquiteto brasileiro, risco era esboço de projeto: enquanto
prenuncia o perigo, o risco nos projeta.
Entretanto, condenadas e protegidas pelo uso cotidiano e por sua
condição de informação, as palavras driblam o risco e não vivem nem
morrem: vegetam. Permanecem anestesiadas, sem peso, sem espessura.
Essa voz cotidiana a supera sem negá-la à voz poética, que se abre ao
perigo e ao risco e, portanto, à experiência. O perigo da exposição à
singularidade da voz do sujeito poético justifica todos os esforços dos
especialistas, dos políticos, dos funcionários, dos jornalistas, para esvaziá-
la de conotação, de melodia, de ritmo, de ressonância, de música, de cor, e
reduzi-la à condição de portadora de informação, à sua mínima condição
utilitária. No dizer do filósofo espanhol José Luis Pardo, dessa língua dos
deslinguados extirpou-se o seu sabor de boca, pois:

Para acessar a linguagem, temos de falar uma língua (a – ou as – materna(s),


ao menos em princípio) e falá-la desde dentro, com nossa própria voz
(manifestando nossas dores e nossos prazeres com ela) e com nossa própria
língua. E isso faz que as palavras nos deixem um resíduo na ponta da língua,
um sabor de boca (doce ou amargo, bom ou mau), o que elas nos fazem saber
(nos dão a saborear) de nós mesmos e que ninguém mais do que nós pode
saber, porque ninguém mais pode saboreá-las com nossa língua e nossa boca,
porque a ninguém mais podem soar como soam a nós2.

Só eu posso saborear as palavras com minha língua e minha boca,


porque a ninguém mais as palavras podem soar como a mim me soam. Em
tensão com esse princípio da contramão poética, urge cultivar uma escuta
estrangeira (como se minha língua não fosse a materna), uma escuta que
capture os silêncios, os ruídos e os chiaroscuri das palavras: uma escuta
contra as palavras. Na interseção do dizer e do escutar, ponto a ponto no
espaço-tempo interpessoal, a voz poética em ressonância se lança. Paul
Zumthor chama isso de vocalidade poética: a voz em performance3.

II

Estar em experiência significa expor-se ao risco de estar suspenso


entre duas batidas do coração. Sobre esse silêncio suspenso, María
Zambrano diz:

Entre duas pulsações do coração, é neste vazio, neste silêncio que se situa a
esperança. Pois que há uma esperança que nada espera, que se alimenta de
sua própria incerteza: a esperança criadora; a que extrai do vazio, da
adversidade, da oposição, sua própria força sem por isso opor-se a nada, sem
embalar-se em nenhuma classe de guerra. É a esperança que cria suspensa
sobre a realidade sem desconhecê-la, a que faz surgir a realidade ainda não
existida, a palavra não dita: a esperança reveladora4.
No risco da experiência, a esperança se insinua como impulso
criador e fermenta a palavra não dita. Não se trata de utilizar a experiência
e a esperança como instrumentos, mas de nos colocarmos no espaço que
elas abrem. No dizer de Jorge Larrosa sobre a experiência: “um espaço para
o pensamento, para a linguagem, para a sensibilidade e para a ação (e,
sobretudo, para a paixão)”5.
Esse espaço da experiência e da esperança no campo da vocalidade
poética inclui necessariamente a presença do outro. Sua condição de
existência é a presença do outro. A voz, como a experiencio, é singular,
mas só faz sentido no outro, inscrevendo nele sua vocação polar:
manifestação íntima, privada, pública e ressonância do eu na pessoa pelo
cidadão; ressonância íntima, privada, pública e manifestação do eu, na
pessoa, pelo cidadão. Na vocalidade poética, manifestação é ressonância,
ressonância é manifestação.
A experiência da palavra pela voz em performance “significa a
presença concreta de participantes implicados nesse ato de maneira
imediata”6. Ocorre que as tecnologias e os espaços virtuais que lhe são
corolários tendem a desencarnar a presença e, por conseguinte, digitalizar
o circuito entre esses corpos: nessas situações, a voz, descarregada dos
odores, suores, ruídos e silêncios do livre trânsito, emana agora de um
corpo abstrato. A ausência de presença compromete as ações da
experiência. Walter Benjamin, nos ensaios “Experiência e pobreza” (c.
1933)7 e “O narrador” (c. 1936)8, já perguntava:

Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem
ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam
ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado,
hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a
juventude invocando sua experiência?
Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa
geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da
história. […] Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve
experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica
pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela in lação, a
experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma
geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se
abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens,
e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras,
estava o frágil e minúsculo corpo humano9.

Benjamin atribui a decadência e a destruição da experiência à


Grande Guerra de 1914-1918 e seus efeitos nos corpos e na economia. Sua
conclusão profetiza: “A crise econômica está diante da porta, atrás dela
está uma sombra, a próxima guerra”10. Giorgio Agamben confronta essa
análise com o cotidiano atual:

Sabemos não obstante hoje que, para destruir a experiência, não é preciso
uma grande catástrofe: a vida cotidiana, em uma grande cidade, garante este
resultado perfeitamente, em tempos de paz. Em uma jornada de trabalho do
homem contemporâneo, não há, com efeito, quase mais nada que possa se
traduzir em experiência: nem a leitura do jornal, tão rico de notícias
irremediavelmente estranhas ao leitor, mesmo que concernentes; nem o
tempo passado nos engarrafamentos ao volante de um automóvel; nem a
travessia dos infernos onde se precipitam as linhas do metrô; nem o cortejo de
manifestantes, barrando bruscamente toda a rua; nem a bruma de gás
lacrimogêneo, que se desfia lentamente entre os imóveis do centro da cidade;
nem ainda as rajadas de armas automáticas que explodem não se sabe onde;
nem a fila de espera que se alonga diante dos guichês de uma administração;
nem a visita ao supermercado, esta nova terra da fantasia; nem os eternos
instantes passados com desconhecidos, no elevador ou no ônibus, em muda
promiscuidade. O homem moderno volta para casa à noite consumido por um
punhado de acontecimentos – divertidos ou perturbadores, insólitos ou
ordinários, agradáveis ou atrozes – sem que nenhum deles se transforme em
experiência11.

Apesar de Agamben escrever em meados dos anos 1970, sua


descrição não só se encaixa plenamente em nossa observação diária:
amplificam-se os supermercados nos shoppings e as brumas nas nuvens de
poluição e multiplicam-se os engarrafamentos e as cachoeiras humanas
nas escadas do metrô. A despeito da leveza sedutora da virtualidade e da
ilusão de domínio do tempo e do espaço, o mundo pesa. Os velocímetros
indicam altos limites de velocidade, mas os automóveis vão em andamento
de carroça. Além disso, a destruição da experiência parece desenhar-se
com mais nitidez com a progressiva abstração da presença entre vozes e
corpos, cujo contato se faz de forma artificial, na virtualidade mediada por
aparelhos eletrônicos. Na ação do ar a movimentar as ondas sonoras entre
os corpos presentes implicados nesse ato de maneira imediata, onde se
coloca a vocalidade poética?

III

Se admitirmos que há, grosso modo, duas espécies de práticas discursivas, uma
que chamaremos, para simplificar, de “poética”, e uma outra, a diferença entre
elas consiste em que o poético tem de profundo [sic], fundamental
necessidade, para ser percebido em sua qualidade e para gerar seus efeitos, da
presença ativa de um corpo: de um sujeito em sua plenitude psicofisiológica
particular, sua maneira própria de existir no espaço e no tempo e que ouve, vê,
respira, abre-se aos perfumes, ao tato das coisas. […] Quando não há prazer –
ou ele cessa – o texto muda de natureza12.

Para Zumthor, a vocalidade é a historicidade de uma voz: seu uso13.


A vocalidade, portanto, convoca o corpo de quem diz no presente e na
presença, com as marcas da memória e os impulsos do devir. Por isso,
vocalidade poética é voz em performance, pois a noção de performance
implica um elemento irredutível: a ideia da presença de um corpo14. Na
análise conceitual da performance, Zumthor destaca quatro traços, assim
sintetizados:
1. Performance é reconhecimento. A performance realiza, concretiza,
faz passar da virtualidade à atualidade algo que eu reconheço.
2. A performance situa-se em um contexto ao mesmo tempo cultural e
situacional: ela aparece como uma “emergência”, um fenômeno que sai
desse contexto ao mesmo tempo que nele encontra lugar.
3. A performance é uma conduta na qual o sujeito assume aberta e
funcionalmente a responsabilidade.
4. A performance, de qualquer modo, modifica o conhecimento. Ela
não é simplesmente um meio de comunicação: comunicando, ela o
marca15.
É urgente o dizer do sujeito da vocalidade poética, que assume a
responsabilidade de sua performance, autorizado por uma tradição, e deixa
marcas em seu público. Nesse processo, ao mesmo tempo ele também se
transforma.
No curso da história, atribuíram-se a esse sujeito muitos nomes:
aedo, rapsodo, jogral, cantor de gesta, narrador, contador, artista do conto,
cancionista, cantor, performer, ator etc. Tomemos o rapsodo como motivo
inspirador e emblemático desses sujeitos: aquele cujo dizer transita entre o
cantor e o narrador. O rapsodo é aquele que cose os cantos, como quem
cose panos de uma roupa. Sua agulha tece com linhas grossas e finas o leve
e o pesado; junta o preto, o branco e o colorido; une o transparente e o
opaco: o rapsodo corta e costura. Imaginemos a própria figura do rapsodo
como um cosimento de atributos e requisitos que se transformam em
potências: uma rapsódia do rapsodo, uma rapsódia no rapsodo. Não se
trata de formular a totalidade dos atributos e dos requisitos, mas de
chamar a atenção para alguns princípios que regem a vocalidade poética
do rapsodo: sua voz em performance.

IV

Aponta María Zambrano: “Só se vive verdadeiramente quando se


transmite algo. Viver humanamente é transmitir, oferecer, raiz da
transcendência e seu solidário complemento”16. A transmissão, mirada
ética e educacional do rapsodo, associa-se solidariamente à conservação do
narrado, pois estamos no campo da vocalidade poética, âmbito no qual a
fugacidade da voz conserva ao transmitir. Portanto, a presença do outro
potencializa a conservação do narrado. Benjamin observa: “Raramente nos
damos conta de que a relação ingênua do ouvinte com o narrador está
dominada pelo interesse de conservar o narrado”17. O ouvinte que escuta
sem preconceito, desarmado, receptivo e distraidamente atento assegura a
possibilidade de reprodução.
Há um circuito entre o rapsodo e seu ouvinte, ativado pelas
polaridades do dizer e do escutar. Esse circuito, conectado a milhares de
outros circuitos, cria uma rede de histórias, feito malha percorrida por
correntes alternadas. O rapsodo foi, é e será ouvinte, assim como o ouvinte
é uma promessa de rapsodo: quando o narrador conta uma história, o
cantor canta uma canção e o rapsodo vibra na vocalidade poética, constrói-
se nesse ato performático uma rede de histórias.

A memória estabelece a cadeia da tradição que transmite o passado de geração


em geração. […] A musa da narração seria essa mulher infatigável e divina que
tece a rede que formam afinal de contas todas as histórias reunidas. Uma se
enlaça à outra, como amaram mostrá-lo todos os grandes narradores, e em
particular os contistas orientais. Na alma de cada um deles há uma Sherazade,
que a propósito de cada passagem de suas histórias se recorda de outra
história. Essa é uma memória épica em sentido restrito, é o elemento
inspirador da narração18.

Esse encadeamento faz com que cada história contenha


potencialmente todas as histórias na voz do rapsodo. A rede de histórias se
assemelha ao rio de murmúrios da memória que a personagem Boca,
sambista anônimo que desfia sambas solitário pelo desfile das escolas,
evoca na canção “Bebadosamba”, de Paulinho da Viola.

Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadosamba, meu bem
Bebadosamba, bebadosamba
Bebadosamba, bebadachama também19

Nessa canção, a chama do fogo da memória chama uma linhagem de


sambistas ancestrais e, com eles, suas vozes, suas obras e seus sambas,
tecendo-se uma rede narrativa puxada pelo aedo Paulinho20. A ação do
samba é terapêutica e prescrita como elixir para ser bebido. Um poder
curativo semelhante se encontra na canção “Paratodos”, de Chico
Buarque21:

Contra fel, moléstia, crime


Use Dorival Caymmi
Vá de Jackson do Pandeiro […]
Fume Ari, cheire Vinicius
Beba Nelson Cavaquinho.

Em contraste com o Boca, de Paulinho da Viola, porém, “Paratodos”


mais reverencia que evoca a ancestralidade pessoal do compositor, em rota
de convergência para o maestro soberano.

O meu pai era paulista


Meu avô, pernambucano
O meu bisavô, mineiro
Meu tataravô, baiano
Meu maestro soberano
Foi Antonio Brasileiro.

Nessas perspectivas, o cancionista se assemelha ao aedo; o cantor, ao


rapsodo. Sua voz de cantor e narrador, ao chamar musas e ancestrais,
alinha-se a uma linhagem em um campo quase ágrafo: gerado,
contaminado, conservado e transmitido pela memória. O rapsodo funde
em sua performance atributos do narrador e do cantor, na dicção dos
murmúrios da memória e também de seus gritos e sussurros. Eis,
portanto, um requisito da rapsódia do rapsodo: a competência real,
palpável e tangível de conectar luxos da memória à sua vocalidade poética.

Na transmissão e conservação do narrado, interceptam-se na


ressonância condições para que o rapsodo teça uma rede de histórias, de
dizer e de escutar. Aquém e além da percepção acústica da escuta do meu
dizer, trata-se da ressonância da minha intimidade. Pardo indica:

O “eu” que eu digo quando digo “eu” só é efetivamente dito porque me ouço
dizê-lo, porque ressoa em meu interior, além de propagar-se para fora (bem
entendido de que sem esta propagação externa tampouco chegaria a ser a
rigor fala, senão mera alucinação acústica), porque me soa a mim mesmo,
porque me sabe a mim mesmo. E só porque isso é assim, sou autenticamente
eu quem fala (quem diz o que eu digo), porque me reconheço no que digo e,
portanto, posso responder (ante outros) por isso e responder (a outros) sobre
isso. De modo que, aceitando o falar como caráter distintivo do modo de ser
do homem, coisa que não há como refutar, a ressonância interior da fala – o
que chamaremos intimidade da língua – seria ao menos tão essencial à
palavra (e, portanto, ao homem) como a tão celebrada publicidade de sua
significação22.

Um dos passos na construção de sua atuação23, a descoberta da


ressonância da vocalidade poética pelo rapsodo depende fortemente de
sua relação com o texto, que podemos compreender no já transcrito
excerto de Jorge Larrosa sobre a relação do leitor com a leitura. Seja oral ou
escrito, esse contato, essa relação, tem uma condição essencial: que não
seja de apropriação, mas de escuta, pois a voz do rapsodo só tem sentido
em trânsito, em transmissão. Dito de outro modo, que o outro permaneça
como outro e não como “outro eu” ou como “outro a partir de mim
mesmo”. O rapsodo arrogante que se empenha em permanecer erguido em
frente ao que lê é o sujeito que resulta da formação ocidental mais
agressiva, mais autoritária. É o homem que reduz tudo à sua imagem, à
sua medida; que não é capaz de ver outra coisa a não ser a si mesmo; que lê
apropriando-se daquilo que lê, devorando, convertendo tudo em uma
variante de si mesmo; que lê a partir do que sabe, do que quer, do que
necessita; e que solidificou sua consciência diante de tudo o que poderia
pô-la em questão. Quando está em escuta, pelo contrário, o rapsodo está
disposto a ouvir o que não sabe, o que não quer, o que não necessita. Está
disposto a perder o pé e a deixar-se cair e arrastar pelas curvas, os espaços
abertos, as perspectivas do caminho. Está disposto a percorrer uma
direção desconhecida. O outro como outro é algo que não posso reduzir à
minha medida, mas alguém com quem posso ter uma experiência que me
transforma.
Para Walter Benjamin, estar em escuta significa render-se ao tédio,
pássaro do sonho que choca o ovo da experiência.

O sussurro da folhagem o afugenta. Seus ninhos – as atividades que se ligam


intimamente ao tédio – se extinguiram nas cidades, decaíram também no
campo. Com isso se perde o dom de estar à escuta, e desaparece a comunidade
dos que têm o ouvido alerta. […] Quanto mais olvidado de si mesmo está o que
escuta, tanto mais profundamente se imprime nele o escutado24.
Pablo Oyarzun R., um tradutor chileno de “O narrador”, esclarece
que a versão de Langeweile por “tédio” perde de vista a significação
temporal que expressa o termo alemão: “‘largo instante’, que é, se se quiser,
o tempo em que não se faz nada, porque nada se destaca no transcurso de
um ‘instante’, e só se sente o tempo, não a sua passagem, como dilatação
vazia”25. Essa dilatação do tempo, abertura de si à ressonância do mundo,
aparece frequentemente na obra de Paulinho da Viola, seja por meio do
silêncio, como em “Para ver as meninas”, seja por meio do vazio, como em
“Nada de novo”.

PARA VER AS MENINAS


Silêncio por favor
Enquanto eu esqueço um pouco
A dor do peito […]
Hoje eu quero apenas
Uma pausa de mil compassos
Para ver as meninas […]
Porque hoje eu vou fazer
Ao meu jeito eu vou fazer
Um samba sobre o infinito26

NADA DE NOVO
Papéis sem conta
Sobre a minha mesa
O vento espalha as cinzas que deixei
Em forma de poemas antigos
Relidos
Perdido enfim confesso
Até chorei […]
Nada de novo
Capaz de despertar
Minha alegria27
A articulação entre escuta e receptividade aparece também no ensaio
“¿Qué es el teatro épico? (Segunda versión)”, de 1939, no qual Walter
Benjamin prescreve um público relaxado como condição do teatro épico.

“Nada mais agradável que estar tombado em um sofá e ler um romance”, diz
um dos autores épicos do século passado. Com isso se insinua quanto pode ser
o relaxamento do que desfruta uma obra narrativa. A imagem que fazemos do
que assiste a um drama costuma ser um pouco a oposta. Pensamos em um
homem que, com todas as suas fibras em tensão, segue um processo. O
conceito de teatro épico (que Brecht conformou como teórico de sua práxis
poética) indica, sobretudo, que esse teatro requer um público relaxado, que
siga a ação sem opressão. Tal público se apresentará sempre como uma
coletividade, que o distingue do leitor que está só com seu texto28.

A hiperatividade e a busca constante por novidade, que caracterizam


a vida contemporânea, desarvoram o sujeito e dificultam seu acesso a esse
lugar. Os encontros se dão nos sinais fechados, e a pressa é a alma dos
nossos negócios. Para o rapsodo, trata-se, portanto, de abrir um espaço de
tempo no ritmo da rotina, um vazio pleno de receptividade que propicie
um estar à escuta, um estado de escuta. Criar esse estado, nesse sentido, é
um gesto político.

VI

No garimpo da narração, o rapsodo lavra a palavra, com a paciência


de quem adivinha a joia ao olhar a pedra bruta. O rapsodo

[…] não se propõe a transmitir o puro “em si” do assunto, como uma
informação ou uma notícia. Submerge o assunto na vida do relator, para
poder logo recuperá-lo desde ali. Assim, se adere à narração a pegada do
narrador, como a marca da mão do oleiro na superfície de sua vasilha de
argila29.

Aqui novamente o rapsodo desafia o tempo, pois é preciso


perseverança para farejar, adivinhar, descobrir, escolher as palavras
preciosas de sua rapsódia e superar, pela vocalidade poética, a superfície
informativa do relato. “Se a arte de narrar tornou-se rara, a propagação da
informação é parte decisiva de tal estado de coisas30.” Sabemos que essa
propagação se amplificou e se espraia de forma crescente e, talvez,
irreversível. O homem contemporâneo navega em informações que não
necessariamente garantem conhecimentos e saberes, como queria
Lyotard, ao descrever, em um texto de 1979, o saber em tempos pós-
modernos:

Ele [o saber] não pode se submeter aos novos canais, e tornar-se operacional, a
não ser que o conhecimento possa ser traduzido em quantidades de
informação. […] O saber é e será produzido para ser vendido, e ele é e será
consumido para ser valorizado numa nova produção; nos dois casos, para ser
trocado31.

O narrador e o rapsodo driblam a informação para manter a história


livre de explicações, em busca de um dizer poético e lacunar aberto aos
sentidos de seus ouvintes. Nessa perspectiva, é possível, para o rapsodo,
impor tensões com o mundo da mercadoria e um estranhamento com as
palavras e os discursos inerciais. Passa-se algo semelhante na relação do
leitor com o texto, grau zero da voz em performance e, portanto, potência da
vocalidade poética do rapsodo. Escreve Paul Zumthor:

O texto vibra; o leitor o estabiliza, integrando-o àquilo que é ele próprio. Então
é ele que vibra, de corpo e alma. Não há algo que a linguagem tenha criado
nem estrutura nem sistema completamente fechados; e as lacunas e os
brancos que aí necessariamente subsistem constituem um espaço de
liberdade: ilusório pelo fato de que só pode ser ocupado por um instante, por
mim, por ti, leitores nômades por vocação32.

Não é só a história em si que deve ser lapidada. Da mesma forma que


cada vaso que o oleiro obra traz as marcas únicas das suas mãos, cada
palavra que o rapsodo diz traz as marcas únicas de sua voz. A cada
repetição, ele experimenta novas combinações corporais e vocais de
respiração, ritmos e ressonâncias, deixando rastros de silêncios, ruídos e
gestos em seus ouvintes – são rastros de sua experiência moldados na
vocalidade poética.
Pois o narrar, por seu lado sensível, não é de modo algum obra somente da
voz. No genuíno narrar, a mão, com seus gestos experimentados no trabalho,
atua melhor apoiando de mil maneiras o que se profere. […] E pode-se ir mais
longe e perguntar se a relação que o narrador tem com seu material, a vida
humana, não é por acaso uma relação artesanal33.

Dos rastros de sua experiência transbordam provérbios: o rapsodo


tem um conselho a dar a seus ouvintes, menos “a resposta a uma pergunta
que uma proposta para a continuação de uma história. O conselho,
entretecido na matéria da vida que se vive, é sabedoria”34. Leiamos as
composições de Paulinho da Viola:

TIMONEIRO
Não sou eu quem me navega
quem me navega é o mar
é ele quem me navega
como nem fosse levar […]
Meu velho um dia falou
com seu jeito de avisar:
– Olha, o mar não tem cabelos
que a gente possa agarrar35

DANÇA DA SOLIDÃO
Meu pai sempre me dizia
Meu filho tome cuidado
quando eu penso no futuro
não esqueço meu passado36

A lavra da palavra, a superação da informação e a captação do


ensinamento de sua arte em presença constituem outros movimentos da
composição rapsódica do rapsodo.

VII
Não obstante a beleza dessas canções contemporâneas, forjadas pela
experiência do aedo que as compôs, o que

[…] caracteriza o tempo presente, é, ao contrário, que toda autoridade se


funda sobre o que não pode ser experimentado. […] Daí o desaparecimento da
máxima e do provérbio, como formas em que a experiência se colocava como
autoridade. O slogan, que as substituiu, é o provérbio de uma humanidade que
perdeu a experiência37.

No contra luxo dessa constatação, o rapsodo resiste: sua performance


exige a experiência com o mundo, pois a

A experiência que se transmite de boca em boca é a fonte de que beberam


todos os narradores. […] O narrador toma o que narra da experiência: a sua
própria ou referida. E a converte, por sua vez, em experiência daqueles que
escutam sua história38.

Há no rapsodo, portanto, uma disposição para a experiência, que se


desdobra em um desejo de aprender. Paulinho da Viola capta essa atitude
em uma canção dos anos 1960 intitulada “Coisas do mundo, minha nêga”:

Hoje eu vim, minha nêga,


sem saber nada da vida
querendo aprender contigo
a forma de se viver
as coisas estão no mundo
só que eu preciso aprender
as coisas estão no mundo
só que eu preciso aprender39

VIII

Como se viu, a obra de Paulinho da Viola contém diversos requisitos


do rapsodo, embora tenha sido construída principalmente por meios
eletrônicos, auditivos e audiovisuais. Zumthor enumera três
características desses meios:

1. abolem a presença de quem traz a voz;


2. saem do puro presente cronológico porque a voz que transmitem é reiterável,
indefinidamente, de modo idêntico;
3. pela sequência de manipulações que os sistemas de registro permitem hoje, os
media tendem a apagar as referências espaciais da voz viva: o espaço em que se
desenrola a voz midiatizada torna-se ou pode tornar-se um espaço
artificialmente composto.

A ausência da presença corpórea compromete a vocalidade poética,


pois

[…] a mediação eletrônica fixa a voz (e a imagem). Fazendo-os reiteráveis, ela


os torna abstratos, ou seja, abolindo seu caráter efêmero abole o que eu chamo
sua tactilidade. […] A diferença entre os dois aspectos da mediação (a voz se faz
ouvir mas se tornou abstrata) é, sem dúvida, insuperável. Não duvido de que o
progresso tecnológico possa camu lá-la, fazê-la ao menos não tão sensível.
Mas em sua base ela evidencia a diferença biológica entre o homem e a
máquina. […] aquilo que se perde com os media, e assim necessariamente
permanecerá, é a corporeidade, o peso, o calor, o volume real do corpo, do qual a
voz é apenas expansão40.

Talvez, no caso da ação do cancionista exemplificada por Paulinho


da Viola, entrem em cena os muitos rapsodos que, nos ritmos de rodas de
samba espalhadas pelas cidades, ressoam essas canções na presença viva
das bocas e orelhas, dos olhos e das peles, dos narizes e pulmões, das
carnes e dos sangues, das pulsações e dos pensamentos, das emoções e dos
desejos, como no teatro. Novamente, Paul Zumthor:

A canção que cantava o ambulante de minha adolescência implicava, por seus


ritmos (os da melodia, da linguagem e do gesto), as pulsações do corpo desse
cantor, mas também do meu e de todos nós em volta. Implicava o batimento
dessas vias concretas, em um momento dado; e durante alguns minutos esse
batimento era comum, porque a canção o dirigia, submetia-o à sua ordem, a
seu próprio ritmo. A canção tirava dessa tensão, portanto, uma formidável
energia que, sem dúvida, nem o pobre-diabo do cantor nem eu, seguramente,
aos 12 anos, tínhamos consciência: a energia propriamente poética. Sem o
saber, reproduzíamos, todos juntos, em perfeita união laica, um mistério
primitivo e sacral. E esse mistério continua a se reproduzir incansavelmente
hoje, a despeito da acumulação, em torno de nós, de “engenhocas”
representando aquilo que, por antífrase, chamamos de progresso: a se
reproduzir, cada vez que de um rosto humano, de carne e osso, tenso diante
de mim com sua carga ou suas rugas, seu suor que peroleja nas têmporas, seu
cheiro, sai uma voz que me fala. Renova-se então uma continuidade que se
inscreve nos nossos poderes corporais, na rede de sensualidades complexas
que fazem de nós, no universo, seres diferentes dos outros. E nessa diferença
reside alguma coisa da qual emana a poesia41.

IX

Palavra muda: palavra insonora, calada pela comunicação.


Palavra muda: palavra que brota, galho que se tira daqui e se planta
em outro lugar.
Palavra muda: germinada na passagem da voz infantil para a voz
adulta.
Palavra muda: palavra transformadora.
Palavra muda: vocalidade poética.

1 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário de símbolos, Rio de Janeiro: José


Olympio, 2005, p. 679.
2 “Para acceder al lenguaje, tenemos que hablar una lengua (la – o las –
materna/s, al menos en principio) y hablarla desde dentro, con nuestra propia
voz (manifestando nuestros dolores y placeres con ella) y con nuestra propia
lengua. Y ello hace que las palabras nos dejen un residuo en la punta de la
lengua, un sabor de boca (dulce o amargo, bueno o malo), lo que ellas nos
hacen saber (nos dan a saborear) de nosotros mismos y que nadie más que
nosotros puede saber, porque nadie más puede saborearlas con nuestra
lengua y nuestra boca, porque a nadie más pueden sonarle como a nosotros
nos suenan.” (José Luis Pardo, La intimidad, Valência: Pre-Textos, 2004, p. 53,
tradução do autor).
3 Paul Zumthor, Performance, recepção, leitura, São Paulo: Educ, 2000.
4 “Entre dos pulsaciones del corazón, es en este vacío, en este silencio que se
sitúa la esperanza. Pues que hay una esperanza que nada espera, que se
alimenta de su propia incertidumbre: la esperanza creadora; la que extrae del
vacío, de la adversidad, de la oposición, su propia fuerza sin por eso oponerse
a nada, sin embalarse en ninguna clase de guerra. Es la esperanza que crea
suspendida sobre la realidad sin desconocerla, la que hace surgir la realidad
aún no habida, la palabra no dicha: la esperanza reveladora” (María
Zambrano, Los bienaventurados, Madrid: Siruela, 1990, p. 112, tradução do
autor).
5 “[…] un espacio para el pensamiento, para el lenguaje, para la sensibilidad y
para la acción (y, sobre todo, para la pasión)” (Jorge Larrosa, La experiencia de la
lectura, Madrid: Laertes, 1996, p. 88, tradução do autor).
6 Paul Zumthor, A letra e a voz, São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 59.
7 Walter Benjamin, “Experiência e pobreza”, in: Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1987.
8 Idem, El narrador, Santiago de Chile: Metales Pesados, 2010.
9 Idem, “Experiência e pobreza”, in: Magia e técnica, arte e política, op. cit., p. 115.
10 Ibidem, p. 119.
11 “Nous savons pourtant, aujourd’hui, que pour détruire l’expérience point n’est
besoin d’une catastrophe: la vie quotidienne, dans une grande ville, su fit
parfaitement en temps de paix à garantir ce résultat. Dans une journée
d’homme contemporain, il n’est presque plus rien en e fet qui puisse se
traduire en expérience: ni la lecture du journal, si riche en nouvelles
irrémédiablement étrangères au lecteur même qu’elles concernent; ni le
temps passé dans les embouteillages au volant d’une voiture; ni la traversée
des enfers où s’engou frent les rames du métro; ni le cortège de manifestants,
barrant soudain toute la rue; ni la nappe de gaz lacrymogènes, que s’e filoche
lentement entre les immeubles du centre ville; pas davantage les rafales
d’armes automatiques qui éclatent on ne sait où; ni la file d’attente qui
s’allonge devant les guichets d’une administration; ni la visite au
supermarché, ce nouveau pays de cocagne; ni les instants d’éternité passés
avec des inconnus, en ascenseur ou en autobus, dans une muette promiscuité.
L’homme moderne rentre chez lui le soir épuisé par un fatras d’événements –
divertissants ou ennuyeux, insolites ou ordinaires, agréables ou atroces – sans
qu’aucun d’eux se soit mué en expérience” (Giorgio Agamben, Enfance et
histoire, Paris: Payot, 2002, p. 25, tradução do autor).
12 Paul Zumthor, A letra e a voz, op. cit., p. 41.
13 Ibidem, p. 21.
14 Ibidem, p. 45.
15 Ibidem, p. 37.
16 “Sólo se vive verdaderamente cuando se transmite algo. Vivir humanamente
es transmitir, ofrecer, raíz de la transcendencia y su complemento a par”
(María Zambrano, op. cit., p. 106, tradução do autor).
17 “Rara vez se toma en cuenta que la relación ingenua del oyente con el narrador
está dominada por el interés de conservar lo narrado” (Walter Benjamin, El
narrador, op. cit., p. 79, tradução do autor).
18 “La memoria establece la cadena de la tradición que transmite el pasado de
generación en generación. […] La musa de la narración sería esa mujer
infatigable y divina que anuda la red que forman a fin de cuentas todas las
historias reunidas. Una se enlaza a la otra, como han gustado de mostrarlo
todos los grandes narradores, y en particular los cuentistas orientales. En el
alma de cada uno de ellos hay una Scheherazade, que a propósito de cada
pasaje de sus historias se acuerda de otra historia. Ésta es una memoria épica
en sentido restringido, es el elemento inspirador de la narración” (Idem,
ibidem, p. 116, tradução do autor).
19 Paulinho da Viola, “Bebadosamba”, Bebadosamba (LP/CD), Rio de Janeiro,
Sony/BMG, 1996.
20 Cf. Zebba Dal Farra, “Palavras invisíveis”, Revista Sala Preta (ECA-USP), São
Paulo: 2009, n. 9, pp. 185-7.
21 Chico Buarque, “Paratodos”, Paratodos (CD), Rio de Janeiro, Marola Edições
Musicais, 1993.
22 “El ‘yo’ que yo digo cuando digo ‘yo’ sólo es efectivamente dicho porque me
oigo decirlo, porque resuena en mi interior además de propagarse hacia fuera
(en el bien entendido de que sin esta propagación externa tampoco llegaría a
ser en rigor habla, sino mera alucinación acústica), porque me suena a mí
mismo, porque me sabe a mí mismo. Y sólo porque eso es así soy
auténticamente yo quien habla (quien dice lo que yo digo), porque me
reconozco en lo que digo y, por tanto, puedo responder (ante otros) de ello y
responder (a otros) sobre ello. De modo que, aceptando el hablar como
carácter distintivo del modo de ser del hombre, cosa que no hay como refutar,
la resonancia interior del habla – lo que llamaremos intimidad de la lengua –
sería al menos tan esencial a la palabra (y por tanto al hombre) como la tan
celebrada publicidad de su significación” (José Luis Pardo, op. cit., p. 36,
tradução do autor).
23 Atuação e performance são equivalentes, no sentido de desempenho cênico.
24 “El susurro del follaje lo ahuyenta. Sus nidos – las actividades que se ligan
íntimamente al tedio – se han extinguido en las ciudades, han declinado
también en el campo. Con ello se pierde el don de estar a la escucha, y
desaparece la comunidad de los que tienen el oído alerta. […] Cuanto más
olvidado de sí mismo está el que escucha, tanto más profundamente se
imprime en él lo escuchado” (Walter Benjamin, El narrador, op. cit., pp. 70-1,
tradução do autor).
25 “‘largo rato’, que es, si se quiere, el tiempo en que no se asiste a nada, porque
nada se destaca en el trascurso del ‘rato’, y sólo se siente el tiempo, no su paso,
como dilatación vacía” (Ibidem, p. 17, tradução do autor).
26 Paulinho da Viola, “Para ver as meninas”, Paulinho da Viola – 1971 (LP), Rio de
Janeiro, Sony/BMG, 1971.
27 Idem, “Nada de novo”, Rio de Janeiro, Sony/BMG, 1970.
28 “‘Nada más hermoso que estar tumbado en un sofá y leer una novela’, dice uno
de los autores épicos del siglo pasado. Con ello se insinúa lo grande que puede
ser la distensión del que disfruta ante una obra narrativa. La imagen que nos
hacemos del que asiste a un drama suele ser un poco la opuesta. Pensamos en
un hombre que con todas sus fibras en tensión sigue un proceso. El concepto
de teatro épico (que Brecht ha conformado como teórico de su praxis poética)
indica, sobre todo, que dicho teatro desea un público relajado, que siga la
acción sin apreturas. Tal público se presentará siempre como una
colectividad, lo cual le distingue del lector que está a solas con su texto”
(Walter Benjamin, Tentativas sobre Brecht, Madrid: Taurus, 1975, p. 17, tradução
do autor).
29 “[…] no se propone transmitir el puro ‘en sí’ del asunto, como una información
o un reporte. Sumerge el asunto en la vida del relator, para poder luego
recuperarlo desde allí. Así, queda adherida a la narración la huella del
narrador, como la huella de la mano del alfarero a la superficie de su vasija de
arcilla” (Idem, El narrador, op. cit., p. 71, tradução do autor).
30 “Si el arte de narrar se ha vuelto raro, la propagación de la información tiene
parte decisiva en tal estado de cosas” (Ibidem, p. 68, tradução do autor).
31 Jean-François Lyotard, O pós-moderno, Rio de Janeiro: José Olympio, 1986, pp. 4-
5.
32 Paul Zumthor, A letra e a voz, op. cit., p. 63.
33 “Pues el narrar, por su lado sensible, no es en modo alguno obra de la sola voz.
En el genuino narrar, la mano, con sus gestos experimentados en el trabajo,
actúa más bien apoyando de mil maneras lo que se profiere. […] Y se puede ir
más lejos y preguntar si la relación que tiene el narrador con su material, la
vida humana, no es acaso una relación artesanal” (Walter Benjamin, El
narrador, op. cit., p. 95, tradução do autor).
34 “la respuesta a una pregunta como una propuesta concerniente a la
continuación de una historia. El consejo, entretejido en la materia de la vida
que se vive, es sabiduría” (Ibidem, p. 64, tradução do autor).
35 Paulinho da Viola e Hermínio Bello Carvalho, “Timoneiro”, Bebadosamba (LP),
Rio de Janeiro, Sony/BMG, 1996.
36 Paulinho da Viola, “Dança da solidão”, A dança da solidão (LP), Rio de Janeiro,
Sony/BMG, 1972.
37 “Ce qui caractérise le temps présent, c’est au contraire que toute autorité se
fonde sur ce qui ne peut être expérimenté. […] D’où la disparition de la
maxime et du proverbe, en tant que formes où l’expérience se posait en
autorité. Le slogan, qui les a remplacés, est le proverbe d’une humanité qui a
perdu l’expérience” (Giorgio Agamben, op. cit., p. 26, tradução do autor).
38 “La experiencia que se transmite de boca en boca es la fuente de la que han
bebido todos los narradores. […] El narrador toma lo que narra de la
experiencia: la suya propia o referida. Y la convierte a su vez en experiencia de
aquellos que escuchan su historia” (Walter Benjamin, El narrador, op. cit., pp. 61
e 65, tradução do autor).
39 Paulinho da Viola, “Coisas do mundo, minha Nêga”, Paulinho da Viola – 1968
(LP), Rio de Janeiro, Sony/BMG, 1968.
40 Paul Zumthor, Performance, recepção, leitura, op. cit., pp. 17-9.
41 Ibidem, p. 46.
 
PROCESSOS
A palavra: letra e voz
SERGIO CARNEIRO BELLO

O narrador oral urbano está amarrado aos livros como um barco ao cais, ali se abastece
para sair a navegar. Aos livros chegamos para nos abastecer, mas, como os barcos,
regressamos a eles também para reparar nossas feridas, para descansar e para repartir
a carga que trazemos. [RODOLFO CASTRO]

INTRODUÇÃO

Sou contador de histórias formado na prática docente e, assim, a


sala de aula foi meu primeiro “palco”: era professor de educação infantil e
lia histórias diariamente para as crianças. Não estava propriamente
satisfeito com essa prática, pois, ao ler para elas, minha narração era
constantemente interrompida pelas manifestações do grupo diante das
gravuras; ao mesmo tempo, achava que, sem o livro, não conseguiria
lembrar o texto na íntegra ou que meus alunos não prestariam atenção em
mim sem as gravuras.
Isso ocorreu até que a turma solicitou uma história cujo livro não
estava na escola. Era uma daquelas histórias “incorporadas”, como
“Chapeuzinho Vermelho” ou “Os três porquinhos”. O fato é que, diante da
insistência, decidi contá-la. Surpreso com o efeito obtido, percebi o grupo
mergulhado em silêncio, com olhares que me atravessavam, certamente
focados em suas próprias imaginações, nas quais, afinal, eu também
estava, pois o texto que verbalizava era construído enquanto eu visualizava
minhas imagens da história. A partir dessa experiência, passei a narrar
sem o apoio dos livros, estimulado por meus alunos, que me apontavam
sua preferência:
– Hoje a gente não quer histórias de livro!
– Como assim? – perguntava.
– A gente quer histórias de boca.
Essa prática foi transformada no projeto A hora do conto1, e passei a
narrar histórias para outras turmas e a intensificar minha atuação desde
então.
As re lexões a seguir são fruto dessa experiência como contador de
histórias no ambiente educacional, especialmente em escolas e também
em projetos de formação de leitores em bibliotecas e outros espaços.

LEITORES SEM LIVROS

Na minha vida de educador, escuto com frequência a expressão


“preguiça de ler” (sempre como queixa ou acusação) e pergunto: como
pode haver a “preguiça de ler” se podemos ler preguiçosamente deitados
em uma rede? Se a preguiça é sempre a resistência a algum tipo de
exercício (ou ação), a qual exercício se refere essa preguiça? Certa vez, uma
aluna me deu uma pista para responder a essa questão: “Quando você
conta histórias, parece que a gente vê tudo, que a gente tá lá”. É
exatamente isso que acontece quando lemos um bom livro. Efetivamente,
vemos e sentimos os acontecimentos na nossa imaginação. Construímos
imagens mentais a partir da palavra, escrita em um caso e ouvida no outro.
Esse é o exercício, e percebemos aqui uma relação íntima entre a leitura e a
escuta, que pode ser ilustrada com uma experiência pessoal.
Com um livro nas mãos, busco histórias para narrar. Mas, ao folhear
páginas ao acaso, um título me faz parar e, lendo as primeiras linhas, já
não estou na minha casa e nem sou mais um professor e contador de
histórias. Transportado para outro espaço-tempo, sou um aluno do
terceiro ano do antigo primário. O ambiente é uma sala de aula, com pé-
direito alto e carteiras de madeira envernizadas. A manhã é sombria, e o ar
está tempestuoso. Como faltou luz, a turma se juntou em torno da
professora, que conta uma história, a história que tenho agora diante de
mim. Dou-me conta de que ela sempre esteve comigo, pois, sem que
necessite continuar a leitura, ela me vem inteira. Leio, então, apenas para
constatar que é realmente a mesma.
Essa experiência transforma anos de observação e estudo em uma
sensação quase tangível e me faz recordar Paul Zumthor descrevendo uma
situação similar: assistir aos poetas de rua na Paris de sua infância, que
declamavam versos para vendê-los, “folhas volantes em bagunça em um
guarda-chuva emborcado no meio da calçada”, ou simplesmente passar o
chapéu como aceno de retribuição à sua performance.

Passados sessenta anos, pude compreender que, desde então,


inconscientemente, não cessei de buscar o que ficou, em minha vida, daquele
prazer que senti então: o que me restou no consumo (em certos momentos
bulímicos) que fiz, ao longo dos anos, daquilo que chamamos “literatura”2.

Assim como Zumthor foi levado à literatura – à poesia, em especial –


pela escuta dos poetas de sua infância, tornei-me leitor pelas histórias que
ouvi. É verdade que isso ocorreu também porque fui alfabetizado e tive
acesso aos livros, mas o fator principal ainda é ter sido cativado pelas
histórias.
Como minha professora do terceiro ano, muitas outras professoras
da educação infantil e das séries iniciais do ensino fundamental intuíram
a importância de ouvir histórias, principalmente na formação de leitores, e
assim cativaram seus alunos com a leitura ou a narração oral de histórias.
Apesar disso, e embora a ciência já apontasse há muito as relações entre as
modalidades oral e escrita da linguagem verbal, na escola essa re lexão é
pouco desenvolvida. Questões relativas à natureza do fenômeno
linguístico e às relações entre as modalidades oral e escrita da língua são
pouco discutidas ou conhecidas na educação, como aponta Marcuschi:
“Conhecemos hoje muito mais sobre as relações entre a oralidade e a
escrita do que há algumas décadas. Contudo, esse conhecimento não se
acha bem divulgado nem foi satisfatoriamente traduzido para a prática”3.
Assim, ainda predomina nas escolas o uso da arte da narração oral
como um recurso para acalmar as crianças em um dia de chuva ou como
estratégia de transmissão de conteúdos escolares com caráter utilitário,
como é o tratamento dado em geral à literatura infantil4. Infelizmente,
professores como aquela da minha lembrança não são a maioria. Os
educadores parecem tão preocupados com os conteúdos que não percebem
as possibilidades da prática oral em si. Com o intuito de se valerem desse
momento como uma mera ferramenta que não traz nada de notável a não
ser “dourar a pílula” do conteúdo a ser ensinado, desprezam o seu
verdadeiro caráter educativo:

A escola […] deve assumir e difundir estas manifestações tão ricas e antigas, e
isso não só nos primeiros anos, mas também ao longo de toda a escolarização.
Assim, cíclica e progressivamente, os educadores potenciarão as capacidades
imaginativas, sensoriais, fabuladoras […] é educativo trabalhar a literatura
como visão originária do ser humano diante do mundo, das outras pessoas, da
divindade, da morte etc. e como construção de outra realidade, de plenitudes
linguísticas […]5.

ORATURA

Em minha trajetória como contador de histórias, desenvolvi o gosto


por narrativas tradicionais, como os chamados contos de fadas, e também
por lendas e mitos de todas as tradições culturais, histórias em sua grande
maioria oriundas da oralidade. Elas não trazem autoria individual: foram
passadas oralmente ao longo de gerações, com incontáveis versões. Assim,
sempre me permiti narrá-las com minhas próprias palavras. Mesmo que
elas tivessem chegado a mim por meio da escrita, eram versões tão
verdadeiras quanto todas as outras que foram ditas pela voz dos
narradores que as legaram.
Algumas vezes, eu era tocado por histórias da literatura. Nessas
ocasiões, atendendo a uma necessidade interior de compartilhá-las pela
narração, buscava uma maior “fidelidade” ao texto original. Essa estratégia
era movida por um sentimento de reverência ao texto literário – muitas
vezes tão (ou mais) importante para o encanto que a narrativa me
proporcionava quanto o enredo propriamente dito – e de respeito à sua
autoria. Entretanto, o resultado final não era o desejado. Em algumas
ocasiões, eu conseguia reproduzir o texto, mas isso não parecia produzir,
na plateia, o efeito que o conto havia produzido em mim por ocasião da
leitura. Em outras situações, eu narrava com as minhas palavras, buscando
apenas uma aproximação com o texto autoral, mas meu sentimento final
era o de uma apropriação indevida.
Apesar do desconforto da questão não equacionada, me pareceu que
eu estava no caminho certo quando me deparei com o texto das contadoras
de histórias Gislayne Matos e Inno Sorsy, que afirmam que:

[…] os contos populares são próprios da cultura oral, enquanto os contos da


literatura são próprios da cultura escrita. Esses dois modelos de cultura
designam duas formas distintas de comunicação linguística; sendo assim, os
tipos de contos que produzem também terão características distintas.
Enraizado na oralidade, o conto popular tem na sua base de comunicação a
percepção auditiva da linguagem, enquanto o literário, enraizando-se na
escrita, tem na sua base de comunicação a percepção visual da mensagem6.

Ao transpor para a oralidade um texto produzido para o suporte


escrito, eu não poderia produzir o mesmo efeito resultante de sua leitura.
A decorrência dessa constatação seria, então, deixar de lado os textos
literários?
Gilka Girardello7 me sugeriu inicialmente uma perspectiva mais
satisfatória sobre essa questão: o texto oral como um suporte distinto do
escrito. Ao transpor uma obra literária para o teatro, se faz necessária uma
adaptação do original. Dessa forma, analisar a fidelidade dessa adaptação
à obra original é muito mais complexo do que simplesmente buscar as
palavras do autor, tal como estão em seu texto, na atuação dos atores.
Obviamente, aqui não se espera a garantia de integridade do texto original
pela integralidade de suas palavras.
A palavra escrita é apropriada pelo leitor a partir de uma relação
visual. O texto está em nossas mãos, logo, as palavras não são mais sons,
mas imagens. Embora o leitor transforme esses signos gráficos em uma
voz (interna ou externa) no ato da leitura, as palavras estão ali, quase como
objetos palpáveis. Nas palavras de Walter Ong: “A escrita faz com que as
‘palavras’ pareçam semelhantes às coisas porque pensamos a escrita como
as marcas visíveis que comunicam as palavras aos decodificadores:
podemos ver e tocar tais ‘palavras’ inscritas em textos e livros. […] As
palavras escritas são resíduos”8.
Quando lemos um texto, tomamos posse das palavras. Podemos
parar a leitura para uma re lexão ou um diálogo e retomá-la em seguida.
Podemos correr os olhos pela página e “saltar” alguma passagem que nos
pareça mais enfadonha, seguindo a leitura em um trecho posterior.
Quando nos damos conta de que alguma informação importante foi
perdida, podemos voltar no texto e relê-lo, afinal, ele está ali, nas nossas
mãos.
A palavra dita, ao contrário, é fugaz, só existe no momento em que
uma voz a produz. Ong aponta: “A tradição oral não tem tais resíduos ou
depósitos. Quando uma história oral não está sendo narrada, tudo o que
dela subsiste é seu potencial de ser narrada por certos seres humanos”9.
A partir da perspectiva dessas diferenças, eu podia entender meu
desconforto como narrador quando trazia para a oralidade o texto escrito,
com seus parágrafos longos, descrições muito extensas ou detalhadas,
re lexões das personagens, diálogos etc.
Sem dúvida, a expressão da literatura pela voz pode deleitar nossos
ouvidos, principalmente a literatura escrita para ser dita, como o texto
teatral e a poesia. Porém, o foco pode não estar na “palavra” como vista
pela literatura, mas na comunicação de uma imagem através do corpo e
conduzida pela voz. De acordo com Ong: “A palavra oral […] nunca existe
num contexto puramente verbal, como ocorre na palavra escrita. As
palavras proferidas são sempre modificações de uma circunstância total,
existencial, que sempre envolve o corpo”10.
Para que uma narração busque ser expressão artística da oralidade,
o texto deve ser produzido conforme a natureza desta. Não há permissão
para a simples transposição do texto escrito, uma vez que a oralidade pode
ser traduzida por “imagem falada”11. “Na narração, toda a descrição deve
estar a serviço da ação, do entendimento do enredo”, conforme Bruno de
La Salle12, no Boca do Céu13 de 2010.
Ao proferir expressões como “o grande carvalho”, “a linda princesa”
ou “o imponente castelo”, é como se o narrador oralizasse imagens mais
sugeridas por arquétipos do que por descrições, pois essas imagens são
reconstruídas ou completadas na imaginação de cada ouvinte.
Poderíamos, ainda, entrar na questão do ritmo e da musicalidade da
narração, mas o objetivo dessas re lexões é mais modesto: tento responder
aos escritores que não gostam de ouvir seu texto na voz de contadores de
histórias ou que preferem ouvi-lo na íntegra. Se o objetivo do narrador é a
expressão artística a partir dos princípios da oralidade, uma adaptação da
obra original pode mostrar-se não apenas permitida, mas, na maior parte
dos casos, necessária. Assim, penso que fica mais claro o fato de essa
escolha não representar um desrespeito ao texto ou ao seu criador, mas, ao
contrário, um reconhecimento de que a obra transcende o suporte no qual
ela foi criada ao ser transposta para outra linguagem artística. É assim,
afinal, que são recebidas as versões de obras literárias para o cinema ou o
teatro, e, se há alguma polêmica a respeito, é sobre a qualidade da versão, e
não sobre a possibilidade de fazê-la.
A meu ver, essa questão se coloca para os contadores de histórias que
buscam um trabalho de “resgate” das práticas orais pela prevalência
ideológica da escrita sobre a fala, prevalência essa apontada desde o
surgimento da linguística, quando Saussure, em seu Curso de linguística
geral, afirmava:

[…] a palavra escrita se mistura tão intimamente com a palavra falada, da qual
é imagem, que acaba por usurpar-lhe o papel principal; terminamos por dar
maior importância à representação do signo vocal do que ao próprio signo. É
como se acreditássemos que, para conhecer uma pessoa, melhor fosse
contemplar uma fotografia do que o próprio rosto14.

Muitos outros autores têm apontado esse prestígio da escrita sobre a


oralidade – mesmo que a primeira seja decorrência da segunda –, a tal
ponto que as criações orais tenderam a ser consideradas variantes de
produções escritas. O termo “literatura oral”, por exemplo, é uma evidência
dessa inversão. Segundo Ong:

Este termo, decididamente absurdo, permanece em circulação hoje, até


mesmo entre estudiosos cada vez mais plenamente conscientes de quão
constrangedora se mostra nossa inabilidade para imaginar uma herança de
materiais verbalmente organizados, exceto como alguma variante da escrita,
mesmo quando nada tem a ver com ela15.

Podemos então entender o texto do narrador oral como “oratura”,


em busca de uma equivalência ao termo “literatura”, a fim de abranger a
tradição e as apresentações orais sem que estas sejam confundidas ou
reduzidas, ainda que sutilmente, a variantes da escrita.
Os contadores de histórias que, como eu, buscam a recriação de uma
arte oral com um olhar sobre as origens dessa performance narrativa
poderão continuar preferindo as histórias oriundas da tradição oral. Em
geral, mesmo quando apresentadas em versões escritas, as histórias orais
trazem no texto as marcas de sua origem. Contudo, penso que o
aprofundamento dessas re lexões pode ampliar as possibilidades
narrativas, até mesmo nessas obras da literatura. O escritor e contador de
histórias Rodolfo Castro lembra que o texto escrito compartilha com a
oralidade um espaço comum de linguagem, mas cada forma de expressão
tem regras independentes que, em alguns casos, são incompatíveis. O
escritor propõe, mas o leitor em voz alta tem todo o direito de dispor do
texto segundo sua experiência demande.
Penso que, também aos contadores de histórias que preferem narrar
o texto literário, uma re lexão nesses termos possa ser de grande
importância, principalmente na escolha dos textos a serem apresentados
oralmente. De qualquer maneira, as diversas linguagens ou formas
narrativas se complementam e produzem pontos de contato e diferenças, e
diferentes práticas alcançam dimensões distintas da expressão artística
narrativa.

1 O projeto foi instituído em 1995 na escola Sarapiquá, em Florianópolis, Santa


Catarina.
2 Paul Zumthor, Performance, recepção e leitura, São Paulo: Educ, 2000, pp. 33-5.
3 Luiz Antônio Marcuschi, Da fala para a escrita: atividades de retextualização, São
Paulo: Cortez, 2001, p. 9.
4 Edmir Perrotti, O texto sedutor na literatura infantil, São Paulo: Ícone, 1986.
5 Maria Victoria Reyzábal, A comunicação oral e sua didática, Bauru: Edusc, 1999, p.
271.
6 Gislayne Avelar Matos e Inno Sorsy, O ofício do contador de histórias, São Paulo:
Martins Fontes, 2005.
7 Orientadora da minha dissertação de mestrado e também de minha prática e
re lexão sobre o assunto.
8 Walter Ong, Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra, São Paulo:
Papirus, 1998, p. 20.
9 Ibidem.
10 Ibidem, p. 81.
11 Cf. Francisco Garzón Céspedes, “Contadores de histórias: oralidade, narração
oral e narração oral cênica”, in: Maria Helena Kühner (org.), O teatro dito
infantil, Blumenau: Cultura em Movimento, 2003.
12 O francês Bruno de La Salle é contador de histórias desde os anos 1960.
Escritor e formador de gerações de contadores, é referência na narração oral
europeia.
13 Festival Internacional de Contadores de Histórias, com curadoria de Regina
Machado, realizado a cada dois anos em São Paulo.
14 Ferdinand de Saussure, Curso de linguística geral, São Paulo: Cultrix, 2006, p. 34.
15 Walter Ong, op. cit., p. 20.
Poesia em (voz) alta: a visão de um autor
LEO CUNHA

Neste artigo, discutirei a poesia sob a perspectiva da contação de histórias


e vice-versa. Não sou propriamente um contador de histórias nem tenho
pesquisas sistemáticas acerca dessa atividade artística/profissional, mas,
como poeta, leitor, pai e professor, tenho acumulado uma série de
re lexões sobre o tema. Portanto, ao contrário da maior parte deste livro,
meu artigo se baseia muito mais na vivência pessoal do que em estudos
teóricos.
Assim, começo com um causo de família: certo dia, quando tinha
uns 8 anos, minha filha Sofia chegou em casa ansiosa:
– Papai, você vai na feira do livro da escola, no sábado?
– Vou, sim, filha.
– Que bom! Eu vou ressuscitar um poema.
Eu dei uma gargalhada.
– Você vai o quê?
– Ressuscitar um poema, pai! Já sei ele de cor.
– Você vai recitar o poema, Sofia.
Ela parou, fez uma careta e devolveu:
– Eu sei, pai. Mas é que é um poema muito antigo, de Vinicius de
Moraes. Como ele já morreu, então acho que eu vou mesmo é ressuscitar o
poema.
No sábado seguinte, eu fui à escola assistir à apresentação. Para
minha alegria, Sofia recitou lindamente o poema do relógio, de Vinicius de
Moraes, do livro Arca de Noé. O texto começa assim: “Passa tempo, tic-tac,
tic-tac, passa a hora./ Chega logo, tic-tac, tic-tac, vai-te embora”.
Nem sempre é assim, porém. Às vezes, o que acontece é que o aluno,
em vez de recitar ou “ressuscitar” o poema, acaba enterrando-o, por
a lição, por não sabê-lo de cor ou ainda por não ter se preparado
adequadamente. Muitas vezes, fica nítido que a “preparação” do aluno
para declamar o poema se concentrou quase totalmente na tarefa de
“memorizar” os versos. É algo até compreensível, afinal, a criança vai
declamar o poema diante dos colegas, dos pais, dos professores e de outros
alunos da escola, e nada assusta mais em uma situação dessa do que o
famoso “branco”, o esquecimento de uma palavra, de um verso. O próprio
professor e a escola podem recear que esse “branco” revele uma falha na
preparação da atividade, o que pode resultar em um questionamento por
parte dos pais.
Ocorre que, na ânsia de decorar o poema, outros fatores acabam
esquecidos ou relegados a segundo plano. É comum a criança dizer o
poema em voz muito baixa, por timidez ou insegurança, ou então recitá-lo
de forma muito acelerada, atropelando as palavras para conseguir cumprir
a tarefa.
Quando se trata de uma apresentação no estilo de jogral, as
dificuldades aumentam ainda mais, pois surge o problema extra da
sincronização e da harmonização das vozes. Celso Sisto, grande contador
de histórias brasileiro e um dos principais estudiosos sobre o tema,
costuma apontar o risco de o contador se tornar um “repetidor mecânico”
em vez de mergulhar no texto para realizar sua performance. No caso da
poesia – e particularmente nas apresentações de poesia em voz alta na
escola – esse risco é constante.
É claro que um poema bem recitado e um jogral bem preparado são
um grande prazer para quem escuta. Mas a experiência poética me parece
muito mais rica quando o professor se preocupa menos com a
memorização e mais em ajudar o aluno a se familiarizar com o poema, sua
lógica, seus sentidos, seu ponto de vista, seus ritmos, suas pausas, as
possíveis entonações e modulações da voz, enfim, com todas as suas
sutilezas.
Eu mesmo raramente me arrisco a recitar (ou interpretar) poemas
de cor, sejam eles de minha autoria ou de outros poetas. Nas muitas vezes
em que tenho sido convidado a declamar poemas – em escolas, feiras,
festivais, saraus etc. –, prefiro sempre pegar o livro e lê-lo. Tenho plena
convicção de que minha memória é lamentável, mas, em compensação,
desfruto muito do exercício da leitura em voz alta, que, aliás, pratico
constantemente também com meus alunos na faculdade ou em cursos e
oficinas.
Acredito que um poema bem lido, com o livro na mão, pode ser tão
saboroso quanto um poema bem recitado, todo aconchegado na memória
do contador. O mesmo vale para um conto, uma crônica, um trecho de
romance ou outra prosa qualquer. Ambas as atividades – a leitura e a
contação – podem ser altamente literárias e, mais do que isso, podem ser
convites irresistíveis para aquele que está ouvindo buscar o livro depois e
ler o texto por conta própria.
Sei que no Brasil – em proporção infinitamente maior do que em
qualquer outro país – existe uma forte resistência à contação de histórias
por parte de alguns setores do mundo literário. Tais setores enxergam o
risco de que a contação substitua o contato com o livro, a leitura do livro, a
compra do livro etc. Não nego que essa seja uma preocupação salutar e
bem-intencionada, mas discordo de seu fundamento. Considero esse risco
mínimo, especialmente no caso dos melhores contadores de histórias,
também apaixonados por livros e pela literatura – muitos deles inclusive
escritores – e que tomam o cuidado de apresentar o livro e informar o
autor daquele poema ou da história contada. Muitas vezes os contadores
chegam a incluir em seus espetáculos um momento para o público
manusear os livros, brincar com eles, folheá-los e lê-los1. Estou convencido
de que todo o empenho e a paixão desses bons contadores só podem
trabalhar a favor da poesia, da literatura e do livro, e não contra eles.
Admito que já ouvi pais e professores relatarem que suas crianças
ficam encantadas, embevecidas, fascinadas quando uma história lhes é
apresentada por um contador, mas que essas mesmas crianças não se
dispõem a ler o livro com a história antes ou depois da contação. Não
duvido de que isso ocorra, mas duvido de que a culpa desse problema seja
do contador ou da contação em si. Parece-me que a questão tem outras
explicações. Para citar apenas uma delas, está mais do que demonstrado
que o professor ou pai que dá o exemplo da leitura para a criança e se
mostra fascinado pela leitura tem muito mais chances de estimular no
aluno ou no filho a paixão pelos livros.
No meu caso, sempre tive muitos livros em casa e, com meus filhos,
sempre conciliei a leitura com a contação de histórias – sobretudo as
histórias clássicas. Minha simpatia pela contação tem grande relação com
minha vivência pessoal, desde a adolescência. No final dos anos 1970,
minha mãe abriu uma livraria em Belo Horizonte – a primeira
especializada em literatura infantil e juvenil da cidade e uma das primeiras
do Brasil –, cujo nome era Casa de Leitura e Livraria Miguilim. Desde o
nome do estabelecimento, já estava claro que o interesse ali não era apenas
o de vender livros, mas o de ser um espaço para a leitura. Eu estudava de
manhã e passava praticamente todas as minhas tardes na Miguilim, lendo
tudo o que havia nas prateleiras (poesia, conto, crônica, novela, teatro etc.),
vendo outras crianças e adolescentes lerem, ouvindo pessoas lerem livros
em voz alta para os frequentadores e também assistindo a contadores
apresentarem histórias e poemas. Todas essas atividades se misturavam
em um caldeirão, e, para mim, tudo fazia parte de um mesmo universo de
estímulo à leitura, de prazer com a literatura.
No fundo, quando alguém conta um poema ou uma história ou
quando alguém lê um livro para uma criança (ou para qualquer pessoa), em
ambos os casos me parece que a intenção final, o objetivo essencial, é o
mesmo: povoar o imaginário da criança e envolvê-la com sensações,
emoções, ambientes, personagens, imagens, intrigas, enfim, com tudo
aquilo que a literatura é capaz de nos trazer2. Com isso, a contação e a
leitura também contribuem para estimular a criatividade, o espírito crítico
e a re lexão sobre os valores e dilemas que estão inseridos, de forma mais
ou menos evidente, nessas histórias e nesses poemas.
Ao fazer tudo isso, a contação e a leitura também sensibilizam a
criança para a linguagem literária – o que é muito diferente de ensinar a
língua escrita, alfabetizar ou algo que o valha. Existem propostas muito
interessantes de alfabetização ou letramento com o apoio da literatura,
mas haverá outros momentos e outros expedientes para que isso ocorra, e
estes não são o momento da leitura em voz alta nem o momento da
contação, visto que a alfabetização requer, evidentemente, que a criança
pegue o livro, pegue o lápis, exercite a leitura e a escrita e enfrente as
dificuldades e as descobertas típicas desse processo.
É evidente, também, que nenhuma das duas atividades pode ou deve
substituir o momento da leitura individual e solitária de um poema, de
uma crônica ou de um conto. Essas são atividades que se complementam,
se alimentam e se fortalecem3.
Voltando à minha trajetória pessoal, lembro que, no final de década
de 1980, a Miguilim trouxe a Belo Horizonte os contadores Luiz Carlos
Neves e Isabel de los Ríos, integrantes do grupo Encuentos y Encantos, da
Venezuela. Os dois fizeram diversas apresentações, ministraram oficinas e
realizaram debates sobre a contação no que diz respeito a metodologias,
vertentes, desafios e possibilidades. Alguns anos depois, tive o prazer de
frequentar um breve curso de contação de histórias, ministrado por Celso
Sisto.
Entre as questões discutidas por Luiz Carlos e Isabel e depois
retomadas por Celso – e que continuam sendo discutidas até hoje – estão:

• a importância de escolher um bom poema/conto a ser contado (e, para isso, o


contador/leitor/professor precisa de um repertório amplo e diversificado);
• a importância de escolher um poema/conto adequado ao público que estará
presente naquele momento específico;
• a importância de preparar cuidadosamente a leitura/contação, o que inclui
elementos como o ritmo, a cadência, as pausas, a entonação etc.

Um texto mal lido ou mal contado não possibilitará uma experiência


literária tão valiosa para a criança. Pelo que tenho acompanhado nesses
muitos anos de atividade literária (e também em feiras de livros, visitas a
escolas etc.), constatei claramente que há pessoas que contam melhor e
outras que leem melhor. Feliz ou infelizmente, faço parte do segundo
grupo.
Quando vou conversar com uma turma de crianças ou de
adolescentes, na grande maioria das vezes ela não espera uma fala
expositiva. Quase sempre a expectativa e a preferência são de um
momento mais lúdico, de uma atividade mais dinâmica e envolvente.
No caso da poesia, por exemplo, depois de algumas primeiras
tentativas malsucedidas no início da carreira, fui percebendo que uma
ótima saída para esses casos é simplesmente pegar meus livros e ler os
poemas. Mesmo que as crianças já tenham lido o livro anteriormente, elas
gostam de ver como o próprio poeta “interpreta” um texto de sua autoria.
Quando a turma é mais velha, costumo pontuar a leitura dos poemas
com algumas considerações sobre o fazer poético, os tipos de poesia para
crianças e os recursos poéticos. Dependendo dos poemas que seleciono
para ler, posso explicar e exemplificar assuntos como: o que é um haicai,
um limerique, uma quadrinha, um verso livre, um trava-língua etc. Posso
falar sobre o uso ou não da rima, o ritmo e a musicalidade na poesia, o que
é a poesia visual, o diálogo entre a poesia e a ilustração, entre outros
assuntos. Com isso, tento estimular os alunos (e também os professores
presentes naquele momento) a vivenciar vários tipos de construção
poética, desde a mais lírica até a mais lúdica, desde a mais sonora até a
mais visual.
Quanto mais jovens são as crianças na sala ou na plateia, mais curtos
são esses apontamentos e mais a fala se aproxima de um sarau. Prevalece,
assim, a fruição propriamente dita da poesia. Em ambos os casos (crianças
menores ou maiores), costumo levar comigo praticamente todos os livros
de poesia que já publiquei, pois eles são muito diferentes entre si e me
permitem transitar pelos vários tipos de poesia para crianças.
É raro eu me arriscar a recitar um poema sem ler o livro. Isso
acontece, normalmente, quando o meu poema já foi musicado, o que
facilita muito a memorização. Tenho a felicidade de ter mais de cinquenta
poemas musicados por compositores de vários cantos do Brasil. Vez ou
outra, cantarolo e ensino para a meninada a versão musicada de um dos
meus poemas e fico satisfeito quando chego a uma escola e descubro que o
professor de música ou de literatura criou uma canção a partir de um
poema meu. Não vejo como isso poderia afastar as crianças do meu livro,
como já vi algumas pessoas argumentarem. Pelo contrário: acredito que a
descoberta da musicalidade de um poema serve como estímulo para as
crianças explorarem outros poemas, meus ou de outros autores.
No caso dos textos em prosa, costumo enfrentar um dilema
específico quando preparo a leitura de um livro para um grupo de crianças
(ou mesmo de adultos, no caso de uma oficina): em que medida devo
seguir ipsis litteris o que escrevi e em que medida devo fazer uma
“autoadaptação”, suprimindo trechos e eliminando detalhes ou passagens
que podem tornar a leitura muito longa para aquela circunstância
particular? Imagino que esse mesmo dilema seja enfrentado pelos
contadores ao preparar suas apresentações.
A princípio, tudo o que eu pus em um texto é fundamental, senão eu
teria cortado da versão final. Contudo, na prática, as coisas não funcionam
bem assim. No finalzinho de 2011, fui convidado a participar do projeto
Leia na Rede, promovido pela Rede EBC4, no qual o escritor participa de
uma teleconferência pela internet com a presença de crianças e lê ao vivo
um texto de sua autoria. Como era véspera de Natal, optei pelo meu conto
“Chapeuzinho de Natal”, do livro Contos De Grin Golados5, composto de
paródias das histórias dos Irmãos Grimm.
(A escolha do livro para essa atividade esteve relacionada com seu
próprio processo de criação. Entre todas as minhas obras, Contos De Grin
Golados é a que mais claramente se originou na contação. Desde que minha
filha nasceu – e, na verdade, antes mesmo disso, quando ela ainda estava
na barriga da mãe6 –, criei o hábito de contar histórias e poemas para ela,
principalmente na hora de dormir. Em muitos desses momentos, eu lia no
livro, em outros, contava as histórias de cor. Entre as que a Sofia mais
gostava, estavam os contos de Grimm, como “Rapunzel”, “Chapeuzinho
Vermelho”, “Os três porquinhos” e “A Bela Adormecida”. Como eu contava
cinco, dez, vinte vezes a mesma história, acabei criando recontos,
variações e paródias. Sofia às vezes não apreciava algumas dessas
variações e pedia a volta da versão dos Grimm. Em outras, porém, ela se
divertia muito. Assim, escolhi os três de maior sucesso para compor o livro
Contos De Grin Golados.)
O conto não é um texto muito longo, mas, ainda assim, ao me
preparar para a teleconferência, tomei o cuidado de relê-lo atentamente e
acabei selecionando três ou quatro parágrafos que me pareceram
dispensáveis à leitura em voz alta, pois poderiam torná-la muito extensa
para aquela atividade específica, ao vivo, mediada por computadores e que
não me permitia ver a reação de todos os ouvintes ou saber o tamanho real
daquele público virtual.
Em outras ocasiões, de acordo com o perfil das pessoas que ouviriam
a história, não tive medo de trocar uma palavra ou outra por sinônimos
que me pareceram mais adequados à situação. Quando lemos um livro
para nós mesmos, temos sempre a possibilidade de parar a leitura, buscar
um dicionário, consultar alguém. Quando a leitura é ao vivo, em tempo
real, isso muda, e não considero um crime de “lesa-literatura” a troca da
palavra por algum sinônimo.
No caso dos textos em prosa poética, porém, a situação se aproxima
do que ocorre com a poesia: é muito mais difícil “reduzir”, “simplificar” ou
“adequar” tais textos para determinado público. Já experimentei essa
sensação ao ler em voz alta meus livros O sabiá e a girafa7 e Em boca fechada
não entra estrela8, por exemplo. Embora narrativos, esses livros trazem uma
prosa bastante trabalhada, repleta de rimas internas, aliterações,
assonâncias, jogos de palavras, trocadilhos e um ritmo peculiar, o que
dificulta muito qualquer tentativa de síntese. Assim, enxergo esses textos
como se fossem poemas e prefiro lê-los na íntegra, ou então não os leio.
Vale reforçar que a decisão sobre fazer alterações no texto é bastante
complexa e delicada. Nem sempre tenho certeza de que fiz a escolha certa,
mesmo sendo o autor do texto. Só posso imaginar que, no caso de um
contador que está apresentando um texto escrito por outra pessoa, essa
dúvida (e esse cuidado) seja ainda maior. Só realmente conhecendo muito
bem a história e suas sutilezas, experimentando, testando e ensaiando é
que se consegue perceber se determinado trecho realmente pode ser
suprimido ou se determinada palavra deve ser trocada. Na dúvida, é
melhor ser fiel ao livro e ao autor.
Por outro lado, já vi pessoas capazes de contar histórias
extremamente complexas sem alterar uma vírgula. É o caso, por exemplo,
das contadoras Dôra Guimarães e Elisa Almeida, com seus espetáculos
maravilhosos a partir de contos de Guimarães Rosa, Gabriel García
Márquez, Clarice Lispector, entre outros autores, em uma proposta híbrida
entre a declamação e a encenação. No caso, o público-alvo é geralmente
composto de adultos.
Gostaria, finalmente, de sublinhar um dado que me parece bastante
relevante, embora nem sempre levado em consideração. Sabe-se que a
presença do texto poético é muito menos comum em apresentações de
contadores do que a presença dos contos, fábulas, causos, crônicas e outros
gêneros da prosa. Acredito ser um engano concluir a partir disso que os
contadores não gostam de poesia ou que o público não aprecia o gênero.
Afinal de contas, devemos levar em conta que a poesia é também
minoritária – e muito – entre os livros publicados tanto para crianças como
para adultos. Já houve anos em que a Fundação Nacional do Livro Infantil
e Juvenil (FNLIJ) deixou de atribuir o prêmio de melhor livro de poesia por
escassez de competidores. A poesia também é minoritária – e muito –
entre as atividades propostas por professores nas escolas9. Portanto, não
se trata de uma falha ou de um preconceito dos contadores, mas de algo
disseminado em nossa sociedade.
Ademais, são vários os motivos para a pequena presença da poesia
no repertório da maior parte das contações. Para começar, a poesia é quase
sempre mais curta, sintética: muitas vezes, um poema não chega a trinta
segundos de contação, o que traz dificuldades específicas para o contador,
que está mais acostumado a envolver o público com uma personagem, com
seu “arco dramático”, com sua “jornada”. Além disso, a poesia é –
essencialmente e sobretudo em sua vertente mais lírica – uma expressão
de emoções e sensações concentradas em poucas linhas, ao passo que, na
narrativa, as emoções estão mais distribuídas ao longo do texto e
geralmente caminham, em um crescendo, em direção a um clímax. A
poesia também costuma ter um nível de ambiguidade, de imprecisão, de
plurissignificação maior que o de um conto ou de uma fábula.
É claro que esses elementos, entre outros, apresentam dilemas
particulares ao contador e também àquele que vai ler um poema em voz
alta. As possibilidades de entoação, de timbre, de ritmo e de
“interpretação” provavelmente serão maiores em um texto poético, assim
como haverá uma incerteza maior quanto à recepção, ou seja, em como o
público vai reagir ao poema, senti-lo, compreendê-lo, se vai gostar mais ou
menos dele. Ainda assim, é sempre um grande prazer encontrar um
contador ou um leitor – criança ou adulto – que se dediquem de corpo e
alma a apresentar sua interpretação particular de um poema. Não digo que
isso ressuscite o poema, mas certamente dá a ele uma nova vida.

1 Esse é o caso, por exemplo, de uma apresentação a que assisti recentemente da


contadora Beatriz Myrrha, em Belo Horizonte.
2 É claro que o imaginário não se desenvolve, ou não se amplia, somente por
meio da literatura e do livro. Todas as outras artes também são ricas nesse
aspecto: o teatro, o cinema, a pintura, a música, os quadrinhos etc.
3 Além disso, nunca é demais lembrar que, na época em que a alfabetização era
extremamente limitada, a literatura se apoiou bastante na oralidade – nos
contadores, nos bardos, nos griôs etc. – a fim de manter sua força e seu
encantamento.
4 Empresa Brasileira de Comunicação S/A, Brasília.
5 Leo Cunha, Contos De Grin Golados, Belo Horizonte: Dimensão, 2005.
6 Sobre a leitura e a contação de histórias para recém-nascidos ou ainda não
nascidos, sugiro o livro Guia de leitura para bebês e pré-leitores Uni duni Ler,
escrito por Alessandra Pontes Roscoe a partir de sua experiência em projetos
como o Uni Duni Ler e o Aletramento Fraterno, em Brasília.
7 Leo Cunha, O sabiá e a girafa, São Paulo: FTD, 2012.
8 Idem, Em boca fechada não entra estrela, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
9 Por mais que isso ainda ocorra, tenho percebido como as crianças se
deslumbram e se apaixonam pelo texto poético quando a escola o trata de
forma mais criativa, menos engessada, menos preocupada com conteúdos e
avaliações.
Por que contar histórias para bebês, crianças e
adultos: um novo paradigma para a humanidade
FABIO LISBOA

É certamente nossa aptidão para viver num mundo de representações que cria a nossa
aptidão para a violência e ao mesmo tempo para a cultura. [BORIS CYRULNIK]
A comunicação – em si mesma – é um processo vital, que encontra sua expressão
máxima no amor. [PIERRE WEIL]

UM COMEÇO

Ao buscar respostas para a pergunta “por que contar histórias?”,


vislumbramos a importância desse ato como um direito básico – que
permitirá o acesso a outros direitos essenciais e universais – e importante
para a formação de um novo paradigma para a humanidade.
Ao contar histórias e ao viver as experiências do cotidiano,
conscientemente ou não reforçamos, refutamos ou reformulamos
conjuntos de ideias que permeiam os valores e o modo de vida da
sociedade. Mas quais seriam os nossos valores e modos de vida atuais? Nós
os reforçamos, refutamos ou os reformulamos? Por que e como contar
histórias no mundo contemporâneo? Essas perguntas nos fizeram ir atrás
de outras perguntas, que por fim nos levaram a encontrar algumas
respostas.
Boris Cyrulnik1 afirma que:

[…] um mundo sem ritos é um mundo bruto, reduzido à matéria, ao peso e à


medida, ao passo que um mundo ritualizado instila a história nas coisas, lhes
dá sentido e possibilita que estejamos juntos. […] Os animais não são violentos
enquanto os processos biológicos e ecológicos são equilibrantes. Já os homens
são violentos porque têm a intenção de se dar a possibilidade de eliminar
aqueles que vivem em uma outra representação. A ausência de ritual leva ao
caos, assim como a hegemonia de um ritual leva à destruição do outro, duas
formas de violência que dão no mesmo. A única saída é a invenção de um
ritual de confrontação dos rituais que organize, assim, seu reconhecimento
mútuo. Tal ritual é chamado de “con lito social”, ou “debate filosófico”, ou
“revista científica” […]2.

O ato de contar histórias inclui-se na categoria de ritual de


reconhecimento mútuo, e não é apenas um ritual de reconhecimento da
existência do outro, mas de um diálogo respeitoso de crenças e valores, de
conexão entre o eu, o mundo e o outro. Ao contar histórias, abrimos a
porta de um altar para todos os deuses; abrimos os olhos, as mentes e os
corações; caminhamos lado a lado de um herói de mil faces. Abertos e
hospitaleiros a novas ideias alheias, aprendemos a ouvir, respeitar e até a
compreender o outro. Exclamamos e agimos, interrogamos e fazemos uma
pausa para re letir.
Neste ensaio, impulsionados pelos movimentos surpreendentes e
circulares das histórias, questionaremos por que as mães amamentam
bebês durante as histórias e veremos como a nossa palavra se torna real e
alimenta o mundo; voltaremos a “qual é o paradigma sob o qual vivemos e
qual é o novo sob o qual queremos viver?”; e daremos um passo rumo ao
futuro propondo que tracemos juntos os alicerces de uma utopia. Sem a
pretensão de oferecer respostas definitivas, nosso intuito nesse
emaranhado de ideias, como ao contar histórias, é o de sussurrar imagens
nos seus ouvidos e suscitar ideias em sua imaginação.

DIREITO ESSENCIAL E DIREITOS UNIVERSAIS

Um mundo mais pacífico e evoluído se faz com os direitos humanos


sendo debatidos, destrinchados e, acima de tudo, respeitados e praticados.
Está em tempo de assim o fazermos com os direitos da criança, conforme
versa o artigo 31 da Convenção da Organização das Nações Unidas3,
assinada pelos países participantes, garantindo que, em igualdade de
oportunidade na sociedade, as crianças exerçam seu direito de participar “da
vida cultural, artística, recreativa e de lazer”. Sem precisar de recursos
extras além do ouvinte e do contador, o ancestral ato de contar histórias
abrange esses aspectos culturais, artísticos e de lazer e descanso a que as
crianças têm direito.
Ouvir histórias não é, porém, só um direito essencial das crianças,
mas uma atividade que deve ser ampliada, intensificada e universalizada
para jovens e adultos. A humanidade vive uma crise da modernidade, que
se acentua da metade do século XX em diante: vivemos o consumismo, as
relações descartáveis, a intolerância, a falta de escuta e a velocidade
alucinante das novas tecnologias, e o planeta mostra que não aguenta mais
esse novo ritmo. Nós também não aguentamos, pois, muitas vezes, ao nos
conectarmos a centenas de amigos virtuais distantes, não temos mais
sequer um ombro amigo próximo. Ao tentar viver sob o paradigma do
“sucesso individual”, esquecemos ou ignoramos a desesperadora fome de
nossos irmãos e a aterradora destruição da natureza.
Já a arte de contar histórias nos lembra que somos humanos e
devemos respeitar as invisíveis conexões entre os destinos individuais e os
destinos do mundo, o que corresponde a afirmar que compartilhamos um
destino comum. Logo, precisamos urgentemente de um novo modo de
vida menos individualista para sobreviver. No arquitetar soluções para
resolver essa urgência, contar histórias exerce um papel fundamental no
traçado de um novo paradigma para a humanidade em detrimento da
violência e do consumismo e favorável à cultura de paz e à
sustentabilidade. Esse paradigma traçado pela palavra sai do papel,
desacelerando o ritmo imposto pela tecnologia, e alcança o nascimento de
comunidades sustentáveis. O próprio ato de narrar não pode ir mais
rápido do que o tempo da fala e da escuta. Dessa forma, contando e
ouvindo histórias e delineando novas formas de viver (ou talvez
resgatando e revitalizando formas milenares de convivência) nos
harmonizamos ao ritmo da narrativa humana e, consequentemente, aos
ritmos da natureza, do corpo e da vida.
O conto serve para levar a mente dispersa, sobrecarregada, cansada
e doente à sintonia com o corpo, do qual precisa como um grande veículo
para fazê-la vibrar e conectar contador e ouvinte. O corpo quer viver as
aventuras da mente sem correr todos os riscos que surgiriam na vivência
das aventuras de fato – talvez por isso os jogos eletrônicos sejam tão
populares, pois colocam o jogador dentro da mais incrível ação sem muito
esforço ou perigo. Quem não quer poder casar-se com o príncipe
encantado ou com a princesa dourada dos contos de fadas, trucidar
extraterrestres ou catapultar passarinhos nervosos (os Angry Birds) nos
jogos virtuais? Porém, o jogo eletrônico já está programado. Por mais vidas
que a personagem tenha e por mais fases que enfrente, as imagens já estão
todas lá, prontas. Por esse motivo, a potencialidade do conto como
propulsor de mudanças pode ser maior que a do jogo. A ludicidade e o
prazer do faz de conta podem ser ainda mais intensos para quem se dispõe
a ouvir, conhece e respeita as regras e se engaja no brincar narrativo. Por
isso, continua valendo a pergunta: vamos brincar de faz de conta?
O brincar com as palavras que formam ideias e tecem uma narrativa
também tem suas regras, mas elas são mais livres que as regras do jogar.
Por exemplo, o jogador tem de cumprir determinada tarefa para mudar de
fase. Já o ouvinte pode “mudar de fase” de muitos jeitos. Isso porque,
embora ouvindo a mesma narração, cada um constrói na mente um
cenário diferente e entende as ações das personagens e suas peripécias de
acordo com as próprias referências sentimentais, intelectuais e culturais.
Assim, a princesa que escolherei para se casar com minha personagem
pode ter a pele da cor que eu imaginar e usar qualquer vestido, pois sua
beleza está muito além das aparências: ela tem uma beleza invisível que o
ouvinte pode descobrir em si mesmo.
Esta é a magia do ato de contar histórias: quem ouve a narrativa
contada pelo contador de histórias cria uma realidade que é mutuamente
construída, um quadro pintado a muitas mãos, traçado ao longo das eras
com milhares de pincéis e pinceladas. Quando concluído diante do grupo,
esse quadro se transforma em um espelho, em um artefato vivo que nos
permite pensar, criar e agir para que façamos do nosso re lexo uma bela
representação do real – que, no fim das contas, transmuta-se em real. O
que conta o conto não é a ordinária, descartável e desconexa realidade,
mas o extraordinário, o duradouro, o harmônico e o belo verdadeiros.
Assim, passamos de uma inerte sobrevivência cultural
monocromática a uma vibrante vida colorida. Na medida em que
exercemos amplamente o direito de contar e ouvir histórias, recebemos os
benefícios de sua universalização, como conclama Leonardo Posternak:
“Toda criança tem o direito de manifestar abertamente sua alegria e
carinho para com aquele adulto contador de contos que faça vibrar sua
imaginação, permitindo-lhe que habite o maravilhoso mundo da
literatura”4.
Tendo em mente a consolidação do direito às histórias do mundo e a
busca de um novo paradigma para a sociedade, passamos então da
idealização futurista à prática cotidiana.

HISTÓRIAS COMO ALIMENTOS AFETIVOS

Em meio a crianças, pais e bebês, em uma grande livraria de São


Paulo, eu contava a história da obra ludicamente escrita e ilustrada Monstro
Amor5, de Rachel Bright. Eu destrinchava a aventura do personagem
monstro que vive rodeado de coisas fofas e não encontra seu par no
mundo. Por isso, o monstro sai em busca de amor, mais especificamente
em busca de uma… monstra.
Você, leitor, provavelmente completou as reticências do parágrafo e,
na hora da contação, algumas crianças atentas, entre 4 e 7 anos, também o
fizeram antes da aparição em voz alta da palavra “monstra”. Mas o que o
bebê que também ouvia atentamente à narrativa entendia de monstros, do
desenrolar de enredos e da busca pelo amor? Será que, mesmo sem
entender a semântica das palavras que eu lia, ele se conectou pela prosódia
à busca da personagem por amor?6
Os olhinhos do bebê seguiam curiosos as caretas do contador, o
corpinho se mexia acompanhando os passos monstruosos na encenação, e
logo as mãozinhas procuraram contato com a mãe. Esta sabia reconhecer
os pedidos do filho e, antes que a educada solicitação se transformasse em
uma demanda aos berros, deu de mamar a ele.
Enquanto se alimentava, o pequeno ouvinte também queria se
alimentar de afeto e de palavras: ele buscou o meu olhar e o livro para se
reconectar à história e descobrir se, afinal, o monstro encontraria ou não o
que procurava.

POR QUE AS MÃES AMAMENTAM


BEBÊS DURANTE A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS?
Como não era a primeira vez que isso acontecia, comecei a pensar
por que as mães amamentam bebês durante uma contação de histórias:
seria porque elas sabem ouvir os filhos e tentam atender ao que eles pedem
onde quer que estejam? E por que os bebês têm fome e se sentem à vontade
para mamar em locais tão incomuns quanto uma livraria ou um centro
cultural, em meio a um lugar barulhento, cheio de estímulos audiovisuais e
pessoas estranhas?
A resposta a que cheguei foi que as histórias são um lugar conhecido,
são palavras em formato acolhedor. Para um bebê acostumado à palavra
em forma de narrativa, o conto é como o aconchego de um berço. Os
pequenos que ouvem narrativas com frequência encontram inicialmente
na cadência da palavra poética – que reconhecem como diferente da fala
comum – um ritmo excitante e desafiador que, aos poucos, torna-se uma
melodia tranquilizadora.
O desafio paradoxal de ser excitante e tranquilizante demarca que a
arte de narrar precisa de um narrador experiente que conduza seus
ouvintes para estados alternados de alerta e relaxamento. Ao tornar a
trama cada vez mais intrigante e reveladora, criamos uma espécie de
sonho (acordado e coletivo) que não queremos que acabe.

UM PARADOXO AO CONTAR HISTÓRIAS

A contadora austríaca Karin Tscholl descreve a contação de histórias como a arte de


“fazer malabares com uma faca e uma bexiga”. A parte da bexiga é a gentileza
necessária para criar o sonho compartilhado com o público, a faca é a ponta de suspense
conforme a história se desenrola, a energia irresistível que faz querer ouvir o que
acontecerá a seguir. As duas forças têm de ser balanceadas para que a história seja
memorável da primeira à última palavra. Então, uma história deve ser tão leve quanto
uma bexiga e tão afiada quanto uma faca. [DAN YASHINSKY]

A harmonização das duas forças citadas por Dan Yashinsky, a leveza


e o suspense, não é a única a ser almejada. Uma história envolvente e
inesquecível se constrói quando há um equilíbrio tríplice: contar histórias
é enredar palavras em uma perfeita sintonia entre mistério, revelação e
transformação.
Por mais que a definição seja simples, não é fácil concretizá-la.
Desde seu nascimento no ser humano, a palavra nos ajuda a compartilhar
os mistérios da vida e revelar seus segredos e até mesmo a enfrentar a morte.
Desde os mitos de criação cortando a noite escura em torno da fogueira, a
narrativa foi capaz de transformar o medo do vazio silencioso em coragem
audível. Os contos partilhados foram ainda capazes de fazer nossas fomes
por afeto, entendimento e união dos corpos se tornarem alimentos de
amor, conhecimento e união das almas.

NECESSIDADES HUMANAS, FONTES PRIMORDIAIS

O leite materno é um alimento completo para o recém-nascido (e até


dois anos ou mais – fornece energia, hidratação, proteínas, cálcio,
vitaminas e anticorpos). Mas o ato de amamentar vai além do
desenvolvimento físico, pois o ser humano precisa sentir-se amado,
protegido, aconchegado. Durante o aleitamento materno a mãe mata a
fome do corpo do bebê e também sacia a necessidade de sua alma.
O bebê quer e precisa estabelecer um vínculo com os seres humanos
que cuidam dele, fazendo destes suas figuras de apego. Um dos jeitos mais
antigos e eficientes de facilitar a criação de vínculos entre os humanos é
contando histórias.
Esse primordial “contar histórias” deve ser entendido em um sentido
amplo que abrange inúmeras formas de fazê-lo – brincar, cantar, dialogar,
com ou sem palavras, com ou sem apoio de um livro, por meio de histórias
fictícias ou pessoais, contadas por profissionais, amadores, voluntários,
pais, avós, cuidadores e professores.
A PALAVRA QUE ABRE CAMINHOS

Amar se aprende amando. [CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE]

Se bem dita, de forma afetuosa e verdadeira, a palavra se torna


bendita, abrindo inúmeras possibilidades em nossa jornada. A palavra em
forma de narrativa oral pode ser sagrada, curadora, apaziguadora,
revolucionária, inspiradora, prazerosa, formadora, mutante,
transformadora, sonhadora.
Para quaisquer que sejam os sonhos futuros a presenciar, as
personagens a personificar, os locais a visitar e a forma de narrar para que
o ouvinte veja as nossas palavras, o segredo é “fazer ver vendo”, o que só se
consegue sendo verdadeiro. Não é possível fingir que estamos
imaginando: nós imaginamos e entramos inteiramente na história,
vivendo as aventuras dos heróis junto aos demais ouvintes, ou não saímos
do lugar.
Andar pelo mundo buscando o fronteiriço caminho do sonho e da
verdade não é fácil, mas é maravilhoso. Se quisermos nos maravilhar com
as narrativas e encantar as pessoas, há uma coisa simples e difícil a ser
feita: o contador tem de fazer jus a suas palavras.

A PALAVRA QUE SE TORNA REAL

O mundo muda quando se passa a falar,


e falando é possível mudar o mundo. [BORIS CYRULNIK]

Os contadores que contam histórias de amor devem ser amorosos


com as palavras e com os ouvintes. Se narram sobre a escuta, devem
também saber ouvir; se poetizam sobre o brincar, devem brincar com a
língua e com as crianças; se trazem histórias que tratam de temas
complexos, como ética ou preservação ambiental, devem ter cuidado para
fugir dos estereótipos banais ou mesmo preconceituosos, sempre em
busca de um constante diálogo multicultural: todas essas ações estarão
explícitas ou implícitas em suas falas, determinando a verdade ou não de
suas palavras e a consequente força ou fraqueza de suas narrativas.
Partindo dessa busca constante do contador de histórias por tornar
suas palavras mais verdadeiras, podemos inferir que os narradores não
apenas falam de mundos utópicos: eles são parte vital na construção
dessas utopias.

OS ALICERCES DA UTOPIA:
AS HISTÓRIAS E UM NOVO PARADIGMA PARA O MUNDO

Apesar do eco de vozes dissonantes, fomos doutrinados a viver sob o


paradigma do êxito – sobre o outro, sobre os animais e sobre a natureza – e
da competição. À luz desse paradigma, surgiram o aprimoramento da
tecnologia e da comunicação, a informação instantânea e as facilidades da
vida moderna. No entanto, o acesso a esses aprimoramentos ainda
continua precário. Assim, uns competem com os outros, com o resultado
de que poucos ganham e muitos perdem.
Para que a população do planeta vivesse com as comodidades
modernas, cinco Terras seriam necessárias; mas, obviamente, só temos
uma, e assim continuará sendo para nossos netos. Chegamos a uma
encruzilhada histórica, de onde seguiremos por um caminho ajardinado e
bem-aventurado (concebendo um futuro comum e plantando sementes
férteis na terra e nas mentes) ou por um caminho pedregoso e perigoso
(pensando apenas no agora-já individual e exaurindo os recursos naturais
da Terra e os valores humanos).
Conforme nos embrenhamos no universo de histórias valorosas,
percebemos que precisamos urgentemente viver sob um novo paradigma,
a fim de seguirmos pelo caminho da preservação, da paz, da sustentabilidade e
da evolução. O contador de histórias, o educador e demais profissionais do
dizer têm a chance de valorizar as palavras e não esvaziá-las de sentido
com seu uso indiscriminado, irresponsável ou mesmo enganoso.
Mas qual novo paradigma contemplaria esses conceitos e nos faria
viver sob uma nova ótica interplanetária? Para muito teóricos, como
Bernardo Toro7 e Leonardo Bo f, o paradigma que devemos buscar é o de
“saber cuidar”, expressão intrinsecamente ligada ao amor. Devemos usar o
conhecimento acumulado para aprender a cuidar de nós, do outro e do
planeta.
O novo paradigma ético da civilização, o “saber cuidar”, está no
cerne dos contos e da escuta deles. O ato de contar histórias pode ajudar a
traçar os fundamentos do conceito de “saber cuidar”, não apenas
compartilhando histórias sobre o cuidado e o amor (finalidade
paradigmática), como também concretizando o ato em si (meio
paradigmático). Parafraseando Leonardo Bo f: quando cuidamos
contamos histórias e quando contamos histórias cuidamos8.
Nessa dança circular de palavras e afeto, as histórias contadas
aproximam mãe e filho, e desconhecidos, mesmo diferentes, aprendem
uns com os outros. É como aprender a cirandar em uma ciranda em que
dançam adultos, crianças pequenas e idosos: os mais rápidos diminuem os
passos, e os mais lentos aceleram um pouco, cada um cuidando de si, dos
que estão ao seu lado e do ritmo musical que abarca todos, até que cedo ou
tarde o grupo encontra sua harmonia.
Assim, colocamos o amor para cirandar e ensinamos a dialogar,
afinal, é preciso aprender o momento de falar e a hora de ouvir para que o
amor, de fato, circule. Nessa ciranda de cuidado amoroso mútuo, nesse
movimento da palavra que vem e vai dos contos, ensinamos a
compreender, até mesmo a compreender o que é diferente e distante de
nós – conceito fundamental na educação contemporânea. O
“compreender” é indispensável para o aprimoramento do “saber cuidar”.

ENSINAR A COMPREENSÃO

A germinação de Os sete saberes necessários à educação do futuro,


definidos por Edgar Morin9, pode ser facilitada com o compartilhamento
de histórias. Além de grande auxiliar para enfrentar as incertezas, ensinar
a condição humana e a identidade terrena, contar e ouvir histórias são
atividades fundamentais para ensinar a compreensão10.
Para compreender o outro, é necessário tentar ver o mundo com
seus olhos e entender seu ponto de vista. Desde a infância da humanidade,
os contos ensinam crianças, jovens e adultos sobre a capacidade de ver a
realidade com outros olhos e nos maravilham com novas visões de mundo.
No entanto, apesar de essa capacidade de se deixar encantar pelos
contos não ter idade, é sabido que crianças (e contadores de histórias) têm
naturalmente mais facilidade em embarcar nas viagens encantadas.
Agindo assim, narradores experientes e ouvintes mirins entendem-se
mutuamente e transformam a realidade à sua volta.
A mestra na arte da palavra Regina Machado nos lembra que as
crianças têm essa facilidade de enxergar (ou de aprender a enxergar) o
mundo de vários ângulos. Elas facilmente entram na brincadeira de ver
além das aparências para compreender o outro e o mundo como realmente
são ou poderiam ser. Além disso, ao proporcionar mais elasticidade à
imaginação, transformam monótonos, banais e aprisionadores terrenos
pedregosos em libertadores, significativos e lorescentes jardins do faz de
conta. Se almejamos cultivar esse belo jardim na Terra, cabe deixarmos as
histórias desenterrarem o olhar poético e compreensivo – em contraponto
ao olhar utilitário e competitivo dos adultos – de nossa sociedade
planetária.

O olhar que se dirige apenas para a utilidade das coisas é característico da


nossa civilização ocidental. Precisamos nos lembrar da percepção lexível que
tínhamos quando crianças porque, como adultos, nos habituamos a nos valer
apenas desse tipo de olhar funcional, como se fosse o único de que dispomos.
Para a criança pequena o olhar lexível é também funcional. Faz parte do seu
caminho de desenvolvimento experimentar vários pontos de vista, investigar
possibilidades. Enquanto brinca, ela assume diferentes papéis, confere
diversas funções aos objetos, pois está continuamente investigando sua
relação com o mundo e consigo mesma, não se identifica definitivamente com
apenas uma possibilidade. A pergunta imaginativa que desafia o que é e
indaga o que pode ser está na raiz de todo genuíno processo humano de
conhecimento. “E se fosse possível que…?” é o motor da curiosidade que leva à
construção das descobertas técnicas, científicas e artísticas nas diferentes
culturas ao longo da história. O lugar de onde a criança olha para as formas é o
lugar da lexibilidade imaginativa11.
Ouvir histórias é alongar os músculos da imaginação; é começar a
imaginar o outro, às vezes tão diferente, repugnante e distante, dentro de
mim; é, também, abrir as possibilidades dos “e se”. E se, ao seguir a
surpreendente trilha das histórias, fosse possível entrar e dialogar com
quem está preso em uma situação na qual você não quer entrar?

UM CONTO SOBRE A COMPREENSÃO

Fui convidado a participar voluntariamente de uma sessão de


contação de histórias para jovens da Fundação Casa, em São Paulo, e não
foi fácil encontrar o que contar a eles. Não que eu não quisesse voltar a me
sentir jovem e rebelde conversando com eles por meio das narrativas, a
questão era se eu conseguiria falar a língua deles. Será que eles me
entenderiam? Como eu conseguiria que o mundo letrado dialogasse com
eles se muitos mal sabiam ler? O conjunto de códigos “cultos” que mais
chegava a eles era o código regulamentar das palavras de ordem. Por isso
(como descobri durante a sessão de contos) se dirigiriam a mim sempre
verbalizando a expressão de tratamento “senhor” no começo ou no fim de
cada sentença. Percebi que não apenas os corpos como também as palavras
desses jovens estavam sentenciadas e cerceadas. Será que as histórias
conseguiriam libertar momentaneamente algumas vozes?
O público da sessão seria formado por menores infratores de 16 e 17
anos. Eu precisava de uma história que dialogasse, de fato, com eles para
que se sentissem compreendidos, mesmo com as palavras vindas de uma
boca que falava a “língua” (quase estrangeira para muitos) da literatura e
da narrativa oral. Eu buscava uma narrativa que desarmasse seus corações
e os conectasse ao que fosse dito, para que adentrássemos juntos os portais
da palavra compreensiva.
Mas como eu poderia falar diretamente a seus corações e mostrar
que entendia, de fato, o que estavam passando se eu nunca havia passado
por nenhuma situação parecida? Um conto do mestre sufi Nasrudin me
ajudou a perceber que, de um jeito ou de outro, eu também tinha algo em
comum com aqueles jovens:

O SÁBIO JUIZ12
Um dia, o juiz da cidade adoeceu. No outro dia, foram chamar o mulá
Nasrudin para substituir o juiz.
– Nasrudin, o nosso juiz está de cama e não poderá julgar hoje. Querido
mestre, poderia nos ajudar?
– Tenho minhas dúvidas se eu saberia me comportar num tribunal… –
ponderou Nasrudin.
– Ora, claro que saberia, não há dúvida de que seria um ótimo juiz,
Nasrudin! Afinal, todos sabem que você é um homem sábio, justo e honesto!
– Por isso mesmo tenho minhas dúvidas se eu saberia me comportar
num tribunal…
Nasrudin argumentou, mas, de tanto insistirem, antes de perder a
paciência (e com ela, a sabedoria), acabou aceitando passar o dia no tribunal
como juiz.
Chegando lá, vestiram-lhe toda a indumentária, o mulá adentrou o
tribunal e sentou-se na cadeira magistral. Todos o aguardavam, ao lado dele o
réu acusado de um grave crime, do lado direito o advogado de defesa, do lado
esquerdo o de acusação, diante dele o público que assistiria a tudo, curioso em
conhecer o primeiro veredicto do juiz Nasrudin.
E, assim que o juiz abriu a sessão, o advogado de acusação não perdeu
tempo. Acusou o homem de crimes gravíssimos, construiu uma
argumentação impecável, chegando racionalmente à seguinte conclusão:
– O réu é culpado.
Ao que o juiz Nasrudin prontamente respondeu:
– Tem razão!
O advogado de defesa levantou-se, indignado:
– Mas, senhor juiz Nasrudin, isso é um absurdo, Vossa Excelência nem
sequer ouviu o lado do meu cliente – protestou.
– Pois diga, a palavra é sua…
E, sem perder tempo, o defensor usou muito bem a palavra,
contradizendo e desconstruindo cada uma das gravíssimas acusações do
outro advogado, chegando emocionado à seguinte conclusão:
– O réu é inocente.
Ao que o juiz Nasrudin, calmamente, respondeu:
– Tem razão!
Nessa hora, algumas pessoas ficaram boquiabertas, encucadas. No
entanto, o escrivão que acompanhava de perto a palavra de todos, disse:
– Com licença, Vossa Excelência: a acusação ter razão e a defesa ter
razão… Assim não dá!
Ao que o juiz Nasrudin prontamente respondeu:
– Tem razão!

No fim da história, o riso dos jovens abriu um canal de comunicação


entre nossos mundos imaginativos e reais. As testas franzidas e os olhos
voltados para baixo do começo do encontro deram lugar a olhos atentos e,
o mais admirável, ao contato olhos nos olhos – que foi mantido até o fim da
sessão. Nossos olhos dialogaram em outras histórias, e a sessão trouxe
momentos de liberdade aos ouvintes.
Depois dos contos, os jovens foram convidados a registrar suas
impressões por meio de um desenho ou de um relato pessoal por escrito.
Muitos deixaram a lorar palavras de agradecimento, esperança e
transformação. Alguns discorreram, sinceros e humildes, sobre a
importância de determinados valores humanos contidos nos contos. Um
deles, ao entregar sua produção escrita, me disse: “é assim que eu aprendi
que a vida é justa”, e finalizou seu texto com uma mistura de fábula e
crônica contemporânea, humilde e verdadeira:

Eu tava nervoso discutindo com um muleque que ele tava falando que não queria
mais maldade na vida dele e eu falei que ele tava em choque! […] eu falei que eu só tinha
maldade no coração e na mesma hora um senhor parou e falou pra mim: “quem planta
maldade colhe sofrimento”. Esse senhor de uns 60 e poucos anos que eu nunca vi na
vida virou e falou essas palavras pra mim. Mas eu não botei fé e vim para aqui na
Fundasão Casa, longe da minha família, longe do meu lar. É assim que eu aprendi.
MORAL DA HISTÓRIA: é vivendo e aprendendo. (A.M.S.)

Talvez esse e outros jovens só tenham se permitido entrar, de fato,


em um mundo de narrativas com valores humanos, aprendizados e
transformações porque a primeira história abriu o contato entre nossas
visões de mundo tão diferentes. A partir da escolha do conto do sábio juiz,
consegui narrar com verdade, o que criou certo clima de confiança e
compreensão e, dessa forma, a história também fez sentido para os
ouvintes.
Podemos concluir que, para que as histórias contadas ensinem a
cuidar e falem verdadeiramente de compreensão, é preciso cuidar e
compreender na prática. É preciso que o contador de histórias saiba, antes
de tudo, escolher e, durante a sessão, sem perder o fio da meada da palavra
contada, saiba ouvir. É necessário entender o ritmo de entendimento de
cada ouvinte – para avançar, retomar ou retroceder no enredo no tempo
certo –, compreender sem julgar e acolher os ouvintes, sejam eles quem
forem. É importante criar um espaço de entendimento, confiança, doação,
liberdade e conexão para que a narração se construa nas mentes tanto de
quem conta como de quem ouve. Deve prevalecer o valor essencial da
história, que é o que move o narrador a querer compartilhá-la, e seu ponto
de vista pessoal nunca deve ser imposto. Aos ouvintes, cabe aceitar e
recontar (ou não) o que quer que o conto tenha contado a eles.

UM ETERNO RECOMEÇO

Em um diálogo [ou numa narrativa oral] não há [ou não deveria haver]
a tentativa de fazer prevalecer um ponto de vista particular,
mas a de ampliar a compreensão de todos os envolvidos13. [DAVID BOHM]

Acredito que nossa missão como contadores de histórias não seja


somente falar sobre os sábios, virtuosos e compassivos heróis, mas buscar
caminhar pelas estradas abertas por eles.
Nessas vias, encontraremos muitas respostas. Porém, cada nova
resposta encontrada acarretará novas perguntas. Logo, podemos intuir
que, por mais que andemos rumo ao conhecimento do universo narrativo,
sempre desvendaremos mais perguntas do que respostas.

Que perguntas farei hoje?


Por quais respostas procurarei?
Que palavras escolherei?
Que história viverei?
Que história contarei?
Que novo paradigma para o mundo criarei?
Como viver o paradigma do “saber cuidar” e do amor?

Por fim, qual é a maravilha de continuarmos sempre nos


perguntando sobre tudo isso? A maravilha é descobrir que, ao buscar
respostas às perguntas para a construção de um mundo novo, o nosso
caminho rumo a uma nova forma de pensar, narrar e viver se faz.

1 Boris Cyrulnik é neuropsiquiatra e chefe de ensino da “clínica do apego” na


Universidade de Toulon, na França. É autor de diversos livros, entre eles Os
alimentos afetivos, Autobiografia de um espantalho, De corpo e alma, Falar de amor à
beira do abismo, Os patinhos feios e O murmúrio dos fantasmas.
2 Boris Cyrulnik, Os alimentos afetivos: o amor que nos cura, São Paulo: Martins
Fontes, 2007, pp. 117-30.
3 Cf. Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em:
<www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm>. Acesso em: set. 2014.
4 Leonardo Posternak, O direito à verdade: cartas para uma criança, São Paulo:
Globo, 2002.
5 Rachel Bright, Monstro Amor, São Paulo: Girassol, 2012.
6 Cf. Fabio Lisboa, “Por que contar histórias para bebês e crianças?”, Disponível
em: <www.contarhistorias.com.br/2010/09/por-que-contar-historias-para-
bebes-e.html>. Acesso em: set. 2014.
7 Cf. Bernardo Toro, “O cuidado: paradigma ético da nova civilização – sobre a
coragem de pedir ajuda”. Disponível em:
<www.tedxamazonia.com.br/tedtalk/bernardo-toro>. Acesso em: set. 2014.
8 Cf. Leonardo Bo f, “O ‘ethos’ que cuida”. Disponível em:
<www.leonardobo f.com/site/vista/2003/jul25.htm>. Acesso em: set. 2014.
9 Edgar Morin, Os sete saberes necessários à educação do futuro, São Paulo: Cortez,
2000.
10 Segundo os estudos da mestra de contadores de histórias e pesquisadora
Gislayne Avelar Matos, “na sociedade da tradição oral, a ‘palavra’ do contador
de histórias foi o meio para a transmissão desses saberes. Lançar mão
novamente desse meio é reconhecer que não precisamos sempre partir do
marco zero”. Cf. Gislayne Avelar Matos, A palavra do contador de histórias: sua
dimensão educativa na contemporaneidade, São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.
182.
11 Regina Machado, Acordais – Fundamentos teórico-poéticos da arte de contar
histórias, São Paulo: DCL, 2004, p. 88.
12 História da tradição oral recontada por Fabio Lisboa.
13 Um dos seis pilares do “Manifesto 2000 – por uma cultura de paz e não
violência”, da Unesco, é “ouvir para compreender”. Disponível em:
<www.comitepaz.org.br/o_manifesto.htm>. Acesso em: set. 2014.
Contar histórias é profissão? O que dizem os
contadores
FELÍCIA FLECK

Uma história, se for contada com jeito, palavra atrás de palavra, o corpo todo
acompanhando, de modo que o outro escute inteiro com a cabeça, o coração e as tripas,
pode até valer dinheiro, e vale mais do que dinheiro. [MARIA VALÉRIA REZENDE]

PREÂMBULO

Meu contato com as histórias se deu logo no início do curso de


biblioteconomia na Universidade Federal de Santa Catarina, quando
participei da disciplina biblioterapia. Estudávamos os fundamentos da
terapia por meio dos livros e da leitura e os aplicávamos no Hospital
Universitário, lendo e contando histórias para as crianças da ala
pediátrica. Gostei muito da experiência e, a partir disso, mergulhei fundo
no mundo das histórias: participei de diversos cursos dentro e fora de
Florianópolis, de rodas de histórias, de grupos de contadores etc.
Essa prática foi ganhando espaço em minha vida e direcionou
minhas escolhas também no campo da biblioteconomia: comecei um
mestrado e pesquisei sobre a profissionalização do contador de histórias.
Fiquei maravilhada quando percebi que poderia fazer dessa arte tão
prazerosa o meu ganha-pão. A partir de então, vivo de contar histórias e
partilhar minha experiência por meio de cursos e oficinas de formação
para adultos e crianças. Para mim, a contação de histórias, mais do que um
ofício, é uma forma de expressão no mundo.
Neste artigo, relato as re lexões oriundas de minha pesquisa no
mestrado, que teve a cuidadosa orientação da professora Miriam Vieira da
Cunha e foi defendida em 2009 no programa de pós-graduação em ciência
da informação da Universidade Federal de Santa Catarina1.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Há muitas designações para caracterizar o momento presente:
sociedade líquida2, sociedade em rede3, sociedade pós-industrial4,
sociedade da modernidade tardia5, entre outras. Diante de tantos rótulos,
deparamo-nos com a angústia de uma época em que os conhecimentos
adquiridos em um passado recente não são suficientes para antecipar e
prever o que nos espera nem para explicar a complexidade do que vivemos
hoje. Para Leão, essas designações remetem a uma mesma ideia: “Os
recursos do conhecimento vão controlando, transformando e
substituindo, em ritmo crescente, todos os demais recursos, sejam
materiais, sejam energéticos”6.
A informação é a base para a tomada de decisões nas várias esferas
sociais, que, por funcionarem em rede, possibilitam a qualquer um ser
produtor, intermediário e usuário de conteúdos na internet. Miranda7
defende que a penetrabilidade das tecnologias da informação na vida das
pessoas e na transformação da sociedade é um dos principais indicadores
de que vivemos em uma “sociedade da informação”.
Ma fesoli ressalta que, no fundo, o mais importante dessa sociedade
“é a partilha cotidiana e segmentada de emoções e de pequenos
acontecimentos. Mesmo na internet o aspecto interativo predomina sobre
o utilitário”8. As pessoas sentem necessidade do encontro, da troca, da
partilha, e de vivenciar um tempo distinto do cronológico, batizado por
Dora Etchebarne de “tempo afetivo”9, em que o ontem e o hoje não existem
e só importa a permanência dos valores.
Uma das maneiras de experimentar esse tempo afetivo é contar
histórias, dando vazão às necessidades de comunicação e traduzindo por
meio de palavras os acontecimentos cotidianos, as memórias transmitidas
pelos ancestrais, as dúvidas, as angústias, as alegrias e os prazeres da
existência.
Nas últimas décadas do século XX, a figura do contador de histórias10
reapareceu com nova roupagem e grande vigor a partir da ampliação do
número de pessoas interessadas em aprender as técnicas dessa atividade.
Se em tempos passados era ao redor de uma fogueira que as pessoas
se reuniam para escutar os mais velhos narrarem suas aventuras,
lembranças e ensinamentos, hoje:

Modelada pelo turismo cultural, ressurge a contação. Adaptada aos novos tempos,
ressignificam-se aspectos da tradição e se realojam antigas práticas sociais.
Antes relacionada à totalidade do modo de vida caipira e desligada do aspecto
das trocas monetárias, a contação de histórias11 vem aos poucos se tornando
uma atividade profissional, entendida e exercida dentro dos parâmetros
próprios da modernidade, ou seja, da remuneração pelo trabalho realizado12.

Embora nem todos tenham objetivos profissionais ou monetários ao


contar histórias, parece haver uma demanda das instituições escolares por
essa atividade, e assim se abre um espaço no currículo escolar para a
contação de histórias. Há ainda o estímulo para capacitar professores e
bibliotecários escolares a incorporar essa prática em seu cotidiano, e, não
raro, contratam-se pessoas especialmente dedicadas a essa tarefa.
O contador de histórias contemporâneo é um animador cultural, um
artista performático que em seu fazer propicia o encontro do homem com
a linguagem poética, o que pode trazer a oportunidade de viver a
diversidade cultural e o seu (re)conhecimento no processo criativo.
Extirpando o etnocentrismo que nos conduz a visões estereotipadas do
outro, incorporamos, pela arte, nossa pluralidade, com suas diversas
formas de construir e reconstruir o mundo13.
Dessa forma, entendida como arte, a contação de histórias pode
contribuir para o reencantamento, a construção ou a reconstrução do
mundo. Acreditando nisso, fiz um estudo para saber como o contador de
histórias contemporâneo atua e orienta sua prática e como compreende a
profissionalização de seu fazer a partir dos pressupostos que definem uma
profissão. Para tal, utilizei as concepções do sociólogo Eliot Freidson14.

OCUPAÇÃO, PROFISSÃO E PROFISSIONALIZAÇÃO

A palavra “profissão” deriva de “profissão de fé”, cerimônias rituais


de admissão nas corporações. Os juramentos nessas cerimônias
comportavam três compromissos: observar as regras, guardar os segredos
e honrar e respeitar os jurados (inspetores eleitos e reconhecidos pelo
poder real).
Segundo Dubar15, as profissões e os ofícios no Ocidente têm origem
comum: as corporações. Na Idade Média, a partir do século XI,
diferenciavam-se aqueles que tinham “direito ao corpo” (corporação
reconhecida) dos que não o tinham (trabalhadores braçais e pessoas sem
qualificação).
Com a consolidação das universidades, criou-se uma oposição entre
as profissões (ensinadas na universidade) e os ofícios (oriundos das artes
mecânicas), entre a cabeça e as mãos, entre o trabalho intelectual e o
trabalho manual16.
Ao diferenciar ofícios e profissões, Freidson17 considera que os
profissionais têm maior controle sobre o seu trabalho, pois o
conhecimento adquirido em instituições formais lhes confere o direito
exclusivo de exercer a profissão. Além disso, “é mais provável que o
conhecimento das profissões, aprendido em instituições formais de
educação superior e expresso em termos abstratos, consiga sucesso na
reivindicação de privilégios”. O privilégio tem um alicerce político, “é o
poder do governo que garante à profissão o direito exclusivo de usar ou
avaliar certo corpo de conhecimento e competência”18.
Para Freidson, a profissão designa “uma ocupação que controla seu
próprio trabalho, organizada por um conjunto especial de instituições
sustentadas em parte por uma ideologia particular de experiência e
utilidade”19. Os principais pressupostos que definem uma profissão são:
expertise, credencialismo e autonomia.
A expertise diz respeito à competência superior, uma combinação
entre treinamento e experiência. O credencialismo pressupõe um sistema
organizado de treinamento convencional, bem como algum método para
certificar e intitular especialistas potenciais por associações profissionais
ou pelo Estado. Já a autonomia está ligada ao ideal, à antítese da alienação
do trabalho, pois dirige ao profissional o controle de seu mister e também
exige dele uma visão global e, ao mesmo tempo, o entendimento das
particularidades de sua prática20.
O CONTADOR DE HISTÓRIAS

A arte permite que o homem entre em contato com o lado lúdico de


sua existência, que amplie sua imaginação e desenvolva um olhar sensível
à realidade. A criatividade, tão valorizada nesses tempos, pode ser
estimulada pela aproximação com manifestações artísticas.
A arte é uma atividade “reconhecida, apreendida, organizada,
celebrada. Como toda atividade, obedece a regras, a constrangimentos,
insere-se em organizações, profissões, relações de emprego, carreiras
profissionais”21. O contador de histórias, como artista, acaba também por
participar desse contexto.
Gislayne Matos22 diferencia o contador de histórias tradicional do
contador de histórias contemporâneo ou urbano. Embora o objeto de
trabalho seja o mesmo, o contador de histórias contemporâneo apresenta
características distintas do tradicional. Nas sociedades tradicionais, toda a
comunidade participava dos serões de contos, independentemente da
idade ou do papel exercido por seus membros. O conto “exprimia as
aspirações mais profundas do grupo social e assegurava sua coesão, em
torno dos sistemas de valores e de crenças que deveriam ser consolidadas
para o equilíbrio e a sobrevivência da comunidade”23.
Já o contador de histórias do século XXI expõe seu trabalho por meio
de espetáculos de narração oral e performances artísticas elaboradas, com o
domínio de técnicas vocais e corporais e critérios para a seleção de
histórias. A diferença entre a narração de histórias e o espetáculo cênico é
quase imperceptível. A relação estabelecida pelo olhar de quem conta e
seus ouvintes provavelmente é a mais nítida diferença entre as duas artes.
Na contação, é o olhar o fio que conduz, o elo entre o narrador e a plateia.
Além disso, não há uma encenação e uma construção marcada de
personagens, e, sim, uma narração de eventos que, embora possa ser
exaustivamente ensaiada, se propõe a aparentar a mais perfeita
simplicidade e naturalidade. A tal ponto que Shedlock conclui que contar
histórias “é a arte de esconder a arte”24.
O que também define o contador contemporâneo é o fato de ele ser
urbano, ou seja, viver e trabalhar na cidade, ali também se manifestando.
Ele carrega consigo as marcas de seu tempo, apropriando-se de recursos
tecnológicos e meios de comunicação em sua performance. Isso se traduz na
crescente comercialização de livros e multimeios (tais como CDs e DVDs)
produzidos por esse profissional. Além disso, há uma proliferação de
páginas e blogs na internet, com o intuito de divulgar contadores e eventos,
comercializar produtos e possibilitar fóruns de discussão25.
Maria de Lourdes Patrini acredita que a arte do novo contador, ao
contrário da arte do narrador tradicional, “exige uma passagem pelo texto
antes de viver no ato de contar. O contador contemporâneo, oriundo de
diferentes meios sociais, políticos e estéticos, conhece as novas práticas
culturais. Ele é um leitor, antes de ser um intérprete”26.
Na medida em que se apropria de um texto escrito, de origem
popular ou literária, o contador de histórias lhe dá nova roupagem,
reelabora-o, inserindo nele elementos muito particulares por meio da
modulação de sua voz, de pausas e gestos ou pela alteração de palavras ou
da estrutura textual original.
A prática de contar histórias pode ser vista ainda como uma forma
de sistematizar, organizar e hierarquizar a experiência individual e
coletiva, tendo a pretensão de dar sentido ao mar de informações que se
apresentam e atribuindo significados à própria existência.
Especialmente a partir da década de 1990, o boom dos contadores de
histórias se manifesta no Brasil. Sisto27 acredita que isso se deu por meio
da maior difusão das bibliotecas no país e pelo reconhecimento de que elas
não poderiam ser apenas depósitos de livros, mas organismos dinâmicos
de promoção da leitura.
O crescimento da figura do contador de histórias é uma constante
na maioria dos estados do país. Os contadores têm realizado diversos
eventos regionais, nacionais e internacionais para divulgar, discutir e
aprimorar sua arte.

O CONTADOR DE HISTÓRIAS É UM PROFISSIONAL?

Para que pudessem ser cumpridos os objetivos propostos, foi


realizada uma pesquisa exploratória e descritiva. O universo da pesquisa
abrangeu os contadores de histórias brasileiros, que desenvolvem a
contação como atividade remunerada e se autoidentificam como
contadores de histórias. Os instrumentos utilizados na coleta de dados
foram uma entrevista com dez contadores de histórias residentes na
região metropolitana de Florianópolis e um questionário ao qual
responderam vinte contadores que divulgam seu trabalho em meio
eletrônico no Brasil.
Os questionários e entrevistas foram avaliados por meio da técnica
de análise de conteúdo de Bardin28. As respostas dos contadores de
histórias foram agrupadas nas seguintes classes: motivação inicial (para
contar histórias), formação, autonomia e profissionalização.
Dentre os dez contadores entrevistados residentes na região
metropolitana de Florianópolis, havia cinco mulheres e cinco homens. Três
deles possuíam graduação em artes cênicas, dois em biblioteconomia, um
em pedagogia, um em ciências sociais e um em letras. Os outros dois
entrevistados cursavam graduação em letras.
Três deles recebiam remuneração para contar histórias, que era uma
dentre outras de suas atividades profissionais. Dois afirmaram viver
exclusivamente da contação de histórias. Sete entrevistados afirmaram
que também ministravam oficinas ou cursos de formação de contadores de
histórias.
Entre os vinte contadores oriundos de outros lugares do Brasil que
responderam ao questionário, havia treze mulheres e sete homens. Treze
deles tinham graduação em artes cênicas, dois em psicologia, dois em
pedagogia, um em biblioteconomia, um em letras e um em ciências
sociais. Destes, nove eram pós-graduados: quatro deles em educação, três
em literatura, um em linguística e um em teatro.
Seus locais de atuação eram bastante variados: escolas, empresas,
instituições públicas, universidades, congressos acadêmicos, centros de
arte e cultura, teatros, unidades do Sesc29, museus, bibliotecas, livrarias,
feiras de livros, clubes, bares, praças, parques, shoppings centers, programas
de televisão, cursos de leitura e formação de professores, hospitais,
abrigos, cadeias, asilos e ônibus.
Dos contadores que responderam ao questionário, sete afirmaram
contar histórias remuneradamente há mais de dez anos e catorze viviam,
no momento da pesquisa, exclusivamente da contação de histórias.

Motivação inicial
Entre os contadores entrevistados, a motivação inicial para contar
histórias pareceu vir de três fontes principais:

• A demanda profissional das instituições em que trabalhavam. Entre suas


atribuições estava a atividade regular semanal de contar histórias. Foram
também incentivados a participar dos cursos de formação de contadores de
histórias oferecidos pela instituição.
• A grade curricular dos cursos de graduação cursados (pedagogia,
biblioteconomia e letras) contém disciplinas que abordam o assunto. Esse foi
o ponto de partida, seguido pela busca de novas qualificações.
• A complementaridade do trabalho artístico já desempenhado. Alguns já
atuavam com teatro e/ou música. A contação de histórias passou a ser mais
uma possibilidade de expressão artística ou, em alguns casos, a principal
atividade profissional.

Formação
Oito contadores entrevistados passaram por algum tipo de formação
específica em contação de histórias. Cinco deles fizeram um ou mais
cursos de formação oferecidos pelo Sesc30.
Percebeu-se, no decorrer das entrevistas, uma ênfase na referência
pessoal aos contadores-formadores, como legitimação de um saber
adquirido. Indagados a respeito da importância dessa formação específica
em contação de histórias, houve aqueles que a consideraram
imprescindível:

Acho que o curso te ensina a questão da postura, adequação do repertório, expressão


corporal. Acho que facilita muito, além do fato de que nesses cursos tu conheces muita
gente, conheces histórias, há um envolvimento maior. Não me imagino contando
histórias se não tivesse passado pelo curso. [GRÚFALO31]
Um dado que, à primeira, vista pode parecer contraditório é que
houve contadores que não tiveram formações específicas porque não as
consideravam essenciais e, no entanto, hoje são formadores em cursos de
contação de histórias:

A formação não é essencial. E eu faço formação de contadores de histórias. O que eu faço


nas minhas oficinas é dividir com as pessoas a minha experiência. Na verdade, eu parto
do que a pessoa tem, para ela elaborar melhor aquele contador que ela quer ser.
[NASRUDIN]

A expertise, que, segundo Freidson32, é a autoridade implícita de um


segmento profissional, ou seja, a persuasão de que somente esse segmento
pode realizar determinado trabalho, manifesta-se na fala de um contador:

Aqui em Florianópolis, eu sinto que há uma postura de alguns contadores dizerem “a


gente é dono disso aqui”. Parece que quem não fez a formação, não fez o curso, não pode
ser contador. E tem gente que é contador porque é, porque tem isso. Pode haver pessoas
que façam o curso e não se tornem bons contadores, da mesma maneira que algumas
não façam o curso e se tornem bons contadores. [PETER PAN]

Em relação aos vinte contadores que responderam ao questionário,


seis afirmaram não ter frequentado, em nenhum momento, oficinas
específicas de contação de histórias. Além disso, segundo os respondentes,
a formação parece estar muito vinculada à prática, ou seja, é contando que
se aprende a contar melhor.

Autonomia
A autonomia é a capacidade do profissional de controlar os recursos
do próprio trabalho. No fazer dos contadores de histórias, uma das
possíveis formas de controle do próprio trabalho é a liberdade de escolha
do repertório, assim como a delimitação de determinadas condições em
relação aos trabalhos “sob encomenda”. Alguns contadores dizem que esse
tipo de prática, em que os contratantes do serviço solicitam previamente
uma temática de repertório, ou mesmo histórias específicas, é pouco
requerida.
Na medida em que os contadores se propõem a viver da prática de
contar histórias, a formação de seu repertório acaba sujeitando-se às
requisições dos contratantes. Contudo, para isso, são estabelecidas
algumas condições:

[Algumas] encomendas […] eu não faço, eu tenho uma postura política bem definida,
contação de histórias independente do valor pago, para partidos de direita eu não faço,
para partidos de esquerda é uma coisa que eu penso até certo ponto. [CHACAL]

Todos se consideraram profissionais autônomos, já que geralmente


trabalhavam por conta própria e sem vínculo empregatício com as
empresas para as quais prestavam serviços:

Sou atriz e sempre fui profissional autônoma, fazendo comerciais, espetáculos de teatro
(que faço até hoje), eventos, apresentações em escolas… Como contadora de histórias
faço a mesma coisa, só que em outros tipos de evento, outros contextos, mas a relação
profissional funciona do mesmo jeito. Emito nota do trabalho que executo, pago imposto
como todo autônomo. [BELA]

Profissionalização
Sobre a questão “Contar histórias pode ser considerado uma
atividade profissional?”, apenas um dos entrevistados afirmou: “Eu acho
que contação de histórias não é uma profissão. O ato de contar histórias é
uma coisa inerente do ser humano, eu acredito. Todo mundo conta
histórias” (Emília).
Embora todos possam contar histórias, parece haver uma
diferenciação entre os que realizam essa atividade profissionalmente – ou
seja, são remunerados por isso – e os que se utilizam da contação de
histórias como um recurso a fim de enriquecer sua prática profissional.
Para os respondentes, houve também aqueles que queriam contar histórias
na família, ou voluntariamente, sem a expectativa de se tornarem
profissionais:

Penso que há uma diferença entre uma pessoa que quer aprender a contar para contar
para seus netos, seus familiares, seus alunos em sala de aula e outra que decidiu viver
desse ofício. Neste caso, esta é, sim, uma atividade profissional, e a mais importante até.
No meu caso, por exemplo, eu vivo disso. Esta é a minha principal atividade. [DONA
BENTA]

Identidade
O contador de histórias contemporâneo tenta enaltecer e delimitar
os contornos de sua prática. No entanto, ao assumi-la como profissional,
vê-se obrigado a lidar com as oscilações e inconstâncias próprias do
mundo artístico.
Para superar essas fragilidades, o contador de histórias empenha-se
na busca de sua própria identidade. Se, por vezes, parece difícil se
autonomear, um dos caminhos possíveis a trilhar é a definição do que um
contador de histórias não é. Observou-se, por exemplo, a preocupação em
diferenciar a contação de histórias da animação de festas:

Contador é diferente de animador de festa, as pessoas confundem muito isso […] acho
que o chão da contação de histórias ainda é a escola. Mas enquanto os professores
usarem a contação como meio de abaixar os ânimos quando está chovendo, ou matar
tempo quando a aula termina mais cedo, enquanto houver essa perspectiva, a contação
não vai ser considerada. [SACI-PERERÊ]

A identidade, antes de tudo, é um conceito imaginado, fantasiado e


autoatribuído. As pessoas são aquilo que acreditam ser33. Ou seja, o que se
pode dissertar acerca das identidades são as representações sociais a que
correspondem. Não se nasce, portanto, com uma identidade pronta: ela é
algo a ser inventado e não descoberto.
Quer como herdeiro, quer como reencarnação do narrador
tradicional, o contador contemporâneo se esforça para manter o que mais
aprecia na arte narrativa: a naturalidade e a intimidade na relação com
seus ouvintes e com as histórias que conta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considerando o objetivo de “averiguar como os contadores de


histórias compreendem a profissionalização do seu fazer, a partir dos
pressupostos que definem uma profissão na visão de Freidson: expertise,
credencialismo e autonomia”34, e o que disseram os contadores de
histórias participantes da pesquisa, é possível dizer:

• A expertise e o credencialismo são fatores difíceis de avaliar no fazer do


contador de histórias contemporâneo, tendo em vista que a formação se dá
principalmente de maneira informal. Ainda não existem meios de garantir e
certificar o treinamento. Entretanto, a formação institucionalizada tem se
expandido.
• Em relação à expertise, a autoridade implícita e a persuasão de que apenas um
segmento tem condições de realizar determinado trabalho, parece haver
consenso de que a formação específica nas artes narrativas não é
imprescindível para a atuação como contador de histórias.
• A autonomia, ou seja, o controle dos recursos do próprio trabalho, parece ser
uma condição indispensável à atividade do contador de histórias
contemporâneo, pois ele desenvolve sua performance de acordo com escolhas
ideológicas, gostos pessoais e conhecimentos técnicos.

Tendo em vista esses três critérios (expertise, credencialismo e


autonomia), a prática de contar histórias ainda não pode ser considerada
uma profissão, já que não há a obrigatoriedade de formação específica
nessa arte, tampouco existem maneiras de credenciá-la.
No entanto, os contadores de histórias que exercem trabalho
remunerado podem ser considerados profissionais, pois, para Freidson, “o
que faz de uma atividade um trabalho é seu valor de troca. O que faz de seu
executor um trabalhador ou profissional é sua relação com o mercado”35.
Ficou evidente nas falas dos contadores participantes do estudo que
eles se consideram profissionais, querem ser reconhecidos como tais, têm
uma relação de troca com o mercado e são remunerados pelo que fazem,
vivendo parcial ou exclusivamente dessa atividade.
Com relação ao processo de profissionalização do contador de
histórias contemporâneo, as opiniões se dividem. Alguns são contrários a
essa ideia por considerarem que o artista não é somente aquele que se
forma institucionalmente na arte e que um bom contador de histórias
pode não ter nenhum diploma. Outros acreditam que os contadores
deveriam preocupar-se com a profissionalização, o que daria visibilidade a
seu trabalho. Assumir-se como contador de histórias profissional pode ser
uma das maneiras de garantir e consolidar seu espaço, não só o espaço
profissional, mas uma maneira de encontrar seu lugar no mundo, de
estabelecer sua identidade de uma forma mais ampla.
Contar histórias, no cenário contemporâneo, é uma maneira de
estar no mundo, é uma autoexpressão pessoal e coletiva, é a legitimação da
própria história e das manifestações culturais. É um caminho por
excelência para o encontro com si mesmo e com o outro.

1 Felícia de Oliveira Fleck, A profissionalização do contador de histórias


contemporâneo, 89f., dissertação (mestrado em ciência da informação) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2009. Disponível em:
<http://pgcin.paginas.ufsc.br/files/2010/10/FLECK-Felicia.pdf>. Acesso em:
nov. 2014.
2 Zygmunt Bauman, Vida líquida, Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
3 Manuel Castells, O poder da identidade, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2003.
4 Domenico De Masi, O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial,
Rio de Janeiro: José Olympio, 2006.
5 Stuart Hall, A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
6 Emmanuel Carneiro Leão, “Sociedade do conhecimento: passes e impasses”,
Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro: 2003, n. 152, p. 12.
7 Antônio Miranda, “Sociedade da informação: globalização, identidade cultural
e conteúdos”, Ciência da Informação, Brasília: 2000, v. 29, n. 2, pp. 78-88.
Disponível em: <www.scielo.br/pdf/ci/v29n2/a10v29n2.pdf>. Acesso em: dez.
2014.
8 Michel Ma fesoli, “A comunicação sem fim: teoria pós-moderna da
comunicação”, in: Francisco Menezes Martins e Juremir Machado da Silva
(orgs.), A genealogia do virtual: comunicação, cultura e tecnologias do imaginário,
Porto Alegre: Sulina, 2004, p. 24.
9 Dora Pastoriza de Etchebarne, El arte de narrar: un oficio olvidado, Buenos Aires:
Guadalupe, 1991, p. 10.
10 Denominado por muitos “contador de histórias contemporâneo”, para
diferenciá-lo do narrador tradicional. Cf. Celso Sisto, Textos e pretextos sobre a
arte de narrar histórias, Chapecó: Argos, 2001; Cléo Busatto, Narrando histórias no
século XXI: tradição e ciberespaço, 132f., dissertação (Mestrado em literatura) –
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2005; e Gislayne Avelar
Matos, A palavra do contador de histórias: sua dimensão educativa na
contemporaneidade, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
11 Neologismo referente ao ato de contar histórias.
12 Geraldo Tartaruga apud Vivian Catenacci, O voo dos pássaros: uma re lexão sobre o
lugar do contador de histórias na contemporaneidade, 113f., dissertação (mestrado
em ciências sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2008, p. 89 (grifos do autor).
13 Hamilton Faria e Pedro Garcia, Arte e identidade cultural na construção de um
mundo solidário, São Paulo: Instituto Pólis, 2002.
14 Eliot Freidson, Renascimento do profissionalismo: teoria, profecia e política, São
Paulo: Edusp, 1998.
15 Claude Dubar, A socialização: construção das identidades sociais e profissionais, São
Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 164.
16 Ibidem.
17 Eliot Freidson, op. cit.
18 Ibidem, p. 104.
19 Ibidem, p. 33.
20 Ibidem.
21 Howard Becker apud Liliana Rolfsen Petrilli Segnini, “Relações de gênero nas
profissões artísticas: uma comparação Brasil-França”, Anais do Seminário
Internacional Mercado de Trabalho e Gênero: comparações Brasil-França, São Paulo:
Fundação Carlos Chagas, 2007, v. 1, pp. 1-5.
22 Gislayne Avelar Matos, op. cit., p. XVII.
23 Ibidem, p. 38.
24 Marie L. Shedlock, “Da ‘Introdução’ de ‘A arte do contador de histórias’”, in:
Gilka Girardello (org.), Baús e chaves da narração de histórias, Florianópolis: Sesc,
2004, p. 23.
25 Esse é o caso, por exemplo, do portal <www.rodadehistorias.com.br>.
26 Maria de Lourdes Patrini, A renovação do conto: emergência de uma prática oral,
São Paulo: Cortez, 2005, p. 149.
27 Celso Sisto, op. cit., p. 60.
28 Laurence Bardin, Análise de conteúdo, Lisboa: Edições 70, 2004.
29 Informações sobre a Oficina de Contação de Histórias do Sesc-SC podem ser
encontradas em <http://portal.sesc-sc.com.br/evento/144>. Acesso em: dez.
2014.
30 Informações sobre o curso de Formação de Contadores de Histórias do Sesc-
SC podem ser encontradas em <http://portal.sesc-sc.com.br/evento/629>.
Acesso em: dez. 2014.
31 Para preservar a identidade dos entrevistados, identifico-os com nomes de
personagens de histórias infantis e juvenis.
32 Eliot Freidson, op. cit.
33 Stuart Hall, op. cit.
34 Felícia de Oliveira Fleck, op. cit., p. 49.
35 Eliot Freidson, op. cit., p. 148 (grifos do autor).
A voz de meu avô arfa. Estava com um livro debaixo dos olhos. Vô! o livro está de
cabeça para baixo. Estou deslendo. [MANOEL DE BARROS]

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadlo f, levou-o para que
descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de
muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do
mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
– Me ajuda a olhar! [EDUARDO GALEANO]
 
LINGUAGENS
Teatro e contação de histórias
AUGUSTO PESSÔA

A arte de contar histórias se confunde com a história da humanidade. O


ser humano sempre precisou (e sempre vai precisar) ouvir e contar
histórias: para se entender e para compreender sua relação com o mundo
que o cerca. O contador de histórias transmite ensinamentos de geração a
geração, mantendo a tradição dos povos que não tinham como fazer um
registro de sua história. O contador pode ser considerado a memória viva
de um povo ao resgatar suas descobertas, seus medos, suas explicações
sobre sua origem e seu destino. Para muitas culturas, o contador de
histórias é uma biblioteca viva.
Os contos populares me encantam desde a infância. Esse
encantamento me ajudou a seguir o caminho dos contadores de histórias e
a descobrir a riqueza dessas narrativas. Como contador de histórias,
pesquisei inúmeros folcloristas, como Sílvio Romero, Luís da Câmara
Cascudo, Basílio de Magalhães, Figueiredo Pimentel, Henriqueta Lisboa,
entre outros. No material recolhido por eles, percebi uma relação estreita
entre essas narrativas, o homem e a sociedade, uma sociedade que se
transforma e se recria de acordo com as transformações. O ser humano
tem de se adaptar a essas mudanças para sobreviver, assim como acredito
que ocorra com os contos populares, que ganham novas versões de acordo
com as necessidades impostas pelo período e pelos locais em que estão
inseridos.
O teatro também está nesse mesmo patamar: é realizado, recriado e
montado a partir das necessidades de cada época e de cada local. As
narrativas populares deveriam ser então uma excelente fonte para o teatro.
O fazer teatral é um espaço propício para a magia e o encantamento. Unir
a cultura popular ao teatro enriquece e valoriza nossa cultura e ainda
descortina para novas gerações uma sabedoria popular que é milenar e que
nos move até hoje. Ilíada de Castro afirma:
Uma transcrição de um conto de fadas não pode somente funcionar enquanto
teatro; estará cumprindo o seu papel se também fizer o espectador ter uma
experiência profunda em contato com a sabedoria dos relatos milenares1.

Os contos populares têm sido alvo de inúmeros estudos. Em sua tese


de doutorado, a autora2 fez um estudo sobre o que ocorre com os contos de
fadas na linguagem teatral.
Para contar histórias, é necessário haver um contador, um texto e
um ouvinte – essa é a essência da contação de histórias. Outros elementos,
como figurino, maquiagem, adereços, música etc., servem apenas como
suporte para engrandecimento do texto. A oralidade e a imaginação são a
matéria principal dessa arte: a oralidade, através da palavra do contador,
deve vir plena, e a imaginação, de acordo com as histórias de vida, cria
imagens para o ouvinte. Mas e o teatro? Pode a arte teatral ajustar-se a essa
estética, que trabalha com elementos tão simples e ao mesmo tempo tão
enriquecedores?
Conheci a arte dos contadores de histórias na década de 1990, por
meio de uma oficina ministrada pelos mestres Francisco Gregório Filho e
Eliane Yunes, na Casa da Leitura em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Logo
fiquei encantado com essa prática que acolhe pessoas de todas as idades,
os credos e as profissões. Não há necessidade de ter o dom, pois essa é uma
prática inerente ao ser humano, uma vez que contamos histórias o tempo
todo: relatamos o que aconteceu durante o dia ao chegar à noite em casa;
narramos um filme, um livro ou uma novela que nos emociona de alguma
forma etc. É a emoção que nos move como contadores de histórias. Tudo o
que nos causa paixão, seja ela como for, torna-se parte do nosso repertório
como narradores.
Minha formação é em teatro, e sou apaixonado pelo fazer teatral.
Também abri um grande espaço para o contador de histórias, separando
os dois fazeres. Eu acreditava que as duas artes não se combinavam. Será?
Ilíada de Castro declara:

[…] a questão não é a defesa fanática das versões antigas, mas, sim, a
conservação do significado simbólico do conto, considerado tão importante
pelos psicanalistas, junguianos, educadores e filósofos […] Cremos que novas
versões e novas leituras são necessárias. O presente tem o que acrescentar ao
passado. Mas cremos, ainda, que, para um melhor aproveitamento do
trabalho, é oportuno que se conheça o tradicional. Histórias milenares que
contêm a sabedoria dos povos merecem ter, no teatro, a sua versão original,
ou o mais original possível, apresentada ao lado de outras criações ou
recriações mais livres. É imprescindível – repita-se – recuperar o espaço da
transmissão dos contos, que conservam valores espirituais, conhecimento e
sabedoria dos homens através de gerações e gerações3.

Pensando nessas questões, gostaria de relatar minha ligação com


esse fazer teatral ligado às narrativas populares. Em 2000, recebi o
telefonema de um amigo, que me contou sobre um edital da Secretaria de
Cultura do Estado do Rio de Janeiro, chamado Procena, que patrocinaria
espetáculos inéditos. Ele me perguntou se eu não gostaria de criar um que
misturasse a contação de histórias e o teatro. Agradeci a indicação, mas a
recusei. No mesmo dia, outro amigo fez a mesma sugestão. Ao perceber a
coincidência, comecei a pensar no assunto com mais seriedade.
Mas como realizar essa empreitada? Cheguei à conclusão de que só
me inscreveria no edital depois de conceber o texto. Assim, participei de
duas oficinas de dramaturgia com o grande mestre João Bittencourt e me
considerei apto a pelo menos tentar escrever uma peça. Escolhi um conto:
“Maria Borralheira”. Tomei como base para meu texto uma versão de
Sergipe e pesquisei também outras versões brasileiras e de outros países,
como Rússia, Portugal, Japão etc., mas minha narrativa ficou
fundamentalmente calcada nas versões nacionais.
Tornando-se uma mistura de versões brasileiras da clássica história
de Cinderela, meu texto apresenta características fortes de nossa cultura
popular:

• a fada é uma vaca (presente da mãe de Maria Borralheira);


• são três dias de festa (como acontece muitas vezes no interior do país);
• a heroína não se comporta como outras heroínas clássicas: ela tem atitudes
mais falhas e humanas;
• como em uma boa história popular brasileira, a figura de Nossa Senhora se
faz presente.
Mesmo assim, eu ainda tinha uma grande dúvida: como passar para
o palco a riqueza simples da narrativa oral? Na contação de histórias, as
imagens ficam a cargo da imaginação do ouvinte. No teatro, pode
acontecer o mesmo, mas eu precisava achar o ponto certo entre o que
poderia ser mostrado (e como seria mostrado) e o que seria sugerido para
ser imaginado.
Havia ainda outras questões interessantes: nas narrativas populares,
algumas personagens e situações só existem momentaneamente, ou seja,
cumprem sua função e desaparecem sem muitas explicações (em alguns
casos, sem explicação alguma). Em várias versões de “Maria Borralheira”, a
figura do pai só serve para unir a heroína e a madrasta. Depois disso,
desaparece.
Outra questão é que muitas personagens não têm nome. Elas são
nomeadas por sua função na trama, por seu ofício, por suas qualidades ou
por sua idade: Rei, Rainha, Madrasta, Príncipe, Princesa, Cavaleiro, Velho,
Velha, Menina, Irmã etc. No caso de Maria Borralheira, o nome dela está
ligado ao fato de viver suja pelo trabalho intenso (ela vive no borralho).
Como já registrado, para contar histórias é necessário haver um
contador, um texto e um ouvinte. Para realizar o fazer teatral, é necessário
haver um tablado, uma pessoa em cima do tablado dizendo um texto e
outra pessoa assistindo ao que é feito. Desde que Téspis, considerado o
primeiro ator na Grécia antiga, se posicionou à frente do coro, o teatro
pode ser visto dessa forma.
Como vemos, essa estrutura é muito semelhante à essência do ato de
contar histórias, mas também guarda diferenças. No fazer teatral, o texto
pode ser dito de várias formas, pode até mesmo não passar pela oralidade
(um texto dito por meio da mímica, por exemplo); além disso, o ator
interpreta uma personagem por texto (ou vários, se o texto e a encenação
exigirem). Já o contador de histórias diz o texto. Como narrador, ele pode
emprestar uma voz (ou modulação de voz) para uma personagem, mas isso
não é fundamental.
Diante de tantas questões, optei por criar duas personagens sem
nome. Como nas narrativas populares, elas seriam chamadas por suas
funções na trama: o Violeiro e o Contador. Apesar de nomeados por suas
atribuições principais, eles também tinham outras funções (o Contador
poderia cantar e tocar um instrumento, e o Violeiro poderia fazer parte da
narração). Os dois são artistas mambembes que andam pelos lugares à
procura de público para apresentar seu espetáculo, uma contação de
histórias bem brasileira.
Procurei dar às personagens características dos primórdios das
duplas de palhaços, nas figuras conhecidas como Augusto e Palhaço
Branco. Augusto – que no meu texto é o Violeiro – é o infantil, o puro, o
bobo, aquele que supostamente cairá na brincadeira dos mais espertos,
mas, de alguma forma, conseguirá “dar a volta por cima”. O Palhaço
Branco – que no meu texto é o Contador – é o adulto, o mais culto, o que dá
sentido e direção à trama. Temos bons exemplos desse tipo de dupla de
palhaços no cinema e na televisão: Dedé e Didi (Os Trapalhões), O Gordo e o
Magro, Abbott e Costello, Oscarito e Grande Otelo. Esse tipo de encenação
já não é muito encontrado nos grandes circos.
Norteado por essas questões, pensei em dividir as personagens da
narrativa da seguinte forma: as personagens positivas (a heroína, a
fada/vaca, o pai da heroína) seriam ditas/interpretadas pelo Violeiro (o
Augusto), e as personagens negativas (a madrasta e as bruxas) seriam
ditas/interpretadas pelo Contador (o Palhaço Branco). Destas, nem todas
são exatamente “negativas”: muitas são vistas dessa forma porque têm
sabedoria e detêm o poder do bem e do mal (as bruxas, por exemplo).
Outra opção era trazer para a peça a cultura popular por meio do
cenário e dos adereços. A cenografia não poderia definir um lugar, ou seja,
uma ambiência teria de ser criada. Optei então por “pernas” cenográficas
de chita. Essas pernas podem ser feitas de tecido ou de outro material,
como madeira, e definem e delimitam espaços cênicos. No fundo do
cenário, inseri um oratório com a imagem de Maria feita de sucata.
Os adereços seguiam essa mesma estética. Remetendo à cultura
popular, eles não personificavam totalmente uma personagem ou objeto,
mas remetiam às imagens, dando a possibilidade de o ouvinte/espectador
criar suas próprias imagens. Dessa forma, alguns adereços ficaram assim:
a madrasta era uma vassoura com cerdas de palha, e suas duas filhas eram
vassourinhas; a vaca/fada foi feita com uma caixa adereçada; os três
vestidos, ligados à natureza (o vestido com a cor do campo, o com a cor do
mar e o com a cor do céu), transformaram-se em três brinquedos
populares – originário da Bahia, o “barangandão arco-íris” é um brinquedo
feito com fitas coloridas. Esses adereços não seriam manipulados, mas
apenas mostrados ao público para representar a personagem ou o objeto
citado.
Toda a concepção visual foi pensada com a criação do texto e, assim,
decidi que a heroína não seria caracterizada por nenhum adereço. Mesmo
quando o personagem Violeiro dizia/interpretava suas falas, ele antes
anunciava: “Agora eu vou fazer a Maria”. É algo semelhante ao artifício
utilizado por contadores de histórias tradicionais: quando “falam” como as
personagens, eles o fazem na terceira pessoa: “Ele venceu a batalha” em
vez de “Eu venci a batalha”. Dessa forma, o Contador é a personagem e, ao
mesmo tempo, se distancia dela. O que aconteceria então com Maria
Borralheria sem nenhum adereço, justamente a personagem que dava
título ao espetáculo?
Com o texto pronto, fiz o projeto e o enviei para o concurso. O
espetáculo foi contemplado, e passei para a montagem, uma fase
complicada. Para essa empreitada, convidei o ator e músico Rodrigo Lima
e o diretor teatral Rubens Lima Junior. A maior dificuldade estava na
história profissional deles, mais ligada ao fazer teatral (principalmente o
diretor). Tive de apresentar para os dois o universo da contação de
histórias e tentar de alguma forma aparar arestas entre as duas
manifestações artísticas.
O espetáculo enfim estreou e foi um sucesso. Participamos de vários
festivais, sempre recebendo prêmios e indicações. Confesso que,
inicialmente, não fiquei satisfeito com o resultado final. Apesar da estética
criada, das músicas que remetiam a canções populares (com letras minhas
e melodias de Rodrigo Lima) e de todo o trabalho de rica simplicidade,
achei que a direção tinha orientado a encenação mais para o aspecto
teatral. No entanto, com o decorrer das apresentações, fazendo o
espetáculo e sentindo a reação das plateias, percebi que as duas artes
estavam contempladas. Meus companheiros e eu conseguimos criar um
espetáculo em que as duas artes tinham o mesmo peso.
Até o artifício de não representar diretamente a personagem que
dava título ao espetáculo trouxe uma curiosidade: o público em geral não
identificava na figura do Violeiro a imagem da heroína – nem a Madrasta
na figura do Contador, que dizia/interpretava suas falas. No entanto, os
adultos sentiam falta da “personificação” da Maria Borralheira, enquanto
as crianças, não. Certa vez, depois de uma apresentação, um espectador
adulto questionou essa “falta” e foi surpreendido pela resposta de uma
criança: “Mas ela estava lá. Você não viu?”.
Para mostrar o sucesso do espetáculo, cito trechos da crítica de
Mànya Millen publicada no jornal O Globo:

Maria Borralheira: versão do clássico comandada por contadores de histórias


honra o teatro […] Maria Borralheira, em cartaz no Teatro Café Pequeno, é mais
uma daquelas bem-vindas provas de que há vida inteligente e
encantadoramente criativa no meio teatral, capaz de oferecer à plateia
novidade e deleite a partir de uma história tão recorrente. Graciosa e
arrebatadora versão da Cinderela – cuja versão europeia é a mais difundida –
Maria Borralheira preserva a semente da história original, mas a tempera com
o delicioso sotaque de muitos interiores do Brasil. Culpa do criterioso trabalho
de contadores de histórias que a dupla formada por Augusto [Pessôa] e
Rodrigo Lima desenvolve há tempos, garimpando pérolas da narrativa
popular e espalhando-as pelos palcos e ruas com gosto sincero pela arte. […]
Maria Borralheira faz parte daquele tipo de peça que tem como principal trunfo
sua integridade, seu conjunto – tudo funciona no tempo e na medida certa. E
tudo só funciona tão bem porque é uma junção de vários talentos e méritos,
dos excelentes texto, adereços e concepção visual de Augusto à primorosa
direção musical de Rodrigo (as bonitas canções são tocadas e cantadas ao vivo
pelos atores), chegando à direção de Rubens Lima Junior, coesa, segura e
esperta o suficiente para manter-se quase invisível, deixando à mostra a
simplicidade luida do espetáculo. A tradução é aquele aconchegante ar de
sofisticada improvisação que leva o espectador para a história e o mantém
alegremente preso ao enredo. […] Além de receber os calorosos aplausos da
plateia, o espetáculo ainda promove uma sempre salutar re lexão sobre a
simplicidade das coisas. Sem superprodução, sem luxo, sem pirotecnias Maria
Borralheira honra, pelo exemplar conjunto, a essência dessa arte chamada
teatro4.
Esse trabalho motivou a criação de outros. Para o segundo
espetáculo, montado a partir do conto popular “O rei doente do mal de
amores”, quis valorizar mais a figura do contador de histórias.
A narrativa traz a história de uma menina que é encontrada ainda
bebê por um casal de velhos. Eles decidem criar a criança, mas, com medo
de que alguém possa tirá-la deles, guardam o bebê em um quarto da casa
sem janelas. Ali, a menina cresce sem ver o mundo. Porém, como a
curiosidade é mais forte, ela sai do quarto e descobre a vida. Nessa
descoberta, encontra o amor de um jovem rei5.
A valorização do narrador veio na figura do personagem Boreia
Armador. Ele é um contador de histórias na tradição dos grandes griôs,
que carrega em suas roupas e acessórios todo o seu repertório de
narrativas. A ideia do texto é a visita desse contador de histórias a uma
feira livre. Os feirantes pedem ao narrador que conte uma história. À
medida que a narrativa se desenrola, os feirantes vão se transformando
nas personagens. Como em outras narrativas, as personagens são
nomeadas por suas funções, personalidades ou idades na trama: Rei,
Menina, Velho, Velha, Magos.
A figura do contador é a única que se mantém a mesma. Ele passeia
pelos dois universos (real e imaginário), conduzindo a trama sem entrar
nela. Somente no final ele funde real e imaginário, declarando ter
participado da festa de casamento dos heróis. Como em muitos contos
populares, o narrador ao final anuncia: “e eu estive lá nessa festa. E trouxe
uns doces para vocês. Mas eu tropecei num buraco e os doces foram ao
chão”. Ou seja, o contador tem uma prova da junção dos dois universos,
mas essa prova se perdeu. Essa fusão de universos é bem característica
tanto na contação de histórias como na encenação teatral.
Na concepção visual, a cultura popular ainda foi referência,
sobretudo nos objetos característicos das feiras livres: caixotes de frutas,
vassouras, espanadores, abanadores, panos de prato e de cozinha se
transformavam em trono, mesa, cadeira etc.
Para mim, o momento mais importante dessa fusão de universos foi
a criação do mundo que a menina vê ao sair de seu quarto. Nesse
momento, o palco se transformava. Um grande pano azul representava o
céu, pedaços de algodão eram as nuvens, uma grande bola amarela era o
sol, e pedaços de emborrachado se transformavam em um jardim. Tudo
era transformado pelo elenco, sob o comando do contador da história.
Perceber a reação da plateia foi emocionante.
Trechos da crítica de Marília Coelho Sampaio, publicada no jornal O
Globo, comprovam a emoção do público:

As cenas em que os atores criam o céu, o sol e as nuvens, assim como a que
eles montam o jardim, com suas enormes e coloridas lores, são de uma poesia
comovente. […] chama especial atenção no espetáculo as ideias de transformar
as mercadorias da feira em elementos da cena, e de promover a
transformação dos atores, ora em feirantes, ora em personagens da história
que está sendo contada. É muito interessante para as crianças descobrir o
teatro dentro do teatro – o que acontece quando as mudanças cênicas
acontecem propositadamente na frente do público, sem truques. A peça tem
ainda o mérito de promover o prazeroso encontro das crianças urbanas com o
rico universo da cultura popular brasileira […]6.

Outro espetáculo marcante na empreitada de unir teatro e contação


de histórias foi o MALASARTES!. Pedro Malasartes é um dos personagens
mais encontrados na cultura popular do Brasil. Em todas as regiões do
país, vemos relatos sobre as aventuras desse caipira. Malasartes sempre é
apresentado com todos os clichês do típico homem do povo: é magro,
amarelo, aparentemente fraco e feio. Mas ele tem uma característica
especial: é esperto e vive de suas espertezas e artimanhas.
Malasartes é um anti-herói, é diferente de heróis das narrativas
populares que procuram vencer os poderosos e buscam a felicidade,
geralmente ligada ao casamento ou à fortuna. Ele não busca nada disso
como um fim para a sua existência: Malasartes busca o prazer. Ele derrota
os poderosos com suas artimanhas não para tomar-lhes o lugar ou a
fortuna, mas para conseguir dinheiro para o seu prazer. Ao conseguir esse
dinheiro, ele o gasta até ficar sem nada e então vive outra aventura para
conseguir mais dinheiro.
Malasartes pode ser comparado ao Scapino ou ao Arlequim da
commedia dell’arte. Encontramos características suas no Macunaíma de
Mário de Andrade e no João Grilo de Ariano Suassuna, além de em outros
lugares do mundo: na Ásia, é conhecido como Kuong-Alev; na África,
recebe o nome, em certas regiões, de Foumtinndouha; no norte da Europa,
na Europa central e no Leste Europeu, é o Eulenspiegel; na Itália, ele é
Bertoldinho; na Espanha e em parte da América Latina, tem o curioso
nome de Pedro Urdemales.
Diante desse potencial, nada mais instigante do que criar um texto
teatral para esse personagem. Diferentemente de outros trabalhos, não
utilizei apenas um contador de histórias. Como disse no início, todos nós
somos contadores de histórias, e, assim, fiz com que as quatro
personagens do espetáculo contassem a sua história de Malasartes. Eram
personagens como o próprio herói: andarilhas e nômades que ouviram
narrativas do caipira por suas andanças e passam adiante as histórias,
para que estas continuem vivas. Desse espetáculo, não participei como
ator, e isso me trouxe outra perspectiva: a visão de público. Eu pude
perceber a emoção da plateia ao ver o encontro das duas artes.
Realizei e ainda realizo outros espetáculos juntando teatro e
contação de histórias, e constatei o grande mérito de unir essas
manifestações artísticas: a criação de possibilidades de manter vivas as
histórias milenares e, por meio de uma experiência artística, ter
consciência de sua história pessoal e poder transformá-la com uma visão
crítica.
A partir de uma interpretação da educadora Sonia Kramer sobre a
fábula de Sherazade, Flávio Desgranges declara:

Podemos afirmar, construindo uma leitura particular da fábula, que o rei


Shariar, ao ouvir as narrativas, chocou os ovos da própria experiência,
fazendo nascer deles o pensamento crítico. Ouvir a contação das histórias
constituiu-se, nesse sentido, em vigorosa experiência pedagógica para o rei,
que, à medida que ia compreendendo as tramas, reportava-se à própria
existência; à medida que interpretava as histórias narradas, revia
criticamente aspectos de sua vida, tomando consciência da própria história,
estando, assim, em condições de transformá-la. A experiência artística se
coloca, desse modo, como reveladora, ou transformadora, possibilitando a
revisão crítica do passado, a modificação do presente e a projeção de um novo
futuro7.
Dar acesso ao público, por meio da dramaturgia, às narrativas
populares é possibilitar a realização de uma experiência reveladora e
transformadora. Ao estabelecer contato com essas narrativas, o espectador
de qualquer idade tem a oportunidade de vivenciar a sabedoria popular.
Nesse processo, pode assimilar uma consciência crítica sobre o mundo.

1 Ilíada de Castro, “O processo de transcrição teatral de um conto de fadas”, O


Percevejo, Rio de Janeiro: 2000, ano 8, n. 9, p. 147.
2 Idem, Contos de fadas na dramaturgia para crianças: o caso de Cinderela, 290f., tese
(doutorado em artes cênicas) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1994.
3 Ibidem, p. 149.
4 Mànya Millen, “Cinderela com talento brasileiro”, O Globo, Rio de Janeiro: 14
jul. 2002, p. 18.
5 No texto teatral, procurei manter a poesia da história lírica.
6 Marília Coelho Sampaio, “Bela encenação de um conto popular”, O Globo, Rio
de Janeiro: 16 ago. 2003, p. 3.
7 Flávio Desgranges, Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo, São Paulo:
Hucitec, 2006, p. 26.
Teatro playback: a história que as histórias contam1
CLARICE STEIL SIEWERT

E então uma menina de 11 a 12 anos levantou a mão querendo contar uma história.
Sentou-se na cadeira do narrador e contou da avó que havia morrido, da qual ela sentia
muita falta. A avó, antes de morrer, contava de como era no seu tempo em que ela
andava de trem, e que um dia a levaria para passear de trem também. Ela nunca foi,
porém, naquele dia, se lembrou da história, pois viu o museu reformado (uma antiga
estação de trem, onde acontecia a apresentação de teatro). A menina escolheu a atriz
que faria o seu papel. O condutor anunciou o início da cena: “Vamos ver!”. A música
começou, os atores prepararam o cenário utilizando caixotes de madeira e panos. Os
outros personagens foram incorporados pelos outros atores, e sem combinação nenhuma
entre os artistas, a história foi encenada, e nela a avó vai embora, se despedindo da neta
no final. No término da encenação, a menina chorava. As pessoas que assistiam
também se emocionaram. O condutor abraçou a menina e a levou de volta para a
plateia. Logo uma mulher se levantou e quis contar uma história alegre, que, segundo
ela, era “para descontrair” 2.

Esse é um breve relato de uma história contada em uma apresentação de


teatro playback. O teatro playback (ou playback theatre, como é conhecido
mundialmente) é uma forma teatral em que um grupo de atores, com a
mediação de um condutor3, encena histórias contadas por pessoas da
plateia. Em uma apresentação como essa, a interação entre os performers
(atores, músicos e condutor) e as pessoas da plateia é fundamental para a
criação de um espaço onde as histórias pessoais possam ser improvisadas
em cena.
Toda a estrutura de uma apresentação tem uma forma já bem
definida, que foi sendo aperfeiçoada desde sua criação. De acordo com
Fox4, criador da prática, desde o início as apresentações de teatro playback
aconteciam em escolas, hospitais e centros comunitários.

Foi a prática desde o início feita em espaços diferentes do teatro, para pessoas
diferentes das plateias convencionais do teatro, que o diferenciou de outras
formas teatrais. O fato de que essas audiências pertenciam a contextos
específicos, como por exemplo educação/escola, reabilitação/lar coletivo,
comunidade/vizinhança emergiu como um aspecto definidor do método de
teatro playback5.

Assim, com o foco voltado para espaços alternativos e plateias


diversificadas, visando à criação de um momento íntimo e artístico entre
os participantes, o teatro playback adquiriu um formato versátil e
ritualístico.
A versatilidade está no fato de que uma apresentação de teatro
playback pode acontecer em espaços variados, pois seu formato exige
poucos elementos. Um grupo, formado pelos atores, músicos e condutor,
utiliza geralmente apenas instrumentos musicais, caixotes e panos
coloridos (ou adereços, conforme a preferência do grupo) para a realização
de uma apresentação. Isso não exclui a possibilidade de uma apresentação
acontecer em um teatro convencional, utilizando iluminação cênica, por
exemplo. No entanto, é necessário apenas um ambiente não muito grande,
em que as pessoas se sintam confortáveis e próximas ao local de
representação.

A montagem básica do espaço cênico é bastante simples. À esquerda da plateia


– à direita do palco – são colocadas duas cadeiras lado a lado, voltadas em
direção ao centro, para o diretor [condutor] e para o narrador. […] No outro
lado do palco está o assento do músico e um conjunto de instrumentos
espalhados sobre uma mesa baixa ou um pano aberto no chão. Na parte de
trás estão alguns engradados ou caixotes de madeira para os atores se
sentarem e, mais tarde, utilizarem como acessórios durante a encenação6.

Para Rowe7, assim que a plateia chega, ela já vai sendo apresentada
ao playback de acordo com a disposição das cadeiras, as luzes e a relação
com os atores. Seu nível de segurança psicológica dependerá de alguns
aspectos: “Isso [a segurança em contar histórias] será crucialmente afetado
pelo tamanho da plateia e a familiaridade entre seus integrantes, qualquer
interação com os performers, a visão que tem do palco, e, principalmente, a
integridade do limite entre o espaço teatral e o de fora”8.
Por isso, o ritual é um aspecto importante nesse tipo de teatro. É
necessária a criação de um ambiente aconchegante, onde as histórias
possam ser compartilhadas. É muito difícil alguém contar uma história
pessoal diante de uma plateia de desconhecidos sem antes haver uma
preparação, sem haver a construção de um espaço seguro em que as regras
estejam estabelecidas.

No playback theatre o ritual significa uma repetição de estruturas de espaço e


de tempo que proporcione estabilidade e familiaridade, dentro das quais o
imprevisível pode estar contido. O ritual serve também para ajudar a atingir
uma percepção intensificada da experiência; é essa intensificação da
percepção que pode transformar a vida em teatro9.

Como forma de estabelecimento desse ritual, é necessário que uma


apresentação seja bem conduzida e tenha uma estrutura concisa. No
mundo todo, o teatro playback tem essa estrutura já bem estabelecida.
Apesar das diferenças de um grupo para outro, de forma geral a sequência
de uma apresentação contém invariavelmente alguns passos: apresentação
inicial, explicação da forma, cenas curtas realizadas a partir de
sentimentos das pessoas na plateia, narração de histórias, encenação das
histórias, encerramento.
Uma apresentação consiste então em um momento inicial em que o
grupo se apresenta – assim como também muitas vezes as pessoas da
plateia – e o condutor explica “as regras do jogo”, ou seja, diz como
funciona o teatro playback.

O diretor [condutor] sabe que uma de suas primeiras tarefas é explicar às


pessoas novas o que é o playback e mostrar que se trata de um lugar seguro
para contar suas histórias. É muito importante ter um ritual de abertura,
tanto para as pessoas que frequentam regularmente quanto para aquelas que
estão ali pela primeira vez. O diretor [condutor] deve ressaltar que as histórias
reais de pessoas comuns são valiosas para serem compartilhadas em público e
para receberem um tratamento artístico10.

O ritual de abertura é próprio de cada grupo. Alguns iniciam com


uma música, outros com os atores cantando em coro, outros já com a fala
do condutor. A forma como se apresentam à plateia também difere
bastante. Um ponto importante nessa apresentação é que ela seja o
momento de “quebrar o gelo”, de dizer à plateia que ela também será
responsável pelo espetáculo, que sua participação é tão importante quanto
a ação dos atores. É necessário apontar a ideia de que todos são seres
humanos que podem compartilhar histórias e que farão parte de uma
experiência da qual ninguém sabe qual será o resultado. É o momento de
sinalizar que haverá tanto a exposição das pessoas ao contar suas histórias
pessoais como a dos atores na improvisação. Para tanto, tornou-se
imprescindível no teatro playback que os performers também se apresentem
com suas histórias e sentimentos. Dessa forma, é comum que as primeiras
cenas sejam feitas a partir da fala deles. Assim, a plateia começa a se
familiarizar com a forma. Com os performers também falando de si, fica
mais clara a ideia de diálogo que o teatro playback carrega. O público logo
fica sabendo que não é uma via de mão única, na qual sua participação será
“usada” para gerar um “show” de puro entretenimento, ou seja, ele adquire
a ciência de que deve haver uma troca a partir da qual ambas as partes
colaboram e são gratificadas.
Após a apresentação inicial e antes da encenação das histórias, o
condutor pergunta às pessoas da plateia como elas se sentem naquele
momento. Nessa hora, são utilizadas as chamadas cenas ou formas curtas
(short forms) do teatro playback11. Trata-se de cenas rápidas de formas
variadas e que são feitas a partir das respostas das pessoas. Essas cenas
servem como um aquecimento para que a plateia comece a participar.
Geralmente o público fica ansioso ao saber que haverá interação em um
espetáculo de teatro. Com as formas curtas, a apresentação ganha
agilidade e a atenção da plateia, além de ser uma forma para que esta tome
conhecimento de como será sua participação.
Sempre ao final de uma forma curta, quando a música para, os
atores saem de suas posições e se voltam para a pessoa que contou o
sentimento ou a história. Trata-se de um olhar carinhoso, como que
oferecendo a cena feita como um presente para o narrador. O condutor
também se volta ao espectador, dando oportunidade para que ele possa
expressar mais alguma coisa em relação à cena ou a como se sentiu vendo-
a.
Após a apresentação inicial e o aquecimento com formas curtas,
entra-se no momento mais importante de uma apresentação de teatro
playback e que deve ser bem construído pelo condutor: a encenação de
histórias. Ele deve anunciá-la, falar da importância das histórias e do
respeito que se deve ter com elas. É aqui também que o condutor apresenta
a cadeira do contador de histórias. Até então as pessoas falavam sentadas
em seus lugares. Contudo, nesse momento, elas são convidadas a deixá-
los, sentar-se em uma cadeira especial ao lado do condutor e contar suas
histórias. O condutor deve enfatizar que a história deve ser algo que
realmente aconteceu com a pessoa que vai contá-la. Não precisa ser uma
história importante, triste ou alegre. Todas as histórias são bem-vindas.
Isso é o que preconiza o teatro playback.

Estamos dizendo, também, que a expressão artística eficaz não é domínio


exclusivo do ator profissional; todos nós, inclusive você e eu, temos elementos
– dentro ou fora de nós mesmos – para criar algo belo que pode atingir outros
corações. Por si só, uma história é da mais profunda importância; precisamos
de histórias em nossas vidas para construir significados12.

Assim que a pessoa se senta na cadeira do narrador, a entrevista tem


início. O condutor faz as perguntas de modo que a história fique clara para
os atores e para a plateia. O narrador escolhe os atores que farão as
personagens de sua história.
Aqui, o condutor tem uma tarefa difícil: ele deve, além de conversar
com o narrador, ouvir a história dele, fazer as perguntas necessárias para
clarificar a narrativa e também abrir essa conversa para a plateia. É sua
função fazer com que a plateia compreenda a história, muitas vezes
contada pelo narrador em voz baixa.

O trabalho do diretor [condutor] é o de descobrir o que é, deslocar a história


de seu lugar na memória do narrador para o âmbito público e dar-lhe forma
antes de entregá-la aos atores, para que se torne um artefato vivo, que os
outros possam ver, entender, lembrar e ser transformados por ela13.

Fazer as perguntas certas nesse momento é fundamental para o bom


andamento da cena e da apresentação como um todo. O condutor deve
procurar o “quem”, o “onde”, o “quando” e o “o que” da história, buscar
elementos das personagens e, segundo Salas, encontrar a essência da
história.

A essência da história nos dá o núcleo em torno do qual sua forma é


construída. Ela funciona como um princípio organizador que pode trazer não
somente coerência como também grande profundidade para a cena. O senso
de história do diretor [condutor] vai ser um dos fatores mais importantes do
sucesso da cena – sucesso tanto em termos de arte quanto da verdade
humana, que são inseparáveis neste trabalho14.

Quando a entrevista é encerrada, o condutor pode ou não dar


indicações de cena para os atores. Em seguida, ele fala o tradicional
“Vamos ver!”. Esse é o sinal para que os atores improvisem a história
contada. A música começa, e os atores, sem combinações, arrumam a cena,
utilizando ou não panos, acessórios ou caixotes. À medida que vão ficando
prontos, os atores começam a ficar imóveis. Quando todos param, a
música também para e a cena tem início.
Durante a encenação da história, o músico improvisa com os atores.
No teatro playback, a ideia é tentar ser o mais fiel possível à história
contada. É necessário recordar os nomes e a sequência dos fatos, tentando
utilizar somente as personagens que apareceram no caso contado. É
preciso estar atento ao início e ao fim da história. Entretanto, muitas vezes
faltam informações nas narrativas, e mesmo os diálogos, a fim de serem
improvisados, necessitam da criação e da intuição dos atores. Para tanto, é
necessário muito cuidado para não inserir elementos que fujam do
universo do narrador e da história.
Ao final da cena, os atores se voltam para o narrador, e o condutor
pergunta a ele se a cena contemplou sua história. Às vezes, se ele não fica
satisfeito com a cena, ela pode ser corrigida, ou seja, os atores a refazem de
acordo com as indicações do narrador.
O encerramento de uma apresentação é também um momento
importante e delicado. É o condutor que comanda o tempo de uma
apresentação e “sente” a plateia, para saber se mais uma história deve ou
não ser contada. Uma apresentação pode ser encerrada com uma forma
curta ou com uma fala do condutor que contemple as histórias contadas.
Os grupos recorrem também à música para concluir uma apresentação.
“Quando termina o espetáculo, a finalização que você fizer também vai
ajudar a afirmar o significado e a dignidade daquilo que todos acabaram
de compartilhar15.”
No teatro playback, não há, a princípio, o intuito de abrir uma
discussão sobre “as mensagens” ou “a moral” das histórias contadas e
encenadas. Se há a necessidade de encerrar a apresentação e de o condutor
falar, essa fala é apenas para retomar o que aconteceu e foi compartilhado
por todos.
Há algo que os praticantes de teatro playback chamam de red thread
(fio [da meada] vermelho)16. É a ideia de que as histórias “conversam” entre
si, uma respondendo à outra. Pode-se achar o fio condutor de uma
apresentação por meio do “diálogo” que as histórias estabelecem entre si.
Qual é a história que as histórias contam? é a essa pergunta que o condutor
e o grupo respondem para finalizar uma apresentação.

O teatro playback não comenta nem julga, não há explicação nem


entendimento com palavras e termos. Nós apenas assistimos. Isso nos coloca
em um diferente estado de consciência muito rapidamente. Um pequeno
transe é criado. Começamos a “pensar” em histórias e imagens, assistimos e
adicionamos histórias a outras histórias, encaixamos imagens em imagens
sem que nosso processo racional primário entre em ação17.

Hoesch defende que, além de uma história se conectar com outra


como uma resposta, elas ainda oferecem padrões de solução e
transformação. Portanto, o teatro playback, mesmo não sendo uma
psicoterapia, teria um poder restaurador (healing), tanto para o indivíduo
como para o grupo.
Fox também comenta a red thread apontando que as histórias
dialogam entre si, fazendo contraponto umas às outras18. Para ele, há mais
de uma red thread: são várias as mensagens comunicadas por meio das
cenas, do movimento, da música e da cor.

O modo como as red threads funcionam em um evento de playback é tão rico


que, como condutor, eu deixo o processo seguir tão indireto quanto possível,
preocupado [com o fato de] que, se fizer muitas sugestões, poderei de fato
restringir essa forma de diálogo geralmente inconsciente19.

Outro aspecto a ser salientado é que o contexto in luencia as


histórias a serem contadas. “Aprendemos que os elementos da história,
além de falar com a comunidade de forma geral, usualmente se relacionam
de maneira muito específica com as circunstâncias do grupo20.”

Por fim, uma garota, amiga da menina que contou a primeira história, pediu para
contar uma também. Contou o dia em que elas se conheceram. Logo começou a chorar
contando a história. Falou que era sozinha e [que] a amiga veio fazer o lanche com ela.
Depois ficaram “amigas para sempre”. Um dia ela foi na casa da amiga e descobriu
pela avó dela (aquela da outra história) que eram primas. Fizemos a história na forma
curta “Narrativa em V”. A garota, ainda comovida talvez com a história da amiga, quis
contar algo para exaltá-la. Para o grupo esta apresentação foi o maior exemplo até
agora de como as histórias se comunicam, e como as pessoas também se
responsabilizam pelos outros e pelo bom andamento do trabalho21.

Para Fox, as histórias têm uma forma muito especial de discussão,


que acontece por meio das cenas no palco22. Há mais ação do que palavras.
Pode haver ideias nas histórias, pode-se até encontrar a moral de algumas
delas. No entanto, o mais importante é que elas são histórias com
personagens e imagens. “E, como nas histórias, o valor, ou significado,
geralmente se revela apenas indiretamente23.” Os valores ou mensagens
vão se construindo para a plateia durante as cenas, e não por meio de uma
análise racional ou da interpretação de significados. Não há falas ou
julgamentos sobre cenas e histórias: histórias e cenas vão se completando
ou se opondo umas após as outras. A(s) red thread(s) dão a transversalidade
de uma apresentação e podem ser explicitadas pelo condutor ao final,
buscando a história que as histórias contaram.

TEATRO PLAYBACK: CONSTRUINDO COMUNIDADES

O Centro de Playback Theatre, em New Paltz, fundado por Jonathan


Fox, é a maior referência dessa prática atualmente. Nele se oferecem
cursos e se dá assistência a diversos grupos pelo mundo com o intuito de
promover o teatro playback. Com o lema “Dignidade e diálogo através do
teatro”24, o centro busca fortalecer essa forma teatral com base no respeito
e valorização dos indivíduos e grupos.
Dessa forma, apesar das várias mudanças que o teatro playback pode
ter sofrido desde sua criação, a ideia de que seja um teatro voltado a
realizar uma conexão entre as pessoas permanece. Salas coloca essa
questão de forma clara, apontando o teatro playback como um edificador
de comunidades:

Nossa tarefa no playback theatre é ir além do que normalmente fazemos em


nosso modo de contar histórias do cotidiano. Nosso trabalho é revelar a
perfeição de formas e o significado de qualquer experiência, mesmo que seja
narrada de maneira nebulosa e informe. Conferimos dignidade às histórias,
com ritual e consciência estética, interligando-as para que formem uma
história coletiva a respeito de determinada comunidade, seja a comunidade
transitória constituída pelo público de um espetáculo, seja um grupo de
pessoas cujas vidas estejam interconectadas de forma mais continuada. Um
grupo de pessoas que compartilha suas histórias deste modo não pode deixar
de se sentir conectado: o playback theatre é um poderoso edificador de
comunidades. Oferecemos uma arena pública na qual o significado da
experiência individual se expande para fazer parte de um sentido
compartilhado de existência significativa25.

Assim, independentemente do lugar e do objetivo para o qual esteja


sendo empregado, o teatro playback imprime a característica de promover
uma conexão entre as pessoas.
Segundo Dennis26, há uma tendência a identificar a plateia do teatro
playback como uma “comunidade”. Fox o faz ao dizer que comunidade é o
grupo que experiencia o teatro playback, seja em uma apresentação com
ingresso ou em algum lugar especial como uma escola, um ambiente de
trabalho ou um centro comunitário. Ele ainda afirma que a teoria por trás
desse entendimento deriva do sociodrama, que é “um método de ação
profunda que lida com relações intergrupais e ideologias coletivas”27.

O sociodrama baseia-se na suposição tácita de que o grupo formado pela


plateia já está organizado pelos papéis culturais e sociais que em algum grau
são compartilhados por todos os portadores da cultura. É, portanto,
irrelevante quem são os indivíduos, ou de quem o grupo é composto, ou que
tamanho tem28.

Assim, segundo o autor, a plateia é considerada representante de


uma comunidade proveniente de um contexto mais amplo. Essa ideia vem
ao encontro do que Salas apontou anteriormente: a comunidade atingida
pode ser formada por um grupo que já possui relações continuadas ou
simplesmente pelos laços transitórios de uma plateia formada para uma
apresentação.
Mary Good escreve sobre a capacidade do teatro playback de tornar-
se o espelho de uma comunidade, abrindo espaço para o diálogo: “O
diálogo que uma apresentação ou oficina de teatro playback pode abrir não
é para resolver problemas; elas proveem uma oportunidade para que as
pessoas aceitem as visões e experiências existentes na comunidade29.”
A história, que no primeiro momento era uma elaboração somente
do autor/narrador, e que em um segundo momento passa a ser imaginada
pelas pessoas da plateia que a escutam, é corporificada pelos atores após o
convite “Vamos ver?”. A história pessoal encenada ganha novos detalhes e
adquire uma dimensão artística por meio do teatro playback. Essas
histórias acontecerão novamente não apenas individual, mas também
coletivamente.
Dessa forma, o teatro playback não trata somente de utilizar as
histórias contadas para fazer teatro: trata igualmente da valorização do
outro, das histórias e da importância da interação. Por um lado, ele
representa um estímulo para ouvirmos as histórias dos outros e para
contarmos nossas histórias. Por outro, ele valoriza as histórias contadas
colocando-as no centro do palco, em foco. E mesmo aqueles que talvez não
tenham a oportunidade de contar uma história durante uma apresentação
no mínimo se perguntarão: “Quais são as minhas histórias? Eu tenho
histórias para contar?”. Assim, o teatro playback é também um mobilizador
de histórias.
Se, no teatro em geral, o prazer da plateia está em ver uma cena bem
feita, no teatro playback esse prazer não se limita a isso. Existem outros
elementos intrínsecos à forma que também proporcionam gratificação:
contar uma história, ouvir histórias, o sentimento de que sua história está
sendo valorizada e o estabelecimento de uma relação com as histórias dos
outros por identificação, reconhecimento ou rejeição. Dessa forma, o valor
estético do playback inclui outras dimensões. Não é somente um texto
elaborado, a performance de um ator em determinada personagem e
figurinos e cenários de tirar o fôlego que estão em questão no teatro
playback.
O prazer inclui o desafio do improviso: como aqueles atores vão se
virar para encenar essa história? Ou talvez o prazer esteja somente em
reviver a história, lembrá-la, contá-la, vê-la novamente; em saber que
outras pessoas vão ouvir essa minha história e ela não vai mais morrer
comigo; ou em ouvir as histórias dos outros. De qualquer forma, é tarefa
dos artistas proporcionar espaço para que essas gratificações, sejam elas
quais forem, possam acontecer.
Para praticar o teatro playback é necessário entender a plateia e seus
narradores como uma comunidade. A estética do playback compreende
uma conexão entre as pessoas presentes (performers e público). No lugar de
separar os elementos artísticos e outros elementos de caráter social ou
terapêutico, é necessário o entendimento de que a arte do playback abarca
esses elementos. Ela é tudo isso. O que é necessário para um artista
praticar teatro playback é dar espaço e voz ao ser humano que está por trás
desse artista, que o constitui.
A arte criada no teatro playback é de âmbito coletivo. Rowe cita
Bakhtin quando este diz que o significado não está na palavra, na alma de
quem fala nem na alma de quem escuta. Está em uma conexão de todos30.
Isso traz a ideia de que ninguém é dono de um significado, mas de que ele
é construído com várias partes. Esse conceito tem um grande efeito na
conceitualização do playback.
“No lugar de uma história ‘possuída’ pelo narrador, a história no
teatro playback se torna não apenas um texto criado em conjunto, mas um
texto que é criado na relação com outros textos – um ‘intertexto’”31.
Para o autor, as narrativas no playback são então criações negociadas
e contextuais. A história do narrador deve ser respeitada, porém ela não é
só dele. O playback fica na tensão entre a história que o narrador conta e a
transformação ocorrida no contato com os outros elementos (atores,
condutor, plateia etc.)32.
O que se cria no playback é um teatro que precisa de diálogo, respeito
e confiança, porque, como diz Rowe, essa “cria” é coletiva. O teatro playback
vai gerar momentos de frustração, falhas, espanto, ansiedade,
divertimento, constrangimento, partilha, êxtase e outros tantos que não
podem ser controlados na totalidade.

A resposta dos performers no teatro playback é sempre e apenas uma resposta


humana para outra história. A performance pode ser maravilhosa, generosa,
arriscada e inspirada, mas nunca mais do que humana. […] O playback efetivo
afrouxa os “nós” da história, abre para outras possíveis interpretações e revela
os meios pelos quais nós construímos o sentido de nossa experiência33.

Nessa troca, o narrador oferece sua história, e os performers, sua


disponibilidade pessoal e artística para uma cena criada na
intersubjetividade, no intertexto. Sua generosidade se mistura com sua
técnica vocal; suas memórias pessoais, com sua expressão corporal; seus
sentimentos, com a construção de sua personagem. As técnicas teatrais
potencializam esse diálogo.
O teatro playback é uma prática que pode abranger experiências
artísticas, de socialização e de pertencimento porque carrega em seu bojo a
ideia de arte como necessidade humana de encontro e comunhão. “E em
qualquer contexto, como apresentação ou de outra forma, há a
possibilidade daqueles momentos que nos mostram o cumprimento da
promessa do playback: a fusão efêmera e mágica do artístico e do
humano34.”

1 Texto publicado no livro Nossas histórias em cena: um encontro como o teatro


playback (Jundiaí: Paco Editorial, 2014), da mesma autora.
2 Relato feito por mim, como atriz, da apresentação de teatro playback realizada
em 20 de setembro de 2008 pelo grupo Dionisos Teatro.
3 O termo utilizado em traduções anteriores para essa função é “diretor” (cf. Jo
Salas, Playback Theatre: uma nova forma de expressar ação e emoção, São Paulo:
Ágora, 2000). Optou-se, porém, pelo termo “condutor”, pois em inglês utiliza-
se conductor, que aponta para dois aspectos dessa tarefa: o trabalho do maestro
de uma orquestra, que deve conduzir harmonicamente um grupo de artistas,
e também a necessidade de conduzir energia entre todos os participantes.
4 Jonathan Fox, “Introduction”, in: Heinrich Dauber e Jonathan Fox (org.),
Gathering Voices: Essays on Playback Theatre, New Paltz: Tusitala, 1999, p. 10.
5 “It was the early application in places other than theatres, for people other than
conventional theatre audiences that di ferentiated it from other forms of theatre. That
these audiences were situated in specific contexts, e.g., education/school,
rehabilitation/group home, community/neighbourhood, has emerged as a defining
aspect of the Playback Theatre method” (Rea Dennis, Public Performance, Personal
Story: A Study of Playback Theatre, Queensland: Gri fith University, 2004, p. 28,
tradução da autora, como todos os demais trechos de obras estrangeiras).
6 Jo Salas, Playback Theatre: uma nova forma de expressar ação e emoção, São Paulo:
Ágora, 2000, p. 114.
7 Nick Rowe, Playing the Other: Dramatizing Personal Narratives in Playback Theatre,
London/Philadelphia: Jessica Kingsley Publishers, 2007, p. 51.
8 “This will be crucially a fected by the size of the audience and their familiarity with
each other, any interaction with the performers, the view they have of the stage and,
crucially, the integrity of the boundary between the theatre space and the outside”
(Ibidem).
9 Jo Salas, op. cit., p. 118.
10 Ibidem, p. 43.
11 Nick Rowe, op. cit., p. 193.
12 Jo Salas, op. cit., p. 24.
13 Ibidem, p. 89.
14 Ibidem, p. 92.
15 Ibidem, p. 117.
16 Segundo Hoesch, red thread é uma metáfora inspirada na tecelagem, em que
um fio vermelho é usado para que o tecelão siga o padrão. É um dito comum
alemão usado para representar “o elemento que conecta” (Folma Hoesch, “The
Red Thread: Storytelling as a Healing Process”, in: Heinrich Dauber e
Jonathan Fox (org.), Gathering Voices: Essays on Playback Theatre, New Paltz:
Tusitala, 1999, pp. 46-65).
17 “Playback theatre does not comment or judge, there is no explanation or understanding
with words and terms. We just watch. That puts us in a di ferent state of consciousness
very quickly. A slight trance is created. We begin to ‘think’ in stories and pictures, we
watch and add stories to other stories, fit pictures to pictures without our rational
primary process getting started” (Ibidem, p. 54).
18 Jonathan Fox, “A Ritual for Our Time”, in: Heinrich Dauber e Jonathan Fox
(org.), Gathering Voices: Essays on Playback Theatre, New Paltz: Tusitala, 1999, p.
117.
19 “The way the red threads carry through a playback event is so rich that as conductor I
like to let the process be as undirected as possible, worried that if I make too many
suggestions, I will in fact restrict this o ten unconscious form of dialogue” (Ibidem, p.
118).
20 “We have learned that the story elements, in addition to speaking to the community in
a general way, usually relate very specifically to the circumstances of the group”
(Ibidem).
21 Relato da apresentação de teatro playback realizada em 20 de setembro de
2008 pelo Dionisos Teatro, feito por mim, na função de atriz.
22 Jonathan Fox, “A Ritual for Our Time”, op. cit., p. 119.
23 “And as in stories, the value, or meaning, o ten reveals itself only indirectly” (Ibidem).
24 “Dignity and dialogue through theatre”. Disponível em:
<www.playbackcentre.org/>. Acesso em: dez. 2014.
25 Jo Salas, op. cit., p. 36.
26 Rea Dennis, op. cit., p. 24.
27 “a deep action method dealing with intergroup relations and collective ideologies”
(Jonathan Fox apud Rea Dennis, op. cit., p. 24).
28 Jonathan Fox, Acts of Service: Spontaneity, Commitment, Tradition in the
Nonscripted Theatre, New Paltz: Tusitala, 2003, p. 52.
29 “The dialogue a Playback performance or workshop can open up is not problem solving;
it provides an opportunity for people to accept the existing views and experience of the
community” (Mary Good, “Who is your neighbour? Playback Theatre and
Community Development”, 2003. Disponível em:
<http://playbacktheatre.org/wp-content/uploads/2010/04/Good_Who-Is-
%E2%80%A6.pdf>. Acesso em: dez. 2014).
30 Mikhail Bakhtin apud Nick Rowe, op. cit., p. 71.
31 Nick Rowe, op. cit., p. 72 (Instead of a story ‘owned’ by the teller, the playback theatre
story becomes not only a jointly created text but also a text that is created in relation to
other texts – an ‘intertext’.”)
32 Ibidem, p. 73.
33 “The response of the performers in playback theatre is always and only a human
response to another’s story. The performance can be wonderful, generous, risky and
inspired, but it is never more than human. (…) E fective playback loosens the ‘ties’ of the
story, opens up other possible interpretations and reveals the means through which we
make sense of our experience” (Ibidem, p. 39).
34 “And in any context, performance or otherwise, there is the possibility of those moments
that show us the ideal fulfillment of playback’s promise; the ephemeral, magical fusion
of artistry and humanity” (Jo Salas, “What is ‘Good’ Playback Theatre?”, in:
Heinrich Dauber e Jonathan Fox (org.), Gathering Voices: Essays on Playback
Theatre, New Paltz: Tusitala, 1999, p. 34).
A peça radiofônica: vocalidade, escuta e narração
MIRNA SPRITZER

Aquela mulher que rasga a noite/ Com seu canto de espera/ Não canta/
Abre a boca/ E solta os pássaros/ Que lhe povoam a garganta [PAULA TAVARES]

RÁDIO E FICÇÃO

Sempre houve um rádio ligado na minha casa. Quando mocinha,


jamais pude dormir sem ouvir os programas noturnos de rádio. Ainda
hoje, preencho meus silêncios com as vozes do rádio. Não me lembro de
escutar radioteatro ou radionovela. Mas, em outra memória, que é coletiva,
eu me vejo em torno de um antigo aparelho de rádio ouvindo e
imaginando personagens, situações, cenários, tempos e histórias. Como
atriz, torno minhas vozes e palavras que, à frente do microfone, se
transformam em imagens e gestos.
Durante muito tempo o radioteatro ocupou um espaço importante
na programação das rádios brasileiras. Para Fernando Peixoto, “o rádio era
um instrumento mágico que nos transportava para um universo de fuga e
fantasia”1. O radioteatro e a radionovela representavam uma manifestação
acessível e popular. Tendo por base uma concepção realista em que som,
ruídos e vozes ilustravam literalmente ambientes e situações, a
radionovela era facilmente assimilada como sua descendente direta, a
telenovela.
“Senhoras e senhoritas, a rádio Nacional do Rio de Janeiro apresenta Em
busca da felicidade, emocionante novela de Leandro Blanco…”: assim era
iniciada em 1941 a primeira radionovela no Brasil. A partir de então, a rádio
Nacional passou a ser a ambição de atores e radialistas. As estrelas das
radionovelas brilhavam e arrebatavam multidões como as estrelas da
televisão o fazem hoje.
Vários dramaturgos importantes do século XX encontraram no rádio
um veículo rico para a transmissão de suas obras. Samuel Beckett escreveu
peças diretamente para o rádio e acreditava que a radiofonia valorizava
aspectos fundamentais de seus temas, como solidão, inquietação e
intolerância. Para María Antonia Rodríguez Gago, “sua arte é apenas uma
questão de vozes e sons fundamentais. Suas personagens estão obcecadas
por uma voz ou vozes que, vindas da obscuridade, são um luxo contínuo
nas suas mentes. Esta é uma situação que se transfere ao rádio de forma
natural”2.
Bertolt Brecht não só escreveu para o rádio como criou uma teoria
do rádio. Segundo Fernando Peixoto, “a visão de Brecht aponta caminhos
mais ousados: acentua a necessidade de se buscar uma estrutura
expressiva nova, para experimentar uma linguagem que ganhe sua
gramática específica, a partir de seus próprios recursos narrativos”3.
O radiodrama e a peça radiofônica estão presentes nas produções
radiofônicas praticamente desde que o rádio existe. A ficção no rádio, com
diferentes formas de narrativa, ocupa um espaço expressivo desde sempre.
Ainda hoje ela alimenta o imaginário das pessoas e da coletividade
produzindo e construindo saberes e experiências. Como lembra João
Francisco Duarte Júnior, “a ficção, a imaginação daquilo que ainda não é,
mas poderia ser, consiste, pois, em uma das mais eficazes ferramentas de
que dispõe a humanidade para a criação do saber”4. Portanto,
sensibilidade, imaginação, memória e devaneio podem constituir outra
forma de saber. Esse saber também vem da experiência, que, para Larrosa,
é aquela que “se adquire no modo como alguém responde ao que lhe
acontece no decorrer da vida e que vai conformando o que esse alguém é”5.
A pedagogia do rádio dá o direito a cada uma das milhares de
pessoas que compartilham sua escuta de aprender o que lhe cabe em sua
experiência singular, nascida de seu repertório pessoal, que se constitui
tanto daquilo que é único e particular como do que se constrói do
imaginário, da memória coletiva.
O fascínio que emana do rádio é o devaneio, esse sonhar acordado
que nos move para dentro de nós e nos mantém atrelados ao agora. Como
aponta Bachelard: “queremos estudar não o devaneio que faz dormir, mas
o devaneio operante, o devaneio que prepara obras”6. O “devaneio
operante”, portanto, é o aprender e apreender o mundo pela escuta
sensível e a criação de um mundo pessoal a fim de encarar o real. É um
aprender a estar consigo em um exercício de fantasia, de reconhecimento
das palavras, de reencontro com o idioma, com seus significados e com sua
música.

O ATOR RADIOFÔNICO

Ao realizar a experiência radiofônica, o ator-locutor-narrador tem a


possibilidade de ampliar seu repertório e seus recursos. O exercício da
peça radiofônica lhe permite colocar-se em uma situação nova em que terá
de se apoiar na estrutura criativa que o teatro oferece para ousar o
acontecimento da voz.
Exatamente como no espetáculo, a experiência do ator acontece no
presente do exercício. Ao transpor para a voz a ação corporal, ao dizer e ao
procurar incluir na fala o comportamento, a interioridade e o gesto da
personagem, ele compreende que a voz é esse corpo.
Ao mesmo tempo, existe uma relação do ator com a palavra que
antecede o veículo, que não pressupõe necessariamente a cena e nem
mesmo uma personagem. As experiências da fala expressiva permitem
exercitar uma voz-corpo que é constitutiva do ofício do ator. Exatamente
por ter como sua arte o saber sensível dos sentidos e fazê-los significar em
seu corpo-instrumento, o ator possui a vocação para a palavra, para o
dizer, para encontrar na composição das frases a beleza dos sons e dos
andamentos. São experiências como essas que exigem a voz implicada na
produção do dizer e, na mesma medida, dirigida para o outro que escuta.
Um dos fascínios da palavra é que ela diz algo e, também, propõe em
sua forma maneiras de ser dita. Um bom aprendizado para o ator é
escutar-se, confrontar-se com as múltiplas possibilidades dos termos,
aprofundar-se na música que os constituem e descobrir-se voz em cada
palavra. Ele precisa perceber que, ao buscar novas sonoridades, outras
perspectivas se abrem também para sua voz.
Perceber-se como voz não é apenas preparar-se para ser audível e
proferir as falas com boa dicção, mas, principalmente, sensibilizar-se para
o corpo que existe na voz. Há silêncio nela como há silêncio no corpo.
Ensaiar é experimentar, tentar e procurar diversas formas de fazer.
A preparação técnica tem o objetivo de disponibilizar o ator por inteiro
para a criação. Para isso, ele necessita de tempo de imaginação,
improvisação e convivência com os parceiros e, também, precisa trabalhar
a voz como corpo e não como um elemento separado do corpo. O exercício
da peça radiofônica tem uma dimensão pedagógica, pois impossibilita
essa separação e confronta o ator com a necessidade de ser presença por
meio da voz. O dizer radiofônico exercita a voz criadora.
O exercício do rádio prepara os atores para o rádio, mas também
para o teatro e para várias experiências de vocalidade. Na medida em que
aprende a depender da voz para criar todos os elementos do papel, o ator
se educa para a fala criativa, para a respiração expressiva, para o silêncio
que preenche a cena. E assim ele redescobre a escuta e a fala que faz
sentido porque ancorada na fala do parceiro. Desse modo, não há
desperdício na atmosfera na cena: há um corpo que fala e um corpo que
escuta. Ambos respiram e anseiam pelo outro: o parceiro na cena e o
parceiro na plateia. Atores e público, assim, contam juntos uma história,
constroem em parceria a narrativa. Como lembra o poeta Pessoa, “desde
que vivo, narro-me”7.
Stanislavski8 aponta que na vida cotidiana sabemos ouvir, pois
estamos realmente interessados. No palco, fingimos ouvir com atenção.
Da mesma forma, de tanto repetir a fala nos ensaios e nas apresentações,
ela se torna mecânica, sem sentido para quem diz e, portanto, para quem
ouve. Isso acarreta uma contracena também falsa, sem vida. Ao se esmerar
no exercício radiofônico, o ator reaprende a manter viva a fala, sempre no
presente, pois é no dizer que está o foco da ação dramática. O que os atores
dizem e contam, somado à ambientação sonora, determina o andamento
da narrativa.
Jorge Larrosa9 discute as questões e as relações entre leitura e
formação. A leitura é algo que nos forma e transforma, que nos põe em
questão, nos constitui. Já a formação como leitura implica pensá-la como
uma relação de sentido, como se tudo o que nos acontecesse pudesse ser
considerado um texto, algo que põe em alerta nosso sentido de escuta; ou
seja, não é só o texto que importa, mas a relação com o texto. Assim, o
exercício radiofônico visto como formação implica o que o ator é e o que
constitui seu repertório subjetivo de escuta do mundo. Pensar a formação
como peça radiofônica pressupõe crer que a criação artística do ator no
trabalho para o rádio é uma produção de sentido, é fazer-se experiência.
O exercício do dizer radiofônico não prescinde da leitura como
repertório de ficções, de leituras do mundo, de narrativas, de palavras e de
vozes. O ator lê o mundo e cria a partir dele um texto feito de carne, sons,
silêncio, movimento, respiração e sangue. Esse exercício corresponde a um
tempo para apropriar a técnica, para a fantasia como matéria-prima da
criação e para inventar motivos, pausas, histórias, passado e presente de
personagens e situações. Mais uma vez, a experiência radiofônica entra
em cena para que o corpo sonhe em forma de voz.
No rádio, para que haja um acontecimento, é necessário imaginação:
ela cria a personagem, os sons e as vozes para as palavras e preenche o
silêncio com a respiração, com o gesto, com o olhar e com o ouvir.

DIZER E OUVIR

Dizer é reinventar o real, e falar é afirmar a palavra como


acontecimento criativo. Como lembra Larrosa, “quando fazemos coisas
com as palavras, trata-se de como damos sentido ao que somos e ao que
nos acontece, de como colocamos juntas as palavras e as coisas, de como
nomeamos o que vemos ou o que sentimos, e de como vemos ou sentimos
o que nomeamos”10.
A experiência da oralidade é uma vivência corporal e sensível para
quem diz e para quem ouve. Conversar, contar histórias ou ler em voz alta
para os outros constitui um dizer que, para Bajard11, por mais que
mantenha as fronteiras do contar, o ler em voz alta ou a fala teatral, por
exemplo, pode ou não ser uma manifestação oral das palavras escritas.
Dizer inclui o gesto, a melodia das palavras, o olhar envolvente. Há um
dizer no corpo. Um corpo palavra, portanto, um corpo também no ouvir.
A escuta ocupa o espaço. Embora o som atue no tempo, ele se
apropria do espaço na medida em que o momento da escuta é um
momento de familiaridade, um momento que, para Barthes12, é a
referência da casa, do território, é o que demarca os espaços em que
existimos e em que convivemos com as pessoas. Para Humberto Maturana,
“a linguagem é uma maneira de vivermos juntos”13.
Ler em voz alta, falar ao microfone ou contar histórias são
momentos em que a voz adquire o estatuto de um corpo que ocupa o
espaço e se apropria do tempo. Ao ouvinte, cabe a oportunidade de
entregar ao outro a tarefa de conduzi-lo pela viagem da escuta. Todas elas
são experiências que propiciam a imaginação tanto para quem fala como
para quem escuta.
Há oralidade na narrativa radiofônica, há um dizer radiofônico.
Embora vários estudos discutam a oralidade no rádio como já distante da
oralidade primária, ainda assim o foco na voz remete às experiências mais
remotas.
A experiência da ficção radiofônica marca o espaço do rádio
expressivo como um lugar para compartilhar a palavra que está entre o que
fala e o que ouve e que é uma ponte para a imaginação. Dessa forma, ao
nomear um dizer radiofônico, incluo a fala expressiva da radiodramaturgia
no mesmo grupo de outros dizeres, como a contação de histórias, a leitura
em voz alta e a fala teatral, que esperam do ouvinte-espectador uma escuta
expressiva, que busca não apenas uma informação, mas a ficção, a
experiência criativa de ouvir e imaginar.
Entendo a experiência do dizer como algo que inclui o ouvir, que
pressupõe o ouvinte e que propicia uma experiência compartilhada; um
momento em que ambos se tornam sujeitos, porque sua ação é efetiva, e
objetos, pois são suas histórias, suas memórias e seus corpos que as
palavras, os sons, o silêncio e os suspiros traduzem.
O dizer radiofônico marca a presença, o encontro entre o ator e o
ouvinte por meio da voz. É a voz-corpo do ator que o alça à condição de
presença e ousa ser uma performance, um acontecimento no presente da
transmissão. E a escuta do ouvinte, o deixar perpassar-se pela voz que é
ouvida, estabelece sua presença presumida na fala do ator. Ainda que não
visual, a performance radiofônica se institui presente no momento do
acontecimento da voz.
As incontáveis combinações que sons, silêncio, voz e efeitos sonoros
podem produzir fazem com que o ouvinte, ao recombiná-las em sua
experiência, produza uma obra única, única e pessoal como a memória que
se reconstrói na experiência da escuta. Essa memória também é fonte para
o narrador-ator-“ledor”-“dizedor”. “A memória é a mais épica de todas as
faculdades”, como lembra Benjamin14.
A voz de quem fala lutua na onda sonora do dizer e configura-se na
imagem criada pela sensibilidade imaginativa do ouvinte, sensibilidade
esta manifesta no corpo que escuta.
Poderia, ainda, apropriar-me da ideia de Zumthor15, que prefere a
expressão vocalidade em vez de oralidade. Segundo ele, a vocalidade traz em
si uma historicidade da voz e a trajetória de seu uso. A voz traz significados
e palavras e, para além destas, incorpora sons. Na experiência radiofônica,
é a forma de situar a ação e de colocar na voz o texto, a intenção e o
repertório do ator – tornar voz tudo o que é tempo, corpo e espaço.
Desse modo, falar passa a ser a base da personagem e também a
manifestação de sua existência radiofônica. Da mesma forma, o som, o
efeito sonoro, quando trabalhado no exercício de criação das cenas, é o
propulsor da ação sonora e realimenta na audição a personagem e a cena.
Assim, as experiências criativas do dizer e ouvir trazem em si a
certeza de que há um compartilhar da imaginação e da memória que nos
torna mais humanos na nossa humana capacidade da linguagem. Se aqui
me detenho na linguagem verbal, quero incorporá-la, ou seja, lembrar que
não há dizer sem corpo nem ouvir descarnado. Reivindico então para o
ator a ventura e o privilégio de ter no corpo seu ofício criativo. O corpo fala
na contação de histórias, no teatro, na leitura em voz alta e no rádio,
dizendo e ouvindo.

A PALAVRA, O SILÊNCIO E A ESCUTA

Chegar à escuta pela fala, pela voz, pelo rádio. A paixão pelo rádio,
pelo que ele oferece como linguagem, um novo encantamento pela palavra
dita, falada, sussurrada. A voz me levou à escuta. E a escuta me trouxe o
silêncio. O silêncio como princípio, como espaço no qual a palavra atuará.
Como a música para Gismonti:

Na realidade eu acho que a música é a expressão artística mais relacionada


com o silêncio. Porque ela interfere nisso que é tão precioso chamado silêncio.
Ela faz com que ele deixe de existir. E como ela “atrapalha” o silêncio – que é o
fundamento da re lexão, qualquer que seja –, ela tem por obrigação fazer
vibrar certas cordas esticadas ou centros de equilíbrio que cada um de nós
tem, para que a interferência do silêncio se transforme num entusiasmo à
re lexão, e, por consequência, alimente a vida16.

Após desvendar os caminhos da atuação para o rádio, percebi que a


palavra, que desencadeia ações e liga os acontecimentos, me levava mais
longe. No rádio, é pela palavra que a personagem se apresenta, ou pela voz.
É pelo seu timbre que sabemos de sua existência e de sua permanência na
ação.
Ao contracenar com fones de ouvido, o ator se concentra na escuta.
Ele pode saber do outro pela escuta, não necessita do olhar. Os fones dão
ao ator o retorno imediato do seu dizer e potencializam o diálogo com o
companheiro de cena. Os atores atuam com todo o foco na escuta de si e do
outro. É perceber na prática a vivência de ser um e outro ao mesmo tempo,
ator e ouvinte, podendo assim tomar as rédeas de sua atuação no instante
mesmo de sua realização. A contracenação, assim, acontece por escuta. É
um momento claro em que se abandona a necessidade do olhar ou do
movimento em favor do dizer e ouvir. O foco da ação vocal se dá na troca
entre vozes, silêncios e do engajamento corporal na presença da voz. Tal
como lembra Paul Zumthor: “Desta forma, a ação vocal conduz quase
sempre a um afrouxamento das compressões textuais, ela deixa emergir os
traços de um saber selvagem, emanando da faculdade linguageira, se não
da fonia como tal, no calor de uma relação interpessoal”17.
Daí se derivou uma nova inquietação. Percebi que havia muito me
instigava a escuta e sua simbiose com a voz. Temos um repertório de
escuta que nos faz criar sons, vozes e ambientes ao mesmo tempo que nos
faz reconhecer espaços e timbres. É desse repertório que nasce a
composição vocal do ator e é o que sustenta a imaginação do ouvinte. A
escuta no exercício radiofônico torna-se também corpo, uma vez que é o
contraponto da voz. Concretiza-se, assim, a ideia de uma escuta criativa e
ativa, seja na parceria quando se contracena, seja na interlocução com o
ouvinte. Contracenar mostrou-se uma ação de escuta sensível com todos
os sentidos.
Falamos porque escutamos, porque há um espaço que nos precede
como vozes: a voz do outro, o som do mundo, o silêncio improvável. No
silêncio, há palavras não ditas, palavras contidas, por dizer, e é nessa
paisagem sonora que a nossa voz intervém.
Assim, na experiência da cena, da contação de histórias, da leitura
falada e da peça radiofônica, dirigimo-nos a alguém que escuta. A escuta
traz à fala a dimensão do outro, sem o qual não existimos como artistas.
Grotowski, ao se referir ao trabalho desenvolvido no teatro-laboratório, faz
referência ao partner como uma tela sobre a qual nos projetamos: “O partner
é inevitável. Sem o partner, a extensão no espaço não existe”18. É possível
pensar nesse partner como o parceiro de cena ou ainda como o espectador,
parceiro do acontecimento teatral, ou o ouvinte, que fica de ouvido
“colado” ao rádio.
Para tanto, proponho o exercício da palavra focado na existência do
outro que atravessa, que interroga e que intervém. Ultrapassando as
questões da produção do som em nosso corpo, desejo problematizar como
os sons produzidos pelo corpo que fala afetam aqueles que ouvem. Assim,
compreendida a voz-instrumento, deixemos que diga a voz criadora, que
se mistura ao silêncio e à escuta para dar espaço à imaginação.
Na roda da contação de histórias, na roda do teatro de rua, na plateia
do teatro, há o outro que compõe com seu repertório pessoal a melodia
entoada pelas palavras proferidas pelo ator. Portanto, é preciso ouvir esse
espaço para adentrar nele.
A performance da palavra supõe sua existência como onda sonora e
pressente sua trajetória pelo espaço até tocar o corpo que escuta. Assim
prevista, essa palavra destrava a voz. Com o foco no dizer, o texto
desprende-se da questão do significar ou soar e alcança o patamar da
comunicação através da experiência, do acontecimento. Como discorre
Benjamin sobre a arte da narração, “a experiência que passa de pessoa a
pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores”19. Parece possível,
assim, associar narrador, ator e contador na mesma esfera de apropriação
da palavra incorporada, encarnada.
Toda a experiência passa pelos sentidos, mas só se torna experiência
quando damos um sentido para os sentidos, uma significação para os
sentidos; do contrário, são excitações, estímulos.
O sentido da audição não cessa. Os ouvidos não dormem, não
fecham como os olhos, não têm pálpebras. Assim, o silêncio é uma forma
de ruptura, de suspender a continuidade do som e, desse modo, criar ação,
acontecimento, dar sentido ao que ouvimos. Da mesma forma, o silêncio
contínuo necessita da experiência do som para tornar-se pausa. Rudolf
Arnheim diz que “a ação é algo que pertence à essência do som, o que faz
com que o ouvido seja capaz de determinar mais facilmente uma
ocorrência do que uma situação”20. Ou seja, é na interação entre som e
silêncio que se constrói a ação.
O conceito de ação é fundador da cena teatral. Ela pode ser a do
corpo em movimento, a da voz em movimento, a da palavra em
performance. Pode ser a ação da narração. Na medida em que envolve
semântica e imaginário, a palavra se desloca no espaço. Segundo Zumthor:

[…] ela, a palavra, não é uma simples executora da língua, mas carrega sua
verdade própria. A voz poética emerge, portanto, do luxo mais ou menos
indiferenciado dos ruídos e dos discursos. Ela faz o acontecimento. […] No
momento em que o diz, a voz transmuta o simbólico produzido pela
linguagem, ela tende a despojá-lo do que ele comporta de arbitrário; ela o
motiva com a presença deste corpo de onde emana. À extensão prosódica, à
temporalidade da linguagem, a voz impõe assim sua espessura e a
verticalidade de seu espaço21.

Como isso repercute nas experiências com a palavra falada? De que


forma esse jogo é apropriado para a experiência da cena? Como se
escrevem essas palavras? As perguntas movem e impulsionam para algum
momento, um não distante, em que a palavra falada, gemida, grunhida
será ela própria performática, corpo e ação. Ou, como na epígrafe que
inicia este artigo, será como pássaro que voa da garganta.
1 Fernando Peixoto, “Descobrindo o que já estava descoberto”, in: George
Bernard Sperber, Introdução à peça radiofônica, São Paulo: Pedagógica e
Universitária, 1980, pp. 5-10.
2 María Antonia Rodríguez Gago, “Arte y experimentación en el teatro
radiofónico de Samuel Beckett”, in: Escenarios de la radio, Madrid: Ministerio de
La Cultura, 1988, p. 29 (tradução da autora).
3 Fernando Peixoto, op. cit., p. 7.
4 João Francisco Duarte Júnior, O sentido dos sentidos: a educação do sensível,
Curitiba: Criar, 2001, p. 135.
5 Jorge Larrosa, La experiencia de la lectura: estudios sobre literatura e formación,
Barcelona: Laertes, 1996, p. 23 (tradução da autora).
6 Gaston Bachelard, A poética do devaneio, São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 175.
7 Fernando Pessoa, Livro do desassossego, São Paulo: Companhia das Letras, 1999,
p. 501.
8 Constantin Stanislavski, A construção da personagem, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1989, p. 135.
9 Jorge Larrosa, op. cit.
10 Jorge Larrosa, Entre las lenguas: lenguaje y educación después de Babel, Barcelona:
Laertes, 2003, p. 167 (tradução da autora).
11 Elie Bajard, Ler e dizer, São Paulo: Cortez, 1994.
12 Roland Barthes, O óbvio e o obtuso, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
13 Humberto Maturana, “Transdisciplinaridade e cognição”, in: Basarab
Nicolescu et al., Educação e transdisciplinaridade, Brasília: Unesco, 2000, p. 97.
14 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 21.
15 Paul Zumthor, A letra e a voz, São Paulo: Companhia da Letras, 1993, p. 21.
16 Egberto Gismonti, “Gismonti”, in: Andréa Bomfim Perdigão, Sobre o silêncio,
São José dos Campos: Pulso, 2005, p. 177.
17 Paul Zumthor, Escritura e nomadismo, São Paulo: Ateliê, 2005, p. 145.
18 Jerzy Grotowski, “A voz”, in: Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli, O teatro
laboratório de Jerzy Grotowski, São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 160.
19 Walter Benjamin, op. cit., p. 198.
20 Rudolf Arnheim, Estética radiofónica, Barcelona: Gustavo Gilli, 1980, p. 95.
21 Paul Zumthor, Escritura e nomadismo, op. cit., p. 145.
Recontar filmes (e outros cenários do encontro
narrativo)
GILKA GIRARDELLO

As histórias boas de contar não vêm somente dos livros: elas vêm também
da vida que a gente vive, das conversas que ouvimos pela rua, dos filmes a
que assistimos e do modo como tudo isso se mistura no caldeirão da
sensibilidade de cada um. Muito do que faz alguém narrar bem é a atenção
às histórias potenciais que pipocam, lutuam e se espreguiçam ao redor,
além da vontade de compartilhar os pequenos e grandes prazeres e as
pequenas e grandes emoções que aquilo provoca. É o desejo de ser um elo
na corrente de sentido e mistério que nos liga uns aos outros através da
distância e do tempo.
O tema que escolhi para esta re lexão é o movimento das histórias
entre diferentes linguagens e semióticas e, especialmente, a possibilidade
de recontar oralmente histórias que vemos em filmes. Muito já se estudou
e escreveu sobre as adaptações dos contos orais para a literatura e dos
livros para o cinema, mas o reconto oral de filmes é um tema menos
explorado, apesar de ser constante nesse início de século multimidiático.
Para entrar aos poucos nesse foco, sobrevoarei a paisagem mais ampla na
qual se encontram também assuntos como o registro, o reconto e a
adaptação de narrativas. Se houver aqui alguma perspectiva singular, ela
será a de buscar dirigir-me a outras pessoas que, como eu, gostam de
contar histórias.
No horizonte desta conversa, paira a imagem do legendário mar de
fios de histórias da novela magistral de Salman Rushdie1. Esse mar
compunha-se de milhares e milhares de fios de histórias. Cada um deles
continha uma narrativa e se entrelaçava com outros em uma complexa
“tapeçaria líquida”, um organismo vivo: “E como as histórias ficavam
guardadas ali em forma luida, elas conservavam a capacidade de mudar,
de se transformar em novas visões de si mesmas, de se unirem a novas
histórias”, descreve Rushdie.
O mar era mantido vivo por milhares de peixes cheios de bocas que
engoliam a água do mar e em cujas entranhas o fio de uma narrativa se
fundia ao de outra, fazendo com que as histórias se recriassem em eterna
alquimia. Como esses peixes milbocas, todos nós, que pertencemos à espécie
homo narrans, precisamos de histórias e usamos as que pudermos
encontrar – seja na voz dos trovadores, nos livros, jornais e filmes, seja no
sentido que pudermos dar ao curso de nossa vida. A partir dessa imagem,
podemos dizer que o dinamismo da vida narrativa da cultura depende da
multiplicidade das histórias. Quanto mais narrativas estiverem vivas – ou
seja, sendo contadas –, maiores as possibilidades de recriação e a
vitalidade narrativa da cultura.
Comecemos, então, pensando na emoção criadora presente na
escuta que busca tecer uma escrita a partir de uma história ouvida. Cecília
Meireles disse que a emoção de ouvir equivale à de ler, e que a emoção de
contar uma história oralmente equivale à de escrever2. Esse jogo de
espelhos é percebido desse modo por Ricardo Azevedo, um dos mais
talentosos recontadores de histórias tradicionais brasileiras: “Eu, quando
escrevo, sei que estou escrevendo. Mas tento escrever como quem fala. E
espero que o leitor se coloque na posição de quem ouve”3. Imaginemos, por
exemplo, há duzentos anos, a excitação com que os irmãos Jacob e
Wilhelm Grimm ouviam a voz das camponesas que lhes contavam as
histórias de Chapeuzinho Vermelho, da Gata Borralheira e do
Rumpelstiltskin. Aquela emoção estava certamente unida à suposição que
eles faziam sobre quantos se emocionariam com aquelas pérolas da
tradição oral das lorestas alemãs do século XVIII que os dois anotavam.
“Esforçamo-nos em interpretar esses contos de modo mais puro possível
[…] nenhuma circunstância foi acrescentada, melhorada ou mudada”,
escrevem ambos em 1810, no “Prefácio” à publicação original de sua
coletânea de contos de fadas4.
A escuta atenta dos dois folcloristas tinha a ver com o desejo de
passar adiante os preciosos contos que viriam a ser conhecidos como os
“Contos de Grimm”. Assim como na voz de quem conta uma história
reverberam os ecos de muitas outras vozes – como ensina Bakhtin5 –, no
ouvido de quem escuta uma história antevendo o prazer de contá-la mais
tarde atuam os ecos de muitas outras escutas. O ouvido humano não ouve
sozinho.
Mais de um século depois, em um impulso semelhante ao dos irmãos
Grimm, o artista catarinense Franklin Cascaes6 passou anos ouvindo,
recontando e recriando em textos, desenhos e esculturas a riqueza do
imaginário tradicional dos imigrantes açorianos radicados no entorno da
Ilha de Santa Catarina no século XVIII. Apontando para um armário cheio
de anotações, conta-se que ele disse certa vez: “Isso aí ainda vai render
muito filme, teatro, livro!”. E ele estava certo: o tesouro guardado nos baús
de Cascaes já começou a ser explorado por projetos culturais em diferentes
linguagens neste começo do século XXI. Hoje, os pesquisadores das
narrativas orais as registram com a ajuda de gravadores de áudio e vídeo,
mas o interesse com que as escutam ainda é o motor fundamental do
entusiasmo de quem narra. Ele é parte do “jogo de contar”, a forma
dialógica pela qual aprendemos, desde a infância, a organizar
narrativamente nossas experiências7.
Sobre o que move o recontar, Ricardo Azevedo explica que o impulso
em seu trabalho vem do desejo de valorizar a cultura oral, “essa cultura
vivíssima que está fora da escola, sendo desprezada; e não para guardá-la
em museu, e sim para reintegrá-la à nossa vida”8. Ele explica que nunca fez
pesquisa de campo para encontrar os contos tradicionais em que se baseia,
mas fez um trabalho cuidadoso de pesquisa bibliográfica: “O que eu faço é
pegar vários contos de folcloristas, pego várias versões, e a partir daí faço
uma versão. Sou como um contador de histórias – e nem sempre os
contadores de histórias compreendem bem a história que estão contando,
porque se baseiam em uma única versão”9.
Um empenho semelhante por compartilhar moveu o trabalho de
Italo Calvino, que, ao longo de dois anos, no início de sua carreira como
escritor, mergulhou em livros antigos de coleções de contos tradicionais
italianos a fim de recontá-los. Ele descreve assim o entusiasmo que sentia
naquela tarefa: “Quanto mais afundava em minha imersão, mais diminuía
o distanciamento controlado com que mergulhara, e me sentia admirado e
feliz com a viagem, e o frenesi catalogatório – maníaco e solitário – era
trocado pelo desejo de comunicar aos outros as visões insuspeitas que se
abriam a meu olhar”10. Em uma de suas célebres palestras-testamento, ele
conta que a maior in luência sobre seu mundo imaginário foram as
histórias em quadrinhos pelas quais era apaixonado entre os 3 e os 6 anos
de idade. Mesmo depois que aprendeu a ler, não ligava muito para o texto,
preferindo “fantasiar em cima das figuras, imaginando a continuação”11. A
leitura das figurinhas sem palavras, diz ele, foi uma “escola de fabulação”12.
Uma percepção semelhante é a de outro romancista a cuja
inspiração me referi há pouco. Salman Rushdie lembra que sua grande
in luência literária – o que fez dele um escritor – foi o filme O mágico de Oz,
a que assistiu aos 10 anos13. Isso porque, sugere ele, o filme possui uma
intensa “verdade imaginativa”. Ele comenta a qualidade das imagens do
filme, tentando descobrir o que é que torna possível a viagem imaginativa
para o país das histórias, para o mundo de Oz14. O poder que o filme teve
de fazer um menino decidir que queria ser escritor se liga a um laço
primordial e prazeroso amarrando imaginação e narrativa, cujas
dimensões teóricas temos explorado em outros trabalhos.
O que Calvino chama de “processo imaginativo da imagem para a
palavra” é o que ele vivia na brincadeira de fantasiar em cima das
ilustrações dos quadrinhos, inventando histórias a partir delas, ou na visão
que antecede a escritura do conto. É também o que aconteceu a Rushdie
quando viu O mágico de Oz, um texto cinematográfico que o inspirou a
desfiar escrita. Esse mútuo estímulo entre narrativa verbal e imagética
pode ajudar-nos a re letir sobre os fenômenos contemporâneos ligados à
criança na cultura. Que formas de educar, por exemplo, podem tirar o
maior partido desse rico e múltiplo movimento da imaginação: da palavra
à imagem e de volta à palavra? Do ponto de vista da leitura e da narração de
histórias, como podemos aproveitar a onipresença da imagem midiática
na vida das crianças e dos jovens para enriquecer suas experiências
estéticas verbais?
O cinema é hoje um narrador privilegiado, “cumprindo o papel de
preservar uma trama tal qual os narradores orais faziam com os contos da
tradição”, como apontam Diana e Mário Corso15. O desejo de contar
histórias por meio do cinema, na certeza de que há milhares de pessoas
querendo assistir a elas, movimenta impérios econômicos e simbólicos.
Esse desejo continua levando multidões às salas múltiplas dos shoppings e
às telas privadas dos computadores, tablets e smartphones, convertidos
todos eles em espaços de acesso a histórias filmadas para fruição imediata
em qualquer hora e lugar. Se o desejo de contar histórias pulsa forte ao
lado da produção fílmica e é tema de incontáveis estudos, o que podemos
dizer do desejo de recontar oralmente as histórias a que assistimos em
filmes?
Há quase vinte anos, quando iniciei minha pesquisa de doutorado,
era predominante entre os educadores uma atitude defensiva com relação
à televisão, ao cinema e às mídias audiovisuais, acusados de destruir
inapelavelmente a imaginação das crianças. Sem entrar aqui nos
meandros desse debate, que é certamente complexo, retomo apenas uma
das hipóteses que explorei na época, a saber: a de que, se as crianças
tivessem mais oportunidades de recontar histórias baseadas no que
tinham visto na televisão e no cinema, elas poderiam exercitar a
imaginação de um modo autoral. A imaginação narrativa da criança estava
ali sendo entendida como uma força potencial de ressignificação e
apropriação cultural, à qual deveria ser garantido espaço na cultura e na
escola. A pesquisa de campo transcorreu ao longo de tardes memoráveis
em que, dentro de canoas à beira da praia de uma vila de pescadores, as
crianças do lugar contavam para mim e seus amigos as histórias que bem
entendessem, desde contos da tradição oral até filmes e cenas de
telenovelas. Aqui estão alguns exemplos dos recontos de trechos de filmes
inseridos espontaneamente na conversa das crianças, que tinham entre 10
e 11 anos:

DANIEL – O melhor lutador era o Bruce Lee. Vinham dez em cima dele, ele ‘vuuuuuu’!
GASTÃO – Foi legal um dia que passou o filme dele, até que ele tava fazendo ginástica.
Daí chegou uns cara, não sei se por trás ou pela frente… daí ele tava fazendo
ginástica, daí ele viu assim com a mente dele, daí quando eles foram pegar ele, ele
virou, bateu assim por trás, daí ele chegou assim, tinha um pau assim embaixo, aí ele
pegou e deu cacetada.
NELSON – A história da Pequena Sereia! Tá, vou contar. Era uma vez uma pequena
sereia. Ela era filha do rei sereia. Aí uma vez ela se meteu numa encrenca. Foi láááá
embaixo, num negócio – eu vi na televisão – aí ela ficou presa, aí o rei foi lá. Aí chegou
lá, pegou o cetro e deu um tiro com o cetro. Aí ele foi, subiu, subiu – aquilo lá sugava
água, né. Aí ele foi, foi, foi. Aí depois saíram. Aí daqui a pouco encontraram um monte
de tubarão. Aí eles se entocaram. Aí os tubarão não acharam eles, que tavam
correndo. Aí o rei deu com o cetro e os tubarão saíram. Aí eles foram pra casa. Aí
deu16.

Contar filmes é um gênero conversacional estabelecido quase


sempre encarado com leveza, como uma forma menor e sem maiores
preocupações estéticas. É o caso dos relatos anteriores, pinçados ao acaso
entre centenas de narrativas entremeadas a conversas informais das
crianças. Outro exemplo poderia ser o caso de alguém em uma mesa de bar
contando aos amigos uma cena de ação que lembra ter visto em filmes
como os das séries Indiana Jones e Batman. Ou o caso dos bate-papos
casuais em que alguém pergunta: “E como era a história do filme?”. Os
filmes são uma fonte corriqueira de conversas familiares, como quando
pais ou irmãos mais velhos contam às crianças o filme que viram na noite
anterior, saltando por cima das passagens chatas ou impróprias para
menores. Cada um de nós certamente tem uma coleção de lembranças
como essas.
Às vezes, porém, a narração de filmes sobe um degrau em direção à
plenitude do encontro humano ao receber um significado especial, afetivo
ou estético. Imaginemos, por exemplo, uma situação: uma mulher de
meia-idade chega de ônibus a uma cidade para visitar o pai no hospital,
sabendo que ele está doente, em fase terminal. Ela não tem forças para
abrir uma caixa de Pandora dos possíveis temas importantes que teria
para abordar em uma derradeira conversa com ele, nem coragem de falar
explicitamente do amor que por ele sente, pois sabe que ambos ficariam
intimidados. Ela então se lembra que dias antes vira um filme que ele
também teria gostado de ver. O pai, que sempre tivera necessidade de
histórias e devorara livros de mistério e ficção científica, já não consegue
mais acompanhar as imagens turvas da pequena televisão no quarto do
hospital nem dar sentido às novelas e aos filmes, não só porque a doença e
os remédios o deixam confuso como também porque as narrativas são
truncadas por comerciais e vinhetas. A filha tem uma ideia: “Pai, vou
contar agora a história de um filme ótimo que vi esses dias!”. E ela conta a
história do filme – que talvez possa ser o engenhoso Herói por acidente17, de
Stephen Frears, em que o personagem de Dustin Ho fman resgata
passageiros da queda de um avião, mas o personagem de Andy García
acaba levando os louros pelo resgate. A mulher narra dando tudo de si,
fazendo vozes, imitando as personagens, encadeando com pausas e ritmos
os diferentes afetos e graças do filme, buscando sintonizá-los na
frequência do pai. São as últimas e inesquecíveis emoções e risadas que
aquele pai e aquela filha viverão juntos.
Poderíamos ainda recorrer ao lindo romance de Manuel Puig, O beijo
da mulher-aranha18, em que um prisioneiro narra filmes noir dos anos 1940
ao colega de cela durante a ditadura argentina, e seu amor assim
manifesto degela os preconceitos e a altiva solidão em que o outro se
instalara. Ou poderíamos, ainda, assistir ao curta-metragem It’s My Turn19,
uma preciosidade de produção turco-germânica em que uma turma de
meninos da periferia de Istambul junta trocados para que um deles possa
ir ao cinema. O menino que é sorteado vai, pulando de alegria, enquanto
os amigos aguardam seu retorno jogando bola. Ao voltar, o menino, em pé
e valendo-se de gestos expressivos, conta o filme para os amigos que lhe
assistem da arquibancada. A cena se repete várias vezes no decorrer da
trama, em um retrato comovente do amor das crianças pelas histórias e do
valor da recriação de filmes por meio da oralidade cênica em seu aspecto
mais generoso.
Outra linda história possui tema semelhante: o romance A contadora
de filmes, do chileno Hernán Rivera Letelier20. A protagonista, uma menina
pobre que vive no deserto do Atacama, é incumbida pela família de assistir
aos filmes no cinema do vilarejo (“do tipo que fosse: de caubóis, de terror,
de guerra, de marcianos, de amor”21) para depois recontá-los ao pai
inválido e aos irmãos. A pequena narradora vale-se de toda a sua arte para
contar os filmes, e sua plateia cresce, chegando a abarcar toda a gente do
lugar. A natureza artística do trabalho da menina é percebida por ela
mesma, que também é a narradora do livro:

Foi então que alguma coisa se apoderou de mim. Enquanto eu contava o filme
– gesticulando, dando braçadas, mudando a voz –, ia como que me
desdobrando, transformando, convertendo-me em cada um dos personagens.
Naquela tarde fui Ben-Hur, o jovenzinho. Fui Massala, o malvado do filme. Fui
as duas mulheres leprosas que Jesus curou. Fui o mesmíssimo Jesus. Eu não
estava contando o filme, eu estava atuando no filme. Mais ainda: eu estava
vivendo o filme22.

Também no caso da menina contadora de filmes do romance de


Rivera Letelier, o que a move em direção à plateia é o desejo de partilha
estética, o prazer que sente ao levar ao público as emoções que narra. E a
vontade de contar cada vez melhor os filmes faz com que ela assista a eles
com esmerada atenção:

No cinema comecei a me deter em detalhes que a maioria dos espectadores


passava por alto […]: a forma acanalhada de a loura amante do mafioso pintar
os lábios, um tique quase despercebido do pistoleiro nos instantes que
antecediam o sacar do revólver, a forma em que os soldados acendiam o
cigarro nas trincheiras para que o inimigo não visse o fulgor do fósforo23.

Não é por acaso que busco referências na literatura. Meu interesse


aqui é falar do estatuto artístico da narração oral de filmes, investi-lo das
mesmas qualidades estéticas que reconhecemos nas demais formas
performáticas de narração. Todos aqueles que promovem o contar
histórias na educação de crianças o fazem por saber que é uma forma
única de encontro imaginativo e de partilha cultural, com inumeráveis
consequências para a constituição subjetiva e a aventura de linguagem
tanto de quem narra como de quem ouve.
A prática de contar filmes surge do desejo de compartilhar
experiências que nos tocaram, como a literatura e as artes em amplo
sentido. Ela oferece ainda algumas singularidades, como um grande
repertório potencial de belas histórias próximas das sensibilidades
contemporâneas e a possibilidade de trazer para perto das crianças e dos
jovens um bom número de enredos concebidos em outros contextos, talvez
de difícil acesso a eles. Essa prática ainda permite o exercício criterioso da
escolha de que filme contar e, considerando as marcas da indústria
cultural que muitos deles trazem, traduzindo-os criticamente quando for
preciso, a fim de sintonizá-los à frequência de nossos projetos e à
sensibilidade de nossos ouvintes.
O ato de contar histórias de filmes é uma forma de mídia-educação
no sentido de evocar uma leitura de filmes atenta a pormenores e de
apostar nos diálogos e trânsitos entre as linguagens contemporâneas, as
artes, as mídias e as formas artísticas. É um exercício de mediação cultural
no sentido que Jesús Martín-Barbero dá ao conceito, ou seja, o de
apropriação e recriação dos conteúdos das mídias por meio da
participação criadora no âmbito da recepção24. Contar filmes oralmente é
uma arte, uma técnica, uma sensibilidade e, sobretudo, um desejo de
partilha estética que muito tem a oferecer a uma pedagogia da
imaginação.

1 Salman Rushdie, Haroun e o mar de histórias, São Paulo: Pauliceia, 1991, p. 62.
2 Cecília Meireles, Problemas da literatura infantil, São Paulo: Summus, 1979, p. 42.
3 Gilka Girardello, “Uma entrevista com Ricardo Azevedo ou de como um
escritor embrenha-se no discurso popular e colhe mudas de ‘pés de
maravilha’”, Signo, Santa Cruz do Sul: 2014, v. 39, n. 66, p. 44. Disponível em:
<http://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/4927/3456>. Acesso
em: set. 2014.
4 Jacob Grimm e Wilhelm Grimm, Contos maravilhosos e domésticos, t. 1, São
Paulo: Cosac Naify, 2012, p. 32.
5 Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
294.
6 Cf. Fundação Franklin Cascaes. Disponível em:
<www.pmf.sc.gov.br/entidades/franklincascaes/>. Acesso em: set. 2014.
7 Cf. Maria Cecília Perroni, Desenvolvimento do discurso narrativo, São Paulo:
Martins Fontes, 1992; Roxane Rojo, Falando ao pé da letra: a constituição da
narrativa e do letramento, São Paulo: Parábola, 2010.
8 Gilka Girardello, op. cit.
9 Ibidem.
10 Italo Calvino, Fábulas italianas: coletadas na tradição popular durante os últimos
cem anos e transcritas a partir de diferentes dialetos, São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, p. 15 (grifos da autora).
11 Italo Calvino, Seis propostas para o próximo milênio, São Paulo: Companhia das
Letras, 1990, p. 109.
12 Ibidem.
13 Salman Rushdie, The Wizard of Oz, London: British Film Institute, 1992.
14 Ibidem.
15 Mário Corso e Diana Corso, Fadas no divã: psicanálise nas histórias infantis, Porto
Alegre: Artmed, 2006, p. 244.
16 Gilka Girardello, A televisão e a imaginação infantil: histórias da Costa da Lagoa,
349f., tese (doutorado em ciências da comunicação) – Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1998, pp. 140 e 180.
17 Herói por acidente. Direção: Stephen Frears. Estados Unidos: 1992.
18 O beijo da mulher-aranha. Direção: Hector Babenco. Brasil/Estados Unidos:
1985. O filme é uma adaptação do romance de Manuel Puig, O beijo da mulher-
aranha (Rio de Janeiro: Rocco, 1986), publicado originalmente em 1976.
19 It’s My Turn (Bende Sira). Direção: Ismet Ergün. Turquia/Alemanha: 2007.
20 Hernán Rivera Letelier, A contadora de filmes, São Paulo: Cosac Naify, 2012.
21 Ibidem, p. 7.
22 Ibidem, pp. 31-2.
23 Ibidem, p. 36.
24 Jesús Martín-Barbero, Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia,
Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
Role-Playing Game (RPG):
o que é isso que me faz desejar criar e aprender?1
CARLOS KLIMICK

ELIANE BETTOCCHI

ERA UMA VEZ

Era uma vez uma aluna que, assim como muitos outros alunos, se
sentia sem luz quando ia à escola. Isso era estranho, pois ela gostava muito
de aprender, descobrir e inventar, tanto que, em vez de uma festa de 15
anos, preferiu ganhar uma bicicleta e o livro ilustrado Cosmos, de Carl
Sagan, o qual lia e relia sem cansar. Naquele tempo, não havia internet, e
ela economizava sua mesada para comprar revistas sobre música, artes
visuais, cinema e ciências, muitas em inglês e vendidas nas bancas de
jornal do centro da cidade. Para chegar lá, ela tinha de pegar dois ônibus
muito cheios e demorados. Mas por que tanto esforço se a escola era do
lado de casa?
Por mais que não gostasse do que e do como da escola, a aluna passou
no vestibular. Custou a se decidir sobre uma carreira – na escola, não
explicaram direito para que se estudavam certos assuntos, e outros, não – e,
finalmente, apesar de adorar desenhar e contar histórias com imagens,
acabou optando pelo curso de biologia, pois seus pais se preocuparam com
a hipótese de ela se tornar artista e não conseguir um emprego.
Na universidade, ela encontrou o mesmo como da escola: aulas com
cara de palestra, desconectadas, e para as quais muitas vezes se viu forçada
a decorar conteúdos. A biblioteca era muito maior que a da escola, mas não
tinha quase nada interessante, só muita poeira e mofo. Muitos colegas iam
para lá dormir, afinal, era silencioso. Pelo menos agora ela tinha uma bolsa
de iniciação científica para gastar em revistas e livros que não eram usados
no curso. Entretanto, na universidade, a aluna encontrou algo que
mudaria sua vida para sempre: o RPG.
Era outra vez um aluno que adorava estudar e, exceto acordar cedo,
gostava de ir à escola. História, geografia e literatura eram suas paixões,
assim como física. Mas, curiosamente, não tinha um bom desempenho em
matemática. Por quê? Porque era muito claro para ele o que as fórmulas
significavam na física: o movimento de um corpo no espaço, o
aquecimento de um material, a refração na luz etc. Já na matemática, tudo
era muito nebuloso, e ele não entendia bem o porquê daquelas fórmulas e
muito menos como aplicá-las em sua vida. Como não se apaixonou pela
matemática nem entendia muito bem por que era importante aprendê-la,
não se empenhava. E, na química orgânica, qual não foi sua surpresa
quando descobriu que o gás metano que ele conhecia era o mesmo gás
metano da biologia. Então os conhecimentos não são estanques?
Fascinante!
Apesar de amar histórias, foi fazer faculdade de administração em
vez de letras, história ou cinema. Por quê? Porque o pai tinha um negócio e
precisava de um herdeiro. Essa história teve um final triste com o fim do
negócio, e esse final triste abriu uma porta para uma história feliz: depois
da faculdade, em um dia com os amigos, ele conheceu o RPG.
Essas poderiam ser histórias que fariam parte da descrição de duas
personagens criadas, respectivamente, por uma jogadora e um jogador
para iniciar uma campanha de Role-Playing Game (RPG) ambientada em um
cenário contemporâneo. Porém, elas são, na verdade, as descrições de uma
jogadora e de um jogador que se preparavam para iniciar uma campanha
de aprendizagem que culminaria em um método poético-didático
utilizado atualmente em suas produções artísticas e práticas pedagógicas.
O RPG, aproximadamente traduzido como “jogo de interpretação de
papéis”, é uma forma de jogo narrativo surgido nos Estados Unidos, em
1974, a partir dos jogos de guerra que simulavam batalhas em tabuleiros. O
primeiro e mais popular cenário usado é a chamada “fantasia medieval”,
inspirada na obra O Senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien. Em sua fase atual,
há uma grande diversidade de cenários (fantasia, ficção científica, terror,
histórico etc.), que se aproximam dos cenários das narrativas ditas de ação
e aventura do cinema, dos quadrinhos, das animações e dos videogames.
Nos suportes, encontra-se parcialmente descrito um cenário, no qual se
passarão as histórias vividas pelas personagens criadas pelos jogadores e
pelo(a) mestre ou narrador(a): bandeirantes e índios em um cenário de
Brasil colonial; cavaleiros em um cenário de Europa medieval etc. A
história começa a ser contada pelo mestre, mas os jogadores são livres para
decidir o que suas personagens falam e fazem na história.
Assim, os rumos da história são frequentemente alterados pelas
ações das personagens, já que a história na verdade é contada em conjunto
pelo narrador e pelos jogadores. É papel do narrador preparar o enredo,
representar as demais personagens e coordenar as ações durante a prática
de RPG. Narrador e jogadores representam as ações de suas personagens
descrevendo-as, e enunciam suas falas de modo direto ou indireto.
Quando há possibilidade de falha ou sucesso parcial, as dúvidas sobre os
resultados das ações das personagens dos jogadores são resolvidas pelo
sistema de regras, daí o RPG ser considerado um jogo:

jogo (lat. jocus: brincadeira) 1. Em seu sentido geral, o jogo é uma atividade
física ou mental que, não possuindo um objetivo imediatamente útil ou
definido, encontra sua razão de ser no prazer mesmo que proporciona. Essa
atividade, começando na criança ou no pequeno animal como gasto de
energia, tendo valor de treinamento ou de aprendizagem, muda de natureza
com o desenvolvimento do subjetivo humano: jogos de imitação, nos quais a
criança projeta seus desejos (bonecas etc.); jogos com regras ou socializados,
nos quais o prazer se vincula ao respeito às regras, às dificuldades de vencer
uma competição2.

O RPG É UM JOGO?

Ao expor suas dificuldades de traduzir o substantivo francês jeu no


texto de Aula, de Roland Barthes, Leyla Perrone-Moisés3 esclarece o
próprio conceito de “jogo” que, na teoria e na prática barthesianas,
consiste em uma atividade ao mesmo tempo sem finalidade senão o
próprio jogo em si e em uma tática de crítica às cristalizações da
linguagem, característica que aproxima esse jogo, então, do teatro, do faz
de conta. O termo “jogo”, no contexto do RPG, não se refere à disputa, mas à
interação, ao próprio ato de representar uma personagem. Os
participantes de uma sessão de RPG, narrador e “jogadores”, cooperam
entre si em vez de competir, sendo este um dos principais motivos de o
termo “jogo” ser questionado por profissionais de RPG em relação à sua
prática. Lembremos que, assim como jeu, o verbo to play tem, entre seus
significados, jogar, interpretar e brincar, permitindo um “jogo de sentido”
de difícil tradução para o português. Podemos então entender o RPG como
um jogo de construção de narrativas, tomando narrativa no sentido
proposto por Paul Ricoeur4 em sua análise da Poética de Aristóteles: a
narrativa é “o que” da atividade mimética, da imitação criativa da ação.
As histórias acontecem conforme os participantes jogam, interagem,
criam. Desse modo, é primordial que essa dinâmica seja fundamentada no
prazer e na diversão que um jogo sempre deve proporcionar,
independentemente de sua finalidade, pois, como define Johan Huizinga,
“o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos
e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da ‘vida cotidiana’”5.
Nesse sentido, destacamos o potencial poético e didático residente
na diversão de superar desafios que o RPG pode proporcionar. A construção
coletiva de histórias nos RPGs demanda a cooperação e não a competição
entre os jogadores, pois todos colaboram para superar os desafios da
história propostos pelo narrador. Este tem como papel movimentar e
ajustar a trama, garantindo que os objetivos da atividade sejam
alcançados. Além disso, o RPG é calcado no discurso oral, no diálogo e na
troca de ideias, desenvolvendo habilidades de comunicação naturalmente;
ser uma narrativa coletiva e socializante faz do RPG um jogo interativo e
aberto, em que um relato – uma aventura – não produz um único texto,
mas vários, abrindo espaço para a criatividade dos jogadores, que podem
contribuir com textos de vários tipos, imagens, diários de personagens
etc., e realizar sessões individuais com os mestres de jogo.
Podemos dizer que uma história construída por meio da dinâmica
lúdica do RPG é, portanto, uma obra aberta, em eterno processo, que só
existe se houver interatividade, aqui entendida como um tipo de interação
em que é solicitada uma ação por parte dos sujeitos baseada na autonomia,
na criatividade e na imprevisibilidade6, resultando em cocriação e
coautoria.

O RPG É ENTÃO UM JOGO INTERATIVO?

A relação entre interatividade e narrativa pode ser entendida


fazendo-se uma analogia com os três níveis de abertura da obra de arte
propostos por Júlio Plaza em seu artigo “Arte e interatividade: autor-obra-
recepção”7. O primeiro nível de abertura da obra é aquele que permite
diversas interpretações por parte do leitor ou receptor da narrativa. Por
exemplo, no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, a personagem
Capitu traiu ou não o seu marido Bentinho? A decisão fica por conta do
leitor. Por vezes, histórias são explicitamente trabalhadas nesse sentido
pelos autores, que propõem assim um jogo narrativo a seus leitores.
Para Plaza, no segundo nível de abertura, o público pode fazer
intervenções na obra, mas sem alterar suas características estruturais, o
que ele exemplifica com as esculturas de Lygia Clark e os Parangolés de
Hélio Oiticica. Nas histórias interativas, esse conceito pode ser
exemplificado nas aventuras solo ou nos livros-jogo, nos quais o leitor
pode escolher dentre alternativas predefinidas pelo autor e propostas para
a trama. Conforme lê a história, o leitor-jogador simultaneamente a joga,
escolhendo as opções para o seu desenrolar, porém sem poder criar essas
opções.
No terceiro nível de abertura proposto por Plaza, o receptor pode
fazer alterações estruturais na obra, criando opções e alterando o enredo a
seu critério. Um bom exemplo são os lash-mobs em que artistas convocam
pelas redes sociais “simples mortais” para inventarem e executarem suas
ações em locais públicos. Plaza identifica esse nível de abertura
principalmente para a mídia digital: “Nas artes da interatividade,
portanto, o destinatário potencial torna-se coautor, e as obras tornam-se
um campo aberto a múltiplas possibilidades e suscetíveis de
desenvolvimentos imprevistos em uma coprodução de sentidos”8. Nas
histórias interativas, essa abertura pode ser identificada na prática das
sessões de RPG, em que a ambientação trazida no suporte é retrabalhada
pelo mestre e jogadores em histórias criadas coletivamente em um jogo
interativo entre os participantes, a obra e referências extratextuais.

O RPG É ENTÃO UM JOGO INTERATIVO NARRATIVO?

Muniz Sodré define a narrativa como um “discurso capaz de evocar,


através da sucessão temporal e encadeada de fatos, um mundo dado como
real ou imaginário, situado num tempo e num espaço determinados. […]
Como uma imagem, a narrativa põe diante de nossos olhos, nos apresenta,
um mundo”9.
Roland Barthes10 observa que a literatura e, por extensão, as
narrativas têm os poderes de mathesis (vários saberes se entrelaçando) e
mimesis (representação/recriação do real), destacando seu potencial na
educação. As narrativas permitem o encontro lúdico de diversos saberes
em sua fruição, facilitando a concretização de um trabalho multi ou
interdisciplinar. A mathesis torna possível saber, por exemplo, com quantas
disciplinas se faz uma canoa ou se estuda o metano. Pela mimesis, uma
história pode mostrar onde, como e por que é usada uma equação do
segundo grau na vida de uma pessoa.
É importante ressaltar que a mimesis barthesiana visa a uma
representação criativa do real que vai além de reproduzi-lo. A mimesis de
Barthes11 não se limita a tentar mostrar como a realidade é: ela objetiva
mostrar como a realidade pode vir a ser, assumindo, portanto, um
compromisso poético. O potencial de aprendizado das narrativas é
conhecido há bastante tempo. Antoine Compagnon aponta que associar
diversão ao aprender, tornando o saber prazeroso, é uma das
características atribuídas à poética desde a Antiguidade. Referindo-se ao
texto de Ars poetica, Compagnon aponta que “Aristóteles, além disso,
colocava o prazer de aprender na origem da arte poética: instruir ou
agradar, ou ainda instruir agradando, serão as duas finalidades, ou a dupla
finalidade, que também Horácio reconhecerá na poesia, qualificada de
dulce et utile”12.
Janet Murray postula que as controvérsias sobre conteúdo e formato
de videogames se devem a dois fatores: o poder da narrativa e a experiência
singular das narrativas participativas. Para a autora, “a narrativa é um de
nossos mecanismos cognitivos primários para a compreensão do mundo.
É também um dos modos fundamentais pelos quais construímos
comunidades, desde a tribo agrupada em volta da fogueira até a
comunidade global reunida diante do aparelho de televisão”13. É por meio
dessas histórias que compartilhamos valores, tradições e cultura e também
nos compreendemos. São histórias que nos inspiram a ir além, que nos
dão forças para viver e pelas quais muitas vezes somos capazes de morrer.
Há certo consenso entre educadores de que as pessoas aprendem
quando gostam do assunto ou quando entendem sua aplicabilidade. A
grande pergunta de muitos aprendizes seria: “Para que estou aprendendo
isso?”. Essa pergunta não existe quando a pessoa se apaixona pelo que
busca aprender – história, matemática, futebol etc. –, já que essa paixão lhe
basta. A narratividade pode trazer prazer à aprendizagem ou, se não
conseguir lograr esse intento, pode, pela mimesis, mostrar a aplicabilidade
daquele saber. O aluno que teve de aprender matemática para usar as
fórmulas da física cruzou esse obstáculo a fim de alcançar sua paixão.
Como forma de narrativa interativa, o RPG pressupõe não uma
produção sobre o que foi narrado, mas múltiplas produções a partir do que
foi narrado, ou seja, uma história plural construída por meio do jogo e que
permite diferentes escritas. Segundo Barthes14, o texto plural ideal se
constituiria em redes múltiplas que se entrelaçam sem que uma possa
dominar as outras: uma galáxia de significantes em vez de uma estrutura
de significados. Reversível, sem início, pode ser penetrado por várias
entradas sem que haja uma principal. No texto plural não há nada fora,
mas também não há um todo do texto: ele está liberto simultaneamente da
exterioridade e da totalidade. Por isso, não tem estrutura narrativa,
gramática ou lógica da narrativa.
Barthes afirma que “quanto mais plural é o texto, menos está escrito
antes que o leia, onde a leitura é um trabalho de linguagem em que escrevo
a minha leitura”15. Eliana Yunes sustenta a “hipótese de que a leitura
precede a escrita e de que não há escritor ou artista que produza sem antes
ter vivido com densidade a condição de leitor”16, o que dialoga bem com a
proposição de Barthes de que todo “eu-leitor” é constituído por um
emaranhado de outros textos em que a leitura é uma escrita. O texto
escrevível, do qual é difícil dizer algo, está do lado do que é possível
escrever, da prática do leitor e de que textos desejar fazer avançar no
mundo. Podemos então ampliar o conceito de produtividade do texto,
pois, se esta se refere a diferentes leituras possíveis e leituras são escritas,
ela também pode incluir o poder de mobilização do texto para diferentes
escritas a partir dele.

FANTASIA E ÊXTASE:
POTÊNCIAS LÚDICAS E NARRATIVAS DO RPG NO PROCESSO CRIATIVO

Vamos nos deter sobre o que consideramos a grande potência do


RPG: a fagulha que irrompe do encontro entre o prazer de jogar e o prazer
de fantasiar, capaz de disparar todo um desejo de busca – uma quest – por
conhecimentos, ou seja, o desejo – prazer ou gozo – de aprender e de, nesse
processo, se transformar.
Para tecer essa potência, lançamos mão de dois fios principais: o da
trama fica por conta do conceito de prazer/gozo escritural de Roland
Barthes, e o da urdidura, por conta do conceito de Fantasia de J. R. R.
Tolkien.
Em um artigo publicado anteriormente17, trabalhamos com o
conceito de jouissance, proposto por Roland Barthes18, como força
resultante de um processo escritural capaz de promover um deslizamento
poético no jogo de inovação e sedimentação da tradição postulado por Paul
Ricoeur19. Como exemplo desse processo escritural, propusemos o
conceito de Fantasia apresentado por Tolkien.

ÊXTASE E GOZO: A FENDA ESCRITURAL

Segundo Roland Barthes20, é no deslizamento entre significante e


significado que o poder se infiltra, congelando o signo. É nele, também,
que se pode – e se deve – trapacear a linguagem e jogar com ela e com os
signos: não na mensagem, mas no uso de seus códigos formais, do visível.
Nesse momento, Barthes21 ressalta a responsabilidade (não a supremacia)
da forma como promotora desse deslizamento, forma esta que é a
escritura – como toda manifestação de linguagem humana capaz de
promover um “descongelamento” dos signos. Assim, a escritura não se
define pelos conteúdos nem mesmo pelos sentidos que cria, e, sim, pelo
aspecto formal que, em Barthes, não remete ao estilo, mas a uma
materialidade do texto. Desse modo, é definível apenas por um discurso
ele mesmo escritural: “a ciência dos gozos da linguagem, seu kamasutra”22.
Daí a responsabilidade da forma escritural: abrir uma fenda para
que se ouça a voz única de um corpo que a receba como um êxtase, gozo ou
fruição (segundo diferentes traduções de jouissance), “sentido como
intensidade, como perda do sujeito pensante e ganho de uma nova
percepção das coisas”23. Uma vez que o sujeito se modifica em contato com
a escritura, podemos dizer que o êxtase ou gozo se completa em uma
dimensão ética de retorno ao campo prático. Leyla Perrone-Moisés diz que
“a escritura é poesia no sentido moderno do termo: aquele discurso que
acha sua justificação na própria formulação, e não na representação de
algo prévio e exterior”24.

O ETERNO JOGO ENTRE INOVAÇÃO E SEDIMENTAÇÃO

O abismo poético que se abre como resultado do processo escritual


convida a um salto no vazio para a inovação. Assim como Barthes, Paul
Ricoeur25 fala desse ato poético ao analisar o processo de configuração da
narrativa em que a constituição de uma tradição reside no jogo ou na
tensão entre inovação e sedimentação. A sedimentação consolida o
repertório de paradigmas que constituem a tipologia da configuração:
esquemas narrativos ocidentais que se combinam causalmente a partir de
uma herança aristotélica, gerando um código paradigmático e uma
tipificação de formas que tradicionalmente se repete. A tradição,
entretanto, não se resume à repetição, mas desliza em dois sentidos:
sedimentação e inovação. A sedimentação consolida a linguagem, mas
pode cristalizar-se; a inovação avança a linguagem, mas pode causar
estranhamento e afastamento, como tem acontecido, em alguns casos, na
arte contemporânea.
Se a sedimentação universaliza, a inovação singulariza, pois cada
poética produzida, cada maneira pessoal de operar os códigos de
configuração, oferece desafios e transgressões às normas que acabam
retroalimentando o repertório sedimentado. Isso pode soar como um
círculo vicioso, mas Ricoeur lança mão da estética da recepção de
Wolfgang Iser26 e da relação prazer-gozo do texto de Roland Barthes27
para demonstrar que o jogo entre transgressão e apropriação, que tem
como um de seus grandes referentes o receptor que aceita ou rejeita a
inovação, é vital para a constituição de um círculo virtuoso da linguagem.

CRIAÇÃO ESCRITURAL E POÉTICA: CONFIGURAR PARA REFIGURAR

O ato poético – como diria também Haroldo de Campos28 sobre o


“poetar” – é o próprio ato de configurar ou de formular a escritura. As
obras poéticas, como qualquer discurso, acontecem na linguagem;
entretanto, não se pode negar seu impacto sobre a experiência cotidiana
em razão de seu poder de ataque subversivo contra a ordem moral e social.
Essa interação do poético com o prático abre um leque de opções que vai
da confirmação ideológica da ordem estabelecida (sedimentação ou
prazer) à crítica e problematização (inovação ou êxtase), incluindo a
alienação em relação ao real, interação essa de ordem ética.
Voltemos a Paul Ricouer29, com seu processo de configuração de
narrativas como um exemplo de processo criativo, entendendo o fazer
poético como mimese no sentido aristotélico de recriação, assim como
Roland Barthes30. Nesse processo, Ricoeur propõe três estágios
interligados de mimese: na M1, temos a prefiguração dos elementos; na M2,
a configuração das relações entre esses elementos; e, na M3, uma fruição
da linguagem que leva à refiguração do sujeito e de sua realidade, seja por
meio de gozo, seja por meio de prazer, promovendo, portanto, algum
deslizamento no jogo inovação-sedimentação.

FANTASIA E IMAGINAÇÃO DE MUNDOS: ATO POÉTICO REFIGURADOR

Robin Law, game designer norte-americano, observa que os RPGs


costumam buscar referências em outros produtos da mídia de massa,
como filmes, seriados, histórias em quadrinhos, animações etc. Law
responde à crítica sobre a forte presença de clichês e estereótipos em
cenários e enredos de RPG com o conceito de fantasias preexistentes:
“Quanto mais o cenário se parece com algo que eles (os jogadores) já
conhecem do entretenimento popular, mais provável se torna que eles
consigam tirar proveito de uma fantasia preexistente que sempre tenham
querido exercer”31. Em um cenário de ficção científica, um jogador que
gosta muito do personagem Sr. Spock, de Jornada nas estrelas, pode criar
uma personagem similar para se divertir. Em um cenário medieval, uma
jogadora pode interpretar uma personagem inspirada em Joana d’Arc ou
em Robin Hood. A atração também pode ser por um estilo de história, por
resolver um mistério ou um crime (como em um romance policial), por
desfrutar uma aventura emocionante (como em um thriller) etc.
Personagem, cenário ou enredo são fantasias que os jogadores já
possuíam, fantasias preexistentes que, de alguma forma, eles podem agora
vivenciar por meio do RPG.
Defendemos, assim, que a narrativa atua como o encontro lúdico de
diversos saberes na medida em que esse lúdico remete ao jogo do faz de
conta, acionando fantasias preexistentes que geram interesse,
identificação e afeto (no sentido geral de resposta emocional, não
necessariamente prazerosa) e transformam tais fantasias na Fantasia, que,
segundo J. R. R. Tolkien32, corresponde à atividade humana de representar,
por meio da arte, aquilo que não existe no “mundo primário”, cotidiano,
criando “mundos secundários” tão narrativamente consistentes que se
tornam críveis.
O linguista britânico J. R. R. Tolkien foi autor de vários textos
literários, entre eles a série O Senhor dos anéis33, principal fonte de
inspiração para a ambientação do primeiro RPG publicado, Dungeons &
Dragons34.
Segundo Portinari35, Imaginário para Tolkien é a própria
Imaginação: a atividade humana de “representar” que alcança sua melhor
expressão a serviço da Fantasia por meio da criação de um “Mundo
Secundário”.
Para Tolkien36, a arte é o elo operativo entre Imaginação e o produto
final, que ele chama de “subcriação”, em virtude da formação católica
(“Criação” é um ato de Deus; o ser humano só pode “subcriar”). O universo
que envolve a criação do “Mundo Secundário” apresentado por Tolkien em
suas obras de ficção engloba ainda outros elementos de sua vida pessoal,
como interesses em diferentes áreas de conhecimento, principalmente
línguas, botânica, caligrafia e contos de fadas.
A palavra escolhida por Tolkien para abarcar tanto a arte criativa
(entendamos daqui para diante que “criativo” para nós é “subcriativo” para
o autor) como o estranho e o maravilhoso derivados da faculdade de
imaginar é “Fantasia”. Fantasia passa a ser, desse modo, a mais alta criação
artística: a representação daquilo que não existe no “Mundo Primário” (por
oposição a “Mundo Secundário”, mundo banal, rotineiro).
O Mundo Secundário é alcançado pela suspensão voluntária do
descrédito (willing suspension of disbelief), exercício em geral mais fácil para
crianças. No adulto moderno, essa operação resvala, por força cultural, na
confusão entre Fantasiar e Sonhar. Porém, no Sonhar normalmente não
há arte no sentido do elo operativo aqui descrito, e a Fantasia é uma
atividade racional. Construir um Mundo Secundário capaz de evocar a
crença literária (literary belief) é, para Tolkien, tarefa artística das mais
difíceis e requer muito trabalho e pesquisa e uma busca quase heroica para
conferir ao fantástico uma consistência de realidade.
Fantasiar é ser bem-sucedido em fazer ou vislumbrar outros
mundos; não mundos possíveis, mas desejáveis. Tolkien não desejou viver
as aventuras de Alice, elas apenas o divertiram. Mas as antigas lendas do
Rei Artur e as sagas nórdicas despertaram-lhe o desejo. O dragão tem, para
ele, a marca de Faërie (“I desired dragons with a profound desire”37) dentro
da Fantasia, ou seja, existe a permissão de vislumbre de “Outros Mundos”,
quaisquer mundos que dragões habitassem. O “drama feérico”, para
Tolkien, é aquele que pode produzir Fantasia com realismo e cujo
resultado é a suspensão da descrença, permitindo a imersão “corporal” no
Mundo Secundário. Para Tolkien, essa é a arte élfica, mais bem expressada
pela palavra “Encantamento”.
Tal processo não ganha força, entretanto, sem o que o autor chama
de recuperação histórica da fantasia, ou seja, não abandonar o passado
nem mitificá-lo: “Recovery (which includes return and renewal of health) is
a re-gaining – regaining of a clear view”38. Esse processo parece muito
similar ao ato poético discutido anteriormente, sobretudo sob a ótica de
Ricoeur: uma configuração que leva a uma refiguração do sujeito e da
própria linguagem, deslizando uma tradição no sentido da inovação e
abrindo uma fenda da qual o sujeito retorna marcado pelo êxtase,
conferindo-lhe novas perspectivas, ou da sedimentação, na qual o sujeito,
pelo prazer, recupera origens que lhe conferem clareza de perspectiva.

FANTASIA E TRANSVERSALIDADE:
POTÊNCIAS CRIATIVAS DO RPG NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Podemos exemplificar esse processo de criação poética em uma


entrevista com o escritor norte-americano George R. R. Martin, autor da
série de livros A Song of Ice and Fire, transposta para a série televisiva Game
of Thrones, na qual menciona como suas fantasias se converteram em
narrativas39 e Mundo Secundário, ou seja, em Fantasia, de acordo com
Tolkien – criação essa que tem sido capaz de mobilizar vários sujeitos em
suas próprias atividades fruidoras e criadoras.
Por ser uma forma de narrativa, o RPG possui os elementos
levantados por Cardoso40: tema, personagens, ação, tempo, espaço, ponto
de vista e con lito, além de unidade de ação e tempo e lugar
desenvolvendo-se através da relação de causa e efeito. Entretanto, com
suas características interativas, o RPG difere do conceito tradicional de
narrativa, por ser uma plataforma operacional não só para contar a mesma
história de diferentes maneiras, mas para contar diferentes histórias a
partir de elementos comuns como regras e ambientação.
Pensemos, então, o RPG como um meio de comunicação que,
segundo Marshall McLuhan e a teoria da comunicação, dispõe de
linguagem ou sistema simbólico (códigos e repertórios), tecnologia
(veículo, canal e suporte material) e modos de recepção (condições de
fruição). Qualquer mudança em um desses três elementos é suficiente
para diferenciar um meio de comunicação de outro em razão das
diferenças identificadas no impacto no meio social.
Se considerarmos as características de interatividade e
hipertextualidade pressupostas na fruição do RPG, poderemos pensar cada
um de seus elementos narrativos como potencial link, cujo propósito é
abrir as possibilidades para a construção de significados e elementos
próprios do receptor41,42. Os processos interativos e hipertextuais de
fruição e de construção de um RPG se caracterizam pelas colagens,
apropriações e reinterpretações43. Parece muito pertinente ao RPG o termo
“pilhagem narrativa”, aplicado por Sônia Mota44, em que histórias e
imagens são tecidas a partir de elementos de outras histórias e de outras
imagens, apropriadas de autores que não são citados, aproximando essa
narrativa da narrativa oral “sem dono”.
O ato de configurar, por pilhagem, qualquer um desses elementos
narrativos pode ser pensado sob a perspectiva mimética de Paul Ricoeur e
levado aos extremos da Fantasia tolkieniana e da escritura barthesiana.
Assim como J. R. R. Tolkien, Gary Gygax e Dave Arneson (autores do
RPG Dungeons & Dragons), George R. R. Martin, J. K. Rowling, Machado de
Assis, Guimarães Rosa e tantos outros criadores de Mundos Secundários,
aquele que joga ou cria um RPG também faz uma recuperação histórica de
suas fantasias preexistentes, pilhando diversas fontes para que estas
venham a se converter em Fantasia consistente, coerente e capaz de
promover refigurações.

CRIAR PARA APRENDER EM VEZ DE APRENDER PARA CRIAR

Pré-fantasiar, jogar, pilhar, recuperar, configurar, refigurar,


fantasiar, pré-fantasiar: podemos, depois de tudo isso, sugerir que o
processo de jogar RPG implica um ciclo disparado pelo desejo-prazer-gozo,
figura-se no lúdico, configura-se na narrativa e refigura-se novamente no
desejo-prazer-gozo, que dispara novo processo. Esse processo criador pode
ser comparado ao processo de aprender, se entendermos o aprender como
um entre-lugar de fruição estética, diversão e construção de
conhecimento, e a educação – em acordo com Paulo Freire45 – como
desenvolvimento de autonomia e senso crítico, no qual o aprendiz é
estimulado a sair do papel de receptor passivo de conhecimentos
“encaixotados” para o papel ativo de construtor de seus próprios
significados, protagonizando sua história de maneira holística e integrada,
pois, como afirma Joseph Beuys, “todo ser humano é um artista”46.
O ato criador-poético implica um aspecto multidisciplinar, referente
à multiplicidade de disciplinas com seus conteúdos, conhecimentos e
habilidades47, e um aspecto interdisciplinar, referente ao uso de métodos
de diferentes disciplinas para a mobilização de competências48. A
demanda multi e interdisciplinar das produções a partir do conteúdo
requer mais esforço do usuário, promovendo a transdisciplinaridade49, o
que não significa somente que as disciplinas cooperam entre si por um
projeto de conhecimento em comum, mas também que “há um modo de
pensar organizador que pode atravessar as disciplinas e que pode dar uma
espécie de unidade. […] A transversalidade ou transdisciplinaridade é
qualquer coisa que é mais profundamente integradora. Agora, para que
haja transversalidade é necessário um pensamento organizador. É o que
chamo de pensamento complexo”50.
Ou seja, podemos sugerir que jogar ou criar RPG mobiliza, a partir de
fantasias preexistentes dos participantes, a articulação de conhecimentos
e competências para a produção da Fantasia, favorecendo a construção de
novos conhecimentos e competências em um círculo virtuoso51. Esse
processo vem ao encontro de uma postura autônoma e crítica dos
participantes, respeitando seus desejos e mobilizando-os para atitudes de
transformação de suas realidades pessoal e social, visando criar as
condições para a construção de conhecimentos e não sua simples
transferência52.

PROJETO INCORPORAIS:
NOSSAS EXPERIÊNCIAS COM AS POTÊNCIAS DO RPG

O Projeto Incorporais é uma plataforma lúdica, multidisciplinar e


multimidiática que dá suporte à aplicação das Técnicas para Narrativas
Interativas (TNI) como interface didática. As TNI compõem um método de
utilização de histórias interativas e jogos de representação de papéis, como
o RPG, para a construção de conhecimento e competências por meio da
participação e coautoria em narrativas nesse formato53. Os participantes
atuam construindo a narrativa coletivamente e de forma cooperativa,
devendo incorporar produções de sua autoria aos suportes utilizados para
as sessões de RPG. Essa produção, que pode ser expressa em diferentes
linguagens e suportes, é feita durante e entre sessões de RPG. O objetivo é
que os participantes apresentem mais do que uma produção sobre o que
foi vivenciado, partindo para uma criação a partir do que foi construído
durante as histórias. Para atingir esse propósito criativo, propomos, como
método para nortear e estimular o processo, o design poético, um método
projetual que objetiva a configuração de objetos que promova uma
refiguração dos sujeitos e de seus contextos54.
A aplicação do RPG para fins educacionais foi para nós sistematizada
nas Técnicas para Narrativas Interativas (TNI) em profunda relação com o
design poético, de forma que os alunos não apenas apreendam o conteúdo,
a transmissão e o aprendizado, como também partam para a construção
de um raciocínio crítico e criação a partir de uma poética da aprendizagem.
Desde 2008, pesquisamos as potencialidades da plataforma Incorporais
com estudantes e professores do ensino médio e estudantes de graduação
e pós-graduação55.
O Projeto Incorporais vem sendo uma proposta de sistematização
para aplicação do potencial educacional e estético do RPG na promissora
interface da arte com a educação, sobretudo no que toca à sua potência
poética. Atualmente, conduzimos uma pesquisa com estudantes de
graduação do bacharelado em artes e design do Instituto de Artes e Design
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) sobre o uso de fantasias
preexistentes no desenvolvimento de um cenário de fantasia tolkieniana
como forma de estímulo à criatividade, partindo da necessidade de
experimentação de práticas pedagógicas que possam instrumentalizar
uma formação interdisciplinar e integrada do graduando dos dois ciclos
desse bacharelado.
Uma vez que estamos no contexto das artes e do design, lançamos
mão dos Projetos de Trabalho de Fernando Hernández56, professor da
Faculdade de Belas-Artes de Barcelona, que se refere a “projeto” no mesmo
sentido que arquitetos, designers e artistas compreendem o “procedimento
de trabalho que diz respeito ao processo de dar forma a uma ideia que está
no horizonte, mas que admite modificações, está em diálogo permanente
com o contexto, com as circunstâncias e com os indivíduos que, de uma
maneira ou outra, vão contribuir para esse processo”57, tomando como
premissas o conceito de pilhagem narrativa e de antropofagia visual, de
acordo com Oswald de Andrade, para disparar o processo de criação
poética que deverá implicar a construção de conhecimentos e
competências, ou seja, a aprendizagem crítica e transformadora.

1 Uma versão deste texto foi publicada na primeira edição do periódico Mais
Dados (2014, pp. 70-94), revista científica voltada à analise crítica das
categorias de jogos RPG, LARP, board games (jogos de tabuleiro) e card games
(jogos de cartas). Disponível em:
<www.narrativadaimaginacao.com/p/revista-mais-dados.html>. Acesso em:
mar. 2015.
2 Hilton Japiassu e Danilo Marcondes, Dicionário básico de filosofia, Rio de
Janeiro: Zahar, 2001, p. 150.
3 Roland Barthes, Aula, São Paulo: Cultrix, 1977, pp. 82-5.
4 Paul Ricoeur, Temps et récit, Paris: Seuil, 1983, t. I.
5 Johan Huizinga, Homo ludens, São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 33.
6 Arlindo Machado, “Formas expressivas da contemporaneidade”, in: Pré-
cinemas & Pós-cinemas, Campinas: Papirus, 1997.
7 Júlio Plaza, “Arte e interatividade: autor-obra-recepção”, Concinnitas – Revista
do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro: 2003, ano 4, n. 4, pp. 7-34.
8 Ibidem, p. 22.
9 Muniz Sodré, Best-seller: a literatura de mercado, São Paulo: Ática, 1988, p. 75.
10 Roland Barthes, Aula, op. cit.
11 Idem, “A atividade estruturalista”, in: O método estruturalista, Rio de Janeiro:
Zahar, 1967, pp. 57-63.
12 Antoine Compagnon, O demônio da teoria: literatura e senso comum, Belo
Horizonte: UFMG, 2001, p. 35.
13 Janet Murray, Hamlet on the Holodeck, New York: Free Press, 2003, p. 9.
14 Roland Barthes, S/Z, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992.
15 Ibidem, p. 43.
16 Eliana Yunes (org.), Pensar a leitura: complexidade, Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2002,
p. 33.
17 Eliane Bettocchi e Carlos Klimick, “Fantasia e êxtase: um exercício de
resistência através da forma”, in: Simpósio do Laboratório da Representação
Sensível: O (in)visível, 4, 2005, Rio de Janeiro, Anais, Rio de Janeiro:
Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2005. Disponível em:
<www.historias.interativas.nom.br/artigos/lars05.pdf>. Acesso em: set. 2014.
18 Roland Barthes, O prazer do texto, São Paulo: Perspectiva, 2002.
19 Paul Ricoeur, op. cit.
20 Roland Barthes, Aula, op. cit.
21 Idem, Mitologias, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
22 Leyla Perrone-Moisés, Roland Barthes: o saber com sabor, São Paulo: Brasiliense,
1983, p. 53.
23 Ibidem, p. 56.
24 Ibidem.
25 Paul Ricoeur, op. cit.
26 Wolfgang Iser, O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, 2 v., São Paulo:
Editora 34, 1996; 1999.
27 Roland Barthes, O prazer do texto, op. cit.
28 Haroldo de Campos, A arte no horizonte do provável, São Paulo: Perspectiva, 1977.
29 Paul Ricoeur, op. cit.
30 Roland Barthes, “A atividade estruturalista”, op. cit.
31 Robin Law, Robin’s Laws of Good Game Mastering, Texas: Steve Jackson Games,
2002, p. 9.
32 J. R .R. Tolkien, The Tolkien Reader, New York: Ballantine Books, 1966.
33 Idem, The Lord of the Rings, London: Unwin Hyman, 1988.
34 Dungeons & Dragons foi desenvolvido por Dave Arneson e Gary Gygax e lançado
em 1974 pela empresa TSR, Inc. nos Estados Unidos. Hoje, o jogo é publicado
pela Wisards of the Coast.
35 Denise B. Portinari, “A construção do cenário da Terra Média por J. J. R.
Tolkien”, in: Histórias abertas: simpósio de RPG em educação, 2003, Rio de Janeiro.
Disponível em: <www.historias.interativas.nom.br/artigos/tolkien.pdf>.
Acesso em: set. 2014.
36 J. R .R. Tolkien, The Tolkien Reader, op. cit.
37 “Desejei os dragões com uma vontade profunda” (Ibidem, p. 64).
38 “A recuperação (que abrange o retorno e a renovação da saúde) é uma re-
conquista – reconquista de uma visão clara” (Idem, p. 77).
39 GAME of Thrones – Interview with George R. R. Martin, Grace Dent, 2012.
Disponível em: <http://youtu.be/jnkUqUnz6a4>. Acesso em: fev. 2015.
40 João Batista Cardoso, Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto: por
um tempo de “PAS” (Programa de Avaliação Seriada), Brasília/São Paulo:
Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado, 2001.
41 Eliane Bettocchi e Carlos Klimick, “O lugar do virtual no RPG, o lugar do RPG no
design”, in: Simpósio do Laboratório da Representação Sensível: Atopia, 2,
2003, Rio de Janeiro, Anais, Rio de Janeiro: Universidade Católica do Rio de
Janeiro, 2003. Disponível em:
<www.historias.interativas.nom.br/artigos/lars03.pdf>. Acesso em: set. 2014.
42 Eliane Bettocchi, Incorporais RPG: design poético para um jogo de representação,
174f., tese (doutorado em artes e design) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <www.maxwell.vrac.puc-
rio.br/>. Acesso em: set. 2014.
43 Idem, Role-Playing Game: um jogo de representação visual de gênero, 155f.,
dissertação (mestrado em artes e design) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2002. Disponível em:
<www.historias.interativas.nom.br/lilith/dissert/index.htm>. Acesso em: set.
2014.
44 Sônia Rodrigues Mota, Role-Playing Game: a ficção enquanto jogo. 999f., tese
(doutorado em letras) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1997.
45 Paulo Freire, Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa, São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
46 Joseph Beuys, Falando sobre o próprio país: Alemanha III. Munique, 1985.
Disponível em: <www.historias.interativas.nom.br/lilith/aula/leitura/beuys-
lia.pdf>. Acesso em: fev. 2015.
47 Basarab Nicolescu et al., Educação e transdisciplinaridade, Brasília: Unesco, 2001,
p. 14.
48 Ibidem, p. 15.
49 Ibidem.
50 Edgar Morin – Coleção Grandes Educadores. Direção: Edgard de Assis Carvalho.
Brasil: 2006.
51 Carmen Moreira de Castro Neves, “Pedagogia da autoria”, Boletim Técnico do
Senac, Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2005, v. 31, n. 3, pp. 19-27.
52 Paulo Freire, op. cit.
53 Carlos Klimick, “RPG & educação: metodologia para o uso paradidático dos
Role-Playing Games”, in: Luiz Antônio L. Coelho (org.), Design & Método, Rio de
Janeiro/Teresópolis: PUC-RJ/Novas Ideias, 2006, pp. 143-61.
54 Eliane Bettocchi, Incorporais RPG: design poético para um jogo de representação, op.
cit.
55 Eliane Bettocchi, Carlos Klimick e Rian Rezende, “Projeto Incorporais: método
e material lúdico-didático para professores e estudantes do ensino médio”,
Tríades: Transversalidades, Design, Linguagens – Revista do Programa de Pós-
Graduação em Design da PUC-Rio, Rio de Janeiro: 2013, v. 2, n. 1. Disponível em:
<www.revistatriades.com.br/blog/?page_id=962>. Acesso em: set. 2014.
56 Fernando Hernández, Transgressão e mudança na educação: os projetos de trabalho,
Porto Alegre: Artmed, 1998.
57 Ibidem, p. 22.
No tempo em que São Pedro e Jesus andaram pelo
mundo
VANUSA MASCARENHAS SANTOS

Apresento neste texto algumas considerações sobre a religiosidade inscrita


na literatura oral popular, produção poético-política de sujeitos que, em
suas dinâmicas cotidianas, laboram as palavras oralmente,
(res)significando-as a partir de seu lugar no mundo e de suas experiências
de narrarem a si para e com os outros. A literatura oral é, portanto,
“produção material e simbólica, que resulta de condições próprias, práticas
cotidianas, de modos de viver, de condições socioeconômicas que vão
propiciando a conservação ou a renovação dos repertórios”1. Essa partilha
diária de valores e crenças fortalece os laços comunitários, uma vez que, ao
acercar-se das tradições e rearticulá-las em sua voz, o sujeito não só toma
lugar na História, como também “subjetiviza” e reencena a memória
coletiva da qual faz parte. É a partir desse entendimento que apresento
algumas leituras de narrativas2 do ciclo de São Pedro e Jesus, que integram
o acervo do Programa de Estudo e Pesquisa da Literatura Popular sediado
no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia.
As constantes referências a espaços e a seres considerados sagrados,
bem como a mecanismos de conexão do homem com a divindade,
denotam maneiras de viver a experiência religiosa que nem sempre
obedecem à lógica pregada pelas instituições, embora sejam, em diferentes
medidas, atravessadas por ela. Entretanto, dois propósitos tendem a
mobilizar os contadores de histórias no tratamento de tal assunto: o
estabelecimento de um contato imediato com a divindade e a afirmação de
normas de conduta. Se regida pela primeira razão, sua postura é de
seriedade e compenetração. Dependendo da circunstância, recorre às
rezas, aos cânticos, aos benditos ou mesmo às incelências3. Esses textos,
quase sempre versificados, apresentam poucas alterações de uma versão
para outra, uma vez que, nessas realizações, exige-se a palavra exata, tal
como foi aprendida, assim como a hora e os objetos simbólicos adequados,
elementos necessários para o bom funcionamento da comunicação a ser
estabelecida. Dessa forma, para se rezar de olhado, por exemplo, é preciso
não apenas conhecer os dizeres, mas saber os movimentos a serem feitos
com os ramos, onde jogá-los depois da reza e o horário de realizá-la.
Existe, assim, uma situação de sacralidade que envolve o momento,
razão pela qual algumas cantadoras de incelências se recusam a cantá-las
somente para que sejam gravadas durante a pesquisa – não há a presença
de um morto, motivo desse tipo de oração. Isso representa a relutância em
esvaziar o ritual, o receio de brincar com o sagrado. É a crença na força da
palavra que deve sempre ser respeitada. O pacto não é de ficção, mas de
crença em uma verdade sacra. Essa comunicação, como afirma Eliade,
baseia-se no fato de “o homem tomar conhecimento do sagrado porque
este se manifesta, se mostra como algo diferente do profano”4. Nos textos
dessa natureza, quem detém a palavra, consciente de seu poder e de sua
responsabilidade, estabelece o que pode ou não ser conhecido e também a
adequação espacial, o que inclui obviamente a plateia.
As rezas, os benditos, os cânticos, entre outras manifestações da fé,
remetem a uma matriz católica mesmo quando mescladas com outras
religiões. Desse modo, durante as pesquisas, as pessoas, quando
perquiridas quanto à sua religião, respondiam quase unanimemente
serem católicas, ainda que no interior de suas casas reverenciassem
entidades não católicas e obedecessem a outros preceitos religiosos. Quase
sempre, porém, confinam essas crenças ao ambiente doméstico,
mantendo-as no nível privado conhecido apenas por aqueles que
partilham delas. No espaço público e para as pessoas menos chegadas – e,
certamente, para nós, pesquisadores –, costumam apresentar-se sob o
amplo guarda-chuva do catolicismo.
Esse cuidado também é perceptível na cadeia transmissiva dos
textos dessa natureza. Assim, aquele que detinha a autoridade discursiva,
como responsável pela iniciação do atual contador ou rezador e a quem
coube autorizar a prática das rezas, dos benditos e dos ditos proferidos
durante os rituais, é evocado como personagem importante na memória
coletiva do grupo. Nesses casos, não se transmite apenas o texto, mas a
crença de que as palavras pronunciadas são imbuídas de poder e
pertencem à instância do mistério, sendo, portanto, sagradas. Mas não é o
“autor” o único responsável por esse processo:

Para esses testemunhos adquirirem o seu valor de verdade, é preciso um


elemento indispensável, a saber: a presença de uma comunidade que
compartilha deste saber tradicional que a pessoa-testemunha traz e que, em
nome deste saber compartilhado, e, pelo fato de o compartilhar, acredita e
testemunha, tem como verdadeiro o seu testemunho5.

Quando o intuito do contador é transmitir ensinamentos e


estabelecer normas de conduta, a forma mais utilizada é a prosa, entrando
em cena a narrativa e o poder de persuasão do contador. Nesse caso, nos
deparamos com os contos de encantamento, os religiosos propriamente
ditos, os de exemplo, os faceciosos, as lendas, os mitos, os causos, os
depoimentos e até mesmo as piadas. É importante salientar que também
nesses textos não há uma obediência às fronteiras institucionais, embora
predominem valores disseminados pelo catolicismo. Assim, ouvimos do
mesmo informante lendas e causos sobre seres míticos da loresta – como
caipora, mãe-d’água e seres protetores da loresta ou dos rios – tomados
como entidades sagradas e histórias sobre São Pedro e Jesus quando
andavam pelo mundo.
Nas narrativas orais, nas folias de reis, nas festas em homenagem
aos santos, entre outros eventos religiosos, o sagrado muitas vezes se
conecta ao profano, de modo que não se sabe ao certo quando um acaba e o
outro começa. Ambos comparecem em uma perspectiva dialógica: santos
têm fraquezas humanas e Jesus realiza malandragens, por exemplo, e
essas configurações não afetam o respeito a essas divindades. Continua-se
devoto dos santos, e as promessas para chover, arranjar marido ou curar
doenças continuam sendo feitas. O mesmo acontece com os eventos já
citados, nos quais se misturam reza, música e dança.

AS MÚLTIPLAS FACES DOS CAMINHANTES

As narrativas orais do ciclo de São Pedro e Jesus ocupam-se das


aventuras desses dois personagens quando andaram pelo mundo,
descrevem os feitos dos viajantes e a postura de Pedro como chaveiro do
céu. Trata-se de uma série de narrativas conectadas pela presença desses
dois personagens que geralmente aparecem juntos e também
protagonizam isoladamente determinadas narrativas. Apesar da paridade
temática, podemos perceber duas sequências narrativas distintas: a
primeira, mais numerosa no corpus oral, compreende as narrativas
geralmente iniciadas pela expressão “Quando São Pedro andava no mundo
mais Nosso Senhor” ou uma que lhe seja equivalente. A segunda sequência
se estrutura a partir do exercício de São Pedro como chaveiro do céu.
Quanto à estrutura textual, as narrativas do ciclo são mais lexíveis
que contos como os de encantamento e de exemplo, possibilitando uma
variedade maior de combinações fabulares. Assim, podemos encontrar a
narração de episódios curtos, cada um constituindo um texto reconhecido
como tal pelo próprio contador (maior quantidade de casos), ou o
encadeamento de episódios articulando dois ou mais motivos na mesma
narrativa, mantendo uma relação de dependência entre eles. Há situações
ainda em que os episódios são costurados de modo a criar uma única
narrativa, sem que se perca a unidade de cada episódio e este podendo ser
desmembrado por um ouvinte-contador sem danos para a compreensão.
Nesse caso, os episódios são conectados pela viagem contínua das
personagens – a aventura continua, portanto, na casa seguinte ou em um
novo encontro.
Essa similitude estrutural não é um entrave à criatividade do
contador, pois essa matriz virtual não corresponde a uma fôrma que
molda as narrativas orais: ela atua como uma espécie de fórmula
mnemônica que favorece a construção fabular na oralidade. Pensar a
narrativa oral nesses moldes ressignifica nosso entendimento de
originalidade, que, como bem especifica Ong, “não consiste em introduzir
novo material, mas em adaptar o material tradicional de modo eficaz a
cada situação específica, única, e/ou ao público”6. Assim, as operações
realizadas pelos contadores são as mais diversas e englobam
transferências de motivos de uma narrativa para outra ou mesmo
alterações mais estruturais.
Ilustro essas observações com a narrativa “História de São Pedro e
São Miguel”7, que nos fornece uma explicação de como o santo teria
conseguido ser porteiro do céu. De acordo com o conto, São Pedro teria
alcançado o posto malandramente, usurpando-o de São Miguel. Nessa
narrativa, Jesus, em uma conversa com São Pedro, quando este ainda
estava vivo, oferece-lhe a realização de um desejo, ao que Pedro
prontamente responde: “Eu quero que, aonde eu sentar, que ninguém faz eu
levantar, Senhor”. Jesus concorda. Passado algum tempo, Pedro morre e
chega ao céu. Nosso Senhor exige que não o deixem entrar, mas o santo,
muito esperto, não se dá por vencido e cria uma estratégia: “Quando entrava
um, ele enviava metade do braço. Entrava outro, ele enviava mais um pouquinho”.
São Miguel, diante do perigo iminente, exaspera-se e vai ao encontro de
Jesus para contar-lhe o ocorrido. Mas, quando o Mestre chega, não há nada
mais a fazer; Pedro, malandramente, já está sentado na cadeira de São
Miguel. Jesus tenta expulsá-lo, mas ele é irredutível e argumenta: “Ô,
Senhor, o que que eu Lhe pedi? Não Lhe pedi nada, mas aonde eu sentar, ninguém
fazer eu levantar”. Consumado o fato, o narrador arremata: “Aí, pronto, ficou
Pedro como dono da chave”.
Podemos perceber que São Miguel, a vítima da história, é culpado
pelo acontecido, pois é o abandono momentâneo de seu posto que favorece
São Pedro. Nessa luta simbólica, entram em cena dois elementos
importantes para lograr aqueles que detêm o poder: paciência e
perspicácia, qualidades do herói malandro, que sabe não ser possível agir
impulsivamente para obter sucesso, ou seja, é necessário ficar à espreita,
esperando que o inimigo abra a guarda. Assim, Pedro, em vez de partir
para um enfrentamento direto com o poder instituído, o contorna,
minando-o com microações e um malabarismo feito com o próprio corpo,
muitas vezes a única arma que o homem das classes populares dispõe para
enfrentar os poderosos reais. O personagem adentra aos poucos e de
maneira fragmentada, circunstância em afinidade com a lógica da
desordem instalada pelo malandro. Como bem sinaliza Roberto Goto em
Malandragem revisitada, a possibilidade de mudança

[…] é dada pela própria ambivalência do malandro; situado na brecha, nos


“interstícios” entre o permitido e o reprimido, o efetivo e o possível ou
desejável, é a partir de seu “mundo intersticial” […] que ele “abre as portas para
mudanças sociais mais profundas”. A lexibilidade malandra, no caso, seria o
antídoto das “categorias estáticas e acabadas” com as quais o mundo dos ricos
e pobres seria visto pelo “pequeno-burguês” […]8.

Tal leitura nos permite compreender a representação de Pedro como


metáfora construída a partir do desejo do homem das classes populares
(ambiência em que tais narrativas são geralmente contadas e alimentadas)
em mover-se de forma diferenciada no sistema que o deixa à margem. Um
termo que considero importante para pensarmos a representação de São
Pedro é o “interstício”, pois é assim que o percebemos nas narrativas, como
um ser multifacetado, que transita entre o céu e a terra e cujas atitudes
re letem santidade e humanidade. Por outro lado, em relação a Jesus, que
se posiciona como centro, Pedro está quase sempre à margem.
Desse modo, entra em cena um São Pedro malandro e decidido, cuja
astúcia consegue burlar a vigilância de São Miguel e vencer com
argumentos Nosso Senhor que, não podendo faltar à palavra dada,
assegura-lhe o posto de chaveiro do céu. Essa configuração de Pedro nos
permite associá-lo a Pedro Malasartes, personagem muito recorrente nas
narrativas orais e reconhecido por suas artimanhas e inteligência. É
possível que, nas redes da tradição, a semelhança de nomes e de caráter
tenha aproximado esses personagens a ponto de encontrarmos a mesma
narrativa contada ora com um, ora com outro.
Quando a ambiência é a terra, os personagens estão sempre em
caminhada, mudando de ambiente e vivenciando experiências
diversificadas. Nesse caso, há uma situação inicial informando estarem
São Pedro e Jesus na terra e descrevendo o encontro destes com pessoas
comuns. Após essa sequência, a trama propriamente dita é apresentada a
partir do desenvolvimento dos motivos. Apresentarei neste trabalho a
“hospitalidade”, a “recuperação do preguiçoso”, o “fazer o bem sem olhar a
quem” e as “surras de Pedro”, elementos organizados a partir de uma
ordem maniqueísta. O desfecho encerra sempre um ensinamento, seja
para as pessoas comuns envolvidas na trama, seja para o próprio santo. A
maioria dos contos do ciclo remete à invariante do conto de exemplo:

Nos contos de exemplo tem-se, como primeira função que desencadeia a


intriga, um delito contra uma norma de caráter social. A infração dessa norma
tem como consequência a condenação do infrator, geralmente à morte.
Recorrendo a sua sagacidade para tentar inverter a situação de desvantagem
em que se encontra, o sagaz, de réu, se transforma em herói. O modelo da
estrutura dos contos de exemplo – o antagonismo Bem versus Mal – conduz o
desfecho para uma lição de moral, punindo com a morte os sentimentos, nada
altruístas, como a inveja, a ambição. Há a valorização do espírito de luta e da
sagacidade. O fraco, o desprotegido, o simplório, mas sagaz, sempre sai
vitorioso9.

Nos contos do ciclo que seguem essa estrutura, a má conduta é


sempre condenada, e mesmo São Pedro pode ser punido por suas ações
pouco recomendáveis. Nos textos em que aparecem juntos, o grande
atuante é Jesus, também agente que desencadeia a narrativa; Pedro
comporta-se quase sempre como o aprendiz, executando tarefas que lhe
são atribuídas ou pondo-se em trapalhadas que lhe rendem surras e
repreensões do Mestre. Os ricos orgulhosos são os personagens mais
atacados nas narrativas, e os pobres de bom coração são agraciados por
Jesus e conseguem melhorar de vida.
Nessa trajetória de Jesus e São Pedro, o tema da hospitalidade
aparece em quase todas as narrativas. Quando não corresponde ao motivo
nuclear, é a situação que promove o encontro de Jesus e São Pedro com as
pessoas. As narrativas desse grupo trazem quase sempre Jesus em
companhia de Pedro e pedindo hospedagem. Todas elas têm em comum a
recompensa de Jesus para com aqueles que os recebem de modo
hospitaleiro e a punição àqueles que se recusam a hospedá-los, tratando-os
mal durante a estada ou ainda negando-lhes comida. O cunho exemplar é
preponderante, como podemos perceber em “Jesus pelo mundo”10, na qual
o Mestre pede hospedagem na casa de um homem rico, o que lhe é negado,
e na casa de um homem pobre, onde é muito bem recebido. Pela boa
hospitalidade, este é recompensado com a riqueza. O mau hospedeiro, ao
saber do ocorrido, pede ao bom hospedeiro que convença Jesus a passar
em sua casa novamente, mas, ao chegar, Jesus não é reconhecido, e é
novamente maltratado. Os donos da casa são então severamente punidos
com a morte.
Um ponto importante nessa narrativa é a advertência que a mulher
pobre faz ao marido quando ele a repreende por ter matado a única
galinha para alimentar os hóspedes: “Mas, meu velho, não faz isso não, meu
velho. Não faz isso não. Diz que quando Jesus veio pelo mundo, ele veio um veinho;
ninguém não sabe que é Deus, hein!”. A explicação sugere a crença na
passagem de Jesus pela terra e a impossibilidade de reconhecê-lo.
Entretanto, esse comentário só aparece nessa narrativa. Pedro quase não
se manifesta, limitando-se a pedir a hospedagem a mando de Jesus. No
entanto, quando são castigados na casa do mau hospedeiro, é Pedro quem
recebe a surra, mesmo sem culpa, e é também quem se lastima para
realizar a tarefa determinada pelo mau hospedeiro.
O cunho exemplar dessa narrativa nos permite perceber um
enfrentamento alegórico entre o homem do povo e os poderosos. O sujeito
ambicioso que deseja aumentar sua fortuna, muitas vezes à custa da
exploração do outro, acaba por perder tudo. Há também uma violação da
norma da boa hospitalidade, ainda muito em voga nas comunidades
rurais, principalmente entre as pessoas mais pobres. Essa situação parece
con luir para o entendimento de Balandier acerca da estreita ligação entre
ordem e norma, sendo a ordem medida, e a desordem, resultado da
desmedida, do excesso. Nessa lógica:

O infortúnio individual é geralmente relacionado a uma agressão mística ou a


uma transgressão; nos dois casos, existe a infração a uma lei da tradição,
desconhecida (é a punição dos poderes que a revela) ou conhecida (é o
desrespeito consciente de uma obrigação que acarreta as consequências
nefastas). O risco e o perigo vêm da falta de conformidade às normas que
regem a ordem social tradicional11.

Embora Balandier não esteja tratando de narrativas orais nem do


ciclo em questão, podemos, a partir de suas considerações sobre a
desordem, pensar a respeito do conto de exemplo e da facécia. A distinção
entre esses dois gêneros narrativos seria produzida pela forma como se
processa e se dimensiona a desordem. Mobilizaria as narrativas desse ciclo
também o desejo de reversão de uma ordem considerada injusta, o que se
processa por meio de uma intervenção divina autorizada, por essa
condição, a aplicar castigos. Essa ideia, carregada de princípios religiosos,
a meu ver indica um entendimento que potencializa a desordem,
considerando-a necessária e inevitável.
A recuperação do preguiçoso é outro motivo recorrente nas
narrativas do ciclo. No conto “São Pedro e Jesus: a recuperação do
preguiçoso”12, Jesus avista um homem dentro de um rio e manda São
Pedro dar-lhe água, sendo replicado por ele: “Mas, Senhor, não tem juízo não?
O homem dentro d’água, sentado em cima de uma pedra, e tá com sede?”. Mesmo a
contragosto, Pedro obedece. Em seguida, encontram uma moça que
trabalha arduamente na enxada. Jesus, apesar dos protestos de São Pedro,
casa a moça com o preguiçoso – “Mas eu tou dizendo que Nosso Senhor só faz
as coisas tudo à toa! O Senhor fazer o casamento daquela moça com aquele
preguiçoso que quase morre de sede, que quase bebe o rio todo?”. Após um ano,
Jesus e São Pedro retornam e encontram o preguiçoso em casa dormindo e
a mulher trabalhando. Jesus então diz para São Pedro: “Ô, Pedro, vai matar
aquele preguiçoso ali, pro mode tirar a carne pra nós viajar!”. Ao ouvir isso, “o
preguiçoso tirou a janela do quarto e pulou. Chegou na roça e tampou na enxada!
Tampou na enxada e a poeira voava”.
O problema da preguiça é então resolvido por meio da esperteza.
Embora esteja explícita no conto a compreensão de que a ação foi
motivada por uma causa nobre, os atos de Jesus envolvem omissões e
ameaças. Há a condenação da preguiça e a preocupação em recuperar o
indivíduo e reintegrá-lo ao sistema comum, lógica distinta das narrativas
faceciosas que, fora do ciclo, se ocupam da temática. Temos nesses textos o
elogio da preguiça e as personagens que, além de não serem repreendidas
pelo narrador, gozam de certo prestígio, sendo muitas vezes
recompensadas. Nesses casos, o preguiçoso acaba enriquecendo por mero
acaso ou por uma ação decorrente de sua indolência. Já nas narrativas
orais do ciclo de São Pedro e Jesus, o trabalho e as boas ações são os únicos
meios de melhora social do indivíduo.
Compreendem as andanças de Nosso Senhor e São Pedro pela terra
também as narrativas sobre a importância da ajuda ao próximo. Destaco
desse grupo a narrativa “São Pedro, Jesus e o bêbado”13, na qual Jesus testa
a bondade dos homens atolando o jipe em que estavam e ficando à espera
de ajuda. Aparecem então alguns homens que iam trabalhar no campo, e
Pedro, muito esperançoso, comenta com Jesus: “Ó, Senhor, nós agora vai
desatolar o carro”. Mas Jesus explica que aquelas pessoas não perderiam
tempo para auxiliá-los, e é isso realmente o que acontece. Jesus então
comenta com Pedro: “Eu não disse? Amaldiçoado o homem que vende o dia pra
outro porque não sobra tempo pra nada, né?”. O segundo transeunte é um
bêbado que, muito disposto, os ajuda. Antecede a chegada do bêbado um
diálogo entre São Pedro e Jesus que muito esclarece a condição do santo
que, racionalizando os fatos, responde obedecendo à lógica das
probabilidades:

– Ó, Pedro, nós agora vai tirar o jipe da lagoa porque daqueles bebo sobra o tempo pra
tudo.
Pedro respondeu a Nosso Senhor:
– Ó, Senhor, os home que já era trabalhador não nos deu assistência pra tirar
o carro, aquele bebo vai querer fazer isso?
– Cala-te, Pedro, que tu não sabe o que é que tá dizendo. Aqueles têm um bom
coração e têm tempo pra sobrar.

Como pudemos perceber, São Pedro é representado em suas


limitações humanas que só têm sentido quando pensadas em oposição a
seu companheiro de viagem, que opera por meio de outra lógica. Desse
modo, é a condição divina de Jesus que lhe permite vislumbrar a realidade
sob um ângulo diferenciado e, portanto, ir além do entendimento de Pedro
acerca da situação. Nessas narrativas, a participação de São Pedro oscila
muito, mas, mesmo assim, poucas vezes ele consegue se destacar ou
conduzir a narrativa.
As narrativas sobre as surras de São Pedro são diferentes das
analisadas até o momento. Nelas, o discípulo tenta enganar o Mestre. Nos
contos desse tipo, quase sempre a justificativa da surra é o gosto de Pedro
pelo jogo, como podemos perceber na narrativa “São Pedro e Jesus e o jogo
de cartas”14. A fabulação articula-se a partir de um pedido de Pedro para se
hospedarem em uma casa de jogo. Jesus, mesmo a contragosto, aceita o
convite:

Esta é de Pedro e Jesus que só andavam pelo meio do mundo, né? Aí, quando foi um dia,
saíram. Aí Pedro gostava de jogo, e Jesus não gostava. Aí Jesus ia passando, era Pedro
na frente, Jesus atrás, né? Quando chegou assim, tinha a casa de jogo, um barzinho
assim, né, a casa de jogo. Aí Pedro disse:
– Jesus, vamos ficar aqui?
Aí Jesus disse:
– Não, Pedro, nós vai embora!
Aí Pedro:
– Não, Jesus, vamos ficar pela aqui.
Aí Jesus sabe de tudo, né, entende tudo. Ele viu que não dava certo aquilo ali,
mas disse:
– Nós vamos ficar.

Os hóspedes se acomodam juntos em uma esteira, no mesmo espaço


em que estão os jogadores. Em seguida, uma situação inusitada determina
a primeira surra em Pedro. Alguns jogadores começam a perder depois da
chegada dos hóspedes, aos quais atribuem a derrota: “Peraí, rapaz! Foi
depois que esses cara chegaram aqui que nós comecemos perder”. Os jogadores
decidem então surrar Pedro, que solicita a troca de lugar com Jesus na
tentativa de evitar uma futura surra, mas, mesmo trocando de posição,
apanha pela segunda vez. Como podemos perceber, a culpa de Pedro seria
relativa se não fosse sua malandragem quando, depois da primeira surra,
tenta trocar de lugar com Jesus sem alertá-lo para o perigo decorrente
disso.
Diferentemente do que aconteceria se o malandro fosse Malasartes,
Pedro é punido, e sua tentativa de esperteza é aniquilada pela “sabedoria”
de Jesus. Talvez isso ocorra por se tratar de Jesus, personagem que não é
logrado em nenhuma narrativa e que se mantém superior em todas as
situações. O cunho exemplar impera na narrativa, condenando o jogo e
também a malandragem que atenta contra a integridade do outro. Mais
uma vez, a semelhança com a facécia é apenas aparente, pois, sendo Jesus
a autoridade e Pedro o mais fraco, e de acordo com a lógica dos contos
faceciosos, este deveria vencer o Mestre – personagem mais forte – pela
astúcia. Mas o desfecho não é esse: a esperteza, a mentira e a ambição são
estratégias condenadas que fazem quase sempre o discípulo ficar com cara
de tolo.
Estamos, pois, diante de um personagem multifacetado, às vezes
esperto e, em outras, bobo, porém simpático e humanizado em todas as
representações. Trata-se de uma forma diferente de experienciar e
interpretar o fenômeno religioso que tende a aproximar os santos dos
homens sem, no entanto, tratá-los apenas como personagens fictícias.
Assim, as personagens não são postas em cena esvaziadas de seus
significados; ao contrário, os indivíduos, e por extensão a tradição, os
requisitam com seus atributos. Dessa forma, São Pedro figura com sua
função de chaveiro e sua fé contraditória, e Jesus, com sua liderança, sua
sabedoria e seu poder.
Nas narrativas do ciclo, a religiosidade assume um cunho
moralizante e exemplar, exaltando-se as normas de conduta e o respeito à
divindade, algumas vezes corporificada na figura de Jesus. Porém, elas se
deixam matizar pelo humor e aproximam-se da facécia, nas quais
prevalece o tom zombeteiro e provocador do riso. Os conteúdos
humorístico e religioso convivem em constante tensão no ciclo, pois o
humor opera um deslocamento no tratamento dos princípios religiosos e
redimensiona o caráter exemplar do texto. Já a presença do elemento
religioso limita o tom humorístico da narrativa, vedando algumas
construções consideradas ofensivas ao santo ou a Jesus. A comicidade é,
assim, filtrada por princípios morais e religiosos. Acredito que essa
operação resulta, em alguma medida, da movimentação e da fragmentação
do elemento religioso pelas redes de transmissão oral.
Mas a presença de São Pedro não está circunscrita ao plano ficcional:
ela também se estende às rezas e aos benditos, incluindo aqueles que
antecedem as excelências. Essa circunstância atesta a verdade atribuída à
atividade do santo, uma vez que tais textos são compreendidos como
pertencentes a um universo sagrado e, portanto, imbuídos de poder, sendo
evocados quando se almeja um contato com a divindade. Com relação às
orações durante o velório, acredita-se que elas sejam facilitadoras da
passagem da alma para o outro plano, como podemos perceber no
“Bendito de São Pedro”15 cantado para “abrir para as excelências”:

Meu Senhor, São Pedro,


Chaveiro do céu.
Vós me abra as porta
que eu não sou herege.
Vós me abra as porta,
abra sem demora,
que eu quero ir pro céu
mais Nossa Senhora.
Vós me abra as porta,
abra sem temor,
que eu quero ir pro céu
mais Nosso Senhor.
Vós me abra as porta,
abra com alegria,
que eu quero ir pro céu
mais a Virgem Maria.
Vós me abra as porta,
de manhã bem cedo,
que eu quero ir pro céu
mais Senhor São Pedro.

Rezo este bendito


a São Pedro e digo:
na vida e na morte
será minha guia.

Assim, São Pedro vai circulando em dois universos no imaginário


popular: um de cunho unicamente sagrado, nos benditos e rezas, e outro
mais profano e ficcional, nos contos e anedotas. Nos benditos, sua
importância é tão grande que nem a entrada da alma em companhia de
Nossa Senhora e de Nosso Senhor dispensa sua autorização. Já no caso dos
contos orais, que o trazem na função de chaveiro do céu, o que fica
evidenciado é sua sagacidade para conseguir o cargo e os esforços bem-
sucedidos de sujeitos que burlam sua vigilância para lá entrar.
Humanizado, São Pedro comparece quase sempre nessas narrativas entre
risos do contador e da plateia, o que acontece, às vezes, apenas com o
pronunciamento de seu nome.

1 Jerusa Pires Ferreira, “‘Quero que vá tudo pro inferno’: cultura popular e
indústria cultural”, Comunicação e Sociedade – Revista Semestral de Estudos de
Comunicação, São Paulo: Instituto Metodista de Ensino Superior, 1985, ano VII,
n. 13, pp. 7-8.
2 Cf. Vanusa Mascarenhas Santos, A inscrição da religiosidade popular em narrativas
do ciclo de São Pedro e Jesus s.f., dissertação (mestrado em letras) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador, 2007.
3 No Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo (Rio de Janeiro: Ediouro,
1969, p. 378), encontramos a seguinte definição no verbete “excelências”: “é um
canto entoado à cabeça dos moribundos ou dos mortos. Quanto ao vocábulo, é
aceito entre os estudiosos tanto a forma excelência quanto incelência, sendo esta
última a utilizada pelos cantadores e contadores orais”.
4 Mircea Eliade, O sagrado e o profano, São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 15.
5 Ria Lemaire, “Passado-presente e passado-perdido: transitar entre oralidade e
escrita”, Letterature d’America, Facoltà di Scienze Umanistiche dell’Università di
Roma, Roma: 2000, ano XXII, n. 92, p. 93.
6 Walter Ong, Oralidade e cultura escrita: a tecnologização da palavra, Campinas:
Papirus, 1998, p. 73.
7 Contado por José Quirino dos Santos (Neném Coimbra), 64 anos, natural de
Palmeiras, Piatã, Bahia, 11 de fevereiro de 2006.
8 Roberto Goto, Malandragem revisitada: uma leitura ideológica de “Dialética da
malandragem”, Campinas: Pontes, 1988, pp. 92-3.
9 Doralice Fernandes Xavier Alcoforado, A escritura e a voz, Salvador:
EGBA/Fundação das Artes, 1990, pp. 39-40.
10 Contado por Maria José Verônica da Silva, 56 anos, natural de Vitória, Espírito
Santo. ltarantim, Bahia, 23 de abril de 1991.
11 Georges Balandier, A desordem: elogio do movimento, Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1997, p. 35.
12 Contado por Valdivino Moreira da Silva, 75 anos, natural de Jacobina, Bahia.
Jenipapo, Jacobina, Bahia, 6 de janeiro de 1992.
13 Contado por Felipe Neri Oliveira Santos, 52 anos, natural da Fazenda Lagoa do
Xaré, Ipirá, Bahia. Fazenda Roça da Fazenda, Ipirá, Bahia, 25 de junho de
2006.
14 Contado por Maria da Conceição Lago Reis (Ceça), 30 anos, natural de
Jacobina, Bahia. Serrinha, Jacobina, Bahia, 5 de janeiro de 1992.
15 Cantado por Antônia da Luz (Dona Tonha). Pontilhão de Canavieira, Jacobina,
Bahia, 5 de janeiro de 1992. Cf. EBR 482.12 (Em Busca do Romanceiro – EBR é
um subprojeto do Programa de Estudo e Pesquisa da Literatura Popular do
Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia).
 
PROCESSOS
Cantar e contar histórias
BIA BEDRAN

Desde muito pequena, lembro-me de minha mãe ora na beira da cama do


meu quarto contando uma história, ora com o violão cantando modinhas e
toadas encantadoras que falavam de amor, jangadeiros, mar, passarinhos,
saudade, casinhas pequeninas, beira-rios, passarinho azulão, ingratos,
ingratas, finais felizes, solidão, anéis, viagens sem fim.
Acredito que essa primeira contadora de histórias, e também
cantadeira, que tive o privilégio de ter me alfabetizou em um mundo
imaginário infinito e singular, fomentando minha sede de leitura para
sempre antes mesmo que eu soubesse da existência das letras.
A exemplo do que Câmara Cascudo mostra ser o que acontecia no
Brasil Colônia, com suas amas contando histórias e acalentando as suas
crianças e as das sinhás, o material que me era passado por minha mãe foi
o primeiro “leite intelectual” que recebi.
A musicalidade profundamente brasileira do repertório de Wanda
Bedran, que também era educadora e diretora do Jardim de Infância
Angelus, nos anos 1950, deixou sua marca na minha precoce carreira de
compositora, iniciada aos 9 anos de idade.
Penso no quanto aquele rico e descompromissado momento
proporcionado por minha mãe era recheado de uma memória cultural de
sua infância nos anos 1920 e no quanto essa memória se transferiu para o
meu imaginário, contribuindo para a construção do potencial imaginativo
e criador que tenho hoje.
Logo em 1960, então com 5 anos, tive a chance e o privilégio de
escutar as maravilhosas narrativas da coleção Disquinho, criadas por
Carlos Alberto Ferreira Braga – Braguinha para os amigos e João de Barro
para o mundo artístico. Aquelas encantadoras narrações de contos
populares do Brasil, e também de clássicos da literatura infantojuvenil
mundial, eram entremeadas por músicas igualmente belas, que
pontuavam os momentos das histórias e as traziam mais oníricas e lúdicas
para dentro do coração.
A partir daí, não somente minha infância se enriqueceu e se
encantou com a arte de cantar e contar histórias, como também essa arte
sinalizou o caminho profissional que eu seguiria posteriormente.
Prossegui ouvindo e inventando histórias e canções na minha meninice, e,
mesmo antes de aprender a escrever, lembro-me de meus pais registrando
poemas e músicas que eu criava e não sabia ainda pôr no papel. Cabe aqui
a observação de que o dom de cada um, que se revela em alguma área do
viver de qualquer pessoa, é uma chancela que se carrega até o fim e
representa grande parte da caminhada do indivíduo, mas o exemplo e o
estímulo são os grandes responsáveis pela continuidade desse fazer.
Estamos vivendo um tempo em que a cena descrita anteriormente
(mãe ou pai, com ou sem livro na mão, contando histórias ou acalentando
o filho) está quase extinta dos lares de qualquer classe social brasileira,
cabendo ao educador muito da tarefa de “regar as plantinhas”. E tenho
absoluta certeza de que as crianças que participam continuamente de uma
roda de histórias adquirem uma memória sensorial do prazer que essa
experiência lhes oferece. Provavelmente, no futuro, essas crianças poderão
encarar páginas e mais páginas de livros embalados pelas boas lembranças
daquelas viagens literárias.
Costumo dizer, como se fosse um lema do meu trabalho artístico
como criadora musical e contadora de histórias para crianças, que o ato de
“ler e escrever histórias é fazer um bem; ouvi-las e contá-las, também”.
Assim como quando repito sempre “era uma vez, era outra vez, era sempre
uma vez”, ou quando canto “é bom cantar, é bom ouvir, é bom pensar, é bom
sentir”, procuro demonstrar quão perto habitam a palavra que se canta e a
palavra que se fala, pois elas desvelam sentidos múltiplos para cada pessoa
que as recebe.
“Olhar as coisas ao redor para crescer muito melhor/ Viajar dentro de si para
poder se descobrir”: quando compus essa canção, pensei em quanto a música
é importante na formação do indivíduo. Ela remete as pessoas, adultos e
crianças, a lugares, cheiros, lembranças; ao passado, ao futuro e a sonhos e
desejos.
A evolução do mundo sempre esteve ao lado do homem e de suas
descobertas sonoras: a construção de instrumentos que imitavam os sons
da natureza, as danças ritualísticas e curativas, os cantos coletivos e
individuais. Ainda no útero, a criança escuta sons orgânicos seus e da
própria mãe, de modo que esses ruídos são a primeira música que a
criança cria e ouve. As batidas do coração e sua pulsação contínua são o
tambor interno que a criança carrega consigo desde que é gerada. À
medida que a criança se desenvolve, ela vai recebendo gradativamente
mais e mais informações do mundo externo e escuta tudo o que a mídia
eletrônica em geral impõe, e o que essa mídia mostra tem muito pouco da
rica variedade de estímulos, formas e conteúdos que poderiam alimentar
seu crescimento interior.
A criança, indivíduo em formação, precisa escutar sonoridades
diversas e ter a chance de usar a voz, movimentar-se e expressar-se sobre
uma gama variada de gêneros musicais. Quanto maior a diversidade de
estilos e ritmos, mais rica será a experiência. As séries iniciais merecem
todo o ludismo das brincadeiras de roda, dos brinquedos cantados e das
canções das histórias populares. Eis a importância do trabalho de
musicalização na educação infantil e no ensino fundamental: a presença
da música na sala de aula compreendida de uma forma ampla, ou seja, o
trabalho com experiências rítmicas, ruídos, sons do próprio corpo, a
percepção auditiva, a movimentação corporal com canto coletivo e
individual e a sonorização dos contos, proporciona à criança chances de
ela se expressar e se posicionar no mundo que a cerca.
Essa é uma chave mágica que abre a porta da sensibilidade, ou, mais
ainda, da “inteligência sensível”, que gera a capacidade de adquirir
conhecimento somado à emoção e ao sentimento: sentir e entender. É uma
arte conjugar essas possibilidades em um mundo assustador que separa,
discrimina e subjuga o “ser” pelo “ter” ao instalar a necessidade do
consumo logo na infância, território sagrado do indivíduo aprendiz.
O contador de histórias revela aqui seu papel formador: a criança
nos primeiros anos de vida tem uma leitura parcial da narrativa,
percebendo mais o afeto presente naquele momento do que propriamente
o conteúdo do conto. Ela “lê” a voz do narrador, a musicalidade das
in lexões naturais do texto e principalmente a proximidade do outro.
Tempos depois, a criança apreenderá o conteúdo daquela história e
provavelmente se identificará com alguma personagem que tenha a ver
com algo dentro dela. Nesse momento de troca, fundamental nos dias de
hoje, os contadores de histórias conseguem prolongar a magia da infância
entregando à criança o exercício do pensamento e potencializando sua
capacidade imaginativa.
O canto é um poderoso aliado da narrativa. Uma pequena frase
musical é capaz de enfatizar conceitos e sublinhar sentidos. Não é
necessário ser um cantor profissional para utilizar o recurso da voz
cantada, assim como não precisamos ser atores para contar bem uma
história. A naturalidade com que se conta um episódio cotidiano deve ser
lembrada como estratégia principal na hora do desenvolvimento da
narrativa. Com o cantar acontece o mesmo: ele deve integrar-se à história
com a alegria e o despojamento que um simples cantarolar possui.
Minhas descobertas acerca do poder da música ao lado das
narrativas aconteceram profissionalmente na juventude, antes mesmo de
eu me tornar arte-educadora. Durante os anos 1970, minha mãe, suas
irmãs e primas (Wilma Martini Brandão, Wandirce Martini Wörhle, Maria
de Lourdes Martini e Maria José Martini Quintas) e eu mesma fundamos o
Quintal Teatro Infantil, inaugurado em 16 de setembro de 1973, em Niterói,
no Rio de Janeiro.
Ali, no nosso Quintal, pudemos experimentar linguagens cênicas
diversas, sempre buscando falar à infância, e nos revezávamos nas
inúmeras funções pertinentes ao mundo das artes cênicas, desde a
construção do próprio teatro em formato de arena até a confecção de
figurinos, cenários, bonecos e adereços; a criação dos textos e músicas; a
direção; a produção; a iluminação; o controle do borderô; a organização da
cantina (que se chamava A Casa do Sapo Guloso); enfim, de todos os passos
que pertencem a uma trupe teatral.
Então com quase 18 anos, eu tratava da direção musical dos
espetáculos, e tocávamos instrumentos de percussão, violão, acordeão,
lautas e objetos sonoros, como bacia com areia para obtermos o som da
água ou conchas e chaves enredadas por um fio, que produziam um efeito
mágico diante dos olhos encantados das crianças e dos adultos.
Os textos das peças infantis do Quintal eram de autoria de Maria de
Lourdes Martini (também diretora-geral do grupo), Wanda Martini
Bedran, Maria Mazzeti e Maria Arminda Aguiar. Dotados de uma enorme
brasilidade, evocavam situações rurais às vezes datadas de outras épocas, o
que favorecia minha pesquisa no cancioneiro do Brasil para que as nossas
interpretações tivessem mais vigor e mostrassem às crianças e seus pais
um mundo sonoro rico e diferenciado. Já se fazia presente então aquela
memória das modinhas, dos cordéis, dos romances e das estrofes rimadas
e ritmadas cantadas por minha mãe durante minha infância, e toda a
criação das canções para os espetáculos desabrochava fertilmente,
embebida da água daquela fonte inicial.
Durante os dez anos de duração do Quintal Teatro Infantil, a
presença do “narrador-cantador”, que atuava paralelamente ao
desenvolvimento das cenas, foi crescente e marcante. Muitas vezes, cabia
às nossas personagens distanciar-se de seus papéis para narrar o que tinha
acabado de acontecer, isto é, passávamos da interpretação em primeira
pessoa para a narrativa em terceira pessoa. A partir de então, comecei a
entender algumas características do processo narrativo e seu poder de
intercambiar a experiência com os ouvintes. Em todos os espetáculos
montados pelo Quintal Teatro Infantil, compus a trilha sonora de modo
que todos pudéssemos integrar nossas vozes, os instrumentos artesanais,
o corpo e o movimento à ação cênica. Quando cantávamos, era como se
fôssemos o coro grego que conta e descreve a cena que acontecerá ou que
acaba de acontecer.
No início dos anos 1980, o tempo do Quintal findou, e cada um de
nós seguiu suas escolhas profissionais e pessoais – eu já havia me decidido
plenamente pelo caminho da criação artística voltada para as crianças e
estava absolutamente imbricada na música e na narrativa de histórias.
Durante o processo de desenvolvimento das linguagens cênicas,
musicais e narrativas no Quintal, encontrei-me, em 1974, com dois jovens
músicos cariocas que também pesquisavam a música tradicional brasileira
e se interessavam pelo diálogo da linguagem musical com a infância:
Victor Larica e Ricardo Medeiros. Juntos, fundamos em 1977 um grupo
musical, chamado Bloco da Palhoça, Música para Brincar e Cantar. O
grupo fez uma fusão muito equilibrada da pesquisa do folclore com as
próprias composições. Fazíamos espetáculos para adultos e crianças em
praças, auditórios, pátios de escolas públicas e particulares, coretos de
cidades do interior, enfim, íamos descobrindo uma linguagem em que o
fazer artístico dialogava com a recriação de elementos do folclore ou da
tradição oral. Em nossas viagens para cidades do interior, nos estados do
Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, mesclávamos a pesquisa de
campo com as apresentações profissionais e cantávamos e tocávamos
grande parte do material recolhido em fontes bibliográficas e o que
ouvíamos e aprendíamos nas festas populares (ou folguedos, na
nomenclatura da época) por onde passávamos: folia de reis, congada, folia
do divino, caxambu, jongo, moçambique, catiras e rodas de cirandas.
Todas essas manifestações culturais mesclavam o espírito religioso com o
profano e nos entregavam um retrato sonoro, rítmico, melódico, visual,
coreográfico e histórico do nosso processo de mestiçagem, em que se
misturavam elementos das tradições portuguesas, indígenas e africanas.
Passamos a chamar nosso processo de pesquisa de “arquivo vivo”:
arquivo por causa dos registros ordenados de todo o material recolhido e
vivo pelo fato de vivenciarmos o referido material. O termo “arquivo vivo”
refere-se então à apreensão de diversas formas musicais tradicionais de
determinada comunidade através da troca de experiências e do tocar junto
aos cantadores, violeiros, sanfoneiros e percussionistas, levando nossos
instrumentos e permutando-os com os deles. O resultado dessa troca era
um arranjo musical criado espontaneamente, acrescido do que nós, como
músicos profissionais, adquirimos com o nosso trabalho e do que aquelas
pessoas nos ensinavam pela maneira intuitiva de tocar, dançar, cantar e
contar. O intercâmbio dessas experiências artísticas nos deixou um legado
rico de in luências culturais que pudemos transmitir posteriormente em
espaços cênicos e também no contexto de nossas práticas na área
educativa.
A exemplo do que a autora Ana Maria Machado chama de um
patrimônio cultural que em sucessivas pontes entre gerações vai se
modificando e ganhando novas vozes e tons, minha pesquisa junto ao
Bloco da Palhoça ganhou exatamente esse significado, o de recriar a
tradição oral tornando-a nossa maior fonte de inspiração na criação de
histórias e canções.
Em meio às apresentações musicais e teatrais, formei-me em
musicoterapia e fiz licenciatura em educação artística. Tornei-me
professora de educação musical e fui trabalhar em várias escolas,
procurando conjugar a arte de contar com a de cantar, tocar e criar para as
crianças. Com as crianças em sala de aula, pude observar o quanto a
música e a narrativa se completavam: os processos criativos, meus e das
crianças, geravam novos poemas, canções, histórias e dramatizações a
partir de matrizes e exemplos vindos da tradição oral, como brincadeiras,
parlendas, trava-línguas, adivinhações, contos populares, literatura de
cordel, enfim, todo o material que já pertencia à pesquisa que eu vinha
desenvolvendo anteriormente. Observei que as crianças tinham vontade
de recontar uma história ou canção que haviam acabado de ouvir, então eu
propunha atividades como a de transformar em maquetes o cenário
principal da narrativa ou registrar em desenhos e colagem suas principais
personagens. Depois, com o trabalho na mão, as crianças contavam a
história à sua maneira, acrescida de detalhes ou fazendo uma síntese
própria.
A pesquisa que realizei nos anos em que pertencia aos grupos
Quintal e Bloco da Palhoça se desdobrou em diversas abordagens na arte
de contar e cantar histórias, pois levei essa experiência para a televisão,
para o rádio, para o teatro e para a educação. Em todos os formatos e
suportes citados, lá estavam impressas as marcas da tradição oral na
escolha do repertório de contos, canções, brincadeiras, jogos,
adivinhações, brincadeiras de roda e cirandas. São canções que contam
histórias ou histórias que trazem canções ouvidas em outros tempos,
transmitidas oralmente, registradas na escrita literária ou musical e,
finalmente, gravadas a partir da possibilidade dos suportes eletrônicos.
Eram músicas para brincar e cantar, histórias para ouvir, contar, cantar e
sonhar.
Eu diria que a arte de cantar e contar histórias hoje se faz mais do
que nunca necessária exatamente porque, quando se dá – seja em um
contexto pedagógico, seja em uma roda informal de contos ou mesmo no
contexto do que chamamos de indústria do espetáculo –, o maravilhoso se
instala. O maravilhoso contém elementos e valores ancestrais que vêm
caminhando ao lado da existência humana em suas mais diversas culturas
e, quando um conto é narrado, as imagens saltam diretamente para a
imaginação criadora do ouvinte, seja ele criança ou adulto. É nesse
momento que o indivíduo realiza sua mais importante operação: a de
significar sua relação com o mundo.
Eu compus uma canção intitulada “Quem canta um conto” para
prestar homenagem a todos os que contam e cantam histórias,
promovendo o diálogo da memória com a imaginação nas viagens do
pensamento.
É com ela que encerro estas impressões de uma cantadeira que há
meio século tem a própria história imbricada na arte narrativa.

QUEM CANTA UM CONTO


Uma história bem inventada
E bem contada por ti
Vale a vida, vale a risada,
Vale a pena existir.
Quem canta um conto
Aumenta um ponto
Na trajetória de se conhecer
Através dos personagens
Que uma história traz pra você
São viagens do pensamento
Pelas imagens que a história contém
Sonhos através dos tempos
Movimentos que vão e vêm
Partitura da canção “Quem canta um conto”
Voz: vocalidades e sonoridades na contação de
histórias
DAIANE DORDETE

INTRODUÇÃO

Neste texto, elaboro re lexões sobre o processo técnico-criativo


desenvolvido na disciplina Voz IV, ministrada por mim no segundo
semestre de 2012 no curso de licenciatura em teatro, da Universidade do
Estado de Santa Catarina (Udesc), em Florianópolis. Nessa disciplina,
utilizei a contação de histórias como espaço lúdico e poético para a
pedagogia da voz e da musicalidade.

A HISTÓRIA DA MINHA HISTÓRIA

Para partilhar e analisar o processo pedagógico que norteia este


texto, preciso antes partilhar meu encontro com os contos. Em meu
percurso profissional, a contadora de histórias e a atriz não se separam
nem se abandonam. Iniciei minhas peripécias teatrais e narrativas ainda
no ensino médio, em Santa Catarina, com o grupo Bicicleta Amarela,
formado por estudantes do Colégio de Aplicação da Universidade da
Região de Joinville (Univille). O grupo era dirigido por Cléber Fabiano da
Silva, exímio professor e contador de histórias joinvilense e meu primeiro
parceiro de teatro e narrativas. Cléber, Fábio Henrique Nunes (hoje ainda
colega de pesquisa e arte e um dos talentosos organizadores deste livro) e
eu, além de outros colegas, pedalamos juntos em minhas primeiras
estradas da contação de histórias.
Os anos se passaram e novas parcerias surgiram. Com a Faunos Cia.
Teatral, companhia joinvilense que atuou entre os anos de 2002 e 2010,
fiquei oito anos em cartaz com espetáculos de contação de histórias
conduzidos pelas personagens-narradoras Fada Flora e Horrorosimba.
Minha personagem, Horrorosimba, era uma aprendiz de bruxa
atrapalhada, com a pele amarela e a roupa azul. Além das histórias que as
duas narravam, elas perpassavam as narrativas com as próprias peripécias
vividas no “Mundo das Histórias”, lugar de origem das peraltas.
Meu último trabalho como contadora de histórias deu-se entre 2010
e 2011, com o grupo Borbagato Teatro&Música, criado com meu esposo e
companheiro de vida artística, Cleiton Jacobs. Nesse trabalho, resolvi abrir
mão da personagem-narradora e explorar mais a musicalidade da
narração de histórias. Assim, contamos histórias cantadas, musicadas e
envoltas em sonoridades diversas.
Com nossa mudança de Joinville para Florianópolis, Borbagato está
adormecido por enquanto. Porém, essa última experiência me motivou a
trabalhar a contação de histórias e os aspectos da musicalidade da voz e da
cena em uma das disciplinas que ministro no curso de licenciatura em
teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).
Em uma das quatro disciplinas de voz cursadas pelos alunos, o
conteúdo é voltado para os aspectos pedagógicos do trabalho vocal e da
musicalidade no teatro. Assim, em 2011 e em 2012 trabalhei com as turmas
dessa disciplina os aspectos técnicos e expressivos do trabalho vocal e da
educação musical por meio de jogos e exercícios, e a contação de histórias
foi o campo de investigação artística escolhido para o desenvolvimento
desse trabalho. Ao término do semestre letivo, os alunos apresentaram
cenas de contação de histórias voltadas para os mais diversos públicos.

ANTES DO SOM, O SILÊNCIO E A ESCUTA

O narrador ou narradora de histórias utiliza seu corpo-voz como


material primordial para a criação de imagens e sensações que permeiam
toda a narrativa. Do mais espontâneo contador de histórias ao mais
profissional, as vocalidades1 e corporeidades2 apresentadas intuitiva ou
conscientemente na narração conduzem o público a imagens e sensações
diversas. Apesar de meu foco central neste texto ser a voz, é importante
ressaltar que corpo e voz são um corpo integrado, e a voz pode ser
considerada uma extensão do próprio corpo no espaço.
Eugênio Tadeu Pereira assim define a voz: “A voz é constituída no
corpo. Ela é efêmera, impalpável e intangível, porém é um fenômeno físico
que produz uma vibração no sujeito que a emite e naquele que a escuta,
afetando a ambos. Ela é uma manifestação sonora moldada em palavras,
cantos ou diferentes sonoridades”3.
Como atriz, contadora de histórias e professora, penso que tanto no
teatro como na contação de histórias, antes de se trabalhar em um texto ou
narrativa, é necessário trabalhar a voz, o que significa, primeiramente,
aprender a ouvir a si e aos outros. Perceber os sons e sua materialidade
física como frequências com intensidades, duração, direcionalidades e
timbres específicos que percorrem o espaço e tocam os corpos é
fundamental para o trabalho vocal e musical nas artes performativas4.
No texto “Escutatória”5, Rubem Alves fala da importância de
aprender também a ouvir, e não somente a falar. É necessário silenciar
para ouvir verdadeiramente algo, deixar esse algo – som, voz, ruído,
palavra etc. – ser significativo: “Não basta o silêncio de fora. É preciso
silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio
dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia”6. Para a produção de
som – nesse caso, a voz –, é de suma importância conhecer e reconhecer
sonoridades diversas e saber controlar seus parâmetros de acordo com o
objetivo da produção.
Assim, iniciei as aulas na Udesc com jogos7 de sensibilização
auditiva e escuta e percepção sonoro-vocal. Os alunos trabalharam
individualmente, em duplas e em grupos para perceber os sons do
ambiente (interno e externo), às vezes com itinerâncias pela universidade.
Realizei também jogos de manipulação vocal8 e de estímulos sensoriais
diversos, nos quais um aluno reagia corporalmente aos sons vocais ou
estímulos sensoriais produzidos por outro. A partir desses estímulos e
percepções, eles criaram em grupos improvisações de ambiências
sonoras9, cenas a princípio sem palavras, baseadas nas dramaturgias10
sonoro-vocal e corporal. Foram realizadas ainda improvisações vocais11
coletivas e instantâneas, em círculos, a partir de imagens e sensações
sugeridas por mim (tempestade, dia de sol, tristeza) e que teciam uma
narrativa sonoro-vocal, iniciando com poucos e suaves sons, chegando a
um clímax de fortes intensidades e sonoridades sobrepostas, suavizando
gradativamente a quantidade e a intensidade de sons até restar apenas
silêncio.
Desse modo, começamos o trabalho com uma estrutura narrativa
tradicional nas próprias improvisações de ambiência sonora, construindo
uma sequência de início, desenvolvimento de ações, clímax (ação
principal) e desfecho.

VOZES E SONS NO ESPAÇO: TREINAMENTO

Para o contador de histórias, porta-voz de imagens visuais e sonoras


– de palavras, objetos, corpos, sons e vozes –, a voz se configura como o
sopro inicial da narrativa oral.
Paul Zumthor distingue voz de palavra atribuindo à voz poder de
comunicação e expressão anterior à palavra: “Anterior a toda
diferenciação, indizibilidade apta a se revestir de linguagem, a voz é uma
coisa: descrevem-se suas qualidades materiais, o tom, o timbre, o alcance, a
altura, o registro […] e a cada uma delas o costume liga um valor
simbólico”12. E o autor continua a explicar: “Chamo aqui palavra a
linguagem vocalizada, realizada fonicamente na emissão da voz”13.
Mesmo tendo em vista a distinção feita pelo autor, é importante
entender que, para o contador de histórias, ambas as instâncias de
produção vocal são importantes: vocalidades e palavras povoam a partilha
de narrativas com o público.
Visando estimular o potencial técnico-criativo14 dos alunos no
trabalho vocal (de vocalidades e palavras) e sonoro e iniciá-los na arte de
contar histórias, desenvolvi diversos exercícios e jogos ao longo do
semestre, além de ter realizado leituras programadas e discussões de
textos. Também assistimos a vídeos de espetáculos de contação de
histórias, e alguns alunos ainda conseguiram frequentar espetáculos
narrativos em cartaz no período.
No trabalho técnico-criativo da voz, continuamos o treinamento que
eu vinha desenvolvendo com as turmas nos semestres anteriores.
Realizamos exercícios e jogos com foco em alinhamento corporal e
equilíbrio da distribuição de tensões, aquecimento e desaquecimento
corporal e vocal, desenvolvimento do potencial e controle respiratório,
apoio diafragmático (respiratório e vocal), articulação, controle dos
parâmetros da produção vocal15 (intensidade, frequência, timbre e
ressonância, duração e direcionalidade no espaço), elementos rítmicos
(tempo, contratempo, andamento, divisões rítmicas, pausa e acento) e,
finalmente, jogos para trabalhar os recursos vocais na relação com a
palavra (pausas, ênfases, curvas melódicas, entonações e ritmo) e com as
ações vocais16.
Sempre inicio as aulas de voz com exercícios de educação somática17
para o trabalho vocal ser realizado de modo consciente e sem prejuízos à
saúde dos alunos. Desse modo, focamos no alinhamento ósseo e na correta
distribuição de tensões antes de iniciar o aquecimento corporal e vocal. No
trabalho muscular, procuro desenvolver a percepção dos alunos para o
prejuízo causado à produção vocal pelas tensões acumuladas
principalmente nas regiões mais próximas à laringe, como pescoço,
ombros, trapézio, peito e face. Essas tensões acabam por se expandir à
musculatura externa e intrínseca da laringe, dificultando a passagem de ar
e, consequentemente, a produção vocal de qualidade, ou seja, produzida
sem esforço e com controle do emissor.
No aquecimento corporal, busco integrar corpo e voz nos jogos e
exercícios, que visam à soltura muscular, à lexibilidade, à amplitude
articular e ao aumento das funções cardiovascular e pulmonar. Ao mesmo
tempo que jogam corporalmente com os colegas e com o espaço, os alunos
realizam exercícios vocais que promovem a abertura da laringe para uma
passagem mais adequada do ar, o que fará as pregas vocais vibrarem para
a produção da voz18.
Também foram realizados exercícios para ajustar e ampliar o
potencial respiratório, principalmente o tempo e o controle da expiração e
da transformação do ar em som (voz), assim como exercícios para ativar e
treinar a musculatura do apoio respiratório e vocal19. Existem várias
técnicas de apoio muscular para o trabalho vocal, porém todas se
concentram na musculatura costo-diafragmático-abdominal, que
compreende músculos intercostais (que revestem as costelas lutuantes),
diafragma (músculo que separa as cavidades torácica e abdominal),
músculos abdominais (reto, transversos e oblíquos) e, por vezes, o assoalho
pélvico. Esse apoio muscular diminui a pressão na região laríngea,
composta por musculaturas muito menores, facilitando, assim, a produção
vocal saudável com qualidade e controle da voz.
Durante o aquecimento vocal, e concomitantemente ao
aquecimento corporal, realizamos ainda exercícios de contato das pregas
vocais (vibrações sonorizadas de lábios e língua) para tonificação das
pregas vocais, eliminação de excesso de secreções e aumento da qualidade
e extensão vocal (alcance tonal); exercícios de ressonância para exploração
das cavidades ressonadoras do corpo (pulmão, brônquios, traqueia,
laringe, faringe, cavidade oral, cavidade nasal e seios paranasais ou faciais)
e ampliação da qualidade tímbrica; exercícios de articulação (mobilizando
os articuladores diretos da fala e a musculatura que os forma e envolve:
maxilar, língua, lábios e palato mole); e, por fim, exercícios de projeção
vocal20 (controle de intensidade, ressonância e direção da voz no espaço).
Outros exercícios e jogos realizados no decorrer das aulas visaram
desenvolver o controle de alterações de frequência (tom e altura – grave,
médio, agudo) e timbre (ressonância) na criação de personagens e na
relação com a palavra (falada e cantada); de elementos rítmicos no
trabalho de corpo-voz na cena narrativa; de recursos vocais na criação de
sentido com a palavra em cena (pausas, ênfases, curvas melódicas,
entonações e ritmo); de ações vocais (empurrar, torcer, acariciar, rasgar,
lutuar etc.); e, finalmente, de elementos do canto e da música (como
afinação, escuta, ritmo, melodia, harmonia e técnicas de canto coletivo tais
quais os cânones e os intervalos entre grupos vocais).
É importante lembrar que a realização desses jogos e exercícios foi
sistemática. Assim, os princípios técnicos do trabalho vocal descritos aqui
foram trabalhados com maior aprofundamento. Desse modo, supondo e
percebendo nos alunos a internalização21 desses princípios, o treinamento
vocal visou manter e aprofundar a técnica através de jogos e exercícios que
retomaram aspectos já trabalhados nos semestres anteriores, e muitas
vezes abordados no próprio aquecimento corporal e vocal que precedia os
jogos de improvisação com narração de histórias. Outro fator importante é
que os alunos tiveram como uma das atividades avaliativas a aplicação
prática de um aquecimento corpóreo-vocal para a turma, com prévia
elaboração de um plano de aula. Cada aluno ou dupla de alunos ficou
responsável pelo aquecimento em uma aula, realizando de vinte a trinta
minutos de atividades, nas quais eles também cumpriram o conteúdo aqui
apontado, aplicando e reinventando propostas aprendidas e pesquisadas
em fontes diversas (aulas, oficinas, videografia e bibliografia).

CONTAR ALGO PARA ALGUÉM: O OLHAR E A PARTILHA DE EXPERIÊNCIAS

Iniciei o trabalho específico de introdução à contação de histórias


com o elemento que julgo mais importante para um bom narrador: o olhar.
Quem conta algo o conta para alguém ou para muitos “alguéns”. O vínculo
do narrador com o público é essencial, e esse é um elemento característico
da contação de histórias. Como nem todo espetáculo teatral exige esse
vínculo (que, no teatro, se chama quebra da quarta parede22), muitas vezes os
alunos-atores ainda encontram dificuldade nesse vínculo de olhares –
como qualquer iniciante na arte de narrar histórias. Essa dificuldade,
porém, não foi uma grande barreira no desenvolvimento desse trabalho,
visto que os alunos já haviam experienciado em outras disciplinas essa
partilha entre cena e audiência.
Assim, em todos os exercícios e jogos vocais desenvolvidos procurei
destacar a situação lúdica do jogo (do relacionar-se com) e,
consequentemente, do olhar. Em duplas ou em grupos pequenos ou
grandes, mesmo ainda nos momentos de aquecimento corpóreo-vocal, os
alunos já se colocavam em situação de jogo, olhando e relacionando-se
com seus colegas no desenvolvimento das práticas. Desse modo,
iniciávamos o vínculo entre a ação (fazer algo, como contar uma história) e
o olhar (para quem eu mostro a minha ação ou conto a minha história), o
que continuou sendo desenvolvido posteriormente nos jogos e
improvisações de cenas de contação de histórias.
Contar uma história é partilhar uma experiência vivida, aprendida,
observada, lida ou ouvida. Jorge Larrosa Bondía diz que “A experiência é o
que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. […] A cada dia se passam
muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos acontece”23. O
autor então cita o conhecido texto de Walter Benjamin, “O narrador”24, e
diz: “Walter Benjamin, em um texto célebre, já observava a pobreza de
experiências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passaram tantas
coisas, mas a experiência é cada vez mais rara”25.
Mas o que a experiência, o olhar e a partilha têm a ver com a
contação de histórias? A resposta é: tudo. Segundo Bondía, a experiência é
algo vivido, observado, ouvido etc. que se tornou significativo para alguém
por algum motivo. Há uma identificação do sujeito com o acontecimento
para este se tornar uma experiência. A contação de histórias é uma partilha
de narrativas que, em sua genealogia, surge como uma partilha de
experiências (reais ou inventadas) para a manutenção da cultura oral e dos
costumes e para a troca de desejos, conselhos e experiências. Benjamin
afirma: “O narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada.
E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história”26.
Zumthor complementa esse pensamento quando diz: “O conto, para
aquele que o narra (como a canção para aquele que a canta), constitui a
realização simbólica de um desejo; a identidade virtual que, na experiência
da palavra, se estabelece um instante entre o narrador, o herói e o
ouvinte”27.
Assim, para que uma história contada seja significativa para quem a
ouve (e vê e experiencia), é preciso antes que ela seja significativa para
quem a narra. Acredito muito nessa premissa, pois, no cotidiano, só
partilhamos o que temos e só temos o que nos interessa – seja algo
concreto ou abstrato.
Com esse pensamento, iniciamos os jogos e improvisações de
contação de histórias como método para os alunos integrarem a produção
vocal e a musicalidade na linguagem narrativa, trabalhando a partir de
suas experiências e memórias reais e inventadas no ato criativo. Na
metade do semestre, solicitei que os alunos se dividissem em grupos
pequenos (de duas ou três pessoas) e pesquisassem contos (da literatura ou
da cultura oral) até que chegassem a um consenso para a criação da cena
final, que foi trabalhada apenas no último mês de aula. A única regra era: a
história, independentemente do público-alvo (faixa etária), deveria ser
significativa para eles, estabelecendo, assim, relações com suas
experiências pessoais.
A CRIAÇÃO SONORO-VOCAL NA NARRAÇÃO DE HISTÓRIAS:
RECURSOS VOCAIS E AMBIÊNCIAS SONORAS

Geo f Fox e Gilka Girardello afirmam:

Não existe um único jeito de ser um bom contador de histórias. Cada um de


nós tem seu estilo pessoal, em termos das histórias que escolhe e da maneira
de contá-las. É possível ajudar os contadores dando retorno sobre o que
funciona e o que não funciona na narração, mas essencialmente o contador
principiante deveria ser auxiliado a desenvolver uma “voz” individual, seu
modo de contar histórias28.

Desse modo, as improvisações29 de narração de histórias foram


iniciadas com jogos que enfatizavam a materialidade sonora da voz e seus
recursos na oralidade, além do vínculo com o público por meio do olhar. Os
alunos participaram de jogos coletivos com momentos de ação individual,
podendo, assim, tanto sozinhos como em grupo, investigar o que Fox e
Girardello chamaram de voz individual, ou seja, seus modos de contar
histórias.
Muitas das premissas que a inglesa Marie Shedlock30, pioneira na
publicação de textos sobre contação de histórias, aponta são elementos
essenciais também do treinamento e do trabalho do ator. Desse modo, a
luência verbal na improvisação do texto (mesmo com roteiro conhecido),
a atenção para o início e o final das cenas, o corpo-voz do narrador e os
elementos de cena já são preocupações presentes no cotidiano das práticas
dos alunos de teatro – premissas essas que também receberam atenção nos
jogos e improvisações de contação de histórias que os alunos realizaram
nesse processo.
Em grandes grupos, fizemos algumas rodas de improvisação, que
chamo de rodas de história inventada, nas quais os alunos, após uma
explicação sobre as estruturas narrativas tradicionais31, tinham a tarefa de
criar instantaneamente uma história coletiva na qual cada um contribuiria
com um trecho da narrativa. A estrutura básica de início (situação inicial:
ambiente, apresentação das personagens principais, con lito do
protagonista), desenvolvimento de ações (acontecimentos, percursos,
personagens antagonistas ou auxiliares), clímax (ação principal) e
desfecho (resolução dos con litos) era distribuída a subgrupos de alunos
que, sem combinar nada previamente, precisavam estar atentos às
informações dadas pelos narradores predecessores para que pudessem
continuar a narrativa com coesão e coerência. Essas rodas de história
cumprem não só a função de criar a intimidade do aluno com uma
estrutura narrativa tradicional como também a de treinar a luência verbal
( luxo de linguagem criativa sem vícios32), a relação de olhar com os
espectadores, a criatividade e a memória, já que esta última é “a
capacidade épica por excelência”33. Em algumas dessas rodas, os alunos
que não estavam em seu momento de narração tinham a função de criar as
ambiências sonoras ou músicas para a narrativa que estava sendo
inventada e contada, com instrumentos musicais dispostos no centro do
círculo, além de também utilizar a voz e a percussão corporal para essa
dramaturgia.
Outros jogos e improvisações de contação de histórias que realizei
com os alunos não utilizaram, de imediato, a língua portuguesa ou
qualquer outro idioma conhecido para a narração da história.
Continuamos com foco no vínculo com o público por meio do olhar, na
criação dos elementos e jogos de cena (cenografia, adereços, figurinos,
iluminação, caracterização, jogo dos atores) e na criação de ambiências
sonoras, músicas e dramaturgias corpóreo-vocais para as narrativas.
Entretanto, trabalhamos muito nesses jogos com o grammelot34 ou
blablação35 para treinar os recursos vocais sem a preocupação com a
luência verbal em um texto inventado instantaneamente. Esse
procedimento permitiu aos alunos perceber como as entonações, as
pausas, as ênfases, as curvas melódicas, os ritmos e as vocalidades geram
sentidos e coerência na comunicação, mesmo sem a presença da palavra
inteligível. Em alguns desses jogos, pequenos grupos de alunos definiam
um roteiro prévio para a cena; já em outros, a improvisação era
instantânea, sem tempo para preparações.
Nas últimas quatro aulas antes da prova pública (apresentação das
cenas de contação de histórias para o público em geral), já com os grupos
de trabalho e os contos definidos, focalizamos na preparação das cenas
narrativas para o fechamento da disciplina. Além dos ensaios em sala de
aula, os alunos ficaram encarregados de se encontrar em outros momentos
para a escolha e preparação dos materiais de cena, além de aprimorar suas
próprias atuações a partir das indicações dadas em sala.
Como professora mediadora nesse processo, introduzi aos alunos os
princípios básicos da narração de histórias e continuei o treinamento vocal
e musical técnico-criativo aplicado às cenas narrativas. Supervisionei os
ensaios dos grupos e dei retorno sobre as criações nos ensaios gerais,
sempre procurando deixar espaço para que eles encontrassem suas vozes
narrativas, seus modos de contar histórias, ou seja, para que desenvolvessem
as próprias poéticas.
Assim, todos os grupos partiram das mesmas premissas descritas
até então neste texto, mas cada conto escolhido e cada cena narrativa
criada apresentaram especificidades que revelaram a criação de diferentes
linguagens nos grupos. No que diz respeito à voz e à musicalidade, todos
trabalharam com foco na criação de vocalidades, na exploração dos
recursos vocais no texto e na presença da musicalidade em cena com
ambiências sonoras, canções ou músicas. Alguns grupos optaram pelo
trabalho com a oratura36, roteirizando os textos e recriando-os com as
próprias palavras a cada ensaio-apresentação. Outros preferiram decorá-
lo. Cada grupo apresentou uma criação única, potente e envolvente,
conforme comprovou a apreciação do público que lotou o Espaço 137 nas
duas horas de prova pública realizada em 29 de novembro de 2012.
Para a prova, reunimos dez cenas com 27 alunos. Elaborei o roteiro
das apresentações de acordo com o público-alvo definido por eles em cada
criação, iniciando com as cenas voltadas para o público infantil e
encerrando com cenas para o público adulto. Tivemos um único ensaio
geral com todos os alunos no espaço da prova no dia mesmo das
apresentações e treinamos as transições nas entradas e saídas de cena.
Após o término da prova, a conversa com o retorno sobre a
apresentação dos trabalhos ficou agendada para a última aula do semestre.
Nesse dia, relembramos todo o processo e conversamos sobre os
resultados.

CONSIDERAÇÕES SOBRE O (E EM) PROCESSO


Das dez cenas criadas, apenas três apresentaram problemas
relevantes, que foram gerados pela falta de ensaio com os materiais
escolhidos para as cenas, inclusive com o próprio texto.
Um dos grupos já havia definido algum tempo antes que criaria um
jogo com tintas em cena, para trabalhar a obra Flicts, de Ziraldo. Contudo,
em nenhuma das aulas as integrantes do grupo levaram as tintas, alegando
dificuldade no transporte dos materiais. As alunas também não decoraram
o texto com precisão e persistência para internalizá-lo. A falta de treino
com as tintas deixou o jogo de cena sem ritmo e repetitivo, além de criar
uma enorme sujeira que transbordou do pequeno forro que elas
planejaram para a ação. Isso atrapalhou a transição de cena, visto que
muitos alunos tiveram de correr para arrumar materiais a fim de limpar o
local. Já a falta de domínio e internalização do texto as deixou inseguras,
fazendo-as até mesmo evitar olhar para o público. Na conversa final da
última aula, a conclusão das próprias alunas foi que a falta de treino e de
ensaio prejudicou o trabalho. A cena ficou boa, e o trabalho vocal,
satisfatório, porém a ideia foi muito mais interessante do que a
concretização, e a partilha da narrativa como uma experiência significativa
ficou comprometida.
Já o segundo grupo em questão criou uma cena original e
envolvente, trazendo o público para um pequeno espaço no centro da cena
onde todos ficaram muito próximos para vivenciar a narração de Corujas,
uma adaptação do conto homônimo de Caio Fernando Abreu. A ambiência
sonora e as vozes narradoras estavam ótimas, até que o grupo começou a
jogar punhados de penas de galinha e de ganso sobre o público. O
problema também foi a falta de ensaio com o material, visto que foi uma
ideia de última hora e eles não imaginaram que as penas, por serem
pequenas, começariam a gerar espirros e até mesmo falta de ar em
espectadores alérgicos. A questão poderia ter sido resolvida com penas
maiores, sem penugens, se eles tivessem testado esse material em um
ensaio anterior.
A última cena que apresentou um problema significativo foi criada a
partir de contos eróticos anônimos de revistas voltadas para o público
homossexual masculino e pecou por um erro conceitual. Nos ensaios em
aula, os alunos fizeram algumas experimentações da cena lendo os contos.
Como já havíamos discutido em sala as especificidades da narração de
histórias e sobre a diferença entre ler e contar um conto, novamente os
adverti sobre essa questão. No entanto, o grupo não ensaiou o suficiente
para memorizar o conto principal, que conduzia toda a cena, e
transformou a contação de histórias em uma leitura dramatizada de
histórias. A cena foi muito criativa, tinha um tema original e cativou até
mesmo o público mais pudico. Mas, como afirma enfaticamente Estrella
Ortiz: “Contar um conto não é ler um conto”38. Na conversa final sobre a
prova, a dupla percebeu e admitiu o equívoco.
Algo interessante no processo de percepção de erros e acertos foi que a
maioria dos grupos se sentiu motivada a continuar com as cenas criadas,
planejando apresentações em outros espaços e até mesmo algumas
melhorias nas cenas. Com diversas linguagens e voltadas para diferentes
públicos-alvo, as cenas de contação de histórias cativaram, em primeiro
lugar, quem mais interessava: os próprios alunos-atores-narradores. Pela
natureza do processo pedagógico da disciplina, não foi possível realizar
outras apresentações das cenas naquele semestre. Entretanto, o interesse
dos alunos em continuar com o trabalho re lete a identificação com ele e o
desejo de aprimoramento.
Shedlock diz:

O hábito de darmos o melhor de nós a cada vez [que contamos uma história]
significa em longo prazo que nosso interesse será prepararmos a melhor
narração possível, e que as histórias, apesar de poucas, serão estilisticamente
polidas e bem acabadas, capazes de ter efeito incalculável sobre quem as
ouvir39.

Assim, como meu objetivo nesse processo foi fazer que os alunos
internalizassem em seus corpos-memória princípios técnico-criativos do
trabalho vocal e sonoro, além de princípios da contação de histórias, não
me ative a lapidar suas cenas finais, mas a treiná-los e supervisionar suas
criações. Creio que essa abordagem tenha sido muito válida, por valorizar
o processo de ensino-aprendizagem com vistas a instrumentalizar os
alunos para novos processos pedagógico-criativos. Nas re lexões finais,
muitos comentaram essa questão, e as próprias cenas me deixaram muito
satisfeita por apresentarem, em sua maioria, esses princípios
internalizados.
Um ponto importante para encerrar as re lexões deste texto diz
respeito ao espaço de trabalho e à projeção vocal dos alunos. Como
comentado anteriormente, a projeção vocal é o controle da intensidade
(volume) e ressonância da voz, além de sua direcionalidade no espaço.
Dependendo da acústica do espaço e do ponto da emissão vocal, a
vocalidade é alterada e pode criar impressões diferentes das desejadas ou
até mesmo tornar-se inaudível. Em espaços abertos, com eco ou sem
qualidade acústica, faz-se necessário diminuir o andamento (velocidade)
da fala, enfatizar a articulação das palavras e aumentar a intensidade da
voz – o que gerará uma consequente demanda de um maior apoio
respiratório e vocal – para uma projeção vocal eficaz.
Desde o início do processo, trabalhamos em uma sala-padrão de
aulas práticas, com boa acústica. A projeção vocal criada pelos alunos pôde
ser mantida também no espaço de apresentação, que tinha um público
médio de cinquenta pessoas. Contudo, se o espaço fosse semiaberto ou
totalmente aberto, ou se tivesse um teto muito alto que dificultasse a
projeção do som, todo o trabalho vocal e sonoro teria de ser repensado,
desde os ensaios. Essa é uma questão muito importante para o contador de
histórias, pois todo um exímio trabalho de voz, com variadas vocalidades e
recursos empregados na relação com a palavra e com a cena, e uma
minuciosa pesquisa sonora e de projeção do som podem ser perdidos ou
devem ser repensados em virtude do espaço. Shedlock afirma
categoricamente: “Estou tão profundamente convencida do caráter
miniaturístico da arte da narração de histórias que acredito ser impossível
fazer uma apresentação perfeita desse tipo em um enorme salão ou diante
de um público muito grande”40. A amplificação da voz e do som pelo uso de
microfones é outro tema de discussão que não cabe neste texto, mas posso
afirmar: ela altera completamente a produção e a percepção da voz e da
cena.

1 Diferentes qualidades vocais, geradoras de sensações, impressões e sentidos


diversos.
2 Diferentes qualidades corporais, geradoras de sensações, impressões e
sentidos diversos.
3 Eugênio Tadeu Pereira, Práticas lúdicas na formação vocal em teatro, 248f., tese
(doutorado em comunicação e artes) – Universidade de São Paulo, São Paulo,
2012, p. 55.
4 As artes performativas são aquelas que ocorrem como eventos ao vivo e com
uma duração determinada. Podemos considerá-las até mesmo uma nova
terminologia para designar as artes cênicas, incluindo novas manifestações
artísticas. Nas artes performativas, podem ser incluídos teatro, circo, dança,
arte da performance, intervenções, música, ópera, contação de histórias e
qualquer ação artística ao vivo. O termo surge na década de 1960, quando o
movimento das live arts (artes ao vivo) começa a se estabelecer. Cf. Renato
Cohen, Performance como linguagem, São Paulo: Perspectiva, 2002, e Marvin
Carlson, Performance: uma introdução crítica, Belo Horizonte: UFMG, 2010.
5 Rubem Alves, “Escutatória”, Correio Popular, Campinas: 9 abr. 1999. Disponível
em: <www.rubemalves.com.br/site/10mais_03.php>. Acesso em: set. 2014.
6 Ibidem.
7 Há muitos estudos e conceitos para o termo “jogo”. Em resumo, é uma
atividade livre e volitiva, com regras determinadas e em um espaço-tempo
específico no qual os sujeitos atuam ativamente. Cf. Eugênio Tadeu Pereira,
op. cit.
8 A descrição desse jogo está disponível ao final do texto.
9 Composições sonoras (com voz ou outras fontes) que criam e estimulam a
percepção de sensações e ações tanto na criação como na recepção da cena. Cf.
verbete “Ambiência sonora” na página 423 deste livro.
10 O conceito de dramaturgia enquanto texto literário escrito para a
representação se expande a partir da década de 1970. Todos os elementos de
um espetáculo passam a ser considerados textos, pois geram leituras
(sentidos), tanto em conjunto como isoladamente. Assim, termos como
“dramaturgia do ator”, “dramaturgia do movimento”, “dramaturgia sonora”
etc. vêm sendo amplamente investigados e discutidos. Cf. Eugenio Barba,
Queimar a casa: origens de um diretor, São Paulo: Perspectiva, 2010, e Marco De
Marinis (org.), Dramaturgia dell’atore, Bologna: I Quaderni del Battello Ebbro,
1996.
11 Esse jogo foi baseado na vivência que tive na oficina “O canto harmônico na
prática do ator”, ministrada pelo ator italiano Massimiliano Buldrini nos dias
29 e 30 de junho de 2012 no Centro de Artes da Udesc. A oficina foi promovida
pelo 6o FITA Floripa – Festival Internacional de Teatro de Animação.
12 Paul Zumthor, Introdução à poesia oral, Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 9.
13 Ibidem, p. 11.
14 O foco desses exercícios e jogos é o desenvolvimento da técnica vocal, porém
adotei essa terminologia porque muitas vezes eles demandam criação e
criatividade por parte do aluno-jogador.
15 Há diferentes conceitos e nomenclaturas para os elementos da produção
vocal. Lúcia Helena Gayotto diz em Voz: partitura da ação (São Paulo: Plexus,
2002, p. 20): “Recursos vocais, entendidos como tudo o que se dispõe para falar,
compreendem: os recursos primários da voz – respiração, intensidade,
frequência, ressonância, articulação; os recursos resultantes, que são dinâmicas
da voz – projeção, volume, ritmo, velocidade, cadência, entonação, luência,
duração, pausa e ênfase”. Já César Lignelli, em Sons e cenas: apreensão e produção
de sentido a partir da dimensão acústica (350f., tese [doutorado em educação] –
Universidade de Brasília, Brasília, 2011), apresenta os parâmetros do som
como características presentes em toda produção sonora e também atribui
esses parâmetros à produção vocal (intensidade, frequência, duração, timbre,
ritmo, reverberação, contorno, direcionalidade, ruído e silêncio). Os recursos
que Gayotto chama de resultantes, como entonação, pausa e ênfase, seriam
para Lignelli decorrência das atitudes e intenções do falante, gerando
diferentes vocalidades. Optei por uma divisão própria dessas características,
de acordo com o trabalho desenvolvido com os alunos nesse processo.
16 Vocalidades que criam a impressão de ação, indicando intenções e atitudes do
emissor. Cf. verbete “Ação vocal” na página 422 deste livro.
17 Do grego, soma significa “corpo vivo”. A educação somática é uma linha de
educação e reeducação corporal surgida no século XIX. Há vários métodos
desenvolvidos de educação somática, entre eles o do bailarino brasileiro
Klauss Vianna e o de Joseph Pilates – muito popular atualmente em academias
de ginástica. Os métodos têm muitos pontos em comum, como o
realinhamento ósseo, a correta distribuição de tensões e tonificação muscular,
o desenvolvimento do equilíbrio e da lexibilidade, a correção da respiração
etc. Cf. Débora Bolsanello (org.), Em pleno corpo: educação somática, movimento e
saúde, Curitiba: Juruá, 2008.
18 A vibração das pregas vocais produz a frequência fundamental da voz,
também conhecida como buzz laríngeo. Esse som ganha amplificação e
características distintas nos ressonadores e diferenciação nos articuladores da
fala.
19 Cf. verbete “Apoio respiratório ou vocal” na página 424 deste livro.
20 Cf. verbete “Projeção vocal” na página 440 deste livro.
21 O diretor e pedagogo polonês Jerzy Grotowski chamava essa internalização de
corpo-memória. Cf. Ludwik Flaszen e Carla Pollastrelli, O teatro laboratório de
Jerzy Grotowski, São Paulo: Perspectiva, 2007.
22 Na quarta parede os atores não olham para o público, ignorando sua presença e
criando, assim, um suposto afastamento espaço-temporal entre cena e plateia.
Cf. verbete “quarta parede” em Patrice Pavis, Dicionário de teatro, São Paulo:
Perspectiva, 2007.
23 Jorge Larrosa Bondía, “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”,
Revista Brasileira de Educação, Campinas: 2002, n. 19, p. 21.
24 Cf. Walter Benjamin, “O narrador”, in: Textos escolhidos, São Paulo: Abril
Cultural, 1980.
25 Jorge Larrosa Bondía, op. cit., p. 21.
26 Walter Benjamin, op. cit., p. 60.
27 Paul Zumthor, op. cit., p. 55.
28 Geo f Fox e Gilka Girardello, “A narração de histórias na sala de aula”, in: Gilka
Girardello (org.), Baús e chaves da narração de histórias, Florianópolis: Sesc, 2008,
p. 145.
29 Improvisações ou jogos teatrais são jogos cênicos com regras determinadas e
realizados por toda a turma, individualmente ou em pequenos grupos, com a
presença, nesses dois últimos casos, de uma plateia formada pelos alunos que
ainda não estão “em jogo”. Cf. Viola Spolin, Improvisação para o teatro, São
Paulo: Perspectiva, 2008, e Augusto Boal, Jogos para atores e não atores, Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
30 Marie L. Shedlock, “Da ‘Introdução’ de ‘A arte do contador de histórias’”, in:
Gilka Girardello (org.), op. cit., Florianópolis: Sesc, 2008, pp. 20-37.
31 Cf. Yves Stalloni, Os gêneros literários, Rio de Janeiro: Difel, 2001, e Tzvetan
Todorov, As estruturas narrativas, São Paulo: Perspectiva, 2003.
32 Vícios de linguagem são expressões ou ruídos que atrapalham o luxo verbal
(“hãm”, “hum”, “daí”, “né” etc.). Para o narrador de histórias, é muito
importante eliminar esses vícios, pois eles prejudicam imensamente a fruição
da narrativa e a criação de imagens por parte do público, além de demonstrar
certa insegurança no domínio do discurso e da linguagem. Eles podem,
porém, fazer parte da criação de personagens ou personagens-narradores, por
exemplo. Nesse caso, os vícios devem ser incorporados conscientemente à
oralidade, como características da própria personagem.
33 Walter Benjamin, op. cit., p. 66.
34 Língua inventada; mistura de sonoridades que simulam um discurso
articulado, mas sem nenhuma inteligibilidade como idioma ou dialeto. Cf.
verbete “Grammelot ou blablação” na página 433 deste livro.
35 Termo equivalente a grammelot.
36 Expressão que começou a ser utilizada por estudiosos da oralidade a partir de
1960; visa substituir o termo “literatura oral”, muito utilizado por folcloristas.
37 O Espaço 1 é um dos espaços de aulas práticas e apresentações cênicas do
Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes da Udesc, em
Florianópolis, Santa Catarina. O espaço dispõe de equipamentos de
iluminação e sonorização e, na data da prova, contava com uma arquibancada
montada com praticáveis para a plateia, em configuração frontal (palco
italiano) e com cinquenta lugares.
38 Estrella Ortiz, “Ler, interpretar, recitar…”, in: Gilka Girardello (org.), op. cit.,
Florianópolis: Sesc, 2008, p. 104.
39 Marie L. Shedlock, op. cit., p. 26.
40 Ibidem, p. 28.
Contar histórias na televisão
HELENA RITTO

William Shakespeare, um dos maiores criadores de histórias de todos os


tempos, escreveu que somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos1.
Henri Verneuil2, grande diretor de histórias para o cinema, afirmou: “Não
se pede ao contador de histórias um pedaço da vida cotidiana, mas um
grande pedaço de sonho”3.
A vida é sonho, e me vejo em busca de uma luz que ajude a encarar
um grande desafio: como distribuir sonhos usando a televisão como meio
de comunicação? A resposta a essa pergunta tão racional surge no fundo
do meu inconsciente, com um sábio coro de crianças imaginárias
repetindo insistentemente: “parece fácil, mas é difícil!”.
Se for para escrever sobre como contar histórias na televisão,
comecemos por abordar como contar histórias na vida. Segundo Maurice
Guinguand, existe “a necessidade da precisão de um momento, de uma
época, num passado impreciso, distante. Devo remontar à fonte, à origem.
Tão longe, tão longe e tão perto”4. Assim, antes de entrar em um estúdio de
televisão, devo voltar no tempo, puxar o fio da história e contar o começo
da contadora de histórias, quando tudo ainda era uma intenção.

CONTAR

Eu sempre tive a intenção de ser mãe e, quando meu filho nasceu,


senti falta do manual de instruções. Também sempre tive a intenção de
trabalhar com arte, pois sempre adorei o mundo da fantasia e, um dia,
descobri que poderia contar histórias. Para isso, mergulhei de cabeça e
resolvi contar “Branca de Neve”. Na teoria, a ideia parecia fácil. Assim, li e
reli textos, mas, como não gostei de nenhum deles, resolvi escrever minha
própria versão do conto. Para isso, demorei mais de três meses maturando
e trocando a ordem das palavras no papel. O texto nasceu com apenas duas
laudas, fracas, exageradas: parecia mais um abismo literário. Mas, a meu
ver, o texto era lindo, mesmo cheio de moral e de trechos desnecessários.
Contadora de primeira viagem, decorei palavra por palavra do que
havia escrito e fui, lépida e fagueira, cheia de chitas e com o rosto pintado
de branco, em busca de desavisados que tivessem a honra (leia-se:
“paciência”) de me ouvir. O alvo escolhido foi uma creche. O resultado?
Não deu certo. As crianças não terminaram de me escutar e saíram
correndo por todos os cantos da sala. A conclusão era simples: a
apresentação havia sido horrível.
E assim entrei no mundo da contação de histórias: equivocada,
estabanada e mal orientada. Mas há de se entender que, naquela época, as
referências eram poucas. É claro que já havia pessoas fantásticas
ensinando em universidades, vários grupos desenvolviam trabalhos
voltados para a narrativa – Regina Machado, por exemplo, já se
transformava em referência – e inúmeros contadores não profissionais
espalhavam-se pelo Brasil. Mas não havia e-mail, sites de busca ou redes
sociais para divulgar apresentações. Além disso, eu morava longe e não
tinha dinheiro para me financiar. Para poder assistir a uma contação de
histórias, era preciso conhecer as pessoas do meio, e eu não conhecia
ninguém. O único contato que eu havia tido até então com esse universo
foi por meio do programa de televisão Bambalalão.
Foi por meio da magia da televisão que descobri um programa
infantil no qual artistas do teatro e das artes em geral tinham espaço para
contar histórias, atuar, brincar, cantar, ensinar artesanato e mostrar tudo
o que faz parte de uma infância simples.
Comecei então a guardar na memória as histórias narradas por
aqueles artistas. Eu era brindada diariamente com mundos de fantasia. Foi
a primeira vez que percebi que os contos servem para acordar, não para
fazer dormir. Despertei para as histórias literárias, os contos
maravilhosos, os contos populares, os mitos e as fábulas e tive contato com
damas, rainhas, cavaleiros, soldados, príncipes, índios, seres misteriosos,
fantasmas, animais falantes, sereias, aventureiros, heróis, heroínas,
bruxas etc. Inúmeras criaturas me visitaram a partir das histórias
contadas na TV.
Devo a esse programa grande parte da responsabilidade pela
profissão que escolhi. É claro que ninguém precisa ser contador só porque
assistiu a histórias serem contadas na televisão, mas o programa
Bambalalão me despertou para o contar e até hoje me ensina muitas coisas,
pois vive na minha memória, colorindo uma lembrança, enfeitando um
tempo antigo. Lembrar-me disso me mantém atenta à responsabilidade
que tenho hoje como contadora de histórias na televisão, pois também
posso fazer parte das boas lembranças das crianças.
Depois desse despertar para o ato de contar histórias, conheci o
teatro e me deparei com o palco. Nele, eu podia sentir uma energia
diferente. Em pouco tempo, entrei para uma companhia de teatro e
comecei a montar espetáculos de Maria Clara Machado. Foi uma época de
grande aprendizado, pois convivi com artistas pela primeira vez, vivenciei
os bastidores e aprendi os nomes técnicos da área. Éramos todos muito
novos e estabanados na companhia, e o teatro de grupo acaba misturando
os sentimentos das histórias pessoais com as histórias do palco. Mesmo
assim, vivi intensamente o teatro durante muitos anos e, com o tempo,
percebi que a experiência naquele grupo não me servia para realmente
amadurecer. Assim, senti que era o momento de dar um basta e buscar
novas histórias.
Desse modo, anos depois, montei a Cia. Prosa dos Ventos, voltada a
contar histórias para crianças, sem preconceitos ou limitações. A ideia era
usar a palavra contada no palco, na praça, no circo, no banco do jardim.
Com isso, finalmente comecei a relaxar e a me sentir à vontade no palco.
Passei a perceber o público de modo verdadeiro, a notar o poder de mantê-
lo em um estado de total passividade. O teatro consegue invadir a agitação
da alma, e a escuridão na plateia predispõe esta a uma anulação psíquica –
como atriz, passo a ter, então, o poder de alterar a emoção.
Esse poder é fantástico. Ao encontrar essa magia, senti-me uma
feiticeira e comecei a me divertir com os ingredientes mágicos. Brincava
com os olhares, os gestos e as intenções. Enfeitiçava os desprotegidos
usando apenas o texto. Fui me desfazendo de artifícios como o excesso de
adereços e figurinos de lantejoulas para mergulhar cada vez mais no tom
de voz, no espaçamento das palavras, na velocidade e no tempo da cena, ou
seja, passei a acreditar que, para atuar, é preciso saber contar histórias.
Lentamente, resolvi aventurar-me, atravessar timidamente o palco.
Quando me aproximei e, pela primeira vez, olhei bem nos olhos brilhantes
da plateia, senti ainda mais forte a importância do envolvimento do ator
com o público. Depois de muito tempo como atriz, atuando e sofrendo,
comecei a entender um pouco melhor essa força (magia, energia, química).
Intuitivamente, eu conseguia compreender o poder de transformação que
o ator tem e o fato de que seus principais instrumentos são a alma e a
história. Mas foi só quando li uma citação de Molière que realmente
compreendi isso no plano racional:

Um ator […] não precisa de elementos sobressalentes para sustentá-lo, nem de


uma cenografia complexa às suas costas, tampouco de efeitos sonoros ou de
uma sonoplastia particular. Se ele é sensível, cumpre bem o seu ofício, se o
texto é de qualidade, são suficientes sua voz e seu corpo para fazer-nos sentir
que está amanhecendo, que lá fora está chovendo, que está ventando, que há
sol, que está quente ou acontece uma tempestade5.

HISTÓRIAS

Olhando nos olhos do público, fui entendendo que, para contar uma
boa história, eu deveria criar uma relação afetiva com o texto. Era
importante deixar a história passar pela minha alma e finalmente me
comunicar por meio do olhar, dos gestos e das intenções e transportar
minha matéria corporal até uma dimensão onírica aos olhos do público. O
melhor combustível para isso era ter um texto saboroso que me levasse
para longe e, ao mesmo tempo, para tão perto. Passei a questionar a
posição do ator passivo, que se coloca a serviço do diretor sem acrescentar
nada de si, em uma obediência cega, irracional, como um ator títere que
tem como alma a mão do diretor. Onde fica a história? Onde fica a reação
da minha personagem perante essa história? Eu me recusava a ser uma
mera repetidora de um texto e de uma gestualidade adquirida, e que bom
que eu tinha um diretor que também era criador de histórias. Juntos,
fizemos grandes caminhadas.
Assim, passei a viver para contar histórias e contar histórias para
viver. No palco, como atriz, usava o olhar do diretor, que me dava
confiança. Era um olhar de fora que não desrespeitava a história nem
minha intuição, mas que me ajudava e me preenchia. Como contadora de
histórias, percebi que a luz vinha de dentro de mim, e que quem me guiava
era única e exclusivamente o conto. Ele era o meu farol de orientação.
Nesse momento me senti dentro do meu conto iniciático. Havia
percorrido um caminho e começava a colher os ensinamentos. Afinal, há
um tempo para aprender, para receber a explicação e para ensinar. Tudo
corria bem em meu mundinho de descobertas, mambembe, cigano. Eu
tecia o fio da vida e contava histórias, às vezes no palco, com textos
teatrais, às vezes na rua, com contos. A Cia. Prosa dos Ventos viajou pelo
Brasil e foi parar na Europa. Estudamos, dedicamo-nos e erramos muito,
até que a vida me surpreendeu e fui parar em um estúdio de televisão.
A missão de contar histórias na televisão apareceu na minha vida
repleta de luzes, equipe técnica, roteiristas e uma porção de câmeras
assustadoramente enormes. Eles me cobriram de maquiagem, me deram
uma peruca verde e um figurino lindo. Acenderam o piloto, viraram o
monitor e alguém gritou: “Vinheta no ar!”.
Mas e agora, onde está o público? Como contar histórias sem os
olhos da plateia? E a tal energia, a tal magia, o contato com as pessoas,
onde fica? Eu ainda estou aprendendo, mal comecei a absorver os
ensinamentos, e já tenho de pôr em prática? Corta, corta, corta! São muitas
perguntas antes de começar essa nova caminhada artística. Deixe-me ir,
preciso andar. Vou por aí a procurar, rir para não chorar.
Passado o susto, respirei e tentei entender como contar histórias na
televisão. Uma nova fase começava.

TELEVISÃO

Atualmente, somos aproximadamente 200 milhões de brasileiros.


Segundo pesquisas, mais de 90% dos lares têm pelo menos um aparelho de
televisão. Com tamanha quantidade, pode-se imaginar que a
responsabilidade da programação é imensa. Os programas de televisão
entram diariamente na sala de estar ou no quarto de muitas e muitas
pessoas. Modas são lançadas em massa, opiniões são moldadas em série e
até presidentes podem ser eleitos graças à in luência de artistas,
apresentadores e repórteres de TV.
A televisão tem o poder de informar, educar, divertir e até de
enfeitar. Quem nunca reparou em uma televisão de tela plana, linda e
reluzente, pendurada na parede de um restaurante ou na sala de espera de
um consultório, com o volume baixo, fazendo as vezes de um quadro
animado no melhor estilo da série Harry Potter, de J. K. Rowling?
Ela alcança pessoas da cidade e do mais remoto sertão. Quem tiver
uma antena, um aparelho e uma tomada receberá as mesmas informações
que um milionário recebe em sua mansão. A televisão não distingue: sua
enorme generosidade permite a uma pessoa receber a mesma imagem e o
mesmo som que todas as demais sintonizadas naquele canal.
A TV é um entretenimento cômodo. Basta trocar de canal para ter em
mãos tantas opções e histórias. A televisão despeja ficção e realidade,
histórias em massa, o que me leva a um texto de Dan Yashinsky:

Uma vez, um antropólogo chegou a uma tribo africana no mesmo dia em que
uma televisão foi levada para aquele lugar. Todos os habitantes da aldeia
passaram três dias em volta do aparelho, assistindo a todos os programas com
grande interesse. Depois, abandonaram a televisão e não quiseram mais saber
dela. O antropólogo perguntou-lhes se não iam mais assistir aos programas.
– Não – disse um deles –, preferimos o nosso contador de histórias.
– Mas a televisão – retrucou o homem – não conhece muito mais histórias do que
ele?
– Pode ser – respondeu o antropólogo –, mas o meu contador de histórias me
conhece6.

Quando contamos uma história, é importante observarmos a plateia.


Nela, podemos encontrar, por exemplo, crianças de uma creche, famílias
passeando em um Sesc, grupinhos empolgados de estudantes em uma
escola, adultos cansados em uma livraria, pessoas convalescendo em um
hospital ou trabalhadores estressados passando por uma praça e que
param para ver uma contação de histórias por alguns minutos e por pura
curiosidade. Agradecidos pelo voto de confiança que essas pessoas nos
dispensaram, o mínimo que podemos oferecer é adaptar o texto à idade, ao
ambiente e até à energia delas. Devemos acionar o nosso radar de
sensibilidade e tentar errar o mínimo possível. Deixar medos, egoísmos ou
frustrações de lado e nos arremessar de cabeça, tentando mostrar a nossa
versão do conto da maneira mais sincera possível. Como o conto é
alimento para o espírito, busco oferecer aos meus ouvintes todas as
técnicas e ferramentas disponíveis, isso sem jamais perder a ternura.
Afinal, como apontam Gislayne Avelar Matos e Inno Sorsy:

O conto é a arte da relação entre o contador e seu auditório. É através dessa


relação que o conto vai adquirindo seus matizes, suas nuances. Contador e
ouvintes recriam o mesmo conto infinitas vezes. É através de suas expressões
de espanto, de prazer, de admiração, de indignação, que os ouvintes
estimulam o contador. Dá-se então uma troca de energia7.

Porém, como fazer o mesmo na televisão? Como entrar na casa das


pessoas sem vê-las e fazer alguma transformação nos poucos instantes que
terei na tela? Eu sei que a arte transforma, mas me sinto incapaz de
realizar qualquer trabalho artístico após minha trajetória do palco, da
praça, do circo, do banco de jardim.
Entretanto, é fato que existe algum tipo de magia dentro do estúdio.
Qualquer um que entre nesse ambiente, adulto ou criança, tem uma
sensação divertida e curiosa, muito próxima do que sentimos quando
pisamos em um palco. Não devo negar que uma sala de cinema também
me extasia, mas um estúdio de TV sempre me deixou balançada, pois
parecia mais distante, praticamente inatingível.
Assim, como a minha missão seria contar histórias na televisão,
comecei a arquitetar um plano para que conseguisse manipular a tal magia.
A arte respirava no estúdio, cheia de vontade de viajar pelas ondas
eletromagnéticas e chegar aos lugares mais distantes.

“OLHE PARA A CÂMERA E VEJA O OLHAR DE UMA CRIANÇA”

Considero a frase “Olhe para a câmera e veja o olhar de uma criança”,


sugerida a mim por um produtor, o maior ensinamento que tive até agora
na televisão. Ao encontrar na câmera o olhar da plateia, derrubo o véu que
separa o público do ator. Não existe curso que ensine isso.
Tive uma experiência fantástica ao gravar uma peça de teatro
adaptada para a linguagem da televisão. Eu vinha do palco e até então
tinha contracenado apenas com atores. Mas qual não foi minha surpresa
quando descobri que, naquele projeto novo que misturava teatro e
televisão, eu deveria contracenar com uma câmera.
A primeira vez que me encontrei com uma câmera em um estúdio de
televisão, achei-a monstruosa, assustadora, misteriosa. Ela tinha apenas
um olho de vidro, arregalado, enorme, como um ciclope. Aquele monstro
me encarava e, de vez em quando, tomava vida, acendendo uma luz
vermelha. Quando aquela luz cor de sangue acendia, ela me observava sem
piscar, esperando que eu não errasse o texto nem as marcas combinadas.
Ela andava atrás de mim ou na minha frente com fios compridos que
escorriam até o chão e serpenteavam pelo cenário. Ela me encarava altiva e
poderosa no seu reino, e eu, tímida e curiosa, tentava levantar o meu olhar
e entender como lidar com aquela criatura.
Com o tempo e o convívio, percebi que naquela fera existia um ser
humano, um mimetismo com os contos de fadas. Era através do olhar da
câmera que eu chegaria ao olhar do público; ela era a plateia, o
telespectador. Quando eu quisesse invadir aquela escuridão e finalmente
alterar a emoção do telespectador, bastaria olhar no olho da câmera e dizer
o que tinha a dizer, com todo o coração.
Teorizada a câmera, começamos a contar histórias no Quintal da
Cultura. As primeiras narrativas com as quais tive contato não foram
minhas. Os contos vieram de outros contadores que visitaram o estúdio e
arremessaram lendas e fábulas ondas afora. Mas eu estava lá, no mesmo
ambiente mágico e confortável, quase como uma espectadora. A minha
personagem – uma criança brincalhona que adorava histórias – ficava
sentadinha no cenário, com os olhos arregalados e os ouvidos atentos.
Pude ver no estúdio diversos artistas, atores, escritores, professores e
bibliotecários que têm dedicado a vida ao estudo e à arte da narrativa oral,
cada um com seu estilo, seu brilho e sua experiência. Aprendi muito com
os acertos e também vi a dificuldade de muitos contadores talentosos,
profundamente nervosos, que perdiam suas histórias e sua segurança. Eu
tentava entender o que acontecia com eles: por que contar histórias na
televisão era tão difícil? Profissionais que já mantiveram quinhentas
pessoas atentas e envolvidas no fio narrativo entravam no estúdio suando
e gaguejando, incapazes de terminar uma frase para trinta.
Percebi que era o ciclope tecnológico. Se aquelas criaturas ainda me
davam medo, mesmo já morando com elas havia algum tempo e
começando a me acostumar, imagine só o que ocorria aos menestréis de
passagem que encaravam aquelas medusas pela primeira vez: eles ficavam
petrificados de horror. Os contadores eram meros viajantes sensíveis que
traziam em sua bagagem literária alguns sonhos e fantasias. Não vinham
preparados para enfrentar aquilo. Vinham apenas com a boa intenção.
Quando os contadores de histórias pisavam pela primeira vez
naquele estúdio, o calafrio surgia naturalmente. Passada a onda gelada, os
olhos dos contadores começavam a se acostumar com o colorido e a
energia que um estúdio de TV costuma ter. Primeiro, a adaptação de
reconhecer tudo aquilo que se vê em um quadro pequeno, bidimensional e
distante transformado em tridimensional, palpável e real. É quase uma
alegria infantil ver o que se vê nos bastidores da televisão, ali, ao vivo. É
como entrar na máquina de sonhos. Passado o deslumbre pueril, os
contadores percebiam as câmeras, os técnicos, a equipe, enfim, o batalhão
de pessoas que está por trás de tudo aquilo. Eles percebiam, finalmente, a
responsabilidade: em poucos minutos, a história contada naquela sala
fechada alcançaria uma distância incalculável.

CONTANDO HISTÓRIAS NA TELEVISÃO

“Analisar intelectualmente um símbolo é descascar uma cebola para


encontrar a cebola”8. Se me permitem fazer uma comparação com a frase
de Pierre Emmanuel, analisar como contar histórias na televisão é chegar à
conclusão de que contar histórias é produzir encantamento. Não importa
se é no palco, na praça, no circo, no banco de jardim ou na televisão. As
armas do contador podem até variar de acordo com o tipo de público ou do
local, mas o arsenal será escolhido com sensibilidade, e o objetivo será
sempre o de fazer a história passar pela alma do contador e ir direto para a
do ouvinte. Isso independe da quantidade de pessoas que estão assistindo,
do lugar ou de qualquer outra coisa. Não importa: o encantamento, o
sonho e a imaginação virão à frente.
As ferramentas na televisão podem variar, mas, depois que
entendemos quais devem ser usadas naquela situação, tudo fica mais
acessível. Encarar o monstro da câmera e enxergar os olhos da criança é o
primeiro passo. Abrir a janela de possibilidades do conto para esse público
telespectador faz parte do encantamento. Escolher os termos adequados
para não transformar a narração em um amontoado de palavras é uma das
preocupações quando se conta um conto, e isso independe do local em que
se conta a história. Tanto faz se ocorre olhando nos olhos do público ou
olhando nos olhos da câmera.
Sempre tive sorte com meus parceiros de cena no teatro, o que
aconteceu na televisão também. Tenho de aplaudir de pé meus
companheiros do Quintal da Cultura. Contar histórias acompanhada pelo
talento deles acabou ficando suave. Sonorizando o conto, acrescentando
uma piadinha ou descrevendo magicamente um reino, somos uma equipe
em função da história. Mas – “senta que lá vem outra história” –, rodeados
de câmeras, ficamos dependentes de uma equipe de técnicos, de uma
porção de profissionais que contarão a história com o contador.
Na televisão, o mostrar sua versão da narrativa envolve
enquadramentos, cortes, luz, produção, edição, efeitos visuais e sonoros,
tecnologia. Envolve um mundo totalmente novo. No palco, quando
determinado ator fala um texto, muitas vezes a mensagem está na reação
de seu companheiro de cena. Se for uma piada, ela pode estar na expressão
ou na pontuação sutil que o outro ator faz com um levantar de
sobrancelha. No teatro, isso se resolve porque o público tem uma visão do
todo, enxerga o cenário e vê quem está em cena. Ele assiste às reações e
escolhe, inconscientemente, quem quer ver e assim acompanha a história.
Em uma contação de histórias, quando se está com um parceiro,
ocorre a mesma coisa. Uma frase só tem efeito se o outro contador estiver
em sintonia e reagir, criando vida e encantamento naquele momento.
Mesmo que estejamos sozinhos na contação, se usarmos um objeto
simples, a reação pode estar nesse adereço em nossas mãos. A boca fala e
as mãos contam. Em último caso, quando estamos completamente
sozinhos com o público, sem nos valermos de objetos e usando apenas o
nosso corpo e a nossa voz, a reação mais importante pode ser uma discreta
cruzada de pernas.
Apontado isso, deparamos com a situação de contar uma fábula na
televisão, sem objetos ou outros contadores, apenas a história, a narrativa
oral pura e singela. Contamos apenas com a expressividade, o corpo e as
entonações de voz, ou seja, usamos as ferramentas mais antigas para
narrar no meio mais moderno possível.
Por exemplo, a história começa com “Era uma vez uma borboleta
preguiçosa”. Imaginem que a boca disse “borboleta preguiçosa”, e as mãos,
em uma brincadeira, fizeram a imitação de uma borboleta serelepe e
agitada. Isso é simples e parece desnecessário, mas muda todo o percurso
de compreensão da narrativa. Porém, na televisão, o que fazer se a câmera
estiver em um close? Perderemos a brincadeira, a principal característica da
personagem principal. Já nesse primeiro momento, a narrativa pode
naufragar.
A salvação está nas mãos da direção, que deve conhecer a história e o
contador para saber aplicar as técnicas de plano, contraplano e o que for
preciso. O operador de câmera também deve procurar o melhor ângulo, o
diretor de corte deve escolher o melhor enquadramento, o editor deve dar
ritmo, os efeitos sonoros e visuais devem pontuar, a luz deve favorecer e o
áudio deve ser impecável.
Por mais que seja difícil e demore, o resultado é emocionante. Como
uma tela virtual tecida por dúzias de mãos, as narrações de histórias na
televisão são uma experiência da cultura moderna. O trabalho em conjunto
de uma equipe em prol de uma história edifica ainda com mais força essa
arte.
Talvez contar histórias usando apenas um plano geral, sem cortes,
efeitos ou detalhes, desse menos trabalho. Talvez fosse mais simples e
coerente contar histórias na televisão da maneira mais tradicional
possível, sem usar a linguagem televisiva, com apenas uma câmera fixa. A
equipe técnica não precisaria transformar-se em uma equipe parceira: ela
seria apenas uma peça inanimada que ajudaria a gerar as ondas
eletromagnéticas da TV. Pode ser que a criatividade e a arte tenham limites
na televisão, afinal, é mais fácil colocar uma câmera fixa e artistas
multicoloridos apresentando joguinhos para as crianças.
Segundo Stanislavski, “o teatro infantil deve ser como o teatro
adulto, só que melhor”9. Ouso acrescentar a isso que a televisão para
crianças também deve ter qualidade, muita qualidade. As histórias
gravadas nos estúdios da TV Cultura chegam a todos os cantos do Brasil,
navegam pela internet e habitam a imaginação de muitas crianças. Assim,
a responsabilidade dos profissionais é tremenda. Doroteia e Ludovico –
irmãos que adoram contar histórias no Quintal da Cultura – têm
encontrado algumas dificuldades, mas têm procurado achar as soluções
para elas. Estamos engatinhando no assunto, mas já descobrimos que a
televisão para crianças deve ser como a televisão para os adultos, só que
melhor.

1 Cf. William Shakespeare, A tempestade, Porto Alegre: L&PM, 2002.


2 Henri Verneuil (1920-2002) nasceu na Turquia e emigrou para a França com a
família aos 4 anos de idade. Em 1996, recebeu o maior prêmio francês pelo
conjunto de sua obra.
3 “On ne demande pas au conteur une tranche de vie quotidienne, mais un gros morceau
de rêve”. Henri Verneuil, “Préface”, in: Chake Der Melkonian-Minassian, Contes
arméniens, Maisons-Alfort: Kirk, 1987.
4 Maurice Guinguand, O ouro dos templários: Gisors ou Tomar?, Lisboa: Bertrand,
1975.
5 Molière apud Dario Fo, Manual mínimo do ator, São Paulo: Senac, 1998, p. 120.
6 Dan Yashinsky apud Regina Machado, Acordais – Fundamentos teórico-poéticos da
arte de contar histórias, São Paulo: DCL, 2004, p. 34.
7 Gislayne Avelar Matos e Inno Sorsy, O ofício do contador de histórias, São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 8.
8 Pierre Emmanuel apud Gilbert Durand, A imaginação simbólica, São Paulo:
Cultrix/Edusp, 1993, p. 37.
9 Constantin Stanislavski apud Maria Lúcia de Souza Barros Pupo, “Fronteiras
etárias no teatro: da demarcação à abertura”, Revista USP, São Paulo: 1999-
2000, n. 44, pp. 335-40.
(Des)fiando as tramas do Pão-por-Deus
ELIANE DEBUS

“Tão cheia de ágoras” a minha tradição aqui está: bordar o coração!


[ANA PAULA GUIMARÃES]

Ao ser convidada a escrever sobre a tradição poética do Pão-por-Deus,


imediatamente fiquei em dúvida sobre qual caminho percorrer: aquele que
levasse em conta o exercício da professora-pesquisadora, tantas vezes
trilhado em trabalhos acadêmicos sobre literatura produzida para a
infância e juventude, ou o recém-iniciado caminho de professora-
escritora, a partir da autoria do livro infantil É tempo de Pão-por-Deus1. Na
possibilidade de ensaiar um texto e um caminho, proponho-me a atar as
pontas dos dois exercícios e meus encontros com o Pão-por-Deus.
A epígrafe deste texto é recolhida de minha interlocução com a
colega portuguesa Ana Paula Guimarães, que, convidada a ler meu livro
infantil ainda no prelo, anunciava a presença de sua tradição relida do
outro lado do oceano. A fala da personagem Avó Maria, que diz à neta não
ser necessário recontar uma história tão antiga para uma menina “tão
cheia de ágoras”, me foi lançada em outra perspectiva (eu era a escritora-
personagem tão cheia de “ágoras” que relia a tradição da colega como
outrora fizeram os portugueses que chegaram ao Brasil, em particular no
litoral catarinense).
A composição de um texto literário não exige o compromisso com
dados da realidade, podendo recriar outras possibilidades de existência
para um fato. No entanto, embora apresente uma situação ficcional para
minha narrativa em É tempo de Pão-por-Deus, seu percurso é o de apresentar
ao leitor mirim a tradição brasileira do Pão-por-Deus sem esquecer sua
origem portuguesa e focalizando sua atual estrutura de composição.

FESTEJANDO OS MORTOS NA FARTURA DO PÃO-POR-DEUS: HISTÓRIA DE LÁ


A tradição do Pão-por-Deus em Portugal está vinculada à religião
católica e à comemoração-saudação aos mortos, variando em algumas
cidades portuguesas. Vale lembrar que todas as variantes estão vinculadas
à tríade inicial: mortos (defuntos), pão (alimentos) e versos (tradições
orais).
Em artigo publicado em 1851 na Revista dos Açores, José de Torres
versa sobre a morte2. O tema é acompanhado de uma das tradições do “Dia
de Todos os Santos” em Açores, realizada em 2 de novembro ou na véspera.
A tradição corresponde à doação de uma esmola – à época, um pedaço de
pão ou broa – em nome dos defuntos e em respeito a eles. A “rapasiada”3
também se julgava com direito a essa esmola e, por causa disso,
importunava a todos com gritos de porta em porta entoando esta cantilena
monótona:

Dae pão-por-deus
Que vos-deu deus
P’ra repartir
C’os fieis de deus
Pelos defuntos
De vo’meces…4

No entanto, nessa tradição açoriana muitas vezes o pedido não é


aceito, e o pão ou a broa não é ofertado. Assim, desapontada, a “rapasiada”
lança outros versos, agora de desafeto:

Tranca me-dáes?
Fujo p’Ra rua,
E seja tudo
P’l’amor de deus5.

Em 1885, Teófilo Braga, em um texto sobre o mapeamento das festas


de calendário popular, destaca “A Festa de Todos os Santos” como a do mês
de novembro, denominada em documentos jurídicos do século XV como
“Dia do Pão-por-Deus”6.
Além de descrever os versos entoados nos Açores, referenciando José
de Torres, Braga traz à tona os versos entoados pelos rapazes da Vila de
Alpedriz, que pedem aos agricultores o “Pão por Deus”:

Pão, Pão por Deus


À mangarola;
Encham-me o saco
E vou-me embora7.
Ao receber uma resposta negativa ao pedido ou desgostosos com os
frutos recebidos, os rapazes entoam:

O gorgulho, gorgulhete
Lhe dê no pote!
E lhe não deixe farello
Nem farellote8.

Braga ainda apresenta outras duas variantes da festa, em diferentes


regiões de Portugal9. Em Coimbra, a festa é denominada “A Festa dos Fiéis
Defuntos”, e os rapazes pedem bolinhos, não havendo referência a pães.
Em Lamego e seus arredores, no Dia de Todos os Santos vendem-se os
santoros: “SANTORO. m. [...] Espécie de pão bento./ Bolo comprido, que se dá
em dia de Finados ou de Todos-os-Santos e que é do feitio de uma tíbia. […]
Plural: santoros (Do lat. sanctorum, pl. de sanctus)”10.
Em seu trabalho etnográfico11, Leite de Vasconcellos elenca o Pão-
por-Deus como um costume popular recorrente no dia 2 de novembro na
vila de Cadaval (Estremadura), quando moças e rapazes saem a pedi-lo, de
porta em porta, cantando versos de origem francesa. Da cidade de Preuilly-
sur-Cher:

Boun’dam’, donnez Du pain pour Dieu,


Que nous dis’rons les Ovradiev,
Les Ovradiev de Jésus-Christ12.
Ou seja:

Boa Dama, dê Pão por Deus


Que falaremos os louva a Deus
Os louva a Deus de Jesus Cristo13.

De Bengy-sur-Craon, ecoam os versos:

Donnez nous le pain du bon Dieu


Apprenez nous les A-Vois-Dieu,
Les A-Vois-Dieu de Nout’ Seigneur14.

Ou seja:

Dê-nos o pão por [do bom] Deus


Ensine-nos a-vê-Deus15
Os a-vê-Deus de Noss’ Senhor16.

Vasconcellos não destaca o vínculo do pedido do alimento com o Dia


dos Mortos, embora isso fique explícito pelo fato de ser feito no dia 2 de
novembro. A curiosidade se fixa, contudo, na origem francesa dos versos.
Perante todas essas ocorrências, cabe perguntar: a tradição do Pão-por-
Deus ainda resistiria em terras portuguesas?
Em texto ainda no prelo, Ana Paula Guimarães destaca que a escolha
do dia 1° de novembro (data do Dia de Todos os Santos) para visitar os
mortos, e não o dia 2, deve-se ao fato de que, em Portugal, o feriado oficial
é dia 1°, e não dia 2. Assim, “hoje em dia, as famílias continuam a deslocar-
se aos cemitérios e a rumar aos seus antepassados desaparecidos no dia
que mais lhes convêm, dia 1°, e não no dia que lhes foi destinado, dia 2”17.
A tradição secular parece resistir contemporaneamente em Portugal
e está vinculada à tríade “mortos, alimentos e versos”, como se pode ler em
matéria no jornal português Gazeta das Caldas18. Segundo a matéria, as
regiões central e oeste de Portugal mantêm o ritual de homenagear os
santos (Dia de Todos os Santos) – “os mortos” –, denominado Pão-por-
Deus, também conhecido como “Dia do Bolinho”: a broa e os frutos secos
são os regalos esperados nesse dia. Aos miúdos, cabe cantar de porta em
porta:

Ó tia, dá Pão-por-Deus?
Se o não tem Dê-lho Deus!

Ou

Bolinhos e bolinhos,
Para mim e para vós,
Para dar aos finados,
Qu’estão mortos, enterrados,
À porta daquela cruz19.

Ainda segundo o periódico, é delegado à família e à escola o papel de


contribuir para a permanência da tradição: “Tradições que ainda se vão
passando aos mais novos por familiares e professores, sendo que, em
muitas escolas, ainda é habitual chamar-se uma avó para fazer as
tradicionais broas ou merendeiras doces”20.

NO BORDADO DO PAPEL, PALAVRA DE BEM-QUERER: HISTÓRIAS DAQUI

No Brasil, a tradição do Pão-por-Deus, tal como foi adaptada, resiste


de certo modo no litoral, em particular no litoral catarinense, ainda com
raízes nas cidades de São Francisco do Sul e Florianópolis.
Em terras brasileiras, o mote embrionário do Pão-por-Deus não
persiste, pois aqui não há o vínculo com os mortos, e os aspectos religiosos
foram atenuados ao longo dos anos. Da tríade “mortos, alimentos e
versos”, resistem os alimentos – agora não mais para o corpo, mas para a
alma – e os versos – não mais orais, mas escritos. Desse modo, a herança
cultural portuguesa recebeu aqui outro formato e uma finalidade diversa.
Carregado de afetividade e bem-querer, adotou-se o papel em
formato de coração – recortado, rebordado, enfeitado – para escrever, em
uma única estrofe de quatro versos, o pedido de Pão-por-Deus. A maioria
desses pedidos versa sobre amor – a busca, o encontro –, mas há pedidos
também de amizade, compadrio, entre outros.
Franklin Cascaes, estudioso da cultura popular de Florianópolis e
seu entorno, acredita que um dos motivos para esse formato seja a
possibilidade de revelar de forma discreta, com o formato de coração e os
versos curtos, o amor a outra pessoa:

Eu acredito que o Pão-por-Deus nasceu do seguinte problema: no passado,


eram os pais que “namoravam” o homem para as filhas. As filhas não tinham
direito de namorar […] Eu creio que, como as moças não podiam namorar, e
elas, lógico, conversando, ou em visitas, conhecendo desde criança um rapaz e
acompanhando o crescimento dele […] ela, naturalmente, se afeiçoava, mas
não podia namorar. […] Então, surge e aparece o recurso do Pão-por-Deus. […]
A moça escrevia o bilhetinho no coração, ou um verso, e, com muita
precaução, isso era levado para o cara. Era namoro por correspondência21.

Doralécio Soares, também pesquisador da cultura popular de Santa


Catarina, apresenta a “delicada missiva” dos versos escritos em papel no
formato de coração como criação de Santa Catarina, e elenca a cidade de
São Francisco do Sul como aquela onde a tradição poética mais se enraizou
no cotidiano da população. A “missiva” chega a ser comercializada,
“existindo ali casas que se dedicavam à sua feitura nas mais variadas
formas, com preços que variavam de acordo com a beleza e forma
artística”22.
Em seu livro Pão-por-Deus vivo na cultura brasileira, Maria Eli Braga
Mannrich traz uma coletânea de versos e depoimentos sobre o Pão-por-
Deus e seu lastro por cidades catarinenses, no estado vizinho Rio Grande
do Sul e em outros estados brasileiros23. Tem-se na obra um levantamento
do Pão-por-Deus em Santa Catarina através dos tempos, com muitos
versos de escritores, pesquisadores e pessoas públicas. Mannrich expõe
ainda o levantamento dos versos recolhidos de pessoas anônimas durante
suas pesquisas.
Desse levantamento dos versos de pessoas públicas, apresento aqui
uma pequena amostra:

Aqui vai meu coração


Embrulhado em renda ilhoa.
Quero que enterrem meu bilro
Bem no ventre da Lagoa.
(Sérgio da Costa Ramos)

Peço-peço é passarinho
Primo irmão do espero-espero.
Quando vem teu Pão-por-Deus
Nas asas de um quero-quero?
(Flávio José Cardozo)

O pessegueiro loriu,
A andorinha piou.
Envia-me o Pão-por-Deus
Se o amor enfim nasceu.
(Alcides Buss)

Teu amor sabe as coisas


Gostosas ao coração:
Tainhada, Pão-por-Deus
Ou caldo de camarão.
(Silveira de Souza)24

Ainda no livro, nos versos de pessoas de comunidades diversas, por


exemplo, a estrofe vem com as memórias dos depoentes:

Minha mãe recebeu de uma amiga um pedido de Pão-por-Deus.


Lá foi minha mãe levar o presente. Segundo ela, foi um par de tamancos,
muito usado naquela época. Bem, minha mãe esperou o ano inteiro, nada de
recompensa. Quando veio novamente o mês de outubro, minha mãe escreveu
assim:
“O ano passado em outubro,
Nós éramos tão amigas!
Me pediste Pão-por-Deus
E logo foste atendida.
Então, manda-me a recompensa,
Não te faça de esquecida.”
Este era o modo como os amigos ou mesmo parentes faziam para trocar
presentes, dar notícias, etc.25

Nesse depoimento, percebe-se proximidade com os versos entoados


em Portugal, que também indicavam o descontentamento com a prenda
recebida ou até mesmo quando não recebida. Seriam esses costumes de
antanho ou uma tradição ultrapassada ainda presente nos dias de hoje em
Santa Catarina?
Em minhas andanças pelas escolas da Grande Florianópolis, para a
leitura de É tempo de Pão-por-Deus, fiquei satisfeita ao perceber o quanto as
crianças são receptivas aos versos da tradição. O desejo de escrever sobre o
Pão-por-Deus teve nascimento quando, no curso de pedagogia da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), descobri que pouquíssimas
alunas sabiam o que era o Pão-por-Deus.
O texto recebeu negativas de casas editoriais, que alegaram que a
regionalidade do tema não renderia as vendas desejadas no prestigiado
mercado editorial de literatura infantil. Mas, depois que o livro foi
publicado, acompanhado das ilustrações de Márcia Cardeal, teve-se a
comprovação de que, por mais que muitos desconheçam o tema, ele é uma
novidade muito bem recebida.
Além do contentamento ao receber das crianças o acolhimento da
narrativa, ao escrever, acabo provocando nas crianças leitoras também o
desejo da escrita e, comumente, vejo-me rodeada de bilhetinhos que
celebram o encontro entre escritora, livro e leitor.
Não posso dizer que o Pão-por-Deus está vivo no dia a dia da
comunidade, que é lembrado como algo de antanho ou ainda retomado
pela memória dos mais velhos – contadores de histórias inaugurais,
camponeses sedentários que, vivendo enraizados em seu lugar e
conhecendo tudo e todos, têm muito para contar26. Mas posso dizer que
algumas instituições, entre elas a escola, continuam a promover o
encontro das crianças e dos adolescentes com o Pão-por-Deus.

PÃO-POR-DEUS:
DE ALIMENTO PARA O CORPO A ALIMENTO PARA A ALMA

Ao relatar um pouco da história do Pão-por-Deus em terras lusitanas


e brasileiras, é possível perceber as mudanças lá e cá. No entanto, o que
também se nota é o desejo de um grande grupo, de pessoas públicas e
anônimas, de manter viva a tradição popular.
Em Portugal, os versos orais de pedido e resposta lembram as
travessuras de outra tradição, o Halloween. Nela, há um agradecimento se o
regalo é recebido, e travessuras se o pedido por doces é negado. No Brasil,
vemos que na tradição do Pão-por-Deus não há continuidade de diálogo
entre a solicitação e o recebimento.
Atualmente, tanto lá como aqui, a escola tem cumprido o papel de
manter a história viva, trazendo às novas gerações informações sobre o
Pão-por-Deus ora por meio de visitas daqueles que outrora vivenciaram a
tradição poética, ora pela leitura de textos que promovem o encontro com
o passado.
Além disso, creio que a tradição do Pão-por-Deus se renova de outras
formas e em outros espaços. Em Florianópolis, por exemplo, encontra-se o
bilhete charmoso em formato de coração como indicativo do banheiro
feminino; em São José, município vizinho a Florianópolis, o nome Pão-
por-Deus e sua decoração fazem parte de algumas atrações turístico-
culinárias do restaurante Pão-por-Deus, localizado no centro histórico da
cidade. Poderíamos pensar ainda se as paredes do tradicional restaurante
de Florianópolis Bar de Arantes não seriam um coração gigante a abrigar
versos nos pequenos bilhetes. Como escrevi em outra ocasião: “bilhetes
tecidos por mãos distintas, vindas de diversos lugares que, mesmo sem a
arte e as artimanhas do bilro, confeccionam a cada novo ponto uma renda
infinita, que sobe pelas paredes e pelos umbrais e pende do teto,
enredando a tudo e a todos”27.

1 Eliane Debus, É tempo de Pão-por-Deus, Tubarão: Copyart, 2011.


2 José de Torres, “Fastos michaelenses”, Revista dos Açores – Sociedade Auxiliadora
das Lettras Açorianas, Ponta Delgada: Typographia do Açoriano Oriental, 1851, v.
13, n. 45, p. 177.
3 Utilizado por José de Torres, o termo “rapasiada” [sic] não se refere somente às
crianças, mas também aos jovens que saíam às casas a pedir Pão-por-Deus.
4 José de Torres, op. cit., p. 177.
5 Ibidem.
6 Teófilo Braga, “O povo portuguez nos seus costumes, crenças e tradições”,
Livro II – Crenças e festas públicas, tradições e saber popular, Lisboa: Livraria
Ferreira, 1885. Disponível em:
<https://bdalentejo.net/BDAObra/obras/311/BlocosPDF/bloco23-229_228.pdf>.
Acesso em: set. 2014.
7 Ibidem, pp. 222-3.
8 Ibidem.
9 Ibidem, p. 223.
10 Disponível em: <www.dicio.com.br/santoro>. Acesso em: set. 2014.
11 José Leite de Vasconcellos, “Miscelânea etnográfica”, in: Opúsculos – Etnologia
(parte II), Lisboa: Imprensa Nacional, 1938, v. VII, pp. 1291-333.
12 Ibidem, p. 1313.
13 Tradução de Marie Helene Torres, professora do Programa de Pós-Graduação
em Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina. [Ovradiev: “O Vrai
Dieu” – Les oeuvres à Dieu, as obras de Deus, as obras da misericórdia. Cf.
Comte Hippolyte-François Jaubert, Glossaire du centre de la France, Paris:
Imprimerie et Librairie Centrales de Napoléon Chaix et Cie., 1864, p. 477 – Ô
Vrai Dieu et Ovradieu. (Les oeuvres à Dieu, les oeuvres de la miséricorde), loc. Nom
donné à certaines poésies religieuses qui se conservent dans nos campagnes.]
14 José Leite de Vasconcellos, op. cit., p. 1313.
15 “A-vê-Deus” acompanha o francês original “A-Vois-Dieu”.
16 Tradução de Marie Helene Torres, cit.
17 Ana Paula Guimarães, Leitura do Pão-por-Deus [mensagem pessoal],
Mensagem recebida por <elianedebus@hotmail.com> em 7, março 2013.
18 Cf. Joana Fialho, “A tradição ainda é o que era”, Gazeta das Caldas, Caldas da
Rainha, Portugal, 28 out. 2012. Disponível em:
<www.gazetacaldas.com/26499/a-tradicao-ainda-e-o-que-era/>. Acesso em:
set. 2014.
19 Ibidem.
20 Ibidem.
21 Franklin Cascaes apud Raimundo Caruso (org.), Franklin Cascaes: vida e arte e a
colonização açoriana, Florianópolis: UFSC, 1988, pp. 157-8.
22 Doralécio Soares, Folclore catarinense, Florianópolis: UFSC, 2002, p. 34.
23 Maria Eli Braga Mannrich, Pão-por-Deus vivo na cultura brasileira, Florianópolis:
UFSC, 2007.
24 Ibidem, pp. 82-3.
25 Ibidem, p. 121.
26 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da
cultura, São Paulo: Brasiliense, 1994.
27 Eliane Debus, “Do desejo à concretização”, in: Paulo Alves, Pântano do Sul:
bilhetes do mundo nas paredes do Arante, Florianópolis: [s.n.], 2002.
Verbetes

Apresentamos nestes verbetes sínteses de conteúdos informativos com


discursos pontuais para consultas específicas. Aqui, está aberto o
precedente de que, além de informativo, em alguns casos há também
características poéticas e prosaicas, com uma linguagem acessível para que
atinja o leitor universal. Este é mais um espaço para contemplar a prática
da contação de histórias, contendo espetáculos, grupos, expressões,
contadores “anônimos” etc., com o objetivo de abrir brechas para possíveis
desdobramentos.
Salientamos que os verbetes aqui são esparsos e não abrangem todas
as expressões da área. Ao final de cada bloco de texto, os verbetes estão
acompanhados de abreviaturas que correspondem às iniciais de seus
respectivos autores. Logo, no caso de citação, deverá ser utilizada a
metodologia científica, dando crédito ao autor e não aos organizadores
desta obra. Como exemplo, CSS corresponde a Clarice Steil Siewert, e a
citação deverá ser creditada a SIEWERT, Clarice Steil.

Abreviaturas

ALS Angela Leite de Souza

CK-EB Carlos Klimick e Eliane Bettocchi


CSS Clarice Steil Siewert
DD Daiane Dordete
FF Frederico Fernandes
FHNM Fábio Henrique Nunes Medeiros
GC Gilmar de Carvalho
JC Julie Cavignac
JGF José Guilherme Fernandes
LH Luciana Hartmann
MLCR Maria Lúcia Costa Rodrigues
RA Rose Aviz
TMRM Taiza Mara Rauen Moraes
ZDF Zebba Dal Farra
Ação vocal
A ação vocal deriva do próprio conceito de ação física, criado pelo diretor-
pedagogo russo Constantin Stanislavski (1863-1938). Para ele, a ação física
deve ser o foco do trabalho do ator em cena. Ela resulta da relação entre
atitude (ação-movimento do ator) e intenção (objetivo aplicado à ação).
Para Luís Otávio Burnier, “a ação vocal, como o próprio texto diz, é a ação
da voz. Se considerarmos a voz como um prolongamento do corpo […] a
voz seria como um ‘braço do corpo’. Assim, esse ‘braço’ pode pegar um
objeto e trazê-lo para si ou empurrá-lo para longe, acarinhar ou agredir o
espaço ou outra pessoa, afirmar ou hesitar […]”. Já Lúcia Helena Gayotto
aponta a ação vocal como resultado das relações entre os recursos vocais
(primários: respiração, intensidade, frequência, ressonância e articulação; e
resultantes: projeção, volume, ritmo, velocidade, cadência, entonação,
luência, duração, pausa e ênfase) e as forças vitais, como desejos e afetos.
Na ação vocal, o ator ou narrador de histórias imprime qualidades
específicas à sua voz para indicar e estabelecer relações (ação-reação) em
cena com outros atores-narradores, com a própria cena e seus elementos
ou com o público. (DD)

REFERÊNCIAS
BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Unicamp,
2001.
GAYOTTO, Lúcia Helena. Voz: partitura da ação. São Paulo: Plexus, 2002.
STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2004.

Akpalô
Os negros, que tanto in luenciaram a cultura e a formação brasileiras,
foram também grandes difusores de contos de remotíssima origem. De
praticamente toda a África vinham braços escravos, o que significa que nos
trouxeram tradições orientais e europeias já incorporadas em sua
literatura quase totalmente oral. É esse o aspecto mais significativo de sua
contribuição para o folclore desenvolvido no Brasil. Em seu continente de
origem, contar histórias era uma antiga profissão: existia o akpalô, criador
dos alô (contos), e ainda os arokin, os narradores de crônicas do passado.
Esses narradores itinerantes, que formavam uma verdadeira casta,
tiveram sua correspondência brasileira nas velhas negras que iam de
engenho em engenho para transmitir histórias a outras negras, amas de
meninos brancos. Foram elas as grandes propagadoras da tradição oral
durante o período colonial, miscelânea de três repertórios básicos, com
seus mitos e medos, que as mães pretas iam amoldando às próprias
vivências e condições psicológicas. Narrador por excelência, dono de
expressão dramática perfeita em gestos e mobilidade fisionômica, o negro
consegue, como observou Câmara Cascudo, “efeitos maravilhosos de
sinceridade […], sugestionando inteiramente seu auditório”. (ALS)

REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo:
Itatiaia/Edusp, 1984.
_____. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio/MEC, 1976.
_____. Contos tradicionais do Brasil – Folclore. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1967.
MAGALHÃES, Basílio de. O Folk-lore no Brasil. Rio de Janeiro: Livraria Quaresma, 1928.

Almanaques populares
Os almanaques estão entre as mais antigas publicações da atividade
editorial iniciada na Europa, depois que o alemão Gutenberg “inventou” a
imprensa. O Calendrier des bergers, de 1492, é considerada a mais antiga
dessas publicações. Os “livros de horas” medievais se inscrevem como
precursores desse modelo. Depois de pontificarem na Europa como obras
de referência e consulta por um grande número de pessoas, e tendo como
característica a periodicidade anual, os almanaques chegaram ao Brasil no
século XIX. Eram obras de fácil acesso e leitura e traziam matérias que
interessavam a toda a família. Com a proliferação das tipografias e com a
indústria de bens de consumo chegando ao Brasil, os almanaques
passaram a se popularizar e foram distribuídos pelos laboratórios
farmacêuticos, por muitas lojas e por algumas indústrias, além daqueles
que tinham a chancela dos governos das províncias para circular. O
primeiro almanaque popular de que se tem notícia no Brasil é o Almanaque
de Pernambuco, lançado em 1936 pelo poeta João Ferreira Lima no formato e
nos moldes do folheto de cordel. A capa trazia a ilustração de um leão,
símbolo de Pernambuco por causa da rebeldia prevalecente e do espírito
guerreiro que fez os holandeses serem expulsos e contribuíram para a
unidade da língua e da nação. Esse almanaque trazia adivinhações,
conselhos para os agricultores, as fases da lua, os dias santificados, a
previsão de chuvas, dicas de saúde, piadas e textos de exemplos. Outros
poetas aderiram ao formato, como Manoel Caboclo, que, em Juazeiro do
Norte, chegou a ser sócio de um empreendimento do poeta João Ferreira
Lima na Tipografia Lima. Essa tipografia funcionou perto do Mercado
Central daquela cidade cearense nos anos 1950. Caboclo lançou o
almanaque O juízo do ano em 1959 e o manteve em circulação até sua morte,
em 1996. A publicação foi um grande sucesso e chegou à tiragem de 35 mil
exemplares em seu apogeu. O formato se difundiu pela região nordestina e
ganhou mais editores, como Manoel Luiz dos Santos e Vicente Vitorino
Melo, dentre outros. (GC)

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de. “Lyra popular”. In: O cordel do Juazeiro. Fortaleza: Museu do
Ceará, 2006.
FRANÇA JÚNIOR, Luis Celestino da. In: CARVALHO, Gilmar de. Onze vezes Joaseiro: tributo
a Ralph Della Cava. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011.
RIOS, Kênia Sousa. “O tempo por escrito: sobre lunários e almanaques”. In: CARVALHO,
Gilmar de (org.). Bonito pra chover: ensaios sobre a cultura cearense. Fortaleza:
Demócrito Rocha, 2003.

Amazônia, pátria d’água


O poeta amazonense Thiago de Mello, em seu poema “Amazonas, pátria da
água”, publicado em livro homônimo, lembra que a Amazônia é um
universo talhado e tangido pela água, “ramificada em milhares de
caminhos […], mágico labirinto que de si mesmo se recria
incessantemente”; água que desce dos Andes e dos céus, que medra da
terra, subterraneamente. Ao recriar-se a cada momento, esse espaço
inventa da imaginação da matéria aquática os seres que vivem e revivem
nas e das águas, oceânicas e luviais.
Estudar as narrativas míticas e orais da região requer que as
entendamos como produto da mitopoética do espaço das águas. Sejam eles
seres míticos gestados e viventes propriamente nas águas, como Maria
Vivó, Boto, Cobra-grande, Mãe-d’água, Princesa ou Ataíde, sejam eles seres
míticos sobreviventes em espaços gerados pela abundância aquática, nas
matas, manguezais e lorestas da região, como Curupira, Matintapereira,
Lobisomem ou Vira-bicho, todos os seres mitomórficos têm relação direta
ou indireta com a água, essa matéria por excelência constituinte das
imagens e dos imaginários presentes na Amazônia, particularmente a
paraense.
A água é a matéria que dá consistência ao devaneio, é o elemento
ôntico potencialmente presente em todos os seres mitomórficos e em suas
ações. Por ela, correm boiunas e cobras-grandes, botos e princesas; a água
é quem fertiliza o solo para que surja a mata, e na mata estão curupiras, e é
por onde esvoaçam matintapereiras, para onde correm vira-bichos; a água
enlameia a terra e carrega a terra dos rios para o mar, formando os
manguezais, que gestam sarambuis e ataídes. A água, talvez mais do que
em outros espaços, simboliza a infinitude dos possíveis, é a fertilidade do
espírito e da matéria, a força arrebatadora da vida e da morte, é a
maternidade feminil e a maternidade fantástica do inconsciente.
Na largueza do espaço amazônico, a primazia do natural fez com
que o homem nativo ficasse mais sujeito e dependente dos seres míticos
que habitam seu imaginário. Na luta pelo objeto do desejo (o espaço),
quase sempre labutada e laborada em rios, matas, lorestas, mares, praias e
manguezais, os seres míticos sobrepõem-se nos con litos narrativos aos
seres humanos. São seres que transitam pelos pórticos dos tempos,
históricos e míticos, e são pregoeiros do tempo da lassidão, tempo de
longínquas distâncias e largueza do espaço, que fazem o homem retornar
ao “tempo primordial”, ao mythoi que firma a existência. (JGF)

REFERÊNCIA
MELLO, Thiago de. “Amazonas, pátria da água”. In: Amazonas, pátria da água e Notícia da
visitação que fiz no verão de 1953 ao rio Amazonas e seus barrancos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1987.
Ambiência sonora
Segundo Juliana Rangel de Freitas Pereira, ambiência sonora “é a voz do
ator articulada aos sons dos objetos sonoros produzidos por ele, tornando-
se linguagem e possibilidade de comunicação pelo que possuem de
sinestesia”. A autora compreende a produção de ambiências sonoras na
cena como um evento que afeta não apenas o espectador, mas a própria
criação corpóreo-vocal do ator, através das vibrações, imagens e sensações
que as sonoridades geram. Anteriormente a Pereira, Murray Schafer havia
cunhado o termo “paisagem sonora” para indicar as composições
formadas por objetos sonoros – sons de diversas fontes, classificados como
naturais, mecânicos, humanos, indicadores e culturais – e indicadoras de
imagens, ações, sensações e sentidos diversos no cotidiano. Schafer diz
que “o termo pode referir-se a ambientes reais ou a construções abstratas,
como composições musicais e montagens de fitas, em particular quando
consideradas como um ambiente”. Contudo, o termo trazido por Pereira é
mais eficaz por indicar a produção sonora no ambiente da cena, por voz ou
outras fontes sonoras, e por ser ao mesmo tempo material de pesquisa
para a criação corpóreo-vocal do ator e dramaturgia sonora. (DD)

REFERÊNCIAS
PEREIRA, Juliana Rangel de Freitas. Canção do mar de Salema: um processo de criação de
ambiência sonora articulada pela voz do ator. 112f. Dissertação (Mestrado em teatro)
– Universidade Federal da Bahia, Salvador: 2007.
SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e
pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora.
São Paulo: Unesp, 2001.

Animismo
Esse termo foi usado pelo antropólogo inglês Edward Burnett Tylor em
seus estudos sobre a evolução cultural do homem, referindo-se aos
elementos naturais como dotados de vida, animados, no livro Primitive
Culture, de 1871. Conforme citado por Newton Cunha, para Tylor “o
animismo estaria na base das concepções religiosas e metafísicas do ser
humano. O animismo vincula-se, portanto, à possibilidade da magia, ou
seja, da intercessão humana nas manifestações naturais”. Cunha ainda vai
além e se refere à prosopopeia e à personificação, e, assim, se aproxima da
representação dramática, do jogo, do simbólico – embora no contexto
“primitivo” isso se instaurasse de forma natural e não consciente. A
professora de psicologia da infância Jacqueline Held se refere ao animismo
dizendo que é uma etapa do desenvolvimento psíquico humano: “[A
criança] dá vida ao que toca […] sem problema e sem admiração, a criança
encontra o sol, a lua e as estrelas, a chuva, a neve, a lor e a sombra de lor.
Ela lhes fala, escuta suas respostas e caminha com eles”. Para a autora, a
criança passa por uma longa fase de brinquedo simbólico, que prolonga o
fantástico e “reúne na criança toda a visão animista do mundo”. É da
natureza humana a capacidade de animar. Para Ana Maria Amaral, é na
infância que esse desejo surge e é visível, quando a criança se relaciona
igualmente com os animais e com os objetos. É da natureza da criança o
animismo, atribuindo vida às coisas que a rodeiam. Transforma objetos e
se relaciona com a natureza, cria uma realidade imaginária sem
estabelecer fronteira com o real. O animismo é uma espécie de
prolongamento do mundo, de insatisfação ou de insuficiência, e mesmo de
extensão da percepção. Ainda nas palavras de Jacqueline Held, nesse
sentido “cada um de nós retira do real seu próprio universo”. (FHNM)

REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas. São Paulo: Edusp, 1996.
CUNHA, Newton. Dicionário Sesc: a linguagem da cultura. São Paulo: Sesc/Perspectiva,
2003.
HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São Paulo:
Summus, 1980.
TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture. London: John Murray, 1871.

Apoio respiratório ou vocal


O apoio respiratório diz respeito ao tônus muscular necessário para a
produção vocal profissional, geralmente em altas intensidades e grande
variação de registros, com maior pressão subglótica e sem lesão às pregas
vocais. O apoio respiratório permite maior controle da produção vocal e
melhor aproveitamento do ar na transformação deste em som. Para a
ativação do apoio vocal, a respiração mobiliza os músculos intercostais, o
diafragma, os abdominais e, por vezes, o assoalho pélvico. Janaína Träsel
Martins afirma: “Na atuação do ator, quando não ocorre o impulso
respiratório através da ativação da musculatura da cinta abdominal, ocorre
um grande esforço compensatório da musculatura extrínseca e intrínseca
da laringe devido à ausência da pressão aérea subglótica, o que gera
sobrecarga vocal, fadiga e estresse da musculatura laríngea”. Há várias
técnicas de apoio vocal, formuladas principalmente para atores e cantores.
A maioria prioriza na inspiração o movimento de abertura das costelas
lutuantes (promovendo ampliação do eixo horizontal do corpo),
concomitante ao movimento de abertura e descida do diafragma
(projetando as vísceras no abdominal inferior). Já na expiração, algumas
técnicas priorizam a sustentação da abertura das costelas e uma força
concêntrica (para dentro, em retração) da musculatura abdominal,
enquanto outras trabalham na sustentação excêntrica (para fora, em
expansão) de toda a cinta abdominal, atingindo também a região pélvica.
(DD)

REFERÊNCIAS
LIGNELLI, César. Sons e cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica.
350f. Tese (Doutorado em educação) – Universidade de Brasília, Brasília: 2011.
MARTINS, Janaína Träsel. Os princípios da ressonância vocal na ludicidade dos jogos de
corpo-voz para a formação do ator. 199f. Tese (Doutorado em teatro) – Universidade
Federal da Bahia, Salvador: 2008.
PEREIRA, Eugênio Tadeu. Práticas lúdicas na formação vocal em teatro. 246f. Tese
(Doutorado em comunicação e artes) – Universidade de São Paulo, São Paulo:
2012.

Ataíde ver Curupira e Ataíde

Baobá
Batizado pelos cientistas como Andosonia digitata, o nome científico do
baobá, ou embondeiro, foi dado em homenagem ao naturalista francês
Michel Adanson, que, em suas andanças pelo continente africano, fez um
relatório minucioso sobre a árvore e o enviou a alguns cientistas europeus.
Além de ser uma árvore da qual tudo se aproveita – fruto, semente, lor –, o
que mais impressiona no baobá é a grande espessura de seu tronco. Há
uma região de Moçambique em que ocorreu uma verdadeira guerra pela
água, e o tronco do baobá funcionou como cisterna. O grande cineasta
brasileiro quase moçambicano Licínio Azevedo fez o lindo filme A guerra da
água e também publicou um livro com as principais fotografias da obra, em
que o baobá aparece como armazenador de água. Em Moçambique, essa
árvore é considerada sagrada porque se acredita que ela seja protetora. O
autor moçambicano Mia Couto escreveu o livro A confissão da leoa, lançado
no Brasil em 2012, com um enredo baseado em um acontecimento real: as
sucessivas mortes de pessoas atacadas por leões. Essa obra é ambientada
em um pequeno lugarejo no norte de Moçambique, uma das regiões
daquele país nas quais existem muitos baobás. Foi em Moçambique que
ouvi dizer: “onde há baobás, há leões”. O baobá também é um símbolo de
sabedoria, e muitos anciãos moçambicanos são comparados a essa árvore
sagrada. Um deles é Malangatana Ngwenya: aquele que não pode morrer
nunca! (RA)

REFERÊNCIAS
A GUERRA da água. Direção: Licínio Azevedo. Moçambique: Ebano Multimedia. 1995.
73 min., color.
AZEVEDO, Licínio; CABRAL, José. A guerra da água (The Water War). Moçambique/Suíça:
ébano Multimédia/Cooperação da Suíça, 1998.
COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Blablação ver Grammelot ou Blablação

Boto ver Cobra-grande e Boto

Cantor
1. Ação: o cantor lança seu corpo na vocalidade poética da canção. Paixão: o
cantor navega no mar de seu canto. Nesses movimentos, o cantor expande
e libera sua voz cotidiana.
2. Aracy de Almeida afirmou uma vez que percebera cedo não ser cantora,
mas que mesmo assim podia dizer a música brasileira. A cantora brasileira
canta dizendo. A voz brasileira diz cantando.
3. Podemos imaginar o cantor absoluto como um sujeito ressonante, um
ponto de acumulação de uma série em que a atividade mental do eu
domina progressivamente a atividade mental do nós. Sua voz vibrante de
paixão não reclama significados. Buscar esse limite é dirigir-se no sentido
de uma experiência vibratória de paixão e padecimento, uma arqueologia
de prospecção do horizonte do instante imediatamente anterior à
vocalização da palavra, em que cantávamos como pássaros e com os
pássaros, caminhando talvez por uma passagem falada, conectada com
sedimentos de tempos imemoriais, de dimensão geológica. O rapsodo
porta em seu corpo as marcas desse cantor. (ZDF)

REFERÊNCIAS
LOPES, Sara. “Do canto popular e da fala poética”. Revista Sala Preta. São Paulo: 2007,
n. 7, pp. 19-31.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.

Catira ou cateretê
Dança rural do sul do Brasil, conhecida desde o período colonial em São
Paulo, Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Couto de Magalhães informa que
o padre José de Anchieta a incluiu nas festas da Santa Cruz, de São
Gonçalo, do Espírito Santo, de São João e de Nossa Senhora da Conceição,
compondo versos no seu ritmo e partitura. Podia até ser dançada sem
mulheres. Alguns estudiosos acreditam ser de origem indígena; outros,
africana; e ainda é vista como a dança do século XVI que se chamou
“carretera”, em Portugal. Tendo alguns elementos fixos, a catira apresenta
variações na melodia e na coreografia. Duas filas, uma de homens e outra
de mulheres, uma diante da outra, evolucionam ao som de palmas e bate-
pés, guiados pelos violeiros e dirigidos por um mestre e um contramestre,
os únicos que cantam. Ao final de cada estrofe, trocam-se os lugares. Volta
e meia fazem um “pião”, ou seja, cada figurante gira sobre si mesmo e
retoma a frente inicial. As figuras são variadas, e há tradição de bons
dançarinos. Em Minas Gerais, o cateretê ocorre no sudoeste e na ponta do
Triângulo Mineiro, a partir de Frutal. Câmara Cascudo citava, a propósito
da dança, estes versos: “Parece uma coisa à toa/ Mas tem muito que sabê;/
que não é qualquer pessoa/ que dança o Cateretê”. (ALS)

REFERÊNCIAS
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.

Catumbi*
Na língua tupi, caá + tumbi significa folha (ou mato) azul. No dicionário
Houaiss, temos ainda outras interpretações para esse termo indígena: “ao
pé do monte” ou “à beira da mata”. Nei Lopes, estudioso e militante da
causa negra no Brasil, traz significativas contribuições para tornar visível a
herança africana na sociedade brasileira. É ele quem fica atento à
semelhança do termo com o vocábulo banto “cucumbi”. Na etimologia da
palavra “cucumbi” está kikumbi: “puberdade”, “festa da puberdade”, além de
ligar-se a um rito propiciatório de bom parto, todas práticas muito comuns
na maioria dos países africanos, até mesmo em Moçambique. O mesmo
autor, ao citar a obra de Mello Morais Filho, Festas e tradições populares do
Brasil, dá atenção aos cucumbis realizados no Rio de Janeiro imperial e
afirma que essa era a denominação dada na Bahia às “hordas dos negros
de várias tribos”, que se organizavam em “ranchos” ou “quintais” de canto
e dança na ocasião do Carnaval e do Natal. Nas demais províncias, eles
recebiam o nome de “congos”. Lopes ainda argumenta que o historiador
Morais Filho é quem mostra o folguedo como representação do cortejo dos
negros congos para a apresentação do mameto (criança) recém-
circuncidado à sua rainha. O mameto é uma “personagem dos antigos
cucumbis do Rio de Janeiro que representava uma criança, o filho do rei.
Esse vocábulo origina-se do quimbundo mam’etu, interjeição, ‘ai, mamãe!’”.
A apresentação dos mametos à rainha acontecia sempre “após a refeição
lauta do cucumbe”, comida de que se serviam congos e munhambanas no
dia da circuncisão de seus filhos. (RA) *Veja também as palavras finais do
verbete Caxambu. [N. E.]

REFERÊNCIAS
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.
MELLO MORAIS FILHO, José Alexandre. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de
Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1946.

Causo
Na região Sul do Brasil, assim como em outras regiões do país, a
designação primeira para as narrativas tradicionais é o causo. Embora a
expressão designe grande parte das formas narrativas da região Sul, há
algumas nuances nesse etnogênero: além dos causos, a população local
menciona ainda “anedotas” e “modinhas”. Entre o que é considerado
causo, também pode haver diferenças, alguns sendo designados como
“mentiras”. É consenso na região que o causo é um episódio vivenciado
pelo próprio contador ou ouvido por ele, no entanto, sempre com uma
“pitada” de exagero, posicionando-se entre o fato e a “mentira” (uma
categoria usada frequentemente com o mesmo significado de causo): “A
gente aumenta, mas não inventa”. A diferença entre os “causos verídicos” e
as “mentiras” pode ser demarcada pelo contador – “Isso não é causo, mas é
um fato” –, mas a avaliação final sempre será dada pelos ouvintes. Os
causos são contados nas chamadas “rodas de causos”, que ocorrem
normalmente à tardinha, após o trabalho, reunindo vários ouvintes, alguns
deles também contadores: “é bom é quando tem uns quantos. Um conta e
outro já lembra doutro, e outro conta aquele, e outro lembra doutro…”. Faz
parte das estratégias narrativas os contadores assinalarem, no início dos
causos, nomes de pessoas e locais para garantir maior legitimidade ao que
será contado: “Aqui tem o seu Bibi Carvalho… é apelido dele, Bibi Carvalho,
sabe? Na Picada Grande”. (LH)

Caxambu
Grande tambor negro e também a dança executada ao som desse
instrumento. Luís da Câmara Cascudo cita Virgílio Martins de Mello
Franco e seu livro Viagem à comarca da Palma na província de Goyaz:
“apreciam muito a dança […] porém, nada tem de elegante, nem artística;
ao contrário, é grosseira e brutal como todas as coisas africanas e consiste
em uns trejeitos e gatimonhas”. O caxambu figura como instrumento em
outras danças e mesmo em um bailado, o jongo, em São Paulo, Minas
Gerais e Goiás. De origem sul-africana, da cultura banta, o caxambu é uma
variação do jongo e, em Minas Gerais, mostra-se frequente em Ponte Nova
e vizinhanças. De acordo com Saul Martins, há um registro gravado em
1975, por Alice Inês de Oliveira e Silva, técnica em assuntos culturais da
Universidade Federal de Viçosa e membro da Comissão Mineira de
Folclore, de uma estrofe referente a essa tradição: “Chega na cozinha./
Caxambu tá lá!/ Ei! é devera papai,/ é devera mamãe,/ Eu mesmo tengo ou
lotengo devera,/ Eu mesmo manco iromanco devera,/ Ei! Ei, ei, ei, cariru de
Maria…”. Há outros nomes para a dança: cacumbu, cacumbi e cucumbi.
(ALS)

REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.
COMISSÃO MINEIRA DE FOLCLORE. Associação dos Filhos e Amigos de Gouveia.
Disponível em: <www.afagouveia.org.br/ComissaoMineiraFolclore.htm>. Acesso
em: nov. 2014.
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
MELLO FRANCO, Virgílio Martins de. Viagem à comarca da Palma na província de Goyaz.
Rio de Janeiro: Typographia da Reforma, 1876.

Chico Rei
Segundo a tradição, Galanga (nome que lhe fora dado pelos pais)
governava uma porção do sul da África situada no interior, mas ainda
próxima à foz do rio Congo. Na primeira década do século XVIII, o pequeno
reino foi invadido por ambiciosos inimigos, e o bom monarca, sua família
e membros da corte foram presos a uma fieira de correntes, conduzidos à
praia e lançados ao porão imundo de um navio negreiro que rumou para o
Brasil. As más condições e os maus-tratos durante o percurso levaram
muitos prisioneiros à morte, entre eles a rainha e seus filhos, exceto o mais
velho. Aportando no Rio de Janeiro, todos foram vendidos na praça do
Valongo a mineradores de Vila Rica do Ouro Preto, em Minas Gerais. Por
sorte, Galanga e seu filho foram comprados por um senhor bom e humano,
que lhes permitia garimpar ou cultivar uma pequena gleba em benefício
próprio ou mesmo trabalhar para terceiros, como se fossem livres.
Batizado pelo senhor de Francisco, em dois anos de poupança Chico
comprou sua carta de alforria. Segue-se então uma longa história de lutas
e conquistas em que o ex-escravo obteve meios de libertar outros negros e,
ao mesmo tempo, adquiriu enorme prestígio e estima de brancos e pretos
de Vila Rica. Chico então passou a ser conhecido como Chico Rei, pois
enriqueceu, chegando a possuir uma lavra. Casou-se novamente e, como
líder de um grupo de negros forros, edificou uma igreja em honra de Nossa
Senhora do Rosário. Em torno dela, criou uma Irmandade. À sombra da
igreja, sob os auspícios dos padres que se tornaram seus amigos, Chico Rei
fundou uma “guarda de congos”. Aos domingos, subia o morro a caminho
da igreja trajado com opulência, com coroa de ouro e manto verde, de
braços com a esposa. Seu filho mais velho, com toda a pompa, segurava um
imenso guarda-sol amarelo, bordado com franjas de ouro, para protegê-
los. Debaixo desse pálio iam também duas mucamas. À frente, ostentando
várias insígnias, tocando instrumentos africanos e dançando sem parar,
iam os “congos”. Atrás desse cortejo ainda vinham cerca de quarenta
negros ricamente vestidos. O povo acorria às janelas e calçadas para ver a
corte passar. As guardas se expandiram por toda a província das Gerais, à
proporção que a fama de Chico Rei aumentava. Geralmente os congos
escolhiam Santa Ifigênia para padroeira, ao passo que os “moçambiques”
preferiam São Benedito. Ambas as guardas, assim como as que vieram
depois, com outras denominações e peculiaridades, eram fundadas sob as
graças de Nossa Senhora do Rosário. A partir do século passado,
adquiriram o nome genérico de “congados”. (ALS)

REFERÊNCIAS
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
SERVIÇO GEOLÓGICO DO BRASIL (CPRM). Ponto 31, Mina Chico Rei. Disponível em:
<www.cprm.gov.br/estrada_real/31.html>. Acesso em: set. 2014.
Cobra-grande e Boto
Segundo Luís da Câmara Cascudo, a cobra parece ser a origem de um ciclo
mítico. A intercorrência da palavra tupi moia, “cobra”, está presente em
inúmeros tupinismos, como se a cobra fosse elemento composicional de
inúmeros seres míticos. A começar pelo outro nome da Cobra-grande, que
é Boiuna, proveniente de ‘mboi-úna, “cobra preta”; ou então no outro
designativo da Mãe-d’água, que é Iara, ou suas variações Uyára, Oiára,
Uiara. Cascudo cita Couto de Magalhães, que diz que o Boto também é
designado como Uauiará, deus da mitologia indígena amazônica que se
transforma em Boto, ser protetor dos peixes e grande amador de índias.
Mesmo que haja estrita ligação, na mitologia indígena, entre Boto e Cobra-
grande, por vezes se confundindo ambos, o primeiro só aparece na
configuração de sedutor das moçoilas ribeirinhas dos rios da Amazônia a
partir do século XIX, assim como a Iara ou a Mãe-d’água, talvez a partir de
processos transculturadores provocados pela colonização. Até então,
particularmente do século XVI ao XVII, há a ocorrência, em cronistas
viajantes do período colonial, de ipupiaras, homens-peixes que matavam e
devoravam os incautos. O Boto também aparece sob a forma feminina,
como uma bela mulher de longos cabelos que seduz os homens e os
arrebata para o fundo dos rios. Em Santarém, no Pará, há registro
específico da aparição desse boto metamorfoseado em mulher. Como
elemento feminino, tal qual a água, apresenta sensualidade e maternidade,
sedução e vida, a origem de tudo. A beleza talhada pelas águas faz com que
o Boto e a Cobra-grande, ou Boiuna, sejam pavoneados pelo imaginário
nativo como seres de esplendor das águas, principalmente nas noites de
luar, quando transmitem brilho e viscosidade próprios das encantarias,
re letidas nas “escamas d’água”. Nesses momentos, esses seres compõem a
matéria aquática como prolongamentos, como a epiderme dos rios e
igarapés: o Boto em movimentos elegantes acompanhando barcos, que
serão repetidos nos salões quando, metamorfoseado em rapaz e exímio
dançarino, seduz eroticamente as moças atraídas por sua grande beleza; a
Cobra-grande é a própria soberba transfigurada em “navio alumiado” na
ilha da Pacoca, surgindo em Abaetetuba (Pará), cortando as águas e
assumindo um brilho que ofusca os olhos admirados, como a imagem
bachelardiana do cisne. Ao que parece, o Boto e a Cobra-grande encarnam
o hermafroditismo quando transitam do mundo feminino (a água) para o
mundo masculino, do ser metamorfoseado em belos rapazes ou como o
fálico navio que hipnotiza e rasga a pele dos rios e igarapés. (JGF)

REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.
_____. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de Janeiro: José Olympio/MEC, 1976.
MAGALHÃES, José Vieira Couto de. O selvagem. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1935.

Comunidade narrativa
Termo retirado da obra Conto popular e comunidade narrativa, de autoria de
Francisco Assis de Sousa Lima, pelo qual se designa um grupo social que
compartilha histórias e práticas mais ou menos comuns. A comunidade
narrativa tem na circulação da poesia oral um dos principais traços de sua
formação, pois a poesia oral positiva ideias e valores, contribuindo para
articular, desse modo, a identidade do grupo. (FF)

REFERÊNCIA
LIMA, Francisco Assis de Sousa. Conto popular e comunidade narrativa. Rio de Janeiro:
Funarte/Instituto Nacional do Folclore, 1985.

Congadas
Trata-se de uma festa de devoção, um ritual “sagrado”, embora o profano
esteja fortemente associado a ela. Congada é, na verdade, a denominação
da grande família coreográfica em torno de Nossa Senhora do Rosário e
dos santos pretos. O registro mais antigo de sua ocorrência em Minas
Gerais foi feito por André João Antonil, que ali esteve em 1705. Em obra
publicada em 1711, referiu-se ao costume de os negros locais criarem reis,
juízes e juízas por ocasião das festas de Nossa Senhora do Rosário e de São
Benedito. Atualmente, os festejos abrangem o chamado Ciclo do Rosário,
que começa em agosto e tem a duração de três meses. O ritual das festas se
inicia com o levantamento do mastro – às vezes dois, um no adro da igreja
e outro na casa do festeiro. Depois, ainda de manhã, uma escolta conduz a
Coroa (o reinado) da residência dos reis até o altar. No trajeto, os “varsais”
dançam e cantam ou fazem “embaixadas”. A irmandade em Minas Gerais é
constituída por oito guardas, mas somente duas – congos e marujos –
fazem embaixadas. Durante a missa, que é o encerramento das
solenidades religiosas, procede-se à cerimônia de entrega do reinado,
quando são coroados novos reis para aquele ano. A isso, segue-se o almoço,
elemento de forte coesão social entre figurantes e membros da
comunidade. Baixam-se os mastros oito dias após o término das
festividades. Até hoje, quase trezentos anos decorridos, a tradição
permanece, e, ao ver o cortejo pelas ruas, sobretudo nas cidades históricas,
tem-se a impressão de que o tempo recuou e volta-se mentalmente ao ano
de 1750, para homenagear Chico Rei ainda vivo, de corpo presente. (ALS)

REFERÊNCIAS
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas, com várias
notícias curiosas […]. Lisboa: O ficina Real Deslandesiana, 1711. Disponível em:
<https://archive.org/details/culturaeopulenci00anto>. Acesso em: set. 2014.
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.

Contador-animador
Neologismo para denominar o contador de histórias que se vale do teatro
de animação (animação de bonecos, objetos, figuras etc.). Em sua prática,
o contador de histórias trabalha recorrentemente com princípios do teatro
de animação, tais como recursos de olhar, personificação da voz, entre
outros. Para saber mais, leia o texto “Contador de histórias: um animador
de palavras e coisas”, presente nesta coletânea (pp. 213-25). (FHNM)

Contador de histórias
Todo indivíduo que, ao contar uma história, se preocupa com a postura
diante do ouvinte e aprimora os gestos e a voz em benefício da narrativa. O
contador de histórias desenvolve técnicas que lhe conferem um estilo
próprio de contar histórias. O narrador não é necessariamente um bom
contador de histórias. Seu espaço privilegiado de atuação é o teatro. (FF)
Conto de despedida
Os contos de despedida podem estar relacionados a uma narrativa cujo
sentido seja a ausência de alguém. Eles também podem corresponder a
narrativas de costume. Em Moçambique, é muito comum o canto aparecer
como narrativa de despedida porque, para os moçambicanos, muito pode
ser expressado pelo canto por ele ser um enunciador do que se passa no
corpo. Um exemplo desse tipo de narrativa é a canção tradicional Salani:

Salani, salani, salani vamakwerhu


[Adeus, adeus, adeus irmãos-companheiros]
Oh salani, salani, salani vamakwerhu
[Oh adeus, adeus, adeus irmãos-companheiros]
Salani kunene São Tomé
[Adeus propício São Tomé]

Oh salani, salani, salani vamakwerhu


[Oh adeus, adeus, adeus irmãos-companheiros]
Oh salani, salani, salani vamakwerhu
[Oh adeus, adeus, adeus irmãos-companheiros]
Salani kunene São Tomé
[Adeus propício São Tomé]

Salani era o canto de despedida entoado aos moçambicanos


enviados a São Tomé como punição pelo não pagamento de dívidas
institucionais, como impostos e dívidas semelhantes.
Henri Junod apresenta um tipo de narrativa chamada “narrativa
fúnebre”, que é designada como uma subcategoria das narrativas
denominadas narrativas de costume. Esse tipo de narrativa é encontrado
em diversas culturas e entoada durante os ritos fúnebres, acompanhada de
palmas e dança. No Brasil, os vissungos – cantos entoados especificamente
durante o transporte de defuntos em redes – também podem ser
caracterizados como narrativas fúnebres. (RA)
REFERÊNCIA
JUNOD, Henri. Usos e costumes dos bantu. Maputo: Arquivo Histórico de Moçambique,
1996.

Contos maravilhosos
O termo “maravilhoso” se aplica aos contos populares de origem oriental
em que o elemento mágico e o encantamento estão presentes. Foram eles
os antecessores dos chamados “contos de fadas”, que, apesar da
procedência e da temática semelhantes – geralmente, alguém do povo que
parte em busca de alguma forma de autorrealização –, surgiriam com essa
denominação somente em fins do século XVII, na Europa ocidental.
Curiosamente, poucas vezes as fadas estão presentes neles. O que sempre
intrigou os estudiosos foi o processo de transformação dessas narrativas,
que se fracionam, para depois fundirem-se com outras partes, em um jogo
de combinações aparentemente infinito. Coube ao filólogo estruturalista
russo Vladimir Propp encontrar a explicação do fenômeno, após um
estudo sistemático de 449 contos tradicionais. Sua tese, exposta no livro
Morfologia do conto, é a de que as partes constitutivas de tais histórias
podem ser transportadas de uma para outra sem nenhuma alteração. Além
disso, a função das personagens na narrativa tem valor constante, e o que
varia é o meio empregado para elas realizarem suas ações nesse contexto.
Surge daí a ilimitada propriedade que têm os contos maravilhosos de
mudar de forma, surgindo em novas versões. Propp chegou à conclusão de
que as estruturas desse tipo de conto são absolutamente uniformes. É por
isso que um único estudo conseguiu reunir nada menos de 130 variantes
de “Cinderela” mundo afora. (ALS)

REFERÊNCIAS
AMARAL, Amadeu. Tradições populares. São Paulo: Instituto Progresso Editorial, 1948.
GOMES, Lindolfo. Contos populares: narrativas maravilhosas e lendárias, seguidas de
cantigas de adormecer – da tradição oral do estado de Minas. v. 2. São Paulo:
Melhoramentos, 1919.
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto. Lisboa: Veja, 1983.
Cordel
Tradicionalmente chamados de “folhetos de feira”, os cordéis são vendidos
nas feiras nordestinas desde o final do século XIX por poetas de bancada e
folheteiros que declamam trechos para chamar os clientes. São poemas
impressos em sextilhas (versos de seis sílabas) ou décimas (versos de dez
sílabas), ilustrados com xilogravuras, desenhos ou fotografias e destinados
a ser decorados ou lidos publicamente. Fazem referência ao sertão, o
interior do Nordeste, e tratam de temas jocosos e da atualidade e de
personagens da região: vaqueiro, cangaceiro, profeta, matuto, retirante,
político, artista etc. Sendo uma história em versos impressa
artesanalmente, com 4, 8, 16 ou 32 páginas, o folheto pertence ao mesmo
universo cultural da cantoria, poesia improvisada com viola de dez cordas,
com regras bem definidas e performatizada por repentistas ou poetas “pé
de parede”, que podem também escrever folhetos. O folheto de cordel
ainda é presente nas cidades nordestinas, em particular nas do interior
que têm uma importante atividade econômica ou religiosa, como Campina
Grande, Mossoró, Crato ou Juazeiro do Norte. É também encontrado nos
lugares turísticos, nas feiras de artesanato e nas rodoviárias, em uma faixa
que vai de Fortaleza, ao norte, a Salvador de Bahia, no sul. O cordel se
estabeleceu ainda nas cidades que receberam um contingente importante
de migrantes do Nordeste: Belém do Pará, Rio de Janeiro, São Paulo e
Brasília. Grande parte da produção ainda é artesanal, mas as tipografias
foram extintas e o uso do computador é sistemático. Desde os anos 1970, a
editora Luzeiro domina o mercado de cordel no país e hoje vende pela
internet. Instalada em São Paulo, reimprime sistematicamente os grandes
sucessos de poetas famosos como Leandro Gomes de Barros (1865-1918),
João Melquíades Ferreira da Silva (1869-1933), João Martins de Ataíde
(1880-1959), Francisco das Chagas Batista (1882-1930), José Camelo de Melo
Resende (1885-1964), João Bernardo da Silva (1901-1972), Manuel Camilo
dos Santos (1905-1987), Severino Milanês da Silva (1906-1967), Manoel
d’Almeida Filho (1914-1995), João José da Silva (1922-1997), entre outros. (JC)

REFERÊNCIA
EDITORA LUZEIRO. Disponível em: <http://editoraluzeiro.com.br/>. Acesso em: nov.
2014.
Corpo-seco
O filho que espanca a mãe ou nutre por ela desejos edipianos não é
“comido” pela terra quando morre. A cada ano, ela o devolve um palmo.
Findos sete anos, ele emerge à superfície. O coveiro, então, transportará o
corpo-seco entre esteiras, para que ninguém o veja, até o padre da
freguesia, tendo o extremo cuidado de não o tocar. Caso isso aconteça,
surgirão feridas pelo contato. O sacerdote desempenha aqui uma
importante função, que é a de esconder o corpo-seco atrás do altar, onde
ficará durante os sete anos seguintes. Assim, a terra não mais o recusará.
Sem a intervenção da Igreja, o fogo o destruiria, e nem os urubus ou os
vermes o aceitariam para repasto. Apesar de ser uma entidade inerte, o
corpo-seco tem prestígio sobrenatural: não se deixa consumir e causa
úlceras incuráveis.
É interessante observar o simbolismo do número 7 nas histórias.
Esse número apresenta-se místico, misterioso, aritmeticamente
“esquisito” e, sobretudo, como o número da Criação. Ao identificá-lo com a
soma de 3 (a Trindade divina) mais 4 (os quatro elementos do mundo
físico), o número 7 surge como a união do homem com Deus. O 7 é o
número místico por excelência. Ele goza de uma série de privilégios, não
apenas entre os ocultistas como também em todas as religiões e seitas, das
mais primitivas às mais modernas. Além disso, são sete: as ciências
naturais, as virtudes, os pecados capitais, os sacramentos, as notas
musicais, os gênios persas, os arcanjos judaico-cristãos e assim por diante.
O 7 é um número primo e o único a não ser aritmeticamente múltiplo nem
divisor de outro número entre 1 e 10. 0 7 é, sem dúvida alguma, um número
diferente. Parece que o seu segredo é propriedade dos deuses…
Uma variante dessa lenda do corpo-seco é descrita por Veiga
Miranda em sua obra Mau-olhado, relativa a mulheres que “viravam
lobisomem” ou que “dormiam com o capeta sem saber e depois apareciam
com moléstias horríveis”. Ele completa: “Essas relações com o Tinhoso
traziam, às vezes, em consequência, uma enfermidade estranha: o corpo
da mulher ia definhando, […] até ficar como o de uma verdadeira criança. A
criatura possuída do demônio, se morria, […] nenhum bicho, nem os
corvos, nem as formigas, nem as vespas lhe atacariam o cadáver.
Enterrada, a própria terra, anos e anos, repugnava operar a
decomposição”. (ALS)

REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.
CHABOCHE, François-Xavier. Vida e mistério dos números. São Paulo: Hemus, 2005.
HITCHCOCK, Helyn. A magia dos números ao seu alcance. São Paulo: Pensamento, 2013.
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.
VARLEY, Desmond. Sete, o número da Criação. Lisboa: Edições 70, 1976.
VEIGA MIRANDA. Mau-olhado. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925.

Curupira e Ataíde
O Curupira é um ser ancestral na mitologia indígena e se imiscui no
decorrer da colonização no Brasil. Em geral, ele é representado como um
pequenino homem com os pés virados, com os calcanhares para a frente.
Marcadamente um demônio da mata, o Curupira engana caçadores e
viajantes, fazendo-os perder-se nos caminhos e provocando pavores e
remorsos (sensação de medo súbito). Por outro lado, também é visto pelos
conservacionistas e ambientalistas modernos como um ser mítico
protetor, pois percorre a loresta por ocasião de tempestades e trovões
verificando a resistência das árvores diante das chuvas, tão recorrentes na
Amazônia, batendo nos troncos com o calcanhar, o pênis ou um machado.
Mesmo considerado por Cascudo um menino (masculino) – corumi,
“menino”, e pira, “corpo”, ou seja, “corpo de menino” –, o Curupira aparece
também como um ser feminino – “a” Curupira – , a exemplo de narrativas
coletadas nas cidades de Bragança e de Santa Isabel, no Pará. Talvez por
sua característica preponderante de proteção das matas e das lorestas, o
ser mítico se confunde com a maternidade. Ali também a Curupira agrada
e ensina: no primeiro caso, faz pactos com os caçadores para lhes fornecer
caça boa e farta em troca de alimentos; como mestre, a Curupira ensina os
mistérios das matas para alguns que são seduzidos por ela para o ventre da
terra, para seu espaço de encantaria. No entanto, ela pode punir os
caçadores que não cumprem suas promessas e aqueles que destroem ou
exploram as matas.
O Ataíde, também de ocorrência restrita à cidade de Bragança e
adjacências, pode ser compreendido como uma variação do Curupira
masculino, e sua aparição é limitada aos manguezais litorâneos da região
nordeste do Pará. Pode ser igualmente designado como Sarambui. Tem
aparência de um grande ser peludo, lembrando um gorila, com um orifício
no umbigo. Habita a transição entre a água oceânica e a terra de restingas
e campos litorâneos, isto é, o manguezal, espaço que sofre a ingerência das
marés e tem solo argiloso. A argila é a matéria dos devaneios infinitos, da
criação; é uma matéria plástica e ambígua, de união entre terra e água; é o
perfeito casamento de opostos. O Ataíde também pode ser entendido como
um misto de Curupira e Boto: do primeiro guarda o sentido de proteção do
espaço, já que persegue os coletores e pescadores que abusam na retirada
de caranguejos, peixes e árvores do mangue; do Boto, guarda o apelo
erótico, mas de maneira agressiva, ele não é sedutor como o Boto.
Possuidor de falo descomunal, que enrola no pescoço, é um ser ameaçador
para os pescadores e extrativistas, que evitam, a todo custo, ser
manietados e copulados pelo ser mítico. Para se proteger, não vão sozinhos
ao manguezal, o que resulta no fato de o trabalho de pescadores e
extrativistas da região ser uma atividade coletiva. (JGF)

REFERÊNCIA
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.

Efigênia Ramos Rolim, a rainha do papel


“A fama é lama, eu sou é reconhecida”: essa é uma das muitas falas
improvisadas e bastante significativas de dona Efigênia. O
reconhecimento é uma questão fundamental para o contador de histórias.
Não se trata de ser conhecido, mas de ser reconhecido. Conheci dona
Efigênia em 2001 ou 2002 na feirinha de artesanato do largo da Ordem em
Curitiba, no Paraná. Quando vi sua barraca, cheia de “penduricalhos”,
papéis brilhosos de ovos de Páscoa e balas, achei fantástico, ainda mais
quando vi que uma senhora se confundia com tudo aquilo que estava
pendurado. Ela é uma extensão da barraca, a barraca é uma extensão dela
e tudo é uma extensão das histórias que dona Efigênia interpreta, vive e
expande na feirinha de Curitiba e no mundo que por ali passa. Quando
meus olhos conseguiram fazer uma seleção do que era a barraca e focalizar
aquela linda senhora, nascida no ano de 1931, percebi que se tratava de
uma performance da artista. Ela estava com uma capa revestida de papel de
balas, óculos e sapatos totalmente ornamentados com lantejoulas e papel e
uma meia-calça fina desfiada no rosto, como uma máscara. Não me
lembro da história que ela contava para uma menina de uns 7 anos na
ocasião, mas me lembro bem de sua imagem, de seus gestos e de sua aura,
que reverberam em mim até hoje. Ela pegava algumas de suas criaturas
feitas de material reciclado, cobertas com papel de bala, e contava a
história fantástica daqueles seres – bonecos feitos de chinelo, papel,
garrafas PET etc. Naquele dia, em uma de suas performances, dona Efigênia
caiu no chão em uma cambalhota e feriu um dos cotovelos. Providenciei
em uma farmácia próxima o material para cuidar de seu ferimento e,
quando voltei, estava deitada no chão interpretando uma história de morto
para outra criança. Ela não estava preocupada com o machucado, pois
personificava um ser ficcional. Isso nos permite perceber que ela está
sempre envolta por uma manta de ficção que a protege da vida real.

Eu sou contadora de histórias desde os 15 anos, mas comecei com meus bonecos em 1990,
porque me tornei poeta. Foi assim: em [19]91, eu estava andando pela rua quando vi
uma coisa brilhar muito no chão. Fiquei atordoada. Para mim, era uma joia, mas era
um papel de bala. Se tivesse sido uma joia, eu ia usar e pronto, a história ia acabar.
Mas, como era um papel de bala, a história continuou. O papel de bala são os seres
humanos quando perdem o recheio e ficam perambulando pela rua. Eu precisava dar
vida a eles. Sei que tem gente que não quer dar valor à vida, mas eu me perguntava por
quê.

Esse foi seu encontro com o material que daria vida às personagens
de “sucata” que já povoavam suas histórias. É difícil determinar se os
papéis puxam as histórias ou se as histórias puxam os papéis, mas o fato é
que esses elementos indicam a metáfora da vida de dona Efigênia: todos os
domingos, ela sai de casa e vai, de ônibus, carregando uma mala até a
feirinha no centro da cidade de Curitiba para contar histórias e encontrar
ouvidos e olhos sensíveis que transitam por lá. Suas personagens são
muitas e demasiadamente efêmeras, por isso não posso denominá-las. Em
alguns momentos, seus nomes já representam a síntese de suas histórias:
“Gira que fica olhando para o céu”, “Vítima da dengue na loresta: era uma
criança teimosa”, entre outros. Muitos são os temas abordados por dona
Efigênia: das atualidades às fábulas, passando por temas religiosos, meio
ambiente, política etc. – todos com o elemento fantástico, mola propulsora
dessa artista.
O artista argentino Sergio Mercurio reconheceu não a fama, mas a
fonte de expressão do extrato da cultura popular de dona Efigênia. A
história dela seria, então, mais do que merecidamente recontada no
cinema: o documentário O filme da rainha foi exibido na 31ª Mostra
Internacional de Cinema (2007) e recebeu o prêmio de melhor
documentário estrangeiro. Em dezembro de 2012, foi lançado o livro A
viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe voador, da jornalista Dinah Ribas
Pinheiro. Esses fatos me lembram várias histórias e personagens
excepcionais que passam todos os dias diante de nós e aos quais não
somos capazes de lançar nem algumas migalhas de olhar –
reconhecimento. (FHNM)

REFERÊNCIAS
EM NOME do autor. Portal Artistas Artesãos do Brasil. Disponível em:
<www.artedobrasil.com.br>. Acesso em: dez. 2014.
O FILME da rainha. Direção: Sergio Mercurio. Argentina: 2007. 71 min, color.
PINHEIRO, Dinah Ribas. A viagem de Efigênia Rolim nas asas do peixe-voador. Curitiba:
Autores Paranaenses, 2012.

Embondeiro ver Baobá

Enterro de dinheiro
São histórias sobre panelas de barro ou de ferro enterradas com moedas de
ouro, sonhos com indicações de locais que escondem dinheiro, maldições
sobre quem encontra ouro e não segue as prescrições etc. Esses causos
estimulam de tal forma os ouvintes que muitas vezes acabam por
desencadear novas ações de procura por tesouros escondidos, as quais, por
sua vez, geram novas narrativas. Os enterros de dinheiro estão associados
ao fato de que, antigamente, “não existia banco”, e as fortunas familiares
eram guardadas em casa. Para se prevenirem de roubos e ataques
inimigos, especialmente no caso de fazendas situadas em regiões
fronteiriças em que havia con lito, conta-se que os patrões levavam
escravos para cavarem buracos em que o dinheiro seria enterrado e, para
que os locais fossem mantidos em segredo, os matavam e enterravam
junto com as moedas. Raul Pont, em seu livro Campos realengos, dá a
descrição completa dessa “operação que assumia proporções macabras”.
Essas narrativas muitas vezes são contadas por negros e falam da “doação”
e da indicação do local onde o dinheiro está enterrado, por meio de um
sonho, para outros negros.
Os causos de panelas de dinheiro enterradas, apesar da prerrogativa
de fortuna que trazem, vêm envoltos em certo clima de temor e
desconfiança pelo destino quase sempre trágico dos que “ganharam” o
dinheiro. Complementando essas narrativas, é comum que sejam dados
exemplos concretos (com nome, profissão etc.) de pessoas que tenham
enriquecido graças a algum enterro de dinheiro. Alguns moradores da
região, no entanto, dão outra interpretação para esse fato: com a
proximidade da linha de fronteira, vários tipos de infrações lucrativas
(contrabando, tráfico, roubo de gado), somadas às constantes mudanças
no câmbio, propiciavam enriquecimentos súbitos, que precisavam ser
justificados de alguma forma. Era nessas ocasiões, então, que começavam
a circular, sempre em tom de segredo, detalhadas narrativas sobre como,
quando e onde fulano “encontrou” o seu dinheiro enterrado. (LH)

REFERÊNCIA
PONT, Raul. Campos realengos: a formação da fronteira sudoeste do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Edigal, 1986, v. 1.

Épico
A palavra epikós, em grego, oriunda de epos, “recitação”, é compreendida
como um estágio superior associado à amplificação do “eu” para o “não
eu”, ou seja, o artista busca a superação das contingências individuais. O
universo do poeta se amplia de um microcosmo subjetivo para o cosmo. O
poeta épico ultrapassa a confissão e os sentimentos amorosos subjetivos
do lírico em prol da expressão do mundo objetivo. Até o século XVIII, o épico
apresenta um tom grandioso que sublima os heróis e suas grandezas e
ultrapassa o histórico, unindo-se ao mítico. No mundo moderno, o sentido
universal do épico é questionado, e surgem os anti-heróis, que negam os
valores hegemônicos impostos pelas ideologias dominantes. O poeta épico
interroga a origem, e seu fundamento é o passado, diferentemente do
lírico, que busca captar o eterno presente. O poema épico é estruturado
como uma soma de figuras em ação, exploradas pelos aspectos internos e
externos. O passado é visualizado pelo poeta como pontos fixos
apresentados poeticamente em segmentos ou “partes”, mais ou menos
independentes, para expressar verdades que ultrapassam valores
individuais e exprimem melhor as inquietações humanas. Para Hegel, no
épico “há lugar, não só para a realidade nacional com que a ação se
relaciona, mas também para as circunstâncias e fatos exteriores e morais,
de modo que se pode dizer que compreende a totalidade do que constitui a
vida poética dos homens”. O épico eleva o poema a um ideal de perfeição.
(TMRM)

REFERÊNCIA
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Estética: poesia. Lisboa: Guimarães, 1964.

Escuta I
Roland Barthes é certamente o pensador que melhor enuncia o conceito de
escuta. Para ele, ela contém seus estatutos: entre eles, não visa aos signos
determinados, classificados, mas a um espaço intersubjetivo,
intersemiótico, intervalar. Para ele, a escuta apodera-se do objeto para
transformá-lo e lançá-lo “no jogo da transferência, [espaço] de uma
significância geral”. A escuta deixa um intervalo ou deixa o inconsciente
falar, estruturar-se como linguagem, e resulta como uma impossível escuta
generalizada, traída durante todo o tempo. Essa compreensão enunciada
por Barthes está muito próxima daquilo que, nas sociedades africanas, se
percebe como escuta. Pela tradição oral – matriz cultural de povos que
desenvolveram suas capacidades sensitivas por meio de escuta e fala –, os
africanos mostram que o falar e o escutar têm um significado muito
diferente daquele que têm para as sociedades ocidentais, por exemplo. A
tradição oral africana dá muita importância à subjetividade: no aspecto de
como alguém narra alguma coisa. Cada vez que uma pessoa narra, introduz
um pouco da sua experiência, da sua vivência, porque essa é a questão
básica da tradição oral. Ela é uma vivência, uma experiência de vida, já que
o conhecimento é passado pela experiência, não apenas pelos livros ou pela
universidade. Ao contar na tradição oral, o que se conta já não se conta do
mesmo jeito, isto é, o contado vai sofrendo mudanças sutis. Tudo isso
embalado pelo ritmo que, nas culturas africanas, significa “impulso” e cria
movimento, como registra Reginaldo Prandi. Nesse sentido, poder-se-ia
ler Barthes como um esforço de recuperar a dimensão da “escuta
movente”, que aproxima esse pensador do que a tradição oral africana nos
permite compreender. (RA)

REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1990.
PRANDI, Reginaldo. “Música sacra e música popular”. In: Segredos guardados: orixás na
alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

Escuta II
1. A transmissão se situa necessariamente em um campo de luta por ser
uma experiência que se dá entre gerações, pessoas, corpos e sujeitos e
requer uma escuta, que é em si ressonância, pois quem emite um som ouve
o som que emite, ou seja, a emissão sonora animal é a própria recepção.
2. Palavra seca e palavra úmida: essas são as duas categorias de palavras
para os dogons1. A palavra seca é o pensamento divino e, no plano humano,
o inconsciente. A palavra úmida é o som audível, considerado uma das
expressões da semente masculina, equivalente ao esperma. Ela penetra na
orelha, que é o outro sexo da mulher, e desce para enrolar-se em torno do
útero para fecundar o germe e criar o embrião. Sob essa mesma forma de
espiral, a palavra úmida é a luz que desce à terra, trazida pelos raios do sol.
3. No campo da voz, a escuta e a transmissão superam a comunicação e se
colorem dos afetos que lhes aquarelam as ressonâncias. Minha voz e o meu
dizer ressoam em mim, vibram em meus ossos, repercutem em minhas
caixas e se impregnam de sentido. Minha voz e o meu dizer ressoam no
outro, entram por seus poros e pelos caracóis de suas orelhas, vibram em
seus ossos, repercutem em suas caixas e se impregnam de sentido. (ZDF)

REFERÊNCIAS
NANCY, Jean-Luc. A la escucha. Buenos Aires: Amorrortu, 2007.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio, 2005.

Expedito Sebastião da Silva


Outro grande poeta de cordel, Expedito Sebastião da Silva nasceu em 1928
em Juazeiro do Norte. Era filho de romeiros alagoanos, conterrâneos do
editor José Bernardo da Silva, da lendária Tipografia São Francisco.
Estudou com os salesianos, o que deu a ele domínio da língua portuguesa e
informações sobre o mundo e sobre outras ciências e disciplinas. Tempos
depois, isso faria dele o poeta inspirado e competente que foi o gerente da
tipografia em que trabalhou por mais de quarenta anos, como revisor dos
folhetos que publicava e estimulador de muitas vocações poéticas.
Começou a trabalhar na Tipografia São Francisco em 1948, depois de
deixar os estudos. A família precisava de sua contribuição em casa, e o
rapaz iniciou o trabalho que marcaria a sua vida. Passou a fazer poesia e
relembrava quando teve de assumir o primeiro compromisso: fazer um
cordel inspirado em um fato jornalístico, a notícia veiculada, por um
jornal, de uma moça que dançara depois de morta2, na cidade de São
Paulo. Foi poeta com fôlego para o romance, que é como se chama o
folheto mais volumoso, oscilando entre 32 e 48 páginas. Foi um revisor
atento e respeitoso dos poetas que a tipografia editava e gerenciou a
editora mesmo depois que ela foi vendida para o Governo do Ceará em
1982, momento em que foi rebatizada de Lira Nordestina. Expedito deixou
um número considerável de títulos, e os últimos folhetos que publicou
tinham apenas oito páginas, em consequência da crise do mercado
editorial. Sua trajetória foi estudada pela professora Martine Kunz, que
organizou o volume dedicado a ele em uma série intitulada “Biblioteca de
cordel”. Francesa naturalizada brasileira, Kunz já havia defendido sua tese
de doutorado em 1982 sobre literatura de cordel na Sorbonne, em Paris,
com orientação de Raymond Cantel. Em 2012, Gilmar de Carvalho
publicou um livro com nove folhetos do poeta até então inéditos. Expedito
faleceu em Juazeiro do Norte, em 1997; era um homem tímido, reservado e
com um senso de humor muito especial. Ele sabia da importância do
cordel e lutou até o fim da vida para que essa manifestação popular
permanecesse viva. (GC)

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de. A lira do poeta Expedito. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2012.
KUNZ, Martine. Rodolfo Coelho Cavalcante: poète populaire du Nord-Est brésilien. 584f. Tese
(Doutorado em estudos ibero-americanos) – Université de la Sorbonne Nouvelle,
Paris III. Paris, 1982.
KUNZ, Martine (org.). Expedito Sebastião da Silva. São Paulo: Hedra, 2000.

Farinhada
Dentre as grandes contribuições dos índios à cultura brasileira, destaca-se
a extração do veneno presente na raiz da mandioca. A partir dela, com
maquinaria baseada na criatividade e na habilidade de artesãos que
trabalhavam a madeira, foram feitos os “aviamentos”. Com o cultivo da
mandioca, que se adapta bem a vários tipos de solo por exigir poucos
cuidados e resistir à falta de água, veio a possibilidade de fazer a “farinha
de pau”, como foi chamada em contraposição à farinha de trigo europeia,
considerada um dos itens mais importantes da cozinha brasileira. Com a
farinha de mandioca é feita a farofa, um dos acompanhamentos da
feijoada, bem como a paçoca nordestina, feita de carne de sol e cebola e
socada em pilões de madeira. Com a farinha, temos também o pirão da
peixada. Enfim, um sem-número de iguarias tem na farinha seu
ingrediente básico. As casas de farinha, espalhadas pelo Brasil, são
estabelecimentos geralmente comunitários alugados para um grupo que lá
fabrica a farinha da mandioca que foi plantada e colhida. A jornada de
trabalho é uma festa: da raspagem da mandioca até a farinha ficar pronta,
o grupo de pessoas geralmente conta histórias e causos e canta músicas da
tradição popular. A mandioca raspada, depois de lavada e prensada, vai
para o triturador, chamado de “caititu”. Já quase seca, é colocada em um
forno, no qual a secagem é concluída, e ela é torrada. No final da jornada,
todos que participaram do trabalho se reúnem em torno de uma grande
tapioca, servida como forma de confraternização e de marco da conclusão
do trabalho. A tapioca passou por uma revalorização na culinária
nordestina, recebendo recheios e coberturas inusitados, e atualmente é
servida nas chamadas “tapiocarias”. Nesse processo de feitura da farinha, é
extraído ainda um valioso subproduto da mandioca: a goma, também
chamada de polvilho. Com ela, fazem-se o beiju, o pão de queijo mineiro, a
rosca, o bolo de sal do Piauí, o sequilho etc. Desse modo, a sobrevida das
casas de farinha parece estar assegurada pela importância que esse item
tem na culinária brasileira. (GC)

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de; SOUSA, Francisco. Artes da tradição. Fortaleza: Expressão
Gráfica, 2005.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 1959.

Folia do Divino
A festa acontece no sétimo domingo depois da Páscoa, o de Pentecostes.
Rememora a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos. O aspecto
folclórico, associado à celebração religiosa, provém da rainha Isabel (1271-
1336), cuja vida santa abarca muita lendas: a mais vulgar delas reza que ela
transformou pães (ou moedas) em lores, pois o rei lhe chamara a atenção
por sua prodigalidade com os pobres. Em Minas Gerais, a abundância e a
fulgurância do ouro e das pedras preciosas deram à festa brilho e grandeza
singulares. O evento segue um ritual próprio: entre muitos concorrentes, o
imperador e a imperatriz são escolhidos por sorteio durante a missa do
Espírito Santo. Os sorteados reinam por um ano, são aclamados pelo povo
e pelo celebrante e adquirem certa parcela de autoridade, prestígio e até
regalias especiais, como lugares marcados na igreja e almofadas de cetim
para se ajoelhar. A banda de música os acompanha de casa em casa após a
missa, sob o espocar de bombas e foguetes de vara. A comedoria começa
cedo. Para a festa seguinte, organizam-se “folias” que percorrem o
município atrás de óbolos ou donativos. As folias são identificadas por
uma bandeira vermelha que tem bordada ou aplicada ao centro uma
pomba branca ou dourada em voo entre nuvens – a famosa “bandeira do
Divino”. Os foliões cantam músicas apropriadas e tradicionais,
acompanhados por caixa de guerra e violas. Dos braços destas, assim como
do mastro da bandeira, descem fitas vermelhas que têm, segundo a crença
antiga, um poder curativo. Quando a folia se aproxima de uma residência,
o dono da casa recebe a bandeira, beija-a, ajoelha-se e, ao final, dá sua
contribuição. As arrecadações são depositadas na “Caixa do Divino” e
usadas para as despesas da festa, que começa, de fato, com a novena.
Armam-se barraquinhas no adro da igreja para o “leilão” de prendas, o que
acontece depois do ato religioso. No sábado, véspera de Pentecostes, há
grandes solenidades a partir da alvorada, com banda de música, foguetório
e o repicar de sinos em todas as igrejas do lugar. No domingo, antes da
missa, a filha do imperador, coberta por um enorme pálio e sob uma
estrela de cinco pontas de fitas, é acompanhada por outras cinco moças ao
conduzir a bandeira até a igreja, para ser entregue pelo vigário ao novo
imperador. Encerra-se a festa com um banquete público, quando se come
o tradicional “boi do Divino”. (ALS)

REFERÊNCIA
MARTINS, Saul. Folclore em Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 1991.

Galpão
Construções rústicas existentes em todas as grandes fazendas das regiões
de fronteira do Brasil com o Uruguai e com a Argentina, os galpões são os
locais privilegiados para ouvir e contar causos. Nesses espaços, compostos
apenas de tradicionais cadeiras baixas de madeira organizadas em forma
semicircular em frente ao fogo, onde as brasas da lareira ardem nas
“cambonas” (latas de óleo que servem para aquecer a água), os peões se
dirigem, no início ou no final do dia, para tomar o mate (ou chimarrão, um
tipo de infusão preparada em uma cabaça). Ainda que não seja vetada, a
presença de mulheres no galpão é rara. Embora atualmente em muitos
galpões haja televisões ou rádios, os causos continuam sendo contados,
frequentemente incorporando temas ou assuntos veiculados por esses
meios. É interessante notar também que, com o êxodo rural, antigos
moradores do campo adaptam suas residências nas cidades,
transformando garagens em pequenos “galpões” – decorados com motivos
rurais, arreios de cavalos, ferraduras – que, por sua vez, também passam a
sediar rodas de causos. (LH)

Gêneros literários
Classificação da literatura que inicialmente aparece, na Grécia, com Platão
em A República, com uma proposta de divisão triádica: 1) teatro – tragédia e
comédia; 2) lírica – ditirambo; 3) épica. Essa classificação foi seguida por
Aristóteles, em Poética, que se refere às formas poéticas: tragédia, comédia,
ditirambo, aulética, citarística e siríngica. Na cultura latina, Horácio
retoma essa questão em Epístola aos Pisões, ou Arte poética. A teoria
contemporânea discute a pureza dos gêneros e a descreve como formas
que se mesclam e produzem continuamente novos gêneros. Em síntese, os
gêneros literários representam o somatório de recursos estéticos
disponíveis ao escritor para atingir o leitor – são categorias relativas nas
quais o escritor se movimenta, acionando sua capacidade criadora, e desse
modo os limites dos gêneros literários estão relacionados às possibilidades
criativas humanas. Todorov registra que os gêneros orientam autores e
leitores, pois funcionam como “modelos de escritura” para os autores e
“horizontes de expectativas” para os leitores. Genette entende que os
gêneros do passado foram substituídos por outros gêneros em um
processo de transformação contínua, portanto os gêneros não
desaparecem, mas são substituídos ou mesclados, gerando assim outros
padrões. (TMRM)

REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 2004.
GENETTE, Gérard. “Gêneros, ‘tipos’, modos”. In: GALLARDO, Miguel A. Garrido (org.).
Teoría de los géneros literários. Madrid: Arco Libros, 1998.
HORÁCIO. “Epístola aos Pisões, ou Arte poética”. In: ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO.
A poética clássica. Rio de Janeiro: Cultrix, 1995.
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1999, livro III.
TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

Gêneros narrativos
Denominados gêneros prosaicos, são dirigidos para fora do “eu” – seus
núcleos de interesse estão na realidade e constituem registros do que o
“eu” percebe da realidade, daí a marca da objetividade. A prosa utiliza uma
linguagem descritiva e narrativa, fixando desse modo representações
históricas e sociais da realidade pela linguagem. Os gêneros literários
narrativos mais difundidos na contemporaneidade são o romance, o conto
e a crônica. O romance remonta há vários séculos, é derivado da epopeia e
expressa a forma artística burguesa por se constituir como espelho de um
povo ou de uma sociedade. Nos séculos XIX e XX, ele se renova ao assumir
dimensões psicológicas que apreendem os luxos psicológicos das
personagens para melhor reconstruir um mundo no qual o homem se
constitui multifacetado. O conto é uma vertente das narrativas da tradição
oral. É um veículo transmissor de valores éticos e morais e da memória
cultural de um povo. Por vezes, ele assume o caráter subjetivo ao re letir
sobre os con litos humanos ante as imposições sócio-históricas. A crônica,
gênero biodegradável por se constituir em narrativas curtas que captam
instantâneos de dada realidade, resulta do olhar do cronista sobre o
recorte ou o momento retratado. (TMRM)

Gêneros textuais
Os gêneros textuais são atos comunicativos mediados pela linguagem que
possibilitam interações participativas e críticas com o mundo, portanto
determinados pela interação do homem, pela linguagem, com o tempo e o
espaço. São exemplares desses gêneros os anúncios publicitários e
pessoais, as cartas, os bilhetes, as resenhas e os artigos de opinião, ou seja,
as práticas discursivas nas quais a linguagem se articula como ação
humana sobre o mundo por meio do discurso. Os gêneros textuais são
instâncias determinadoras, conjuntos de normas e regras historicamente
predeterminadas que conduzem a leitura do texto. Assim, esses gêneros
têm caráter mediador na relação produtor-produto-receptor e, desse
modo, alteram-se conforme as transformações históricas sociais, tanto na
forma como no conteúdo. Bakhtin subdivide os gêneros textuais em
primários, relacionados às interações da vida cotidiana, e em secundários,
a saber: discursos e textos científicos, ideológicos e literários. (TMRM)

REFERÊNCIA
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

Grammelot ou blablação
Segundo Dario Fo, “grammelot é uma palavra de origem francesa,
inventada pelos cômicos dell’arte […]. Apesar de não ter um significado
intrínseco, sua mistura de sons consegue sugerir o sentido do discurso.
Trata-se, portanto, de um jogo onomatopaico, articulado com
arbitrariedade, mas capaz de transmitir, com o acréscimo de gestos,
ritmos e sonoridades particulares, um discurso completo”. Essa técnica,
criada pelos comediantes da Renascença italiana (commedia dell’arte), é
então um jogo de sons vocálicos que pode até mesmo sugerir um idioma
conhecido, pela semelhança de suas sonoridades. Apesar de não ser
constituído por nenhuma palavra inteligível, o grammelot é a criação de
uma língua inventada pelo ator-narrador, que preserva os recursos vocais
para a indicação do discurso. Viola Spolin chama essa técnica de blablação:
“Sons sem significados que substituem as palavras reconhecíveis para
forçar os atores a se comunicarem pela fisicalização (mostrando); um
exercício de atuação”. O termo pode ser entendido como sinônimo de
grammelot e foi introduzido na pedagogia teatral por Spolin no século XX.
(DD)

REFERÊNCIAS
FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Senac, 1999.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.

Griot ou griô
Essa denominação tem sido utilizada popularmente para o sábio, o ancião
com quem está o conhecimento, geralmente fazendo-se referência ao
tradicionalista africano. Porém, na verdade, essa palavra não existe nas
culturas africanas: o vocábulo griot vem da língua francesa, relacionado ao
músico que cantava nas ruas. Nas culturas africanas, existem os mestres,
que pertencem a uma linhagem cuja função é trabalhar com a língua, com
a palavra. No oeste da África, há o doma – nome dado ao tradicionalista – e
o djeli – denominação que abarca uma espécie de caminhante, um griot. No
leste africano, temos também o bubu, que, com sua túnica comprida, anda
quilômetros levando sua arte e a cura dos males pela palavra. A
pesquisadora Antonacci argumenta sobre o aprendizado do mestre da
tradição oral como um aprendizado longo e complexo, que dura
basicamente sete anos. Como a idade da iniciação do mestre corresponde
aos 21 anos, entende-se que somente 21 anos depois é que ele estará
formado, ou seja, ele só poderá ser considerado um doma, um djeli ou um
bubu aos 42 anos de idade. No entanto, a idade da sabedoria, reconhecida e
legitimada para a transmissão dos saberes, é a partir dos 63 anos. O
prestígio do tradicionalista decorre do vínculo que ele tem com a
ancestralidade. Ele é considerado um guardião dos segredos de origem
cósmica e das ciências da vida. Esse tradicionalista, também chamado de
“conhecedor”, possui uma memória prodigiosa que o habilita a armazenar
uma quantidade significativa de fatos que presencia em seu tempo de vida.
(RA)

REFERÊNCIA
ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: Educ,
2013.

História de trancoso
Designa os contos de fadas, contos de encantamento ou contos
maravilhosos, as lendas e as histórias orais. São narrativas cuja
transmissão é estritamente oral e são contadas na terceira pessoa do
plural, pois o narrador se distancia delas por serem mentirosas. As
histórias de trancoso são contos cumulativos, ou seja, cada um pode
acrescentar elementos a elas e adaptá-las, fazendo empréstimos de outros
registros narrativos. O nome dado a essas histórias foi inspirado no autor
de Contos e histórias de proveito e exemplo, Gonçalo Fernandes Trancoso,
escritor português nascido na segunda década do século XVI e falecido em
1596. Elas lembram os romances de cordel, pois neles encontramos
histórias de amor e valentia, com aventuras de jovens que conhecem a
ascensão social fulgurante ao se casar com a princesa no final da história.
Essas histórias encenam ainda reinos encantados, histórias de princesas,
reis, sábios e animais que falam, metamorfoses, assombrações, almas,
aparições milagrosas, tesouros, monstros etc. e mostram a sabedoria e a
astúcia dos protagonistas, humanos ou animais (macaco, raposa etc.), que,
no final, conseguem vencer os poderosos e denunciar suas intrigas. O
conto “As aventuras de Pedro Malazarte”, publicado por Luís da Câmara
Cascudo em Contos tradicionais do Brasil, é um bom exemplo desse gênero
narrativo que encontra, em João Grilo, uma tradução nordestina do
clássico português. (JC)

REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. Rio de Janeiro: América, 1946.
TRANCOSO, Gonçalo Fernandes. Contos e histórias de proveito e exemplo. Lisboa:
Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1974.

Ilustração
Termo usado para definir as imagens que acompanham, ornam ou
elucidam um texto verbal. A ilustração, para Rui de Oliveira, “é um gênero
dentro das artes visuais narrativas”, definição encontrada em seu livro
Pelos Jardins Boboli. Essa linguagem pode assumir diferentes relações com o
texto verbal que acompanha: apenas orná-lo; apresentar-se como uma
repetição dele por meio de cenas fundamentais; dialogar com ele,
mostrando imagens que o texto apenas sugere; ou, ainda, fazer referência
a outros textos que são parte do imaginário da maioria dos leitores. Outra
forma é a ilustração que caminha paralelamente ao texto verbal, mas
contém texto próprio, com uma narrativa clara que possibilita a sua
independência. O texto verbal se caracteriza, principalmente, pela
linearidade e a temporalidade, enquanto a imagem, pela espacialidade. Ao
longo do tempo, as características da ilustração em livros sofreram um
salto quando as imagens construídas para o texto verbal apareceram sob
uma ótica diferente: na construção da composição, foi utilizada a
perspectiva aérea, e não mais a frontal. Isso resultou na valorização do
signo visual, pois seus elementos principais (a cor, a linha e a forma)
ganharam vida, e o espaço foi ampliado. A imagem passou a ter vida
própria, afinal, dialoga com o texto verbal, acrescenta e abre possibilidades
de leitura. Esse fator é muito importante para entender o processo de
mudança ocorrido nas ilustrações através de sua história. (MLCR)

REFERÊNCIAS
CAMARGO, Luís. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte: Lê, 1995.
LINS, Guto. Livro infantil?: projeto gráfico, metodologia, subjetividade. São Paulo: Rosari,
2003.
OLIVEIRA, Rui de. “Breve histórico da ilustração no livro infantil e juvenil”. In:
OLIVEIRA, Ieda de (org.). O que é qualidade em ilustração no livro infantil e juvenil: com
a palavra, o ilustrador. São Paulo: DCL, 2008.
_____. Pelos Jardins Boboli: re lexões sobre a arte de ilustrar livros para crianças e jovens. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Improvisação
Denomina-se improvisação a atuação do ator em cena sem um roteiro ou
personagem preestabelecidos – a encenação é criada na hora em que é
apresentada. A improvisação pode estar no processo de criação de um
espetáculo, como recurso durante uma apresentação ou mesmo como
linguagem cênica. Em uma abordagem mais contemporânea, considera-se
que a improvisação deve estar presente em toda a ação do ator: mesmo em
uma cena extremamente marcada e formalizada, deve existir um grau de
criação e espontaneidade exercido através da improvisação, para que o
ator atualize o seu texto e as suas ações “no presente”, de acordo com o
pensamento de Ariane Mnouchkine. (CSS)
REFERÊNCIA
FÉRAL, Josette. Encontros com Ariane Mnouchkine: erguendo um monumento ao efêmero. São
Paulo: Senac SP/Edições Sesc, 2010.

Jogos narrativos
Jogos são atividades realizadas em um contexto de espaço-tempo
específico, separado da vida cotidiana, e têm fim em si mesmos. Como
registra Huizinga, “o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária,
exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço,
segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias,
dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de
tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da ‘vida
cotidiana’”. Como tratam de objetivos a serem alcançados e, normalmente,
de desafios a serem vencidos, o que implica uma competição, os jogos
contêm regras para dirigir con litos e determinar como os jogadores
podem agir.
Segundo Cardoso, narrativas são consideradas como tais quando
apresentam tema, personagens, ação, tempo, espaço, ponto de vista e
con lito; têm unidade de ação, tempo e lugar; são desenvolvidas através da
relação de causa e efeito etc. Ou, ainda, segundo Muniz Sodré, as
narrativas envolvem o encadeamento de eventos de um enredo
entrelaçados com as ações e personalidades de diferentes personagens, a
fim de contar uma história de maneira coerente, com um cenário e seus
aspectos geográfico, político, social e cultural.
Jogos narrativos correspondem, então, a atividades em que
narrativas são construídas por meio de uma interação entre os
participantes, mediada por regras. Entre os exemplos de jogos narrativos,
podemos citar o Alternate Reality Game (ARG), em que os eventos de uma
realidade alternativa são determinados pelas interações virtuais ou
presenciais entre os jogadores, geralmente em diferentes suportes, que
resultam na criação coletiva de uma história; o Role-Playing Game (RPG), em
que, por meio da interpretação das personagens pelos jogadores, uma
história coletiva resulta da solução de desafios propostos por um mestre de
jogo; os Storytelling Games, como “Once upon a time”, em que os jogadores
usam cartas com diferentes eventos e personagens para criar a narrativa
enquanto jogam; o Massive Multiplayer On-line RPG (MMORPG), jogo on-line em
que o cenário é explorado pelos jogadores usando suas personagens, que
resolvem as missões, e as regras estão presentes no sistema que suporta a
plataforma; o Computer Role-Playing Game (CRPG), uma modalidade
específica de videogame na qual um ou mais jogadores escolhem soluções
para desafios propostos pelo banco de dados da plataforma a partir de
roteiros predefinidos e das personagens selecionadas, que, ainda que
apresentem possibilidades de “evolução”, não pressupõem atuação
dramática nem interpretação por parte dos jogadores (por esse motivo,
não podem ser considerados RPGs de fato, apesar da denominação
corrente); e, por fim, o livro-jogo, com proposta bastante similar ao
videogame narrativo, porém veiculada em suporte impresso (livro ou
revista) e, portanto, com uma gama de escolhas bem mais limitada. (CK-EB)

REFERÊNCIAS
CARDOSO, João Batista. Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto: por um
tempo de “PAS” (Programa de Avaliação Seriada). Brasília/São Paulo: Universidade
de Brasília/Imprensa Oficial do Estado, 2001.
HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2001.
SODRÉ, Muniz. Best-seller: a literatura de mercado. São Paulo: Ática, 1988.

Jongo
Espécie de samba, o jongo é encontrado em São Paulo, Minas Gerais,
Espírito Santo e Rio de Janeiro. Sua coreografia difere de uma localidade
para outra. Renato Almeida descreve as características da dança em
História da música brasileira:

No centro da roda, exibem-se os dançarinos, individualmente, numa


coreografia complicada de passos, contorções violentas e sapateado, no que
revelam grande agilidade. O acompanhamento é feito exclusivamente por
instrumentos de percussão, pequenos tambores chamados “tambores de
jongo”, que são barrilotes fechados por uma pele esticada. Às vezes o cantador
traz um chocalho na mão. O interesse do jongo está na disputa que fazem os
dançarinos de suas habilidades, sendo comum irem ao centro da roda dois
deles – um homem e uma mulher – e, encorajados pela vibração da assistência,
realizam um verdadeiro desafio de passos. O canto é de estrofe e refrão,
sustentado pelo ritmo surdo dos tambores, às vezes estranhamente
combinados, e ajudados pelo batido das palmas.

De origem africana, o jongo mantém para seus grandes bailadores a


fama de feiticeiros, sabedores de segredos mirabolantes e detentores de
poderes mágicos. É cantado por uma ou mais solistas, e o refrão é
respondido. Os instrumentos recebem os nomes de tambu, candongueiro
e gazunga, havendo também a puíta e a angoia, cestinha de vime com
caroços que dá ainda mais ritmo ao bailado. (ALS)

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1942.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1984.

Lobisomem e Vira-bicho
Segundo Cascudo, ser Lobisomem é um fado originado de uma interdição
moral – incesto ou casamento ilícito entre parentes ou compadres – ou de
uma predestinação familiar, mas sempre remete a um pecado. Sua
aparência é infeliz, com aspecto doentio, magro, macilento, com muitos
pelos no corpo. Vem da tradição europeia, desde a Antiguidade clássica até
os colonizadores lusitanos. No Brasil, ganhou características próprias: é
um homem que se metamorfoseia em encruzilhadas, em noites de sexta-
feira, transformando-se em um bicho grande, com imensas orelhas, que
ataca pessoas e animais novos, sangrando-os antes do amanhecer. É um
mito urbano por natureza, pois o Lobisomem surge em ruas de pequenas
cidades ou em bairros periféricos de cidades maiores.
Na Amazônia, não existe grande incidência do Lobisomem, mas de
sua variação, que é o Vira-bicho. “Virar” um bicho é transformar-se em
animal, normalmente um porco, fato recorrente em pessoas idosas,
homens e mulheres – sobretudo no caso de velhas senhoras, que são as que
mais se zoomorfizam. Sabe-se que o Vira-bicho é um animal terrestre de
aparência muito feia, mas as pessoas dificilmente discernem claramente
qual animal ele é, pois sua aparição ocorre à noite, em lugares de
penumbra. O que é comum é a investida que as pessoas frequentemente
fazem para espantar o bicho: lançam água fervente sobre ele quando ele
está fuçando ou rumorando próximo às casas. Isso faz com que o animal
saia correndo, espojando-se no chão e pelas árvores e paredes. Somente
depois é que se saberá que o bicho era uma pessoa, quando a descobrem
pelos caminhos ainda em processo de “desviração” (voltando ao aspecto
humano), ou quando, na manhã seguinte, identificam uma velha senhora
ou um velho senhor agonizante, com feridas causadas pela água fervente.
Quase sempre se descobre, por sinal, que o Vira-bicho era uma pessoa do
convívio familiar ou comunitário. (JGF)

REFERÊNCIA
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.

Luiz Gonzaga
Natural de Exu, Pernambuco, Luiz Gonzaga nasceu em 1912. O pai, o
sanfoneiro Januário, tocava a harmônica de oito baixos. A mãe, dona
Santana, gostava de novenas e de benditos. O menino foi criado nessa
ambiência, onde predominavam as bandas cabaçais, eram feitos folguedos
como os reisados, e a luta pela sobrevivência, agravada pelas secas,
precisava ser alternada com o momento festivo, a fim de manter o
equilíbrio das comunidades. Gonzaga prestou serviço militar em Fortaleza
e, como milhares de jovens nordestinos, migrou para o Rio de Janeiro em
busca de trabalho, na expectativa de uma qualidade de vida que não era
propiciada pela secura do chão do Nordeste. Começou a cantar de terno,
com um repertório ao gosto do período, os anos 1940, época em que o rádio
fazia emissões de programas de auditório e mobilizava multidões. Como
não agradou aos outros, muito menos a si mesmo, teve a ideia de vestir o
gibão, pôr na cabeça o chapéu com a estrela de Lampião e fazer, a partir da
sanfona, uma releitura da tradição oral da região em que nascera. Foi a
partir dessa ideia que surgiu um personagem iluminado no mundo do
espetáculo, aquele que seria chamado de o “rei do baião”. Luiz Gonzaga
teve grandes parceiros, entre eles Humberto Teixeira e Zé Dantas, e
atualizou o canto que estava na boca e na alma de seu povo. Podemos dizer
que ele “inventou” a música nordestina e fez furor ao lançar nacionalmente
o baião, um ritmo baseado na tradição musical que ganhava naquele
momento uma embalagem para o consumo nacional. Gonzaga
popularizou a sanfona, e muitos músicos aderiam a esse instrumento, com
o qual o Brasil passou a fazer festa. Ele fazia furor nos auditórios das
emissoras de rádio, empolgando as massas nos shows em praças públicas.
Tornou-se um ídolo, uma referência na música brasileira. Fez escola e
deixou discípulos. Muitas de suas composições são clássicos, como “Asa
Branca”, um manifesto ético e estético do Nordeste. Luiz Gonzaga superou
as críticas de que não cantava de acordo com o modelo das gravadoras, e
nos deixou seu repertório ao morrer, em 1989, sempre como o eterno “rei
do baião”. (GC)

REFERÊNCIAS
RAMALHO, Elba Braga. Luiz Gonzaga: a síntese poética e musical do sertão. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2012.
VIEIRA, Sulamita. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. Fortaleza:
Expressão Gráfica, 2012.

Mãe-d’água e Princesa
A Mãe-d’água, como o próprio nome sugere, é caracterizada pela
maternidade, assemelhando-se às Ninfas, em particular às Náiades, que
são perseguidas pelos rios que querem se unir a elas. A nossa ninfa
amazônica se assemelha à sereia europeia e vive nos rios, igarapés ou lagos
da região, espaços em que se posta sensual e maternalmente, com canto
mavioso e beleza ímpar, atestada por seu corpo escultural e longos cabelos
sedosos. Até o século XVII, não havia registro da Mãe-d’água entre os
indígenas, sendo esse mito reconhecidamente de ascendência europeia, do
ciclo atlântico. Os mitos das águas se restringiam às ipupiaras e às cobras-
grandes, de feitio destruidor e assassino – não havia nelas nenhum teor
sedutor, como nas sereias, porque os indígenas não concebiam a sedução
sexual nas Cis, as mães, origem de tudo. Seja como for, observa-se a
qualidade da sedução na Mãe-d’água, particularmente em sua variante
Princesa, mais próxima ainda da sedutora sereia homérica. Ambas
guardam a docilidade feminina e a proteção maternal. Mas não nos
enganemos, pois a Mãe-d’água também apresenta um caráter maléfico,
raptando crianças e levando-as para o mundo das encantarias, onde são
iniciadas nos poderes ocultistas. As crianças retornam, depois de certo
tempo, para o seio de suas comunidades, e são reconhecidas como pajés e
curadores. Essa duplicidade de caráter faz com que esse ser mítico se
assemelhe às amazonas, guerreiras da mitologia grega que foram
transplantadas pelos colonizadores para essa região no século XVI, no afã
de identificarem a Amazônia como um lugar portador de riquezas – depois
de um encontro com indígenas no rio Amazonas, Gaspar de Carvajal,
cronista da expedição de Francisco de Orellana realizada em 1542, aventou
que nossas supostas guerreiras amazonas seriam as mesmas amazonas
que guardaram a riqueza do velocino de ouro na mitologia grega.
A Princesa é uma variação que ocorre frequentemente na ilha de
Maiandeua, na vila de Algodoal, região litorânea do Pará. Assemelha-se
também a três entidades da umbanda amazônica: as princesas Erondina,
Jarina e Mariana. Em geral, a Princesa é um ser encantado e humano que
lança o desafio aos nativos para que seja “desvirada”, ou seja,
desencantada, pois aquele que tem coragem para tanto é beneficiado com
riquezas e com o casamento com a bela mulher que surgirá depois do
desencanto da Princesa. Além disso, a localidade em que se der o
desencanto se transformará em um grande reino, pleno de riquezas
materiais. O fato é que, sempre no dito momento para a realização do
feito, o nativo desafiado tem medo e abandona a praia em que se deve
desencantar a Princesa. (JGF)

REFERÊNCIA
CARVAJAL, Gaspar de. “Relación del nuevo descubrimiento del famoso río grande que
descubrió por muy grande ventura el capitán Francisco de Orellana según la
transcripción de don Toribio Medina”. Disponível em:
<www.cervantesvirtual.com/obra-visor/historiadores-y-cronistas-de-las-
misiones-0/html/00012b0e-82b2-11df-acc7-002185ce6064_9.html>. Acesso em:
dez. 2014.

Manoel Caboclo
Esse poeta, astrólogo e editor de folhetos nascido em 1916 em Caririaçu,
Ceará, era um homem da fala. Manoel Caboclo recebia as visitas debaixo
de um caramanchão recoberto por jasmins na casa em que vivia, na rua
Todos os Santos, 263, em Juazeiro do Norte. Ele nasceu Manoel João da
Silva; o Caboclo, mais que um nome artístico, era o fortalecimento de um
pertencimento ao sertão. Ele contava que se alfabetizou lendo um pedaço
de página de jornal que embrulhava uma barra de sabão que adquirira.
Para isso, contou com o auxílio de amigos letrados que o ajudaram nessa
empreitada. A alfabetização tardia não o impediu de vir a ser um dos
nomes mais expressivos do cordel produzido na cidade do padre Cícero.
Trabalhou com o poeta e editor José Bernardo da Silva (1901-1972) na
Tipografia São Francisco, a maior e mais importante editora de folhetos de
cordel do Brasil. Sua iniciação nas artes gráficas passou pelas várias etapas
do processo: foi compositor, chapista, impressor e, nesse meio-tempo,
passou a fazer poesia e publicou folhetos com a chancela do patrão. Saiu da
tipografia para associar-se ao poeta pernambucano João Ferreira Lima,
que se revezava entre Juazeiro do Norte, no Ceará, e Caruaru, em
Pernambuco. Com ele, Manoel Caboclo aprendeu as artes esotéricas e a
fazer almanaques. Depois de pouco tempo, desfizeram a sociedade, e
Caboclo montou a própria editora, a Casa dos Horóscopos, em 1969. Ali não
era apenas o poeta, mas o mestre que fazia previsões astrológicas, editava
outros autores e montava sua “folhetaria”. Já em 1969, lançou seu próprio
almanaque, intitulado O juízo do ano, publicação anual que circulou
ininterruptamente até sua morte. Adquiriu os direitos de publicação de
outros autores, como o do paraibano Joaquim Batista de Sena – em um
negócio fechado de acordo com a lei e registrado em cartório. Iniciou o
filho José Caboclo (1941-) e o sobrinho Arlindo Marques (1953-) na arte da
xilogravura e, em 1994, lançou o livro Eu, o índio e a loresta, pela Secretaria
da Cultura do Ceará. Morreu em Juazeiro do Norte, em 1996. (GC)

REFERÊNCIAS
CABOCLO, Manoel. Eu, o índio e a loresta. Fortaleza: Secult, 1994.
CARVALHO, Gilmar (org.). Manoel Caboclo. São Paulo: Hedra, 2000.

Maria Vivó ver Matintapereira e Maria Vivó


Martín Fierro
Em toda a fronteira sul do Brasil, há uma forte tradição da leitura e da
declamação do poema épico Martín Fierro, escrito sob uma métrica
octassilábica, em sextilhas, pelo argentino José Hernandez (1834-1886). A
primeira parte do poema, intitulada El gaucho Martín Fierro, apareceu
publicada em 1872 e narra as aventuras e desventuras de um gaucho que, ao
ser convocado para o exército, perde a vida livre que tinha nos pampas,
sofre com as arbitrariedades de seus superiores e, depois de muitas
privações e castigos, deserta e se torna um fora da lei. A continuação da
obra, La vuelta de Martín Fierro, foi publicada em 1879 e formou com a
primeira parte um clássico da literatura argentina, exaltando a figura do
gaucho rebelde. A peculiaridade da obra se refere ao fato de que sua grafia
não respeita o espanhol erudito, tendo o autor recorrido a expressões
extraídas diretamente da oralidade popular. Seu Romão, contador da
cidade de Uruguaiana, Rio Grande do Sul, explica que era uma prática
comum, nas noites em que se reuniam no galpão, o patrão ler para os
peões fragmentos do Martín Fierro. O próprio seu Romão, que é analfabeto,
declama trechos do poema, que conta ter decorado quando tinha 13 ou 14
anos. Sobre o poema, subsistem até hoje controvérsias se o personagem
principal teria realmente existido ou se seria obra de ficção. Para alguns,
ainda, essa já era uma narrativa que corria de boca em boca e que apenas
foi “literalizada” por José Hernández. (LH)

REFERÊNCIA
Hernández, José. Martín Fierro. Buenos Aires: Losada, 1953.

Matintapereira e Maria Vivó


Segundo Câmara Cascudo, Mati, Matitaperê ou Matintapereira é um tipo
de coruja de mau agouro. Na tradição mitológica indígena, os pajés se
metamorfoseiam nessa coruja para se deslocar mais facilmente entre os
lugares em que realizam suas pajelanças. Com frequência, a
Matintapereira investe contra pessoas que, desavisadamente, percorrem
caminhos isolados ou se instalam em sítios e arrabaldes distantes do
espaço urbano. Mesmo nos arredores das vilas e dos povoados a
Matintapereira “ataca”, exigindo que o indivíduo leve fumo ou café, no dia
seguinte, a uma velha senhora ou a um velho senhor que vem a ser o ente
mítico “destransformado”. A Matinta pode até mesmo ir à casa da pessoa
para buscar sua “encomenda”. Ser Matintapereira é o fado de certas
pessoas (destino repassado entre gerações da mesma família ou entre uma
pessoa mais velha e uma mais nova), que se metamorfoseiam no ser
mítico, geralmente em noites de luar. Sua aparência é a de uma grande ave
negra ou de uma velha senhora arqueada e de veste estropiada, com
semblante bastante envelhecido, como a clássica bruxa europeia.
Originariamente, a Matintapereira parece ser um ente da natureza.
A começar pela sua ligação com um pássaro – do tupi mati, “coruja”, e
taperê, “capoeira”, a “mata que se recupera após ser desbastada” – e com o
espaço de capoeira, que lembra uma antiga aldeia que foi abandonada em
decorrência da vida nômade dos indígenas. Na realidade, o pássaro torna-
se o “dono” do lugar, pois se entende também que matitaperê é a tapera do
mati: abandonada pelos indígenas, a capoeira passa a ser habitada pelo
pássaro. É como se o espaço tivesse voltado a ser natureza, mas o mati não
é habitante de um lugar totalmente abandonado – os indígenas, vez por
outra, retornam à antiga morada em busca de algo específico daquele
lugar: uma espécie vegetal, um tipo de caça, um curso de água perene
(lembremo-nos de que a vida indígena era nômade). Portanto, a
Matintapereira torna-se uma espécie de guardiã do espaço, passa a ser
protetora da sobrevivência da cultura indígena. Esse ser mítico pode ser
considerado um guardião dos segredos da Terra, pois garante a existência
física e espiritual dos nativos ao impor proibições aos predadores da mata,
inventando o tempo mítico amazônico e assegurando a tradição nesse
espaço.
No processo de colonização, a vinculação da Matinta a um espaço
ermo e supostamente abandonado a associou à bruxa europeia, moradora
de espaços de mata isolados de qualquer forma de sociabilidade humana.
A Maria Vivó pode ser considerada uma variação da Matintapereira.
Esse ser mítico aparece na cidade de Colares, no Pará, e sua origem foi
vinculada à gravidez de uma velha senhora. O resultado dessa gravidez foi
o nascimento de uma cobra, Maria Vivó, provavelmente resultante da não
aceitação da sexualidade e da maternidade em uma pessoa idosa. A
“aberração” nascida é lançada ao mar, sob as pedras do Farol de Colares,
não sem antes ter um de seus olhos vazado. Mesmo nessas condições
adversas, Maria Vivó é um ser mítico benéfico, pois o olho que lhe restou
alumia, como um facho distante, os pescadores – ela serve de guia a eles
em noites escuras, para que tenham a exata localização da cidade. (JGF)

REFERÊNCIAS
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia,
1988.

Metanarrativa
Metanarrativas ou grandes narrativas são narrativas que organizam,
explicam e subordinam outras narrativas, portanto, uma narrativa local é
legitimada quando confirma as grandes narrativas da humanidade. As
discussões sobre a narrativa no discurso e no conhecimento científico
foram propostas por Lyotard no livro O pós-moderno, no qual avalia que a
ciência moderna rejeita formas que fundamentam a narrativa, tomando
como referência as narrativas populares circulantes entre os índios
caxinauás, da América do Sul. Na sua análise das narrativas orais dos
caxinauás, ele observou regras internalizadas que dependem de fórmulas
fixas. O contador de histórias, segundo o estudioso, inicia identificando-se
com seu nome caxinauá e assim reafirma a identidade tribal como um
reprodutor que ouviu a história de outro caxinauá, mantendo uma
regularidade rítmica e tornando a narrativa legitimadora de uma cultura
coletiva, que, por sua vez, foi combatida pela ciência a partir do século
XVIII. Na visão de Lyotard, a linguagem científica, portanto, opõe-se à
linguagem narrativa porque é denotativa, validada pela comprovação de
uma verdade que não estabelece vínculos coletivos e sociais que retornam
à verdade original. A ciência incorpora as narrativas políticas e filosóficas,
demarcadas pelo “especialismo”, e segue modelos de racionalidade que
propiciam correspondência a verdades demonstráveis geradoras de teorias
generalizantes. (TMRM)

REFERÊNCIA
LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.

Narrador I
Geralmente indicado pelas pessoas que integram uma comunidade
narrativa como o sujeito que sabe as histórias do grupo, o narrador é o
guardião da memória. Encontra-se em profunda integração com o grupo
social de que faz parte e, por meio da narrativa, dita valores, etiqueta e
regras de comportamento, bem como conta os feitos memoriáveis do
grupo. A presença do narrador em performance possibilita entrever o perfil
da comunidade narrativa na qual ele finca suas raízes. (FF)

Narrador II
1. Seja revelado pelo corpo do contador ou velado pelo corpo do ator, o
narrador é o sujeito do épico. O luxo de sua vocalidade, requisito das
histórias que conta e das cenas que articula, faz que, para o narrador, o
ritmo, no sentido estrito, de luência, de rio que corre, se ilumine.
2. No samba de breque, o cantor de repente breca e diz – ele narra e olha
com olhar estrangeiro o luxo da história.
3. Podemos imaginar o narrador absoluto como um sujeito rítmico, um
ponto de acumulação de uma série em que a atividade mental do “nós”
domina progressivamente a atividade mental do “eu”. Sua voz ritmada na
ação só reclama significados. Buscar esse limite é dirigir-se no sentido de
uma experiência neutra, objetiva e esvaziada de paixão e padecimento,
uma experiência de transitividade e publicidade absolutas. A língua se
despovoa, e o sabor de boca, rastro das palavras quando ditas, pulsa uma
deglutição mecânica e apressada. O rapsodo porta em seu corpo as marcas
desse narrador. (ZDF)

Narradores de Javé
O argumento do filme Narradores de Javé se pauta na ameaça de
desaparecimento de um lugarejo do interior do Brasil por uma inundação
decorrente de um projeto para a construção de uma usina hidrelétrica. A
narrativa se desdobra em múltiplas versões de uma história estruturada na
ficção, na pesquisa e no documentário e abre espaços para a oralidade.
A força do filme reside na recuperação de várias narrativas orais que
tratam da fundação de Javé, lugarejo historicamente marcado pela pobreza
material contraposta a uma riqueza de narrativas orais, memórias
históricas culturais da população, que multiplica versões do mito
fundador.
Tecnicamente, os enquadramentos e a luz da produção
cinematográfica fazem o espectador circular por diferentes tempos e
espaços, que propiciam um jogo de idas e vindas entre o real e o
imaginário. Assim, as várias versões da fundação do lugarejo vão
gradativamente construindo valores e expondo con litos íntimos e
contraditórios dos moradores entre a fixação e o nomadismo e a
determinação externa de destruir Javé. Diante da ameaça de extinção,
surge a ideia de registro de sua história, um projeto difícil de ser
executado, pois a maioria da população é analfabeta e a grande questão a
ser resolvida é encontrar alguém que cumpra a tarefa de escrever as
histórias. Assim, Narradores de Javé expressa con litos cíclicos que remetem
às incertezas do homem que deseja se evadir e se fixar, entre o
nomadismo, o sectarismo e o desejo de preservar memórias. (TMRM)

REFERÊNCIA
NARRADORES de Javé. Direção: Eliane Ca fé. Brasil/França: Bananeira Filmes/Gullane
Filmes/Laterit Productions/Riofilme, 2003. 100 min., color.

Narrativa visual
Termo usado para denominar uma história contada por uma sequência de
imagens que, normalmente, apresenta uma sequência de ações das
personagens na cena. O verbo se faz presente apenas em onomatopeias e
principalmente no título da história, que assume papel de índice, pois é ele
que vai indicar de que a história trata. A narrativa visual se aproxima da
narrativa verbal, pois, segundo Cândida Vilares Gancho, “a maioria das
pessoas é capaz de perceber que toda narrativa tem elementos
fundamentais, sem os quais não pode existir”. Em outras palavras, a
narrativa é estruturada sobre cinco elementos principais: enredo,
personagens, tempo, espaço e narrador. Uma narrativa visual apresenta
todos esses elementos, mas o que a difere da verbal é que a história é
contada por meio de imagens, ou seja, é uma forma de leitura muda.
Segundo Manguel, as imagens existem no espaço enquanto a narrativa
existe no tempo. Isso significa dizer que uma narrativa visual em livros
será apresentada no espaço delimitado das páginas e, por ser constituída
quase que exclusivamente de imagens, a leitura ocorrerá aos saltos e não
linearmente, como ocorre com a palavra. Na literatura infantil, a narrativa
visual se faz presente por meio dos “livros de imagem”, termo instituído
pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ) e aceito pelo meio
literário. Em outros países, o termo usado é “livro ilustrado” e abrange
também aqueles livros da primeira fase de alfabetização, com poucas
palavras e muita ilustração. (MLCR)

REFERÊNCIAS
GANCHO, Cândida Vilares. Como analisar narrativas. São Paulo: Ática, 1991.
MANGUEL, Alberto. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia
das Letras, 2001.

Narratologia
A narratologia é uma teoria que analisa os aspectos comuns e incomuns
das narrativas. O termo “narratologia” foi introduzido por Todorov em A
gramática do Decameron (Grammaire du Décaméron, 1969), como um campo de
estudo da Teoria da Literatura. A narratologia sinaliza que existem
narrativas contadas em linguagens orais e escritas (em prosa ou em verso),
em linguagens imagéticas, em figuras estáticas ou animadas (narrativas
pictóricas, vitrais icônicos ou filmes), em música ou em uma mescla de
veículos (histórias em quadrinhos). Uma narrativa oral pode ser transposta
para conto, romance, balé, história em quadrinhos, telas etc. Assim, a
narrativa pode ou deveria ser estudada sem referência ao meio pelo qual
ela se apresenta. O narratologista, portanto, analisa o narrado de modo
independente do meio utilizado, da narração e do discurso. Esses estudos
foram in luenciados pelo estruturalismo e, em decorrência disso, se
caracterizam pela busca de paradigmas, estruturas e repetições entre as
diferentes obras analisadas considerando os diferentes contextos
históricos e culturais em que os textos foram produzidos. (TMRM)

REFERÊNCIA
TODOROV, Tzvetan. A gramática do Decameron. São Paulo: Perspectiva, 1983.

Patativa do Assaré
Nascido em Assaré, no Ceará, em 1909, Antônio Gonçalves da Silva era um
poeta da voz. Filho de um agricultor dono de uma pequena propriedade no
alto da serra de Santana, a 18 quilômetros da cidade, esteve poucos meses
na escola formal, o que foi o bastante para ele se alfabetizar e ganhar o
hábito da leitura. Aos 4 anos, perdeu um olho, e isso o incentivou a ler cada
vez mais. Era um menino para o qual professores, padres, juízes e demais
letrados de Assaré gostavam de dar e emprestar livros. Aos 16 anos, já órfão
de pai, Antonio pediu autorização à mãe para vender uma ovelha e
comprar uma viola. Começou a brincar com o instrumento durante as
noites, e essas brincadeiras viriam a ser seu rito de iniciação. Já jovem
adulto, recebeu a visita de um parente que migrara para a Amazônia, como
milhares de nordestinos o fizeram. Esse parente o convidou para viajar
com ele e passar uma temporada em Belém, onde se apresentaria como
violeiro. Lá, ganhou o epíteto de pássaro, dado pelo jornalista cearense José
Carvalho de Brito, que vivia na capital paraense. De volta ao Ceará,
Patativa do Assaré retomou as atividades de agricultor, visto que herdara
parte das terras do pai. Exerceu esse trabalho a vida toda, até se aposentar
aos 70 anos. Por mais que se apresentasse como cantador, não vivia dessa
atividade. Às segundas-feiras, passou a recitar poemas na rádio Araripe, no
Crato, enquanto a cidade regurgitava em torno das barracas armadas que
atraíam mercadores e compradores de Pernambuco, Piauí, Paraíba e
Ceará. Seu primeiro livro, Inspiração nordestina, foi lançado em 1956. O
poema “A triste partida” foi musicado por Luiz Gonzaga em 1964. Assaré
publicou vários livros, ganhou comendas e foi homenageado com o título
de doutor honoris causa por quatro universidades. Politizado, sempre foi
uma voz a favor da reforma agrária, dos camponeses e de um mundo mais
igualitário. Ameaçado de prisão pela ditadura militar, teve seu processo
arquivado. Ocupou espaço na mídia, ganhou teses que estudam sua obra e
foi um dos grandes poetas brasileiros de todos os tempos. Faleceu no ano
de 2002. (GC)

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Cláudio Henrique Sales. Patativa do Assaré: as razões da emoção (capítulos de
uma poética sertaneja). Fortaleza/São Paulo: Edições UFC/Nankin, 2004.
CARVALHO, Gilmar de. Patativa do Assaré: pássaro liberto. Fortaleza: Museu do Ceará,
2002.
FEITOSA, Luiz Tadeu. Patativa do Assaré: a trajetória de um canto. São Paulo: Escrituras,
2003.
GONZAGA, Luiz (Patativa do Assaré). “A triste partida”. Faixa 1. A triste partida, Rio de
Janeiro: BMG/RCA Victor, 33 RPM, 1964.
PATATIVA DO ASSARÉ. Inspiração nordestina. São Paulo: Hedra, 2003.

Poesia oral
Compreendem-se na poesia oral as narrativas e os versos de produção e
circulação orais. A poesia é tomada em seu sentido etimológico de poiesis,
isto é, como uma criação. Adota-se o termo em substituição à literatura
oral, por entender-se que a palavra “literatura” remete à palavra “letra”.
Trata-se de um texto que se atualiza em performance. Compõe, ao lado das
expressões poéticas sonoras, o grande conjunto de gêneros poéticos
denominado por Paul Zumthor de “obra vocal”. (FF)

REFERÊNCIA
ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. São Paulo: Hucitec, 1997.

Ponto (teatro)
O ponto era a pessoa que ficava nos bastidores, fora da cena, narrando em
voz baixa as falas para os atores quando eles esqueciam o texto. O ponto
devia ser ouvido apenas pelos atores, não pelo público. Segundo Pavis, essa
função foi criada no século XVIII. O ponto ficava em uma pequena caixa ou
em um buraco no proscênio, de costas para o público e com abertura para
os atores. Pavis afirma que “o bom ponto deve saber, ao observar os atores,
antecipar o erro ou a dificuldade e interferir no momento exato”. Segundo
Eudinyr Fraga, o ponto acumulava funções, como as de auxiliar o
ensaiador (diretor) nas marcações das cenas para os atores lembrando-os
de suas posições, indicar o momento de apagar e acender as luzes e fazer a
sonoplastia (ruídos), como tapas, ranger de portas, freio de carro etc.
Como é possível notar, o ponto assume uma função quase
metanarrativa, pois sua observação penetra as camadas ficcional e não
ficcional, distinguindo o que é a história representada do que não é. Nesse
sentido, a função do ponto tem relação com a do contador de histórias,
pois sua voz atravessa o palco e ecoa nas ações e vozes dos atores, que
contam a história através do drama.
O escritor alemão Michael Ende, autor do livro A história sem fim,
escreveu um conto chamado O teatro de sombras de Ofélia, cuja personagem
principal é um ponto. Mesmo sendo um texto literário, ele traz alguns
elementos históricos, como a transição e o desaparecimento desse ofício.
Na obra, a velhinha Ofélia havia dedicado toda a vida a ser o ponto.
Quando surge o cinema, ela se depara com a situação de ter de deixar o
teatro em que trabalhava. Como essa era a única atividade que sabia
desenvolver, Ofélia perdeu a direção da vida. O conto de Ende já foi
adaptado para o teatro e também contado por alguns grupos no Brasil.
Atualmente, o ponto do teatro na forma aqui descrita desapareceu
quase por completo, mas, ainda segundo Fraga, “existe, nos dias de hoje, o
ponto eletrônico, disfarçado estrategicamente nos ouvidos dos intérpretes,
em ocasiões especiais”. O ponto eletrônico não é utilizado só no teatro,
mas é recorrente em conferências, eventos com tradução simultânea,
discursos políticos, telejornais etc. (FHNM)

REFERÊNCIAS
ENDE, Michael. A história sem fim. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
_____. O teatro de sombras de Ofélia. São Paulo: Ática, 2000.
FRAGA, Eudinyr. “Ponto”. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela
Alves de. Dicionário do teatro brasileiro. São Paulo: Edições Sesc/Perspectiva, 2009,
p. 273.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005.

Princesa ver Mãe-d’água e Princesa

Projeção vocal
Compreende o direcionamento e a expansão da voz no espaço, envolvendo
assim o controle da direcionalidade (de onde vem e para onde vai o som),
da ressonância e da intensidade (volume) da voz. A estrutura acústica do
espaço interfere diretamente na produção vocal e, consequentemente, na
projeção da voz. Espaços pequenos e baixos, ou ambientes amplos, mas
com boa acústica, reverberam mais adequadamente a produção sonora.
Espaços abertos, muito altos ou com acústica ruim, por diversos motivos,
dificultam o controle do direcionamento e da manutenção das qualidades
do som no espaço. Assim, para uma projeção vocal adequada, é necessário
o controle da intensidade vocal por meio do apoio respiratório (para
manter a qualidade da voz e não causar danos à saúde vocal), além do
controle da ressonância e da direcionalidade da voz no espaço. É preciso
levar em conta também que a quantidade de pessoas presentes no local
interfere na reverberação do som: quanto maior for o número de pessoas,
menor será a reverberação do som, necessitando de mais projeção. A
produção vocal cênica deve ser consciente, e a projeção dessa produção,
também. Assim, a projeção vocal contribuirá para a criação das imagens,
sensações e impressões da cena. A falta de domínio da projeção vocal pode
levar a produção vocal a ser, sem querer, ininteligível (na relação com o
sentido das palavras) ou inaudível (impossível de ser ouvida). (DD)

REFERÊNCIAS
LIGNELLI, César. Sons e cenas: apreensão e produção de sentido a partir da dimensão acústica.
350f. Tese (Doutorado em educação) – Universidade de Brasília. Brasília: 2011.
MARTINS, Janaína Träsel. Os princípios da ressonância vocal na ludicidade dos jogos de
corpo-voz para a formação do ator. 196f. Tese (Doutorado em teatro) – Universidade
Federal da Bahia. Salvador: 2008.
Rapsodo
1. O rapsodo nasce na Grécia arcaica: o poeta Homero e o pastor Hesíodo
são suas primeiras faces. Surge em uma época em que a memória, ainda
não entorpecida pela escrita, se conserva pela ação da palavra poética
sobre o outro: a voz poética é presença que educa e diverte. Aedos e
rapsodos errantes eram comuns no mundo de língua grega dos séculos VII
a.C. e VI a.C., mas sua importância social diminuiu a partir do surgimento
das tragédias e de outras formas literárias que dependiam da escrita em
sua composição e difusão. A diferença entre eles reside no fato de que o
aedo canta suas próprias criações, e o rapsodo, por sua vez, divulga um
repertório – ele é “aquele que cose cantos”. Embora divirja na temática e no
conteúdo de seus cantos, o rapsodo guarda traços comuns com os
cantores-narradores medievais, época em que as vozes poéticas dos jograis
e dos cantores de gesta eram portadoras da preservação e da difusão da
memória.
2. O rapsodo articula na performance os atributos do narrador, sujeito épico,
e do cantor, sujeito lírico, entoando no balanço entre canto e fala,
representante do espaço da voz poética. Como o escritor-rapsodo que
junta o que previamente despedaçou e, no mesmo instante, despedaça o
que acabou de unir, o ator-rapsodo costura seu desempenho em um campo
de tensões determinado pelas combinações entre as vozes do cantor e do
narrador.
3. Nas estratégias do rapsodo, o canto colide com a fala e a fala colide com
o canto; o canto interfere na fala e a fala interfere no canto; o canto se
transforma na fala e a fala se transforma no canto. Como canto e fala se
alternam, o canto fala, e a fala canta: cantofalado, falacantada. (ZDF)

REFERÊNCIA
SARRAZAC, Jean-Pierre. O futuro do drama. Porto: Campo das Letras, 2002.

Renda de bilros
No Nordeste, a renda de bilros foi introduzida nas reduções indígenas
pelos missionários jesuítas. No século XVII, meninas e rapazes eram
iniciados nas “almofadas” de bordar e faziam a renda que seria usada nas
toalhas dos cultos. Os jesuítas controlavam a produção, para evitar o
comércio desenfreado ou um desgaste da mão de obra nativa. A renda é
um artesanato cuja origem se confunde com as possibilidades de
desenvolvimento em vários núcleos e culturas. Ela teria sido feita
inicialmente em Flandres, região que é dividida hoje entre a Bélgica e a
Holanda. Quando dominaram a Holanda, os espanhóis levaram alguns
modelos e técnicas para a península Ibérica. Assim, Portugal se beneficiou
desses trânsitos e fez com que a renda chegasse ao Brasil. Os indígenas
conviviam com um algodão nativo, cujos fios eram tecidos para a feitura
das redes de dormir nos improvisados teares manuais. Os fios de algodão,
chamados de nimbós, eram moeda de troca em algumas transações de
comércio. A renda entrou no Brasil como algo novo, mas os índios logo se
familiarizaram com o fazer artesanal e temos amostras desse material no
Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa. Em Santa Catarina, a
introdução da renda se deu por meio dos colonos migrados dos Açores. A
renda recorre ao chamado “ponto no ar”, uma laçada feita sobre a
almofada geralmente cilíndrica, recoberta por tecido de algodão e
recheada com palha. Sobre a almofada, é disposto o “pinicado” – um
papelão com perfurações que são guias para o trabalho –, que servirá de
modelo para a renda a ser confeccionada. As rendas são feitas com linhas
de certo brilho. Durante algum tempo, prevalecia a cor branca, mas outras
cores foram sendo incorporadas por exigência do mercado. Os bilros
nordestinos recorrem a pequenos cocos ou à madeira esculpida e são
colocados nas pontas das hastes de madeira. Ver a rendeira trabalhando e
a dança dos bilros permite acompanhar a agilidade de quem tece a renda.
(GC)

REFERÊNCIA
GIRÃO, Valdelice Carneiro. Renda de bilros. Fortaleza: Instituto do Ceará, 2013.

Repentistas
Ao som das violas, com muita verve, agilidade e jogo de cena, os
repentistas são os equivalentes brasileiros aos jograis e menestréis da
tradição europeia. A cantoria chegou ao Brasil pela herança indígena que
vem das danças rituais e dos cantos de trabalho e também pelo legado
africano, com os orikis, os pontos das entidades e os batuques. Segundo a
maioria dos estudiosos, o berço da nossa cantoria de viola teria sido a serra
do Teixeira, na Paraíba. O canto é marcado pela agilidade e pela riqueza do
improviso, ainda que alguns levem versos prontos (os chamados “balaios”).
A peleja gira em torno de um “mote”, pretexto, álibi, motivo que os
contendores recorrem para cantar. Eles se apresentam em duplas que
competem, por meio da palavra, entre si. Ganha o que for mais ágil e tiver
a argumentação mais convincente. O público interage, torce e ajuda a
escolher o vencedor ao final da apresentação. A “batalha” ocorre em versos
com o mesmo número de sílabas, rimados e de acordo com as
modalidades. As possibilidades são diversas: sextilhas, gabinetes, mourões,
galopes à beira-mar, martelos agalopados etc. Antigamente, as cantorias
não tinham tempo para terminar e podiam durar dias. A cantoria “pé de
parede”, ajustada pelo dono da casa ou da fazenda, deixava os adversários
em uma sala onde era colocada uma bacia para as moedas que
complementariam o cachê ao qual eles fariam jus. Sempre foi frequente a
presença de cegos nos embates, visto que havia uma legislação que fazia
reserva de mercado para os deficientes visuais, aos quais se dava primazia
na venda de poesias nas feiras. Hoje, a cantoria se rege pelas leis do
espetáculo, com festivais que recorrem a normas rígidas, a prêmios
estipulados, a tempos definidos, a júris competentes, à escolha dos motes e
à gravação de CDs e DVDs durante os torneios. Tudo isso ocorre em espaços
legitimados e com conforto, cenários, iluminação, bancadas e repercussão
na mídia. Novas modalidades mantêm o interesse pela cantoria, como é o
caso do rap, nova forma de expressar ritmo e poesia. (GC)

REFERÊNCIAS
AMÂNCIO, Geraldo; PEREIRA, Vanderley. De repente, cantoria. Fortaleza: LCR, 1995.
AYALA, Maria Ignez Novais. No arranco do grito: aspectos da cantoria nordestina. São
Paulo: Ática, 1988.
CASTRO, Simone Oliveira de. Memórias da cantoria (palavra, performance e público).
Fortaleza: Expressão Gráfica, 2011.
LINHARES, Francisco; BATISTA, Otacílio. Antologia ilustrada dos cantadores. Fortaleza:
UFC, 1982.
RAMALHO, Elba Braga. Cantoria nordestina: música e palavra. São Paulo: Terceira
Margem, 2001.

Role-Playing Game (RPG)


RPG é um tipo de jogo narrativo que propõe uma ação interativa e
colaborativa em que os participantes – mestre-narrador e jogadores –
criam conjuntamente a história antes, durante e depois de ela ser contada.
Cabe aos jogadores interpretar e, na maior parte das vezes, criar suas
personagens decidindo o que elas fazem e como o fazem durante as
sessões. O mestre do jogo ou narrador é responsável pelo luxo narrativo,
que é formulado por meio da estruturação básica do enredo com
determinação de alguns eventos, desafios e interpretação das personagens
não interpretadas pelos jogadores e, igualmente, pelo domínio das regras
que permitem a resolução de ações pretendidas pelos jogadores para suas
personagens. Esse aspecto também inclui esclarecer dúvidas dos
jogadores, resolver eventuais con litos, zelar pelo “tom” ou “clima”
escolhido para a história (terror, suspense, aventura etc), manter os
jogadores interessados na narrativa que está sendo contada e controlar o
foco da sessão de RPG. Aqui nos referimos a um conjunto de premissas para
que a sessão de RPG alcance seu objetivo, que pode ser diversão,
confraternização social, educação, apreciação estética etc.
O RPG surgiu nos Estados Unidos em 1974, a partir dos jogos de
guerra que simulavam batalhas em tabuleiros. O primeiro cenário usado e
ainda o mais popular é a chamada “fantasia medieval”, inspirada na obra O
Senhor dos anéis, de J. R. R. Tolkien. Em sua fase atual, há grande
diversidade de cenários (fantasia, ficção científica, terror, histórico etc.),
que se aproximam dos cenários das narrativas ditas de ação e aventura do
cinema, dos quadrinhos, das animações e dos videogames. Os RPGs atuais
podem ou não lançar mão de outros recursos lúdicos, como tabuleiros,
cartas (deck cards), mapas e miniaturas.
Os RPGs enquadrados em seu aspecto de interpretação e cocriação de
enredos se apresentam em dois formatos principais: de mesa (Pen-and-
Paper e Tabletop RPG) e Live-Action (LARP ou LARPG):
RPG DE MESA: essa é a primeira e mais tradicional forma de RPG, na qual os
participantes se reúnem ao redor de uma mesa (ou no chão) com suas
personagens descritas em fichas ou planilhas. As interpretações de
jogadores e mestre se baseiam no discurso oral, sendo possível usar de
forma limitada a linguagem corporal e recorrer a recursos como efeitos
sonoros, ilustrações, miniaturas etc.; ou seja, os jogadores executam uma
atuação dramática parcial, similar à leitura interpretada de papéis em pré-
produções de teatro e cinema, que não implica caracterização por meio de
maquiagem ou figurino. O mestre do jogo ou narrador interpreta as
personagens não interpretadas pelos jogadores (Non-Player-Characters,
NPCs) e acompanha os eventos de perto. É comum usar dados para a
resolução das ações pretendidas pelos jogadores para suas personagens.
LARPG: sigla para Live-Action Role-Playing Game, formato de RPG que se
aproxima do “teatro de improviso”. Ele necessita de um ou mais espaços,
internos ou externos, para a sessão de jogo, pois implica movimentação
cênica e atuação dramática dos jogadores, que, em geral, se caracterizam
como suas personagens por meio de maquiagem ou figurino. Nas sessões,
os jogadores recebem, com as fichas de personagens, um roteiro com os
objetivos a serem alcançados durante a sessão. Se eles tiverem criado a
ficha antes, recebem apenas o roteiro com os objetivos. A trama é
articulada de forma que os objetivos das diferentes personagens se
entrecruzem de modo cooperativo ou competitivo. Por causa da
dificuldade de movimentar o grupo por diferentes espaços, as tramas
costumam ocorrer em um único cenário, simulando eventos públicos
(festas, reuniões, shows etc.). É muito comum que seja utilizado o jogo
“pedra, papel e tesoura” ou cartas de baralho para a resolução das ações,
pois nem sempre no espaço há recursos para rolamento de dados. Os
LARPGs podem ter poucos jogadores ou centenas deles e podem durar
algumas horas ou dias. Nos LARPGs maiores, os mestres do jogo ou
narradores costumam ser apoiados por mestres auxiliares ou pessoas que
interpretam os Non-Player Characters (NPCs), personagens importantes para
a trama que não são interpretadas pelos jogadoras. As suas
responsabilidades são, então, mais distribuídas. (CK-EB)

REFERÊNCIA
BETTOCCHI, Eliane; KLIMICK, Carlos; REZENDE, Rian. “Projeto Incorporais: método e
material lúdico-didático para professores e estudantes do ensino médio”.
Tríades: Transversalidades, Design, Linguagens – Revista do Programa de Pós-
Graduação em Design da PUC-Rio. Rio de Janeiro: 2013, v. 2, n. 1. Disponível em:
<www.revistatriades.com.br/blog/?page_id=962>. Acesso em: set. 2014.

Romance de cordel
O romance de cordel, poema de 16 a 64 páginas, pode ser declamado ou
cantado. Ele se distingue do romanceiro, formado por cantos poéticos de
origem ibérica coletados pelos folcloristas desde o século XIX, e é
transmitido oralmente pelas mulheres. Dona Militana Salustino do
Nascimento (1905-2010), de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do
Norte, foi uma “cantora de versos” considerada uma das maiores
romanceiras do século XXI. O termo pode designar também o conjunto
formado pela poesia oral (improvisada ou decorada) e os folhetos de
cordel. Entre os romances de cordel clássicos, podemos citar A história da
donzela Theodora, A imperatriz Porcina, A princesa Magalona, Roberto do Diabo,
João de Calais, Carlos Magno e os doze pares de França, Genoveva e Brabant, O
soldado jogador, Cachorro dos mortos, Vida e testamento de Cancão de Fogo, João
Grilo, A filha dum pirata, A louca do jardim, Alfredo e Julinha, Cidrão e Helena,
Coco Verde e Melancia, História da princesa da Pedra Fina, O romance da princesa
do mar sem fim, João da Cruz, Juvenal e o dragão, O capitão do navio, O pavão
misterioso, O príncipe e a fada, Pedrinho e Julinha, Valdemar e Irene, Zezinho e
Mariquinha etc. No Nordeste, houve uma produção importante de
romances de boi, sejam eles orais, como o Romance do boi da mão de pau, de
Fabião das Queimadas, ou escritos, como a História do boi misterioso, de
Leandro Gomes de Barros. (JC)

REFERÊNCIAS
BARROS, Leandro Gomes de. História do boi misterioso e outros cordéis. São Paulo: Hedra,
2004.
DONA Militana. Cantares (CD triplo). Fundação Hélio Oliveira e Scriptorium Candinha
Bezerra, 2000.

“A salamanca do Jarau”
Na região da Campanha, área de imensas planícies no Rio Grande do Sul,
zona de fronteira com o Uruguai, há uma formação rochosa única,
conhecida como o cerro do Jarau. Esse cerro, ou pequena montanha, é
conhecido por sua “gruta mágica”, “A salamanca do Jarau”, nome do conto
de João Simões Lopes Neto (1865-1916), escrito a partir de versões orais
recolhidas por ele. Nesse conto, uma princesa moura teria sido
transformada por Anhangá-pitã em uma teiniaguá, ou lagartixa, que se
destacava por possuir uma pedra preciosa na cabeça. Aprisionada por mais
de duzentos anos no Jarau, o encantamento da moça só se quebra pela
ação de Blau Nunes, o herói contador de causos criado por Lopes Neto
(para alguns, ele é um anti-herói). Vale ressaltar que, ainda hoje, os
moradores da região comentam os mistérios que envolvem o cerro: “O
Jarau é ali, um cerro grande, né. Mas não tem nada de mistério, ali… O
pessoal fala é da lenda antiga. Mas é bonito ali. É uma vista que a gente
olha…, de muito longe enxerga o Jarau pela posição dele” (Seu Jorge,
Quaraí-RS). A antropóloga Ondina Fachel Leal utiliza esse conto para
analisar a constituição do sujeito masculino na cultura gaúcha. (LH)

REFERÊNCIAS
LEAL, Ondina Fachel. “O mito da salamandra do Jarau: a constituição do sujeito
masculino na cultura gaúcha”. Cadernos de Antropologia n. 7: Cultura e identidade
masculina. Porto Alegre: PPGAS/UFRGS/CEUE, 1992 (fascículo de circulação
restrita).
LOPES NETO, João Simões. Contos gauchescos e lendas do Sul. Porto Alegre: Globo, 1984.

Sociodrama
Sociodrama é a adaptação do psicodrama para questões grupais e, nas
palavras de Moreno, “pode ser definido como um método profundo de
ação para a abordagem de relações intergrupais e de ideologias coletivas”.
Diferentemente do que ocorre no psicodrama, em que o sujeito é o
indivíduo, no sociodrama o sujeito é o grupo, e não importa quem são os
indivíduos, já que todos formam uma unidade que compartilha da mesma
cultura e já estão organizados por seus papéis culturais. Por meio do
sociodrama se lida com problemas sociais e se almeja a catarse social.
Ainda de acordo com Moreno: “o pressuposto dessa abordagem é o
reconhecimento de que o homem é um jogador de papéis, que todo
indivíduo se caracteriza por determinado conjunto de papéis que domina
seu comportamento e que toda cultura é caracterizada por determinados
conjuntos de papéis que ela impõe, com um grau variado de sucesso, aos
seus membros”. Dessa forma, o sociodrama trará à tona uma ordem
cultural por meio de métodos dramáticos. (CSS)

REFERÊNCIA
MORENO, J. L. “Psicodrama e Sociodrama”. In: FOX, Jonathan. O essencial de Moreno:
textos sobre psicodrama, terapia de grupo e espontaneidade. São Paulo: Ágora, 2002.

Teatro de animação
A expressão “teatro de animação” ou “teatro de formas animadas” surgiu
da necessidade de conceituar e denominar as mudanças e os
desdobramentos ocorridos na linguagem do teatro de bonecos,
especialmente na segunda metade do século XX, além de agrupar outras
formas de expressão, como as máscaras, as sombras, o teatro de objetos, as
figuras e os materiais abstratos. Na busca por abarcar as novas e as antigas
manifestações artísticas, chegou-se à expressão “teatro de animação”. Para
Ana Maria Amaral, “marionete, bonecos, figuras, objetos ou formas.
Qualquer que seja sua nomenclatura, estamos falando de um teatro onde o
inanimado é personagem central”. Essa necessidade se deu porque a
nomenclatura “teatro de bonecos” não mais representava a multiplicidade
de linguagens que constela o ato de animar bonecos e formas. Entretanto,
ainda são recorrentes estéticas que se aproximam das estruturas
tradicionais, que se utilizam apenas de bonecos. O teatro de animação é
uma linguagem sustentada pelo protagonismo da anima (no sentido de
alma e vida), deixando para o objeto, seja ele um boneco ou não, a
decodificação de sua essência. A anima ou alma do objeto animado é
desprendida ou projetada do corpo do ator-animador para o “objeto”
animado. Embora o cinema de animação também faça esse movimento de
trabalhar com a representação de criar e animar seres, essas artes se
diferenciam principalmente pelo fato de uma ser teatral e a outra,
cinematográfica. O teatro de animação se diferencia ainda da animação da
recreação por esta não ser uma linguagem artística. (FHNM)
REFERÊNCIAS
AMARAL, Ana Maria. Teatro de formas animadas. São Paulo: Edusp, 1996.
_____. Teatro de animação. São Paulo: Ateliê, 1997.

Teatro lambe-lambe
Essa é uma expressão nova e uma forma de fazer teatral relativamente
recente. A expressão “lambe-lambe” vem da apropriação do ofício dos
lambe-lambes, fotógrafos ambulantes que carregavam uma caixa
(máquina de fotografar) pelas ruas, vendendo seus serviços. Com a
dinâmica tecnológica, as máquinas e o ato de fotografar foram se
transformando, o que quase extinguiu os lambe-lambes, restando apenas
algumas de suas máquinas-caixa de fotografar, que serviram de origem
para o teatro lambe-lambe. A partir da utilização dessa caixa, essa forma
de fazer teatro pauta-se no teatro de animação. A caixa foi adaptada para
que, em seu interior, sejam apresentadas cenas de teatro de animação com
enredos curtos, entre um e cinco minutos, e personagens em miniaturas.
A caixa de teatro lambe-lambe tem, geralmente, três ou quatro
aberturas: duas nas laterais, para os braços do animador; uma na parte
superior ou atrás, para que ele veja a cena; e outra na frente, para aquele
que assiste. A caixa representa a estrutura de um teatro que só existe com,
no mínimo, duas pessoas: a que faz a peça teatral e a que assiste. Segundo
Kátia Arruda, essa forma teatral teve origem em 1989, em Salvador, Bahia,
por meio das artistas Ismine Lima e Denise Santos. Desde então, vem
proliferando por várias cidades do Brasil. As histórias representadas são
contadas geralmente com uma sequência de cenas sem palavras e com
música, através de fones de ouvido com walkman e, atualmente, MP3.
Do ponto de vista da recepção, as caixas atraem o público pelo fato
de alguma coisa acontecer “dentro”, como algo misterioso. O público
normalmente composto de uma só pessoa olha pela “fechadura” e, ali,
abre-se um tempo que apaga o tempo exterior. Quando parte da
curiosidade é satisfeita ao ver o cenário, as personagens e o preâmbulo
inicial, resta o fio da história que será contada por uma sequência de ações
usualmente visuais. Desse modo, como as expressões “Era uma vez…”,
“Muito tempo atrás…”, “Em um tempo distante…”, entre outras, nos levam
para outro tempo e espaço, o mesmo ocorre com os espectadores que
olham pelo orifício das caixas envoltas em um clima de mistério e magia.
Por mais nova que seja a expressão “teatro lambe-lambe”, o teatro
feito em caixas é antigo. A pesquisadora Darci Kusano menciona que, em
meados dos séculos XVI e XVII, entre as inúmeras trupes que apresentavam
teatro de bonecos no Japão, havia os Ebisu-kaki, que carregavam caixas
penduradas no pescoço para servirem de palcos suspensos. “O minipalco,
de cerca de quarenta centímetros quadrados, não tinha assoalho, posto
que os bonecos eram mantidos no nível do palco, sendo movimentados por
baixo pelos operadores, que conservavam as mãos ocultas”, afirma.
Referindo-se também ao Japão, Margot Berthold cita o período Heian (794-
1185), em que as cenas eram apresentadas nas caixas, e os bonequeiros
manipulavam os bonecos movimentando-os através de buracos feitos no
fundo e nas laterais das caixas. A partir dessa referência histórica oriental,
a Europa tem alguns exemplos de utilização de caixas para a animação de
personagens, como é o caso do teatro de brinquedo do século XIX e mesmo
de algumas lanternas escuras e lanternas mágicas, as antecessoras do
cinema. Alguns grupos de teatro no Brasil vêm se especializando nessa
prática teatral, que vem sendo difundida por produtores culturais e
estudiosos. (FHNM)

REFERÊNCIAS
ARRUDA, Kátia. “O menor espetáculo do mundo”. In: Teatro de bonecos: distintos olhares
sobre teoria e prática. Santa Catarina: Udesc, 2008.
BERTHOLD, Margot. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
KUSANO, Darci. Os teatros Bunraku e Kabuki: uma visada barroca. São Paulo: Perspectiva,
1993.

Teatro playback
O teatro playback (ou playback theatre, como é conhecido mundialmente) é
uma forma teatral em que um grupo de atores, com a mediação de um
condutor, encena histórias contadas por pessoas da plateia. Em uma
apresentação como essa, a interação entre os performers (atores, músicos e
condutor) e as pessoas da plateia é fundamental, para que haja a criação de
um espaço em que as histórias pessoais possam ser improvisadas em cena.
De acordo com Fox, o nome playback theatre deriva da ideia de “representar
de volta” (playing back) as histórias das pessoas da plateia. Criado em 1975
por Jonathan Fox e Jo Salas nos Estados Unidos, atualmente grupos de
vários países trabalham com esse tipo de teatro, inclusive do Brasil. (CSS)

REFERÊNCIA
FOX, Jonathan. Acts of Service: Spontaneity, Commitment, Tradition in the Nonscripted
Theatre. New Paltz: Tusitala, 2003.

As três ceguinhas de Campina Grande


Três irmãs cegas, Regina, Maria e Conceição – Maroca, Poroca e Indaiá –,
cantavam histórias e tocavam ganzá nas feiras, nas portas de igrejas e nas
esquinas de Campina Grande, na Paraíba, e também em outras cidades do
Nordeste brasileiro, a fim de conseguir alguns trocados para seu sustento.
De acordo com Bráulio Tavares, elas cantavam “cocos de embolada
tradicionais e anônimos, cujos refrãos fortes servem para que as
cantadoras puxem versos da lembrança, versos aleatórios,
intercambiáveis, em um sistema recombinatório que é típico do coco”.
Esse não é um caso isolado no Nordeste, tampouco no Brasil, mas foi
escolhido para representar a figura dos “anônimos” que estão nas
marquises das ruas de alguns centros urbanos e em vilarejos e que
encontraram no canto popular e na rua uma forma de sobrevivência. Essas
figuras, quase sempre adereçadas de instrumentos artesanais e
improvisados e, às vezes, de microfone pendurado no pescoço, têm sempre
muitas histórias embaixo do braço e diante de seus olhos para
improvisarem a vida. No caso das ceguinhas de Campina Grande, elas
enxergam pelos demais sentidos e percepções e, com isso, captam os
pedaços de histórias que passam nas calçadas em que se apresentam. O
caso das ceguinhas ficou nacionalmente conhecido depois do filme-
documentário de Roberto Berliner, A pessoa é para o que nasce, e resultou na
gravação de um CD com a participação de músicos de renome nacional. O
filme acompanha o cotidiano das três irmãs retratando suas histórias de
vida, traçadas inicialmente pela ausência de visão e por um contexto
familiar marcado pela pobreza. Bráulio Tavares exprime a síntese dessa
grande poesia que foi o encontro delas com a arte: “Nasci e fui criado em
Campina Grande, e as três ceguinhas que cantavam coco fizeram parte da
minha paisagem durante a vida inteira, com seu trinado de vozes e seus
ganzás, desgrenhadas como as feiticeiras de Macbeth, mas nunca
ameaçadoras. Vozes tristes, maltratadas, mas com aquela pungência de
quem não tem mais o que perder e qualquer coisa que ganhar é lucro. […]
São retalhos de canções que elas pegaram de ouvido sem saber de quem
eram, ou de canções compostas por alguém da rua, alguém do bairro; o
cancioneiro inesgotável das músicas que nunca foram gravadas, voz
incessante de um país onde todo mundo arranha um violão e arrisca um
versinho. […] Estas canções feitas de fumaça e vento produzem este rumor
surdo e profundo que pode se ouvir a qualquer hora, em qualquer parte do
Brasil. É gente sem nome e sem rosto fazendo uma música sem dono e
sem fim”. (FHNM)

REFERÊNCIAS
A PESSOA é para o que nasce. Direção: Roberto Berliner. Brasil: TV Zero, 2003. 85 min.,
color.
TAVARES, Bráulio. “A música é para o que nasce”, 2003. Disponível em:
<www.apessoa.com.br/pt/cd_texto.php>. Acesso em: dez. 2014.

Trovadores ver Repentistas

Vira-bicho ver Lobisomem e Vira-bicho

Vocalidade
1. É a historicidade da voz, seu uso. A vocalidade pressupõe a presença de
corpos em contato pela voz. No campo poético, vocalidade é a voz em
performance: reconhecimento, emergência, conduta.
2. Poderíamos dizer do próprio cancionista, do narrador, do rapsodo, do
ator e do ator-rapsodo que eles devem ser adivinhos para desvendar e
descobrir a presença do outro e adivinhar as palavras, suas dimensões,
suas extensões, suas ressonâncias, seus ritmos, suas respirações, enfim,
descobrir seus sentidos.
3. Compor, adivinhar ou farejar uma vocalidade poética é procurar uma
dicção, um dizer cuja continuidade da voz e articulação das palavras
expõem um (só) projeto de sentido. O adivinho intui a presença do outro,
fareja e adestra o faro. O rapsodo, pois, deve cultivar o sentido do faro do
adivinho. (ZDF)

REFERÊNCIAS
ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. São Paulo: Educ, 2000.
TATIT, Luiz. O cancionista. São Paulo: Edusp, 1995.

Xilogravura
Etimologicamente, trata-se de traço, entalhe (gravura) na madeira (xilo).
Os estudiosos afirmam que a xilogravura teria sido inventada na China há
mais de 2 mil anos. Passou pela Europa medieval, onde foi o meio de
ilustração para iluminuras e manuscritos copiados nos mosteiros; foi
utilizada por Gutenberg na “invenção da imprensa”, que revolucionou as
impressões com a adoção dos tipos móveis; e chegou ao Brasil em 1808,
com a corte portuguesa, que liberou as publicações até então
terminantemente proibidas. A xilogravura foi usada como cabeçalho e
ilustração nos jornais, nos quais ficava evidente o lado político – por mais
que, nesse contexto, as xilogravuras fossem pouco sedutoras visualmente.
À medida que se tornavam obsoletas para os grandes centros com a
evolução do maquinário, a xilogravura chegava aos grotões do Brasil, e os
prelos serviam para imprimir uma manifestação que até então era oral,
enunciada pelos cantadores e acompanhada pelas violas. A impressão
desse conjunto de narrativas, com rimas, ritmo, melodia e estrofes com
determinados números de sílabas e de versos, deu margem ao folheto de
feira, a partir da dobra da página de formato A4. Nascia assim a literatura
de cordel, impressão da poesia da voz. Suas primeiras capas eram cegas,
como se diz, trazendo apenas informações de autoria, título e ano da
publicação e, por vezes, alguma informação das folhetarias. Depois, vieram
os clichês de metal, a partir de fotogramas, dos cartões-postais e dos
desenhos feitos com base nas histórias contadas. A xilogravura passou
para a capa de cordel no início do século XX. Os primeiros gravadores eram
recrutados das marcenarias e da escultura religiosa, que foi forte na região
nordestina. Passou para os álbuns a partir dos anos 1960, graças à
interferência da Universidade do Ceará, cuja coleção foi exposta na Europa
e pontificou Mestre Noza, Walderêdo, Antonio Batista, entre outros. A
xilogravura erudita brasileira envolve nomes como Lasar Segall, Oswaldo
Goeldi, Lívio Abramo e Maria Bonomi. Jovens artistas desenvolvem e
inserem em seu trabalho essa técnica do ponto de vista da tradição, como
em Juazeiro do Norte e na chamada gravura contemporânea. (GC)

REFERÊNCIAS
CARVALHO, Gilmar de. Xilogravura: doze escritos na madeira. Fortaleza: Museu do Ceará,
2001.
_____. Memórias da xilogravura. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010.
_____. A xilogravura de Juazeiro do Norte. Fortaleza: Iphan, 2014.
COSTELLA, Antonio F. Introdução à gravura e à sua história. Campos do Jordão:
Mantiqueira, 2006.

1 O povo dogon habita o Mali e o Burkina Faso. (N.E.)


2 Esse é um exemplo de notícia sensacionalista e sem fundamentação, que
também pode ser chamada de fait divers. Ela é característica dos tabloides. No
caso em questão, Expedito se inspirou em uma notícia que dizia ter lido no
jornal cearense Correio do Ceará, que circulou de 1915 a 1980.
Relatos de experiências de grupos e contadores de
histórias

No começo eu pretendia apenas aquilo que meus


amigos faziam com tanta desenvoltura sentados
no cordão da calçada: contar uma história. [MOACYR SCLIAR]

No conto “Os contistas”, Moacyr Scliar diz que os contadores são ubíquos,
onipresentes: “Os contistas persas acreditavam que certas sementes
plantadas em noite de luar geravam árvores cujos frutos, ocos, continham
pequenos contos”1. Nesse conto, a referência que prevalece é aos
contadores literários, que contam com a escrita, mas são mencionados
também os da oralidade, e o texto de Scliar nos levou a reservar este espaço
para plantar pequenos relatos-semente.
“Na Idade Média alguns contistas foram acusados de bruxaria e
queimados vivos. Em certas regiões da Itália, cinzas desses contistas são
conservadas em garrafinhas; às vésperas dos exames os estudantes vão, em
romaria, reverenciar esses despojos”2. O objeto livro não deixa de ser um
ancestral dessas garrafas: não que aqui jazam suas cinzas, mas por meio
dele as histórias e experiências são levadas ao mar da leitura.
Os relatos a seguir são de narradores individuais e de grupos que
contam histórias e correspondem à expressão de um breve histórico de
ações, experiências, processos e recursos artísticos dos quais esses
contadores se valem.
Como área do conhecimento, a contação de histórias ainda está em
desenvolvimento. O momento atual é o de demonstrar as formas de
aprendizado e de realização das práticas espalhadas pelo Brasil, a
interdisciplinaridade do ato de contar histórias e as variadas formas de
contar, a diversidade cultural dos estados, grupos e estéticas e a
experiência que se faz com o outro, seja ele um ouvinte da audiência ou um
ouvinte especializado, que comunga da mesma atividade. É, sobretudo, o
momento de possibilitar o encontro entre fazedores, pois é muito bom
saber que não estamos sozinhos.
Diante da grande quantidade de fazedores (o que confirma, de certa
forma, a ubiquidade dos contadores), elencamos critérios para selecionar
aqueles que fariam parte desta coletânea. Esses critérios corresponderam
a contadores e grupos que contemplassem diferentes estéticas (afro-
brasileira, indígena, popular, com animação, teatralizada, oral, literária
etc.), representassem diferentes regiões do país e fossem,
preferencialmente, não iniciantes (em razão da efemeridade de
transeuntes nessa área).

Ser contadora de histórias: uma trajetória de


dedicação e encantamento
ALICCE OLIVEIRA (MT)3

É preciso que o conto seja velho na memória do povo, anônimo em sua autoria,
divulgado em seu conhecimento e persistente nos repertórios orais. Que seja omisso nos
nomes próprios, localizações geográficas e datas fixadoras do caso do tempo. [LUÍS DA
CÂMARA CASCUDO]

Lembro-me de ter passado minha infância ouvindo os contos de


assombração que meus pais contavam – eu adorava sentir medo e correr
para debaixo das cobertas. Histórias de lobisomem, mula sem cabeça, pai
do mato, saci, entre outras, povoaram minha memória. Em minha jornada,
a arte de narrar sempre se fez presente.
Sou contadora de histórias profissional desde 2005, e também atuo
há mais de vinte anos na profissão de atriz, arte-educadora e produtora
cultural. Com formação em pedagogia pela Universidade Federal de Mato
Grosso (UFMT), apresentei trabalhos acadêmicos em seminários,
congressos e encontros científicos relacionados à arte de contar histórias,
potencializando ainda mais a profissão que já vinha exercendo.
Após alguns anos de pesquisa e estudos sobre a arte de contar
histórias, idealizei meu primeiro projeto em nível nacional. Com o “Contos
do Mato”, aprovado pela Funarte em 2009, tive a oportunidade de
apresentar espetáculos e oficinas de formação com o objetivo de fomentar
e difundir essa arte e valorizar o ato de ler e narrar histórias. Para isso,
contei com uma equipe de profissionais: Mazé Oliveira (produtora
cultural), Jan Moura (designer gráfico), Manoel Victor (iluminador) e Bruno
Mangabeira e Jailson Prado (músicos).
Entre os vários trabalhos que realizei na capital de Mato Grosso, no
interior e em outros estados, destaco o projeto Ceja um Contador de
Histórias, que coordenei em parceria com a Secretaria de Estado de
Educação (Seduc-MT) em 2010. O projeto de fomento à leitura buscou avivar
as histórias orais passadas de geração em geração e incentivou a prática da
leitura, da escrita e da contação de histórias. Durante um ano, foram
atendidas cinco unidades do Centro de Educação de Jovens e Adultos
(Ceja)4.
Outro projeto mais recente e que também merece destaque foi
realizado em 2012, com aprovação do Programa de Apoio à Cultura
(Proac)5. Com a colaboração da equipe de profissionais, coordenei o I
Encontro Nacional de Contadores de Histórias em Cuiabá, um projeto
pioneiro em Mato Grosso que teve repercussão nacional e internacional.
Para realizá-lo, contamos com a parceria imprescindível do Sesc Mato
Grosso6 e de outras instituições7.
Entre idealizar e coordenar projetos, também apresento meu
repertório de espetáculos – Histórias birutas e batutas, Trecos e cacarecos,
mitos e lendas do rio Cuiabá, histórias de assombração, a oficina “Como
contar e encantar com histórias”, entre outros –, que já foi apresentado em
Cuiabá (Sesi, Sesc, livrarias, bibliotecas, feiras literárias e instituições
educacionais), em cidades do interior do Mato Grosso e em mais nove
estados. Como narradora de histórias convidada, já participei de festivais,
encontros, simpósios e mostras pelo Brasil.
As histórias sempre existiram e fazem parte da nossa memória
coletiva. Há muitos anos a figura do contador de histórias exerce um papel
importante na preservação da narrativa oral, reafirmando o valor da voz e
da interação com o público.
Vivemos um momento em que os narradores exercem uma função
de impacto social, educacional e cultural cada vez maior em vários países.
A profissionalização dos narradores tem contribuído para o
reconhecimento dessa arte no panorama cultural e literário. É nessa
aproximação e nesse reconhecimento entre narrador e público que ambos
se permitem compartilhar momentos lúdicos, de encantamento e de
conhecimento, tão essenciais à vida.

Cia. Mafagafos8 – contadores de histórias


ALINE MACIEL E SIG SCHAITEL (SC)

QUEM É A CIA. MAFAGAFOS?

A Cia. Mafagafos se estabeleceu em 2012, em Florianópolis, a partir


da união das experiências, do trabalho e dos anseios de Aline Maciel e Sig
Schaitel. Ela é mestre em letras pela UFSC, com uma pesquisa sobre teatro
de formas animadas. Desde 2004, trabalha com teatro, cinema, rádio,
música e contação de histórias. Como contadora, iniciou suas atividades
em 2009 na biblioteca Barca dos Livros. Atualmente se apresenta e
ministra oficinas pela Cia. Mafagafos em bibliotecas, escolas, faculdades,
festivais e outros eventos. Atua também em parceria com outros
contadores de histórias, músicos e atores. Sig Schaitel formou-se em
letras, é músico e gestor cultural. Iniciou a parceria com Aline em 2011,
com quem, no ano seguinte, fundou a companhia de contação de histórias.
No mesmo ano, a Cia. Mafagafos publicou o livro Cada um conta de um jeito,
de autoria de Aline Maciel9, por meio de edital do Fundo Municipal de
Cultura. O livro apresenta técnicas para a contação de histórias e cinco
contos populares recontados pela autora e ilustrados por Fábio Dudas. Na
sequência de cada conto, há ainda sugestões de como preparar a história
para que ela seja contada e a aplicação das técnicas apresentadas. É um
livro objetivo e prático para pais, professores e contadores iniciantes.

DE ONDE A GENTE VEM E NO QUE A GENTE ACREDITA


Desde 2004, Aline Maciel atua na área do teatro, performance, música,
vídeo e teatro de bonecos. Com a intenção de unir todas essas áreas, ela
buscou a contação de histórias. Em 2009, participou de uma oficina de
contação promovida pela Barca dos Livros e, dali em diante, o grupo
continuou encontrando-se informalmente para contar histórias, ler textos,
conversar sobre o tema e sobre suas novas experiências com a contação.
A partir da experiência de leituras, do contato com outros
contadores, de oficinas e do exercício da atividade junto a diversos
públicos, a Cia. sistematizou uma série de pressupostos que norteiam sua
prática de contação de histórias:

• a contação de histórias cativa crianças, jovens e adultos; desenvolve a


imaginação, a atenção e o raciocínio; desperta interesse pela literatura e
promove a socialização;
• cada contador faz as próprias escolhas, tanto de técnicas como de repertório.
Cada contador desenvolverá a própria maneira de contar;
• todos nós tivemos contato com a narrativa oral e sabemos narrar. Contudo, há
técnicas para a contação que podem ser estudadas e praticadas;
• na contação, a história não precisa ter uma moral ou um fim pedagógico. A
contação de histórias não exige relatórios, e quem a ouve não precisa escrever
algo sobre ela;
• a atenção dos ouvintes precisa ser conquistada, não imposta. Não é necessário
exigir silêncio absoluto do público antes de começar uma história. O contador,
com o uso de técnicas, deve cativar os espectadores e, assim, o público se
sentirá obrigado a ouvir ou participar;
• acima de tudo, a experiência de contar uma história deve ser prazerosa para o
contador e para os ouvintes.

COMO SÃO AS APRESENTAÇÕES DA COMPANHIA

A Cia. Mafagafos propõe uma maneira divertida de contar histórias,


utilizando recursos como música, bonecos, objetos e desenhos. Depois das
histórias, a música é o elemento mais presente nas sessões de contação. A
base de nossas sessões e espetáculos são contos populares e autorais
brasileiros, músicas da tradição oral e de autoria própria e outras formas
literárias da tradição oral, como o cordel e as quadras.
A FINALIDADE DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS

Compreendemos a contação de histórias como uma atividade


artística e lúdica, destinada aos públicos de todas as idades. Isso quer dizer
que não buscamos uma função moralizante ou pedagógica para a contação
de histórias. Não negamos, contudo, que a narrativa contada desenvolve a
imaginação, a atenção e o raciocínio, desperta o interesse pela literatura e
promove a socialização. Como qualquer expressão artística, as histórias
também têm estética e ética e são carregadas de ideologia, valores e
preconceitos. Cada contador tem liberdade e a responsabilidade pelas
próprias escolhas. A Cia. Mafagafos acredita no poder de encantamento
das histórias e busca divertir enquanto se diverte.

O QUE FAZ UM CONTADOR DE HISTÓRIAS?

O contador de histórias é herdeiro de uma cultura milenar, presente


na história de todos os povos. Acreditamos que, como contadores, nosso
compromisso seja o de dar continuidade à tradição e levar a todo canto o
encantamento de velhas e de novas narrativas. Para tanto, além de
preparar e contar histórias para o público, o contador precisa envolver-se e
desenvolver uma série de atividades que constituem o escopo de seu
trabalho. Entre essas atividades, estão a leitura e a pesquisa de histórias, a
convivência com contadores e mestres, o aprimoramento de técnicas por
meio de oficinas e prática, a organização do próprio exercício e a
promoção e a difusão da cultura, da leitura, da educação e da cidadania.

A CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS NAS ESCOLAS

Percebemos que a contação de histórias vem ganhando espaço em


escolas, bibliotecas, eventos, encontros, festivais e publicações. Tem-se
atribuído a ela um papel de instrumento de estímulo à leitura e de
valorização da cultura de tradição oral. Assim, trata-se de um recurso
criativo para aproximar o público jovem do universo das histórias e, por
consequência, do livro. Diversas experiências têm sido feitas em espaços
variados como bibliotecas, pontos de leitura, escolas e livrarias. Além disso,
nas escolas, essa atividade tem servido de estímulo ao aprendizado, pois
acredita-se que ela enriqueça a imaginação e ajude a desenvolver a escrita
criativa e o interesse pela leitura.
Por seus aspectos artístico, dinâmico e lúdico, acreditamos que a
contação de histórias na escola pode despertar o interesse de crianças e
jovens para as diversas experiências com a literatura e a arte. Todas essas
razões motivam professores a levar a contação para a escola e para a sala
de aula. No entanto, deve-se ficar muito atento à forma como é
apresentada para as crianças e os jovens: ela deve ser uma atividade
prazerosa, que não exija sacrifícios e relatórios nem seja moralizante ou
entediante.
Os estudantes devem ser conquistados para a experiência com as
histórias, devem ser atraídos, não empurrados. Devemos sempre ter em
mente que a contação é primordialmente uma atividade cultural e
artística, que se justifica em si mesma. Não deve ser empregada apenas por
sua “utilidade pedagógica” para alunos e professores. Por outro lado, por
ser algo novo, tem um grande potencial de aceitação. Nós tivemos diversas
experiências em escolas com públicos variados, de crianças de colo a
adolescentes, e constatamos: ninguém resiste a uma boa contação de
histórias.

O fluxo do rio
ANA LUÍSA LACOMBE (SP)

Sou carioca e comecei a experimentar o ofício de atriz no Rio de Janeiro,


na década de 1980. Fiz cursos de teatro no Tablado, na Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), além de outros cursos livres
de artes plásticas, dança e violão. Sempre gostei de ler e, em cada fase de
minha vida, tive meus autores prediletos, como Monteiro Lobato,
Fernanda Lopes de Almeida, Lygia Bojunga, Agatha Christie, Fernando
Sabino, Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Milan Kundera, Paulo
Leminski, Dostoiévski, Machado de Assis, Amós Oz, Isaac Bashevis Singer,
Katherine Mansfield, entre outros.
Vim para São Paulo em 1986 em uma turnê do espetáculo Escola de
mulheres, de Molière, no elenco encabeçado por Jorge Dória. Aqui, produzi
espetáculos próprios ao longo de minha carreira. Em 1992, fundei, com
mais dois atores, o Grupo Cenas In Canto, um grupo de teatro musical
brasileiro. Todos nós cantávamos e tocávamos. Produzimos dez
espetáculos ao longo de doze anos de existência. Além de atuar, eu fazia os
figurinos e adereços.
Em 2002, o grupo fechou seu ciclo. Eu me vi só e com muita vontade
de falar, de decidir qual seria o meu discurso, a minha palavra. Lembrei-
me de uma contadora de histórias que tinha visto em 1994 e tive vontade de
experimentar essa linguagem. Reportei-me, assim, à minha infância.
Minha mãe é uma excelente contadora de histórias. Sempre contou muitos
contos para mim e meu irmão na hora de dormir e durante as férias no
sítio dos meus avós. Ela fazia vozes, cantava… Eu adorava.
Fui fazer cursos e ouvir palestras de grandes contadores como Ilan
Brenman, Gislayne Matos, Gilka Girardello, Regina Machado e Kelly Orasi,
e lá fui eu preparar a minha primeira apresentação. Comecei montando
um espetáculo teatral narrativo chamado Fábulas de Esopo. Pela primeira
vez sozinha em cena, eu era responsável por contar três histórias. Deu um
frio na barriga, mas foi muito bom. Ganhei prêmios, viajei e me exercitei
bastante com essas três fábulas. Foi importante poder repetir muitas vezes
esse espetáculo antes de me aventurar em outras narrativas, pois, desse
modo, ganhei confiança e segurança para defender a minha palavra.
Entre 2004 e 2005, trabalhei em uma ONG contando histórias em
hospitais, no Incor e no Graacc. Foi um período de grande crescimento e
amadurecimento do meu trabalho: nesse ambiente descobri o que é
realmente ser contadora de histórias, sem nenhum recurso teatral, usando
apenas a palavra e o violão. Ampliei meu repertório e comecei a ouvir mais
as pessoas para quem eu contava. As conversas antes, durante e depois da
narração eram sempre ricas e importantes para mim e, creio, também para
os ouvintes. Essa foi outra descoberta: diferentemente do que ocorre no
teatro, o contador de histórias dá espaço a seu público para interagir,
interferir e opinar.
Não foi fácil lidar com isso, entender a medida exata da
interferência sem que ela prejudicasse o andamento da narrativa. Quando
eu deixava as interferências serem muitas, a história se perdia no meio de
tantos comentários; quando eu dava menos espaço para o público, deixava
de incorporar comentários que poderiam ser enriquecedores.
Em 2005, comecei a trabalhar no Centro da Cultura Judaica
cuidando das narrações de histórias para crianças e adultos. Não sou judia,
o que tornou esse convite um grande desafio. Tive de desvendar essa
cultura, e acabei me apaixonando por ela. Descobri que tinha tataravós
judeus nos dois lados da família, e isso me fez entender por que me sentia
tão próxima e identificada com a cultura desse povo. Trabalhei lá por dez
anos e ainda faço apresentações eventuais na casa. Hoje grande parte do
meu repertório é de contos da tradição judaica ou de autores judeus.
Durante dois anos, contei histórias em duas unidades escolares da
AACD, em São Paulo, para crianças com paralisia cerebral. Foi um período
intenso e profundo. A possibilidade de estar com o mesmo grupo todas as
semanas permitiu a existência de um processo de trabalho, um vínculo. Eu
pude apresentar a eles um mundo imaginário fantástico contando
histórias de vários povos e autores, com recursos diversos. Ao final desse
percurso, criamos histórias juntos e todos puderam contribuir com ideias.
Mesmo os que não tinham comunicação verbal puderam palpitar no
andamento da narrativa por meio de sua prancha de comunicação. O
índice de alfabetização aumentou em 30% durante esse período.
Conto histórias em vários lugares e para públicos distintos.
Incorporei a leitura de contos literários às minhas performances e tenho
gostado muito disso. Tudo começou no Centro da Cultura Judaica, onde eu
fazia leituras nos cafés literários. Eu lia trechos de livros, e fazíamos um
bate-papo com os escritores. Em um desses encontros, li contos do livro
Moqueca de maridos, da Betty Mindlin10, enquanto ela discorria para a
audiência sobre sua experiência com os índios. Assim, ficamos amigas, e
ela me convidou para ler para seu pai, José Mindlin, que estava com
dificuldade de leitura por causa da idade avançada. Era um leitor
contumaz sem conseguir realizar a atividade de que mais gostava. Entrei
no círculo das pessoas que liam para ele, e foi uma experiência linda e
gratificante. Ele foi amigo do meu avô, ambos da Academia Brasileira de
Letras, e, quando eu ia até sua casa, sentia uma grande saudade do vovô
Meco (Américo Jacobina Lacombe). Os dois eram homens com uma cultura
enorme e uma simplicidade maior ainda.
Ainda faço leituras em um projeto que chamo Leitura Viva.
Apresento-me em escolas e bibliotecas para professores e alunos. Tive
também um projeto por dois anos no bistrô Robin des Bois: escolhia um
autor ou um tema e montava um sarau de contos e canções.
O que me encanta e me interessa é contar histórias, pesquisar sobre
elas e trocar essas experiências com outras pessoas por meio de cursos e
palestras. Coordenei e fui professora do curso de formação de contadores
de histórias da Prefeitura de São Paulo e organizei a publicação Teia de
experiências: re lexões sobre a formação do contador de histórias11. Também
comecei a escrever histórias e a publicá-las. O trabalho como autora ainda
está começando, mas já me proporciona novas descobertas.
Quando comecei a contar histórias, senti que tinha encontrado o
meu caminho, meu luxo do rio. Uma vez ouvi uma palestra de um
especialista em I Ching que disse que o rio corre por onde é mais fácil
seguir, ou seja, a água vai encontrando seu leito e fazendo suas curvas por
onde ela lui melhor. Ele comparou isso à nossa vida, dizendo que, quando
encontramos o nosso luxo, as coisas começam a se desenvolver de forma
contínua, como acontece com o rio. Vamos deslizando sem dor, indo pelo
caminho que nos desgasta menos, aquele que deixa as águas seguirem o
seu destino, cristalinas e cheias de surpresas e riquezas em seu percurso.
Assim, sei que encontrei meu luxo e meu rio corre solto, murmurando
histórias novas a cada curva do caminho.

Procurando o fio da meada:o encontro entre as


histórias e o desejo de contar
ANA SELMA CUNHA (PA)12
Talvez você nunca tenha ouvido falar nos contadores de histórias, mas eles são seres
encantados que povoam o mundo real levando encantamento e poesia para todas as
pessoas. O contador é senhor do tempo e usa as histórias para revelar verdades da vida.
[ADRIANA VON KRÜGER]

Buscando encontrar na memória em que momento as histórias, com seu


encantamento e poesia, entraram em minha vida, recordei a infância em
Itaituba, no interior do Pará. Lembro-me de estar deitada em uma rede
durante a sesta e, em outra, meu pai, meu contador de histórias particular,
narrando-me de memória um cordel com uma história de trancoso. Meu
pai é piauiense, e “história de trancoso” é uma expressão frequente na
linguagem popular nordestina para denominar histórias de encantamento
ou fantásticas, nas quais geralmente a personagem principal consegue,
por meio da inteligência e da astúcia, resolver problemas extremamente
complexos.
Já adulta, pesquisei e descobri que essa expressão vem do nome de
um escritor famoso em Portugal no século XVI, cujo nome completo era
Gonçalo Fernandes Trancoso. Segundo alguns historiadores, esse autor de
novelas foi divulgado no Brasil pelo padre Antônio Vieira e seria o
precursor da nossa literatura de cordel.
Depois, as histórias em verso e em prosa que estavam quietas em
minha memória se juntaram a outras encontradas nos livros e a outras
mais recontadas por outros contadores de histórias13. Em seguida, elas
desceram para meus lábios. Como acontece em Belém do Pará quando se
come jambu, um vegetal que causa a sensação de tremor na boca, essas
histórias fizeram minha língua tremer, e a contadora de histórias desejou,
então, nascer.
Assim, busquei participar de cursos, oficinas e debates, conviver com
outros contadores, ingressar em um grupo de contadores de histórias e,
também, ouvir quem já trilhava havia algum tempo o caminho do contar e
poderia falar mais sobre essa “arte rara, pois sua matéria-prima é o
imaterial, e o contador de histórias, um artista que tece os fios invisíveis
dessa teia que é o contar”14.
Procurando o fio da meada do contar, aprendi que um contador de
histórias é um observador das pessoas, das coisas e do mundo e que, antes
de contar, ele já ouviu e leu tantas histórias que chega um momento em
que estas não cabem mais dentro dele e, desse modo, surge o desejo de
partilhá-las, pois contar histórias é um exercício de humanidade, é um
querer alcançar o outro, chegar a seu coração e proporcionar-lhe um pouco
de felicidade por meio da palavra. Palavra essa que não será pronunciada
de qualquer jeito: ela será preparada, terá gestos e silêncios, será
sussurrada, alegre ou triste, brava ou doce, e luirá entremeada de poesia,
de sons e de magia.
Aprendi que é no encontro com os ouvintes que me fortaleço como
contadora de histórias e exercito a “leitura” do outro, de seu olhar, de suas
reações ao texto que lhe foi ofertado. Assim, na vivência do contar, vou
aprendendo a cada história a dosar, a buscar a porção certa para que o
encantamento aconteça e, com isso, contribuir para que o mundo seja
melhor à medida que as histórias ecoem e habitem cada vez mais em
nossos corações.

Ciranda de palavras na Amazônia


ANDRÉA COZZI, ANTONIO JURACI E SÔNIA SANTOS (CIRANDEIROS DA PALAVRA)
(PA)15

Nem te conto, mas por essas bandas do Brasil, os rios e as lorestas fazem
parte do cotidiano de homens, mulheres e crianças. Na Amazônia, a
relação entre homem e natureza é percebida no modo de vida dos povos
que habitam esse mundo das águas, in luenciando a construção do
imaginário simbólico, os mitos, os contos e os causos e trazendo consigo o
signo dos elementos dos rios e da mata.
Vivemos em uma região mágica e mítica em que as fronteiras entre
o real e o imaginário, a exemplo do que ocorria na Grécia antiga, estão de
tal modo entrelaçadas que se torna difícil, se não impossível, distingui-las
e separá-las. O homem amazônico convive com os mitos que habitam o
ventre denso das lorestas e os leitos profundos e misteriosos dos rios da
mesma forma que o grego convivia com os deuses e semideuses que
habitavam o Olimpo.
Aqui, raramente se contam histórias em terceira pessoa, já que, na
maior parte das vezes, o contador é, a um só tempo, narrador e
personagem de seu próprio conto. Foi ele quem viu e até matou o “rapaz de
branco” que, ao cair na água, veio à tona na forma de um boto-tucuxi; foi
ela, a contadora, que foi seduzida pelo Boto ou fugiu da Matintapereira; e
foi o barqueiro que viu a cobra-grande e conta o ocorrido com tamanho
realismo que o ouvinte acaba envolvido nas malhas da narrativa e sente
medo ou deslumbramento diante do fantástico, do terrível, do
imensurável. A maioria das histórias que contamos e recontamos foi
repassada a nós dessa maneira por parentes e conhecidos, habitantes de
um país misterioso chamado Amazônia. Contar histórias, portanto, faz
parte da natureza do homem amazônico, em geral, e do ribeirinho, em
particular. Todos somos contadores em potencial. Para nós, contar
histórias é um ato vital, já que nelas reside nossa identidade cultural, nossa
maneira de ser, estar e compreender o mundo e nossa herança mítica,
principal alimento da narrativa oral.
Nesse cenário, em que a mitopoética das águas e da mata sinaliza
nosso modo de compreender o mundo, um grupo de educadores decidiu
juntar-se para espalhar as histórias que ouviram. Desse modo nasceu o
grupo Cirandeiros da Palavra, composto por pessoas que têm afinidade
com a palavra e tentam cumprir o seu papel como agentes de leitura e de
cultura, pois acreditam que é também pela palavra que a cultura se
constrói.
Com esse ideal, organizamos o Movimento de Contadores de
Histórias da Amazônia (Mocoham) e realizamos o I Encontro de
Contadores de Histórias da Amazônia e o I Festival “Pororoca de
Histórias”. Além disso, lançamos os dois volumes do livro Apanhadores de
histórias: contadores de sonhos16, com as narrativas usadas em nossas sessões
de contação, com as de outros contadores e também histórias que circulam
na região. Nossas narrativas percorrem diversos espaços, como
bibliotecas, feiras de livros, universidades, praças, instituições etc., mas, de
todos os pontos de aterrissagem de nosso tapete mágico, pousamos mais
vezes nas escolas públicas, pois lá é o nosso hábitat. Somos convidados
constantemente a multiplicar nossos contos e recontos para a comunidade
escolar. Além das rodas de contação de histórias, procuramos também
formar contadores, com o objetivo de convidar mais pessoas a partilhar
narrativas, saberes e memórias.
Nesse mergulho nas águas, nas matas e nos fios da tessitura da arte
de contar e encantar, desenvolvemos nossa identidade, por entender que,
quanto mais nos relacionarmos com diferentes saberes e lugares e nos
proporcionarmos trajetórias e percursos diferenciados, mais ampliaremos
nosso conhecimento e validaremos nossa identidade.
Quando contamos uma história, propomos uma imersão em si,
imersão essa tanto nossa como de quem nos ouve. Essa é uma forma de
nos autoconhecermos e nos percebermos sujeitos de uma história. Cada
narrativa é um mergulho na memória, é um mover-se e envolver-se no
contexto que nos reconhece e é reconhecido por nós na ciranda da nossa
existência. Assim nos vemos, nos percebemos como contadores de
histórias e agentes de leitura e de cultura. Na ciranda da vida, embalamo-
nos na palavra e nos deixamos levar no delicioso ato de cirandar.

Contar histórias: um encontro de subjetividades


ÂNGELA FINARDI (SC)17

Minha trajetória como contadora de historias se funde à de atriz, diretora


e professora de teatro ao longo dos últimos vinte anos. Com o Unicórnio,
Grupo Alternativo de Teatro e Música sediado em Joinville, Santa Catarina,
Guilhermo Santiago, Ciro Kastrup e eu iniciamos um projeto inédito na
cidade na década de 1990: sessões de contação de histórias aos sábados
pela manhã na livraria Midas. As sessões eram preparadas com foco no
público infantil, mas, não raro, víamos os olhos dos pais brilhando tanto
quanto os das crianças na plateia. As narrativas eram, na maior parte,
contos populares e contos de autoria, sempre entremeados por cantigas e
parlendas. Os anos passaram, e as crianças que ouviam as histórias
cresceram e continuaram frequentando a livraria, querendo ouvir mais
histórias. Assim, o namoro furtivo de O peixe e o pássaro, de Bartolomeu
Campos de Queirós18, e “A moça tecelã”, de Marina Colasanti19, passaram a
integrar o nosso repertório.
Atualmente, continuo fazendo teatro e contando histórias.
Re letindo sobre a minha atuação em ambas as áreas, confesso que a cada
dia penso ser mais tênue o limite entre contar uma história e agir “como
se” fosse a personagem – lembrando o “se mágico” de Stanislavski. Como
contadora, muitas vezes ajo como se fosse a personagem, expressando
com meu corpo e minha voz as emoções que surgem ao visualizar as
situações vividas pelas diversas personagens dos contos, mesmo que com
gestos contidos. Da mesma forma, ao representar uma personagem no
teatro, estou contando a história dela. Nos dois casos, as palavras do texto
precisam ser transformadas em imagens, e, ao serem pronunciadas, as
emoções surgidas no meu corpo e na minha voz é que as tornam vivas.
Meu interesse especial pelos temas femininos e a admiração por
Marina Colasanti me levaram a montar o espetáculo Entre a espada e a
rosa20 com o Grupo Teatral Fio de Ariadne. Mas, como bem disse
Bartolomeu Campos de Queirós em uma entrevista: “a beleza, quando é
demais, precisa ser compartilhada”21. Além de Entre a espada e a rosa,
selecionamos outras duas obras da autora: “Entre o leão e o unicórnio”22 e
Longe como o meu querer23. O processo de criação do espetáculo se deu como
um trabalho coletivo com Gisele Becker e Lucas David, que respondeu pela
direção final. Depois da leitura, da compreensão e de memorizarmos os
contos, estabelecemos que a ambiência seria nosso ponto de partida.
Assim, o espaço de encontro seria um lugar que propiciasse à plateia um
tempo de parada em meio à turbulência cotidiana: um círculo de
almofadas, distribuído sobre esteiras de palha e no qual sessenta pessoas
convidadas seriam recebidas com uma cantiga. Seria solicitado a eles que
tirassem os sapatos, para que se sentissem mais confortáveis. O espaço
criado poderia abrigar dois outros espaços afetivos nesse círculo: uma
cozinha e uma sala de bordados. As contadoras não seriam apenas as
donas dessa casa circular, mas mulheres afetuosas que gostavam de
receber pessoas, de cuidar e de contar histórias. Na cenografia e nos
bordados dos figurinos houve a participação de várias mulheres.
Depois da definição do ambiente, procuramos valorizar a
sonoridade das palavras habilmente escolhidas por Marina. Um terceiro
processo se deu na leitura, na memorização e no ensaio, o que gerou um
encontro entre subjetividades: a das leitoras do conto, a com o conto
propriamente dito e a subjetividade da autora do texto. Entre mim, leitora e
contadora do conto de Marina, outro conto estava sendo criado, e o mesmo
ocorreu com Gisele. Nossas vivências como leitoras e nossas memórias
afetivas são despertadas pelo conto e expressadas por meio da nossa voz e
dos nossos gestos. As palavras tornam-se movimento, emoção, in-motion.
Ao contar o conto, busco ser capaz de utilizar meu corpo-em-voz para
tocar as pessoas na plateia, para que entre mim e o público possa ser criado
esse espaço mágico de identificação, de entrecruzamento, no qual as
pessoas também possam criar um novo conto, único para cada uma delas,
constituído das suas vivências e leituras de mundo. Não sei se escolhi Entre
a espada e a rosa ou se esse conto me escolheu. Não sei mais se eu o conto ou
se ele me conta. O fato é que, quando circulamos por Santa Catarina com o
projeto Baú de Histórias, do Sesc, algumas mulheres da plateia vinham ao
final das sessões compartilhar suas histórias de vida de batalhadoras e
cuidadoras.
Como contadora de histórias, o espaço do entre É tido por mim como
essencial, como um quiasma merleau-pontiano no qual as experiências de
tocar por meio do conto e de ser tocada pela emoção de quem o ouve se
fundem. Um verdadeiro encontro de subjetividades deve ocorrer para que
a arte aconteça. Assim, desde a seleção dos contos até a apresentação do
espetáculo criado com o Grupo Teatral Fio de Ariadne, esse espaço de
encontro de subjetividades foi buscado e, por vezes, encontrado.

A memória da infância constrói o contador de


histórias
CARLOS GODOY (CIA. MAPINGUARY) (SP)
Recordo-me que, quando criança, me encantava com os mistérios da roça,
das brincadeiras populares, dos causos de medo, da folia de reis e de tantas
outras manifestações folclóricas. Foram esses os momentos intensamente
vividos por mim em Dracena, interior de São Paulo, onde passei boa parte
da minha infância.
Esse universo cheio de encantamento foi, aos poucos, povoando
minha memória, e tenho a certeza de que até hoje ele está presente na
minha profissão de contador de histórias.
Tudo começou em 1987: antes de ser um contador de histórias,
iniciei minha carreira como ator de teatro. Minha atuação em vários
espetáculos me proporcionou, entre outros benefícios, conhecer algumas
capitais e cidades do interior do Brasil, com os contrastes culturais típicos
de cada região. Essas viagens despertaram ainda mais meu interesse em
pesquisar sobre a cultura popular brasileira. Assim, em 1991, essa pesquisa
teve início, durante as viagens com o espetáculo de teatro de bonecos E
agora, Ioiô? pela mesorregião do Jequitinhonha, em Minas Gerais, pelo
sertão do Nordeste e pelo interior de São Paulo. Foram meses de convívio
com poetas, repentistas, contadores de causos e grupos folclóricos.
Comecei a estudar especificamente as bibliografias relacionadas aos
contos tradicionais, daí a importância de livros como os de Câmara
Cascudo, Sílvio Romero, Lindolfo Gomes, entre outros.
O universo dos contos tradicionais, do folclore infantil, do teatro de
bonecos e tantas outras motivações me fizeram idealizar e fundar, em
2000, a Cia. Mapinguary, nome mais que propício para uma companhia de
contação de histórias.
No início, minha contação era apresentada tradicionalmente, ou
seja, em uma oralidade criativa – em muitos casos, permanece assim até
hoje. Tempos depois, fui agregando elementos do teatro de animação e
bebendo da fonte do cancioneiro e do folclore infantil. Também
aprofundei meus estudos sobre enredo e estrutura narrativa das histórias
e, desse modo, fui encontrando a melhor forma de narrá-las. Criou-se,
assim, o universo brincante do contador: paralelamente ao ato de contar a
história, eu canto, danço e brinco com o público. Esses recursos, além de
encantarem a plateia, fazem uma ponte entre as histórias, fundindo a
figura do narrador à do brincante. A música ao vivo é outro recurso sempre
presente em minhas apresentações e serve como suporte e
complementação lúdica para as histórias (músicos e percussionistas
envolvidos na área da educação completam o quadro da Cia. Mapinguary).
Nos últimos anos, já trabalhando profissionalmente na área,
desenvolvemos várias técnicas que são passadas em oficinas, cursos e
inúmeros espetáculos24. A Cia. Mapinguary já esteve presente em eventos
como: o III Festival A Arte de Contar Histórias, nas bibliotecas de São
Paulo; os 35 Anos do Clube da Esquina, no Sesc Pinheiros; o Encontro
Nacional de Contadores de Histórias (2012), em Cuiabá; O V Festival de
Contadores de Histórias (2012), em Porto Alegre; o XV Akuentajui (2014), na
Colômbia; o I Encontro de Contadores de Histórias (2014) de Ponta Grossa;
e a Caravana do Conto (2014), em Ourinhos.
Hoje a Cia. Mapinguary é reconhecida nacionalmente. A cada dia
divulgamos e aprimoramos mais nosso trabalho, com o objetivo de
presentear o público com belas histórias e com a riqueza da comunicação
que a oralidade e os livros oferecem. Afinal, quem não se lembra de alguma
história ouvida na infância?

Era só o que me faltava


CINTHIA SIQUEIRA (SP)

Há oito anos me matriculei no curso de contação de histórias da Cia. da


Tia Carmelina. No primeiro encontro, cheguei atrasada e tratei de entrar
apressada no amplo e formoso anfiteatro do Sesc Piracicaba, onde os
participantes do curso já se apresentavam. Todos estavam sentados de
frente para o palco, no qual a contadora, com um sorriso melancia e uma
saia borboleta, os ouvia sensivelmente. Entrei cabisbaixa, como quem não
quer desconcertar o momento, sentei-me no alto e fiquei a observar as
nucas e a ouvir o som dos meus colegas.
Três fileiras adiante, havia uma senhora magra, de coque elevado e
uma alinhada gola de camisa bordada. Seus gestos eram delicados e
acanhados, e sua voz, uma suave melodia que invadiu a minha lembrança
com aroma de eucalipto. Era tia Lurdinha, minha professora da então
quarta série e com a qual eu não tivera contato desde os 10 anos de idade.
Ela estava lá, conservada naquela cadeira, preservada em minha memória.
Aproximei-me e a abracei, colhendo os fragmentos da nossa história
– tardes no pátio da escola debaixo dos perfumados eucaliptos cujas folhas
tia Lurdinha soprava com seu canto e seu violão. Ali, ela recitava poemas,
cantarolava músicas de roda e lia seus livros preferidos. Foi uma surpresa
o início da minha trajetória de contadora de histórias trazer de presente a
minha própria história.
De lá para cá, sou cheia de histórias e, vez ou outra, me enrosco em
meus panos coloridos e saio por aí levando às pessoas um pouco de mim e
do texto que carrego em mim.
Quando iniciei essa atividade, eu não tinha uma intenção clara,
tinha apenas a paixão pelas histórias e a alegria de compartilhá-las. É
incrível o fascínio que a narrativa oral exerce nas pessoas e é maravilhoso
sentir crianças e adultos presos às narrativas como cigarras em troncos,
cúmplices dos reis, rainhas e castelos encantados que pulavam dos livros e
se mexiam dentro de cada um, como se pudessem passear pelo reino das
possibilidades de significar, reinventando para si mesmos naquele
momento suas próprias histórias.
Fui percebendo devagar que a contação de histórias vai além do
entretenimento, pois tem uma sensível habilidade de apresentar o mundo
metaforicamente, abrindo possibilidades para as múltiplas significações
próprias da realidade. O narrador não interpreta uma personagem
concreta, não conta com um cenário pronto, apenas oferece palavras e
gestos que se constituem como pontos de partida para um precioso
trabalho de criação do ouvinte, favorecendo um encontro profundo com a
cultura e o psiquismo, um reconhecimento de nossa qualidade humana.
Assim, em minhas apresentações, procuro recorrer a objetos
simbólicos, principalmente tecidos, que podem adquirir diversas formas
não muito definidas, proporcionando ao ouvinte uma viagem imaginária.
Quando conto histórias para crianças, gosto de utilizar itens encontrados
em casa, como panelas, copos, brinquedos e outros tantos que podem
representar diversas coisas, contribuindo, dessa forma, para o exercício do
faz de conta dos pequenos.
Nesse percurso, tenho participado de eventos culturais, educativos e
comerciais voltados à degustação da literatura. Algumas vezes, sou
convidada a ministrar oficinas de contação de histórias para professores e
alunos das mais diversas áreas do conhecimento e, em outras, a proferir
palestras sobre a importância da contação de histórias para o
desenvolvimento infantil. Nesse caminho, dialogo internamente sobre a
função formadora dessa arte ancestral e atual.

Eu conto, logo, me reinvento


CLAUDIANE CARVALHO (SP)25

Sou neta de analfabetos e cresci ouvindo muitos causos de meus avós,


sobretudo de minha doce e amada avó Alice. Muito sabiamente, ela vivia
me dizendo que “o saber não ocupa lugar”, e levei isso muito a sério. Tive
uma infância ótima, simples, na qual o tempo era lento e prazeroso. Todas
as tardes, algumas vizinhas se reuniam na casa humilde de meus avós para
tomar café e “prosear”. Eu era criança, mas imediatamente parava de
brincar para ouvi-los, e aquilo era muito, muito bom.
Assim, meu primeiro contato com a contação de histórias foi por
meio do popular, do coloquial, do prosaico, do simples. Eu também
passava horas deitada no chão da sala ouvindo contos de fadas na vitrola
antiga. Meus preferidos eram o da Cinderela e o da Branca de Neve. Eu já
sabia tudo de cor, mas, todas as vezes que eu os ouvia, eles se
reinventavam para mim.
Ao ingressar na faculdade de letras, fiz parte da companhia de teatro
da universidade. Lá, criamos um repertório de contação de histórias muito
variado. Nosso grupo se chamava Os Menestréis. Foi minha primeira
experiência como contadora de histórias. Nós nos apresentávamos em
escolas, igrejas, hospitais, praças, bibliotecas, teatros, asilos, residências
etc. Lembro-me até hoje das reações das crianças e dos idosos. Era muito
emocionante. Selecionávamos as histórias, dividíamos as falas e
ensaiávamos as marcações durante muitos dias, até a história “entrar em
nós”.
Certo dia, a professora Taiza Moraes me convidou para acompanhá-
la contando uma história no Congresso de Educação. Senti-me muito
lisonjeada com aquele convite tão especial. Lembro-me de que sugeri
contar a história infantil A margarida friorenta, e Taiza concordou. Posso
dizer que aquele dia se tornou inesquecível para mim por vários motivos:
por estar ao lado de uma professora por quem sinto a maior admiração;
por estar em evidência naquele evento tão grandioso e importante; e,
também, por fazer algo que eu amava muito: contar uma história linda e
delicada que falava da importância do carinho e do afeto a uma multidão
de professores. Antes de ser anunciada, lembro que meu coração queria
saltar pela boca. Mas, assim que comecei a contar, fui acalmando-me e
deixando a história surgir e tomar conta de mim e de todas aquelas
pessoas que me ouviam. Foi uma experiência incrível, e serei eternamente
grata à professora Taiza pela oportunidade e confiança.
Em 1997, ainda em Joinville, quando estava no último ano da
faculdade, tive o privilégio de lecionar para adultos em uma empresa. Na
ocasião, eu estava escrevendo minha monografia e também fazia parte do
Programa de Literatura Infantojuvenil (Prolij), sob a coordenação da
professora Sueli Cagneti. Era o momento dos contos de fadas revisitados
tanto na monografia como no Prolij. Assim, não tive dúvidas: passei a levar
para a sala de aula vários contos de fadas aos meus alunos adultos,
majoritariamente homens. O resultado do trabalho foi impressionante. Ao
ouvir os contos, eles se emocionavam, pois muitos se identificavam com as
personagens, manifestavam-se durante a contação, pediam os livros
emprestados para levar para casa a fim de lerem para as esposas e os filhos
e, o melhor, transformaram-se em leitores sensíveis e críticos.
Hoje, continuo contando histórias em salas de aula. É sempre muito
gratificante, pois, ao contar uma história, também nos contamos e nos
reinventamos. Recordo-me sempre de Cecília Meireles, que dizia que a
vida só é possível se reinventada, e, assim, procuro sempre me reinventar.
Recentemente descobri a dança lamenca e o pole dance, duas modalidades
extremamente difíceis, porém belas e prazerosas. Meu projeto atual é criar
um repertório de contação de histórias que envolva o som vibrante das
castanholas e do sapateado lamenco com as acrobacias virtuosas do pole
dance. Será uma forma-técnica incomum de contar e de me contar.
Acredito que os bons livros, a contação de histórias e a arte em geral
tornam a vida melhor e mais leve. Se eu não trabalhasse com arte, seria
uma mulher muito triste. Apesar das adversidades, procuro ser otimista e
acreditar que o mundo ainda pode ser mais sensível e humanizado por
meio das artes. A sensibilidade e a delicadeza fazem muita diferença e,
infelizmente, andam adormecidas. Precisamos despertá-las. Nossa função
como contadores de histórias e professores é humanizar este mundo.

Cia. Em Cena Ser


CRISTIANA GIMENES (SP)26

Para falar dos meus processos artísticos, acho interessante contar um


pouco da minha história. Comecei a fazer teatro amador aos 13 anos e era
apaixonada pela atividade. Entrei na faculdade e, quatro anos depois, saí
bacharel em interpretação teatral. Sempre trabalhei como atriz e arte-
educadora e, depois de alguns anos, ainda me aventurei na direção, na
dramaturgia e no teatro de animação.
Agora, confesso meu preconceito: ouvia meus colegas falarem em
contação de histórias e pensava que eles queriam fazer algo mais simples,
sem gastar com produção nem ensaiar muito. Mas, como alerta a
sabedoria popular, o que a gente rejeita acaba vindo ao nosso encontro.
Um dia, resolvi montar uma peça infantil sozinha, pois queria fazer
algumas apresentações voluntárias. Assim, precisava ser algo simples.
Escolhi um conto, fiz alguns bonecos e achei que a melhor opção seria
manter a estrutura narrativa e jogar com as cenas, assumindo as diversas
personagens. Quando dei por mim, tinha feito uma contação de histórias
nada simples, cheia de elementos. Foi então minha vez de sofrer
preconceito por parte daqueles que acreditam na narração pura.
Por causa desse trabalho, fui convidada a fazer uma contação de
histórias para adultos, e foi assim que surgiu um espetáculo que adoro:
Histórias de terror de Edgar Allan Poe. A apresentação ocorreu em 2009, na
Virada Cultural, um evento anual que acontece em São Paulo. No período
de quatro anos, depois de várias mudanças, apresentei esse trabalho em
diversos eventos pelo Brasil e também em festivais internacionais, com
uma versão do espetáculo em espanhol.
Fiz outras contações, sozinha ou com outros atores da Cia. Em Cena
Ser, e sempre surgiu a questão sobre os limites entre as linguagens. Porém,
resolvi não sofrer com isso. Eu poderia pensar que o que faço não é teatro
nem contação. Mas acho que o meu trabalho é contação e é teatro. Assim,
deixo para os teóricos os problemas de definição e para os programadores
culturais a decisão de enquadrar os projetos. Como artista, acho que posso
criar deixando-me in luenciar por tudo o que me encanta.
Resolvi focar meu relato nessa questão porque, apesar de ter uma
forte ligação com a literatura (escrevo e já organizei vários livros), antes de
tudo, sou atriz. Desse modo, acho que meu jeito de pensar a contação é o
de quem faz teatro. A contação de histórias tem várias facetas, várias
maneiras de ser trabalhada, pois é uma arte muito rica. Você pode focar
seu trabalho na tradição oral ou na leitura; pode utilizar apenas a narração
ou assumir personagens; contar com a participação da plateia; usar música
e diversos recursos visuais, objetos, bonecos etc. Assim, acho que a
formação do contador in luencia muito sua forma de trabalhar.
Na prática, quando vou preparar uma história, sigo alguns
procedimentos. Eu leio o texto como leiga, sem pensar no que fazer com
ele, deixando-me ser levada como leitora, como espectadora. Começo a
adaptação eliminando o que for muito descritivo, pois isso será incorporado
na interpretação, na caracterização e nos elementos. Depois, estudo o
texto dando um título a cada parágrafo, criando assim uma sequência de
acontecimentos, ideias ou climas, e marco algumas palavras significativas
dessa síntese. Finalmente, ainda na fase de leitura, sublinho expressões de
que gosto e que quero manter com as palavras do autor.
Começo a ensaiar contando a narrativa com minhas palavras, mas
ainda tendo o texto por perto, para verificá-lo se for necessário. Conforme
o ensaio avança, surgem desejos, ideias, necessidades e, a partir disso, vou
improvisando. Se surgir a vontade de usar um objeto, pego algo para
experimentar e, se sentir que a ideia lui bem, então confecciono ou
adquiro algo especialmente para o trabalho. Nunca faço o contrário, ou
seja, imaginar, fazer e impor algum elemento à cena. Essa é outra
característica que acho que vem da atriz, do fazer fazendo. Não planejo
muito, não fico pensando ou inventando: simplesmente faço. A prática é
soberana. Muitas vezes, ao fazer, começo a pular sempre o mesmo trecho,
o que indica que ele não faz falta e que me equivoquei na preparação do
texto.
Com isso, busco sempre uma luência no trabalho. Ele pode ou não
ter elementos teatrais, isso não importa: o que procuro é a organicidade.
Hoje, quando penso em meus antigos preconceitos, acho graça, pois é cada
vez mais claro para mim o quanto é difícil fazer o simples.
Quando você não tem muletas, não tem onde se agarrar, precisa
simplesmente estar ali, de verdade, inteiro. Por isso, minha companhia se
chama Em Cena Ser, uma referência a esse estado, a essa necessidade
intensa e verdadeira de ser quando se está em cena, apesar de estarmos
brincando de fingir.
Do mesmo modo como o teatro in luenciou o meu trabalho de
contadora, a contação também in luenciou o meu trabalho teatral.
Atualmente, minha pesquisa artística está focada na intersecção dessas
linguagens. Tenho usado muito a estrutura narrativa e a relação direta
com a plateia – até mesmo me aventurando por outras linguagens, como a
intervenção cênica. Meus anseios do momento têm a ver com a
cumplicidade em relação ao público e com um tipo de intimidade possível
no teatro, o que, sem dúvida, são inquietações que a contação me trouxe.

Contar histórias: um caminho até aqui


DANILO FURLAN (PR)27

Quando comecei a contar histórias, eu tinha apenas 17 anos. Fui


incentivado pelas bibliotecárias Zeri Monteiro, Fernanda Mecking e Cirlei
Aparecida e também pelos artistas Sandro Maranho e Rô Fagundes. Todos
eles desenvolviam trabalhos de incentivo à leitura na minha cidade,
Maringá, que tem o privilégio de ter cinco bibliotecas municipais.
Como eu atuava no teatro de bonecos, minha primeira história
preparada para contar, “A pastora e o limpador de chaminés”, de Hans
Christian Andersen28, foi feita com a animação de objetos. Um deles era
uma tacinha de porcelana, retirada de um jogo de porcelana recebido
como presente de casamento pela mãe de Fernanda Mecking. Era uma
verdadeira relíquia adornada com fios de ouro. A tacinha protagonizava
esse lindo clássico da literatura infantil com uma caixinha de madeira, um
açucareiro, uma caixinha de música e um bocal de luz. A partir de então,
essa união entre a arte de contar histórias e a animação de objetos se fez
presente em todo o meu trajeto como contador. Sempre que lia algo de que
gostava e pensava em ter a história no meu repertório, já pensava em como
a contaria visualmente e que objetos usaria.
Assim, a máscara, os bonecos e os objetos foram se juntando ao
processo de montagem de uma história, processo esse demorado,
dedicado e cuidadoso. A cada história, pesquiso narrativas parecidas, a
idade do público que quero alcançar e os objetos e seus diversos
significados. Reescrevo então a história com as palavras que usarei na
contação, respeitando sempre o autor e preparando o texto de uma
maneira mais luente para o objeto que vou usar em cena; assim, ensaio e
levo a encenação para que algum amigo do teatro ou do teatro de bonecos
possa “limpar” visualmente os movimentos que não consigo perceber e
introduzir novas ideias. Só depois de todo esse processo é que levo o
resultado até o público. A partir disso é que a história vai verdadeiramente
se moldando: com a reação do público e aquilo que ele oferece, novas
mudanças e alterações são feitas na história para que ela finalmente faça
parte do meu repertório.
Quando estudei pedagogia na Universidade Estadual de Maringá,
me aprofundei na pesquisa teórica da arte de contar histórias, pois a
prática já estava presente em minha vida havia vários anos. Pesquisadores
como Fanny Abramovich, Betty Coelho, entre outros, entraram em minha
vida acadêmica e me ajudaram a aprofundar meu trabalho como contador
de histórias.
Mesmo integrando o primeiro grupo de contadores de histórias das
bibliotecas municipais, participando da organização do primeiro Encontro
de Contadores de Histórias de Maringá e do Grupo Estadual de
Contadores de Histórias, circulando em diversas feiras de livros no Sesc no
Paraná e contando histórias em escolas, centros de educação infantil,
hospitais, asilos, ruas, praças, entre outros, eu ainda não tinha consciência
da dimensão total dessa arte e do trabalho que eu desenvolvia. Somente
em 2011, no IV Encontro Nacional de Contadores de Histórias da Biblioteca
Lucília Minssen e Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre, no
Rio Grande do Sul, é que conheci contadores de histórias do Brasil inteiro.
Entendi então o quanto essa arte já dominava a minha vida e quão
importantes são a mediação do livro e da leitura e o divertimento e a
alegria com os ouvintes. Hoje, ser contador de histórias não somente me
satisfaz como artista, mas revela quem sou, o que gosto de fazer e o quanto
isso me representa.

“As histórias conseguem”


DÉBORA KIKUTI (SP)

Embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem. Enquanto restar
uma criatura que saiba contar a história e enquanto, com o fato de ela ser repetida, os
poderes do amor, da misericórdia, da generosidade e da perseverança forem
continuamente invocados a estar no mundo, eu lhes garanto que… será suficiente.
[CLARISSA PINKOLA ESTÉS]

Sou contadora de histórias desde a infância. Fui iniciada no mundo das


narrativas por minha avó Maria, a melhor contadora de histórias que já
conheci. Venho de uma família em que as mulheres contam muitas
histórias e tive a oportunidade de ter uma infância maravilhosa, povoada
por animais, lores, plantas, amigos, família e liberdade.
Minha avó vivia conosco e, enquanto as filhas trabalhavam, ela
cuidava de nós, os netos. Dona Maria não conhecia os signos do alfabeto,
mas podia ler o céu e compreendê-lo, entender a terra e o tempo certo de
plantar e colher e ver o que se passava dentro da gente. Sabia quando
estávamos enfermos, fosse do corpo, fosse da alma. Por meio das histórias,
dizia-me sobre a vida sem dizer.
Ela não conhecia os contos clássicos, tampouco fez curso de
contadora de histórias, mas as que ela me contou alimentaram meu
imaginário e povoam minha memória até hoje. Eram narrativas que se
emendavam umas às outras e se repetiam de vez em quando.
Intuitivamente, minha avó Maria criava uma atmosfera mágica para
recebermos a história narrada.
Havia uma história para tudo, e sua sabedoria cuidou de nossa
educação. Minha avó apresentou-me a beleza e me encantou. Ela nunca
pedia silêncio ao contar uma história. Pelo contrário, ela contava enquanto
estendia roupas no varal, durante o preparo da comida, ao passar a roupa:
tudo sem se anunciar. As histórias iam chegando, devagarzinho, entre
uma salve-rainha, uma ave-maria, um pai-nosso.
Quando completei 9 anos, ela disse às outras crianças que, naquele
dia, eu contaria as histórias. Assim, minha avó acabava de me iniciar. A
partir daí, passei a contar histórias para os vizinhos, os amigos de brincar
na rua, as crianças do bairro onde eu morava e para meu irmão e meus
primos.
Penso que tudo isso me levou aos caminhos da arte. Jamais imaginei
que minha alegria espontânea de contar histórias poderia ser
transformada em meu ofício. Junto às pessoas do teatro e da música, vivi
experiências inesquecíveis e enriquecedoras, mas narrar foi minha
escolha. Eu gostava de contar as histórias que me escolhiam, feito peixe no
rio, para colocar algo de mim em cada uma delas e devolvê-las aos ouvidos
e corações atentos. Contei muitas histórias para minha filha quando ela
era criança, e ainda hoje elas surgem quando ela vem me visitar.
Meu trabalho é espontâneo, intuitivo e espiritual. Minha pesquisa de
repertório é recolhida principalmente da tradição oral, composta de
lendas, mitos, histórias de vida e de minhas livres adaptações dos contos
clássicos e contemporâneos. Não utilizo fantasias nem outros recursos
como bonecos etc.
Em geral, meu público é adulto. Quando conto uma história, o olhar
do espectador é que dá o tom da minha voz, que estende ou economiza
meu gesto. É a minha palavra por meio do meu corpo – gesto, olhar,
silêncio – que conhece a história, interagindo com a emoção do público,
que totaliza a apresentação. Foi assim que aprendi com minha avó que,
como já se sabe, tinha uma história para tudo.
O espaço é sempre vazio, sem cenário, adereços ou objetos de cena. A
narrativa o preenche, com todos os acontecimentos que minha memória
carrega, e ela sempre é anunciada por uma canção: “quem canta seus
males espanta”.
Tenho a impressão de que, quando se dá de forma simples e
profunda, contar histórias é uma das linguagens mais “invisíveis” e
impalpáveis que carregam a subjetividade da arte. Ainda mais quando
pensamos na força de seu alcance.
Atualmente, escuto histórias na fila do banco, na espera pelo
atendimento médico, na praça e nos hospitais em que trabalho. É na lida
diária que as narrativas acontecem. O cotidiano conta histórias, e a minha
memória afetiva seleciona o que tem de ser lembrado ou esquecido,
chegando, assim, à minha versão para cada narrativa.
Portanto, meu interesse volta-se à possibilidade de encantamento
que a narrativa, tal qual a desenvolvo, propicia ao meio em que está
inserida. Minha intenção é despertar o belo por meio das histórias, por
meio da arte, e, desse modo, promover uma espécie de irrigação mágica na
aridez da vida.
Acredito que a natureza da alma é ser bela e, por isso, busco a beleza
em ambientes improváveis, como a praça, com toda a sua movimentação
cotidiana, e o hospital, ambiente da linha limítrofe entre a vida e a morte.
E a beleza está lá, na paciente que sorri agradecendo por ter escutado uma
lenda embalada por uma canção tradicional ou no olhar sorridente de uma
pessoa que, passando pela praça, senta para escutar a história já iniciada.
Assim, parece-me que a necessidade de escutar histórias é
equivalente à de se alimentar da beleza: as pessoas querem escutar
histórias porque precisam encontrar o belo.
Há dois anos, iniciei minha sobrinha, então com 4 anos, nesse ofício.
Ela será a próxima contadora de histórias da família. Dia desses, ela me
disse: “Titia, você sabia que eu sou contadora de histórias, né?”. E eu fiquei
feliz. As histórias ainda serão contadas, pois elas conseguem.

O grupo Histórias e Tagarelices29


DEISE SARAIVA (DF)30

O grupo Histórias e Tagarelices ainda é jovem e vem buscando seu espaço


entre aqueles que amam a magia dos livros e o encantamento das
histórias. Há pouco mais de cinco anos, a partir de um bate-papo entre
amigas, profissionais da educação e apaixonadas por histórias, o grupo
surgiu e, a cada dia, reinventa e encanta o público infantil em escolas
públicas e em eventos voltados para o estímulo à leitura, especialmente no
Distrito Federal.
Atualmente, nosso grupo mantém sua formação inicial, com as
professoras Deise Saraiva, Aracely Oliveira e Rosemare Gonçalves31.
Nossas primeiras contações de histórias começaram em 2010 em
apresentações na própria escola onde trabalhávamos, em Ceilândia. Para
isso, decidíamos o tema a ser abordado, fazíamos as adequações
necessárias para o público-alvo, preparávamos os materiais
artesanalmente (fantoches, caracterizações, cartazes etc.) e agendávamos
com a direção o melhor momento para as apresentações, quase sempre
feitas na manhã e na tarde do mesmo dia.
Pouco a pouco, nosso grupo começou a conquistar espaço entre as
escolas circunvizinhas, até atingir o privilégio de participar da I Bienal do
Livro e da Leitura de Brasília, em 2012. De histórias retiradas de livros
infantis e contos populares, começamos também a produzir nossas
próprias histórias, contando com minha iniciativa e imaginação (eu já
trabalhava com contação de histórias desde 2008 com meu projeto
Momento da História Legal32).
Nosso envolvimento na arte tão singular de contar histórias
possibilitou que o grupo Histórias e Tagarelices figurasse como membro
da Red Internacional de Cuentacuentos (RIC). Para nós, foi uma alegria
imensa, indescritível.
A cada história cautelosamente preparada, deparávamos com um
público infantil encantador, com crianças entusiasmadas com mais uma
aventura saída diretamente dos livros. Muitas ainda não conseguiam
sequer ler os textos, mas já se apaixonavam pelas imagens. Com
apresentações de repertório diversificado, com contos populares, histórias
infantis de autores consagrados e narrativas elaboradas a partir da
necessidade do momento, nosso público também foi crescendo.
Nossas apresentações têm adereços próprios, e aproveitamos todo
tipo de recurso para que as letras se transformem em encantadoras
tagarelices: papéis, origami, retalhos de tecido, fantoches, máscaras,
painéis e caracterização das componentes do grupo.
Para três educadoras se transformarem em contadoras de histórias,
é preciso: 1) afinidade com a arte de narrar e que o contar não seja um
mecanismo para trabalhar conteúdos mais complicados; 2) estudar, e os
cursos de formação podem ser bons aliados para definir a melhor história,
o recurso adequado, as entonações que darão vida ao texto, entre outros
aspectos; e, finalmente, 3) abraçar a ação de contar histórias em parceria,
que pode ser de pessoas que contam histórias e compartilham momentos,
de profissionais que produzirão materiais, detalhes ou fantasias que
favorecerão a história ou de um músico ou sonoplasta que ajudará a criar
sensações no público.
Com a nossa experiência, podemos afirmar que amamos contar e
reinventar histórias, pois quem recebe o maior presente somos nós, que
nos emocionamos com os olhos brilhantes de cada criança e com o sorriso
de cada adulto que, talvez mesmo sem saber, também volta a ser criança.
O que penso sobre o politicamente correto nas
histórias
ELAINE CRISTINA VILLALBA DE MORAES (SP)33

Lembro-me de ouvir e brincar muito na minha infância com a seguinte


música:

Atirei o pau no gato-to,


mas o gato-to
não morreu-reu-reu…
Dona Chica-ca admirou-se-se
do berrô, do berrô
que o gato deu…
Miiiaaaauuuu!

Hoje, encontramos uma versão politicamente correta dessa música,


que tem o seguinte começo: “Não atire o pau no gato-to…”. A letra e o espírito
da canção mudaram. De um modo geral, as histórias se transformam com
o tempo a partir de novas versões. Mas, em nossos dias, o que isso re lete?
Será que não poderemos mais ter o prazer de rir gostosamente com o
susto da dona Chica? As crianças já não poderão exercitar na fantasia o
patético que faz rir?
Na música, o gato não morreu, ele apenas deu um berro que
assustou a dona Chica. Pensar que essa é a origem da violência no mundo
re lete uma visão simplista do assunto. Nas entrelinhas das histórias e das
músicas, as crianças captam o certo e o errado de forma lúdica. Além disso,
acredito que muitos, como eu, nunca atiraram um pau no gato por ter se
divertido com a música nem cresceram revoltados por ouvir histórias de
fadas e princesas ou por ter realmente acreditado em Papai Noel. Pelo
contrário: sou contadora de histórias graças a tudo isso ter sido
apresentado a mim durante minha doce infância.
Eu tive a sorte de aprender desde pequena que as histórias eram o
espelho encantado da vida real. Não me lembro do meu pai me obrigando a
escovar os dentes, mas me lembro da história que ele contava da menina
Alice que não escovava os dentes e que, quando cresceu, não arranjava
namorado porque tinha dentes podres. Com a narrativa, minha
imaginação ia longe. Ele contava a história com detalhes, tudo era
simplesmente “verdade”, e eu ia escovar os dentes porque não queria ser
como a menina da história.
Hoje, vemos psicólogos e até certos contadores que condenam os
contos de fadas, pois acreditam que eles não valem mais para as nossas
crianças, já que príncipes e fadas não existem na realidade. Esses
comentários tristes e amargurados apenas demonstram o quanto ainda se
ignora a importância das narrativas e do trabalho do contador de histórias.
Somos porta-vozes de remédios para a alma e podemos despertar o
imaginário das pessoas, levá-las a viajar para outros mundos e outros
tempos, possibilitando, nesse faz de conta, o reencontro com desejos e
anseios. Podemos ajudar a libertar emoções que até então hibernavam,
esperando apenas um momento mágico para ganharem expressão. Não
chegamos a isso sem a fantasia. Nossa alma se alimenta de fantasia e, com
ela, gera os sonhos. Sem os sonhos, nós não nos realizamos.
As crianças são muito beneficiadas quando ouvem histórias, pois se
identificam livremente com as personagens e nomeiam as bruxas e as
fadas de suas vidas. Nós, adultos, é que não sabemos mais como
brincávamos de carrinho e de boneca como se fossem de verdade. Eu tive
bruxas (inspetoras de classe), fadas (professoras e amigas), magos
(médicos e terapeutas) e herói (pai) no decorrer da vida, e é importante
sabermos que podemos ser felizes em algumas histórias e nem tão felizes
em outras.
Atualmente, querem evitar os finais felizes, e eu me questiono por
quê. Finais felizes são sinônimos de esperança, de luta que não foi em vão,
de missão cumprida, de sabor de vitória, de um mal que chega ao fim.
O politicamente correto muitas vezes é hipócrita. Fazer o Lobo Mau
ser bom não vai ajudar uma criança a entender que existem pessoas nas
quais não se deve confiar. Cria-se apenas uma confusão entre o bem e o
mal. O conto “Chapeuzinho Vermelho” precisa ser como é, pois aborda os
perigos que existem no mundo. A criança vai perceber que, se o Lobo
pagou um preço alto, foi por um motivo grave. Quando uma criança não
tem acesso ao mundo real por meio do universo simbólico das histórias,
ela está mais sujeita a expressar a violência e a ser vítima dela.
Por isso, é preciso prezar o nosso patrimônio cultural e transmitir a
sabedoria de nossos antepassados e os segredos que moram nas
narrativas, na tradição que nos identifica como pessoa, como um povo.
Sou contadora de histórias e sinto em cada música, em cada história,
o encontro do novo com o velho. As histórias se renovam a cada vez que
são contadas, mas não devem perder sua essência, que, ao penetrar na
alma, nos presenteia com significados à nossa existência.

Quando a contação de histórias se encontra com o


teatro e a música
ELIANE LISBOA (GRUPO DO ROMANCEIRO) (PB)

O romanceiro medieval, com as mais diversas histórias em versos,


melodias e rimas simples, vem fazendo parte de minha vida há muitos
anos. A paixão pelos romances nasceu do encontro com essa arte a partir
da apresentação de romances pelo espanhol Luis Felipe Alegre anos atrás,
em um Festival de Teatro em Itajaí, Santa Catarina. De início, foi uma
simples curiosidade ou brincadeira, mas, aos poucos, passei a me assumir
como “cantadora” ou “cantante” dos romances, uma prática permanente
que vem amadurecendo e se transformando passo a passo.
Os romances medievais, narrativas anônimas cantadas em versos,
são transmitidos oralmente. Os de origem ibérica, sobretudo, chegaram
até o Brasil trazidos pelos colonizadores e também por migrantes e se
espalharam pelo país, passando a fazer parte de nossa cultura popular.
Sofreram alterações melódicas ou narrativas à medida que se
incorporavam ao imaginário nacional. Hoje, eles são objeto de pesquisas
acadêmicas que vêm gerando importantes estudos sobre sua disseminação
e as transformações que sofrem em cada localidade.
Em Santa Catarina, comecei a apresentar os romances primeiro em
um trabalho solo, depois, acompanhada por um músico – Luís Moukarzel,
em Florianópolis, e Didi Maçaneiro, em Brusque. Viajei por diferentes
lugares do estado e, ao final das apresentações, costumava ter um
momento de troca com a plateia. Muitas vezes havia uma relação de
surpresa e espanto por parte do público, que manifestava sua estranheza
diante do que considerava algo muito diferente, como se não
conseguissem encaixar a apresentação do romance em nenhuma
“caixinha” como teatro, música ou contação de histórias. Em alguns
momentos, no entanto, também vivi a grata surpresa de encontrar pessoas
que conheciam integralmente algum dos romances, que, em geral, tinham
escutado da mãe ou da avó.
Hoje, em Campina Grande, na Paraíba, para onde me transferi em
2009, o trabalho agrega mais participantes, em torno de cinco a seis
intérpretes-cantores, além de dois ou três músicos. Essa imprecisão no
número de integrantes re lete, na verdade, o caráter de constante evolução
e transformação por que passa o trabalho, atraindo cada vez mais pessoas,
muitas delas vinculadas à área musical.
As primeiras experiências em Campina Grande foram feitas com um
grupo de atores que se dispôs também a cantar, mas hoje o Grupo do
Romanceiro, nome pelo qual nos identificamos, vive um movimento
inverso, agregando mais cantores. Assim, se no primeiro momento os
ensaios eram essencialmente dedicados a questões de afinação e ritmo,
por exemplo, hoje eles pedem atenção aos detalhes da interpretação, para o
jogo solto na cena que os cantores devem aprender a construir, aquele que
os atores de modo geral já dominam.
Na hora de divulgar o espetáculo produzido, as dificuldades para
definir o que fazemos, de encaixar o trabalho em certa modalidade, são
constantes, pois é preciso explicar que as apresentações implicam a
contação de histórias, mas que esta é em versos, e que as histórias são
cantadas e representadas por intérpretes-cantores. Para o público em
geral, ainda que a prática seja inédita também por aqui, já não se vê como
algo tão inusitado uma apresentação de histórias cantadas e interpretadas
em versos.
O trabalho, no entanto, ganha um caráter cada vez mais teatral, ao
mesmo tempo que se integra à cultura local da literatura de cordel e do
repente, de enorme presença na região. O cordel, em muitos casos, nada
mais é do que um romance que foi transcrito, o que, naturalmente, acaba
por determinar autoria e fixar o romance em forma única. A partir da
transcrição, ele não sofre mais, portanto, as inúmeras mutações que a
oralidade permite.
Além disso, alguns romances foram amplamente divulgados por
Ariano Suassuna, em suas palestras, e por Antonio Nóbrega, que os têm
incluído em seu repertório. Merece destaque ainda a cantora Fortuna, em
São Paulo, que incluiu diversos romances sefarditas – dos judeus que
migraram da península Ibérica, expulsos pelos cristãos – em seu
repertório. No campo acadêmico da Paraíba não são raros os estudos
voltados a essa área, alguns constituídos em sólidos centros de pesquisa
sobre a cultura popular do Nordeste – eles envolvem particularmente o
romanceiro, mas incluem também o cancioneiro, outra modalidade
específica da cultura oral.
O repertório diversificado do Grupo do Romanceiro abrange
romances do início da Idade Média, de natureza bastante trágica,
romances cômicos, picarescos, do final do período medieval, e romances
colhidos no norte da África, entre os quais os romances sefarditas.
Naturalmente, divulgamos romances colhidos na América Latina,
particularmente no Brasil, mas também de outros países do continente,
por onde eles se espalharam, como é o caso do “corrido” mexicano.
O trabalho ganha fôlego, integrando-se à corrente que se identifica
hoje na Europa, muito especialmente na península Ibérica, de recuperação
do romanceiro.
Em um tempo bordado de sempre
ÉRICA VERÇOSA (PE/AM)34

Nos quintais da Amazônia ouvi as primeiras histórias. As folhas e as


frutinhas secas, os gravetos e as sementes se tornavam as personagens das
sagas da loresta que minha avó contava, fumando um cachimbo de cheiro
bem forte que se misturava à poeira amarelada levantada pelo movimento
do vento. Minha avó, que assinava documentos com o polegar direito, me
ensinou ou me fez experimentar ouvir a voz interior, a voz da natureza, a
voz que vem do cosmo.
Com o tempo, percebi que as histórias contadas pela minha avó e
também outras histórias poderiam estar guardadas dentro dos livros.
Desde então, a literatura passou a fazer parte da minha vida.
Na escola, busquei a literatura contida nos livros trancafiados em
uma das muitas salas que lá havia. Para poder lê-los, fiz um acordo secreto
com a “dona” da chave que abria as portas daquele tesouro: eu leria um
livro por vez. Assim, passei a conviver com Robinson Crusoé, Mary Lennox
e Collin, Hank Tade-Maiá, Tistu e outras personagens da literatura que,
muitas vezes, se misturavam com os protetores da loresta e outros heróis
das sagas amazônicas contadas pela minha avó.
Na lembrança desse tempo bordado de sempre, descobri que poderia
carregar a chave que abre a porta para outros mundos e, desse modo, fiz-
me contadora de histórias, pois acredito no poder ancestral da oralidade e
em toda a aura mágica que a rodeia. Todas as aventuras vividas na minha
infância e adolescência contribuíram para que eu traçasse meu caminho
profissional como educadora e mediadora de leitura.
Ao aportar em terras pernambucanas, mergulhei a fundo no
universo da contação de histórias e de outras práticas de mediação de
leitura. Envolver-me com a gestão de bibliotecas comunitárias e
possibilitar a crianças, jovens e adultos a experiência de ler, ouvir e contar
histórias foi a realização de um sonho.
Eu quero sempre poder sussurrar, falar, dizer aos berros que
acredito que a cultura escrita, especialmente a literatura, contribui para a
emancipação dos sujeitos, sobretudo em um país no qual as desigualdades
sociais são barreiras quase intransponíveis. Entretanto, a cultura escrita
não subtrai a importância da tradição oral, com seu modo peculiar de
enxergar o mundo a partir da sabedoria ancestral que reside dentro de
cada um de nós.
Assim, tornei-me leitora e contadora de histórias. Não pela leitura
obrigatória nem pelo fato de ter os livros ao alcance das mãos – mesmo
sabendo que, para mim, eles são os suportes mais encantadores da escrita
–, mas pelo ritual feito por minha avó, que evocava xamãs poderosos,
bruxas, mapinguaris, sons, cheiros, entre outras imagens poéticas, para
poder contar. Por esse motivo, tenho sempre livros na bolsa, histórias na
alma, poemas nos poros, muitas adivinhas e outras brincadeiras melódicas
na pontinha da língua, doidas para sair da boca de uma só vez.

A “Prosa” e a contação
FABIO BRANDI TORRES (CIA. PROSA DOS VENTOS) (SP)

Quando a Cia. Prosa dos Ventos foi formada, em 2001, alguns integrantes
(Helena Ritto, Gabriela Lois, Elcio Rodrigues e Fabio Brandi Torres)
vinham de uma experiência anterior em outro grupo de teatro, e a nossa
intenção era direcionar o trabalho para uma pesquisa voltada ao público
infantil, tendo a dramaturgia como ponto de partida.
Naquela época, pensávamos apenas em produzir espetáculos. A
contação de histórias ainda não tinha a presença que tem hoje no cenário
das artes cênicas. Sabíamos que ela existia, mas não pensávamos nela
como uma possibilidade de trabalho a ser desenvolvido pelo grupo. Na
verdade, não pensávamos em contação como não pensávamos em
escultura, por exemplo.
Tudo mudou quando recebemos um patrocínio do grupo
Votorantim para o espetáculo A matéria dos sonhos. Como contrapartida,
havia a possibilidade de nos apresentarmos às sextas-feiras na ala
pediátrica do hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, mas não
seria possível fazer um espetáculo diferente toda semana, mesmo porque o
espaço era pequeno. Assim, surgiu a ideia de contar histórias.
Helena havia acabado de fazer uma oficina com a Associação Viva e
Deixe Viver e, a partir daquela experiência, começamos a desenvolver as
histórias que passamos a contar para as crianças internadas no hospital.
Na mesma época, ocorreram com mais frequência apresentações de
contação de histórias em unidades do Sesc-SP, onde vimos que vários
grupos ou contadores já desenvolviam esse trabalho havia um bom tempo
e com diferentes formatos. Resolvemos então entrar em contato com os
programadores do Sesc-SP, e a unidade Ipiranga foi a primeira a nos
contratar.
No começo, optamos por contar as histórias utilizando objetos.
Espanadores se tornavam bruxas, e um velho fole de lareira podia ser o
Lobo Mau. Os objetos continuaram presentes por muito tempo e eles
realmente nos ajudavam a contar a história, sobretudo em tramas com
muitas personagens. Mas começamos a perceber que o corpo dos
contadores também poderia ser explorado e desenvolvemos a “brincação
de histórias”: batizamos assim uma forma de apresentação que era
contação e também trazia muito de cena teatral, com os atores mais livres
para se movimentar pelo espaço. Desse modo, transferimos as
personagens dos objetos para os atores e encontramos uma dinâmica que
se encaixava melhor nas características do grupo.
Ainda assim, não costumamos fechar o grupo somente em um
formato. Analisamos a história e procuramos encontrar a forma que nos
ajudará a contá-la melhor. Há pouco tempo, fizemos um projeto em que
adaptamos várias comédias de Shakespeare e vimos que os objetos, nesse
caso, seriam necessários. Peças como A tempestade e Noite de reis, por
exemplo, têm subtramas divididas em núcleos e um vaivém constante
entre eles. Ao usar objetos, ficava mais fácil não nos perdermos entre as
muitas personagens.
Apesar de hoje termos as atividades do grupo divididas entre os
espetáculos e as contações, não é difícil os dois se misturarem. Alguns
deles têm nascido assim, a partir de histórias que, quando contadas, têm
boa repercussão e geram a vontade de desenvolvê-las cenicamente, com
mais recursos.
Para dar um exemplo, tínhamos duas contações que transformavam
cantigas tradicionais, como “Alecrim dourado” e “O cravo e a rosa”, em
histórias. Como elas funcionavam bem e tinham um mesmo universo
temático, criamos uma terceira história para uni-las, a de uma jardineira e
um semeador, que acontecia em um lugar chamado Ciranda das Flores.
Assim nasceu o espetáculo Ciranda das lores, que hoje é o nosso trabalho
mais conhecido e de maior repercussão. O caminho inverso também
acontece, ou seja, o de escolher um espetáculo e usar a sua história em uma
contação.
Esse, aliás, é atualmente um procedimento-padrão da companhia,
uma regra: o texto de um espetáculo que está sendo desenvolvido é
apresentado como contação. Isso serve para testarmos a história,
identificando seus defeitos e virtudes e, assim, chegarmos à fase dos
ensaios com a dramaturgia mais adiantada.
Como foi possível ver por este breve relato, a contação de histórias
não foi algo planejado na trajetória do grupo, algo que sempre
pretendemos fazer. Mas hoje ela é o núcleo da Cia. Prosa dos Ventos, a
essência do nosso trabalho.

História de quem conta história


FERNANDA MUNHÃO (SP)

Eu me formei em jornalismo e trabalhei durante três anos nessa área. Em


seguida, inclinei-me para a educação, com a formação em letras e em
pedagogia e o mestrado em literatura. Ao abandonar as loucuras das
redações jornalísticas e parcialmente das salas de aula, finalmente me
encontrei na atividade em que me realizo e me satisfaço plenamente:
contadora de histórias.
Basta falar ou preencher um formulário com essa informação para
que um adulto mais desavisado comece a rir por achar que estou sendo
irônica. Em seguida, há o constrangimento ao perceber que o que foi dito
ou escrito não é piada, é um fato: contador de histórias é, sim, uma
profissão.
Enfrento essa situação pelo menos uma vez ao dia e, como resposta,
tento explicar o orgulho que tenho da profissão e a importância de me
tornar um canal facilitador entre o homem e as histórias, de possibilitar
um momento lúdico em um mundo tão capitalista. Se eu conseguir
convencer uma em cada dez pessoas que me questionam com relação a
isso, dou-me por satisfeita.
Crianças e histórias se completam, pois os pequenos estão sempre
abertos às surpresas. Se eles gostam da história, é sempre nítido, os olhos
vibram. Mas, se não gostam, não hesitam em dizer: “Que história chata!”. É
assim que se obtém o termômetro do trabalho de um contador de
histórias.
Cativar os adultos: esta sim é uma tarefa difícil, porém não é
impossível. Eles sempre aplaudem, por gosto ou por educação, e cabe a
nós, contadores, detectar os sinais sutis de aprovação, afinal, o corpo fala.
O mais interessante é que, com exceção dos que já admiram a arte e
dos que são extremamente sensíveis, outros também são capazes de se
sensibilizar com uma bela história. Eles apenas desconhecem os segredos
de sua própria alma, de sua capacidade de se entregar às narrações e de se
identificar com o que está sendo narrado.
Uma vez, fui convidada a contar histórias em uma clínica de estética
para trinta mulheres em comemoração ao dia das mães. Escolhi um conto
de Marina Colasanti intitulado “A mulher ramada”35. Ao escolher esse
texto, pensei em cada mulher como mulher e não como mãe, já que, para
ter a capacidade de amar, a mulher precisa amar a si mesma, valorizar-se
como tal, e só então dedicar-se ao outro, tornar-se mãe. Acredito ter sido
feliz com a escolha.
A história de Colasanti trata de um jardineiro solitário que decide
arranjar uma companheira. Ele planta duas roseiras e, com o tempo, vai
podando cada detalhe delas, a fim de desenhar o corpo de uma mulher
ideal, o que revela a dominação do homem sobre a alma feminina. Mas
logo o jardineiro percebe que “não se pode podar o coração de uma
mulher”, pois, para ser linda, ela precisa ser livre e amada, nada além. A
história é belíssima. Em seguida, joguei pétalas de rosas sobre as ouvintes.
Boa parte delas se emocionou bastante. Foi uma experiência maravilhosa
que jamais esquecerei.
Essa apresentação foi exibida em um canal de televisão local que
destacou os momentos mais comoventes. Um grande amigo, ao assistir à
exibição, disse não ter entendido nada do que ocorrera, já que as mulheres
apareciam chorando na TV. Acho engraçado o modo como as pessoas se
surpreendem diante do poder causado por uma bela história. Talvez o ser
humano esteja tão engessado que se espante com a própria capacidade de
se emocionar. Quando isso acontece, a situação parece estranha e ele se
sente parte de certa anormalidade.
Para aquelas mulheres, a história de Marina Colasanti foi um
presente feito de palavras que será guardado na memória e usado em
muitos momentos da vida.
Compartilhar aquela narrativa naquele âmbito me fez ter ainda mais
sentimentos e sensações prazerosas no ato de contar histórias. Doar-me
como instrumento para que as histórias cheguem às pessoas é um ato
inexplicável de sensibilidade, pois só quem o faz consegue entender e é
capaz de vislumbrar os efeitos causados. É por isso que, com tamanho
orgulho, posso considerar-me uma privilegiada pelo que faço e por ter o
que mais amo como profissão, já que os médicos cuidam do corpo, e os
contadores de histórias, da alma humana.

Brincando de Bambalalão
GIGI ANHELLI (SP)
O grupo Brincando de Bambalalão, composto por Gigi Anhelli e Cláudio
Pereira (Doctor Xyss), apresenta-se desde 2003 com vários espetáculos,
dando ênfase à contação de histórias. Nosso trabalho mescla narração de
histórias, músicas e cenas com atores e fantoches. É uma retomada do
quadro da historinha que fazia parte do programa Bambalalão, da TV
Cultura, exibido de 1977 a 1990.
O quadro da historinha foi apresentado no Bambalalão todos os dias,
durante mais de dez anos. Era um dos pontos altos do programa, e, em seu
encerramento, eu dizia a frase “entrou por uma porta e saiu pela outra e
quem souber que conte outra”, que se tornou uma de minhas marcas.
Após o término do programa, em 1990, continuei a desenvolver o
trabalho em shows e peças teatrais. Ainda na década de 1990, passei a atuar
junto à Secretaria Municipal de Cultura a convite do poeta Celso de
Alencar, então assessor de Cultura em São Paulo. No programa
Comunidade Viva, visitei vários bairros da cidade, sempre contando
histórias. Nesse projeto, desenvolvi a experiência de contar histórias e
depois dramatizá-las com as crianças. A atuação dos pequenos era gravada
em vídeo e, em seguida, assistíamos ao trabalho juntos. As crianças
mergulhavam totalmente na história e demonstravam grande prazer ao se
verem atuando. Pude observar como o fato de atuar modificava o
comportamento delas. Algumas vezes, uma criança tímida, fechada e que
quase não falava se soltava de repente na atuação e desempenhava
brilhantemente um papel. Isso constituía uma surpresa para professores e
colegas e acendia um novo olhar sobre o aluno.
Depois de algum tempo, comecei a sentir necessidade de introduzir
música na narração de histórias. Convidei Doctor Xyss, que já havia
trabalhado comigo no Bambalalão e em vários outros espetáculos. Ele
passou a me acompanhar nas apresentações, executando músicas
compostas especialmente para cada história. Os números musicais
abrilhantaram o trabalho e, a partir disso, passamos a nos apresentar
sempre juntos. À medida que criávamos novos espetáculos, resolvemos
aproveitar o talento do Doctor Xyss também como animador de bonecos.
Ele tinha vasta experiência como manipulador de fantoches, pois já havia
atuado em vários programas (TV Tutti-Frutti; Armação Ilimitada; Bambalalão;
Boa Noite, Amiguinhos) e inúmeros comerciais. Incorporamos também os
fantoches aos novos espetáculos. Assim, surgiram Maravilhas de Grimm;
Livro nosso de cada dia; Baú de piratas; Boneca sapeca, levada da breca; Conversa
de índio; Bandeira, poesia e outros bichos; Olha o Cascudo; Histórias e cantigas
juninas; Lendas da água; Lendas da noite; Lendas aladas; Contando e cantando o
Natal; Mouras encantadas; Do Olimpo às Olimpíadas; Pindorama, a magia das
árvores e Laboratório das lores, este criado a partir do livro homônimo que
publiquei em 201136.
Há mais de uma década, apresentamos todos esses espetáculos em
diversas cidades e unidades do Sesc no Rio de Janeiro e em São Paulo.
Brincando de Bambalalão ganhou também o formato de show que
reproduz o programa Bambalalão, com músicas, brincadeiras, esquetes
circenses, fantoches e histórias. Para esse espetáculo, contamos com a
participação do palhaço Perereca, do Bambalalão.
Esse show foi apresentado em várias cidades e, durante um ano, fez
parte do Projeto Escola, na cidade de Guarulhos, e seus espetáculos foram
gravados pela TV Cantareira. Em 2010, foi adaptado para transmissão por
internet37 e, durante dois anos, gravamos programas que apresentam
contação de histórias, músicas, fantoches, entrevistas, mágicas,
experiências, esquetes circenses, dobraduras e artes.

Minhas experiências como narradora de histórias


GRAÇA MORENAH (RJ)

Meus primeiros contatos com o universo da arte de contar histórias


ocorreram por intermédio de ninguém menos que minha mãe, exímia
contadora de histórias que protagonizou os mais belos e interessantes
contos enquanto punha a mim e meus irmãos para dormir. A partir daí,
minha imaginação fervia a cada noite em que ela, com sua maneira
especial de nos envolver, iniciava a viagem rumo ao mundo onde tudo é
possível.
A semente foi plantada e eu a regava dia a dia, e cada vez com mais
paixão, até que iniciei a caminhada pelas veredas dos contos, feliz para
sempre! Minha mentora já permitia que eu explorasse a maneira de
descobrir o fio condutor que me faria adentrar o mundo mágico do faz de
conta, onde experimentei cheiros e sabores, viajei por lugares misteriosos,
bucólicos e românticos e fui convidada a conhecer personagens diversas,
em uma viagem por caminhos inusitados.
Aperfeiçoei minha performance orquestrada pela fada da palavra,
Benita Prieto, que me desvendou segredos fascinantes dessa arte milenar.
Depois, soltei as amarras e naveguei livre, ao sabor do vento, aportando
aqui e ali e encontrando quem quisesse ouvir e se deliciar com contos de
lugares encantados, com histórias de sapo que se transformava em
príncipe, macaco que queria cortar o rabo, palhaço que não sabia sorrir e
com narrativas de assombração, de bruxas e fadas etc.
Hoje, exerço minha arte atrelada ao Grupo Patranha de Contadores
de Histórias e ao Grupo NAPonta da Língua (se escreve “NAPonta” mesmo),
com os quais primo por levar não apenas entretenimento, mas resgatar a
prática da oralidade em uma perspectiva itinerante em que, a cada
apresentação, a mágica de contar uma boa história esteja viajante,
incitando o imaginário de todos aqueles dispostos a reacender a chama do
“Era uma vez…”.
Cada espetáculo é cuidadosamente pesquisado, buscando o
despertar e o desabrochar de um ser crítico, re lexivo e participativo no
ser-fazer e provocando a inventividade. Sou uma operária da palavra e
estou sempre em busca de situações que levem o público à análise. Faço
apresentações em praças públicas, asilos, unidades escolares etc. e o faço
desde os anos 1990 (lá se vão mais de duas décadas).
Participei ainda do projeto Petrobras-Bacia de Campos, contando
histórias em treze municípios da região, no Rio de Janeiro. Há alguns
anos, desenvolvo um projeto ao ar livre chamado Conto num Canto da
Praça, que aborda temas diversos para um público das mais variadas
idades, sempre aos sábados, em diferentes praças de Casimiro de Abreu,
no mesmo estado, e em municípios vizinhos.
Por vezes, minha atuação é na companhia de meus amigos bonecos
Tutu Bacará e Clarinha, meus companheiros de longa data. É muito
gratificante ler nos olhos ávidos das crianças a interação com os bonecos e
sua cumplicidade, crendo mesmo que há vida naquelas confecções de
pano. Além disso, algumas vezes me surpreendo com os adultos, que
embarcam na viagem e também interagem com os bonecos com grata
satisfação.
No que diz respeito ao processo artístico, minha preocupação é
democratizar ao máximo o acesso aos livros e à leitura de qualidade. Para
tanto, pesquiso, estudo, leio bastante, visito fóruns e feiras literárias e
repagino minha atuação de tempos em tempos, pois creio que a narração é
um processo prazeroso, mas que deve ser realizado com dedicação e,
sobretudo nesses tempos em que há uma corrida desenfreada para se
tornar rapidamente um contador de histórias, com respeito ao público.

“O que encanta também protege”38


HUMBERTO SOARES (PEQUENINUS PRODUÇÕES ARTÍSTICAS) (SC)39

O melhor lugar do mundo é aqui e agora. Para ficar melhor, o mundo tem
de ter histórias. O ato de parar e ouvir narrativas nos conecta com a
energia do possível, já que tudo é possível nas histórias. Nelas, o sol pode
namorar a chuva, um peixe pode virar pássaro, um menino pode ter alma
de árvore. Quando paramos e ouvimos histórias, vivemos o momento
presente e estamos em todos os tempos. A narração tem o poder de curar
tanto aquele que escuta como aquele que conta. O ouvinte e o narrador
vivendo o aqui e o agora ilustram a arte do encontro. Logo, narrar histórias
é encontrar pessoas.
Eu fiquei encantado pelo ofício de contar histórias quando vi e ouvi
uma apresentação da contadora Ilaine Melo, que foi minha grande
inspiração. Com o tempo, comecei a escrever meus primeiros contos e,
antes mesmo de publicá-los40, comecei a narrá-los em todos os lugares. Eu
os narrei para as árvores do meu quintal, para os meus vizinhos, para o
meu espelho, embaixo do chuveiro. Conto a conto, fui ficando solto, livre, e
desenvolvendo amor pelo ato de criar e narrar histórias. Senti aos poucos
que estava protegido pelo encanto das narrativas. Assim, provei o gosto
pelas palavras faladas e não parei mais de contar.
Costumo contar muitas vezes a mesma história, até que ela fique
orgânica, viva no corpo e na mente. Às vezes, demora um tempo para que
isso aconteça, mas aprendi a lidar com o processo de estudo e prática. Não
foi fácil obedecer ao período de amadurecimento dos contos, mas cada
conto exige certo tempo para pertencer ao contador.
Com a prática e o público, percebi que tinha algo dentro de mim do
qual não me dava conta antes de começar a narrar. Era uma atenção
múltipla: eu podia contar algo com início, meio e fim e, ainda assim, estar
atento à reação das pessoas na plateia; eu podia andar pelo cenário ou
espaço sem perder o fio da narrativa. Assim, além de ser um narrador, eu
poderia ser um espectador de mim mesmo, ou seja, perceber cada ato,
cada ação, e misturar a ação com a palavra.
Depois, comecei a usar o ato de desenhar ao vivo nas apresentações.
Isso se mostrou como um diferencial para a contação de histórias e me
trouxe de volta à minha primeira arte: o desenho. Eu contava e depois fazia
uma ilustração ao vivo da personagem principal da narrativa. Como meu
primeiro oficio foi o de desenhar histórias em quadrinhos, contar histórias
e desenhar no mesmo espetáculo foi um processo natural. Para o público,
era como se eu recontasse um trecho do conto. Para as crianças, era
surpreendente ver surgir um desenho em um espaço em branco, o que se
assemelha ao processo de escutar as palavras e desenhar a narrativa na
imaginação. Penso em misturar ainda mais o desenho com a contação,
fazendo um espetáculo em que desenho e conto ao mesmo tempo, sem
separar as duas atividades.
Procuro ter um cuidado especial com o aspecto visual das
apresentações, utilizando figurinos e adereços. Como uso maquiagem
artística e a maior parte do público é formada por crianças, faço a
maquiagem na frente delas, para que possam observar o processo de
construção do personagem-contador e não tenham medo do contador de
histórias maquiado. Crio ainda personagens que saem do conto e atuam e
interagem com a plateia.
É importante valorizar a musicalidade em cada história narrada. Por
mais que eu não seja cantor, dou-me o direito de cantarolar nos contos.
Quando escrevo, algumas histórias surgem com pequenas canções que
ajudam no momento em que elas serão narradas. Como essas canções
aparecem no ato da criação, elas ficam no corpo da história e são
empregadas em alguns trechos da narração. A cantiga sempre ajuda o
público a gravar um pedacinho da narrativa, e ele leva esse cantarolar para
casa, como um presente.
Além das cantigas que invento, faço a ilustração sonora da história
por meio de instrumentos construídos com objetos alternativos (como
chaves e sementes) ou instrumentos já conhecidos, como pandeiro, afoxé e
caxixi. Apitos de pássaros, sinos e músicas prontas também podem servir
de apoio à narrativa. Uso canções durante e até mesmo antes do
espetáculo, para recepcionar o público, e sempre procuro aquelas que
tenham um tema equivalente ao do conto. Em algumas apresentações,
tenho parcerias musicais: em Contos em cantos, por exemplo, a cantora e
compositora Ana Paula da Silva. Enquanto conto, ela faz a ilustração
sonora. Depois que conto, ela canta e toca a música-tema da narrativa
enquanto ilustro esta com minhas personagens.
Com a criação do grupo Pequeninus Produções Artísticas, com Alex
Nascimento41, muita coisa mudou: eu me tornei mais profissional, e o
repertório aumentou. Alex pesquisou e desenvolveu a narração de histórias
com origami. Em alguns contos que ele narra, vale-se do origami pronto; em
outros, vai contando e dobrando o papel ao mesmo tempo, até formar um
origami no final da história.
Alex se especializou em apresentações para crianças da educação
infantil. Para atender a esse público, preparou histórias mais curtas e que
abrangem o universo de elementos identificados por elas, como é o caso
dos animais (borboleta, sapo, urso, gato etc.). Criou adereços de origami,
chapéus, coroas e fantoches para usar em suas cenas e pesquisou diversos
objetos e personagens construídas com papel dobrado, como dedoches e
cenários montados com esse material. Ao prestigiar o resultado de toda
essa pesquisa, todos ficam encantados e surpreendidos com as dobraduras
e com as narrativas.
O ato de contar uma história é parecido com o de fazer origami, pois
há muitas dobras e desdobramentos, e o trabalho precisa ser feito com
cuidado e precisão, como ocorre ao manusearmos o papel dobrado. Do
contrário, a narrativa pode ser rasgada, danificada, interrompida e
perdida para sempre. Cada conto contado é um papel dobrado: você olha o
origami e fica pensando como foi possível um simples pedaço de papel ter-
se tornado um animal pelas mãos do dobrador. Com a narrativa, ocorre o
mesmo: você termina de ouvir uma história e pensa como simples palavras
faladas puderam se transformar em cenas pelas mãos da imaginação.

Histórias com origami para pessoas com deficiência


visual
IRENE TANABE (SP)42

Todo origami começa quando colocamos a mão em movimento. Há uma grande


diferença entre compreender alguma coisa através da mente e conhecer a mesma coisa
através do tato. [TOMOKO FUSÈ]

Contar histórias com origami e ministrar oficinas é uma grande satisfação


pessoal e profissional desde que iniciei a arte de narrar histórias, em 2004.
As atividades destinadas às pessoas com deficiência visual, assim como as
oficinas de formação para educadores e profissionais que atuam com
deficientes visuais, têm como intuito atingir um público geralmente
excluído de atividades de incentivo à leitura. Informalmente, iniciei a
contação de histórias com origami para crianças cegas em um hospital
pediátrico de São Paulo, em 2005. Por meio dos origami, as crianças cegas
conseguiam compreender como eram determinados animais e
personagens das histórias que estavam sendo narradas – por meio da
técnica milenar de dobrar papel, consegui inserir e contextualizar as
personagens na realidade do deficiente visual. Alguns origami tornam-se
até mesmo o meio de muitos cegos conhecerem animais e objetos com os
quais nunca tiveram contato, pois estão apenas ao alcance de pessoas com
visão, como animais que foram extintos ou que habitam regiões
longínquas. Portanto, posso oferecer, além de conhecimento por meio do
conteúdo das histórias, noções espaciais de como são determinados
animais ou objetos.
Essa experiência me levou para atividades fora do ambiente
hospitalar. A unidade Sesc Pinheiros, em São Paulo, solicitou em 2010 uma
atividade de capacitação de educadores, contadores de histórias e
profissionais que trabalham com deficientes visuais. Durante o período de
capacitação, contei histórias para esse público e desenvolvi técnicas
específicas para narrar histórias e sensibilizar adultos e crianças com
deficiência visual, utilizando papéis com texturas, aromas e movimento.
Em abril do mesmo ano, iniciei as atividades das oficinas Histórias
Contadas com Origami, no Programa de Complementação Educacional do
Jovem e do Adulto (Proceja) da Associação Brasileira de Assistência à
Pessoa com Deficiência Visual (Laramara). Essas atividades terminaram
em 2011, culminando em uma apresentação para o Dia das Crianças da
Laramara que atingiu um público de cerca de sessenta pessoas, entre
crianças e adultos.
No mesmo período, a Biblioteca de São Paulo solicitou um curso
destinado a educadores e profissionais que trabalham com deficientes
visuais, e lá realizei contação de histórias com recursos de acessibilidade e
audiodescrição. Ainda durante o ano de 2011, ministrei uma oficina na
galeria de arte PontoArt, cuja proprietária incentiva a inclusão de pessoas
com deficiência, e também na livraria PanaPaná. Durante a Virada
Inclusiva, contei histórias com recursos de acessibilidade nas unidades do
Sesc de São Carlos (2011) e de Santo André (2012), no interior de São Paulo,
acompanhada de um intérprete da língua brasileira de sinais (libras). Em
março e julho de 2012, estive em Recife e em Garanhuns, municípios de
Pernambuco, ministrando cursos e contando histórias com essa mesma
proposta. Em setembro desse ano ministrei um workshop na Universidade
Livre para a Eficiência Humana (Unilehu), em Curitiba, no Paraná.
De acordo com o Censo Demográfico de 2010, o Brasil tem uma
população de mais de 190 milhões de pessoas. Desse total, quase 36 milhões
têm deficiência visual. Somente no Sudeste, há cerca de 262 mil indivíduos
registrados, 151 mil apenas no estado de São Paulo. Daí a importância de
atividades de formação para atender a esse público e, mais ainda, para
conscientizar a sociedade sobre a inclusão de pessoas com deficiência
visual.
Os resultados do impacto social da minha atividade são destacáveis.
A contação de histórias soma mais de 2 mil horas, e as oficinas e os cursos,
cerca de cinquenta horas. Tudo isso abre a possibilidade de apresentar
uma arte rica para o exercício da cidadania e da inclusão social. Por meio
dessa atividade, além de atingir diretamente pessoas com deficiência
visual, os educadores e os profissionais se tornam multiplicadores e
replicam os conhecimentos para as instituições onde trabalham. Cria-se,
assim, uma rede interminável de cultura de massa voltada para a aceitação
e a inclusão e contra o preconceito. A atividade incentiva também a
inclusão no mercado de trabalho de pessoas cegas e de baixa visão, pois o
trabalho manual com origami aumenta a autoestima e melhora a qualidade
de vida de quem tem deficiência visual. Além disso, contribui para o
desenvolvimento do respeito à diversidade cultural e humana e para o
incentivo à leitura por meio do origami, a arte de “dobrar papel” – em
japonês, orukami: oru, dobrar, e kami, papel.

Relato de experiência com editais


IRMA GALHARDO (TO)43

Quando cheguei ao Tocantins, sabia que estava vindo para um estado com
baixo IDH e que, em sua emancipação, há poucos anos, 70% da população
era analfabeta e apenas 1% tinha curso superior. Vim sabendo, portanto,
que poderia contribuir de alguma forma para a construção da identidade
cultural desse povo, que já era o meu povo. Na época, ainda acreditava que
faria isso com o direito, pois havia acabado de registrar-me na OAB.
Anos depois, já desencantada com o mundo jurídico, fiz um
concurso para a área de educação, e foi trabalhando com educação infantil
que percebi uma lacuna: no mês de agosto, enquanto o Brasil inteiro
estudava folclore, nossas escolas importavam lendas de outros estados,
quando nós mesmos tínhamos lendas encantadoras. Percebi também que
a prática da contação de histórias era negligenciada aqui. Assim, eu, que
sou cordelista nata e conto histórias desde sempre, decidi casar a
literatura, especificamente os versos, com o regionalismo, as artes
plásticas e o apelo ecológico. Foi com determinação e entusiasmo que pedi
exoneração do meu cargo e comecei a produzir meus próprios livros44.
Resolvi a questão financeira com um curso de produção cultural, no
qual aprendi a elaborar projetos. Passei a verificar editais todos os dias e
tenho concorrido bastante: já ganhei oito editais de cultura em três anos.
Com o dinheiro, faço cada vez mais livros e procuro encantar cada vez
mais crianças. Meus livros têm tiragem de pelo menos mil exemplares, e o
interessante é que eles são levados para crianças que, geralmente, estão
tendo o primeiro contato com a literatura infantil.
É importante ressaltar a questão do pertencimento, pois essas
crianças se identificam com as histórias que tratam da sua realidade. Eu
queria muito despertar nelas o amor pelo estado em que vivem; assim,
ouço as histórias dos tocantinenses e as reproduzo em versos, ou seja,
conto histórias do meu estado em livros pensados para crianças do meu
estado.
Teço loas com paixão e vejo que tem funcionado. Os registros de
lendas que fazem parte do imaginário cultural tocantinense são histórias
colhidas a partir de relatos orais. Eu já havia contado a história do
Tocantins em verso em meu primeiro livro paradidático, Epopeia
tocantinense. O livro é um cordel que conta a história do estado desde 1610,
quando o rio Tocantins foi descoberto, até a atualidade, com destaque para
o movimento separatista e as riquezas naturais e culturais. Sobre esse
livro, há uma história curiosa: um menino de 10 anos, bolsista em uma
escola particular, participou de uma oficina que ministrei em um Ponto de
Cultura e, no dia seguinte, encantado com tudo o que aprendeu,
bombardeou a professora com informações. Esta pediu que a
coordenadora da escola investigasse a questão, pois não conhecia caso
semelhante de tamanho aprendizado em tão pouco tempo. Assim, eles
leram o livro e decidiram que ele passaria a ser paradidático, a fazer parte
do acervo da escola, isso sem que eu ao menos a conhecesse. A criança, que
me ouviu uma única vez, aprendeu o suficiente para convencer uma
equipe diretiva. Ali foi percebido o fato de que a linguagem lúdica utilizada
em meus livros é a mesma que encanta ouvintes ávidos de histórias, por
isso meu trabalho tem tido uma boa aceitação aqui.
Para incrementar meus projetos, resolvi ensinar o cordel, essa
linguagem poética tão apropriada para traduzir as belezas do sertanejo.
Assim, elaboro projetos técnicos que, além de contação de histórias em
escolas públicas – com sorteio de livros e distribuição em bibliotecas e
Pontos de Cultura –, preveem também oficinas de cordel. Isso tem
funcionado, e os produtos das oficinas têm encantado os diretores das
escolas por onde passo. A intenção de publicar os cordéis coletivos
produzidos por alunos de trinta cidades em que o projeto Caravana de
Lendas (fruto do edital Amazônia Cultural, do Ministério da Cultura)
circulará já existe. Esses cordéis serão sobre a cultura de cada cidade
abrangida pelo projeto, e desse modo teremos um produto final composto
de histórias contadas pelos próprios estudantes tocantinenses.
Como não tenho a pretensão de vender livros, pois já desenvolvi a
consciência de que o tocantinense luta para sobreviver e de que não lhe
sobram recursos para investir nisso, com os projetos consigo uma
estrutura suficiente até mesmo para doar livros. Com isso, conto histórias,
ministro oficinas de cordel e deixo minhas obras por onde passo,
contribuindo significativamente para mudar o hábito da leitura em meu
estado. Já tenho cinco títulos publicados e dois prêmios que também se
tornarão livros.
Recentemente, obtive aprovação em um importante projeto para o
universo da contação de histórias no Tocantins: venci o prêmio Mestre
Dió, da Funcult, e, com o valor, pesquisarei e registrarei em livro os contos
tradicionais da comunidade quilombola do Mumbuca. São histórias que
possivelmente se perderiam no tempo e que agora serão eternizadas em
livros, contribuindo para o enriquecimento do acervo cultural do estado.
Meu currículo conta com a participação em várias antologias em
todo o Brasil e a participação oficial em três Salões Internacionais: XXVII
Salão Internacional do Livro e da Imprensa de Genebra (2013); XXVII Salão
Internacional do Livro de Turim (2014); e XXVIII Salão Internacional do
Livro e da Imprensa de Genebra (2014).

Pesquisa e contação de histórias em Chapecó (SC)


JOSIANE GEROLDI (CIA. CONTACAUSOS) (SC)

Contar histórias é sempre um momento único, especial todas as vezes que


nos encontramos com pessoas ávidas por ouvir, sentir e trocar. Encanta
essa capacidade que a palavra dita tem de nos conectar com a vida e com o
humano. Já disseram que “ouvir é um gesto de generosidade”, e é
emocionante ver a plateia atenta, divertindo-se com a narração, pedindo
para o contador contar mais ou simplesmente não querendo que ele vá
embora. Em uma turma do terceiro ano do ensino fundamental, anunciei
o causo do Lobisomem do Goio: “é um causo caboclo desses que acontecem
mesmo”. De pronto, eles disseram: “apaga a luz!”, “fecha as janelas!”, “fecha
a porta!”, e sentaram-se todos perto de mim, no fundo da sala, atentos,
abraçados uns aos outros, entregues àquele momento. Isso emociona
porque nos mostra a força que as histórias exercem no imaginário de
crianças, adultos e idosos. Percebo o quanto somos sedentos pelo medo,
pela magia e pela brincadeira com as palavras, e ser o portador dessa
brincadeira é, hoje e sempre, um dos ofícios mais nobres.
Iniciei meu caminho nas narrativas orais em 2005 e, desde então,
estando à frente da Cia. ContaCausos45, preocupo-me em contar histórias
e em tornar essa atividade uma ferramenta de intercâmbio de
experiências, de exercício de cidadania, compartilhando a sabedoria
popular e dando voz à cultura popular e oral do Brasil. Vejo esse ofício com
a leveza e a alegria da arte e com a seriedade e o compromisso social com a
cultura e o patrimônio imaterial brasileiro. Em nossos processos artísticos,
investigamos, divertimo-nos e redescobrimos as diferentes narrativas
orais populares, suas recorrências e temáticas e suas personagens.
Transformamos esses conhecimentos em espetáculos que são devolvidos à
sociedade brasileira gratuitamente, ou seja, apenas com o apoio de
instituições, projetos e editais de fomento e incentivo à cultura. Contamos
ainda com a participação e a parceria de profissionais das áreas de letras,
artes visuais, design, patrimônio, história e música. Com a soma dos
conhecimentos dessas diferentes áreas, a Cia. ContaCausos já estreou três
espetáculos, que se destacam pelo cuidado estético, poético e sociocultural.
O primeiro espetáculo, intitulado Esticando as canelas, foi elaborado a
partir da recorrência dos contos de enganar a morte, ou de ciclos da morte,
temática amplamente compilada e registrada por escritores e folcloristas
como Luís da Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Ricardo Azevedo, Angela
Lago e Ernani Só. Nesse trabalho, a narração de histórias e os recursos
mínimos são evidenciados, sem deixar de lado as possibilidades de
recursos estéticos e cênicos que funcionam a serviço da narrativa,
construindo a ponte entre o que se diz, o que se vê, o que se ouve e o que se
imagina.
Dando sequência ao divertimento, criamos o espetáculo Tem coroa,
mas não é rei!, que tem como temática os contos de adivinhação da cultura
popular brasileira e o universo das adivinhas, charadas e enigmas.
Recontados e registrados por vários escritores, os contos de adivinhação
nos possibilitaram criar um ambiente leve e divertido, com muitos “O que
é o que é?” para o público pensar e responder. Seguindo a linha dos outros
espetáculos, Tem coroa, mas não é rei! também se destaca pelo cuidado
estético e os elementos que estão a serviço das histórias.
Em 2012, veio à luz Nem te conto, um espetáculo cujo processo de
pesquisa foi iniciado em 2011, ao explorarmos uma narrativa tradicional da
região Sul do Brasil: a história “A noiva do diabo”. Diferentes versões dela
foram encontradas em obras como A noiva do diabo, de Celso Sisto46, e
Muito capeta, de Angela Lago47, e também na literatura tradicionalista e de
cordel. No processo de elaboração da narrativa para o espetáculo, fizemos
uma grande costura de elementos recorrentes, trejeitos, sotaques e
costumes regionais, buscando representar por meio do que se conta um
pouco da cultura popular do Sul do Brasil.
Em 2004, estreamos Visagem. O espetáculo é resultado do trabalho
de compilação de narrativas com a comunidade cabocla na região oeste do
estado. Ao todo, são mais de 42 narrativas compiladas pela Cia.
ContaCausos e pelo Centro de Memória do Oeste de Santa Catarina
(Ceom). As histórias falam de bruxas, lobisomens, profecias e maldições do
monge São João Maria, além de inúmeros causos de visagens e
assombrações.
Acreditamos na força das histórias, no poder do encontro e da
construção coletiva por intermédio da palavra. Somos movidos pelo
conhecimento, o povo, o humor, o medo, o fantástico, o imaginário, o
encantamento e a paixão pela literatura oral brasileira.

O cocheiro do público
JOSIAS PADILHA (SP)48

Eu somo outra linguagem à linguagem falada e tento devolver sua velha e enfeitiçante
eficácia mágica, parte integrante da linguagem da fala, da qual esquecemos as
misteriosas possibilidades. [ANTONIN ARTAUD]

Em um tempo de muito tempo atrás, na primeira borda do tempo,


aconteceu a grande guerra entre os kaurava e os pandava, cujo confronto
final, a mítica batalha de Kurukshetra, ficou marcado para sempre na
memória do homem pela voz de Sanjaya – assim como o diálogo pelo qual
Khrishna revela ao atormentado príncipe guerreiro, Arjuna, o Bhagavad-
Gîta, fonte dos diversos fundamentos da ioga.
Dhritarashtra, o rei cego, nunca teve certeza da vitória de seus filhos,
os kaurava. Foi-lhe então oferecida a bênção da visão para que ele pudesse
ver os horrores da guerra pela qual ele tinha, antes de tudo,
responsabilidade. Mas o rei recusou veementemente a oferta. Preferiu vê-
la por meio dos relatos de seu cocheiro, Sanjaya. Assim, o poder da
clarividência e da clara escuta foi concedido ao cocheiro do rei cego. Com
esse poder, Sanjaya pôde ver, ouvir e recordar eventos do passado, do
presente e do futuro.
O rei inquiriu: “Sanjaya, por favor, agora me diga, em detalhes: o que
fizeram os meus filhos e os pandava no campo de batalha antes de a guerra
começar?”. Sanjaya foi hábil ao fornecer um testemunho ocular da guerra,
mostrando-a em detalhes para o rei cego, que estava sentado em seu
palácio.
Recontado a partir de um dos inúmeros episódios da grandiosa
epopeia milenar dos indianos, o Mahabharata, o trecho citado me aponta
um desafio: preparar uma história para contar. Ou seja, caminhar
rigorosamente na direção do quase sempre negligenciado axioma tácito
dessa arte: o contador de história é, antes de tudo, aquele que vê e, apenas
com a fala e seus eloquentes gestos, consegue mostrar o que está vendo
para aqueles que o ouvem. Esse sentido amplo de visão compreende o olho
como a matriz de um sentir polissensorial que atravessa todos os outros
sentidos do corpo; é um olho que fala, devora, toca, cheira e,
principalmente, participa do invisível tanto quanto o ouvido participa do
silêncio. Segundo o antropólogo italiano Massimo Canevacci, quando as
pálpebras se fecham, a imaginação dispara49. A experiência visual não
conhece fronteiras e pode capturar desde a imagem de uma montanha de
pedras até a efêmera e invisível “imagem sonora” que passa soprando nos
ouvidos ou vibrando no corpo.
Nesse sentido, as orelhas do público, as quais o contador de histórias
pede emprestadas, ganham a dimensão de mágicos portais de entrada
para o fecundo mundo de imagens (figuradas ou apenas sonoras) pelo qual
o narrador vai passear com cada ouvinte. Assim, ouvir um bom contador
de histórias é, antes de tudo, passar pela mais livre e libertária experiência
visual a que nem mesmo o cinema vai alcançar.
Quem já teve o privilégio de embarcar no coche de um bom contador
de histórias sabe que não manifesto o entusiasmo exagerado de quem faz
cabotinismo de ofício. Falo do lugar de quem já teve o privilégio de passear
com cocheiros raros, que nos fazem lembrar a clarividência e a escuta clara
do hábil Sanjaya de Mahabharata.
Foi a experiência visual libertária proporcionada por esses grandes
cocheiros que fez com que eu me engajasse no caminho de aprendiz do
conto. Eu queria descobrir o segredo das vozes criadoras que faziam
minha imaginação pulular, fecunda como os sonhos do grande Kublai
Khan ao ouvir Marco Polo, o sublime cocheiro viajante do livro de Italo
Calvino, mostrando As cidades invisíveis50 pelas quais passara. Como
conseguir arregalar as orelhas de meu ouvinte a ponto de proporcionar a
ele essa experiência?
Ajudando-me a separar o joio do trigo, a definição de experiência de
Jorge Larrosa me fez ver mais claramente o caminho que eu queria seguir:
“A experiência é o que nos passa ou o que nos acontece, ou o que nos toca.
Não o que passa ou o que acontece, ou o que toca, mas o que nos passa, o
que nos acontece ou nos toca”51. Diante do atual cenário, no qual não
faltam exemplos de contadores de histórias que se contentam apenas com
“o que passa ou o que acontece, ou o que toca”, decidi, por uma questão de
honestidade comigo mesmo, engajar-me na busca pela experiência da qual
fala Larrosa.
O caminho é muito evidente: não é possível mostrar o que você
mesmo não está vendo, do contrário, você será apenas um mentiroso –
obviamente, sem confundirmos esse tipo de mentira com as mentiras
verdadeiras que já fizeram a reputação de grandes contadores de histórias,
magníficos mentirosos pela habilidade de criar e mostrar cidades ou
caravançarás tecidos cuidadosamente pelos fios invisíveis de suas vozes.
Tudo o que eu queria era um dia fazer parte desse “círculo dos
mentirosos”52, capazes de fornecer o testemunho ocular dessas coisas que,
como nos diz o filósofo romano Salústio, não aconteceram nunca, mas
existiram sempre.
Não muito tarde nesse percurso de aprendiz do conto, creio ter
conseguido ouvir o que os contadores que me inspiram dizem sobre suas
experiências na preparação de um conto para o público. A partir disso,
forjo o meu jeito de abordar um conto, já que esse caminho é sem fim e a
oralidade é estritamente circunstancial, interpessoal e não reproduzível.
Portanto, a única regra que pude estabelecer é a de não oferecer um conto
ao público antes de frequentá-lo o suficiente para vivenciar e conseguir ver
cada imagem ou acontecimento nele narrado. Para contadores urbanos de
um mundo desencantado e cuja citada clarividência e clara escuta de
Sanjaya não são nada evidentes, esse trabalho pode levar mais de um ano
para cada conto escolhido.
Na cultura tradicional dos altos Andes, os “guardiões do tempo”
acreditam que as histórias são seres vivos, pássaros invisíveis que moram
nas árvores e viajam com o vento pousando nos ombros e sussurrando nos
ouvidos dos humanos que escolhem, até levantarem voo na busca de novos
ombros, ouvidos e bocas. No mundo urbano moderno, as árvores foram
transformadas em papel, e as histórias tradicionais perderam sua natureza
alada e foram parar em livros, nos quais, na maior parte das vezes, são
apresentadas apenas como curiosidades identitárias de culturas populares
ou ecos do passado. O complexo trabalho de resgatá-las da sintaxe da
página53 e devolvê-las à sua natureza alada, encontrando espaços de
diálogo com o mundo desencantado e reativando as estruturas simbólicas
em você mesmo, não me parece ser um trabalho possível para quem pega
um conto tradicional hoje para contá-lo já na semana seguinte.
Sotigui Kouyaté54, grande griô da África ocidental, dizia que, em sua
tradição, o direito do uso da palavra em público era somente conquistado
após os 41 anos de idade. Em todos os anos anteriores à conquista dessa
responsabilidade, a pessoa fica concentrada no incessante trabalho de
aprender a ouvir. Catherine Zarcate55, célebre contadora de histórias
francesa, diz que leva o tempo de uma gestação sobre cada conto antes de
oferecê-lo ao seu público: são nove meses de trabalho de escuta até
descobrir o que cada história quer trazer por meio dos recursos que ela
pode oferecer.
Regina Machado, uma das mais importantes e diligentes narradoras
brasileiras, nos oferece valiosas “aquisições e equipamentos de viagem”56
para esse trabalho, oferta essa que, se respeitarmos rigorosamente, ou seja,
até incorporarmos as tais aquisições e aprendermos de fato a manusear os
tais instrumentos, nos engajará em um trabalho de toda uma vida.
Em suma, é novamente com Jorge Larrosa que acredito conseguir
sintetizar o que esses grandes contadores dizem e o que busco como
processo artístico na preparação para a apresentação pública de uma
história:

Parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar,
olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a
delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece,
aprender a lentidão, escutar aos outros, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço57.

Neste texto, minha intenção foi a de abordar um pouco o que


fundamenta e está intrinsecamente ligado aos meus processos artísticos, e
esses fundamentos são válidos para quaisquer que sejam e quão diferentes
possam ser os processos artísticos encontrados para lidar com a arte de
contar histórias. Afinal, não há nada mais singular do que o encontro de
alguém com uma narrativa, e a forma genuína de contá-la estará sempre
atrelada a essa singularidade. Portanto, só precisamos saber claramente a
que e a quem estamos servindo. O restante é descoberta. Como diz Dan
Yashinsky, citando Ruth Sawyer: “eu acredito que contar uma história é a
coisa mais fácil do mundo, o difícil é ser um bom contador”58.
Buscando ressonâncias das vozes de Dhritarashtra e Sanjaya e uma
síntese deste relato ensaístico, recorro a um trecho do diálogo de Kublai
Khan e Marco Polo como epílogo perfeito:

O Grande Khan, as orelhas sempre de pé, agitava-se na rede todas as vezes em


que colhia no discurso de Marco uma in lexão suspirosa […].
KUBLAI: Não sei quando você encontrou tempo de visitar todos os países que
me descreve. A minha impressão é que você nunca saiu deste jardim.
POLO: Todas as coisas que vejo e faço ganham sentido num espaço da mente
em que reina a mesma calma que existe aqui, a mesma penumbra, o
mesmo silêncio percorrido pelo farfalhar das folhas. No momento em
que me concentro para re letir, sempre me encontro neste jardim, neste
mesmo horário, em sua augusta presença, apesar de prosseguir sem um
instante de pausa a subir um rio verde de crocodilos ou a contar os barris
de peixe salgado postos na estiva59.

Breve relato de uma buscadora na trilha das


histórias
JULIA GRILLO (RJ)
O trabalho que realizo como contadora de histórias se dá principalmente
no âmbito da educação, desenvolvendo oficinas de arte integrada. Minha
trajetória com os contos começou com as oficinas do Processo Criativo na
Arte de Contar Histórias, desenvolvido por Nicia Grillo na Oficina Escola
de Arte Granada, no interior do Rio de Janeiro. Desde 2001, participo de
diversas atividades nessa escola como aluna, arte-educadora e contadora
de histórias, e a pesquisa de mestrado que realizei na ECA-USP, com
orientação da professora Regina Machado, teve como ponto de partida o
trabalho desenvolvido ali com base nos contos de tradição oral e da arte-
educação.
A experiência de aprendizagem que tive na primeira vez em que
participei de um curso do Processo Criativo na Arte de Contar Histórias foi
tão significativa que nunca me esqueci de seus detalhes. Foi como se eu
tivesse descoberto o caminho até uma fonte límpida e inesgotável de
sabedoria. Lembro-me de, na mesma época, sentir nascer em mim o desejo
de contar histórias ao assistir a alguns contadores que me causaram
verdadeiro encantamento. A maneira como essas figuras inspiradoras
eram capazes de me transportar para outro lugar dentro da história
impactou-me profundamente, sobretudo pela maneira com que usavam,
de modo tão significativo, os recursos da voz e do corpo. Percebi ali que
essa arte pode vir a ser a excelência da capacidade de expressão humana.
Na medicina tradicional chinesa, considera-se que a língua é uma
extremidade do coração. Essa ideia está em sintonia com a maneira como
percebo o ofício do contador de histórias: a palavra dita, a história contada,
parte do coração, no sentido da experiência da pessoa que a conta. O
contador de histórias Hassane Kouyaté disse, na ocasião do Encontro
Internacional de Contadores de Histórias Boca do Céu, que “a palavra que
sai da boca chega ao ouvido, e a palavra que sai do coração chega ao
coração”. Para sair do coração, a palavra precisa passar pela língua, que é
sua extremidade – uma parte do ofício do contador de histórias consiste
em permitir que a língua seja uma extremidade do coração.
Algumas histórias tradicionais são desenhadas de tal modo que nos
podem levar a ter contato com certa sabedoria que temos em nós, com a
nossa própria experiência. Isso ocorre quando deixamos que a história nos
chegue ao coração, e, assim, passa a existir também a possibilidade de que
ela chegue ao coração daquele que escuta, iluminando para ele algo de
precioso que tem dentro de si. Eis o que me move, então, em meu percurso
e em minha aprendizagem como contadora de histórias: almejo ser um
canal aberto para que a história chegue até aqueles que me escutam. Para
isso, é necessária uma familiarização profunda com a história que se
conta, de modo que eu possa tornar-me “uma” com ela; são necessários
também a consciência e o conhecimento dos próprios recursos internos e
um estado de presença refinado no momento em que se conta a narrativa.
Quando escolho uma história de tradição oral para contar, preparo-
me como quem faz um ritual de familiarização com cada aspecto da
história e sua totalidade. Em meu processo, isso envolve sucessivas leituras
e também o mergulho em minha experiência iluminada pela história.
Busco entrar em contato com a narrativa também por meio de outras
linguagens artísticas, de modo que ela se torne minha. Ao mesmo tempo,
nesse processo de familiarização outras histórias frequentemente vêm à
tona. Com isso, torna-se claro que, assim como uma história tem diversos
aspectos que compõem sua unidade, cada uma delas faz parte também da
grande unidade das histórias tradicionais.
Ao me preparar para contar uma história, tenho de ter uma atenção
tranquila à minha respiração e ao meu corpo. Preciso estar em silêncio
comigo mesma (ainda que seja em meio a outras pessoas) para poder dar
lugar às palavras de uma narrativa. No momento de contar, é preciso ter
um estado de presença que me permita estar inteiramente ali, naquele
momento, naquele lugar, com aquelas pessoas, e percorrer a paisagem e os
acontecimentos da história com todos os meus sentidos despertos, de
modo a levar os ouvintes comigo. Esse estado de presença é o que busco
sempre experimentar e aprimorar em meu trabalho.
Na minha trajetória, o contato com as histórias e a arte de contá-las
tem sido e continua sendo um caminho de aprendizagem.

Livros e cirandas
JÚLIO DE LÓ (SP)
POEMA: LIVRO É LIVRE
Menino (a)
Sentado (a)
Lendo (a)
Livro (e)

POEMA: ENTRA NA RODA – CIRANDA

Vida é sonho
JÚLIO EMÍLIO BRAZ (MG)
Somos mais do que viver e vamos muito além do simplesmente existir. A
nossa existência não consegue ser encaixada na definição mais espúria de
vida como mera passagem do tempo. Precisamos de mais, necessitamos
até organicamente de um propósito, algo que nos faça transcender a nós
mesmos como essa entidade concreta constituída de carne, ossos e
líquidos.
Talvez o sonho seja a nossa resposta mais transcendente à vida.
Precisamos sonhar. Como já disse, é algo praticamente orgânico. Atávico,
eu me arriscaria a dizer. Não concebo humanidade sem a capacidade
deliciosa do sonho. A história, seja ela contada ou escrita, é a possibilidade
do sonho, pois, ao lê-la, ou antes disso, muitas vezes bem antes disso, ao
ouvi-la, descobrimos, ou pelo menos intuímos, o poder de uma história de
nos levar a outras e ajudar na construção da maior delas, a nossa história –
começamos, assim, ouvindo histórias, e posteriormente, por gostar tanto
de algumas delas, as guardamos na memória e, depois, chegamos à doce
prisão da eternidade circunstancial do papel.
Vida é sonho. Sonhar dá sentido à vida que levamos, pois nossa vida
é obra dos muitos sonhos que acalentamos ao longo dela, sejam eles
realizáveis ou realizados ou meras propostas de uma existência
minimamente prazerosa. A barreira entre o real e o imaginário deixa de
existir como algo intransponível e, consequentemente, invencível, quando
ouvimos uma história. É simples assim.
Gostamos de ouvir histórias e, sob certos aspectos – em particular o
brasileiro, um povo por vezes exageradamente oral –, somos todos
contadores de história e todos grandes ouvintes. Estejamos em uma roda
de amigos, em torno da professora em uma sala de leitura ou partilhando
de uma conversa alheia em um trem ou em um ônibus, apreciamos uma
boa história, pois ela nos lança ao encontro da nossa própria imaginação,
nos dá a oportunidade de transitar a rédea solta pela crença, pela
esperança, através da re lexão que leva e induz ao pensamento e ao
questionamento, à perseverança e à alegria, companheiros inseparáveis da
fantasia e da vontade de viver.
Minha infância e o autor que sou se constituíram a partir dos muitos
contadores de histórias com os quais convivi – tios, primos, pais, amigos,
vizinhos e desconhecidos em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, pois todos
nós somos, já disse, contadores de histórias. Foram, e ainda são, todos eles
que instilaram em mim essa paixão interminável pela palavra, que me
apresentaram os modos e as maneiras de fascinar, encantar e apaixonar
através do jeito como as misturamos, combinamos e tramamos o enredo
mágico de nossa capacidade de sonhar e transcender à fragilidade de
nossa humanidade tão passageira a partir do sonho, da fantasia e da
alegria que usufruímos e doamos a outros tantos que as ouvem e as
ouvirão por muito e muito tempo.
“Era uma vez…”, sob tal aspecto, não é apenas o princípio de muitas
histórias, mas a porta aberta para as mais amplas e infinitas possibilidades
cabíveis à nossa própria imaginação.

Brincando com histórias


LEANDRO MEDINA (SP)

Meu nome é Leandro Medina, sou poeta, músico, compositor, dançarino e


artista educador. Nascido em Belém e residente em São Paulo desde 1993,
gostaria de relatar aqui algumas experiências vividas entre 1999 e 2011,
período em que trabalhei com educação infantil.
Na época, eu recebera um convite da Cooperação Criativa, um
núcleo artístico multidisciplinar que desenvolvia uma pesquisa em arte-
educação voltada para crianças de 4 a 8 anos. Tratava-se de um curso
regular de circo, uma atividade na qual a articulação entre narrativa de
histórias, jogos, brincadeiras tradicionais e atividades de artes plásticas
era apresentada em uma harmoniosa brincadeira de faz de conta. Vale
ressaltar que entrei como pesquisador das manifestações populares em
uma equipe na qual havia um psicólogo piagetiano, uma contadora de
histórias, uma pesquisadora de brinquedos populares, um artista plástico
e, obviamente, professores de circo.
A atividade, que tinha duas horas e meia de duração, acontecia da
seguinte maneira: nos primeiros trinta minutos, recepcionávamos as
crianças (turmas de 4 a 5 anos e de 6 a 8 anos). Era o espaço para a
sociabilização, das brincadeiras populares, dos combinados, dos pega-
pegas, da diversão. Tínhamos a consciência de que esse tempo serviria
também para observar a criança e sua maneira de se relacionar com as
demais, com as regras e com os professores. Fazíamos uma roda para
encerrar a brincadeira e convidávamos todos para o canto da história.
O canto da história tinha um tapete grande, sobre o qual cabiam
todos os participantes. Em cima dele, havia um baú. Esse baú, que
dizíamos ter pertencido aos nossos tataravós, possuía a magia de nos
transportar para dentro da história, ou seja, nele havia um portal
encantado que se abria e todos passavam a interagir na história. Mas, para
que isso acontecesse, era preciso seguir algumas instruções: o baú só
poderia ser aberto quando todos estivessem juntos; dele, sairiam três
signos importantes: uma vela, um sino e um borrifador com o cheiro de
alguma essência. Depois que a vela fosse acesa, o sininho fosse tocado e o
cheirinho estivesse no ar, poderíamos retirar outros objetos do velho baú:
coroas, chaves, lores, pedras, espadas, bichos etc., que, na verdade, eram
pistas pertencentes à história que seria contada. Essa atividade também
durava trinta minutos e culminava na aparição de alguma personagem da
narrativa. Ela sempre precisava de ajuda para algum problema a ser
resolvido, um con lito ou uma questão. Esse momento era um dos mais
importantes da atividade, pois estavam contidas nele duas informações
cruciais: o papel que as crianças fariam na aventura (desde as personagens
centrais até um simples jardineiro) e em que parte da história elas
entrariam. O investimento em figurinos, adereços e cenografia foi tão
necessário quanto o investimento em aparelhos e equipamentos circenses.
A partir do “portal”, as crianças migravam junto com a personagem
para o segundo ambiente, onde ficava o circuito de circo. Durante uma
hora, aprendiam as técnicas circenses de forma lúdica. No final desse
período, a personagem conduzia as crianças para o terceiro ambiente, o
desfecho da história. Lá, elas faziam alguma atividade plástica com
massinhas, colagens, pinturas, bordados etc.; e, para encerrar o dia, era
preciso devolver a história para o baú.
Permaneci com o grupo por onze anos. Cheguei a coordenar a
criação de aulas, a pesquisa de histórias e a condução das atividades.
Lembro-me de momentos significativos na vida de muitas crianças que
passaram por esse trabalho.
A magia de “entrar na história” e viver as aventuras como uma
personagem era espetacular. As crianças ficavam eufóricas para que
iniciássemos o ritual de abrir o baú e saber qual história seria contada. A
atenção que elas dispensavam para decifrar, por meio dos objetos
retirados do baú, o que viria a acontecer no decorrer da aula era tamanha
que, inevitavelmente, surgiam deduções antecipadas.
Uma vez, entramos na história do Tarzan e contamos a viagem que
os pais dele fariam pelo continente africano. Falamos do naufrágio e da
vida do menino na loresta. Interrompemos a história antes do final para
darmos início ao portal. O pai de Tarzan então apareceu (um professor
vestido com roupas de época), convidando todos para a viagem que fariam.
As crianças compreenderam que, naquela aventura, cada uma delas seria o
Tarzan e que, na viagem, seus pais morreriam. O desespero foi total. As
crianças cercaram o “pai” e suplicaram para que ele não viajasse de navio:
“Vocês vão morrer!”, alertaram elas.
É muito significativo o poder da narração e a compreensão que as
crianças têm da importância de ouvir histórias e fantasiar livremente.

Todo contador tem uma história


LÉLA MAYER (RS)60

Dia desses, durante uma leitura, encontrei uma das traduções mais
bonitas do que seria um contador de histórias. Segundo Estés, “a vida de
um guardião de histórias é uma combinação de pesquisador, curandeiro,
especialista em linguagem simbólica, narrador de histórias, inspirador,
interlocutor de Deus e viajante do tempo”61.
Quando eu era criança, adorava inventar histórias e situações. Tive
muitos amigos reais e imaginários para conversar e encenar as situações
inventadas por mim. Como nasci e cresci em uma cidadezinha, quando
chovia muito, ficávamos praticamente ilhados em razão dos dois rios que,
naquele tempo, só podiam ser atravessados de balsa. Meus avós moravam
em um sítio cheinho de árvores frutíferas, e lá havia ainda muitas vacas,
ovelhas, galinhas, porcos, gatos e cachorros. Meus pais eram professores e
adoravam presentear-me com livros e discos62 que narravam historinhas e,
além disso, meu pai é até hoje um grande piadista (e não há piada sem
história).
Compartilho aqui um pouco da minha infância para indicar como
me constituí como pessoa e como contadora de histórias. Fui uma criança
que adorava inventar brincadeiras e que passou boa parte da infância
tentando fazer funcionar o tal “pó de pirlimpimpim”. Também passei
alguns dias trancada dentro de um guarda-roupa, tentando passar para o
mundo de Nárnia.
Creio que todo contador de histórias tem uma história que conta por
que ele faz o tipo de narração que faz, por que opta por este ou por aquele
tipo de histórias para narrar; e posso assegurar que todo contador tem
uma ou muitas histórias de sua infância que o justificam naquilo que faz.
Sempre tive um fio condutor narrativo invisível que me
acompanhou, e ele é um dos meus grandes parceiros na hora de contar
histórias, principalmente quando é preciso emendar narrativas uma
depois da outra. Faço muitas sessões de contos, para todas as faixas
etárias. Gosto muito de “amarrar” uma história na outra para que a
emoção das pessoas possa ir crescendo com as narrativas. Parece algo
simples, mas não é: é preciso escolher as histórias, conhecer bem cada uma
delas, pensar na sequência a ser dada e no trânsito entre uma e outra.
Compartilho com Estés a ideia de que “uma sequência de histórias
proporciona um insight mais amplo e mais profundo do que uma história
única”63. E, quando se trata de uma sessão de contos para jovens e adultos,
esses insights podem ser ressignificantes.
Em minha trajetória pelo universo narrativo, conto histórias em
contextos distintos, e isso exige estratégias diferentes. No brincar com as
palavras, sou essencialmente uma narradora oral, pois não uso muitos
recursos de cena e me apoio sobretudo nas palavras e em suas
sonoridades, brincando com diferentes entonações e expressões corporais.
De acordo com Sisto, “a performance cênica nasce exatamente da
procura de como colocar o pé no texto narrativo, e ela faz aparecer as
individualidades do narrador e do texto que ele narra. Perceptíveis, mas
indissociáveis na hora da atuação”64. Nos últimos anos, tenho tido um
carinho especial pelas sessões de contos e pela oportunidade de ver brilhar
os olhos de crianças de todas as idades e tamanhos. Concordo com Sisto
quando ele diz que “contar histórias aproxima, cria afeto, instaura o
diálogo entre contador e ouvinte”65. Isso já é motivo suficiente para amar
essa arte que nos permite exercer o melhor do nosso ofício de sermos
humanos.

“Hortência das tranças”


LELIS (MG)

Terminadas as funções da casa


Hortência se veste com recato.
Vai à estante do quarto,
escolhe Guimarães, Cervantes e Lobato.

Biscoito e café coado,


lores na mesa da sala.
Pro marido deixou o ensopado,
só faltava pegar a mala.

No ônibus já ensaiava
o que faria naquele dia.
Quanta coisa pensava!
Enquanto pensava, sorria.

Um cerrado sem fim
que a seca castigava;
mas em mudar tudo aquilo
Hortência das tranças acreditava.

Mucambo, todos diziam,


pobreza, falta de esperança.
Mas Hortência pensava diferente:
riqueza é ter criança.

Chegou como quem não quer nada,


chamou o primeiro menino que viu.
Vai chamar os outros logo!
Num pulo o menino sumiu.

De lá veio gente,
mãe, pai, filho e tia.
Todos queriam saber
o que aquela moça queria.

Subiu na velha mala


Debaixo do pé de pequi.
Abriu um livro e outro,
Coisa estranha pra muita gente ali.

Cuca, Curupira e Saci,


Quixote e os irmãos Grimm;
Cavaleiros, princesas e castelos,
Zé Bebelo, Riobaldo e Diadorim.

Diante daquele povo


um novo mundo se abria
todos muito atentos
ao que a moça dizia.

Nossa, que estranho!


Mudou agora a voz dela:
voz grossa, de moço bravo,
voz fina de moça donzela.

Certo mesmo eu vou dizer


é que todos ficavam pasmos.
Como daquela moça frágil
saíam tantas vozes, gestos e causos?

Uma voz de menina,


um relincho de cavalo,
um galo que canta longe
e a porta que dá um estalo.

[…]

De olhos atentos
mulheres largavam as panelas,
moças pensando em príncipes,
moços em doces donzelas.

O velho ônibus já no ponto,


Dona Hortência, vamos partir.
— Fica mais, moça dos livros.
— Posso não, tenho que ir.

Riobaldo escapole
amoitado no pé de Angico;
de lá, num grito, negaceia:
Nhá Hortência, eu fico!66
 
A construção de uma narrativa visual a partir de um texto requer
engenharia de escavação. O autor esconde tesouros e deixa um mapa, um
mapa difícil às vezes. Mas ele me dá pistas. Eu leio três vezes e caminho em
círculos na quarta. Descubro então que aquela pista era falsa. Retorno ao
ponto inicial e me insiro naquele universo. Deixo de lado o papel, os
pincéis e as tintas. Tiro da gaveta minha imaginação. Descobri,
finalmente, o que ele queria: “esqueça o que é palpável e busque o
intangível. Não se prenda ao material, cave até encontrar o que procura”.
Estou ali e devo contar aquela história. Eu sou um contador de histórias.
Às vezes visual, às vezes textual. Sou a extensão de um pensamento que
antecede o que é visível. Sou um tatu e continuo a cavar histórias em busca
de tesouros.

Eu conto e ela me conta – somos dois e somos um:


criador e criatura
LÍDIA ENGELBERG (SP)67

De uma forma ou de outra, sempre estive às voltas com as palavras. Eu me


apaixonei cedo pelo teatro e experimentei a palavra cênica para contar
histórias. Em seguida, a palavra se transformou em notícia, contando o
que acontecia com as pessoas: era o jornalismo, a palavra literal.
Confesso que não poder ir além do fato em si me preocupava e, mais,
me atormentava. A partir desse tormento, a palavra logo se tornou o “canto
da sereia”, seduzindo os pobres corações a litos e ávidos por preencher
suas vidas. Era a propaganda, a palavra que trazia um mar de ilusão.
A ilusão, tanto para quem a cria como para quem a vive, vem com
um brilho que fascina, mas é fugaz e logo se consome. Assim, em busca de
algo que realmente pudesse preencher esse vazio, migrei para o sonho e
comecei a narrar histórias.
Ilusão e sonho talvez sejam constituídos da mesma matéria, mas
seus efeitos são completamente distintos. Tal qual a informação e a
narração, descritos por Ecléa Bosi em Memória e sociedade: lembranças de
velhos, acredito que informação e ilusão se consomem; sonho e narração,
porém, possuem uma força “concentrada em limites como a da semente e
[que] se expandirá por tempo indefinido”68.
Empenhada em alimentar sonhos por meio da narração, iniciei-me
na contação de histórias de forma muito intuitiva, preparando uma
narrativa por semana para contar em uma escola próxima de minha casa.
Essa preparação era simplesmente “guardá-la na cabeça”. Eu lia a história
várias vezes e começava a contá-la para pessoas imaginárias; quando
conseguia chegar ao fim da história, eu a repetia inúmeras vezes, e estava
pronta.
Com o tempo, percebi que, desde a primeira leitura de cada história,
começavam a habitar em mim milhares de imagens. O exercício insistente
de narrá-la, para poder apreendê-la como um todo, fazia essa ação
sobrepor ainda mais imagens. Desse repetir quase sagrado, como que
entoando a história em forma de prece, nasciam movimentos, gestos e
cores de vozes distintas, que iam desenhando as personagens e as
situações no espaço.
Muitas vezes, pedaços da história ficam algum tempo sem forma.
Eles precisam, então, ser lançados ao ar até que comecem a ganhar
contornos. A lida cuidadosa e persistente com a história sempre a faz
brotar.
Com o tempo, esse processo vai ficando mais íntimo e luido e não
sabemos mais onde a história começa e onde a gente termina: criador e
criatura se confundem, contador e história são uma coisa só.

Entre tantas histórias


LILIAN FLORES (SC)

Quando a antropóloga Frances Harwood perguntou a um ancião da tribo siúx por que
as pessoas contavam histórias, ele respondeu: “Para que possam se tornar seres
humanos”. Ela então perguntou: “Mas nós já não somos seres humanos?”. Ele sorriu:
“Nem todo mundo chegou lá”. [LAURA SIMMS]

Eu sou Lilian Magali Machado Flores e nasci na Ilha de São Francisco do


Sul, em Santa Catarina. Acho que nasci predestinada a contar histórias,
pois minha mãe e meu pai narravam incessantemente suas traquinagens
de infância, os causos da vida cotidiana rural e urbana. Minha mãe, em
especial, contava-me também as histórias dos contos de fadas antes de
dormir. Já meu pai, sempre que voltava de suas pescarias, contava-me
ainda suas aventuras.
Além disso, minha cidade, pequena e pacata, é um perfeito refúgio
para aposentados, ou seja, para os vovôs e vovós, natos contadores de
histórias. Passei boa parte da minha infância ouvindo-os contar as lendas
da cidade, recheada de personagens como o lobisomem (um homem
peludo morava na nossa rua e em noites de lua cheia se metamorfoseava
em lobo), a bruxa (uma senhora muito brava), a mula sem cabeça (que
aparecia no mato), a cegonha (que trazia os bebês), o homem do saco (que
pegava as crianças desobedientes), o bicho-papão (que pegava as crianças
que não queriam dormir), entre outros. Podemos ver até hoje esses
encontros nos finais de tarde, em frente às casas.
A narração oral das histórias nos proporciona a capacidade de
utilizar amplamente nossas faculdades para perceber o mundo, pois
precisamos criar imagens para as palavras ditas, diferentemente do que
acontece quando assistimos a uma novela, em que a palavra e a imagem
aparecem ao mesmo tempo, o que nos provoca certa preguiça mental.
No entanto, quando conto uma história, as crianças não estão
apenas ouvindo a história, mas também interagindo com ela, seja
imaginando esses mundos ficcionais (matas, castelos, profundezas do
mar), seja interferindo oralmente: ouço que uma conhece o lobo, que o pai
de outra já viu uma sereia quando estava pescando etc.
Segundo Vincent Jouve, a leitura é uma experiência de libertação:

[…] a leitura é, portanto, uma experiência de libertação (enganação da


realidade) […] suscita-se imaginariamente a partir dos signos do texto um
universo marcado por seu próprio imaginário […] ela, no entanto, liberta de
alguma coisa, quanto liberta para alguma coisa.69

Eu diria que ouvir histórias é também uma experiência de


libertação. Assim como ao ler uma história nos libertamos de nós mesmos
para participarmos imaginariamente da narrativa, acredito também que o
mesmo processo aconteça ao ouvirmos uma história. O contador pode
imitar vozes, travestir-se para aproximar-se da personagem principal ou,
simplesmente, contar com sua voz histórias “vividas” por antepassados,
dando assim credibilidade e até mesmo encorajamento para que o ouvinte
também possa vivê-las na própria imaginação.
A escuta de histórias na Idade Média – e até hoje em algumas
comunidades – serviu como um meio para os pais educarem os filhos.
Como diz Walter Benjamin:

Narrar não é só uma arte, é também um mérito, e no Oriente até mesmo um


ofício. Acaba em sabedoria, assim como tantas vezes, ao contrário, a sabedoria
nos chega sob forma de um conto. O narrador é, portanto, alguém que sabe
dar conselhos e que para fazê-los tem que saber relatá-los70.

No entanto, é cada vez mais difícil encontrarmos pessoas dispostas a


contar histórias e também pessoas com tempo para ouvi-las. A vida
moderna cotidiana tem sentenciado à alienação cultural as futuras
gerações, que têm preguiça de ler ou falta de tempo para ouvir o outro.
Para Benjamin,
[…] cada vez mais rara se vai tornando a possibilidade de encontrarmos
alguém verdadeiramente capaz de historiar um evento. É como se nos
tivessem tirado um poder que parecia inato, a mais segura de todas as coisas
seguras: a capacidade de trocarmos, pela palavra, experiências vividas71.

Assim, ouvir histórias não é apenas viajar imaginariamente por


espaços geográficos, conhecendo culturas, mitos e povos, é também uma
viagem para dentro de nós mesmos. Uma boa história, além de poder
remeter-nos a re lexões existenciais, também tem o poder de acordar
nossa memória, nossos sentimentos e sentidos, fazendo-nos lembrar de
outras narrativas.
Minha experiência de contar histórias perpassou da simples vontade
de narrar um fato vivenciado até o ato de decorar uma história escrita por
nomes consagrados de nossa literatura, como Chico Buarque (Chapeuzinho
Amarelo)72, Monteiro Lobato (fragmentos de Memórias da Emília)73 e
Leonardo Bo f (as lendas do guaraná e do beija- lor)74, além de A verdadeira
história dos três porquinhos, de Jon Scieszka75, o conto popular angolano
“História da coca”76, as lendas francisquenses77, poemas, sonetos etc.
A contação de histórias não se resume apenas à história, mas
corresponde a uma junção de fatos que fazem com que ela aconteça: o
público ouvinte, com sua interação ou inércia; o ambiente enquanto
espaço físico (sala de aula, praça, igreja, auditório etc.); e o evento em si,
com o contador como um anfitrião que cede espaço e torna ou não
singular o momento da história.
Enfim, são vários os fatores que devem estar em sintonia com a
história a ser contada. Aponto isso porque, na minha primeira participação
como contadora de histórias, não ocorreu esse “casamento” entre público,
evento e narrativa. Minha amiga Geane e eu fomos desafiadas a contar
uma história na Feira do Livro, mas, quando subimos ao palco para nos
preparar, havia um grupo de adolescentes sentados ali, conversando e
namorando. Ou seja, eles se sentiram incomodados, e nós sentimos que
estávamos invadindo o “espaço deles”. É claro que, naquele momento, se
tivéssemos declamado poemas ou encenado um fragmento
shakespeariano, acredito que teríamos tido sucesso. Mas não foi isso que
aconteceu: contamos a maravilhosa narrativa Chapeuzinho Amarelo, uma
releitura da tradicional história infantil “Chapeuzinho Vermelho”, e isso
era tudo o que aqueles adolescentes não queriam ouvir naquele momento.
No entanto, não desistimos dessa jornada. Tanto Geane como eu
continuamos a contar essa história, que faz parte dos nossos repertórios.
Os erros são muito importantes, pois eles nos levam a re lexões, a fim de
criarmos mecanismos para “burlarmos” as possíveis falhas futuras. Essa
experiência me ajudou quando contei histórias na rádio São Francisco em
2009, no programa de maior audiência da cidade, Na boca do povo, cujo
público é diverso. Após a história, o locutor fazia perguntas ao vivo,
relacionadas à história e também às notícias que estavam na pauta do dia.
O interessante de contar histórias em um veículo de comunicação de
massa é que não há um espaço físico e um número de pessoas delimitado.
Você conta para mais de mil, 2 mil, 3 mil pessoas, e em um silêncio
sacrossanto.
Lembro-me de uma situação marcante ao contar na rádio a história
A árvore de Beto, de Ruth Rocha78. Nesse dia, próximo ao Natal, a história
“pregou-me uma peça”. Contei-a no programa e me emocionei: minha voz
embargou, as lágrimas rolaram, e controlei a respiração ao máximo. O
ponto positivo do rádio é que as pessoas não veem você, mas, mesmo
assim, foi uma catarse. Todos com quem conversei, que ouviram a história
naquele dia, disseram ter chorado, e o interessante foi que eles não
perceberam que eu também chorei.
Outra experiência marcante que tive foi contar histórias e declamar
versos nos saraus do Museu Nacional do Mar, às segundas-feiras, de 2005
a 2010. Esse período foi único, pois serviu não apenas como um
laboratório, mas principalmente como um termômetro, já que tínhamos
um público sempre rotativo, do escolar ao da terceira idade, em um espaço
dialógico em que as histórias conversavam com as outras artes: músicas,
poemas, teatro, cinema etc.
Um dos momentos mais singulares que vivi foi na Apae (Associação
de Pais e Amigos dos Excepcionais), em uma das tardes da Semana da
Criança, em outubro de 2005. Após contar a “História da coca”, o conto
angolano que mencionei anteriormente, fomos todos lanchar. Na fila para
se servir, os alunos ficaram me imitando. Achei a situação incrível, pois,
além de terem absorvido a história dentro da limitação deles, eles também
prestaram atenção nos meus trejeitos. Outra experiência de que me
recordo ocorreu na semana que antecedeu o Natal de 2012, pois fui
convidada para contar histórias em um lar de crianças, em um de idosos e
em dois centros de recuperação de dependência química. Foi algo bastante
gratificante porque, além de saber que aquelas pessoas ansiavam por
visitas, eu tinha um tipo de “missão”: fazê-las rir, provocar-lhes uma
pequena fuga do mundo real para o ficcional. Apesar de ter sido uma
maratona, pois todos os dias havia um lugar com um público diferente, a
experiência valeu muito a pena.
Por fim, saliento que esse relato que aqui exponho está interligado a
muitas outras memórias. Acredito que esta seja uma das grandes belezas
do ato de contar histórias: a história que outrora era particular de repente
passa a ser pública. Ou seja, as narrativas acontecem como um filho que
nasce e rapidamente se emancipa. As histórias deixam de pertencer a uma
simples página de livro para “ganhar o mundo”, de boca em boca.

O encontro com as palavras e as histórias79


MARLON CHUCRUTS (CIA. MALAS PORTAM) (SP)80

Nossas histórias se cruzaram em 2001. Somos pessoas apaixonadas por


arte, mas que seguiram caminhos distintos e ficaram sempre com a arte
guardada dentro de si, em um lugar ao qual nem todos tinham acesso.
Assim como uma maria-fumaça que, para impulsionar suas
engrenagens, precisa de carvão para queimar, somente possuir as malas
não era suficiente. Então uma misteriosa e poderosa energia, o cosmo, fez
do sonho de um o sonho de dois, de três, enfim, o sonho de um coletivo.
Esse desejo coletivo foi lançado em direção ao cosmo, que nos atendeu,
pois, em nossa comunhão diária, apropriamo-nos de maneira intensa de
nossas bagagens e, a partir desse primeiro passo, trouxemos para o
coletivo nossa contribuição particular.
A partir dessas contribuições, vislumbramos a alma de nossa
companhia e compreendemos que ela poderia ser representada pela figura
de um triângulo. Seus vértices retratam as fontes artísticas em que
matamos nossa sede de criatividade: a música, o teatro e a literatura.
Consideramos que o núcleo desse triângulo é a oralidade. O que
caracteriza nossa forma de contar histórias é exatamente a liberdade de
experimentar o diálogo entre as diferentes linguagens artísticas.
Desse encontro, nasceu em 2007 a Cia. Malas Portam, a partir da
ideia de que aquilo que parece normal e rotineiro pode ser transformado
em brincadeiras, mágicas, histórias e tudo o que a imaginação for capaz de
inventar. Mais do que roupas e bagagens convencionais, portamos em
nossas malas sonhos, esperanças e, sobretudo, vida. Sem limite de idade e
sem contraindicação, Malas Portam é destinada a todos os que acreditam
no poder do sorriso, porque sorrir pode ser contagiante.
Temos cinco malas, e todas elas portam objetos ou “instrumentos de
criatividade” que permitem o uso da imaginação. Temos bolas em uma
Mala Bola; fantasias, fantoches e tecidos na Mala Tecido; objetos lúdicos e
curiosos na Mala Treco; uma mala em forma de livro intitulada Mala Livro;
e, por fim, a Mala Invisível, a única que nos permite ver seu interior sem
abri-la: todas elas com muitas histórias para contar.

A magia da história
MARÔ BARBIERI (RS)81

História é magia. Histórias enfeitiçam o contador para que ele encante sua
plateia. Foi o que aconteceu comigo, e hoje posso dizer que também faço
essa mágica. Mas, muito antes da minha primeira experiência como
contadora, veio o encanto pela leitura. O contato com os tesouros
guardados nos livros foi a fonte primeira e permanente da minha relação
com esse universo maravilhoso. Os livros escondem segredos por detrás
das palavras, sob o colorido da ilustração, e trazem sempre alguma
novidade para o nosso universo ficcional.
Meus pais não contavam histórias, mas providenciaram que muitos
e muitos livros fizessem essa tarefa. Assim, livros e mais livros povoaram
minha infância, e acho que essa foi a maior razão para que eu me tornasse
contadora. Pensando bem, não sei se foram somente os livros. Talvez não.
Tenho de agradecer também à capacidade criativa do imaginário popular,
que produziu os inesquecíveis contos de fadas, e à tecnologia, que os
trouxe para mim em forma de pequenos discos coloridos de plástico que
ouvíamos – lá na década de 1960 – na eletrola de casa82. Eu, ainda pequena
e impressionável, ficava fascinada pelas narrativas que vinham com
música e sonho. Aliás, o som cativante da voz dos narradores foi referência
para que eu futuramente trabalhasse a minha, ferramenta fundamental no
ofício de contar.
Mas há outro ponto importante: para ser contador, é preciso gostar
de gente, e essa parte foi fácil. Meu pai era engenheiro militar e, desde
pequena, viajei muito e aprendi a socializar com todos os tipos de pessoas.
Por isso, estar com pessoas é sempre um prazer para mim, pois a tarefa do
contador está repleta de humanidade. Na hora da contação, estão lá as
pessoas e a história, e só. Nossa atividade é feita de coração para coração,
olho no olho, gente com gente. É preciso escutar a respiração da plateia,
acompanhar o sobressalto produzido pela dureza do con lito e acolher o
suspiro de emoção nas passagens mais poéticas. É preciso ser parceira na
angústia das atribulações do herói ou da heroína.
Acho que tudo colaborou para que eu me tornasse contadora. Viver a
vida também. Porque contar histórias é falar da vida, das expectativas, das
angústias, das vitórias, das derrotas. É perceber que a ficção não é um
engano. Inventar não é mentir. Inventar é criar outra verdade, uma
verdade que nos faz bem. Por isso é muito bom ser contadora: para contar
sempre uma nova história e se encher de verdades que podemos partilhar
com amigos, boas e novas verdades que dão à vida a beleza que ela deve
ter.
Contos, cantos, encantos e recantos
MAURÍCIO NEGRO (SP)83

Jasmim nos pediu um livro. “Para ler no berço”, disse, “depois da


mamadeira”. Minutos depois, já na cadeira da cozinha, compartilhou
comigo e com a mãe um rápido café da manhã. Além da mochila, pediu
para levar à escolinha outro livro que ela mesma escolheu. “Para ler no
carro”, explicou. Recentemente ela ganhou um presente da mãe: uma
confortável mesinha com cadeira, para sentar, desenhar, rabiscar e ler
livros.
Como todo mundo, nossa pequena lor nasceu sabendo ler daquele
jeito que o adulto esquece quando cresce. Há livros pela casa toda, e o
acesso a eles é fácil. Com o tempo, e se ninguém atrapalhar, enquanto
desabrocha, Jasmim vai continuar a ler com prazer, inclusive textos
escritos. Agora, a pequena se encanta com o que contam as imagens, os
sons e os cheiros. Ela já percebeu as letras. Às vezes, folheia, curiosa, um
livro mais robusto e sem imagens. Se tudo conspirar a favor, talvez
permaneça leitora (da vida, de situações, de rostos, de livros, de linhas, de
entrelinhas). O que importa é que todo dia a mãe ou o pai e também os
avós fazem questão de contar histórias e compartilhar leituras. Ouvindo,
ela se entretém, relaxa, se concentra e se deixa embalar. Assim, ficamos
todos ainda mais próximos.
O berço de toda literatura universal é a oralidade. Contar histórias é
juntar gerações, é um exercício cíclico de transmissão e reafirmação de
saberes, culturas e identidades. Contar histórias é, no mínimo,
tridimensional. Narra-se com a voz, com a alma e com o corpo. Tira-se
partido do cenário, da luz, do espaço disponível, do figurino, dos sons ou
do silêncio ao redor. A memória é o chão. Mas o contador mira o céu, sente
as mudanças no espaço-tempo e opera ajustes em cada recontar. Histórias
muitas vezes repetidas tratam do imaginário de muitas culturas, de seus
mitos essenciais, dos heróis civilizadores, do sentido da vida, dos ritos
sagrados, do sobrenatural e da relação entre as pessoas e a natureza.
Nas chamadas culturas circulares, são típicas as rodas de contação
de histórias. Em tupi, a narrativa histórica, notícia, conto ou causo chama-
se poranduba. Ao redor do fogo, sentam-se homens, mulheres, jovens e
crianças para ouvir o chefe, o xamã ou um respeitado ancião. Os
portadores e difusores naturais da memória coletiva são os mais velhos,
que transmitem seus conhecimentos aos jovens porque em seus corpos
estão as marcas da experiência.
A narração de histórias pelos tradicionais griôs, contadores
populares em várias regiões do continente africano, faz eco também no
Brasil. Pela oratória e musicalidade, os griôs assemelham-se aos nossos
repentistas. São artistas plenos e respeitados pelo conhecimento da
geneologia, da história e da oralidade de seu povo. Repetem histórias
ancestrais, recontadas com rigor e precisão e acompanhadas por muitos
instrumentos musicais. Pelo bater de palmas, dança, percussão e melodia
há contação de histórias entre afrodescendentes e quilombolas brasileiros.
Sentimentos, passagens ou narrativas estão nos pontos do jongo, nos
temas e nos cantos do vissungo, nas narrativas protagonizadas pelos
orixás.
A experiência coletiva proporcionada pela contação de histórias
distingue-se, portanto, da leitura individualizada de uma obra, de caráter
mais introspectivo. O códex, de matriz grega e aperfeiçoamento romano, é
o principal legado europeu dos primeiros anos da era cristã. Na página
impressa de uma publicação, a narrativa é bidimensional. Cabe aos
designers gráficos e ilustradores o desafio de construir uma narrativa visual,
tendo a possibilidade de resgatar a tridimensionalidade própria da
oralidade. Os álbuns ilustrados, ou picture books, combinam recursos
textuais e imagéticos na narrativa e buscam entrelaçá-los. São imagens
que ambicionam ser música, textos que desejam ser letra. A literatura
ilustrada quer ser canção, e assim recuperar o carisma e a verve de um
hábil contador de histórias.

A contação de histórias na Cia. Alma Livre


MERY PETTY (SC)84
A Cia. Alma Livre foi fundada pelas atrizes Mery Petty e Nicoli Pereira e
pela musicista Beth Mueller em 10 de outubro de 2007, com o objetivo de
produzir espetáculos teatrais de bonecos e atuar com contação de
histórias.
Em seu repertório, estão os espetáculos Tem xente uma feis (Kasperl
Theater), Chapeuzinho Vermelho na Terra dos Bonecos (teatro de bonecos de
luva), A missão (teatro empresarial), Quem cortou a perna do Saci (contação de
história com bonecos), Delírios eróticos de Anaïs Nin (teatro convencional
com direito a leitura dramática), Desejos de Pedro (teatro de bonecos sobre a
inclusão social) e Periquito Salomão (teatro com manipulação de bonecos de
balcão).
Na Cia. Alma Livre, Mery Petty é quem mais conta histórias. Ela
iniciou sua carreira profissional na área da educação, atuando com
crianças na educação infantil. Nesse ambiente, ficou amiga de Beth
Mueller, e as duas passaram então a fazer teatro com fantoches
disponíveis na escola.
A paixão por atuar e contar histórias começava ali, em 1987. Beth, já
musicista nessa época, incrementava as atuações com músicas cantadas e
acompanhadas de violão. As apresentações eram improvisadas, seguindo
um canovaccio, indicando as personagens e seus objetivos roteirizados (tão
utilizados pelas trupes da commedia dell’arte para guiar as improvisações).
Essas apresentações eram feitas sistematicamente uma vez a cada semana.
A confecção de fantoches na vida de Mery Petty apareceu nessa
mesma época, e sua paixão pelos bonecos não parou de crescer até hoje.
Para ela, contar histórias levando-os para a cena é plasmar as personagens
diante da criança, contribuindo, assim, para sua imaginação criativa:

O boneco é a intersecção entre o mundo imaginário e o real. A criança entende


que ele é um personagem que não existe, porém, ela tem a oportunidade de
tocá-lo. Então ele é real. É como se o mundo imaginário tivesse invadido o
mundo real por um instante. […] Essa aparição do boneco pode estimular
muito a criatividade da criança. Ela pode entender que nada é impossível, que
ela pode viajar em suas ideias criativas dentro do mundo real e de seu
imaginário. […] Ela pode organizar sua mente, e isso é maravilhoso!
Durante uma contação de histórias, por exemplo, o menino Gabriel,
de 3 anos, que havia mudado de casa naquela semana e passou a ter um
vizinho com um cachorro que uivava de vez em quando, fez o seguinte
comentário:

MERY PETTY: Então apareceu um lobo…


GABRIEL: Mery Petty… Sabia que lá na minha casa tem um lobo?
MERY PETTY: É mesmo?
GABRIEL: Sim.
MERY PETTY: E você viu o lobo?
GABRIEL: Sim. Eu fui lá na janela do meu quarto e eu vi. Ele estava correndo lá fora e
fazendo “auuu” e daí ele voou lá em cima!

[Silêncio na turma enquanto todos olhavam para ele, estarrecidos.]


Gabriel deu de ombros como quem diz: “Exagerei. Lobos não voam”.

Mery Petty, assim, conclui:

A considerar o mundo agitado em que vivemos, a contação de histórias é um


bom motivo para o desaceleramento. […] A cerimônia, o tom de voz, a ação, no
meu caso, com os bonecos que muitas vezes fazem cenas antes de sair da
caixa mágica, como a agitação da caixa, como se os bonecos estivessem
ansiosos lá dentro por ver quem está ali fora, aguardando-os para ouvir suas
histórias, e tantos outros artifícios usados para conquistar os ouvidos alheios
são de importância incontestável para mim, pois acredito que a relação que se
estabelece entre o contador e o ouvinte é o que ensina. E, ainda, rechear essa
relação com sentimentos prazerosos, como curiosidade, atenção, carinho,
suspense e outros, vai determinar a efetivação desse aprendizado.

Cultura tradicional da infância: o programa Família


MAM, uma abordagem do MAM Educativo85
MIRELA ESTELLES86 (SP)
Pom, pom, pom./ Quem será?/
É uma história que vai começar!/
Olê, olê, olê,/ Olê, olê, olá!

O programa Família MAM existe há mais de uma década e sua programação


acontece ao longo de todo o ano, geralmente nos fins de semana e quase
todos os dias no período de férias escolares. Em 2011, sob a coordenação de
Daina Leyton, o programa foi reformulado e, desde então, o Família MAM
integra, em sua ideologia e suas ações, a cultura tradicional da infância, que
valoriza e respeita o modo de ser e estar de cada criança, fomentando suas
invenções e criatividade.
No período em que a reformulação do programa começou, a
educadora e pesquisadora da infância Lucilene Silva foi convidada para
um encontro com professores no programa Contatos com a Arte, com o
objetivo de trazer e ampliar o repertório de brincadeiras tradicionais
inspiradas nas pinturas do artista Cândido Portinari, que retratou muitas
das brincadeiras dos meninos do Brasil.
A cultura tradicional da infância se encontra cada vez mais presente
e forte no Família MAM e é um dos principais eixos do programa. O
interesse pela cultura tradicional da infância não é exclusivo do Família
MAM: ela também integra outros programas, como o Contatos com a Arte
(voltado para a formação do professor) e o Programa de Visitação (voltado
para a formação dos diversos públicos, por meio de visitas agendadas às
exposições em cartaz).
Periodicamente, realizamos atividades – narração de histórias,
brincadeiras tradicionais da infância, jogos de versos, experimentações
artísticas, visitas mediadas às exposições em cartaz, experiências poéticas
– que consideram o universo lúdico infantil e buscam a construção de
sentido na experiência com a arte. As atividades proporcionam o convívio
e a interação entre adultos e crianças e enriquecem a troca e a diversidade
de olhares entre os participantes.
Durante a exposição No ateliê de Portinari, em 2011, em algumas das
práticas vivenciadas no Programa de Visitação, realizamos no
atendimento de grupos agendados e no Família MAM jogos de versos a
partir de um canto de trabalho inspirado nas pinturas e nos esboços que
retratavam os trabalhadores. A estrutura do jogo era apresentada e os
participantes criavam versos seguindo o ritmo estabelecido. Cada estrofe
teria quatro versos, dos quais o segundo teria de rimar com o quarto. Essa
experiência inaugurou a criação de versos inspirados nas exposições e hoje
é uma prática recorrente nas visitas agendadas e no programa Família
MAM. Como a primeira pessoa é uma potente aproximação, a criação de
versos teve destaque nas exposições individuais de artistas como Oswaldo
Goeldi, Alex Vallauri e Maria Martins.
Alguns dos versos criados por crianças entre 8 e 9 anos, durante a
visita à exposição No ateliê de Portinari, exemplificam essa experiência e a
estrutura do jogo usado na criação dos versos. A estrutura era cantada
inicialmente pela educadora:

O besouro é preto, ô danado


Ele é bem pretinho, ô danado
chuleia o besouro, ô danado
bem chuleadinho, ô danado.

“Besouro” é o nome que os trabalhadores davam para o caroço que


há dentro do algodão, que é muito preto. Na colheita do algodão, é muito
comum o jogo de versos para dar ritmo ao trabalho e passar o tempo. A
partir dessa estrutura as crianças visitantes criaram, no mesmo ritmo, os
seguintes versos:

Fui ao museu,
Ver uma exposição.
Quando eu fui perceber,
já estava perdidão.

Suas obras brasileiras,


se revelam na história.
Portinari na infância,
e também na nossa escola.
Fui andando pelo museu,
uma coisa eu encontrei,
foi um trabalhador,
que logo me apaixonei.

Portinari era um pintor


que fazia obra de arte
que pintou o trabalhador
e outras obras de arte.

Outro exemplo é a experiência com o jogo de verso vivenciada por


adultos e crianças na exposição do artista Oswaldo Goeldi. Nesse contexto,
a estrutura do jogo de verso foi escolhida a partir da temática inspirada
nas obras da última sala da exposição, onde podíamos encontrar diversas
gravuras que retratavam os pescadores. A educadora iniciava:

Marinheiro encosta o barco,


que a morena quer embarcar.
Ai, ai eu não sou daqui,
Eu não sou dali sou de outro lugar.

E as crianças e seus acompanhantes criaram os seguintes versos:

Eu fui ver a exposição


com a Marina e o Matheus.
Vi morte e vi vida,
Me diverti com os filhos meus.

Pescador caiu no mar,


e pescou uma sereia.
Ficou todo enfeitiçado,
bebeu água e comeu areia.

Quando fui na casa assombrada,


uma caveira me assustou.
Aquela caveira danada,
de susto quase me matou.

Quando o céu escureceu,


e o vento soprava forte,
os homens brigaram feio,
e a cidade cheirava a morte.

A partir desse registro, podemos perceber que os visitantes


trouxeram diferentes percepções com os versos criados: o que gostaram, o
que chamou a atenção, o que acharam da visita ao museu e da exposição
em si etc.
Temos explorado essa dinâmica por acreditar na importância de
cantar com as crianças e de poder brincar com as palavras. A música faz
parte do cotidiano delas e de sua forma de expressão no ato de brincar. O
momento que envolve a música durante a visita ao museu é uma vivência
que marca significativamente os visitantes no contato com a arte.
Outra prática do MAM Educativo são as narrações de histórias. Para
cada exposição, realizamos uma pesquisa até chegar à escolha da história
ou das histórias que serão contadas em diferentes situações: visitas
mediadas para diversos perfis de público, visitas exclusivas para
professores, programa Família MAM, entre outras. No Família MAM, elas
podem ser narradas em português ou simultaneamente em português e na
língua brasileira de sinais (libras). A narração bilíngue é realizada com a
participação de Amarilis Reto87.
A contação das histórias em duas línguas também começou em 2011,
na ocasião da Semana Sinais na Arte, que comemora o Dia do Surdo.
Desde então, o evento acontece pelo menos uma vez a cada exposição em
cartaz no museu e exige uma grande pesquisa para garantir a relação
harmônica entre as línguas sem prejudicar a estrutura da narrativa. Para
isso, consideramos importantes os seguintes aspectos trabalhados na
preparação de cada história:
• utilização e exploração de sinais que marquem a espacialidade narrativa para
melhor compreensão do surdo e também do ouvinte (construção do cenário
no espaço);
• ampliação do vocabulário para o público surdo;
• contato do público ouvinte com uma nova língua;
• uso do corpo das duas narradoras para a ampliação de um único sinal, o que
ocorre com a extensão ou a contenção do movimento e do tempo;
• composição do sinal levando em conta o movimento e sua direção, o lugar no
corpo ou no espaço e a expressão e a configuração das mãos, o que gera a
compreensão do significado e possibilita novas relações poéticas com o uso
dos sinais nos diferentes contextos da narrativa;
• repetição no momento de construção da imagem pela visualidade da língua
de sinais, tanto para o surdo quanto para o ouvinte;
• narração versus dramatização: preocupação em narrar a história e não
dramatizá-la. O uso de recursos como objetos sonoros e visuais é feito sem
excesso ou exageros, a fim de salientar a simplicidade da arte milenar de
contar histórias;
• harmonia e ritmo: não há hierarquia entre as línguas, e cada uma é respeitada
em sua estrutura particular e poética, o que exige das narradoras uma grande
sintonia. A história existe como norteadora do espaço-tempo de cada língua, o
que estabelece uma relação entre ritmo, cadência e luidez;
• a alternância entre quem fala e quem sinaliza fortalece a equidade entre as
línguas e busca jogar com o olhar do espectador, criando momentos de
integração total entre as duas línguas. Essa integração pode acontecer entre a
dupla de contadoras ou entre as línguas em um só corpo, quando a mesma
pessoa fala e sinaliza por um período curto para garantir a estrutura das
línguas. Percebemos que, na maior parte das vezes, a alternância funciona
melhor nos diálogos;
• a criação de expressões poéticas que transmitam visualmente a poesia da
palavra oral. Trechos de narrativas poéticas são os mais trabalhados durante o
processo de construção da história, pois são eles que dão riqueza e
profundidade à narração, estimulando a imaginação e a capacidade de
abstração, que pode ser ampliada ao proporcionar o aumento do vocabulário e
do universo imagético dos surdos. Situações de aprendizagem que explorem
expressões poéticas são oportunidades que buscamos sempre promover, pois
muitas vezes elas faltam aos surdos.
Como exemplo da criação de uma narração de história bilíngue,
podemos pensar o caso da poesia e da metáfora na língua de sinais a partir
da expressão “esta casa está por um fio”. Uma vez que essa expressão da
língua portuguesa não tem tradução literal para a língua de sinais, bem
como diversas outras expressões não existem em diferentes línguas orais,
como podemos fazer?
Na língua de sinais, usamos o sinal de casa e de perigo. O sinal de
perigo é feito com o movimento do dedo indicador próximo ao nariz, para
cima e para baixo, na vertical, junto à expressão facial que indica perigo.
Concomitantemente, durante a narrativa, estamos o tempo todo fazendo o
sinal de fio com o dedo indicador na horizontal, trazendo a imagem do
equilibrista caminhando sobre o fio. Assim, quando apresentamos a
sinalização de “esta casa está em perigo”, a associação com o fio fica mais
fácil para a aproximação da expressão “esta casa está por um fio”. Assim,
visualmente trazemos a metáfora em libras. Entre as várias formas de
dizer que a casa pode cair, escolhemos essa porque ela apresenta a mesma
configuração das mãos. Podemos dizer ainda que ela tem uma rima, um
uso poético, uma apropriação poética.
Na história do equilibrista, usamos a frase “quantas coisas se podem
fazer com o fio” para ilustrar. Em libras, a sequência de sinais para a
estrutura dessa mesma frase é: fio, podem, fazer, coisas. Para darmos ênfase
a essa frase, criamos a imagem do fio como se cada uma de nós estivesse
puxando um fio que sai do nosso encontro de mãos. Já com o sinal de fio,
puxamos o fio, fazemos o sinal de podem e de fazer e, em seguida, voltamos
à imagem do fio e fazemos o sinal de coisas para dar visualidade à
interpretação da palavra-imagem de “quantas coisas se podem fazer com o
fio”, como se o próprio fio estivesse fazendo várias coisas a partir de seu
movimento.
Em alguns momentos da história, falamos e sinalizamos ao mesmo
tempo, respeitando a estrutura de cada língua. Ao cruzarmos as duas
línguas, reforçamos a potencialidade de cada uma em suas diferentes
características, que se somam: a libras, por sua visualidade expressiva; e o
português, por sua poesia metafórica. Assim, ampliamos as possibilidades
de leitura e interpretação imagética da narrativa.
A experiência com os jogos de versos e com as narrações de histórias
estimulam a imaginação e abrem novas possibilidades de diálogo e
interação entre familiares, crianças e amigos. Hoje, atividades
fundamentais do nosso rol de ações educativas promovem um encontro
significativo no cotidiano com a arte e com a cultura tradicional da
infância.

Entrou por um fio,


e saiu pelo outro,
Quem quiser
que desenrole outro.

Um contador (e cantador) cordelista


PAULO BARJA (SP)

A prática de contar histórias não surgiu em minha vida como um fim


artístico em si. Na verdade, só fui saber que existiam contadores de
histórias profissionais quando eu já era um adulto. Quem me iniciou no
hábito de contar histórias foi meu avô Jorge. Como bom mineiro, ele
adorava inventar e contar causos, às vezes entremeados por canções
caipiras – muitas delas, por sinal, eram “causos cantados”.
Quando eu tinha 5 ou 6 anos de idade, ficava escutando as histórias
do meu avô. Em pouco tempo, começamos um revezamento nas sessões
narrativas: ele contava uma história, eu inventava outra, e assim a gente
seguia. Algumas dessas histórias chegaram a ser gravadas em fitas cassete,
inclusive a minha preferida, sobre um lugar em que a paisagem era toda
feita de queijo (isso provavelmente foi uma in luência do meu avô, que
vivia derretendo queijo dentro da xícara de café).
As narrações continuaram a fazer parte da minha vida durante os
estudos de infância e adolescência. Como participante do grupo jovem do
conservatório onde estudava, cheguei a contar a história do Negrinho do
Pastoreio no Uruguai. Já na faculdade, comecei a me expressar mais
frequentemente por meio da música e da poesia.
Passaram-se vários anos, e só voltei a contar histórias quando me
tornei pai. Minha filha é uma grande parceira: é fonte de inspiração e
ilustradora de algumas das histórias que tenho publicado em forma de
cordel e é também meu “público-teste” preferencial (e exigente).
Foi somente em 2008 que comecei a me apresentar como contador
de histórias, quase sempre em dupla. Foram cerca de três anos de muitas
apresentações em parques, praças, escolas, bibliotecas, entre outros
espaços. Como a música sempre teve um papel central na minha vida,
essas narrações naturalmente tinham um componente sonoro importante.
Com o tempo, passei a escrever folhetos de cordel com histórias criadas
por mim e com releituras de narrativas da tradição oral. Surgiram assim os
Cordéis Joseenses, com os quais trabalho há alguns anos em apresentações
solo.
Hoje, minhas apresentações mesclam histórias de cordel,
adivinhas/brincadeiras e música (canções tradicionais ou autorais).
Também me apresento com o grupo BãoCantá, em um formato um pouco
diferente: shows que sempre incluem uma ou duas histórias de cordel.
O contato direto com diferentes públicos nesses encontros tem sido
uma viagem altamente inspiradora para mim e fonte de novas histórias.

Contar histórias é reviver a infância


PAULO BOCCA NUNES (RS)88

Ao longo dos anos, descobri que o contador de histórias deve acreditar no


que está narrando e fazendo, para que o espectador possa entrar na
história. Dessa forma, o público vê a paisagem que está sendo descrita,
percebe o cheiro da loresta, se impressiona com o castelo, participa das
peripécias das personagens e, junto a elas, vivencia suas dificuldades,
re lete sobre as dúvidas e incertezas e questiona as decisões que tomam. É
preciso que o contador de histórias se lembre de seus momentos mágicos
da infância e se permita recriar e reviver aquele mundo de imaginação
quando for contar histórias. Eu me lembro de que, quando criança,
passava o dia dando vida aos meus bonecos, transformando os sofás em
navios, as vassouras em cavalos, as caixas de papelão em carros velozes ou
naves espaciais. Eu fazia tudo isso e acreditava que era verdade. O jogo
infantil, de certa forma, deve estar presente na hora da contação de
histórias. Contudo, todos esses elementos deverão estar presentes quando,
depois de escolhermos qual história contar, formos prepará-la e nos
perguntarmos: como farei isso?
Inicialmente, esclareço que não uso o livro para contar histórias. Uso
apenas os meus recursos corporais e vocais ou objetos, bonecos e
acessórios quando julgar necessários. Isso é parte da concepção de
montagem. Eu mostro o livro ao final da apresentação, indico como ele é
por dentro e falo de seu autor e da importância da leitura.
Para ilustrar como crio uma montagem de histórias, suas etapas e
pontos importantes, cito como exemplo a narrativa O pintinho que nasceu
quadrado, de Regina Chamlian89. A história é a de uma galinha que põe um
ovo quadrado e é expulsa do galinheiro por não jogá-lo fora. Ela choca o
ovo, um pintinho quadrado nasce, e ambos enfrentam uma série de
dificuldades e preconceitos. Certo dia, surgem animais diferentes que se
tornam amigos dos dois: um elefante trapezoidal, um macaco redondo,
um pato hexagonal, uma tartaruga piramidal, entre outros. No fim, todos
seguem pela estrada em busca de um lugar onde ninguém se importe com
as diferenças. Eu gostei da história desde que a li pela primeira vez e decidi
que a contaria. Mas pensei: como eu faria no caso dos animais com formas
geométricas diferentes? Afinal, eu precisava lembrar que o público poderia
ser composto de crianças muito pequenas. Se eu falasse termos como
trapezoidal, piramidal etc., poderia criar bastante estranhamento. O que
era mais importante na história: falar esses termos “estranhos” ou mostrar
as diferentes formas geométricas?
Depois de ler e reler a narrativa várias vezes e buscar possibilidades
para contá-la, resolvi usar objetos que tivessem apenas as formas dos
animais da história. Os materiais escolhidos foram espuma e EVA para
todos eles, e não marquei olhos, nariz nem boca. Com isso, meu objetivo
era destacar apenas as diferenças, tema da história, e não os animais.
Quando os objetos ficaram prontos, passei a estudar quais seriam as
melhores maneiras de usá-los durante a apresentação. Não bastava apenas
mostrá-los para indicar que eram os animais da história. Era preciso que o
público aceitasse o jogo proposto, ou seja, o de que cada objeto era o
animal que eu afirmava ser. Para isso, eu precisava ter a convicção de que
as personagens estavam ali, à nossa frente. Logo, meu jeito de olhar e a
maneira de pegar os objetos tinha de convencer quem me assistiria. Todos
eram objetos cênicos que deveriam adquirir vida por meio da forma como
eu os olhasse e os manipulasse.
Assim, durante os ensaios, comecei a brincar com os objetos como
fazia quando era criança: criando vozes, conversando com cada um deles,
tratando-os como se tivessem vida. Costumo ficar de frente para o objeto
cênico e olhá-lo, percebê-lo, identificá-lo, enxergá-lo, fazer com que ele
também me veja e me enxergue. Dessa forma, acreditarei naquela
personagem que está nascendo e que ganhará vida. Eu não me importava
de ser um adulto brincando com objetos, fazendo-os ganhar vida por meu
intermédio. Eu me permiti ser a criança que jogava o jogo lúdico.
Amadurecida essa fase, preparei uma mala em que colocaria os
objetos cênicos e passei para a etapa do ensaio em que eu os tiraria da mala
e os usaria durante a contação da história. Por fim, decorei o texto até me
sentir seguro e dar como pronta mais uma montagem. Todo esse processo
teve a duração de trinta dias.
Posso afirmar que, todas as vezes em que apresentei essa história ao
público – geralmente crianças entre 5 e 7 anos de idade –, este sempre se
manteve atento e se manifestava a favor da personagem principal, contra a
situação em que ela vivia. Era interessante observar como as crianças
debatiam e discutiam o problema e ficavam impressionadas com as
diferenças dos animais, ou seja, elas acreditavam no jogo que eu havia
proposto. No final, quando eu mostrava o livro, o interesse por ele e pela
leitura era despertado.
Elas se divertiam e se divertem até hoje quando conto essa história.
Eu me sinto muito realizado por executar esse trabalho, que traz
resultados magníficos.

A propósito da escuta do silêncio


REGINA MACHADO (SP)

Em 1976, época em que eu era professora de educação artística em algumas


escolas, narrei um conto para meus alunos adolescentes. Fiquei surpresa
com o silêncio que se instalou depois da história e me perguntei sobre o
seu significado. Desde então, venho pesquisando, como artista e
educadora, a importância da arte narrativa oral na aprendizagem das
pessoas, começando pela minha.
Desenvolvo essa pesquisa em duas ações complementares. Na
Universidade de São Paulo, investigo os contos de tradição oral na
formação de professores de arte como se fossem metáforas para a
aprendizagem docente ligadas a ações pedagógicas teórico-poéticas. Essa
abordagem significa um modo particular de perceber, estudar e
compreender o conto de tradição oral como uma substância criada para
armazenar, perpetuar e difundir conhecimento e que se manifesta no
encontro entre pessoas no instante da situação narrativa.
Como artista, contando histórias para públicos de crianças e adultos
desde o início da década de 1980, minha pesquisa focaliza repertórios,
recursos internos e externos do contador de histórias, modos de narrar e
aspectos estilísticos, os diferentes renascimentos na narração oral em
vários lugares do mundo e a re lexão sobre as funções da arte narrativa nas
culturas tradicionais e na contemporaneidade. Todos esses conteúdos se
articulam na intenção que se traduz e se transforma ao longo dos anos na
experiência de narrar, em busca do corpo, da voz e dos ritmos que
constituem a presença do contador de histórias como veículo da arte da
palavra oral.
Durante as décadas de 1980 e 1990, comecei a narrar contos em
espaços pequenos e para públicos reduzidos, em escolas, livrarias e
bibliotecas, sempre acompanhada de diferentes músicos, a fim de
investigar as mais variadas combinações entre as melodias das palavras
dos contos e as melodias dos instrumentos musicais.
Nos últimos dez anos, questões narrativas decorrentes dessa prática
artística me levaram a montar dois espetáculos com contos que me
desafiaram a quebrar crenças e paradigmas, a arriscar o que eu não sabia
fazer, a ultrapassar modos enraizados de narrar, a dialogar com novas
sonoridades musicais. O primeiro foi Moio de pavio e, para o segundo,
escolhi o título Ninguém. Neste último, o personagem Nasrudin vai pelo
mundo em busca de si mesmo, como uma metáfora para um mergulho
profundo na procura por uma voz narrativa para além das que já havia
conhecido, em diálogo com músicos extremamente talentosos e afinados
com a arte da narração.
Nesse percurso, formei vários grupos de contadores de histórias em
que narradores e músicos se dedicaram às raízes da cultura popular
brasileira, criando conjuntamente espetáculos cuja forma sempre foi
composta pela costura de contos, músicas, danças, brincadeiras, adivinhas
e parlendas. A trilogia Sabenças – Raízes da alma brasileira É um dos
exemplos desse trabalho, com três espetáculos dedicados sucessivamente à
raiz africana, à raiz ibérica e à raiz indígena da nossa cultura popular. Mais
recentemente, já em outro grupo, apresentamos um espetáculo criado a
partir de contos dos livros de Ricardo Azevedo que se chama No meio da
noite escura tem um pé de maravilha90, nome retirado de um de seus livros,
com cenário desse autor e com a atuação de dois contadores-atores-
palhaços e três músicos.
Além disso, observando o renascimento da arte de contar histórias
no Brasil nos últimos tempos e as inúmeras necessidades de formação
desses novos contadores, concebi o Boca do Céu – Encontro Internacional
de Contadores de Histórias, cuja primeira edição, ainda com o nome de
Caravanserai, foi realizada em 1998, no Instituto Itaú Cultural, em São
Paulo. Em 2001, já com o nome de Boca do Céu, o encontro internacional
foi realizado no Sesc, assim como as edições de 2006 e 2008. Em 2010 e
2012, o encontro aconteceu na Oficina Oswald de Andrade, da Secretaria
de Estado da Cultura, com média de 4 mil participantes oriundos dos mais
variados estados brasileiros e de alguns países como França, Inglaterra,
Estados Unidos, Canadá, Burkina Faso, Peru, México e Bélgica.
Há muitas pessoas espalhadas pelo Brasil e pelo mundo que
conhecem variadas histórias, diferentes estilos e técnicas narrativas,
múltiplos tipos de atuação. O Boca do Céu reúne essas pessoas para que
seu conhecimento possa ser aprofundado, compartilhado e apreciado.
Trocas de experiências, técnicas, repertórios e conhecimentos em
diferentes contextos ampliam a visão sobre nossas raízes brasileiras, as
histórias que formaram nossos antepassados e o que elas nos ensinam a
respeito da nossa identidade e da multiplicidade cultural.
O objetivo desse evento é promover um espaço de re lexão, criação e
ação cultural, focalizando a arte da palavra, que se move continuamente
através da história e das diversas culturas humanas na forma de narrativas
orais. Destina-se a contadores de histórias, educadores, terapeutas,
artistas, estudantes, crianças e ao público em geral, utilizando-se da arte
da narração para criar um campo especial de comunicação entre pessoas
de diferentes faixas etárias e segmentos sociais.
A programação do encontro inclui espetáculos para escolas,
narração de contos por convidados estrangeiros e brasileiros vindos de
vários estados, narração para e por crianças, rodas de contadores de
histórias, sessões abertas de narração com inscrição prévia, narração
espontânea em espaços determinados e pesquisas de narração. Há ainda
oficinas selecionadas com a intenção de propiciar subsídios para o
trabalho em escolas, bibliotecas, hospitais, centros culturais, ONGs e outros
espaços em que se possa atuar narrando histórias. Palestras, debates,
relatos de experiências de contadores e relatos de trabalhos com contos em
diferentes espaços também são contemplados, além de aulas diárias de
danças brasileiras no início das atividades.
O Boca do Céu é parte de uma história sem fim que a gente nem sabe
qual é, mas pode imaginar. Faz pouco tempo, um aluno me enviou uma
pergunta por e-mail: “O que te move a ouvir e contar histórias?”. E eu
respondi:
As histórias costuram o sentido do mundo com fios de uma preciosidade inefável,
formando tecidos que quase sempre passam despercebidos por baixo das cidades, dos
monumentos, dos mercados, das casas e dos altares que as pessoas fazem e desfazem ao
longo da história humana.
Desde a primeira vez em que conversei com uma dessas histórias milenares,
percebi esse fio costurando o sentido da minha vida, de acordo com um desenho muito
antigo que vem vindo, tomando a forma atual do trabalho que me vejo destinada a
fazer, costurando meus encontros com as pessoas e com os mundos em que me é dado
viver.
Escutar e contar são dois e um só aprendizado difícil, belo, arriscado e impossível
de ser deixado de lado ou separado da costura do meu estar aqui de passagem. Que faço
sendo feita, que sirvo sem saber se me serve, que honro querendo me tornar honrada,
que ofereço sem que me pertença.
Contar e ouvir histórias é o que me move, como parte de um exercício de aprender
a ser uma pessoa melhor, menos barulhenta, menos espalhada à toa, desperdiçada. A
vida é muito curta para um desperdício deslumbrado e inconsequente, desamoroso. As
histórias me fazem viver a pulsação amorosa da urgência das perguntas sem resposta,
da direção desconhecida do pote de ouro que certamente se encontra do outro lado do
arco-íris, em algum lugar dentro de mim.
A intenção de compartilhar com os outros esse bem que o ouvir e contar histórias
me faz – ao participar da transmissão dessa eterna corrente de narrativas, espalhando
palavras sem ser à toa, desperdiçando o tempo inútil no instante das palavras
encantadas – me direciona e me faz acreditar que ainda não me contaram a história
toda que preciso aprender a escutar.

Sobre contar histórias populares


RICARDO AZEVEDO (SP)

Infelizmente, como sabemos, pessoas com menos de 1 ano de idade


também podem ter câncer. Certa vez, uma psicóloga do Grupo de Apoio ao
Adolescente e à Criança com Câncer (GRAACC) me contou que, nesses casos,
é preciso dizer para a criança, que ainda não sabe falar e quase não
entende nada: “Aqui é um hospital, e você tem uma doença grave chamada câncer.
Gente da sua idade tem grandes chances de ficar curada, mas, para isso, você vai ter
que receber um remédio na veia por quatro horas. É chato, mas não tem outro jeito.
Não se preocupe, eu vou ficar aqui, ao seu lado, o tempo todo”. De acordo com a
psicóloga, depois dessa conversa preparatória, a criança em geral fica
tranquila e aceita o tratamento. Sem essa conversa, ela chora durante as
quatro horas em que precisa receber o tratamento.
Esse relato indica que falar com o outro face a face – e contar uma
história séria face a face – pode ser algo complexo e repleto de energias,
instâncias, emoções e meandros humanos.
O assunto é amplo, e colocarei apenas alguns pontos para discussão.
Eles se referem principalmente à relação do contador de histórias com o
conto popular. Como sabemos, na maioria das vezes é esse o material
utilizado pelo contador de histórias em sua apresentação.

1. Conto popular é sinônimo de conto de encantamento, conto de fadas, conto


maravilhoso ou conto de trancoso. Isso significa dizer que ele é
assumidamente de ficção, uma história inventada e que, boa parte das vezes,
recorre a recursos do pensamento mágico: príncipes transformados em
monstros, princesas adormecidas há séculos, poções e instrumentos
milagrosos etc. É preciso não confundir o conto popular com casos ou lendas
populares. Estes, de alguma forma, sempre se referem a eventos que
aconteceram ou teriam acontecido de verdade, mesmo que muito tempo
atrás. O contador de histórias deve estudar esse assunto para saber com que
material está lidando e, assim, não correr o risco de criar uma imagem
perfeita para contar um caso, mas inadequada para contar um conto.
2. Não poucas vezes, os enredos dos contos populares descrevem um processo
de iniciação, como heróis que viajam para conhecer a vida e o mundo,
enfrentam e vencem incríveis desafios (por vezes, forças do mal, por vezes, a
própria morte) e acabam libertando e conquistando uma bela moça que antes
vivia prisioneira em um castelo prateado. Trata-se, entre outros assuntos, da
busca pela identidade e o autoconhecimento. Ou ainda meninas que, quando
se tornam moças, veem-se ameaçadas de morte pela própria mãe ou madrasta
e lançam mão de toda sua esperteza e tirocínio para poder escapar. Trata-se,
no fundo, da luta do velho contra o novo. Ambos os temas são arcaicos e
profundamente humanos. E o que dizer das princesas que nascem mudas e
recuperam sua voz quando encontram o homem por quem se apaixonam? E
dos gigantes que abusam de moças feitas prisioneiras em castelos? E dos
irmãos que competem entre si, mentem e traem? E dos pais que tentam
desposar suas próprias filhas? E dos heróis tolos que fazem tudo errado, mas
mesmo assim se dão bem? E das moças ou moços que não conseguem rir e se
dispõem a se casar com alguém que saiba alegrá-los? E dos pactos com o diabo
e seus preços? E dos heróis transformados em animais ou monstros em busca
de sua identidade perdida? é preciso que o contador esteja consciente e re lita
sobre os temas da história que vai contar. Sem isso, correrá o risco de
privilegiar partes desimportantes e dar ênfases equivocadas, desfigurando
completamente a por vezes preciosa narrativa que tem em mãos.
3. Sabemos que os contos populares tradicionais nasceram em culturas orais,
ou seja, são histórias criadas, recriadas e preservadas ao longo do tempo –
sempre com modificações – através da narração e da memória, recursos
típicos das culturas que não dispõem de instrumentos de fixação como a
escrita. Mas que recursos utiliza um narrador oral? Antes de mais nada, como
ensinou Paul Zumthor, temos:

• a adaptabilidade às circunstâncias: para poder comunicar-se, o contador deve


utilizar um vocabulário público e acessível e levar em conta a situação em que
está atuando. De repente, conforme o caso, ele pode perceber que deve
alongar ou encurtar e até mesmo modificar a linguagem que está utilizando
em função do contexto à sua volta;
• a teatralidade: um conjunto variado de recursos, como o tom exagerado, e
hiperbólico, o uso de redundâncias, o tom de confidência, as brincadeiras com
palavras (aliteração e trocadilhos), as rimas e os refrãos, os recursos enfáticos,
como a reiteração e a enumeração, as repetições de palavras, o uso de
alegorias e metáforas, o estilo coloquial etc., não para fazer experiências
formalistas com a linguagem, mas com o intuito de divertir, seduzir e prender
a atenção do ouvinte. Inclui-se aqui, naturalmente, a linguagem gestual:
movimentos, expressões faciais, olhares e gesticulação;
• a concisão: a utilização de uma linguagem enxuta, clara e direta, não prolixa ou
propositalmente complexa, e que fuja de descrições extensas, vozes passivas e
enfoques demasiadamente abstratos ou desnecessariamente histriônicos –
como exemplo, a teatralidade excessiva, as gritarias e as cantorias fora de
lugar. Há bastante diferença entre o contar histórias e a arte circense.

Relacionei aqui apenas alguns recursos, entre tantos outros que


existem. É importante que o contador os conheça e saiba utilizá-los e
empregá-los na medida certa para valorizar, antes de tudo, a história que
está contando, e não simplesmente sua performance durante a
apresentação.
Contar histórias é uma arte antiga, rica e complexa, e é preciso estar
preparado para lidar com ela. O ouvinte e a história a ser contada merecem
isso.

“Contos de gente” ou Em busca de outras


histórias91
RICARDO RIBEIRO (SP)92

MÚSICA E POESIA PARA CONTAR NOSSAS HISTÓRIAS

Em 2009, iniciei minha pesquisa de mestrado no programa de pós-


graduação em artes da Unesp, com o objetivo de fundamentar e
aprofundar um tipo de atuação cênica que eu vinha experimentando havia
alguns anos e que integra elementos de vários ofícios: do ator, do músico,
do contador ou cantador de histórias e do recitador de poemas. Para isso,
busquei referências nos griôs africanos e nos jograis medievais europeus,
vendo-os como trabalhadores da palavra e da música, (re)criadores de
memórias e imaginários por meio de repertórios poéticos, narrativos e
musicais. De seus universos e atuações, destaquei princípios éticos e
estéticos, vivenciando-os em dois processos criativos. É sobre o segundo
processo, no qual enfoquei especificamente a narrativa, que tecerei este
relato.
Inspirado na ação dos griôs historiadores – os que conhecem e
divulgam a genealogia e a história de seu povo –, comecei a me perguntar
com quem e de que maneira aprendemos a nossa história ou, melhor, as
nossas muitas histórias como brasileiros e latino-americanos. Lembrei-me
de quando trabalhei como professor de teatro em uma escola municipal
em Guarulhos, São Paulo, e, ao entrar em uma sala do quinto ano, deparei-
me com a lição que a professora de história havia escrito na lousa: “Os
bandeirantes, ao entrarem nas matas, encontravam muitos perigos, como
animais selvagens e índios”. Há um provérbio africano que diz o seguinte:
“Até que os leões possam contar as próprias histórias, as histórias de caça
sempre glorificarão o caçador”. Perguntei-me se os contadores de histórias
– e, de forma mais ampla, uma atuação cênica que também trabalha com a
narrativa – poderiam contribuir para divulgar outras histórias, outros
pontos de vista mais críticos sobre a nossa trajetória coletiva, modos de ver
que não fossem a reprodução das versões oficiais produzidas pelos
colonizadores, pelo poder estabelecido.
Em meio a esses questionamentos, tive contato com a história de
quatro jangadeiros cearenses conhecidos como Jacaré, Mestre Jerônimo,
Mané Preto e Tatá. Em 1941, eles viajaram durante dois meses em uma
jangada batizada de São Pedro, em homenagem ao padroeiro dos
pescadores, que partiu de Fortaleza em direção ao Rio de Janeiro, então
capital do Brasil, com o propósito de se encontrarem “ombro a ombro” com
o presidente Getúlio Vargas. Os jangadeiros queriam contar a ele,
pessoalmente, as miseráveis condições de vida e de trabalho dos
pescadores artesanais. Essa história, pesquisada pela historiadora
cearense Berenice Abreu93 em 2012, emocionou-me profundamente: fiquei
impressionado com a coragem, com o espírito de liberdade desses quatro
homens e, sobretudo, com o fato de um deles (Jacaré) ter se alfabetizado
para fazer a viagem, estimulado pelo desejo de escrever um diário de bordo
– o que pode ser lido simbolicamente como o desejo de contar a própria
história. Ao decidir trabalhar com essa narrativa, eu não imaginava que
dois anos depois eu moraria justamente na terra desses jangadeiros.
Até aquele momento, meu trabalho com canções, poemas e histórias
havia resultado em criações cênicas nas quais a narrativa era um dos
ingredientes. A partir dessa experiência, a narrativa passou a ser o eixo
principal, em torno do qual agreguei repertórios poéticos e musicais que
abordavam o universo do mar e dos pescadores. Desses repertórios,
destaco as “canções praieiras” de Dorival Caymmi, que trouxeram imagens
do cotidiano dos jangadeiros, suas esposas e filhos e sua relação com o
vento e o mar. Também pesquisei canções que dialogassem com outros
elementos dessa história. Esse é o caso de “Faroeste caboclo”, da banda
Legião Urbana94, da qual selecionei o último verso – “Ele queria era falar
com o presidente pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer” –, para
ilustrar o objetivo que guiou a viagem dos quatro pescadores, e de
“Massemba”, de Roberto Mendes e Capinan95, cujo verso “Vou aprender a
ler pra ensinar meus camaradas” serviu como comentário musical para a
iniciativa de Jacaré de se alfabetizar. Reconheço nesses procedimentos um
eco das “narrativas multigenéricas” analisadas por Thomas Hale96 ao
abordar epopeias narradas por griôs, compostas de louvações, genealogias,
contos, provérbios, poemas e canções que enfatizam, sintetizam ou
comentam determinados temas da história, marcando também a transição
entre seus diferentes episódios.

ITINERÂNCIA E DIÁLOGO

Assim como os quatro jangadeiros, eu também me desloquei para


contar essa história. A itinerância era, inclusive, um dos princípios
destacados dos estudos sobre os griôs e os jograis, bem como o propósito
de atuar junto a públicos que integrassem diferentes idades.
Inicialmente, realizei algumas intervenções no parque Ibirapuera,
em São Paulo. Como um pescador que joga sua isca e espera que algum
peixe a morda, posicionei-me em diferentes espaços do parque, usando
canções como forma de atrair a atenção das pessoas. Algumas paravam,
faziam comentários, compartilhavam memórias, e era a partir dessas
interações que eu inseria a história dos pescadores, escolhendo os
episódios que melhor dialogassem com o que elas contavam de si mesmas.
Foi o caso, por exemplo, de um grupo de mulheres que havia migrado de
Minas Gerais para São Paulo por melhores condições de trabalho e de uma
adolescente que desabafou estar insatisfeita com a própria vida – situações
que me deram ganchos para descrever a longa viagem dos jangadeiros em
busca de condições mais dignas de trabalho e de uma vida mais
satisfatória. Nessas intervenções, pude vivenciar as palavras de Walter
Benjamin, para quem o narrador “retira da experiência o que ele conta: a
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas
narradas à experiência de seus ouvintes”97.
No Chile, contei a história em um bairro da cidade de Viña del Mar
chamado Achupallas, em espaços como um centro cultural, uma biblioteca
comunitária e uma “junta de vizinhos”. Assim como os pescadores, os
moradores dessa población conheciam muito bem a realidade de habitar
uma cidade litorânea em que grandes condomínios e shopping centers
passaram a ocupar a praia, empurrando a população trabalhadora para os
cerros (morros). Ali experimentamos juntos, público e eu, certa
teatralização da história nascida espontaneamente durante a narrativa.
Para citar apenas um exemplo, alguns meninos começaram a brincar,
dizendo que eram os pescadores. Seus pais entraram no jogo e se
posicionaram como empresários que queriam privatizar a praia. Foi
emocionante quando, em meio a esse embate, os pais disseram,
arrogantes: “Pero nosotros somos empresários!” – e os meninos responderam,
altivos: “Y nosotros somos pescadores!”.
Em Minas Gerais, em um vilarejo chamado São Gonçalo do Rio das
Pedras, contei a história em três capítulos diários, a exemplo dos griôs e
dos jograis ao lidarem com narrativas muito extensas. Por coincidência,
era a última semana de uma novela que tinha grande audiência, o que
gerou comparações bem-humoradas com a narrativa em capítulos. “No
entanto”, eu dizia às pessoas, “aqui a novela é ao vivo e com a participação
de todos”. Ao longo dos capítulos, intensifiquei o diálogo e a teatralização
das experiências anteriores, acrescentando ao papel de narrador a postura
de problematizador da história. Para isso, ao narrar certos momentos-
chave que, a meu ver, continham sementes mobilizadoras de
questionamentos, lançava perguntas às pessoas, abrindo espaço para que
elas expressassem vivências e opiniões que eu passava, então, a incorporar
aos episódios narrados. Em muitos desses momentos, o diálogo não
aconteceu apenas comigo, mas também entre as pessoas. Como mediador,
meu desafio maior foi ficar atento para perceber até que ponto deixar-me
levar pelo inusitado ou retomar a condução da narrativa, evitando que ela
se perdesse. Metaforicamente, talvez eu tenha agido como um mestre de
jangada que usa os ventos e as ondas a favor da viagem, buscando a todo
instante o equilíbrio necessário para não deixar a jangada virar.
A mola propulsora para essas formas mais abertas de narrar, que
passei a nomear “narrativas dialogadas”, foi o conceito de performance de
Paul Zumthor98, que a via como “obra plena”, resultante da interação entre
intérprete, texto, público e espaço, incluindo aqui os aspectos físicos e
sonoros desse espaço e as circunstâncias em que o encontro se dá. Para
mim, a beleza desse conceito reside na percepção de que a obra transcende
a ação do artista, abarcando o próprio momento – único, singular – do
encontro compartilhado por meio da arte.
“CONTOS DE GENTE”

Finalizada a pesquisa99, e passados já alguns anos, percebo um


desdobramento desse processo, para o qual tenho direcionado algumas de
minhas ações: o trabalho com histórias de vida – ou “contos de gente”,
como tenho gostado de chamar, em um contraponto respeitoso aos contos
de fadas. Nesse conjunto é possível incluir a própria história do contador e
de pessoas ou mesmo lugares significativos em sua vida. Essas narrativas
podem nos ajudar a valorizar trajetórias tantas vezes anônimas,
submergidas pela história dos “importantes”, além de possibilitar um olhar
mais próximo, vivencial, sobre os tempos e os espaços em que habitamos e
as pessoas com quem (con)vivemos.

A magia de um contador de histórias me encantou


ROSARIA GARCIA COSTA (RS)

Era uma vez uma menina tímida que tinha vergonha de falar em público
ou de conversar com quem não conhecia. Ela gostava de se esconder atrás
de um livro. Neles, ela, que só saía de casa para passar férias na casa dos
primos, viajava por lugares diferentes, conhecia outras culturas e vivia
muitas aventuras. A menina Rosária Garcia Costa cresceu, casou e teve
filhos. Ela lia histórias de livros e contava outras que inventava para eles.
Algum tempo depois, Rosária começou a cursar biblioteconomia e, na
faculdade, descobriu a “hora do conto”. Ela gostou da experiência e decidiu
fazer o mesmo: levar crianças a viajar através de um livro.
Um dia, em um seminário, Rosária assistiu à contação de histórias
de Francisco Gregório Filho. Ele não se apoiava em um livro, como ela fazia
na “hora do conto”. Ele liberava as palavras da história no ar com a voz, as
mãos, o olhar, o corpo todo, e o resultado era mágico. Naquele momento, a
magia do contador de histórias a encantou, e tão encantada ficou que quis
sair a contar histórias também. Na mesma ocasião, Rosária participou de
sua primeira oficina de contação de histórias. Depois, participou de
oficinas com diferentes contadores de histórias nos seminários de 1996,
1997 e 1998 e, bibliotecária já formada e com experiência narrativa, Rosária
resolveu enfim repassar o que havia aprendido em oficinas e minicursos.
O melhor dessa grande experiência foi a menina ter notado que a
timidez havia ido embora e que agora ela era Rosária, a bibliotecária e
contadora de histórias que se apresentava em bibliotecas, auditórios,
praças e palcos e contava histórias em diversos eventos.
A parceria com os livros e as histórias sempre fez parte da vida de
Rosária, que atualmente é membro da Red Internacional de
Cuentacuentos (RIC) e atua na biblioteca pública municipal de Venâncio
Aires, no Rio Grande do Sul, espaço em que realiza saraus literários e
temáticos para um público de todas as idades. Além disso, conta histórias
em feiras de livros, escolas, eventos culturais e até mesmo na rádio local.
A técnica narrativa utilizada procura envolver ao máximo o ouvinte
na história, transportando-o para outra realidade e fazendo-o vibrar com
ela. Assim, o público descobre as dificuldades do mundo e a busca de
soluções por meio dos problemas enfrentados pelas personagens das
narrativas.
Por acreditar que, para contar bem uma história, é preciso
conhecimento (pois os valores artísticos, linguísticos e emocionais da
narrativa dependem da forma como o narrador libera as palavras), Rosária
está sempre em busca de histórias que a conquistem, para só depois
prepará-las e contá-las ao público. Essa preparação consiste em ler e reler o
texto, procurando entonações e gestos que ajudem a construir a história
no imaginário do ouvinte. Por fim, ainda é preciso contar a história em voz
alta para ouvir como as palavras soam ao serem liberadas no ar.
Na maior parte das vezes, Rosária conta histórias publicadas em
livros, que são apresentadas com poucos recursos cênicos ao público – luz e
som são usados somente quando a apresentação ocorre em um palco. Ela
prefere narrar contos de fadas e histórias de bruxas, deixando luir a
emoção pela voz e tornando verdadeiro tudo o que diz.
Contar histórias é uma arte que deve dar prazer a quem conta e a
quem ouve. Uma história deve ser contada com emoção, e não
simplesmente apresentada. O contador tem de fazer o ouvinte sentir-se
dentro da história, identificar-se com as personagens e viver seus
problemas, viajar para o espaço-tempo da narrativa. O ouvinte precisa
receber do contador as ferramentas para conseguir transformar uma
praça no Sítio do Picapau-Amarelo, o pátio de uma igreja nas margens do
rio Jordão, o salão de uma livraria na torre do castelo, uma sala de aula na
Terra do Nunca. Para concluir, eis a receita testada e aprovada:

Receita que Rosaria repassa para quem quer contar histórias


Ingredientes
1 tema
1 ou mais personagens
1 enredo
1 tempo
1 cenário
Imaginação, memórias e emoções a gosto

Modo de preparo
Comece com “era uma vez”, no tempo em que sua imaginação determinar. O
cenário terá as peças que puderem ser encontradas no seu baú de memórias.
As personagens, ao se reunirem na trama, farão a história crescer. Junte
emoções até que evoluam ao ponto alto do enredo. Quando a história estiver
pronta, basta reunir um grupo de crianças, jovens ou adultos em um local
agradável, para que se crie um clima de fogueira, de aconchego de colo de avó,
de embalo de mãe. Sirva a narrativa pela boca de um contador de histórias.
Com certeza todos serão felizes para sempre.

Diamantes em cacos de vidro


SANDRA LANE (MG)100

Os contos são fragmentos espalhados pelo chão de uma joia que se quebrou, e só olhos
perspicazes podem descobri-los. [IRMÃOS GRIMM]
Como muitas crianças, enfrentei a dor da separação dos meus pais. Para
ajudar na sobrevivência, minha mãe teve de trabalhar longe de mim, e, por
esse motivo, aos 6 anos de idade fui morar de favor em uma casa onde
viviam mais quatro crianças. Por ser a mais velha, caía sobre os meus
ombros a responsabilidade de olhar as demais. Eu tinha de ser o
porquinho ajuizado Pedrico da história “Os três porquinhos”. Mas, na
verdade, eu estava mais para Palhaço ou Palito, os porquinhos que só
queriam brincar.
Ainda bem que vivíamos em um tempo em que criança podia brincar
na rua. Assim, meus amiguinhos de infância e eu podíamos recolher, nas
ruas, saquinhos de leite, jornais velhos e estrume para serem trocados por
picolés de suco ou leite e pão para o lanche da tarde. Nessas andanças, com
a astúcia de Pedro Malasartes eu encontrava partes de um grande tesouro
espalhado pelo chão: objetos velhos e sujos que passavam a ser
protagonistas de criativas histórias que somente a minha imaginação e a
da minha pequena plateia conseguiam ver. No quintal de terra batida, à
sombra de um limoeiro, eu distraía a meninada contando histórias
recriadas da radionovela que às vezes eu escutava pelo radinho de pilha da
dona da casa onde eu morava. Eu lembro que a plateia, sempre muito
atenta, enxergava comigo diamantes nos caquinhos de para-brisa
quebrado, olhos mágicos do Cavalo Dourado em botões enferrujados e até
mesmo um cinturão mágico de um rei gordo e poderoso em uma fivela
antiga.
Durante a adolescência, a contadora de histórias que habitava em
mim dormiu como a Bela Adormecida, mas, em 1995, fui despertada para a
arte de narrar profissionalmente após ganhar o primeiro lugar em um
concurso de contação de histórias. Paralelamente a esse ofício, tornei-me
professora primária em uma região de grande vulnerabilidade social.
Desde então, uni a arte de ser professora à de contadora de histórias e
passei a desenvolver vários projetos de contação de histórias a partir da
sala de aula. O Conto da Aranha foi o primeiro projeto. Por meio de um
conto acumulativo africano, consegui despertar uma turma de alunos com
grandes dificuldades cognitivas para o prazer de ler e escrever. Três anos
depois, alguns desses ex-alunos me procuraram, interessados em
continuar ouvindo e contando histórias. Dessa demanda, nasceu o projeto
Passaredo Contadores de Histórias. Ao final de doze anos de trabalho
voluntário, centenas de pessoas haviam integrado o projeto por um curto
ou um longo período. Em 2000, o Passaredo recebeu da Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte o troféu “BH em defesa da vida” e participou
de dois CDs infantis.
Em meu cotidiano escolar, eu percebia que muitas crianças e jovens
tinham a autoestima baixa por não se reconhecerem como negras e índias.
Assim, fiz um mergulho na nossa cultura, na tentativa de valorizar
personagens do Brasil com destaque para os povos africanos e indígenas.
Dessa pesquisa, configurou-se o projeto Histórias da Nossa Gente, que,
além do livro, do CD101 e do trabalho acadêmico, deu origem a um
espetáculo de contação de histórias em parceria com o músico Vilmar de
Oliveira. O livro, que está na terceira edição, faz parte do Programa
Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), do Ministério da Educação (MEC).
O projeto Primavera de Histórias nasceu a partir do incentivo que
dei aos meus alunos para que pesquisassem, com seus parentes, vizinhos e
amigos, as brincadeiras, simpatias, cantigas e histórias da tradição
popular. Posteriormente, o projeto originou os livros e CDs Primavera de
Histórias e Primavera de Histórias 2102, que buscam dar cor e voz a
contadores de histórias natos de mais de dez cidades mineiras.
Com o escultor Leandro Gabriel, coordeno há vários anos o projeto
Escultórias, que busca promover a inclusão social, artística e cultural de
comunidades com baixa renda no universo da criação artística por meio
das esculturas e da arte de contar, ouvir, criar e recontar histórias. Esse
projeto itinerante tem três livros publicados103 e, em 2009, foi finalista do
IX Prêmio Nacional Arte e Escola Cidadã. O Escultórias foi transformado
em ONG na periferia de Belo Horizonte, e o espaço de sua sede é
disponibilizado para o desenvolvimento de atividades plásticas e de
contação de histórias para os muitos bairros da região.
Desenvolvo ainda outras atividades ligadas à contação de histórias,
como oficinas, seminários, palestras, aulas-espetáculos e apresentações
artísticas para públicos de diferentes faixas etárias e classes sociais em
hospitais, escolas, praças, shoppings centers, centros comunitários, teatros,
televisões, rádios, universidades, ginásios, empresas, clubes, eventos
religiosos e festas populares.
Tudo isso me faz feliz e essa é a minha vocação que partilho, unindo
sensibilidade, paixão e consciência, elementos que norteiam a minha vida,
enraizada no fantástico mundo das histórias. Não sei dizer se sou uma
contadora de histórias professora ou uma professora contadora de
histórias. Apenas sei que ainda mora em mim aquela menina que
conseguia ver diamantes em cacos de vidro.

Isso é teatro ou contação de histórias?


SILVESTRE FERREIRA (SC)104

A pergunta “Isso é teatro ou contação de histórias?” já nos foi feita e


simplesmente nos deixou diante de certo questionamento. As fronteiras já
haviam nos incomodado em algum momento da nossa trajetória de grupo
de teatro que trabalha com narrativas e com espetáculos teatrais. Não
deixamos de re letir sobre essas fronteiras, mas não deixamos de fazer
uma coisa ou outra por causa dessas re lexões, muito pelo contrário: elas
nos incitam a continuar nosso trabalho. O trabalho artístico não deve
curvar-se a limites e patrulhamentos formais.
Acreditamos que mesmo um contador de histórias que não seja ator
acaba por “performar” de alguma maneira. Quando contamos, ainda que
uma história cotidiana, enfatizamos, damos timbres diferentes para
determinadas partes dela.
Na trajetória e experiência de contação da Dionisos Teatro, já
experimentamos diversas formas de fazer a história chegar ao ouvinte. As
técnicas de teatro não são nosso foco principal, mas são ferramentas para
construirmos um contato genuíno com quem recebe as narrativas.
Portanto, não nos preocupamos com as fronteiras, porém, destacamos
nosso desejo de fazer com que o texto narrado seja, de algum modo,
recebido integralmente pelo espectador.
Uma história que nos acompanhou durante muito tempo foi “A sopa
de pedras”, de Pedro Malasartes, conto popular recontado por Ruth
Rocha105. Contamos essa história com quatro atores. Estabelecemos para
ela o sistema de curingas, tão utilizado por Augusto Boal em seu Teatro de
Arena. Na história, temos duas personagens: Pedro e a velha. Todos os
atores narram, todos fazem o Pedro e todos fazem a velha. Utilizamos dois
objetos-signo para as personagens: um lenço de cabeça para a velha e um
chapéu para Pedro. Todos se revezam nas partes narrativas: quem está
com o chapéu passa a ser Pedro, quem está com o lenço passa a ser a velha.
Essa forma criou leveza e dinâmica ao jogo, no qual cada ator contador
desenvolve seu próprio jeito de fazer a velha ou o Pedro sem se limitar a
simplesmente imitar o colega de contação. Criamos um formato em que a
história contada chega à plateia de forma contundente e oferece outro
nível de narrativa, em que as expressões corporais e a troca constante de
papéis geram um interesse contínuo na performance dos atores. Mantemos
o texto na íntegra, sem fazer adaptações para o formato dramático. Apenas
encenamos o que já está em diálogos no texto e contamos as outras partes
de forma direta para a plateia.
Outro aspecto extraído do teatro, do qual nos apropriamos para
contar em grupo, é o estabelecimento de uma regra simples em que o
contador que está com a palavra é o foco central. Quem está com a palavra
a orienta diretamente para o público. Quando um contador passa a vez
para outro, ele joga o olhar para o novo contador, e todos os contadores
também passam a olhar para este, não somente com os olhos, mas com
uma atitude corporal direcionada para quem conta. Esse método,
inspirado na triangulação da commedia dell’arte, nos dá limpeza e foco na
narrativa. Quando o ouvinte da história olha para algum dos contadores
que não estão contando e, com isso, pode ser distraído, ele percebe pela
expressão corporal dos contadores que o foco está em quem tem a palavra
naquele momento. O centro, portanto, é a palavra que está sendo dita. O
centro não é a encenação, mas o texto. Tudo o mais que é utilizado tem a
função de dar brilho à história escolhida.
Para o elenco da Dionisos, o que nos coloca na condição de
contadores de histórias é o fato de que, diferentemente dos outros
espetáculos em que o teatro é o foco, na contação de histórias nossa fala é
voltada diretamente para o olhar do interlocutor. Acreditamos
profundamente que não basta um olhar rasante sobre toda a plateia. É
necessário que, na maior parte do tempo, o olho do contador esteja em
contato verdadeiro com algum espectador. É na busca dessa verdade e
nesse interesse real por quem ouve que reside o nosso maior desafio. De
alguma maneira, isso nos conforta em relação aos con litos da fronteira
entre o teatro e a contação de histórias.
Um risco que se corre com atores que dominam as técnicas teatrais
no processo de contar histórias é o de passar do limite na encenação,
acabando por deixar o texto em segundo plano. Para evitar isso, o olhar de
fora, do diretor do grupo, ajuda no processo do que chamamos de limpeza
da narrativa, ou seja, limar os excessos, enfatizar determinados momentos
da história e aprender a usar o timing que o jogo teatral dá ao ator a serviço
dela. É necessário que o contador saiba que, às vezes, mais que o momento
de fala, é importante explorar os silêncios na narrativa. Aprender a
respirar e deixar a história respirar. Deixar o ouvinte preencher esses
espaços de tempo com seu repertório de vida. Acreditar que o menos pode
ser mais. Enfim, perceber que a história, quando está sendo contada, está
em algum lugar entre quem conta e quem a está recebendo de presente.
Aprendemos, nesse percurso, a entender a força das histórias e sua
capacidade de gerar lugares de sensibilidade e de espírito de aldeia.
Aprendemos que, quando contamos, multiplicamos. Tornamo-nos
irmanados com quem recebe nossas histórias.
As narrativas carregam ancestralidades. Com elas, conectamo-nos
com o nosso passado e nos lançamos fortalecidos para o futuro. De algum
modo, somos o que contamos. As histórias escolhidas por nós para ser
contadas não falam apenas dos autores que as criaram: elas acabam de
certa forma falando um pouco do que somos ou de quem gostaríamos de
ser.

“Escuta só”: era uma vez há quinze anos


SIMONE ANDRÉ (ESCUTA SÓ CONTADORES DE HISTÓRIAS) (RJ)106
Compositor de destinos,
tambor de todos os ritmos,
Tempo, tempo, tempo, tempo. [CAETANO VELOSO]

Com quinze anos de existência, o Escuta Só Contadores de Histórias


continua a compartilhar as paixões pela leitura e pelos encontros.
Acompanhados por palavras, sons e imagens, adentramos espaços de
crianças e adultos cada vez que nos reencontramos com uma história.
No tempo do “era uma vez”, estávamos no Programa de Leitura da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Como leitores e agentes
de leitura atuantes em diversas comunidades, estabelecemos nosso elo
com a literatura. O trabalho, que incluía contação de histórias e elaboração
de práticas e dinamizações de leitura, foi apaixonante. Os encontros do
projeto valorizavam uma relação com a leitura e a literatura em espaços
para além da escola. Havia também algo de mágico naqueles encontros:
uma espécie de liturgia cotidiana em nossas trocas literárias, menos pela
canonização das obras e mais pela experiência viva dos sentidos. Essa
sensação foi comum a tal ponto que fez surgir o grupo Escuta Só
Contadores de Histórias, e assim nos mantivemos, para além do vínculo
com a universidade e incentivando a leitura em ambientes diversos.
O grupo dá voz aos textos, revive narrativas em uma época de
capitalismo cognitivo e vai contra a ideia de um conhecimento produzido
para ser apreendido. Tantas mudanças do olhar nos habituaram às
condições de ação, totalmente voltadas para os meios de produção, e,
assim, esquecemo-nos das práticas que nos levam ao conhecimento. É com
o partilhar e os encontros que aprendemos, conhecemos e nos
(re)conhecemos nos olhares, entre os ouvidos e nas histórias.
Em locais onde as crianças não têm contato com histórias literárias,
deparamos com olhares mudos, difíceis de espelhar o outro real que as
narrativas podem suscitar. São encontros assim que insu lam as
discussões durante nossas reuniões. Eles nos instigam a compor
pensamentos sobre a necessidade da verdadeira comunicação em um
mundo de mercadorias e da recriação de uma ação comum que parta da
comunidade, do imaginário e do cotidiano e possa servir como resistência
às tantas imagens que nos são impingidas diariamente.
Nos olhos emocionados dos adultos da comunidade do Caju, no Rio
de Janeiro, muitas infâncias são recuperadas pelas narrativas de outros
tempos. Nesse mar de histórias, também pensamos sobre as
singularidades e os fios que perpassam pelas narrativas. As informações e
as propagandas são tantas que nos perguntamos: onde se cria o
imaginário? Se a criação de um imaginário comum não tem partido mais
das expressões individuais ou das experiências, mas das representações
trazidas pelos meios de comunicação de massa, talvez a contação de
histórias possa contribuir para a constituição de um espaço destinado a
experiências comuns e singulares.
Contamos histórias nas diferentes comunidades do Complexo do
Alemão e percebemos os muitos mundos que habitam um mesmo espaço.
Lá, deparamos com a solidariedade e com a organização sem igual entre as
crianças que partilhavam as histórias e os materiais nas oficinas. No
Maranhão, encantamo-nos com a riqueza do reconto das histórias locais.
Nas apresentações, fizeram-nos redescobrir Monteiro Lobato pelas vozes
das crianças que partilhavam conosco as narrativas e adiantavam as
perguntas e questionamentos das personagens do Sítio do Picapau-
Amarelo. Tantas infâncias, tantos sujeitos e tantas histórias nos levam a
querer seguir sempre, pois percebemos a narração como um
compartilhamento de olhares e de leituras de mundo.
É na musicalidade da voz, esse ritmar de respirações e pulsar de
olhares repleto de imagens internas, que a contação de histórias recria
outro tempo, distante dos cortes e das imagens prontas recebidas
diariamente pelos meios de comunicação. Esse é um tempo de partilha da
experiência e comporta construções simbólicas. O tempo de cada ação
narrativa nos leva a sentidos e a sentimentos e, assim, procuramos os
silêncios que são acompanhados de respiração e os sons que acalentam e
estendem o tempo, ajudando-nos a desenhar com as palavras. É na
combinação dos elementos, parceiros nessa dança com o tempo, que,
enredados, formamos o tecido, a urdidura dos sentidos e das sensações
que as histórias trazem em si.
Continuamos a contar histórias, a instigar o imaginário e a ser
instigados por ele, recriando sentidos e trajetórias e reescrevendo finais
possíveis para as narrativas que nascem nos ouvintes a cada encontro.
Com as histórias, espalhamos enredos que podem valorizar cada vez mais
o humano e o encontro, uma propaganda de preceitos humanitários e
igualitários de uma nova humanidade fecunda nas mentes do futuro.

A história de quem conta histórias


SIMONE GRANDE (AS MENINAS DO CONTO) (SP)107

O grupo As Meninas do Conto108 cria espetáculos a partir da relação com


as narrações de histórias e textos de tradição oral109. Para isso, vale-se de
diversos processos para as adaptações e encenações de seus espetáculos:
improvisações, estudos de textos e versões da mesma história, criação de
canovaccio110, pesquisa de técnicas teatrais (como a máscara, o clown e o
bufão) etc. O narrador está presente em todas as criações do grupo, e o
ator desmascarado diante do público dialoga com ele, buscando a verdade
da palavra e a palavra com verdade, estabelecendo, assim, uma relação sem
barreiras entre espectador e artista.
O grupo foi fundado em 1996, durante o projeto de narração de
histórias Planeta das Histórias, da editora Ática. O trabalho com a editora
se estendeu até 1998 e ampliou a experiência do grupo com a narração,
pois eram realizadas apresentações diárias de narração de histórias para
alunos que participavam do projeto.
Em 1998, a equipe foi convidada a coordenar a Sala do Conto, um
projeto inovador do Grupo Pão de Açúcar. Tratava-se de um supermercado
para crianças, com o objetivo de educar o consumidor do futuro. As
narrações eram realizadas diariamente, e outras atrizes foram convidadas
a participar do projeto.
Outros trabalhos com narração aconteceram entre 1998 e 2000 no
Museu de Arte Moderna de São Paulo, com o atendimento a escolas e ao
público em geral. Na época, houve uma grande mudança na forma como
ocorriam as apresentações. Começamos a fazer sessões de narração com
duração de cinquenta minutos e somente com histórias, diferentemente
do que ocorria até então, ou seja, sessões de trinta minutos com histórias e
brincadeiras.
O grupo se dedicou à narração de histórias em diversos projetos,
criando narrações em vários formatos e narrando para crianças e adultos.
Essa experiência in luenciou diretamente as criações teatrais, com o ator
tornando-se ator-narrador, saltando da ficção e se comunicando
diretamente com o público. Como Pavis comenta: “o contador […] narra
sua ou outra história, dirigindo-se diretamente ao público, evocando
acontecimentos através da fala e dos gestos, interpretando uma ou várias
personagens, mas voltando sempre ao relato”111.
Em 2002, o grupo decidiu criar espetáculos teatrais a partir dos
contos tradicionais. A princesa Jia e Por que o mar tanto chora estrearam nesse
mesmo ano.
Na adaptação de contos tradicionais para a linguagem teatral, as
vontades principais eram a de manter o narrador em cena e personificar as
personagens pela composição física, com a utilização de um adereço ou
troca de figurino, e a de pesquisar a construção do texto dramatúrgico e
outras linguagens em cena.
Em 2002, quando A princesa Jia estreou no teatro Cacilda Becker, teve
início a criação de Por que o mar tanto chora, com estreia agendada para o
mesmo ano, no Centro Cultural São Paulo. Essas histórias já eram
conhecidas por nós, pois já as havíamos apresentado em 2000. Cada
história tinha a duração de vinte minutos, com três atrizes e um músico
que fazia pontuações percussivas e nos acompanhava nas canções, criadas
especialmente para o trabalho. Esse formato inicial não foi mudado, mas o
texto foi revisto, e convidamos um cenógrafo e um figurinista para criar o
conceito visual da peça.
Em suas primeiras criações, o grupo não contou com um diretor,
função que era realizada pelas atrizes. Tratava-se de algo novo, já que a
figura do diretor é quase indispensável no teatro. O texto e o processo
criativo muitas vezes podem ser coletivos, mas o diretor é fundamental
para organizar as ideias. Já no universo da narração, é comum o contador
de histórias não precisar de alguém que ocupe esse cargo.
O grupo fez quatro espetáculos sem um diretor: A princesa Jia (2002),
Por que o mar tanto chora (2002), As velhas fiandeiras (2004) e Papagaio real
(2005). Necessitávamos, porém, de uma supervisão artística, realizada
nesses trabalhos por Eric Nowinski112. Sua função era a mesma do
observador, exigida em nossas criações de contação de histórias. Ele não
acompanhava todos os ensaios, mas comparecia eventualmente para
avaliar o que ocorria durante esse período. Amigos e crianças também
eram convidados para assistir aos ensaios.
Em As velhas fiandeiras, a narração ficou a cargo das personagens da
peça. Em vez de uma atriz assumir a narração do que se passava – como
em A princesa Jia e Por que o mar tanto chora –, o grupo decidiu que a história
poderia vir por intermédio das personagens. Essas falas-narração
ocorriam após um congelamento físico das outras personagens em cena, o
que permitia um distanciamento para a narração. Dessa forma, o épico
acontecia dentro do dramático, como uma pequena pausa narrativa.
Em Papagaio real, pesquisamos a máscara e a narração em coro. As
irmãs Um Olho e Três Olhos, personagens do espetáculo, foram criadas a
partir do trabalho da meia máscara, como na commedia dell’arte.
No espetáculo BUUUU!!! A casa do bichão (2008), chamamos Cristiane
Paoli Quito113 para a direção. Esse momento importante para o grupo foi
guiado pela vontade de experimentar elementos narrativos. O principal
deles era a narração feita pelas atrizes, que, assim, não assumiriam
personagem alguma para narrar. Isso abriria a possibilidade de o ator-
narrador dirigir-se diretamente ao público para contar a história.
Pedro Palerma e outras histórias (2009), dirigida por mim, foi a
primeira montagem sem um fio narrativo, criada como uma colcha de
retalhos, com cinco histórias distintas entre si.
Em Bruxas, bruxas e… mais bruxas! (2012), com direção minha e de
Eric Nowinski, Rubens Rewald114, que assinava a dramaturgia, propôs a
criação de uma moldura dramática para que as bruxas pudessem contar os
três contos escolhidos. Criou-se, então, um encontro anual de bruxas no
qual as cenas eram dramatizadas. A narração surgia nas histórias contadas
pelas bruxas, sob a ótica delas; assim, quando o herói vencia, elas ficavam
arrasadas, confirmando sua impossibilidade de enganar as crianças.
O trabalho do grupo As Meninas do Conto foi da prática com a
narração de histórias às criações teatrais. Esse processo apontou as
diferenças e as semelhanças entre essas duas linguagens, que auxiliaram
uma à outra, sem imposições e com a ideia da expansão e da liberdade de
experimentar um encontro entre elas.

As cores do som
TINA DE SOUZA (PR)115

PRÓLOGO

Era uma vez uma menina muito legal que tinha uma avó ainda mais
legal, pois essa avó sempre lhe dava carinhos e beijinhos (sons) […] Vou
levar lores para a minha avó!” (olha para as crianças) Nossa, quantas lores!
(as lores são as crianças) Quantos beijinhos, uma rosa, um cravo, uma
hortênsia, um girassol! […] (cantando) Pela estrada afora eu vou bem
sozinha/ levar esses doces para a vovozinha/ ela mora longe e o caminho é
deserto […].

A CAMINHADA

Em 1998, o musicista Marco Antônio Fonseca e eu decidimos formar


uma dupla para contar histórias. Nascia, assim, Abacate e Mexemelow: eu
contando histórias e fazendo sons, ele tocando violão e fazendo
personagens.
A mania de contar histórias está comigo desde sempre, pois escolhi
fazer teatro há muito tempo (ou talvez o teatro tenha me escolhido). E o
que é fazer teatro senão uma grande contação de histórias com atores,
figurinos, cenário, luz, adereços e maquiagem? Venho do teatro de rua, do
teatro popular, no qual o drama é celebração e a plateia é cúmplice
(aprendizado do mestre Laerte Ortega).
Meu processo de criação na contação de histórias perpassa pela atriz
que sou, a começar pela criação de uma personagem para contar histórias.
Mexemelow e sua caracterização nasceram assim, com a escolha do
figurino e da maquiagem e com o ludismo da voz da personagem ao cantar
e dançar. A música regia nossa orquestra, dando nuances às histórias e
fazendo nossa ligação com as crianças ao cantarmos juntos uma cantiga e
ao criarmos a dramaturgia das histórias inventadas no momento.
No entanto, o tempo dança conosco, e a cada dança surge um novo
aprendizado. Com novos parceiros, outras experiências dão espaço a
outros processos de criação. Foi assim com o músico Beto Collaço. Na nova
dupla, ainda permanecia a personagem contadora, porém, com algumas
necessidades diferentes para narrar as histórias. A música permanecia
com a mesma intensidade, mas, a partir da pesquisa e da transformação
de cantigas populares, criaram-se canções para as histórias a serem
contadas. Parece-nos que as histórias pedem música, e as novas
necessidades foram então saciadas por horizontes musicais, pela
pontuação dos sons na dramaturgia das narrativas.
Mas a caminhada é longa, e outros companheiros surgem nessa
viagem. Com Guga Cidral, vieram outros olhares, outras percepções do ato
de contar. Ator e arte-educador, Guga trouxe em suas malas muitos
objetos e tecidos que eu não utilizava. Como Guga era Guga, o contador,
comecei a ser Tina, a contadora – e, portanto, não era mais a contadora
Mexemelow. Já com Lucinei Paes, grande amiga e parceira no teatro,
aprendi como a simplicidade é importante na contação de histórias.
Atualmente, estudo violão para poder tocar nas apresentações.
Quando tenho a companhia de um músico, aproveito ao máximo a sutileza
que a música traz para as histórias. Além disso, valho-me também de
instrumentos musicais. Tenho ainda uma mala com muitos tecidos que
podem ser castelos, rios, bosques, mantos, personagens etc. Nessa seara da
contação de histórias, o mar das invenções será sempre cheio de ondas,
sereias, peixes e tudo o mais que a imaginação permitir. Para contar e
compartilhar narrativas, basta amar e conhecer as histórias elencadas.
Assim, tudo o que a narrativa permitir será verossímil.
O fio da história no fio de uma vida
TININHA CALAZANS (SP)

Quando alguém me pergunta como, quando e por que me aventurei pelo


mundo das histórias, embarco nas águas das reminiscências. Levada pelas
correntezas, vejo-me criança e mergulhada no mundo do faz de conta. Eu
costumava transportar-me a esse reino que ainda encanta minha alma.
Dessa época, guardo relíquias, como o vestido de balé que conta sobre a
dança que tomava o meu coração de menina. À noite, na sala, ao som das
músicas clássicas que meu avô gostava de escutar, eu bailava livremente.
Piruetando, saltitando, caindo sobre o tapete e pulando da poltrona ao
sofá, eu seguia por lorestas, mares, rios e palácios, sempre na companhia
de fadas, príncipes, princesas e bruxas.
Sinto saudade das brincadeiras: pulando as pedras do quintal, sem
pisar na linha, seguia por terrenos perigosos; andando no parapeito do
muro, beirava precipícios; no terraço de cerâmica, jogávamos o “mar
vermelho” sem saber que mar era aquele, mas sentindo a força do seu
símbolo; e, ainda no terraço, voava a rede, transformada em carruagem,
em barco, em casinha. Essa rede me embalava ao som do acalanto da voz
do avô: “bão-balalão, senhor capitão, espada na cinta, ginete na mão, em
terra de mouro morreu seu irmão, espada na cinta, ginete na mão”. Já na
companhia da mãe, contemplando a lua que prateava o céu, o mundo e a
alma, dizíamos à meia-voz: “vovozinha, vovozinha, me dá um pote de mel
com farinha”. Eram versos, rimas, ritmos e cantigas que transmitiam e
sedimentavam o poder da fala, da palavra que se faz sonora, cadenciada,
manifesta em tons, timbres e intenções que modelam o ser.
Havia ainda a roda de conversa, o momento de brincar em família.
Os jogos eram comandados pela mãe, que tinha alma de criança e sempre
falava da importância de alimentar a “alma que se maravilha”. A televisão
ainda era vista em comunidade, reunindo vizinhos que não tinham a
invenção. Eu me encantava com os episódios do Sítio do Picapau-Amarelo e
com os filmes introduzidos por uma atriz com vestidos de princesa. As
histórias contadas na beirada da cama, por sua vez, foram uma
experiência inesquecível. Assim, eu adentrava pouco a pouco a magia das
palavras.
Quando, enfim, desvendei o mistério das letras, toda semana
comprava um livrinho na banca. Eram historinhas semanais, pequenas,
singelas brochuras. Havia igualmente as coleções de histórias de fadas com
ilustrações em preto e branco que eu amava pintar. Colorindo, eu entrava
nas imagens e fazia parte da história. Deixava-me encantar pelas imagens
que também surgiam na parede do quarto. Deitada na cama, os olhos e o
coração vagavam por aqueles caminhos. Já mais crescida, vieram os livros
Sir Jerry, detetive116, As meninas exemplares117, O Picapau Amarelo118, Contos
maravilhosos do mundo119 etc., livros que eram encampados com carinho.
Hoje, acredito que essas foram as experiências mais verdadeiras e
profundas da minha vida. Creio que brincar, maravilhar-se, fantasiar,
admirar e imaginar foram os saberes mais importantes e significativos que
adquiri e que me dão terreno para seguir em frente.
Na adolescência, enveredei por outra paixão: o teatro. Nesses
tempos de jovem tornando-se adulta, também tive a oportunidade de
entrar em contato com o campo da memória, da diversidade cultural, dos
saberes e fazeres do povo. Como no conto “Fátima, a fiandeira”120, as
vivências e as pessoas encontradas no fio da minha vida foram me
trazendo os ingredientes fundamentais para a construção da minha tenda.
Nessa trajetória, atuando e dando aulas de teatro, focalizando a
expressão corporal do ator, trabalhando em projetos de cultura e educação
e de referenciamento da cultura brasileira, investigando a relação entre o
texto teatral e a encenação e entre realidade e escrita, cheguei ao ano de
1993.
Na época, uma estrela caiu em meu coração trazendo uma
mensagem das lonjuras dos tempos: “Siga os passos dos bardos, rapsodos,
aedos, menestréis, brincantes e griôs. Escute suas vozes. Lembre-se dos
encantos de sua infância”.
Desse modo, nasceu meu primeiro repertório solo de histórias,
composto de quatro contos da tradição dos povos e dois textos literários.
“Caminhos do destino” era o título do programa para adultos, que reunia
aventuras nas quais as personagens seguiam pelo mundo em busca de sua
missão. Como elas, eu me pus na estrada, levando os contos e seus
encantos aos mais diversos lugares da cidade. Onde quer que eu fosse
acolhida, montava o ambiente para tecer o elo afetivo e mágico entre
contos, contadora e ouvintes. Com tapetes, velas e panelas de barro, criava
a egrégora mágica para que as palavras e as imagens vindas das lonjuras
dos tempos voltassem a vibrar sua magia no coração dos homens. Essa
busca por criar um espaço propício ao contar, envolvendo ouvintes e
contadora em uma atmosfera onírica, é um anseio que desde o início
esteve presente em meu trajeto como contadora. Quanto ao modo de
contar, cada conto tinha sua linguagem, seus recursos. Elementos
plásticos como tecidos, pedras e pétalas de rosa integravam-se ao verbo e
ao gesto, iluminando os símbolos. Na época, re leti sobre o processo
criativo:

A maneira como as palavras ganham corpo, imagem e sonoridade surge da


relação de trabalho e convivência com o material narrativo a ser apreendido e
recriado. A cena nasce do ato de escuta e contato da contadora com a
narrativa. Contar uma história, para mim, é primeiro mergulhar em suas
águas profundas. É deixar-se levar pelo encantamento e pelo maravilhoso. É
navegar no luxo do imaginário. É abrir o coração para ser tocado pelas
palavras precisas e preciosas. Então os sentidos submersos na história vêm à
tona. Os símbolos transparecem e sutilmente nos erguem seus véus,
permitindo que neles penetremos. Revelando-se, evocam imagens, cores,
sons, sugerem gestos, movimentos, apontam objetos. Elaborados e integrados
ao texto, esses elementos configurarão o modo próprio de cada história a ser
encenada. Os símbolos, antes contidos em palavras, ganharão outras formas
de representação e expressão, construindo o tecido cênico através de uma
composição própria de gesto e voz, esta algumas vezes ampliada por
elementos plásticos ou sonoros. O corpo no espaço constrói lorestas e
palácios. A voz modula os sentidos na busca da justa união entre sonoridade e
significado. O gesto dá o peso e a leveza que a palavra exige e com ela conduz o
fio narrativo. Panos e objetos transformam-se em sábios, princesas e
guerreiros. Sob a luz de velas, em uma atmosfera mágica de luzes e sombras, o
ouvinte é conduzido para o universo da história. Reconhece a si mesmo e as
coisas que o cercam naquilo que ouve e vê. Nesse instante, completa-se o
ritual de magia que une e realimenta o encontro entre o contador e o ouvinte.
Como os narradores dos povos de origem que levavam os contos de
tribo em tribo, continuei a apresentar “Caminhos do destino” em recantos
do mundo contemporâneo: residências, salões de cabeleireiros, livrarias,
espaços culturais, espaços terapêuticos e de saúde, bancos, empresas etc.
Nesse caminhar, encontrei, como se diz nos contos árabes, “o desejo do
meu coração”. Descobri, enfim, que a contadora de histórias era a figura
que reunia os anseios que se fizeram presentes em minha vida: o
encantamento pela palavra, o gesto, o movimento, a fantasia, o
imaginário; o gosto pelo teatro, a dança, a expressão, a cultura, a arte; o
sabor de brincar e celebrar; o olhar que se maravilha; o ser que admira e
reverencia; a atração pela dimensão da memória, da experiência e dos
saberes dos povos e pela diversidade, universalidade e humanidade. A
contadora integrou a atriz, a dançarina, a escritora, a educadora e a
pesquisadora e reuniu em seu fazer e arte os encantos que sempre
habitaram seu coração. Para além da infância, conectou em si raízes
ancestrais.
Assim, como nos momentos de ruptura dos contos, decidi viver de
contar histórias. Encontrando-me na figura que se mobiliza pela força da
palavra e do gesto, que entretece a memória e o imaginário e que é
responsável pela guarda e transmissão do saber de seu povo, deixei o cargo
de funcionária do Ministério da Cultura e larguei a escola de dança onde
dava aulas para dedicar-me integralmente à arte milenar da narrativa por
meio do projeto Teatro de Histórias Itinerantes, que depois se tornou
projeto Encantares.
Nessa opção de vida, transcorreram-se vinte anos. Foram compostos
muitos outros repertórios, para adultos, jovens e crianças. Além dos
contos, passei a pesquisar e agregar à contação de histórias brincadeiras
tradicionais de corpo e linguagem, danças circulares e de roda e poemas e
textos tanto autorais como de outros autores. Comecei ainda a dar aulas e
palestras sobre a arte de contar histórias, levando essa semente encantada
a pais, avós, educadores e demais interessados.
Para investigar modos de narrar, usei máscaras, manipulei objetos,
tecidos e bonecos de pano, expressei-me só com a palavra e o gesto, vali-
me de livros, ilustrações, elementos de figurino e sotaques para dar vida a
personagens e até mesmo a outras narradoras (meus heterônimos Tecelã e
Peregrina de Encantares).
Na busca do gesto amoroso que é contar histórias, fui criando
situações e ambientes propícios ao encontro, ao vínculo inerente a essa
forma de expressão, comunicação e transmissão de saber e experiências.
No formato “Histórias e Sabores”, uno o alimentar do corpo e da alma. Em
“HistoriArte”, convido os ouvintes a ampliarem a vivência da escuta por
meio de vivências expressivas ou lúdicas que aprofundam a compreensão
das imagens e dos símbolos. Em “À Luz da História”, a ampliação se dá
pelo exercício dialógico. “OfertÓrias” ou “Histórias ao Pé do Ouvido” cria
uma relação coloquial íntima e delicada, com a contação apenas para uma
pessoa ou um pequeno grupo por vez.
Em relação ao trabalho com os textos, se, no primeiro repertório,
pensei que não podia mexer nas obras, depois passei a me aventurar na
criação de meus recontos. Passei a criar textos meus, costurando contos
entre si ou compondo histórias autorais.
Penso que a cada apresentação vou me tornando mais narradora.
Nem sempre decoro o texto, pois muitas vezes já mergulhei
profundamente em seu fio narrativo e, assim, deixo as palavras se
encadearem como uma paisagem que surge na janela do trem. No
exercício de estar cada vez mais na figura de contadora, fui
compreendendo, recordando e agregando características pertinentes a
esse papel, como as de ser brincante, celebrante, curadora e escritora.
Se nem sempre é fácil sobreviver da arte de contar histórias, aquece
o coração contemplar o olhar de adultos e crianças brilhando ao ouvir os
contos e perceber os sentimentos e as recordações que as histórias lhes
evocam. Todas as dificuldades são superadas ao escutarmos uma criança
profundamente tocada pelo conto revelar um sentimento ou fato íntimo
em meio à apresentação. Apazigua e alegra escutar um idoso revelar que se
lembrou de seus tempos de criança.
Por isso, sigo a cultivar o ser que se maravilha, que brinca e celebra,
pois acredito que a atitude lúdica e imaginativa é vital ao ser humano,
constituindo uma jornada de crescimento e conhecimento.
A neta da contadora de histórias
VIVIAN CATENACCI (SP)121

Tenho 4 anos. Estou deitada na cama da minha avó paterna, enrolando seu
cabelo grisalho com a pontinha dos meus dedos. Meu irmão, de 2 anos,
também divide a cama conosco. Enquanto chupa o dedo, ele cutuca a
orelha macia da vovó Liquinha. Cada neto de um lado, e a avó no meio:
“Que história vocês querem ouvir hoje?”, ela pergunta. A resposta é sempre
a mesma: “A história da dona Baratinha!”. A avó então narra o conto
cantado e rimado, modulando a voz. Não é uma história com final feliz.
João Ratão, escolhido por dona Baratinha para desposá-la, acaba caindo na
panela de feijão e morre afogado (coitado!). Dona Baratinha volta para a
janela, cantarolando: “quem quer casar com a dona Baratinha, que tem fita
no cabelo e dinheiro na caixinha?”.
Cresci ouvindo histórias, de boca122 e de livros. Devo admitir que as
que saíam da boca mineira da minha avó sempre foram minhas prediletas.
Ao contrário do lendário sultão Shariar, passadas as mil e uma noites, não
me declarei curada da escuta dessas narrativas e, assim, não permiti que
minhas contadoras de histórias (mãe e avó) me abandonassem.
Quando criança, a “História da dona Baratinha” e “A menina dos
cachinhos dourados” me encantavam. Já adolescente, era com os causos da
avó Liquinha que eu me deliciava. De repente, como professora do ensino
fundamental, me vi aumentando vários pontos nos contos que um dia
foram narrados para mim. Sem perceber, a neta aprendiz tornou-se
contadora de histórias, e os contos contados ao pé da cama ficaram
gravados na memória, conservados pela prática narrativa à medida que
compõem meu repertório.
Não demorou muito para ser possível notar que eu não me
contentava com a “hora do conto” da rotina escolar. Indo para além da
escola e fazendo jus ao nomadismo característico dos intérpretes
medievais (contadores de histórias, cantores e trovadores), comecei a
narrar histórias de boca em diversos espaços culturais e educacionais de
São Paulo e em outros cantos do país. Convites para ministrar cursos,
palestras e oficinas surgiram a partir das rodas de histórias realizadas aqui
e acolá. Entre essas minhas andanças, dediquei-me a pensar a prática
narrativa ao desenvolver meu mestrado em 2008123. Um dos capítulos
dessa pesquisa compõe o livro O bom pensamento: contadores, narradores e
intérpretes, publicado em 2009124. Assim, a narradora oral e pesquisadora
dessa arte da palavra contada de boca se profissionalizou.
Distantes no tempo e no espaço, no momento em que os contos
saem da boca da contadora de histórias, eles ganham vida como se nunca
tivessem sido narrados. Ao cruzarem essa fronteira, narradora e ouvintes
entram em um mundo em que, como nos sonhos, a realidade se
transforma.
O aprendizado de uma história por meio da escuta da voz suave e
cálida de um narrador, seja deitado ao pé da cama, ao redor do fogo, no
alpendre, na cozinha, em uma livraria ou em um espaço cultural,
potencializa a apropriação das imagens que compõem seu enredo, o que
facilita a reprodução dessa narrativa a outras pessoas.
Mesmo quando me preparo para contar de boca histórias conhecidas
através dos livros, não me preocupo com as palavras impressas, mas com
as imagens – das personagens, dos cenários e das situações da história –
que desfilaram à minha frente durante a leitura e o estudo da narrativa. A
partir dessas imagens, o fio da história vai se desenrolando na imaginação
dos ouvintes durante a contação, e isso se dá por meio da voz, dos gestos,
do olhar e da minha presença no espaço.
No meu trabalho, a performance, ou a teatralidade, está presente não
apenas nas linguagens não verbais, como também nas palavras que
compõem a narrativa. Ao percorrer as imagens do conto, surpreendo-me
com as formas nas quais elas se materializam na boca. Então, mesmo que
os contos narrados sejam retirados dos livros, meu ofício como contadora
de histórias diz respeito a uma atividade de pura oralidade.
O fato de essa prática ter as imagens da história, e não um texto,
como matéria-prima pressupõe improvisação e me possibilita levar em
conta as reações dos ouvintes e responder a suas intervenções,
exclamações e perguntas. Portanto, a história vai sendo tecida na relação
narradora-ouvintes.
Recordo-me de que, certa vez, estava contando a história da Bela
Adormecida em uma livraria em São Paulo. Eu narrava a cena em que a
princesa observava uma torre muito, muito alta. Enfatizei a altura da torre
esticando meus braços para o alto. Dessa maneira, descrevi a construção
que chamou a atenção da bela jovem da história. Continuei a narrar que a
princesa, curiosa para saber o que havia no alto daquela torre, decidiu
subir suas escadas: “E foi subindo, subindo, subindo…”. De repente, um
menino, de aproximadamente 6 anos, interrompeu minha narração e
perguntou: “Essa torre é mais alta do que esta livraria?”. Naquele instante,
eu “vi” a torre que tinha descrito e, imaginando-a ao lado da livraria – que é
um sobrado –, respondi: “Sim, é mais alta do que esta livraria”. Continuei a
narração: “E a princesa foi subindo, subindo, subindo…”. Outra vez a
narração foi interrompida por mais uma pergunta do menino: “A torre é
mais alta do que um prédio?”. Dessa vez, imaginei um prédio muito alto,
mas nada que se comparasse à torre da história. Respondi: “é, sim, mais
alta do que um prédio”. Mais uma vez, retomei a narração: “E foi subindo,
subindo, subindo…”. Mas meu ouvinte não me deixou prosseguir: “é mais
alta do que um gigante?”, perguntou, curioso. A imagem da torre
apresentou-se para mim ao lado de um gigante. Então veio a resposta que
aquele menino tanto esperava: “é do tamanho de um gigante”.
Finalmente, meu pequeno ouvinte conseguiu imaginar aquela torre
muito, muito alta, e eu, rememorando o que me encantava nos momentos
vividos na companhia da minha contadora de histórias, pude compreender
o que significa a cumplicidade quando se trata da narração. “A boca abre, a
boca fecha e os contos continuam falando…”125.

O jogar-brincar com as narrativas


WÂNIA KAROLIS (SP)

Dentre tantas experiências profissionais no universo da arte como atriz,


desde 1996, e no universo da educação como professora de teatro e de
língua espanhola, desde 2003, selecionei minhas experiências mais
significativas, sobretudo a partir de 2010, momento em que iniciei o curso
de pós-graduação em docência no ensino superior e me apaixonei pelo
mestre Paulo Freire.
O meu autoencontro no curso e meu encontro com a professora
doutora Olgair Gomes Garcia e com a teoria de Paulo Freire me
possibilitaram a transformadora abertura dos horizontes humano,
artístico e educacional, o que me levou à pós-graduação em fundamentos
do ensino e aprendizagem da arte na ECA-USP.
Durante o ensinar e aprender da arte, entreguei-me ao narrar,
apresentando-me em diversas instituições educacionais e culturais e
ministrando oficinas de contação e teatro de histórias em cursos de
formação de professores e mediadores de leitura em Guarulhos (SP) e
Joinville (SC).
Em minhas oficinas, elaboro e proponho processos criativos e
lúdicos a partir de contos literários, promovendo, por meio das
experiências artísticas de ensino e de aprendizagem da arte de narrar, o
movimento possível da reinvenção poético-pedagógica dos artistas
educadores, dos educadores artistas e, portanto, da escola alegre.
É importante salientar que investigo, com criticidade e
amorosidade, a apropriação lúdica de textos narrativos por meio de jogos
teatrais. Tencionando fazer emergir a energia entusiástica e criadora do
coletivo, forjo experiências com os jogos teatrais especialmente na fricção
com os contos literários, favorecendo o jogo de construção artesanal com a
linguagem artística e o desvendar do processo semiótico da significação
por intermédio da linguagem gestual e da espontaneidade autônoma,
corajosa, inteligente, imaginativa e criativa do corpo e da voz.
Pelo fato de a apropriação lúdica de textos narrativos me inquietar e
me fazer desejosa de um envolvimento mais profundo, acredito que esse
meu trabalho desafiador certamente enriquece minha curiosidade
epistemológica, fazendo-me contribuir ainda mais para a educação com o
que tenho de melhor e mais apaixonado como artista.
Fazendo uso das belas palavras do poeta José Paulo Paes, busco
[…] mostrar a perene novidade da vida e do mundo; atiçar o poder da
imaginação das pessoas, libertando-as da mesmice da rotina; fazê-las sentir
mais profundamente o significado dos seres e das coisas; estabelecer, entre
estas correspondências, parentescos inusitados que apontem para uma
misteriosa unidade cósmica; ligar entre si o imaginado e o vivido, o sonho e a
realidade como partes da nossa experiência de vida126.

Pelo exposto, acredito na necessidade da presença de artistas


narradores de histórias nos espaços educacionais. De acordo com Paulo
Freire, cabe àqueles que sonham com a reinvenção, recriação ou
reconstrução da sociedade ocupar o espaço das escolas e das
universidades, o espaço institucional, revelando, assim, um profundo
amor pelo ser humano e por sua educação em prosa e poesia.

1 Moacyr Scliar, Os contistas e outras histórias, Rio de Janeiro: Ediouro, 1997, p. 226.
2 Ibidem.
3 Contadora de histórias, atriz e membro da Red Internacional de
Cuentacuentos (RIC). Para saber mais, visite
<www.alicceoliveira.blogspot.com>.
4 Disponível em: <www.cejaumcontadordehistorias.blogspot.com>. Acesso em:
set. 2014.
5 Em 2014, o projeto foi contemplado novamente pelo Proac, agora com o nome
Contos do Mato – Encontro Nacional de Contadores de Histórias – Ano II. A
equipe técnica de profissionais desse projeto inclui Mazé Oliveira (produção
executiva), Naine Terena (assessoria de imprensa), Téo Miranda (imagem e
fotografia), Cláudio Dias (áudio e vídeo), Jan Moura (design gráfico) e Roni
Disarz (recepção artística).
6 Os resultados satisfatórios do projeto podem ser conferidos na página
<www.contosdomato.blogspot.com>. Acesso em: mar. 2015.
7 Sesi, Casa de Guimarães, Procev/UFMT, PET Educação/UFMT, Livraria Paulinas,
Editora Vozes, Editora Ática, Distribuidora Literato, Distribuidora Saber com
Sabor, Happy Things, Vai-Vem, Mato Grosso Palace Hotel, Pantanal
Shopping, Secretaria Municipal de Cultura, Esporte e Turismo e Dona Maria
Comunicação Criativa.
8 Para saber mais, acesse: <ciamafagafos.wordpress.com>.
9 Aline Maciel, Cada um conta de um jeito, Florianópolis: Cia. Mafagafos, 2012.
10 Betty Mindlin e narradores indígenas, Moqueca de maridos: mitos eróticos, Rio
de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
11 A publicação está disponível em:
<www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Teia%20de%20experiencias_138292
8283.pdf>. Acesso em: abr. 2015.
12 Especialista em psicologia educacional com ênfase em psicopedagogia pela
Universidade do Estado do Pará, graduada em pedagogia pela Universidade
Federal do Pará, membro da Red Internacional de Cuentacuentos (RIC),
integrante do Grupo de Contadores de Histórias Ayvu Rapyta e membro do
Movimento de Contadores de Histórias da Amazônia.
13 Daniel Munduruku, Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória,
São Paulo: Studio Nobel, 2001; Celso Sisto, Textos e pretextos sobre a arte de contar
histórias, Belo Horizonte: Aletria, 2012.
14 Cléo Busatto, Contar e encantar: pequenos segredos da narrativa, Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 9.
15 Antonio Juraci (filho do boto) é educador, escritor, poeta e trovador; Andréa
Cozzi (filha das linhas, dos retalhos e dos bordados) é educadora e contadora
de histórias; e Sônia Santos (filha da Mãe-d’Água) é educadora.
16 Andréa Cozzi et al., Apanhadores de histórias: contadores de sonhos, Belém:
Tempo, 2013. 2 V.
17 Mestre em teatro pela Udesc, atriz do Grupo Teatral Fio de Ariadne e diretora
e professora de teatro na Universidade da Região de Joinville.
18 Bartolomeu Campos de Queirós, O peixe e o pássaro, Belo Horizonte: Miguilim,
1971.
19 Marina Colasanti, “A moça tecelã”, in: Doze reis e a moça no labirinto do vento,
Rio de Janeiro: Global, 2006.
20 Idem, Entre a espada e a rosa, São Paulo: Melhoramentos, 2010.
21 Cf. Um alfabeto de possibilidades – Memórias da Literatura Infantil e Juvenil,
Museu da Pessoa, 2008. Disponível em:
<www.museudapessoa.net/pt/conteudo/video/um-alfabeto-de-possibi
lidades-81278>. Acesso em: set. 2014.
22 Marina Colasanti, “Entre o leão e o unicórnio”, in: Doze reis e a moça no
labirinto do vento, op. cit., Rio de Janeiro: Global, 2006.
23 Idem, Longe como o meu querer, São Paulo: Ática, 2006.
24 Cf. <www.ciamapinguary.com.br> e redes sociais.
25 Atriz profissional, bailarina, graduada em letras e pós-graduada em ciências
humanas. Formada em canto popular, estudou interpretação para a televisão
e atuou em curtas e longas-metragens e em telenovelas da Rede Bandeirantes
e do SBT.
26 Formada em artes cênicas, trabalha com teatro, atuação e direção, teatro de
animação, contação de histórias, literatura e arte-educação. Faz parte da Cia.
Em Cena Ser. Para saber mais sobre a companhia, acesse:
<http://emcenaser.blogspot.com.br>.
27 Graduado em pedagogia, bonequeiro, contador de histórias, diretor da Cia.
Manipulando Teatro de Animação e produtor de eventos nessas áreas. É autor
dos livros Histórias do mundo para todo mundo (Porto Alegre: Kassol, 2012) e
Histórias ao pé do ouvido (São Paulo: Giostri, 2012).
28 Hans Christian Andersen, A colina de elfos e A pastora e o limpador de chaminés,
São Paulo: Ática, 1992.
29 Membro da Red Internacional de Cuentacuentos (RIC).
30 Contadora de histórias, mestre em Educação pela Universidade de Brasília e
educadora há mais de vinte anos.
31 Oliveira e Gonçalves são contadoras de histórias, educadoras há mais de
quinze anos e formadas em pedagogia pela Universidade de Brasília.
32 Para saber mais, acesse: <www.deiseamahistorias.blogspot.com>.
33 Para saber mais, acesse: <www.naniencantadora.blogspot.com>.
34 Especialista em literatura infantojuvenil, pedagoga, contadora de histórias e
assessora pedagógica do programa Prazer em Ler/Instituto C&A. É ainda
facilitadora de oficinas sobre contação de histórias e mediação de leitura e
integrante do Fórum Pernambucano em Defesa das Bibliotecas, Livro, Leitura
e Literatura.
35 Marina Colasanti, “A mulher ramada”, in: Doze reis e a moça no labirinto do
vento, Rio de Janeiro: Global, 2006.
36 Gigi Anhelli, Laboratório das lores, São Paulo: Giostri, 2011.
37 Um dos episódios do programa Brincando de Bambalalão pode ser acessado
em: <http://tvuol.uol.com.br/#assistir.htm?video=brincando-de-bambalalao-
recebe-convidados-
04029A3770C09123C6&orderBy=maisrecentes&edFilter=all&time=all&q=
brincando+de+bambalalao&originalQuery=brincando de
bambalalão&currentPage=5>. Acesso em: set. 2014.
38 Ted Andrews, O encanto do mundo das fadas, Rio de Janeiro: Best Seller, 2007.
39 Narrador, quadrinista e escritor. Para saber mais, acesse:
<www.pequeninus.com>.
40 Contos em cantos (livro e CD), lançado em 2008.
41 Ator, bonequeiro e produtor cultural, é responsável pela produção da
Pequeninus Produções Artísticas.
42 Para saber mais, acesse: <http://origamii.wordpress.com>.
43 Para saber mais, acesse: <http://irmagalhardo.blogspot.com.br/> e
<caravanadelendasdotocantins.blogspot.com>.
44 Para saber mais, consulte:
<http://poesiainfantilhistoria.blogspot.com.br/2013/11/irma-galhardo.html>.
45 Para saber mais sobre o nosso trabalho, acesse: <www.contacausos.com.br>.
46 Celso Sisto, A noiva do diabo, Chapecó: Grifos, 2000.
47 Angela Lago, Muito capeta, São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2004.
48 É narrador aprendiz e pesquisador de tradição oral. Trabalha na equipe de
coordenação do encontro internacional Boca do Céu e é mestrando em
estética e história da arte.
49 Cf. Massimo Canevacci, disponível em: <www.casaluce-
geiger.net/Canevacci.htm> e <www.qartlog.com/?p=1739>. Acesso em: set.
2014.
50 Italo Calvino, As cidades invisíveis, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
51 Jorge Larrosa, Linguagem e educação depois de Babel, Belo Horizonte: Autêntica,
2004, p. 154.
52 “A mentira, sob uma forma narrativa, se torna assim aliada de todos, a
mestra da vida, o traço de união, o inseparável”. Cf. Jean-Claude Carrière, O
círculo dos mentirosos: contos filosóficos do mundo inteiro, São Paulo: Conex, 2004.
53 Não questiono aqui a rica experiência da leitura nem as complexas e diversas
formas textuais que representam a tradição literária.
54 Isaac Bernat, Encontros com o griot Sotigui Kouyaté, São Paulo: Pallas, 2013.
55 Cf. Catherine Zarcate, disponível em: <www.catherine-zarcate.com>.
56 Regina Machado, Acordais – fundamentos teórico-poéticos da arte de contar
histórias, São Paulo: DCL, 2004.
57 Jorge Larrosa, “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, I
Seminário Internacional de Educação de Campinas, Campinas: Leituras SME,
2001, n. 4, p. 5.
58 Dan Yashinsky, Soudain, on entendit des pas…: contes pour le XXIe siècle, Montreal:
Planète Rebelle, 2007, p. 99.
59 Italo Calvino, op. cit., pp. 93-5.
60 Contadora de histórias, professora, fisioterapeuta, pesquisadora e escritora.
Para saber mais, acesse: <http://lelaludens.blogspot.com.br>.
61 Clarissa Pinkola Estés, O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente, Rio
de Janeiro: Rocco, 1998, p. 10.
62 Coleção Disquinho, originalmente gravada pelo selo Continental em 1960. A
Warner relançou a coleção em cinco CDs em 2001.
63 Clarissa Pinkola Estés, op. cit., p. 7.
64 Celso Sisto, “Caminhos da narração oral: uma jornada para uma vida inteira”,
in: Celso Sisto (org.), A história fora do papel: a oralidade e o espetáculo, Passo
Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2010, p. 88.
65 Ibidem, p. 83.
66 Este texto em versos está disponível integralmente na obra infantil Hortência
das tranças (Belo Horizonte: Abacatte, 2015), do mesmo autor.
67 Mestre em educação, conta histórias desde 2000 em teatros, escolas,
bibliotecas, unidades do Sesc, centros culturais, parques e em projetos das
Secretarias Municipal e Estadual de Cultura. Também desenvolve oficinas da
arte de contar histórias em escolas e universidades.
68 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo: Companhia
das Letras, 1994, p. 87.
69 Vincent Jouve, A leitura, São Paulo: Unesp, 2003, pp. 107-8.
70 Walter Benjamin, “O narrador”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 109.
71 Ibidem, p. 107.
72 Chico Buarque, Chapeuzinho Amarelo, Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
73 Monteiro Lobato, Memórias da Emília, São Paulo: Brasiliense, 1962.
74 Leonardo Bo f, O casamento entre o céu e a terra: contos dos povos indígenas, Rio de
Janeiro: Salamandra, 2001.
75 Jon Scieszka, A verdadeira história dos três porquinhos, São Paulo: Companhia
das Letrinhas, 1993.
76 “História da coca”, conto popular angolano. Revista Brasileira de Folclore, Rio de
Janeiro: 1971, ano 11, n. 31, pp. 319-22.
77 Para saber mais sobre lendas francisquenses, acesse:
<www.sfs.com.br/index.cfm?
go=turismo.home&IDConteudoSubCategoria=21>.
78 Ruth Rocha, A árvore de Beto, São Paulo: Salamandra, 2010.
79 Uma versão deste texto foi publicada na edição 4 da Revista Ponto (São Paulo:
Sesi-SP Editora, 2013, pp. 49-56).
80 A Cia. Malas Portam é formada por Cris Ó Linda, Michele Mi, Marlon
Chucruts, Rita Ritovski, Umberto Mancebo, Sérgio Jimenez e Edgard Jamelão.
81 Professora, escritora e contadora de histórias. Para saber mais, acesse:
<www.marobarbieri.com>.
82 Coleção Disquinho, originalmente gravada pelo selo Continental em 1960. A
Warner relançou a coleção em cinco CDs em 2001.
83 Ilustrador, designer gráfico e escritor.
84 Graduada em educação artística, bacharel e licenciada em artes cênicas e
diretora de teatro da Cia. Alma Livre.
85 Texto publicado inicialmente em 2014, no segundo caderno de textos do
Centro de Referência de Educação em Museus, do Museu da Língua
Portuguesa.
86 É educadora e contadora de histórias formada em comunicação das artes do
corpo pela PUC-SP e pós-graduada em linguagens da arte no Centro
Universitário Maria Antônia. É educadora formadora no MAM desde 2009 e
responsável pelo programa Família MAM.
87 É professora de surdos e contadora de histórias graduada em pedagogia e
pós-graduada em linguagens da arte.
88 Graduado em letras e mestre em letras, cultura e regionalidade, é ator,
contador de histórias, escritor e músico. Para saber mais, acesse:
<www.pauloboccanunes.com>.
89 Regina Chamlian, O pintinho que nasceu quadrado, São Paulo: Global, 2007.
90 Ricardo Azevedo, No meio da noite escura tem um pé de maravilha: contos
folclóricos de amor e aventura, São Paulo: Ática, 2002.
91 Esse texto encontra-se parcialmente na obra Criações cênicas e atuação com
canções, poemas e histórias (São Paulo: Porto de Ideias, 2013), do mesmo autor.
92 Ator, músico, escritor, contador de histórias e educador. Graduado em artes
cênicas pela ECA-USP, é mestre em artes pela Unesp. Para saber mais, acesse:
<www.passarinholivre.blogspot.com> e
<www.caminhantelivro.blogspot.com>.
93 Berenice Abreu, Jangadeiros: uma corajosa jornada em busca de direitos no Estado
Novo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
94 Renato Russo (Legião Urbana), “Faroeste caboclo”, Que país é este 1978/1987 (LP,
K7 e CD), EMI-Odeon, Rio de Janeiro, 1987.
95 Roberto Mendes e José Carlos Capinan (Maria Bethânia), “Massemba”,
Brasileirinho (CD), Quitanda/Biscoito Fino, Rio de Janeiro, 2003.
96 Thomas A. Hale, Griots and griottes, Indianápolis: Indiana University, 1998.
97 Walter Benjamin, “O narrador”, in: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 201.
98 Paul Zumthor, Escritura e nomadismo, São Paulo: Ateliê, 2005.
99 Ricardo Ribeiro, Criações cênicas e atuação com canções, poemas e histórias, São
Paulo: Porto de Ideias, 2013.
100 Especialista em arte-educação, gestão cultural e alfabetização, educadora,
pesquisadora da cultura popular, escritora, atriz, vice-presidente da ONG
Escultórias e membro da Red Internacional de Cuentacuentos (RIC). Para
saber mais, acesse: <www.sandralane.com.br>.
101 Histórias da nossa gente, 2004. Para saber mais sobre o livro e o CD, acesse:
<www.sandralane.com.br>.
102 Primavera de Histórias, 2008. Para saber mais sobre o livro e o CD, acesse:
<www.sandralane.com.br>.
103 Os livros em questão são Escultórias: a união das esculturas com as histórias
(2007), Escultórias Arigatô (2008) e Escultórias Touché! (2009). Para saber mais
sobre eles, acesse: <www.sandralane.com.br>.
104 Diretor, ator, arte-educador e fundador da Dionisos Teatro. É graduado em
história e especialista em prática social da arte.
105 Ruth Rocha, “Uma aventura de Pedro Malasartes”, in: Almanaque Ruth Rocha,
São Paulo: Salamandra, 2011.
106 O grupo é formado por Simone André, Alexandra Britto Velásquez e Joseilto
Pires da Silva.
107 Atriz, diretora teatral, autora e contadora de histórias, conta narrativas para
adultos e crianças há mais de quinze anos e é fundadora dos grupos As
Meninas do Conto e A Fabulosa Cia.
108 Para saber mais, acesse: <www.meninasdoconto.com.br>.
109 Peter Brook, A porta aberta: as artimanhas do tédio, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1999; Gilka Girardello, Baús e chaves da narração de histórias,
Florianópolis: Sesc, 2008; Gislayne Avelar Matos, A palavra do contador de
histórias, São Paulo: Martins Fontes, 2005.
110 O termo “canovaccio” é utilizado na commedia dell’arte e corresponde ao
teatro popular criado com um roteiro de intrigas abertas, com a intenção de
apenas orientar os atores que improvisam as falas e as cenas no momento em
que o espetáculo é apresentado.
111 Patrice Pavis, Dicionário de teatro, São Paulo: Perspectiva, 1996, p. 69.
112 Ator, diretor, professor e iluminador.
113 Atriz, produtora, orientadora de pesquisa e especialista nas áreas de
palhaços e de jogos de improvisação e composição.
114 Professor de dramaturgia audiovisual na Universidade de São Paulo.
115 Atriz, produtora, diretora, arte-educadora e contadora de histórias.
116 Mad. H. Giraud, Sir Jerry, detetive, Rio de Janeiro: José Olympio, 1934.
117 Condessa de Ségur, As meninas exemplares, Lisboa/Rio de Janeiro: Livros do
Brasil, 1947.
118 Monteiro Lobato, O Picapau Amarelo, São Paulo: Brasiliense, 1957.
119 Theobaldo Miranda Santos (org.), Contos maravilhosos do mundo, São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1958.
120 Nícia de Queiroz Grillo (org.), “Fátima, a fiandeira”, in: Histórias da tradição
sufi, Rio de Janeiro: Dervish, 1993.
121 Para saber mais, acesse: <www.viviancatenacci.blogspot.com> e
<www.historiasebrincadeiras.blogspot.com>.
122 Termo utilizado por élie Bajard, autor de Ler e dizer: compreensão e
comunicação do texto escrito (São Paulo: Cortez, 2001) e Caminhos da escrita:
espaços de aprendizagem (São Paulo: Cortez, 2002) para identificar a fonte de
enunciação própria da arte de contar histórias: a boca. Segundo Bajard, essa
terminologia teria sido criada pelas crianças com o objetivo de diferenciar a
esfera da oralidade (histórias de boca) da escrita (histórias do livro).
123 Vivian Catenacci, O voo dos pássaros: uma re lexão sobre o lugar do contador de
histórias na contemporaneidade. 125f., dissertação (mestrado em antropologia) –
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
124 Idem, “Era uma vez outra vez… O lugar do contador de histórias com o
advento da modernidade”, in: Maria Aparecida Lopes Nogueira et al. (org.), O
bom pensamento: contadores, narradores e intérpretes, Recife: UFPE, 2009, pp. 99-
111.
125 Vivian Catenacci, O voo dos pássaros: uma re lexão sobre o lugar do contador de
histórias na contemporaneidade, op. cit., p. 64.
126 José Paulo Paes, Poesia para crianças, São Paulo: Giordano, 1996, p. 27.
Agradecimentos

Este livro resulta da soma de vários esforços de pessoas e instituições que


acreditaram no projeto e não poderiam deixar de ser mencionadas.
Primeiramente, nossos agradecimentos aos autores, por compartilharem
seus saberes teóricos e práticos, e às famílias de Ariano Suassuna e de
Rubem Alves, pela cessão dos direitos dos textos aqui presentes. Às
instituições, tais como a Universidade da Região de Joinville (Univille) e a
equipe do Proler Joinville, que sediaram o projeto no seu nascedouro; à
Unesco, por conceder os direitos de publicação do texto “A tradição viva”,
de Amadou Hampâté Bâ; e às Edições Sesc, por tornarem possível o elo
entre aquele que escreve e aquele que lê, sendo uma das grandes
pulverizadoras da cultura neste país em suas múltiplas formas de
manifestação.
Sobre os organizadores

FÁBIO HENRIQUE NUNES MEDEIROS

Formado em letras, é especialista em história da arte brasileira, mestre em


teatro e doutor em artes cênicas. Dirigiu e atuou em espetáculos teatrais e
grupos de contação de histórias e é pesquisador e integrante do comitê
Proler Joinville.

TAIZA MARA RAUEN MORAES

Graduada em letras, mestre em literatura brasileira e doutora em teoria da


literatura, é professora titular da Universidade da Região de Joinville
(Univille) e coordena o comitê Proler Joinville, o Programa Institucional
Pró-Leitura Univille e o grupo de pesquisa Imbricamentos de Linguagens
CNPq.
Sobre os autores

AMADOU HAMPÂTÉ BÂ

Especialista em tradições orais, é autor de várias obras sobre os antigos


impérios africanos e a civilização africana.

ANGELA LEITE DE SOUZA

Formada em jornalismo e especialista em literatura infantojuvenil,


trabalhou nos principais veículos da imprensa brasileira. É escritora e
ilustradora, tendo recebido diversos prêmios por sua produção artística,
entre eles o Prêmio Casa de las Américas de Literatura Brasileira, de Cuba,
em 1997.

ARIANO SUASSUNA

Defensor da cultura nordestina brasileira e expoente da literatura


nacional, foi dramaturgo, romancista, ensaísta e poeta. Faleceu em julho
de 2014, aos 87 anos.

AUGUSTO PESSÔA

Bacharel em artes cênicas, é ator, cenógrafo, figurinista, arte-educador,


escritor e contador de histórias.

BIA BEDRAN

Graduada em musicoterapia e arte-educação e mestre em estudos


contemporâneos das artes pela Universidade Federal Fluminense (UFF), é
professora, cantora, compositora e escritora com vasta obra composta por
CDs, DVDs e livros dedicados à infância.

CARLOS KLIMICK
Doutor em letras e mestre em design, é um dos líderes do grupo de
pesquisa Histórias Interativas, da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF). Atuou como docente na Universidade Estadual do Rio de Janeiro
(Uerj), na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), no
Centro Universitário Carioca (UniCarioca) e na Universidade Estácio de
Sá. Atua como designer educacional pesquisando jogos narrativos desde
1998.

CLARICE STEIL SIEWERT

Formada em psicologia, é mestre em teatro, atriz e professora de teatro e


em cursos de pós-graduação em contação de histórias. Atua em peças
teatrais convencionais e como condutora e atriz de teatro playback.

CLEBER FABIANO DA SILVA

Licenciado em letras e mestre em educação, é professor nos cursos de


graduação e pós-graduação nas áreas de letras e pedagogia, pesquisador
de literatura infantil, contador de histórias e diretor pedagógico.

DAIANE DORDETE

Graduada em artes cênicas e mestre e doutoranda em teatro, é atriz,


diretora, dramaturga, contadora de histórias, poeta e professora assistente
na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

DANIEL MUNDURUKU

Graduado em filosofia e licenciado em história e psicologia, é doutor em


educação e escritor com diversos livros publicados, tendo recebido
importantes prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio Jabuti, o
Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio érico Vanucci Mendes e
o Prêmio Tolerância, outorgado pela Unesco.

EDIL SILVA COSTA

Mestre em letras e doutora em comunicação e semiótica, é professora


titular de literatura da Universidade do Estado da Bahia, atuando no
programa de pós-graduação da instituição.
ELIANA YUNES

Formada em filosofia e letras, mestre em letras, doutora em linguística e


em literatura e pós-doutora em leitura, é professora-associada da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Criou o
Programa Nacional de Leitura (Proler) para a Biblioteca Nacional e dirigiu
a Cátedra Unesco de Leitura no Brasil entre 2006 e 2013.

ELIANE BETTOCCHI

Mestre e doutora em design e pós-graduada em teoria da arte, é professora


adjunta no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF). Atuou por dezenove anos como designer gráfica e ilustradora de
jogos narrativos comerciais e educacionais.

ELIANE DEBUS

Graduada em letras, mestre em literatura e doutora em linguística e letras,


é professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

FABIO LISBOA

Graduado em comunicação social e letras, é pós-graduado em arte de


contar histórias: abordagens poética, literária e performática. É contador
de histórias, autor e palestrante. Ministra cursos e oficinas em escolas,
universidades e empresas.

FELÍCIA FLECK

Bibliotecária, mestre e doutoranda em ciência da informação, atua como


contadora de histórias, ministra oficinas de formação para pais e
educadores e pesquisa a identidade e a profissionalização do contador de
histórias contemporâneo.

FREDERICO FERNANDES

Autor, tradutor e organizador de diversos livros, é pesquisador


produtividade do CNPq e professor da Universidade Estadual de Londrina.
É fundador da revista Boitatá, especializada em literatura oral e popular.
GILKA GIRARDELLO

Graduada em comunicação, tem mestrado interdisciplinar em ciências


humanas, doutorado em ciências da comunicação e pós-doutorado em
educação. É professora associada da Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC).

GILMAR DE CARVALHO

Formado em direito, é ainda graduado e mestre em comunicação social e


doutor em comunicação e semiótica. Foi professor na Universidade
Federal do Ceará (UFC) por 26 anos.

GISLAYNE AVELAR MATOS

Mestre em educação, especializou-se em terapia familiar sistêmica e em


art en thérapie et en psychopédagogie. É autora de livros e criadora do projeto
Convivendo com Arte, que promove a formação de contadores de histórias.

HELENA RITTO

É contadora de histórias e fundadora da Cia. Prosa dos Ventos, na qual


atua desde 2001. Como atriz, participou de diversas montagens teatrais e,
atualmente, trabalha no programa infantil Quintal da Cultura, da TV
Cultura.

HUMBERTO HERMENEGILDO DE ARAÚJO

Graduado em letras, mestre em teoria e história literária e doutor em


letras, é pós-doutor e professor titular da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) e ainda atua como pesquisador e
consultor/parecerista.

JOSÉ GUILHERME FERNANDES

Mestre em teoria literária e doutor em letras, pesquisou as culturas


populares e tradicionais e, a partir dessa pesquisa, publicou em 2011 o livro
Pés que andam, pés que dançam (editora Eduepa).

JULIE CAVIGNAC
É doutora em antropologia e professora-associada da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Coordena o Proext Tronco Ramos e
Raízes (MEC e Sisu) e se dedica a temas como a tradição oral e a questão
identitária no Rio Grande do Norte.

LEO CUNHA

Graduado em jornalismo e publicidade, é mestre em ciência da


informação, doutor em artes e professor em cursos de graduação e pós-
graduação. É escritor com mais de cinquenta obras publicadas, entre livros
de crônicas e infantojuvenis, e recebeu diversos prêmios, entre eles o
Prêmio Jabuti.

LUCIANA HARTMANN

É graduada em artes cênicas e tem mestrado e doutorado em antropologia


social. Tem realizado pesquisas com contadores de histórias, que deram
origem a livros e vídeos etnográficos. É professora-associada da
Universidade de Brasília (UnB), ouvinte e contadora de histórias.

MARIA LÚCIA COSTA RODRIGUES

Graduada em artes visuais e mestre em patrimônio cultural e sociedade, é


professora de artes infantis na Casa da Cultura Fausto Rocha Júnior, em
Joinville, Santa Catarina.

MARLENE FORTUNA

Mestre e doutora em comunicação e semiótica, é pós-doutora em artes


cênicas, atriz profissional e pesquisadora nas áreas de escritura e de
oralidade estéticas.

MIRNA SPRITZER

É atriz e doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do


Sul (UFRS). É professora-associada do programa de pós-graduação em artes
cênicas da mesma universidade. Coordena projetos de pesquisa sobre a
arte radiofônica, vocalidade, escuta e palavra.
OLAVO ROMANO

Formado em direito e mestre em administração, foi professor na


Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e procurador do
estado. Autor de quase vinte livros, pertence à Academia Mineira de Letras,
cuja presidência exerce desde maio de 2013.

ROSE AVIZ

Graduada em letras e mestre e doutora em educação, é pesquisadora em


núcleos da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professora na
Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

RUBEM ALVES

Além de autor de livros religiosos, educacionais, existenciais e infantis,


Rubem Alves foi psicanalista, educador e teólogo. Foi um dos maiores
pedagogos brasileiros, tendo lecionado na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Faleceu em julho de 2014, aos 81 anos.

SERGIO CARNEIRO BELLO

Graduado em ciências sociais e mestre em educação, é contador de


histórias e trabalha com a formação de educadores em oficinas, cursos e
palestras.

VALDECK DE GARANHUNS

Brincante mamulengueiro pernambucano nascido em Garanhuns, é poeta,


artista plástico, arte-educador, ator, compositor, contador de histórias
com 35 anos de carreira como mestre em teatro de mamulengo,
patrimônio cultural do país. Faz de sua arte um instrumento de educação,
divulgação e preservação da cultura popular.

VANUSA MASCARENHAS SANTOS

Doutora em letras e linguística, é professora-assistente na Universidade do


Estado da Bahia (Uneb).

ZEBBA DAL FARRA


É encenador, músico, docente e pesquisador na graduação e pós-
graduação em artes cênicas da Universidade de São Paulo (USP) e diretor da
Ausgang de Teatro.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional


Abram Szajman
Diretor Regional
Danilo Santos de Miranda

Conselho Editorial
Ivan Giannini
Joel Naimayer Padula
Luiz Deoclécio Massaro Galina
Sérgio José Battistelli

Edições Sesc São Paulo


Gerente Marcos Lepiscopo
Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre
Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni
Produção editorial Rafael Fernandes Cação e Simone Oliveira
Coordenação gráfica Katia Verissimo
Produção gráfica Fabio Pinotti
Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

Preparação Beatriz Moreira, Maria Elaine Andreoti


Revisão Lígia Gurgel, Elen Durando
Capa, projeto gráfico e diagramação Bloco Gráfico
Produção do arquivo ePub keditorial

M467c Medeiros, Fábio Henrique Nunes


Contação de histórias: tradição, poéticas e interfaces / Fábio Henrique Nunes Medeiros
e Taiza Mara Rauen Moraes. – São Paulo : Edições Sesc São Paulo, 2016. –
4.859 Kb ; e-PUB. : il

ISBN 978-85-69298-17-5 (e-book)


1. Arte de contar histórias. 2. Narração de histórias. 3. Contação de histórias. 4. Tradição. 5.
Poéticas. 6. Interfaces. I. Título. II. Moraes, Taiza Mara Rauen.

CDD 808.068543

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© 2016 Fábio Henrique Nunes Medeiros e Taiza Mara Rauen Moraes
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