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MARCOS

MARCOS BA
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Uma historia da
TO
TOMMO
O 11

da
da Antiguidade
Antiguidade ao
ao Iluminismo
Iluminismo
Direção: Andréia Custódio
Capa e diagramação: Telma Custódio
Revisão: Marcos Marcionilo

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B134h

Bagno, Marcos, 1961-


Uma história da linguística / Marcos Bagno. - 1. ed. - São Paulo :
Parábola, 2023.
320 p. ; 24 cm. (Referenda 7)

Inclui bibliografia
“Volume 1 : da Antiguidade ao Iluminismo”
“Volume 2 : do século 19 ao limiar do século 20”
ISBN 978-85-7934-306-3 (tomo 1)
ISBN 978-85-7934-305-6 (tomo 2)

1. Linguística - História. 2. Linguística histórica. I. Título.



23-83276 CDD: 410
CDU: 81’1

Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

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zida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou
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ISBN: 978-85-7934-306-3
© do texto: Marcos Bagno, 2023.
© da edição: Parábola Editorial, São Paulo, junho de 2023.
Aos meus pais, Ilma e Alaor,
que me permitiram conhecer a linguagem.

V
Índice geral

Nota do editor..................................................................................................XIII

Primeiras palavras..........................................................................................XV

INTRODUÇÃO
Estou falando, logo existo!............................................................................1
■ Os três grandes “problemas” dos estudos da linguagem.................. 2
■ Escrita, Estado, estudo..................................................................................... 4
■ A língua hipostasiada........................................................................................ 5
■ A escrita é conservadora................................................................................. 7
■ Ensino, religião e ensino da religião........................................................... 9
■ Contra a hipóstase, outro exagero: a primazia da língua falada..... 9
■ A ciência linguística.........................................................................................12
■ Como evitar a inevitável interdisciplinaridade...................................13
■ Universal ou particular? Linguagem ou língua?
Histórico ou geral?...........................................................................................15
■ Formalismo vs. funcionalismo....................................................................19
■ Teoria vs. doutrina...........................................................................................22
■ Teoria, doutrina e a fogueira da Inquisição...........................................24
■ O certo, o errado e o científico....................................................................26
■ A neutralidade científica é um mito.........................................................27
■ Descrição e prescrição...................................................................................28
■ Eurocentrismo, colonização e racismo...................................................29

VII
■ Língua, linguagem, linguística… conceitos que é preciso construir...............32
■ A história que este livro conta........................................................................................34

CAPÍTULO 1
Antigas tradições orientais........................................................................................... 37
Introdução...................................................................................................................................37
1.1 Mesopotâmia.......................................................................................................................38
1.2 A tradição hindu................................................................................................................43
1.3 A tradição árabe.................................................................................................................48
Box 1a: quantas línguas árabes?....................................................................51
1.4 A tradição judaica.............................................................................................................52
Box 1b: O hebraico ontem e hoje.....................................................................57

CAPÍTULO 2
Grécia e Roma: da filosofia à gramática e além...................................................... 59
Introdução ..................................................................................................................................59
2.1 A revolução do alfabeto..................................................................................................59
2.2 A palavra gramática.........................................................................................................63
2.3 O lugar da linguagem na filosofia grega..................................................................64
2.4 Natureza ou convenção?................................................................................................67
2.4.1 O Crátilo de Platão.................................................................................................69
2.5 Gregos e bárbaros.............................................................................................................72
2.6 Platão: ónoma e rhēma....................................................................................................73
Box 2a: Substância e acidente..........................................................................77
2.7 Aristóteles e as impressões na alma.........................................................................78
2.7.1 Filosofia aristotélica da linguagem................................................................79
2.7.2 Origem do termo “sujeito”.................................................................................80
2.7.3 Origem do termo “objeto”..................................................................................82
2.8 Os estoicos............................................................................................................................83
2.8.1 Contribuições estoicas à teoria gramatical................................................85
2.8.2 A categoria gramatical de “caso”.....................................................................88
2.8.3 O tempo e o aspecto nos verbos......................................................................89
Box 2b: O longo processo de construção da
doutrina gramatical............................................................................90
2.9 As cidades-Estados e suas colônias...........................................................................91

VIII UMA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA, tomo 1: Da Antiguidade ao Iluminismo


2.10 As conquistas de Alexandre.......................................................................................93
2.11 O período helenístico....................................................................................................94
2.12 Os gramáticos alexandrinos.......................................................................................96
2.12.1 Dionísio Trácio..................................................................................................100
2.12.2 Apolônio Díscolo..............................................................................................100
2.13 Gramática e ideologia linguística..........................................................................104
2.13.1 Primeiro equívoco: distorção das relações entre fala e escrita....106
2.13.2 Segundo equívoco: visão negativa da mudança linguística...........107
2.14 A gramática em Roma................................................................................................108
2.14.1 Gramáticos romanos......................................................................................109
2.15 O lugar da gramática na formação do cidadão romano..............................111

CAPÍTULO 3
Idade Média: um longo intervalo de mil anos...................................................... 113
Introdução................................................................................................................................113
3.1 As Sete Artes Liberais...................................................................................................116
Box 3a: Consequências da autonomização do estudo
da gramática..........................................................................................117
3.2 Antes da Idade Média: a Antiguidade tardia......................................................118
3.2.1 Jerônimo e a Vulgata.........................................................................................119
3.2.2 Agostinho, o último filósofo antigo.............................................................119
3.3 Autores da transição.....................................................................................................121
3.3.1 Boécio e a Roda da Fortuna............................................................................121
3.3.2 Cassiodoro e o Vivarium..................................................................................123
3.3.3 Isidoro de Sevilha e as Etimologias.............................................................123
3.4 A Idade Média inicial e central.................................................................................128
3.4.1 A conversão dos godos.....................................................................................129
3.4.2 Beda, o Venerável................................................................................................130
3.4.3 Alcuíno de York e a Reforma carolíngia....................................................131
3.4.4 A conversão dos eslavos..................................................................................132
3.4.5 Inglaterra e Irlanda: o uso do vernáculo..................................................134
3.4.6 O misterioso Primeiro Gramático................................................................135
3.4.7 O trovadorismo provençal..............................................................................136
3.5 A redescoberta de Aristóteles e as primeiras universidades......................137
3.6 A gramática especulativa............................................................................................140

Índice geral
IX
3.7 Os modistas......................................................................................................................143
Box 3b: A ilusória divisão entre lógica e gramática........................148
3.8 Testemunhos da mudança linguística ..................................................................149
3.8.1 O Appendix Probi.................................................................................................149
3.8.2 Os Juramentos de Estrasburgo.....................................................................152
3.8.3 A carta de fundação da igreja de Lordosa................................................154
3.8.4 Outros fenômenos de mudança documentados....................................155

CAPÍTULO 4
Renascimento e Era Moderna: a volta aos clássicos
e a descoberta do Outro................................................................................................... 159
Introdução ...............................................................................................................................159
4.1 Florença e Veneza..........................................................................................................160
4.2 O humanismo...................................................................................................................161
4.3 Revalorização do latim e do grego..........................................................................163
4.4 Interesse pelo hebraico e pelo árabe.....................................................................166
4.5 A expansão colonial: do universal para o particular.......................................169
4.6 A ciência moderna.........................................................................................................178
4.7 A imprensa........................................................................................................................181
4.8 A Reforma .........................................................................................................................185
Box 4a: latim clássico vs. latim vulgar....................................................187
4.9 A gramatização das línguas vulgares.....................................................................188
4.9.1 A elevação do status das línguas vulgares e sua gramatização.......189
4.9.2 A gramatização do português.......................................................................197
4.9.3 A relatinização.....................................................................................................212
4.10 A fixação da norma e o surgimento dos “clássicos”......................................214

CAPÍTULO 5
Séculos 17 e 18: a razão, a empiria e o Iluminismo.......................................... 219
Introdução................................................................................................................................219
5.1 A imperfeição da língua e a necessidade de reformá-la................................220
5.2 Racionalistas vs. empiristas.......................................................................................226
5.3 Locke vs. Leibniz.............................................................................................................228
5.3.1 Locke e a arbitrariedade radical das línguas..........................................228
5.3.2 Leibniz e a universalidade do entendimento humano.......................234

X UMA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA, tomo 1: Da Antiguidade ao Iluminismo


5.4 O racionalismo de Port-Royal...................................................................................241
5.5 Condillac e o empirismo continental.....................................................................247
5.6 Tooke e as abreviações................................................................................................259
5.7 A origem das línguas.....................................................................................................262
Box 5: origem e evolução das línguas........................................................263
5.8 As academias, o francês, o purismo e a Revolução..........................................266
5.8.1 A Accademia della Crusca...............................................................................266
5.8.2 A Academia Francesa, o purismo e o prestígio do francês................268
5.8.3 A política linguística da Revolução Francesa..........................................273
5.9 O Iluminismo e a Enciclopédia..................................................................................276
5.9.1 O Século das Luzes.............................................................................................276
5.9.2 Os philosophes e a Enciclopédia....................................................................278
5.9.3 A língua e a linguagem na Enciclopédia: a etimologia de Turgot...280
5.10 O legado do período...................................................................................................292
5.11 O sânscrito e o futuro da linguística....................................................................292

Índice geral
XI
Nota do editor

E sta breve nota é apenas um convite à leitura detida e conse-


quente dos dois tomos de Uma história da linguística — tomo
1: Da Antiguidade ao Iluminismo, tomo 2: Do século 19 ao limiar do
século 20. Dividida em dois volumes, esta História registra o resul-
tado depurado da mente inquisitiva do autor e resulta da prática
diária de leitura, pesquisa e escrita em que ele persevera “manu
diurna, manu nocturna”.
Finalmente, depois das hesitações produzidas pela inseguran-
ça e instabilidade da pandemia de covid-2019, vemos vir à luz um
projeto adiado, mas agora cuidadosamente editado. Mesmo sempre
envoltos em incertezas, eis-nos aqui, autor e editora, abrindo ante
os olhos de nossas.os leitoras.es o convite-livro para um longo tra-
jeto centrado na história da linguística, mas com grande-angular es-
cancarada para a aventura do conhecimento inteira. Estamos dian-
te de Uma história da linguística aberta, abrangente. Bagno situa os
estudos da linguagem, em todas as suas áreas e subáreas, contra
o grande pano de fundo das ciências em geral, em absoluta apro-
ximação com a filosofia, aqui tornada a filosofia da linguagem dos
pensadores selecionados para figurar nesse panorama histórico.
Enquanto produzíamos o livro, demos a esse projeto um ca-
rinhoso apelido: HistLing! A certo momento, ficou clara a proxi-
midade dessa abreviatura com o termo “estilingue”, e há intenção
nisso: Uma história da linguística é um estilingue tensionado contra
a compartimentação e nos faz desejar que sua leitura leve novos
termos e referências ao moinho da pesquisa e à compreensão de

XIII
nosso público leitor. Nossa HistLing, a primeira história da linguística escrita
diretamente em português, é um panorama fecundo. Também inventamos
para os textos laterais o nome “laterários”, em mais uma aproximação, para
dizer: há muita, muita, muita literatura especializada e inspiradora nas late-
rais deste livro, assim como em seus boxes. Deixem não de lê-los. Também
não deixem de, durante a leitura, abrir os qr-codes para verem em cor o que
ali estiver indicado.
Em síntese, esta é uma daquelas iniciativas que justificam a existência
de uma editora, de um editor. A par de ser uma história vibrante da linguís-
tica escrita à perfeição, este livro assume posição: o autor não se contenta
em descrever, não se engana com a possibilidade impossível duma inviável
neutralidade. Estamos diante de uma obra que toma do martelo e bate pre-
gos para fixar os cenários do que se faz e fará em línguas/linguagens na con-
temporaneidade como efeito da história aqui descortinada. E isso sempre
contra os dogmatismos. Uma história que se ancora por instantes em Milton
Santos antes de fazer seu grande périplo não poderia nos propor menos que
isso. Nos termos do autor,

este é um manual de história da linguística, isto é, uma narrativa que pre-


tende contar de que modo a linguagem e as línguas têm sido examinadas e
concebidas ao longo dos séculos […]. O historiador não é alguém que “conta a
verdade” sobre os fatos, mas é alguém que elabora um discurso sobre os aconte-
cimentos, uma elaboração discursiva que se vincula às opções teóricas, às con-
cepções filosóficas, às filiações ideológicas do narrador, ao tempo, ao lugar e à
cultura em que vive [p. 32].

Uma história da linguística é um fruto maduro que nos convida a expor


ao atrito com o conhecimento nossa invencível ignorância. Falta a nossa res-
posta de leitoras.es: nos aventurarmos a extrair, em variada medida, o sumo
que escorre dessa fruta de um saber carregado de sementes.

Marcos Marcionilo
São Paulo, 23 de maio de 2023

XIV UMA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA, tomo 1: Da Antiguidade ao Iluminismo


Primeiras palavras

É sem hesitação alguma que me coloco entre aquelas pessoas in-


capazes de nomear qualquer outro objeto de fascínio e arreba-
tamento intelectual que não seja a linguagem humana. Esta exclu-
sividade da nossa espécie, que para a grande maioria é tão natural
quanto respirar, a ponto de quase não merecer uma reflexão mais
detida, constitui para mim, ao contrário, uma verdadeira mania,
uma obsessão vivida na tranquilidade ansiosa dos apaixonados. É
uma esfinge que não precisa nos desafiar, conscientes que somos de
nossa impossibilidade inerente de decifrá-la, mas nem por isso dis-
postos a nos deixar devorar — até porque essa esfinge está em cada
um de nós, é constitutiva de cada um de nós. Quando, ainda ado-
lescente, descobri que existia uma seita desses fanáticos chamada
linguística, logo tratei de aderir a ela com uma fé quase infusa e tão
cedo adquirida que jamais me faria falta ser arrebatado ao tercei-
ro céu para me dobrar em metanoia. Essa mesma devoção integral
à linguagem está na raiz da minha relação com a escrita, relação
que transcende os sentidos da própria palavra relação, escrita que
defino como uma forma de existência: scribo, ergo sum. Escrever a
linguagem, escrever na linguagem, escrever sobre a linguagem —
todas essas transitividades me são necessárias e a todas me entre-
go na certeza fingida de que vale a pena tomar a nuvem por Juno, se
Juno for sinônimo de vida.
Escritor, tradutor, linguista e professor: esses quatro avatares
de uma mesma obsessão é que me têm obrigado, cada um a seu
modo e todos de um modo só, a tentar preencher ao menos alguns

XV
dos incontáveis vácuos bibliográficos que tanto nos deixam, a nós todas e
todos que vivemos em português, em doloroso atraso com respeito a quem
lida com o mundo de dentro de outras línguas-culturas. Este livro é mais uma
dessas tentativas.
Depois de ter começado a escrever esta História, a ideia de querer dar
conta, num único livro, de mais de dois milênios de interrogações e de res-
postas provisórias acerca das línguas e da linguagem ergueu uma barragem
contra a fluidez ilusória com que vinha empreendendo a tarefa até o momen-
to. Aos poucos, no entanto, fui compreendendo a verdadeira razão daquele
bloqueio: o século 20. É que não me saía da lembrança o que certa vez tinha
me dito o mestre e amigo Ataliba de Castilho: “O século 20 é uma explosão”.
Como enfrentar aquela irrupção de escolas, de subdisciplinas, de construtos
teóricos, de rupturas e reinaugurações? O travamento perdurou até o dia em
que o amigo e mestre Carlos Alberto Faraco, com a serena lucidez dos sábios
inquietos, sugeriu que o melhor seria desdobrar a narrativa em dois volu-
mes: um que avançasse até o século 19, outro que contemplasse do século
20 até hoje. Aquelas palavras dotadas de asas, como teria escrito Homero (se
tivesse escrito alguma coisa), fizeram dissolver-se no ar o peso maciço des-
ses últimos cem anos de história da linguística que me oprimiam, muito mais
difíceis e perigosos de tourear do que os vinte e cinco séculos precedentes.
O alívio provocado por aquela sugestão oportuna me permitiu levar adiante
e a cabo a tarefa — ainda que me tenha faltado a coragem de cumpri-la por
inteiro, uma vez que este volume (repartido em dois tomos) está fadado a
ser filho único, sem a mais remota possibilidade de vir a conhecer o irmão
que nunca terá. Para diminuir ao menos um pouco a impressão de evidente
covardia no enfrentamento da missão que a mim mesmo me impus, não me
detive no século 19, mas adentrei as duas primeiras décadas do século 20,
por acreditar que sintetizam de algum modo tudo o que tinha sido produzi-
do até então no terreno das reflexões e das práticas. É uma história que se
encerra em 1921 — há pouco mais de cem anos —, ano da morte de Her-
mann Paul, bicentenário de nascimento de August Schleicher, dois nomes
que constituem etapas fundamentais na história da linguística moderna (lin-
guística moderna que, ao contrário da mitologia bem tecida pelos estrutura-
listas, não tem o Curso de linguística geral como sua certidão de nascimento).
Em 1921 se publica o volume Linguistique historique et linguistique générale,
em que Antoine Meillet reuniu alguns de seus muitos artigos publicados na
década anterior em revistas científicas — é com essa publicação, cujo título

XVI UMA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA, tomo 1: Da Antiguidade ao Iluminismo


duplo revela a filiação sólida do autor à linguística praticada no século 19
e, ao mesmo tempo, sua vontade de levar os estudos da linguagem a ultra-
passar as fronteiras um tanto restritivas daquela tradição, que encerramos
nosso relato. O fato de Meillet, nascido em 1866 e morto em 1936, ter vivi-
do exatamente metade da vida no século 19 e a outra metade no século 20,
também influiu — já num nível simbólico — sobre a decisão de encerrar esta
história com seu trabalho.
O primeiro subtítulo aventado para esta obra foi “de Platão a Saussure”,
porque, a exemplo de tantas outras histórias da linguística, a ideia inicial
era tratar da chamada tradição ocidental. Mais uma vez, porém, uma nova
intervenção amiga, a de Orlene Lúcia de Saboia Carvalho, com quem tenho a
alegria de conviver há quatro décadas, me fez recuar no tempo e no espaço
e me aventurar em outras tradições e outros terrenos, fora da cansadíssima
Europa. Ao saber que pretendia escrever este livro, Orlene me emprestou os
dois primeiros dos quatro volumes da fundamental história da linguística or-
ganizada pelo italiano Giulio Lepschy — tão fundamental que mereceu uma
cuidadosa edição em inglês, que foi a que me serviu de base principal para
esta empreitada. Justamente o primeiro deles examinava antigas tradições
não europeias de reflexão sobre a linguagem, dentre as quais selecionei a da
Mesopotâmia — por ser o berço da civilização, tal como a entendemos —, e
as tradições hindu, árabe e judaica, pelo impacto que tiveram sobre o desen-
volvimento da linguística no chamado Ocidente.
Se decidi recuar alguns milênios antes de chegar a Platão, também
resolvi avançar alguns poucos anos para além da publicação, em 1916, do
Curso de linguística geral, atribuído — apocrifamente? — ao aristocrata
calvinista suíço que veio a receber, à son insu, o título — que hoje me pa-
rece injustificado — de “pai da linguística moderna”. Tendo empreendido
uma nova tradução do Curso (publicada pela Parábola em 2021) e, no tem-
po que durou a elaboração desta história, entrado em contato com uma
cada vez mais crescente bibliografia historiográfica de crítica à suposta
originalidade das ideias expostas naquela vulgata e de desmitificação de
um ineditismo facilmente desmontável, preferi concluir a narrativa, como
já dito, com o exame da obra de Antoine Meillet, que representa uma pon-
te intelectual entre as duas épocas mais importantes para a consolidação
da linguística como uma área de conhecimento autônoma, dotada de seus
próprios instrumentos heurísticos. Ao intitular Linguistique historique et
linguistique générale seu livro de 1921, Meillet executava, precisamente

Primeiras palavras
XVII
graças à conjunção et, o gesto de não desprezar o importante empreen-
dimento da gramática comparada, vinculando-a, porém, explicitamente, à
necessidade de, a partir do conhecimento obtido pelo exame de línguas
particulares, aventurar-se pela investigação da possível contribuição des-
se conhecimento para a formulação de princípios de explicação gerais para
fenômenos observáveis, como ele escreve, em “todos os tempos” e em “to-
das as línguas”. De igual modo, a visada sociológica de Meillet, que ficaria
submersa sob o maremoto do estruturalismo imanentista que inundou a
primeira metade do século 20, seria recuperada (e cada vez mais valoriza-
da) pelo desenvolvimento da sociolinguística e da sociologia da linguagem
a partir da década de 1960, assim como suas investigações pioneiras dos
fenômenos de gramaticalização frutificariam, a partir da década de 1990,
na profusão de estudos empreendidos sobre esta que é — ao lado das re-
gularidades fonéticas e da analogia (dois instrumentos heurísticos postu-
lados pelos Jovens Gramáticos na década de 1880 e desde então jamais
abandonados, apesar de todas as polêmicas suscitadas por eles) — uma
das causas e consequências mais importantes da mudança linguística. Se
para conhecer melhor o Curso de linguística geral não hesitei em traduzi-
-lo, também, para ganhar maior intimidade com Meillet, selecionei, traduzi
e anotei vários de seus artigos, que reuni no volume A evolução das formas
gramaticais, publicado pela Parábola em 2020.
Se Meillet ainda tem o que nos ensinar, o mesmo, como se sabe, não se
poderia dizer das teses expostas no Curso de linguística geral. Se é que, de fato,
traziam em germe os postulados centrais do estruturalismo (embora muitos
intérpretes nossos contemporâneos prefiram dizer que foram os estruturalis-
tas que tentaram encontrar ali uma origem nobre para suas próprias ideias),
ainda assim não resistiram ao descrédito em que caiu o estruturalismo sob as
críticas de tantas correntes de pensamento linguístico que resgataram o social,
o histórico, o cultural e o ideológico do limbo a que tinham sido lançados pela
obsessão de estudar a língua em si e por si mesma, obsessão esta já presente
nas primeiras obras publicadas dentro do paradigma histórico-comparativo
inaugurado por Bopp em 1816, exatamente um século antes da publicação do
Curso. Segundo Bopp, as línguas que seu livro aborda são examinadas “ihrer
selbst”, tanto quanto o livro atribuído a Saussure encerra-se felicitando-se por
ter tratado da língua “en elle-même et pour elle-même” — mesmo que essa frase
final seja hoje reconhecida como uma interpolação dos editores do livro (mas
qual frase ali não é?), o fato de ter sido incluída na obra de 1916 justifica que

XVIII UMA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA, tomo 1: Da Antiguidade ao Iluminismo


nos perguntemos onde está a famosa ruptura que alegadamente inaugurou a
“linguística moderna”.
Por fim, ainda que com o risco de parecer óbvio, creio que vale a pena
justificar o título Uma história da linguística. Esse uma delimitador funciona
como salvaguarda íntima contra qualquer veleidade de produzir um relato
exaustivo, dado que a exaustividade é, por natureza, incompatível com o ofí-
cio historiográfico em qualquer área de conhecimento. Toda história é uma
história, é aquela que o autor quis ou conseguiu escrever, com a parciali-
dade inevitável a qualquer empreendimento humano, com os recursos que
estavam a seu alcance e com os critérios de seleção e exclusão que inventou
como verdade para si mesmo. Nada disso, evidentemente, o exime da crítica
que, no entanto, ela também, será sempre uma e parcial.
Quero registrar aqui um agradecimento particular a Carlos Eduardo
Deoclecio, que me ajudou a obter, em formato eletrônico, e desde seu con-
finamento involuntário em Santiago de Compostela, uma série de textos
fundamentais aos quais — nas difíceis circunstâncias materiais em que este
livro foi concluído — muito dificilmente eu teria tido acesso. Outro agradeci-
mento incontornável vai para Carlos Alberto Faraco que, além de ter desata-
do o nó górdio que por um tempo travou o caminho para a conclusão desta
obra, fez uma leitura atenta e devidamente crítica da seção do último capí-
tulo dedicada a Saussure, decerto a de mais difícil e temerária elaboração.
A parte final deste livro foi escrita no período em que o mundo enfren-
tava, atônito, a irrupção e propagação da covid-19, uma doença que pôs em
xeque todos os fundamentos movediços da fase atual da civilização humana,
apoiada num regime econômico homicida, que mais do que econômico é so-
bretudo um regime político de evidente autoritarismo e criminosa concen-
tração de riqueza nas mãos de pouquíssimos homens brancos, responsáveis
pela devastação do planeta e pelas desigualdades que condenam a imensa
maioria da humanidade à fome, à indigência e ao desespero. Não bastasse
essa tragédia planetária, o Brasil enfrentava sua tragédia particular, a de ser
desgovernado por uma criatura em tudo desprezível, grotesca, incapaz de
um mínimo de empatia e solidariedade, disposta a exterminar o povo e o
país desde que fossem satisfeitos seus interesses particulares e os de sua fa-
mília de criminosos confessos, auxiliados por uma corja selecionada entre o
que pode haver de pior na espécie humana. Em meio a tudo isso, e dilacerado
entre opções que definiriam meu destino pessoal, o abrigo que encontrei na
residência paulistana de Marcos Marcionilo foi o que me proporcionou o mí-

Primeiras palavras
XIX
nimo de estabilidade emocional para, com o trabalho, fazendo aquilo que sei
fazer, não atender ao chamado do abismo da desesperança, aprofundado dia
após dia por uma realidade duplamente cruel: a de uma crise sanitária sem
precedentes e a de uma crise política capaz de demolir a mísera democracia
construída a tão caro preço pelas brasileiras e pelos brasileiros que resistem
a todos os tipos de terrorismo de Estado acionados há séculos pelas clas-
ses dirigentes do país, talvez as mais perversas do mundo. Se hoje este livro
chega às mãos de seu público leitor, é graças ao amor que “nos junge”, como
diria Marcos Marcionilo com o humor que se vale de um léxico refinado e de
uma sensibilidade ímpar e invejável. Não é todo escritor que pode dizer, na
tranquilidade dos afetos consolidados, que tem um editor que é também, e
principalmente, a pessoa mais importante de sua vida.

XX UMA HISTÓRIA DA LINGUÍSTICA, tomo 1: Da Antiguidade ao Iluminismo


INTRODUÇÃO
Estou falando,
logo existo!
Uma história da linguística é a primeira obra escrita em por-
tuguês que se propõe retraçar o longo caminho que os seres humanos
têm percorrido desde os tempos mais remotos e em diferentes civiliza-
ções em busca de decifrar essa faculdade exclusiva da espécie que é a
linguagem e sua manifestação, entre outras formas, no que se conven-

A
cionou chamar língua, essa entidade tão entranhada em nós e ao mes-
linguagem é a marca registrada, o selo de exclusividade, o
mo tempo
traço tão fugidia
distintivo que escapa
da espécie a qualquer
humana. Outros definição satisfatória. Este
animais também
desenvolveram
primeiro volumesistemas
partecomplexos de comunicação,
da Mesopotâmia, como as abe-as primei-
onde se constituíram
lhas, os pássaros, os golfinhos e os macacos, mas nenhum deles é
ras sociedades urbanizadas da história, aborda as reflexões linguísticas
tão sofisticado, maleável, flexível e poderoso quanto a linguagem
empreendidas
humana, decerto nas tradições
porque somos hindu, islâmica
dotados de ume judaica
cérebropara
que,emse-seguida se
fixarmuitos
gundo na Europa e nos desdobramentos
cientistas, das tesesexistente
é a coisa mais complexa sobre a língua/linguagem
no uni-
verso.
desdeNenhuma linguagem
a Antiguidade animal permite
greco-romana a seus usuários
até os séculos fazer de pas-
17 e 18, depois
referência não só ao aqui-agora, mas também ao que já foi, ao que
sar pela Idade Média e pelo Renascimento. Um segundo volume se dedi-
supostamente virá a ser e ao que nunca foi nem será. Além disso,
cará inteiramente
somente a linguagemaohumana
século 19 até alcançar
permite as duasaprimeiras
a abstração, simboliza- décadas do
çãoséculo 20, período
mais radical em que
possível, a linguística
como a criaçãovai
dese constituindo
mundos como disciplina
imaginários
e deautônoma,
entidadesdotada
transcendentais,
de teorias como os espíritos
e metodologias e as divindades,
próprias.
tão poderosamente criadas pela linguagem que conseguem levar
tantas pessoas a acreditar que tais entidades existem de fato, fora
da cerebração humana.
Não admira, portanto, que desde os primórdios da civilização,
os seres humanos, já fixados em ambientes urbanos e podendo de-
dicar seu tempo a outros afazeres além da busca de alimento e da
defesa de suas vidas, tenham se dedicado a refletir sobre essa ca-
pacidade misteriosa que permite a alguém produzir determinados
sons pela boca e ser compreendido por outra pessoa, que recebe
e processa esses sons atribuindo-lhes sentido. Assim, a investiga-
ção em torno da linguagem é tão antiga quanto a civilização e, sem

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