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Marcos Marcionilo
CONSELHO EDITORIAL
Ana Stahl Zilles [Unisinos]
Angela Paiva Dionisio [UFPE]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Celso Ferrarezi Jr. [UNIFAL]
Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP]
Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
José Ribamar Lopes Batista Jr. [UFPI/CTF/LPT]
Kanavillil Rajagopalan [Unicamp]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFES]
Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonha]
Roxane Rojo [UNICAMP]
Salma Tannus Muchail [PUC-SP]
Sírio Possenti [UNICAMP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
Tommaso Raso [UFMG]
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva [UFMG/CNPq]
O que é
hipercorreção?
Tipos de hipercorreção
Voltando ao verbete do dicionário, vemos que os exemplos que aparecem
ali se limitam à pronúncia (mantor por mantô, rúbrica por rubrica) ou
na escolha das palavras (genitora, considerada mais “sofisticada” do que
mãe). Mas também existe hipercorreção na morfossintaxe, isto é, nos
modos como construímos nossas frases, nossos textos ou — para usar
uma palavra mais conhecida — na gramática do que escrevemos.
O caso do verbo haver no plural, que vimos acima, é um exemplo de
hipercorreção morfossintática. O elemento morfo- vem do grego e
significa “forma”: o erro de houveram está na forma do verbo, que deve
ser houve. O termo sintaxe, também do grego, significa “organização,
composição, combinação”: o erro de houveram está no fato de que não é
correto “combinar” o radical houv- com a terminação -eram quando o
verbo tem sentido impessoal nem fazer a concordância com o que vem
depois (“reclamações”, no nosso exemplo).
Neste breve manual, vamos nos ocupar principalmente dessas
hipercorreções morfossintáticas porque nosso interesse aqui é a escrita
formal, aquela que cria no leitor a expectativa de um texto coeso,
coerente, que mostre uma escolha adequada de vocabulário e seja bem
construído gramaticalmente. Justamente por ser formal é que essa
escrita corre o risco maior de apresentar hipercorreções, se a pessoa que
escreve não tiver segurança nos usos adequados dos recursos da língua.
Infelizmente, muitos dos fenômenos de hipercorreção — ou pelo menos
os mais comuns — se devem a um ensino de língua pouco satisfatório,
resultante de uma concepção equivocada do que seja escrever bem.
Muitas professoras e professores ainda parecem acreditar que a gente
produz um bom texto escrito pela simples eliminação de determinadas
palavras, que devem ser substituídas por outras. Alguns casos
frequentes são a troca de que por o qual e de mas por porém. Ora, essas
substituições não garantem, nem de longe, uma boa produção escrita: os
fatores que realmente garantem um texto de qualidade são outros e eles
é que deveriam ser objeto de ensino explícito e sistemático na educação
linguística em todos os níveis2.
Outro equívoco é supor que toda manifestação escrita tem que ser
obrigatoriamente rebuscada, recheada de palavras e construções pouco
habituais, tidas por mais “sofisticadas” (exatamente o que chamo, neste
livro, de “falsas elegâncias”). Esse equívoco vem da ideia, sem
fundamento, de que “escrever é diferente de falar” e de que é preciso
“eliminar as marcas de oralidade da fala”. No entanto, um bom texto
escrito é aquele que tem ritmo, que flui, que não faz a gente tropeçar o
tempo todo em pedregulhos verbais. Costumo dizer que escrever bem é
escrever simples: é perfeitamente possível obter um texto elegante sem
precisar recorrer a pérolas postiças e medalhas enferrujadas3.
1. POSSUIR
O verbo ter, e seu equivalente em qualquer língua do mundo, figura no
topo da lista dos mais empregados. Junto com ser, ver, dar, fazer, ir,
vir, pôr, querer, poder, dizer, ouvir, pegar, saber, levar, trazer etc., é
um desses verbos imprescindíveis para a interação social por meio da
linguagem em qualquer comunidade humana. Não por acaso, são
sempre esses os primeiros verbos que nos ensinam quando aprendemos
línguas estrangeiras. Com esses e uns poucos outros é possível dizer
praticamente qualquer coisa em qualquer língua.
Também conhecemos bem a versatilidade de ter:
● verbo pleno: Minha casa tem três quartos.
● verbo suporte: tenho medo, tenho sede, tenho horror, tenho dó etc.
● verbo “existencial”: tem muita gente nessa sala; hoje tem feijoada etc.
● verbo auxiliar: tenho cantado, teriam falado, tínhamos viajado etc.
Essa alta frequência de emprego do verbo ter acabou agindo contra ele
mesmo. Muitas pessoas, movidas pela visão tradicional de que a escrita é
sempre rebuscada e de que a fala é sempre “descontraída”, se puseram a
evitar o verbo ter, empregando em seu lugar um suposto sinônimo mais
“sofisticado”, o verbo possuir.
O problema não está no verbo em si, é claro, mas na inadequação de
alguns de seus empregos9:
(1) Possuir seguido de complementos pouco adequados à semântica do
verbo:
Você possui resiliência? […] Ser resiliente significa ter disposição e coragem
para lutar, possuir desenvoltura para se superar e ter atitude para solucionar
problemas, e não aumentá-los.
Entre os jogadores de games para plataformas móveis (tablets e
smartphones), a pesquisa aponta que o país possui 24 milhões de jogadores.
Você possui ciclo menstrual saudável? Veja alguns distúrbios menstruais
[…] o atestado de amamentação fornecido pelos médicos obstetras não
possui nenhum respaldo na esfera trabalhista ou previdenciária.
(2) Possuir empregado como verbo-curinga, em construções em que outro
verbo poderia conferir mais precisão semântica ao enunciado:
Tata Nano já possui 500 mil pedidos de compra na Índia!
trata-se de um modelo de automóvel. Ora, um modelo de automóvel não
pode “possuir pedidos”; mais adequado aqui seria empregar recebeu, por
exemplo.
O Consulado Geral de Portugal, ao pedir o HC em favor de […], sustentou
que pelo fato de o português viver em união estável com brasileira há mais
de cinco anos e possuir três filhos e neta, também brasileiros, ele não
poderia ter sido expulso do território nacional.
o verbo possuir, quando tem como objeto uma pessoa, adquire o
significado de “possuir sexualmente, manter relações sexuais”, o que torna a
construção possuir três filhos e neta mais do que inadequada no texto.
Observe-se que aqui estamos no campo jurídico, onde a hipercorreção faz a
festa, devido ao mito de que a linguagem jurídica tem de ser sempre
rebuscada e, de preferência, hermética.
Carlos possui salário de R$ 2.800,00 mensais e realizou 18 horas extras. Qual
o valor bruto das horas extras que Carlos terá para receber? R: R$ 343,63.
salário não é algo que alguém “possua”: as pessoas recebem salários.
Cerca de 87% dos internautas de 5 a 18 anos não possuem restrições ao uso
da internet e 63% dos pais não impõem regras para o uso que seus filhos
fazem da rede.
aqui o verbo possuir ocupa indevidamente o lugar de sofrer: os internautas
não sofrem restrições dos pais.
Advogados possuem desconto na compra de scanner.
de novo, uma imcompatibilidade semântica entre possuir e seu objeto,
desconto. Aqui um verbo mais adequado seria recebem, têm direito a,
contam com etc.
Vegetarianos possuem menor risco de doenças crônicas
nova incompatibilidade entre verbo e objeto: os vegetarianos apresentam /
exibem / demonstram menor risco de doenças crônicas.
Homens têm mais cartões de crédito e possuem fatura mais salgada que
mulheres.
a fatura não é algo que alguém “possua”; aqui o verbo seria até
dispensável, podendo ser substituído por um possessivo: “e sua fatura é
mais salgada”.
(3) Possuir usado com muita frequência num mesmo texto, sintoma da falta
de segurança no bom domínio da escrita formal por parte de quem redigiu,
como nessa página da Wikipédia sobre a região Nordeste:
A Região Nordeste é uma das cinco regiões do Brasil definidas pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 1969. Possui área equivalente
à da Mongólia ou do estado do Amazonas, população equivalente à da Itália
e um IDH médio, comparável com El Salvador (dados de 2010). […] É a região
brasileira que possui o maior número de estados (nove no total) […]. O
território do Nordeste possui um enorme acervo de pinturas e gravuras
realizadas sobre um suporte fixo pétreo, seja em abrigos, em paredões tipo
cânion ou em afloramentos rochosos. […] A região possui os estados com a
maior e a menor costa litorânea, respectivamente Bahia, com 932 km de
litoral e Piauí, com 60 km de litoral. A região toda possui 3.338 km de praias.
[…] O rio Parnaíba é um dos poucos no mundo a possuir um delta em mar
aberto, com uma área de manguezal de aproximadamente, 2.700 km². […]
Todas as capitais da região Nordeste possuem região metropolitana (RM),
com exceção de Teresina, que possui região integrada de desenvolvimento
econômico (RIDE), por abrigar municípios de diferentes unidades
federativas. […] Todos os nove estados nordestinos possuem ao menos uma
área metropolitana em seu território, seja na sua totalidade (como Rio
Grande do Norte e Sergipe) ou parcialmente (Piauí). Nesse sentido, o
Maranhão possui três no total. São duas (São Luís e Sudoeste Maranhense),
localizadas integralmente dentro do território maranhense, e outra (Grande
Teresina) expande-se pelo Piauí. O estado da Paraíba possui o maior número
de regiões metropolitanas (doze no total).
Esse é um ótimo exemplo do que costumo chamar de “muleta textual”:
um elemento, no caso possuir, usado em praticamente todas as frases do
texto, o que o torna enfadonho, monótono, insosso. Além da repetição do
verbo em si, também se repete a construção sintática: é sempre “X
possui Y”, quando um texto bem escrito se caracteriza, entre outras
coisas, pela diversidade de fórmulas sintáticas. Se nos limitássemos,
porém, apenas ao verbo possuir, seria muito fácil substituí-lo por outros
como ter, apresentar, exibir, dispor de, contar com, revelar, acolher e por
aí vai.
A hipercorreção chega ao cúmulo da inadequação em casos como os
seguintes:
Se você possui 18 anos e ainda não tirou seu título, fique atento ao prazo!
Após a vitória do Estrelão por 1 a 0, os jornalistas catarinenses afirmaram
que o clube é “quase amador” e que o Estado do Acre “não possui nada a
ver com futebol”.
Definitivamente, ninguém “possui anos” e a expressão cristalizada na
língua é “não ter nada a ver”. São exemplificações claríssimas da
tentativa de conferir “sofisticação” ao texto, tentativa completamente
frustrada porque o resultado atesta a falta de habilidade na produção
escrita.
Sempre que a tentação de usar possuir murmurar em seus ouvidos, respire
fundo, conte até dez e escreva… ter. Assim a hipercorreção recolhe suas
nuvens pesadas e o texto adquire o brilho sereno de um céu azul sem
nuvens.
2. ENCONTRAR-SE
Assim como possuir vem sendo tratado como o equivalente “sofisticado”
de ter, também o verbo encontrar-se foi eleito como substituto “menos
comum” de estar, um dos verbos mais empregados na língua.
O mais conhecido exemplo do uso hipercorreto de encontrar-se, junto
com outros indícios de hipercorreção (o pronome o mesmo), está no
aviso aposto em milhares de elevadores do Brasil:
Antes de entrar no elevador, verifique se o mesmo encontra-se parado no
andar. Lei nº 9.502/97
Escrito em perfeito juridiquês, ou seja, na linguagem empolada dos
textos legais, linguagem que muito frequentemente prima pela
hipercorreção, o anúncio mais complica do que alerta. Bastaria escrever:
“Antes de entrar no elevador, verifique se ele está parado no andar”.
Exemplos do uso hipercorreto de encontrar-se:
Gostaria de uma informação de algum especialista quanto a etapa em que
encontra-se meu processo trabalhista referente a Horas Extras.
O meia Marco Aurélio Barbosa encontra-se desaparecido desde sábado
23/04/2011.
Acervo Virgílio Távora encontra-se disponível para pesquisas no Arquivo
Público do Estado do Ceará.
Na busca da clareza e da simplicidade de expressão, vamos tentar reservar o
verbo encontrar-se para as seguintes situações:
• quando o se for um pronome-sujeito indefinido: “Aqui se encontra os
melhores bolinhos de bacalhau da cidade” “Aqui [a gente] [você] encontra
os melhores bolinhos de bacalhau da cidade”.
• quando se for um pronome reflexivo: “Presidente francês encontra-se com
o primeiro-ministro chinês”.
3. ONDE
A palavra onde vem passando por um processo chamado
discursivização, que é quando uma palavra se esvazia de seu conteúdo
semântico original (seu significado) e passa a servir como mero
organizador do discurso falado ou escrito. É fácil verificar isso quando
observamos alguns usos frequentes de onde. Num material que reuni
para uma pesquisa, formado exclusivamente de textos escritos por
professoras e professores em formação ou já na ativa, encontrei diversos
exemplos desses usos:
Muitos profissionais se recusam a enxergar a língua falada e escrita como
meio para comunicação e expressão entre os falantes, onde esses, ao
fazerem uso dessa língua, não vão sequer lembrar das terríveis aulas de
decoreba.
E tempo de novas práticas pedagógicas, de professores que venham
enxergar um novo horizonte, onde temos de que mostrarmos a verdadeira
importância de falar, aplicar e valorizar a nossa língua materna como ela é,
um tesouro de cada um, independente de onde veio ou da família a quem
pertence, que cada indivíduo tem sua parcela de contribuição para
superarmos os desafios e dificuldades que a educação da nossa língua
materna precisa vencer.
Em uma sociedade que não houvesse normas, o caos já teria tomado conta
da situação. A regulação quer seja social ou linguística é feita através de
inúmeros fatores, quer sejam “ascendentes ou descendentes” que
objetivam centrar a realidade linguística ou social em um padrão aceitável,
onde a cidadania e a comunicação possam chegar ao objetivo.
A palavra onde, nesses exemplos, tenta organizar um discurso escrito
dificilmente organizável, na medida em que revela um domínio
deficiente das convenções da escrita formal. Na tentativa de elaborações
teóricas, os textos produzidos não esclarecem o que de fato pensa o(a)
autor(a) acerca das questões tratadas. O emprego de onde em tais textos
é sintoma de pouca familiaridade com essa modalidade de escrita.
Revelando-se como um indício de domínio insuficiente da escrita formal, a
palavra onde deve ser reservada exclusivamente para a função de
pronome/advérbio de lugar, com referência clara a algum lugar (concreto
ou figurado) que foi mencionado imediatamente antes.
O mesmo vale para o verbo fazer quando usado para se referir a medidas
de tempo: ele é impessoal e deve ficar sempre no singular:
• Faz dez anos que minha família se mudou para São Paulo.
• Já fazia dois meses que Jandira não recebia notícias de João.
• Ontem fez quinze dias que comecei no emprego novo.
5. TRATAR-SE DE
A locução tratar-se de é uma fórmula fixa. Ela é impessoal ou, se
preferirmos, traz seu sujeito devidamente cristalizado, um sujeito
indeterminado: se (“a gente trata de”). O importante é que ela só é
empregada no singular. A concordância com substantivos no plural
representa uma regra inexistente: a concordância do verbo com seu
complemento! A presença da preposição de bloqueia qualquer tentativa
de concordância. É pouco provável que alguém escreva “precisam-se de
soluções rápidas para o problema do saneamento na cidade”, já que o
sujeito, aqui também, é se, singular. Pode ser que o excesso de
concordância seja motivado pela regra gramatical que insiste em nos
exigir o plural em ocorrências como “alugam-se salas”, muito embora a
linguística brasileira já tenha provado há mais de um século que essa
concordância é irracional e ilógica11.
O receio de “errar” na concordância leva muitas pessoas, inclusive
indivíduos altamente letrados, a atingir o efeito contrário: erram no
momento em que flexionam o verbo no plural:
Tratam-se de espécies de rostro no, tão ou mais longo que o corpo,
fortemente recurvado do meio para o ápice; fêmures armados de robusto
dente em baixo.
Tratam-se de recursos interposto contra sentenças prolatada no Juizado
Especial Federal Cível desta Seção Judiciária, que declarando a prescrição
quinquenal, julgou parcialmente procedente o pedido de pagamento de
diferenças decorrentes do salário-maternidade requerido fora do termo
legal pela segurada especial (rurícola), com correção monetária pela tabela
do Conselho da Justiça Federal desde a data do parto, tomando-se como
base de cálculo o salário mínimo daquela época, além do acréscimo de juros
de mora de 1% (um por cento) ao mês, desde a citação.
observe-se aqui o típico linguajar jurídico que, muitas vezes, de tão
empolado, incorre em erros: no caso, o plural de “trata-se de” e, logo a
seguir, a não concordância de “recursos” com “interposto” e de “sentenças”
com o adjetivo “prolatada”.
Tratam-se de regras básicas sobre o fundamento e a forma de atuação do
Ministério Público.
Entre os pontos que foram pouco ou mal cobertos pela Folha, alguns até
ignorados por ela nesse episódio, destacam-se os que se seguem. Em
primeiro lugar, a motivação dos fraudadores, até agora não é
satisfatoriamente inteligível. Ou se tratavam de uns completos trapalhões ou
alguma coisa ainda precisa ser revelada sobre as razões que os levaram a
cometer ato tão desastrado.
Agora empregue a vírgula antes do que nos casos necessários por se
tratarem de frases explicativas.
Outro equívoco é tentar atribuir um sujeito à locução tratar-se de:
Mas por essa matéria já ter sido colocada e retirada várias vezes do ensino,
muitas pessoas nem sabem do que se trata a Sociologia, e é por não
saberem que eles acabam menosprezando essa matéria tão interessante, e
algumas pessoas até questionam os formados em sociologia.
CEE x MEC — Afinal, do que se trata essa briga?
Este livro trata-se de uma introdução às RI. A preocupação do autor foi
exclusivamente com o leitor que inicia-se na nova formação ou está
interessado em compreender as facetas do mundo atual.
Em síntese, é preciso saber que tratar-se de:
• é uma locução impessoal, ou seja, não tem sujeito;
• é um sintagma que introduz complementos oblíquos, ou seja, seu verbo
não tem por que concordar com esses complementos;
• em sentenças interrogativas (diretas ou indiretas), a fórmula correta é:
Sociologia: do que se trata?
O diretor te chamou com urgência, mas não me pergunte do que se trata,
porque eu não sei.
11. O QUAL
Ao lado do uso de o mesmo como pronome, um dos mais nítidos índices
de insegurança linguística e, por conseguinte, sintoma de hipercorreção,
é o emprego do pronome relativo o qual (e flexões).
Existe, na nossa pedagogia de língua, uma série de prescrições que se
cristalizaram sem nenhum motivo que as sustente. Uma dessas é a
mania que muitas e muitos docentes têm de dizer a seus alunos que é
preciso evitar a palavra que, sem, no entanto, oferecer alternativas
adequadas para evitar o que. A única coisa que se costuma dizer é que,
no lugar do que, é possível usar o qual. O resultado disso é que, junto
com as demais marcas de hipercorreção, esse pronome relativo aparece
repetidas vezes num mesmo texto e, quase sempre, de modo errado.
O pronome o qual pode ser empregado quando o verbo da oração
adjetiva é transitivo indireto e seu complemento é recuperado pelo
pronome relativo, combinado com a preposição regida pelo verbo:
● A China é um país com o qual o Brasil mantém um intenso comércio.
● A ponte pela qual passamos ontem foi levada pela enxurrada.
● O telefone celular hoje em dia é um apetrecho sem o qual muita gente não
consegue viver.
● O avião no qual viajamos era novo em folha.
Quando a preposição é monossilábica, também é possível empregar o
relativo que:
● A China é um país com que o Brasil mantém um intenso comércio.
● A ponte por que passamos ontem foi levada pela enxurrada.
● O avião em que viajamos era novo em folha.
Esse emprego de PREPOSIÇÃO + QUE, no entanto, é característico de um
estilo mais caprichado, sobretudo literário: o mais comum é mesmo
PREPOSIÇÃO + O QUAL/A QUAL/OS QUAIS/AS QUAIS.
13. “CUJO O”
Todas as pesquisas feitas sobre o pronome cujo deixam bem claro que
ele não faz parte da nossa intuição linguística, ou seja, seu uso é uma
regra gramatical que não pertence à nossa língua materna. Justamente
por isso, seu emprego é considerado difícil por muitas pessoas.
Por causa dessa sua qualidade de “corpo estranho” na língua, cujo
frequentemente aparece em construções onde seu uso é totalmente
equivocado, mesmo quando feito por pessoas muito letradas:
Inventário, cujo o filho não concorda com o que tem para receber por
direito.
Nesse exemplo temos uma construção perfeitamente agramatical, ou
seja, inaceitável para a intuição linguística do falante nativo e, também,
errada do ponto de vista da tradição normativa. Sabemos que cujo é um
relativo indicador de posse: na sentença acima, atribui-se um filho a
“inventário”, o que não faz nenhum sentido. Uma construção mais
adequada seria algo como: “Inventário com o qual um filho não concorda
quanto ao que tem para receber por direito”. Outro erro presente no
exemplo é o emprego do artigo o depois do relativo cujo. Mais uma vez,
temos aqui um exemplo extraído da linguagem jurídica na qual, na ânsia
de escrever de forma rebuscada e, se possível, hermética para o “leigo”, o
que mais encontramos é hipercorreção.
14. MEDIANTE
O verbo latino mediare (“mediar”) tinha como particípio presente, no
acusativo singular, a forma mediantem que, com a perda do -m final,
resultou na palavra mediante do português.
O antigo particípio presente se gramaticalizou na preposição mediante,
com o sentido de “por meio de”, “graças a”, “através de”, “por intermédio
de” etc. No entanto, pela semelhança com diante, muitas pessoas vêm
empregando mediante com o sentido de “diante disso”, “frente a isso”
etc. Não existe nenhum parentesco entre diante e mediante. Por isso,
estão errados usos como os que aparecem nos seguintes exemplos, onde
o correto seria diante de, devido a, por isso…:
Qual o nosso futuro mediante isso?
Através de busca em vários sites da internet, encontramos apenas nomes de
escolas e professores que atuam nesta área. Mediante isso agendamos com
uma professora do Departamento de Letras da Universidade de Caxias do
Sul — UCS — que nos orientou e forneceu material para darmos início à
pesquisa.
O estágio supervisionado tem como natureza o conhecimento da aplicação
dos conhecimentos teóricos pelas empresas. Mediante essas características,
o NEA mantém em seu acervo materiais que são pesquisados pelos alunos
dos cursos envolvidos.
18. O PORQUÊ
Uma dificuldade comum para quem escreve — incluindo profissionais
da escrita — é saber distinguir por que, por quê, porque e porquê. A dica
mais conhecida é de que, nas interrogações, se escreve por que,
separado, enquanto nas respostas se usa porque, junto12. Quando o que
é a última palavra da frase, ele vem acentuado: “Ele se aborreceu comigo
sem me explicar por quê”.
Por sua vez, a palavra porquê é um substantivo e sempre vem
acompanhada do artigo o: “Ele não quis me explicar o porquê de seu
aborrecimento comigo”. E com muita frequência, como no exemplo, vem
seguido da preposição de, sozinha ou combinada com os artigos (do / da /
dos / das).
Talvez por causa da dificuldade de distinguir entre por que e porque,
muitas pessoas vêm empregando, nas perguntas indiretas, a forma o
porquê, quando um simples por que bastaria:
Gostaria que o Banco Itaú me esclarecesse o porquê de meu CPF constar no
registro do SIS-Bacen
Gostaria que o Banco Itaú me esclarecesse por que meu CPF consta no
registro do SIS-Bacen.
Explique o porquê a Resistência Medicamentosa pode ser um processo
vantajoso.
Explique por que a Resistência Medicamentosa pode ser um processo
vantajoso.
[Para empregar “o porquê” teria sido necessário formular a frase assim:
“Explique o porquê da [ou de a] Resistência Medicamentosa poder ser um
processo vantajoso”. O uso de por que simplifica a redação, além de evitar
prováveis erros.]
Meu boleto veio mais caro do que o anunciado no site da loja: pode me
explicar o porquê?
Meu boleto veio mais caro do que o anunciado no site da loja: pode me
explicar por quê?
O deputado quis saber o porquê seu voto não apareceu no painel eletrônico.
O deputado quis saber por que seu voto não apareceu no painel eletrônico.
[Aqui, novamente, teria sido necessário usar de e o verbo no infinitivo
passado: O deputado quis saber o porquê de seu voto não ter aparecido no
painel eletrônico.]
Em perguntas indiretas, portanto, a forma escrita que ocorre é sempre
por que, separado. Se for a última palavra da frase, por quê. O uso de o
porquê torna o texto desnecessariamente pesado, já que exigiria, como
vimos acima, o emprego da preposição de e a reformulação do tempo
verbal no infinitivo. Para que complicar? Não há por quê.
20. O QUÃO
Um caso parecido com o uso do sobre “à inglesa” e também de o porquê
que já vimos é o da presença cada vez mais frequente em textos escritos
da forma o quão. Acredito que essa reaparição de um advérbio que tinha
desaparecido da prática escrita contemporânea também se deve a
traduções apressadas e capengas do inglês, neste caso do advérbio how.
Uma frase como “You don’t know how difficult my life is” seria bem
traduzida por “Você não sabe o quanto é difícil a minha vida” ou “o quanto
a minha vida é difícil”, ainda mais natural. Traduzir por “o quão difícil é a
minha vida” deixa um cheiro de mofo no ar, além de estar errado. E
assim como ocorre frequentemente com os casos de hipercorreção, não
corresponde aos usos correntes, espontâneos, à fala autenticamente
brasileira, mesmo das pessoas ditas “cultas”. É pouco provável que numa
conversa entre essas pessoas, ainda que marcada por algum grau de
formalidade, apareça “o quão”. Já disse e repito: um texto escrito que
tenha a fluidez, o ritmo e a naturalidade da fala é sempre um prazer para
os olhos e para os ouvidos, se lido em voz alta14.
Da tradução ruim para a produção de textos diretamente mal
ajambrados em português foi um pulo. Seguem alguns exemplos:
Eleições nos EUA: O quão diferente seria um segundo mandato de Trump (e
por que essa perspectiva assusta tanto seus críticos)?
Mr. Perfect: O quão perfeito você é? [título de um livro, evidentemente {mal}
traduzido!]
O quão efetivos são os mandatos de financiadores para o acesso aberto?
Não importa o quão bonita são as suas fotos ou o quão reais são as suas
citações, algumas pessoas nunca vão apertar o botão “CURTIR” só porque é
você.
O quão perigoso é o coronavírus comparado a outras doenças?
Quais são os problemas com esses exemplos?
O primeiro deles é que, no uso tradicional de quão em português,
especialmente em interrogações, não se emprega o artigo o, mas apenas
quão seguido do adjetivo: “quão diferente seria um segundo mandato?”,
“quão perfeito você é?”, “quão perigoso é o coronavírus?”. Outro erro
presente num dos exemplos é o modo verbal: “não importa quão bonitas
sejam as suas fotos ou quão reais sejam as suas citações…”.
A forma o quão, com o artigo o, tem o valor de uma conjunção
integrante, isto é, que une duas orações:
A principal conjunção integrante é que e pode ser substituída por o
quão se o objetivo for intensificar o adjetivo:
21. GRATIDÃO
O caso que vamos abordar agora não é propriamente de hipercorreção,
mas faz parte de uma corrente atual de posicionamento político que
pretende destituir a língua de expressões que supostamente trariam
algum conteúdo racista, machista, preconceituoso etc. Infelizmente, a
falta de conhecimento da história da língua acaba levando muita gente a
condenar sem razão o uso de palavras que nunca tiveram nenhuma
conotação negativa.
Um exemplo gritante dessa perspectiva distorcida é a etimologia
falsíssima da palavra aluno, que muitas pessoas dizem que significa “sem
luz”, quando na verdade, em latim, alumnus significava “criança de peito,
que está sendo amamentada” e, em sentido figurado, “pessoa que está se
alimentando de conhecimento”. Não tem absolutamente nada na
etimologia da palavra que remeta a “falta de luz”. Em vez de repetir o que
alguém diz ter ouvido de alguém que ouviu o galo cantar sem saber onde,
basta consultar qualquer bom dicionário.
Parece que essa mesma interpretação equivocada atingiu a palavra
obrigado/obrigada, que é usada em português há mais de trezentos
anos como forma de agradecimento. Muitas pessoas alegam que a ideia
de “obrigação” é autoritária, indica opressão, subserviência ou coisa
assim. No lugar dela, tem gente que agora usa “gratidão”. Mas é uma
tentativa inútil de “reformar” a língua: existem fórmulas idiomáticas que
estão de tal modo enraizadas na cultura dos povos que a falam que muito
dificilmente deixarão de ser usadas para serem substituídas por outras.
E duvido que alguém vá ensinar português a uma pessoa estrangeira
dizendo que ela deve dizer “gratidão” em lugar de obrigada.
Alguém pode ser cem por cento ateu e até antirreligioso, mas nem por
isso vai deixar de dizer “adeus” só porque nessa fórmula está embutida a
palavra “Deus” — a menos que a pessoa se policie o tempo todo, o que
torna seu uso da língua um verdadeiro fardo para si mesma.
Será que vamos ter de desistir também do prático tchau? Afinal, essa
palavra vem do italiano ciao que, por sua vez, deriva do veneziano s’ciao,
“escravo”, com a ideia de “pelo que você me fez eu agora sou seu escravo”.
Que outro nome vamos dar ao vermelho, que deriva do latim vermiculu-,
“vermezinho”? É que a tintura de cor vermelha era obtida esmagando-se
as larvas (os vermezinhos) do inseto chamado cochonilha.
Temos de combater, isso sim, o emprego das palavras e expressões que
nos dias de hoje veiculam posturas racistas, sexistas, homofóbicas,
preconceituosas em geral. O que deve, sim, ser posto em xeque e
combatido é o hábito de chamar alguma coisa ruim ou malfeita de
“trabalho de índio”, é usar “mulherzinha” como termo pejorativo
(especialmente para se referir a meninos que não encarnam o
estereótipo do “macho”), é empregar o rótulo “coisa de preto” com
pesada conotação racista, enfim, denunciar e combater o recurso a toda
uma grande quantidade de expressões que deixam transparecer as
opressões sofridas por tantas pessoas há tanto tempo. Porque são essas
que exercem violência simbólica (muitas vezes acompanhada de
violência física) contra os mais diferentes grupos sociais, são essas que
têm força discursiva na consciência atual das pessoas que se valem delas
para agredir ou que são agredidas por ela. Não faz sentido lutar contra
traços culturais do passado que, de tão passado, não dizem nada aos
falantes atuais da língua: quantas pessoas sabem que trabalho vem do
latim tripalium, um instrumento de tortura? Que rosto vem do latim
rostru-, o bico das aves, ou que testa em latim significava “vaso de
barro”?
O mais grave é que, no caso de obrigado, nem sequer alguma coisa
negativa da cultura do passado a gente encontra.
Nosso verbo obrigar vem do latim obligare, formado de ob-, uma
preposição com o sentido (entre outros) de “diante de; com relação a”, e
de ligare, “ligar”. Seria então algo como “ligar uma coisa a outra,
vincular”. Embora o verbo obrigar tenha perdido esse sentido para se
tornar o que é hoje, o particípio obrigado conservou aquele sentido mais
remoto. Quando alguém dizia “obrigado”, a ideia primitiva era: “pelo
favor que você me fez, eu estou ligado a você por um vínculo”, no caso,
um vínculo de gratidão, de reconhecimento e, por extensão, de favor a
ser retribuído — tanto que a gente costuma até dizer “fico te devendo
essa” como forma de agradecimento. É fácil ver que em obrigado a marca
cultural que está embutida é a da cortesia, a de uma forma de sociedade
em que as pessoas ficavam ligadas entre si pelos favores que se
prestavam mutuamente.
Esse sentido de obrigado como ligado pela gratidão está presente em
várias línguas. Em francês dizemos merci para agradecer; em espanhol,
gracias, semelhante ao italiano, grazie. Em inglês, usa-se o verbo to
thank: “thank you” ou “thanks”. Só em português é que se generalizou
entre o povo o agradecimento do tipo obrigado ou muito obrigado. Mas
em francês, numa linguagem mais formal, é possível usar obligé com o
sentido original da palavra: “Je vous suis très obligé”, literalmente “eu vos
sou muito obrigado”, ou seja, reconheço o que você me fez e isso cria um
vínculo entre nós. O mesmo se diz em italiano com obbligato (e mesmo
com obbligatissimo) e em inglês com much obliged, que é a exata tradução
do nosso muito obrigado. São usos formais, ao contrário do nosso.
Por que abrir mão de um modo de expressão tão antigo e com uma
história tão bonita? Em nome de uma falsa interpretação etimológica?
Não, obrigado…
EM SÍNTESE…
Seria muito bom se pudéssemos abandonar a secular superstição de que
escrever é sempre sinônimo de “escrever difícil”. A desigualdade social,
que reserva a uma minoria o acesso a uma boa educação e, com ela, à
aprendizagem adequada da leitura e da escrita, pode estar na origem
dessa superstição, como se escrever bem fosse um dom especial, um
privilégio “natural” de poucas pessoas, uma espécie de atributo das
classes sociais privilegiadas — quando, de fato, a leitura e a escrita são
direitos de toda cidadã e de todo cidadão, sendo um dever do Estado
criar condições para que toda a população se apodere dessas habilidades
tão importantes, fundamentais para a vida moderna.
É perfeitamente possível escrever um texto, mesmo com maior grau de
formalidade, usando palavras simples, construções sintáticas habituais
etc. Uma escrita elegante e bem-sucedida não precisa obrigatoriamente
ser hermética e empolada. É até melhor que não seja.
A insegurança linguística, já vimos, é o terreno em que brota a
hipercorreção. E a hipercorreção, por sua vez, se caracteriza pelo uso e
pelo abuso de “muletas” lexicais e gramaticais que, erroneamente tidas
como sofisticadas, na verdade deixam o texto atravancado, mal
articulado e, muitas vezes, incoerente.
É importante também desconstruir a crença — igualmente infundada —
de que “escrever é diferente de falar” e de que, por isso, é preciso “evitar
os traços de oralidade” na escrita. As relações entre fala e escrita são
muito mais complexas do que essa visão simplória. E se um texto escrito
puder “falar” aos nossos ouvidos, mesmo que em silêncio, é porque tem
ritmo, tem harmonia, está bem lubrificado, nada arranha.
Escrever bem é escrever o necessário e de forma clara. Evidentemente,
isso se aplica à escrita sem finalidades literárias, estéticas — afinal, a
profusão de palavras pode fazer parte do projeto criativo dos artistas de
uma língua como Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, no Brasil; James
Joyce, na Inglaterra; Marcel Proust, na França etc. Mas os artistas da
língua não se formam na escola, nem pode ser objetivo da escola formar
grandes escritores e poetas: como formadora de cidadãs e cidadãos, cabe
à escola propiciar às pessoas que a frequentam o acesso à cultura letrada
e às tecnologias da leitura e da escrita para finalidades da vida em
sociedade, do exercício dos direitos e deveres de cada um e cada uma.
EXERCÍCIOS
Da hipercorreção para a simples
correção