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TEORIA DA LITERATURA II
de seus subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças
estabelecidas à medida que eles foram se espelhando na sociedade e nas di-
ferentes culturas.
São apresentadas as características relativas aos conteúdos, à identidade e à
contextualização histórica dos três gêneros literários clássicos: o lírico, o épico
e o dramático, mostrando que tal categorização não é definitiva e permanen-
te. Nesse sentido, esta obra também expande o sentido da leitura para outras
expressões artísticas, criando relações entre a literatura e as diferentes artes
humanas, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema.
As informações aqui trazidas favorecem a reflexão e o desejo de conhecer
melhor as obras que constituem uma biblioteca mínima para o entendimento
desse universo, indo além dos limites da orientação do profissional docente,
capacitando o leitor a se comunicar com qualidade com os textos literários e
também com o mundo que eles representam e presentificam. Afinal, a teoria
aliada à prática cotidiana constitui o fundamento da aprendizagem, do conhe-
cimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético.
Apresentação 9
Gabarito 183
Referências 195
9
Apresentação
O estudo teórico da literatura implica conhecer os modelos que orientaram, explícita ou im-
plicitamente, a criação de textos literários ao longo da história da cultura. Assim, uma obra que se
proponha a i nvestigar os gêneros literários, como esta que ora apresentamos, procura trazer infor-
mações que esclareçam a origem de termos e conceitos, os textos mais importantes dos diferentes
gêneros e subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças estabelecidas entre
os textos, na medida em que eles foram se espelhando e interagindo uns com os outros.
O primeiro objetivo deste livro é apresentar as linhas gerais que definem os três gêneros lite-
rários clássicos: o lírico, o épico e o dramático. Ao mesmo tempo, os conteúdos mostram que essa
classificação não é definitiva e permanente, em especial na atualidade, momento em que a cultura
e a literatura passam por alterações profundas dos paradigmas da ciência e da arte.
A tarefa de atingir esses objetivos permite que, a cada assunto tratado, as informações trazi-
das favoreçam a reflexão do leitor e o desejo de conhecer melhor as obras citadas. Estas constituem
uma biblioteca mínima para o aprofundamento dos tópicos desenvolvidos, dado que a aprendi-
zagem integral se faz também com a continuidade dos estudos, fora dos limites da orientação
do profissional docente, quando o estudante se lança, por desejo e vontade próprios, à leitura e à
pesquisa complementares.
Por fim, a teoria da literatura que trata dos gêneros literários auxilia fortemente na com-
preensão do fato literário e das razões que orientaram os escritores a criar poemas, narrativas e
peças de teatro filiados de alguma maneira a textos anteriores e a concepções discursivas que fo-
ram se repetindo ao longo do tempo. É a permanência de algumas características que, guardadas
as devidas proporções e contextualizações, continuam a direcionar o pensamento criativo ou a ser
combatidas por esse pensamento, na busca de novas formas de expressão escrita.
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Para tratar da natureza do fenômeno literário, convém lembrar que ele é uma criação his-
tórica, ideológica e mutante. Isso se deve a vários fatores: o primeiro deles diz respeito à ideia que
se faz sobre a constituição do que seja um texto literário, que resulta em uma unidade completa e
polissêmica. Para tanto, convém analisar a natureza do texto literário para que seja possível estabe-
lecer alguns parâmetros de avaliação e julgamento.
[...]
Vi terras da minha terra,
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
[...]
(BANDEIRA, 1970)
É possível encontrar nesses poucos versos uma das razões da existência da literatura: ver ter-
ras, andar por espaços reais deixam marcas no ser humano viajante, mas o que realmente tem im-
portância é a invenção, aquilo que, se não existe em algum lugar, existe no desejo do escritor. E é o
fato mais importante, mais real do que a própria realidade. Essa condição de criação de realidades,
a partir de estímulos do concreto, do referencial, do observável, é a condição básica da literatura.
Mesmo que esteja lastreada no real, é pela capacidade de recriação, de refeitura, de tradução em
palavras que o mundo ganha existência.
12 Teoria da literatura II
Nesse fragmento de poema de Cruz e Sousa, pode-se observar como a descrição da natureza
física (trevas, mares, estrelas, tardes) não se referem à sua forma concreta, mas devem ser entendi-
das como metáforas, figuras que apontam para modos de ser íntimos, da alma. Entre as palavras ali
apresentadas, também se observa uma relação de correspondência de sentidos: as trevas da noite
são as trevas da alma (a dor, o sofrimento, a angústia e outros). O calabouço é mais a prisão do
corpo, que evita que a alma possa subir às imensidades do espírito.
A linguagem cotidiana visa mais a ação e a informação, para atingir o nível da compreensão,
mas dificilmente pede atitude interpretativa, como o faz sempre a literatura.
Vejamos como isso ocorre em textos concretos.
A mesma engenharia que encurtou assombrosamente as distâncias entulhou o
mundo com automóveis que atravancam as vias expressas e cuja fumaça prome-
te esturricar o planeta. Na tentativa de compreender os mistérios que permeiam
uma estranha economia na qual mais e menos não se anulam, muitos se puse-
ram a analisar seus eventos capitais – especialmente a Segunda Guerra Mundial,
aquele que talvez seja o mais importante dos acontecimentos do século XX.
(CASTRO, 2007)
Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
Outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
E o hálito selvagem da liberdade
Dilata os seus peitos que estalam e caem
Enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
Que nós, na escuridão, ignorávamos.
Mais do que o assunto, o que sobressai é a sequência de imagens com intenção de exaltar
o foco de resistência (“homens, a face negra de pó e de pólvora”), a poética metáfora (“o hálito
selvagem da liberdade”), o conflito em imagens de morte e vida, contraditórias e humanas (“seus
peitos que estalam e caem” opostos a “outros, vingadores, se elevam”), a sonoridade do jogo de
palavras (pó e pólvora) e a sequência de verbos que dinamiza o verso (estalam, caem, elevam).
Esses procedimentos comprovam que o texto busca outros efeitos que não são apenas os de
informar o leitor.
Além dessas qualidades, a percepção de que a literatura de teor lírico e estético recua ante o
horror da guerra, substituída pelo texto não literário do jornal, mais objetivo e informativo.
Vemos, portanto, na comparação entre os dois textos, aparecerem características e funções
diferentes que permitem compreender que a literatura tem uma natureza própria e uma função
que ultrapassa a notícia ou fato, obrigando o leitor a interpretar o que lê, não apenas a conhecer
o assunto de que o texto trata. Essa diferença exemplifica bem a afirmação de que a “literatura é
tradicionalmente uma arte verbal”.
É exatamente nas palavras – no verbal – que podemos encontrar e valorizar o caráter estético
da literatura. A linguagem entendida como “todo sistema de comunicação que utiliza signos orga-
nizados de modo particular” no dizer do linguista Iuri Lotman (apud PROENÇA FILHO, 1986).
A língua é um sistema de signos e a linguagem é uma atividade produzida pelo falante-escritor
sobre esse sistema. Portanto, a investigação sobre a natureza da literatura não pode, em hipótese
alguma, ignorar a atividade do escritor sobre o sistema da língua. É na linguagem que se revela a
qualidade do texto literário. É dessa atividade, exercida de modo pessoal e particular, que se forma
o estilo individual de cada escritor.
Pode-se concluir que uma das distinções entre o discurso literário e o não literário é que o
primeiro, enquanto objeto linguístico, está apoiado na conotação, na plurissignificação (em que
os sentidos se multiplicam pela força da interpretação do leitor), enquanto o texto não literário é
monossignificativo, de sentido mais fixo e comum a todos os leitores.
1.1.2.1 O autor
O caráter criativo do texto literário decorre do exercício de liberdade do artista, seja na ques-
tão da linguagem e da multiplicação dos sentidos, seja porque, por estar inserida em uma cultura,
a literatura realiza um movimento duplo de respeito à tradição cultural dos povos e a busca de
romper com essa tradição, instaurando o novo, o diferente, o incomum.
Essa perspectiva dialética pode ser conferida na sucessão dos estilos de época – ou períodos
literários ou tendências estéticas – ao longo da história. Eles correspondem às respostas que a arte
Natureza do fenômeno literário 15
literária foi atribuindo ao modo diferente de interpretar o mundo, próprio de cada época histórica.
Esse movimento contínuo e motivado pela necessidade e pela urgência de dar respostas aos desa-
fios do cotidiano, às manifestações do pensamento e aos impulsos do inconsciente e do imaginário,
produz o aparecimento de diferentes gêneros literários, de diferentes modos de expressão narrativa
e poética, de diferente entendimento das funções da literatura, de alterações substanciais dos mo-
dos de escrita e organização dos textos literários.
A criação literária não é, portanto, apenas um desejo individual do escritor, mas está rela-
cionada à ideologia, às condições de produção, às mudanças nas expectativas do público leitor,
ao papel do escritor na cultura, às necessidades humanas de expressão, à capacidade reflexiva
dos criadores.
No início do século XIX, o movimento artístico do Romantismo opôs-se ao Neoclassicismo
do período anterior, não pela necessidade de renovação simplesmente, mas porque não conse-
guiu mais responder aos anseios da sociedade industrial nascente, à nova percepção da natureza
– seja física, seja emocional – da sociedade burguesa, que ascendia ao poder. A linguagem literária
romântica manifesta o desejo de liberdade dessa outra visão de mundo (cosmovisão), exigindo
a quebra dos padrões da língua e da linguagem figurada, almejando uma sintonia maior com a
emergência das novas nacionalidades políticas, da curiosidade por outras terras, culturas e épo-
cas históricas. O Romantismo não apenas reage a essas alterações externas, como também cria
uma nova sensibilidade, mais emotiva, mais questionadora, menos acomodada à tradição, como
ficou comprovado na influência exercida pelo romance As Aventuras do Jovem Werther, de Goethe
(1785), que incentivou, sem o querer, uma sequência trágica de suicídio de jovens, identificados e
se reconhecendo no personagem Werther. O Romantismo criou uma literatura que, por força da
repetição de padrões ao longo dos anos em que teve vigência, formou a sensibilidade emotiva e
rebelde que passou a identificar artistas, leitores e escritores no século XIX. Tome-se o exemplo de
Byron, Victor Hugo, Musset, Álvares de Azevedo e Castro Alves.
1.1.2.2 O leitor
A literatura considerada fenômeno artístico de criação não afeta exclusivamente o artista
criador, mas estabelece exigências também quanto ao processo de sua recepção pelo leitor. Devido
à associação necessária entre autor e leitor (é o leitor que dá vida à obra literária, pois um livro não
lido existe somente enquanto um objeto), qualquer alteração inovadora nos padrões tradicionais
da escrita literária acaba se refletindo na mudança de sua forma de recepção. A quebras das nor-
mas da tragédia clássica francesa do século XVII com a representação do Le Cid (1636), de Pierre
Corneille, deu origem à longa Querela dos Antigos e dos Modernos(1653-1715), uma polêmica tra-
vada entre os intelectuais franceses partidários da escrita clássica e os que acreditavam na alteração
dos padrões dessa escrita, defendendo a modernidade.
Da mesma maneira, o século XX foi pródigo em manifestos e explicações sobre novas ma-
neiras de escrever e ler a literatura; entre eles, o Futurismo (1910), o Cubismo (1924), a Poesia Pau-
Brasil (1924), a Poesia Concreta (1956).
A quebra dos padrões tradicionais da leitura afeta o que a estética da recepção (1967), corren-
te da Teoria Literária que estuda a leitura e os modos de ler, denomina “horizonte de expectativas”,
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isto é, modos de ler aprendidos ao longo de experiências anteriores de leitura de textos formam um
modo pessoal de ler. O leitor compreende romances, por exemplo, a partir da aprendizagem cons-
truída em experiências de leituras anteriores de textos semelhantes. Em cada novo texto, o leitor
pretende aplicar seus conhecimentos e ser bem-sucedido na tarefa, aplicando padrões de leitura
conhecidos. Quando o texto é inovador, o leitor reage com desconfiança, insegurança, curiosidade
ou recusa. Há, portanto, da parte do leitor, a necessidade de ajustes do “horizonte de expectativas”
diante dos textos criativos. Uma obra de criação que propõe um estranhamento, termo com que
caracterizavam a literariedade os Formalistas Russos no início do século XX, também tem que ser
entendida como estranha pelo leitor. Assim, o ciclo da criação se completa e se efetiva.
1.2.1.1 A complexidade
Por complexidade, Proença Filho entende a capacidade da literatura ultrapassar a repro-
dução da realidade e atingir espaços de universalidade. Para tal, a literatura obedece a um duplo
movimento: debruça-se sobre si mesma, pensando e expressando seu modo de fazer e criando
essencialmente um puro objeto de linguagem. Nesse caso, o mundo e sua realidade são traduzidos
em forma de palavras e papel, formando uma outra realidade com leis e regulamentos próprios,
os da poética.
O segundo movimento se relaciona com a capacidade da literatura expressar e questionar o
mundo exterior. Esse poder de representação, denominado mimese1, demonstra a ligação do artis-
ta-escritor com a realidade do mundo exterior e da interioridade das pessoas. Essa ligação tende a
ser representada pelo discurso literário, que funciona como resposta às grandes questões, dúvidas
e perturbações da vida.
1.2.1.2 Multissignificação
Também denominada em alguns outros estudos como plurissignificação. Domício Proença
quer entender como tal a força da literatura para criar e amplificar tanto os significantes (por
exemplo, a palavra enquanto letras e sons) e os significados (isto é, as ideias que as palavras
1 Termo utilizado por Aristóteles na obra Poética, do V a.C., com o significado de “imitação”.
Natureza do fenômeno literário 17
1.2.1.6 Variabilidade
A noção de variabilidade integra indissociavelmente o modo de ser da literatura e diz res-
peito às mutações que o discurso literário e seu entendimento sofreram e sofrem em diferentes
culturas e épocas, e na mesma cultura em diferentes épocas da história. A noção de literatura como
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discurso com características específicas e próprias somente surge no século XIX. Até essa época,
poesias e narrativas integravam os escritos culturais, indistintamente. “Antes de 1800, literatura e
termos análogos em outras línguas europeias significavam ‘textos escritos’ ou ‘conhecimento de
livros’. [...]. Eram exemplos de uma categoria mais ampla de práticas exemplares de escrita e pensa-
mento, que incluía discursos, sermões, história e filosofia” (CULLER, 1999).
A variação do conceito de literatura se apóia tanto nas mudanças formais quanto na sua
representatividade dentro da(s) cultura(s).
Vimos, portanto, neste capítulo, como a literatura se apresenta enquanto construção linguís-
tica e discursiva diferenciada dos demais textos da cultura, a sua relação com a ideia de criação e
receptividade e quais as características apresentadas pelo discurso literário para se tornar distinto
dos não literários.
(TEIXEIRA, 2006)
Há muitos critérios pelos quais o leitor produz o sentido de um texto. A história da crí-
tica literária, nessa acepção, será o conjunto de transformações dos métodos e técnicas
para a construção do sentido. Por livro pode-se entender o objeto que o autor escreveu;
por trabalho de arte, o movimento das imagens desencadeadas pelo ato de leitura. Ler é
formular hipóteses sobre o modo correto de transformar o livro em obra de arte. Assim,
o conhecimento do livro arremata a produção iniciada pelo artista. As obras de arte não
existem sem enquadramento num sistema de referência interpretativa. Falar de uma obra
não é falar apenas dela, mas dos sentidos que se agregaram a ela ao longo de sua existência
como artefato verbal e como evento cultural. A história de um livro é a tradição de sua
leitura. Nesse sentido, toda obra apresenta-se como palimpsesto. Dom Casmurro não foi
escrito exclusivamente por Machado de Assis, mas por todos aqueles que procuraram dis-
cutir seu sentido a partir da estrutura oferecida pelo autor para que a história a fecundasse
com as diversas hipóteses de inclusão ou exclusão semântica. O valor de um livro será dire-
tamente proporcional à força da obra liberada por ele, a qual decorrerá das imprevisíveis
operações que constituem os atos de assimilação e interpretação. A intenção do autor não
se comunica senão como índice abstraído das configurações do texto, que poderá produzir
maior ou menor número de imagens no universo mental do leitor. Como fenômeno de
comunicação, o sentido, apenas latente na face muda do livro sem leitura, depende do leitor,
que promoverá as necessárias associações daquele objeto com as imagens e os conceitos
de sua experiência intelectual e existencial. Conhecer a crítica é dominar o repertório das
relações impostas ao leitor, as quais, obedecendo à configuração retórica do texto, oscilam
conforme as convicções de cada momento. Assim, um só livro poderia, em princípio, conter
toda a história da literatura, posto que muitas poderão ser as alterações de seu significado
Natureza do fenômeno literário 19
ao longo dos tempos. A percepção crítica de um livro não foge, teoricamente, à esfera de
conhecimento de qualquer objeto, enquadrando-se, portanto, no horizonte da física e da
gnosiologia. Se a percepção artística consiste na transformação de estímulos físicos em
noções abstratas e se é difícil caracterizar com precisão o valor da mesma coisa em diferen-
tes sociedades, mais difícil será, por certo, determinar as razões da estima de objetos polis-
sêmicos, seja um texto literário, um filme, uma pintura ou uma música. Tradicionalmente,
a produção do sentido artístico de um texto decorre da aproximação dele com a ideia de
beleza, donde resulta a dimensão de seu valor. Segundo uma visão consagrada, as coisas
apresentam qualidades primárias e secundárias. As qualidades primárias não sofrem varia-
ção no processo de seu conhecimento, mesmo que se alterem as condições de percepção.
As secundárias sofrem alteração de acordo com a mudança das circunstâncias em que são
percebidas. No escuro, não se alcança a cor de uma folha verde. O valor artístico de um
objeto será, então, entendido como qualidade secundária, pois depende intrinsecamente
da situação de conhecimento e de juízo. Se a própria física tende a considerar o cérebro
humano como componente necessário ao conceito de cor, o mesmo deve ser pensado sobre
o conceito de belo e de valor artístico, que, pela perspectiva interativa, serão sempre noções
relativas e dependentes de repertórios e de padrões histórico-sociais que integram a poética
cultural dos diversos períodos. Existem críticos que valorizam o livro a partir da observação
de traços de estilo e de recorrências temáticas que se deixam interpretar como projeção da
personalidade do autor. Conhecido como método psicológico, esse procedimento associa
biografia e arte, concebendo, não raro, o artista como um ser doentio, para quem a ativi-
dade criadora funciona como sublimação de distúrbios pessoais. Atenuando a função da
imaginação no processo criativo, tal pressuposto oferece o risco de descaracterizar o poder
de escolha na arte, pois conduz a atenção do crítico para aspectos inconscientes da criação.
Vinculado a este seria o critério daqueles que, no livro, procuram marcas da alma coletiva,
concebida como essência da nacionalidade. Denominada romântica ou nacionalista, tal
hipótese notabilizou-se pela sistematização tradicional do estudo da Literatura Brasileira,
que passou a ser dividida em Período Colonial e Nacional. Pode ser considerada variante do
mesmo princípio a linha de investigação conhecida como crítica ideológica, que examina
possíveis vestígios de classe social na configuração do texto artístico. Por não levar muito
em conta a história das formas literárias e suas dimensões intrínsecas, essa diretriz expõe-se
ao risco de atribuir à ideologia de classe o que pode pertencer ao gênero artístico. Tal seria,
por exemplo, o caso de uma análise que interpretasse o estilo digressivo do narrador de um
romance do Segundo Reinado brasileiro como traço da elite escravista do período.
Há também os críticos que procuram a identidade do texto com certo espírito geral da huma-
nidade. Segundo eles, existiriam algumas constantes universais que independem de lugar e
tempo, captadas somente por grandes artistas. Uma das dificuldades desse tipo de crítica con-
siste em que ela interpreta as assimilações de uma cultura por outra como manifestação da
onipresença da natureza humana, que desconhece a noção de geografia e de história e que,
portanto, surge com igual força tanto em comunidades primitivas quanto em comunidades
desenvolvidas. Ao eleger tal noção como categoria de valor, essa abordagem procura, na prá-
tica, aproximar literaturas tidas como menores daquelas que estabelecem o padrão de quali-
dade europeu. O adjetivo universal tornou-se tão previsível nessa área, que, em vez de descre-
ver qualquer qualidade objetiva do livro, indica, antes, carência de vocabulário crítico. Outra
hipótese valorativa muito difundida é a que se detém no grau de realismo das obras, procu-
rando nelas a fidelidade com que se retratam os homens em sua circunstância social e existen-
cial. Essa posição encontra obstáculo na suposição de que a ideia de realidade, não importa a
forma que possa assumir, impõe-se como principal objetivo de todos os artistas e tendências.
20 Teoria da literatura II
Atividades
1. Escolha um tema (amizade, cultura, morte, amor, ambição etc.) e selecione três textos lite-
rários e três textos de revistas/jornais ou científicos. Compare o modo como tratam o tema
e escreva suas conclusões.
3. Entreviste cinco pessoas sobre o sentido e a função que conferem à literatura. Reproduza as
respostas por escrito e compare-as com as ideias expostas neste capítulo. Comente o resul-
tado por escrito.
2
Gêneros literários: conceituação histórica
O estudo dos gêneros literários é fonte de permanente reflexão porque implica o conví-
vio com diferentes formas de escrever a literatura e de compreender as nuances dos diferentes
gêneros ao longo da história, bem como com a mudança e transformação da escrita literária.
Na contemporaneidade, a questão dos gêneros literários desperta muita polêmica, porque, após
as sucessivas alterações e experimentos, a literatura, hoje, admite uma pluralidade de formas e,
sobretudo, uma intensa e múltipla mescla de gêneros, que resulta em mudanças profundas na
clássica divisão em três gêneros (o lírico, o épico ou narrativo, e o dramático). Procuraremos,
por essa razão, apresentar a evolução dos gêneros, a partir da visão clássica da Antiguidade,
chegando até a conceituação contemporânea.
A etimologia do termo nasce no latim generu(m) que, segundo Massaud Moisés (1997),
significa família, raça. Já para Angélica Soares (1989) a palavra proveniente da mesma língua latina
genus, -eris, significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. Em qualquer das duas
origens, pode-se perceber a ideia de agrupamento, de coletividade. Cremos ser esta a marca mais
importante a ser considerada. Ao se tratar dos gêneros literários, será dado relevo ao conjunto de
textos que apresenta características semelhantes.
Outro aspecto diz respeito ao caráter histórico desses agrupamentos. Isto quer dizer que,
ao longo dos séculos, houve alteração na composição dos gêneros, nasceram novos e desapa-
receram alguns deles. O que indica uma natureza ligada à evolução do homem e da sociedade.
24 Teoria da literatura II
E. Deschamps afirmava que, “para julgar a prosa, é preciso espírito, razão e erudi-
ção [...]; enquanto que, para julgar a poesia é preciso o sentimento das artes e da imaginação
e são duas qualidades raras entre leitores e romancistas.” (CHASSANG; SENNINGER, 1958).
Essa concepção de exigências diferentes para formas diferentes de expressão literária – a prosa
e a poesia – já indica que há diferenças de natureza entre elas: a primeira propõe um texto com
maior racionalidade e a segunda usa preferencialmente a imaginação. No entanto, vamos encon-
trar exceções a essa visão generalista.
Os estudos críticos e também os valorativos servem-se dessas categorias ou espécies da li-
teratura para avaliar e distinguir os textos. Um escritor, ao escrever, também se reporta (embora
nem sempre com conhecimento acadêmico e teórico profundo) a essas espécies no momento de
compor e as normas que as regem funcionam como balizas, como marcas de direcionamento para
o texto que está sendo criado. Há escritores e obras que, ao contrário, conhecendo as diferentes
espécies, procuram desfazê-las, contradizê-las, renová-las ou rejeitá-las.
É o caso, por exemplo, da criação do drama romântico, quando Victor Hugo, no “Prefácio”
da peça Cromwell, em 1827, recusa os modelos da dramaturgia dos períodos históricos anteriores
(neoclassicismo e barroco) e propõe uma reformulação da tragédia clássica, defendendo o surgi-
mento do drama, uma peça teatral autônoma que incluiria elementos da tragédia e da comédia,
em atendimento à nova sociedade, ao homem renovado do Romantismo e à necessidade de uma
forma de expressão diferenciada.Também é o caso da estética pós-moderna, a partir dos anos 1950,
que defende a maior autonomia das formas literárias, podendo haver, inclusive, em uma mesma
obra a existência de dois ou mais gêneros. Assim, a narrativa (gênero épico) tem condições de in-
cluir poemas (gênero lírico) e trechos dialogados, sem a presença do narrador (gênero dramático),
além de outros gêneros textuais não literários como o jornal, a publicidade, verbetes de dicionário
e até mesmo textos de outras linguagens, como o cinema, a fotografia, o desenho e outros.
Os gêneros literários são, portanto, formas textuais que se agrupam por similaridade e que,
partindo de um núcleo comum, sofrem alterações, ao longo do tempo, em atendimento às necessi-
dades de expressão dos escritores de diferentes gerações.
Para averiguar sua permanência, ou não, vamos verificar como se desenvolveu a história dos
gêneros literários.
1 O ditirambo era uma canto de louvor a Dioniso, o deus do teatro, do vinho e da dança.
Gêneros literários: conceituação histórica 25
Observamos nessa avaliação platônica sobre a função do poeta o quanto a poesia – e por
extensão a literatura – atua na sociedade como uma atividade à margem dos procedimentos e
finalidades utilitárias, servindo a uma outra concepção de papel social. Ao mesmo tempo, essa
perspectiva desmerecedora da arte poética acaba contaminando a criação literária, como até hoje
podemos verificar quando costuma se opor às ditas ciências exatas (engenharia, arquitetura, mate-
mática, economia) e às ciências do homem e à arte.
Os diferentes tipos e modos de representar a realidade por meio da arte nascem, portanto,
sob o signo da exclusão e da marginalização social. Os gêneros literários nesse momento da his-
tória da humanidade são vistos apenas como critérios formais, já que a expressão artística é de
pouco valor e fica reduzida a um exercício de imitação em terceiro grau, sem qualidade artística
ou expressiva.
Um pouco desse preconceito foi combatido por Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), que procurou
atender a critérios mais apropriados ao objeto artístico e sistematizou melhor as formas literárias.
Em sua obra Poética (que não chegou a concluir) ele se refere às seguintes formas: a epopeia, a tragé-
dia, a comédia, o ditirambo, a aulética2 e a citarística3, privilegiando, porém, as três primeiras.
Aristóteles retoma a ideia de que a arte consiste na imitação (mimesis ou mimese) e o
prazer do leitor e do espectador está em reconhecer como o artista consegue representar bem
até mesmo o feio, o repugnante, o horrível. “A ênfase na diferença entre o mundo empírico e a
realidade da arte leva o filósofo [Aristóteles] a valorizar o trabalho poético e a se voltar para o
estudo de seus modos de constituição, a fim de detectar as diferentes modalidades ou gêneros da
poesia”, segundo Angélica Soares (1989, p.10).
Aristóteles estabeleceu a diferença entre os gêneros baseadas nos meios com que imitam,
nos objetos que imitam e na maneira com a qual imitam a realidade. Em relação aos meios, aponta
o ritmo, o metro e o canto, empregados isolada ou conjuntamente. O teatro pode contê-los todos,
mas não a epopeia ou a narrativa. Nesta, predomina o metro e o ritmo. Em relação ao objeto imi-
tado, a comédia “propõe-se imitar os homens, representando-os piores, a outra [a tragédia] me-
lhores do que são na realidade.” Para o filósofo, a comédia se preocupa em apresentar os vícios, e a
tragédia, as virtudes. Quanto à maneira de imitar, afirma que “é possível imitar os mesmos objetos
nas mesmas situações, numa simples narrativa ou pela introdução de um terceiro [o narrador],
como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou
ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas
2 A aulética, entre gregos e romanos, era a arte de tocar aulo, uma espécie de flauta.
3 Gênero de música ou poesia destinada a ter acompanhamento de cítara, instrumento de cordas, derivado da lira.
26 Teoria da literatura II
4 Mudança de ação no sentido contrário ao que foi indicado e sempre em conformidade com o verossímil e necessário.
Gêneros literários: conceituação histórica 27
a cítara), mas como texto verbal. Massaud Moisés, ao comentar a pequena quantidade de estudos
sobre os gêneros na Idade Média, informa que, na prática literária, há um surto criativo de “va-
riedades formais novas”: na poesia lírica, novas organizações das estrofes, a rima e a metrificação
ganham em variedade, surge o romance em prosa e o teatro se moderniza (MOISÉS, 1997). Esse
movimento criador desmente antigas interpretações do período histórico medieval como uma ida-
de de trevas, sem avanços ou alterações.
que, insistindo no caráter mutável dos gêneros nos sucessivos períodos históricos e no desapareci-
mento dos “esquemas estruturais repetitivos” (WELLEK; WARREN, 1971), defenderão a necessi-
dade de inovação nas obras literárias.
A mudança dos públicos leitores, a valorização da individualidade e as rápidas modificações
na preferência de formas literárias levam à elasticidade das classificações e ao rápido aparecimento
de novas espécies de textos. Sobretudo, verifica-se o desenvolvimento e multiplicação de narra-
tivas, em especial do romance, que mantém as características básicas do antigo gênero épico e o
substitui. O Romantismo favorecerá o aparecimento do romance histórico (devido ao forte acento
nacionalista que pode conter) e do romance gótico, como “um conjunto de estereótipos (descriti-
vo-acessórios e narrativos, por exemplo, castelos em ruínas, horrores católico-romanos, retratos
misteriosos, passagens secretas a que conduzem painéis que deslizam, raptos, emparedamentos,
perseguições através de florestas sombrias)” (WELLEK; WARREN, 1971, p. 294). No gênero dra-
mático, a principal contribuição é o aparecimento do drama, conforme foi anunciado e caracteriza-
do pelo escritor francês Victor Hugo no prefácio de Cromwell, de 1827. Nesse texto, o dramaturgo
francês defende o hibridismo do gênero dramático, justificando sua posição pela comparação com
a vida real, que é feita de riso e pranto, belo e feio, grotesco e sublime. O drama vem a ser, portanto,
a expressão no teatro da nova classe burguesa, com personagens saídas da realidade presente, com
linguagem coloquial e com a liberdade de apresentação de situações dramáticas, muito ao gosto do
período estético do Romantismo.
A moderna teoria dos gêneros é claramente descritiva. Não limita o número
das espécies possíveis e não prescreve regras aos autores. Admite que as espé-
cies tradicionais possam “misturar-se” e produzir uma espécie nova (como a
tragicomédia). Reconhece que os gêneros podem ser construídos tanto numa
base de englobamento ou “enriquecimento” como de “pureza” (isto é, gênero
tanto por acréscimo como por redução). Em lugar de sublinhar a distinção en-
tre as várias espécies, interessa-se – à maneira da preocupação romântica pelo
caráter único de cada “gênio original” e de cada obra de arte – em descobrir o
denominador comum de uma espécie, os seus processos e objetivos literários.
[...] O prazer que uma obra de arte literária instila no homem é composto por
uma sensação de novidade e por uma sensação de reconhecimento. (WELLEK;
WARREN, 1971, p. 297)
Esse foi um importante passo para a discussão a respeito da concepção e das classificações
dos gêneros literários porque instaurou a possibilidade de revisão dos conceitos, da introdução
no painel das diferentes espécies literárias de novas formas e de questionamento de classifica-
ções dogmáticas, já que o princípio da individualidade estabelecia a liberdade de criação e de
escolhas. O espírito romântico na criação literária espalha-se, portanto, para o estudo e crítica
dos gêneros literários.
desenvolviam-se e morriam, sujeitos ao ciclo vital que rege qualquer ser vivo. Dava-se, assim, uma
explicação científica para o aparecimento e desaparecimento de espécies e gêneros. Essa visão evo-
lucionista encontrou forte reação no filósofo italiano Benedetto Croce (1886-1952), que concebia
“todo conhecimento ou é intuitivo ou lógico, produzindo respectivamente imagens ou conceitos.
Ao conhecimento intuitivo se liga a ideia de expressão. Intuir era expressar ações que nos liberta-
riam da submissão intelectualista, que nos subordina ao tempo e ao espaço da realidade” (SOARES,
1989, p. 15). Há, portanto, nesse entendimento da criação literária, por imagens, um desligamento
da realidade empírica, o que resulta na supervalorização do indivíduo criador. Como consequên-
cia, a literatura se vincula muito mais ao imaginário do que às leis físicas da natureza. Essa aproxi-
mação com a criação subjetiva contraria as classificações de gêneros e de espécies literárias.
Dessa discussão a respeito das relações da literatura com a realidade empírica ou com o ima-
ginário levam à duas direções diferentes na interpretação dos gêneros literários:
1. realista, pressupõe que os gêneros à semelhança das Ideias platônicas, consti-
tuem realidade única, perene e pré-existente;
2. nominalista, encara as Ideias e os gêneros como simples denominações da
verdadeira realidade, as obras literárias. [...] Wladislaw Folkierski [indagou]
[...]: “os gêneros literários são preexistentes às obras ou , ao contrário, abs-
trações extraídas de algumas obras-primas mais geralmente imitadas? Se
não são preexistentes, terão todavia influência direta nas obras, nos autores,
na crítica? Constituem um código suscetível de constranger a liberdade do
escritor?” (MOISÉS, 1997, p. 245, grifos do autor)
Estava instalada a discussão e os partidários de um e outro lado foram se apresentando ao
longo do final do século XIX e ao longo do século seguinte. Com o surgimento das pesquisas e
reflexões teóricas dos formalistas russos, no começo do século XX, aprofundou-se o conceito de
que as obras literárias têm vida e leis próprias, que permitem reconhecer e classificar os textos por
sua literariedade, isto é, pela natureza própria e específica da literatura. Parte dessa natureza pode
ser localizada no conceito de estranhamento, de Chklovski. Isto é, a obra literária propriamente
considerada é aquela que, em relação às demais, consegue distinguir-se como um corpo estranho,
novo, diferente das expectativas e da história tradicionais da evolução da literatura. Esse destaque é
um dos ingredientes da obra que causa estranhamento ao leitor e à série literária em que se localiza.
Outro formalista, Tomachevski, “consideraria como traços dos gêneros um grupamento em
torno de procedimentos perceptíveis. Esses traços seriam dominantes na obra, embora houvesse
outros procedimentos necessários à criação do conjunto artístico” (SOARES, 1989, p. 17). Entre
esses procedimentos estariam a temática, os motivos e a linguagem poética figurada. O que valerá
para a significação e abrangência dos gêneros literários se localiza na dimensão histórica. Em con-
sequência, sempre estará presente no conceito de gênero a dimensão histórica.
Outra contribuição importante para a teoria dos gêneros vem de Mikhail Bakhtin, linguista
e teórico russo, que salienta o papel da percepção, isto é, das expectativas do leitor na relação com
a obra literária e com o modo com que ela filtra a realidade empírica. O agrupamento de obras
que tivessem procedimento semelhante as incluiria em gênero semelhante, do mesmo modo que a
percepção do leitor seria alterada ao longo do tempo pelas mudanças que o contexto em que vivia
poderia atuar sobre ele, e manter ou modificar sua percepção de cada gênero. “Assim, os gêneros
30 Teoria da literatura II
Essa nova proposta não encontrou eco na crítica literária recente, em que tem se discutido
com ênfase a questão dos gêneros para negá-la, dada a explosão de formas novas surgidas a partir
dos anos 1950 com o advento do pós-moderno ou do hipermoderno. Para avaliar as produções
literárias do passado, principalmente dos períodos em que imperavam normas e preceitos, o co-
nhecimento dos gêneros permite avaliar os textos que romperam, ou não, com esses padrões de sua
época. Já para a produção contemporânea, há duas posições diferentes. A primeira é a da negação
Gêneros literários: conceituação histórica 31
de toda e qualquer norma ou forma preestabelecida. A segunda é a que põe sob a responsabilidade
do leitor reconhecer, ou não, o gênero literário a que a obra faz referência e, a partir dessa cons-
tatação, avaliar a importância dessa relação. A estética da recepção, modo crítico que valoriza a
participação do leitor como construtor dos sentidos do texto e que tem em Hans-Robert Jauss um
de seus fundadores, trata os gêneros literários como uma das possibilidades de estabelecimento de
marcos históricos da literatura, ou seja, com reflexos na própria localização dos autores na história
da literatura. Também valoriza o modo variável com que o leitor reconhece e administra essas ca-
racterísticas no momento de interpretação e valorização da obra que lê.
Qualquer que seja a posição adotada, o estudo dos gêneros literários permite uma melhor
compreensão do texto e, sobretudo, permite distinguir o quanto o autor se aproxima ou afasta dos
modelos, ou valorizar a consciência crítica do autor em relação ao gênero em que sua obra venha
a se situar, inovando, usando os limites metaliterariamente, isto é, tirando proveito da exposição,
de contradições e do debate dentro do próprio texto literário que escreve.
A teoria estético-recepcional
(JAUSS, 1994, p. 41-44)
A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária
no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra
isolada em sua série literária, a fim de que se conheça sua posição e significado histórico no
contexto da experiência da literatura. No passo que conduz de uma história da recepção das
obras à história da literatura, como acontecimento, esta última revela-se um processo no qual
a recepção passiva de leitor e crítico transforma-se na recepção ativa e na nova produção do
autor – ou visto de outra perspectiva, um processo no qual a nova obra pode resolver proble-
mas formais e morais legados pela anterior, podendo ainda propor novos problemas.
De que maneira pode a obra isolada, fixada numa série cronológica pela história positivista
da literatura e, desse modo, reduzida exteriormente a um factum, ser trazida de volta para o
interior de seu contexto sucessório histórico e, assim, novamente compreendida como um
acontecimento? A teoria da escola formalista pretende solucionar esse problema – como já
se disse aqui – por intermédio de seu princípio da evolução literária. Segundo tal princípio,
a obra nova brota do pano de fundo das obras anteriores ou contemporâneas a ela, atinge,
na qualidade de forma bem-sucedida, o ápice de uma época literária, é reproduzida e, assim,
progressivamente automatizada, para então, finalmente, tendo já se imposto a forma seguinte,
prosseguir vegetando no cotidiano da literatura como gênero desgastado. Caso se intentasse
analisar e descrever uma época literária de acordo com esse programa – que, ao que eu saiba,
até hoje jamais foi aplicado –, poder-se-ia esperar de tal empreitada um quadro que, em mui-
tos aspectos, resultaria superior ao oferecido pela história convencional da literatura. Tal expo-
sição estabeleceria relações entre as séries fechadas em si mesmas – as quais coexistem na
história convencional sem nenhuma conexão a vinculá-las, emolduradas, quando muito, por
um esboço de história geral (ou seja, séries de obras de um mesmo autor, de uma escola ou de
um estilo)–, bem como relações entre as séries de diferentes gêneros, revelando assim a inte-
ração evolutiva das funções e das formas. As obras que aí se destacariam, se corresponderiam e
32 Teoria da literatura II
se substituiriam, figurariam, então, como momentos de um processo que não precisa mais ser
construído tendo em vista um ponto de chegada, pois, enquanto autogeração dialética de novas
formas, ele não necessita de nenhuma teleologia. Vista dessa maneira, a dinâmica própria da
evolução literária ver-se-ia ademais, isenta do dilema dos critérios de seleção: o que importa
aqui é a obra na qualidade de forma nova na série literária, e não a autorreprodução de for-
mas, expedientes artísticos e gêneros naufragados, os quais se deslocam para o segundo plano,
até que um novo projeto formalista de uma história da literatura que se vê como evolução e,
paradoxalmente, exclui todo desenvolvimento orientado, o caráter histórico de uma obra seria
sinônimo de seu caráter artístico: tal e qual o princípio que afirma ser a obra de arte percebida
contra o pano de fundo de outras obras, o significado e o caráter evolutivo de um fenômeno
literário pressupõem como marco decisivo a inovação.
A teoria formalista da evolução literária é decerto a tentativa mais importante no sentido
de uma renovação da história da literatura. A descoberta de que também no domínio da
literatura as mudanças históricas se processam no interior de um sistema, a intentada fun-
cionalização do desenvolvimento literário e, não em menor grau, a teoria da automatização
são conquistas das quais não devemos abrir mão, ainda que a canonização unifacetada da
mudança necessite de correção. A crítica já apontou suficientemente as fraquezas da teo-
ria formalista da evolução: o mero contraste ou variação estética não bastaria para expli-
car o desenvolvimento da literatura; a questão acerca do sentido tomado pela mudança das
formas literárias teria permanecido irrespondida; a inovação, por si só, não constituiria ainda
o caráter artístico; e, finalmente, não se teria, por sua simples negação, abolido a relação entre
evolução literária e mudança social. [...]
A descrição da evolução literária como uma luta incessante do novo contra o velho, ou como
alternância entre canonização e automatização das formas, reduz o caráter histórico da lite-
ratura à atualidade unidimensional de suas mudanças e limita a compreensão histórica à
percepção destas últimas. Contudo, as mudanças da série literária somente perfazem uma
sequência histórica quando a oposição entre a forma velha e a nova dá a conhecer também
a especificidade de sua mediação. Tal mediação pode ser definida como o problema “que
cada obra de arte coloca e lega, enquanto horizonte das ‘soluções’ possíveis posteriormente a
ela”. Entretanto, a descrição da estrutura modificada e dos novos procedimentos artísticos de
uma obra não remete necessariamente de volta a esse problema e, portanto, à sua função na
série histórica. A fim de determinar esta última – isto é, a fim de conhecer o problema legado
para o qual a obra nova na série literária constitui uma resposta –, o intérprete tem de lançar
mão de sua própria experiência, pois o horizonte passado da forma nova e da forma velha,
do problema e da solução, somente se faz reconhecível na continuidade de sua mediação,
no horizonte presente a obra recebida. Como evolução literária, a história da literatura pres-
supõe o processo histórico de recepção e produção estética como condição da mediação de
todas as oposições formais ou qualidades diferenciais.
O fundamento estético-recepcional devolve à evolução literária não apenas a direção perdida,
na medida em que o ponto de vista do historiador da literatura torna-se o ponto de fuga – mas
não de chegada! – do processo: ele abre também o olhar para a profundidade temporal da
experiência literária, dando a conhecer a distância variável entre o significado atual e o sig-
nificado virtual de uma obra – cujo potencial de significado o formalismo reduz à inovação,
enquanto critério único de valor – não tem de ser sempre e necessariamente perceptível de
imediato, já no horizonte primeiro de sua publicação, que dirá então esgotado na oposição
pura e simples entre a forma velha e a nova. A distância que separa a percepção atual, primeira,
de significado virtual – ou, em outras palavras: a resistência que a obra nova opõe à expectativa
Gêneros literários: conceituação histórica 33
de seu público inicial pode ser tão grande que um longo processo de recepção faz-se neces-
sário para que se alcance aquilo que, no horizonte inicial, revelou-se inesperado e inacessível.
Por ocorrer aí de o significado virtual de uma obra permanecer longamente desconhecido,
até que a evolução literária tenha atingido o horizonte no qual a atualização de uma forma mais
recente permita, então, encontrar o acesso à compreensão da mais antiga e incompreendida.
Assim foi que somente a lírica obscura de Mallarmé e de sua escola é que preparou o terreno
para o retorno à já longamente desprezada e esquecida poesia barroca e, em particular, para a
reinterpretação filológica e o renascimento de Gôngora. Exemplos de como uma nova forma
literária pode reabrir o acesso a obras já esquecidas podem ser dados em profusão; encaixam-
-se aí os assim chamados renascimentos – “assim chamados” porque o significado do termo
pode dar a impressão de um retorno por força própria, frequentemente encobrindo o fato
de que a tradição literária não é capaz de transmitir-se por si mesma e de que, portanto, um
passado literário só logra retornar quando uma nova recepção o traz de volta ao presente, seja
porque, num retorno intencional, uma postura estética modificada se reapropria de coisas
passadas, seja porque o novo momento de evolução literária lança uma luz inesperada sobre
uma literatura esquecida, luz essa que lhe permite encontrar nela o que anteriormente não era
possível buscar ali.
Atividades
1. Selecione um gênero (categoria) de filme (drama, comédia, suspense etc.) e procure assistir a
alguns filmes dessa categoria. Verifique quais são os componentes que se repetem e que não
são encontrados nas demais categorias e registre os aspectos mais relevantes que encontrou.
2. Escolha uma revista em quadrinhos de sua preferência e procure aplicar às histórias nela
contidas as características dos gêneros aqui estudados. Trabalhe com mais de duas histórias
e registre os resultados.
3. Compare um filme, um romance e a letra de uma canção em que o riso seja o objetivo final
dos textos. Verifique o que há de comum no modo como a história é organizada. Compare
e escreva os resultados.
3
Gêneros literários: o lírico
Dos três gêneros literários, é a poesia que adquire mais tardiamente destaque e identidade.
É apenas no Renascimento que ela ganhará estatura semelhante à do gênero épico e à do gênero
dramático. Esse nascimento tardio deveu-se a alguns fatores históricos, dos quais trataremos a
seguir. O gênero, conjunto de textos que, pela repetição de formas, funciona como horizonte de
expectativas para o leitor e “modelo de escritura” para o autor (TODOROV, 1980, p. 49), é uma
maneira reguladora de leitura e produção. O caráter discursivo do gênero literário é que lhe dá
identidade e, ao mesmo tempo, submete-se às transformações históricas, como arte humana.
O termo lírica provém do grego lyrikós, significando originariamente “som proveniente da
lira ou relativo à lira”, instrumento musical de quatro cordas. Em consequência, o gênero literário
pressupõe um componente musical, expresso pelo ritmo e pela sonoridade de versos e palavras.
Segundo Moisés (1997, p. 306), “o vocábulo lirismo foi cunhado no interior do Romantismo fran-
cês, com vistas a designar o caráter acentuadamente individualista e emocional assumido pela
poesia lírica a partir do século XIX”. Essa outra interpretação do gênero lírico indica o quanto o
momento histórico influencia o entendimento da terminologia e da teoria a respeito da literatura.
Para melhor esclarecer o que entende por símbolo, o teórico faz referência à tradição
alemã de pensamento sobre o texto poético (Schlegel, Novalis, Schelling, Kant, Hegel, Solger).
36 Teoria da literatura II
São escritores dos séculos XVIII e XIX, do apogeu do movimento literário conhecido como Sturm
und Drang (Tempestade e Ímpeto), que combateu a herança neoclássica e instaurou uma nova
literatura na Europa. Revolução essa que chegou posteriormente ao Brasil. No que consiste essa
concepção de símbolo e, por extensão, de poesia?
Poderíamos resumi-la em cinco pontos (ou cinco oposições entre símbolo e
“alegoria”): 1. o símbolo mostra o devir do sentido, não seu ser; a produção,
e não o produto acabado. 2. O símbolo é intransitivo, não serve apenas para
transmitir a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. 3. O símbolo
é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um símbolo isolado é mo-
tivado (não arbitrário). 4. O símbolo realiza a fusão dos contrários, e mais
especificamente, a do abstrato e do concreto, do ideal e do material, do geral
e do particular. 5. O símbolo exprime o indizível, isto é, aquilo que os signos
não simbólicos não chegam a transmitir; é, por conseguinte, intraduzível, e seu
sentido é plural – inesgotável. (TODOROV, 1980, p. 97)
No entanto, Emil Staiger não é de todo partidário de uma arte poética baseada exclusiva-
mente na afetividade. Ao tentar defini-la, em outro momento da obra Conceitos Fundamentais
da Poética, taxativamente esclarece: “Dizem que uma poesia é bela, e pensam apenas na sensa-
ção, palavras e versos. Ninguém pensa, entretanto, que a verdadeira força e valor de uma poesia
está na situação, em seus motivos. A partir daí fazem-se milhares de poesias em que o motivo
é nulo e que simulam uma espécie de existência, simplesmente através de sensações e versos
sonoros” (STAIGER, 1972, p. 25). É possível perceber nessas poucas tentativas como os autores
citados combatem diferentes aspectos já estabelecidos e repetidos a respeito da definição de
poesia. É mais fácil negar o que está em desacordo com a ideia dos autores do que conseguir
definir exatamente o que é a poesia lírica. No entanto, também Staiger enumera qualidades que
considera definidoras de poesia:
Se a ideia de lírico, sempre idêntica a si mesma, fundamenta todos os fenôme-
nos estilísticos até então descritos, essa mesma ideia uma e idêntica precisa ser
revelada e ter nome. Unidade entra a música das palavras e de sua significação;
atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão (1); perigo de der-
ramar-se, retido pelo refrão e repetições de outro tipo (2); renúncia à coerência
gramatical, lógica e formal (3); poesia da solidão compartilhada apenas pelos
Gêneros literários: o lírico 37
poucos que se encontram na mesma “disposição anímica” (4); tudo isto indica
que em poesia lírica não há distanciamento. (STAIGER, 1972, p. 51)
Essa ausência de distanciamento, isto é, o leitor não pode deixar de se envolver com o poema
lido, faz com que haja, por vezes, confusão entre o eu lírico (manifestação subjetiva no poema) e
o eu biográfico (o poeta enquanto ser vivo). Para que essa diferença se torne mais clara, Angélica
Soares (1989, p. 26) assim a qualifica:
1.º) o eu lírico ganha sempre forma no modo especial de construção do poema:
na seleção e combinação das palavras, na sintaxe, no ritmo e na imagística;
2.º) assim, ele se configura e existe diferentemente em cada texto, dirigindo-nos
a recepção;
3.º) e, por isso, não se confunde com a pessoa do poeta (o eu biográfico), mesmo
quando expresso na primeira pessoa do discurso. (SOARES, 1989, p. 26)
Vozes de um túmulo
(ANJOS, 1987)
38 Teoria da literatura II
Inconcebível na vida real esse poeta-defunto, mas perfeitamente possível na literatura. Lemos um
texto em primeira pessoa, com eu explícito, mas que não pode ser acreditado integralmente. Trata-se
de um texto simbólico, figurado, para tratar de assuntos relevantes à existência humana, como a força
inexorável do tempo e da morte. Fica evidente que as semelhanças físico-biológicas que possam existir
entre o eu lírico expresso nos verbos e pronomes de primeira pessoa desse texto não correspondem
ao eu empírico Augusto dos Anjos, muito vivo no momento da escrita. Pode haver, sim, semelhanças
anímicas e de pensamento, difíceis de serem comprovadas e aproximadas, porque pertencem ao ima-
ginário e ao inconsciente do autor. Muitas vezes, o poeta nem comunga dos mesmos sentimentos e usa
imagens comuns e constantes da literatura poética, repetindo-as por serem estéticas ou por estarem de
acordo com aquelas usadas no período literário em que se enquadra sua obra.
Salete Cara (1989, p. 69) conclui a definição do que acredita ser a poesia lírica com a
seguinte síntese: “o lirismo se encontra onde se encontra uma expressão particular cuja figu-
ra é criada pelas relações – de acorde ou dissonância – entre som, sentido, ritmo e imagens.
Essas relações são comandadas pela visão subjetiva de um sujeito lírico”. Observe-se a importância
dos termos que a autora grifou, porque eles expressam os elementos relevantes e indispensáveis
à poesia de qualidade.
Todorov (1980), ao tratar do gênero lírico, apresenta quatro teorias para explicar a natureza
do discurso lírico: a ornamental, a afetiva, a simbólica e a sintática. A ornamental é uma teoria
pragmática que considera o poema como um artefato retórico, isto é, destinado a agradar e não
a instruir. Consequentemente, um bom poema lírico é o mais belo, o mais carregado de orna-
tos poéticos (figuras de linguagem, figuras sonoras, construções sintáticas elaboradas). A teoria
afetiva considera que a poesia enfatiza os efeitos emotivos do poema, criando diferenças com a
linguagem comum, mais voltada para a apresentação de ideias. A poesia busca o efeito afetivo,
patético, de sentimentos. A teoria simbólica defende a diferença entre a poesia e a não poesia esta-
belecida não pelo conteúdo, mas pela maneira de significar. Essa maneira está no uso das palavras
no seu sentido de símbolos, isto é, na capacidade de exprimir o indizível, de realizar a fusão dos
contrários, de ter valor intrínseco, em si mesmo, de não ser restrito a um sentido único. A teoria
sintática prega “a coerência e unidade entre os diferentes planos do texto”, valorizando sua cons-
trução fônica, gramatical e semântica.
Mais uma vez é possível observar a pluralidade de enfoques existentes na compreensão
e definição do gênero lírico, de vez que ele está ancorado na história da literatura e da cultura,
passível de transformações do ponto de vista da produção e da recepção dos textos literários.
Os tratados científicos da Antiguidade usavam o verso, mas nem por isso os textos per-
tenciam ao gênero lírico. “Entre gregos, egípcios e hebreus a lírica associava-se, primitivamente,
às práticas religiosas. Todavia, os críticos romanos, caudatários dos gregos, enfatizaram-lhe
o aspecto estético, ou seja, consideravam-na simplesmente uma poesia de natureza musical,
acompanhada pela lira e destinada ao canto” (MOISÉS, 1997).
Quanto ao caráter musical da poesia oral e da escrita grega, é preciso salientar a constituição
da língua grega clássica, cuja acentuação era intensiva (sílabas longas e sílabas breves) e não tônica,
como na língua portuguesa. Salete Cara (1989, p. 15) esclarece que,
Embora hoje em dia a gente não possa mais saber o que foi exatamente a música
grega e pouca coisa tenha sobrado dos textos de poesia, a não ser fragmentos,
é possível observar que as palavras não tinham posição secundária em relação à
música, mas permaneciam com suas potencialidades de ritmo e canto. De canto
com as próprias palavras, sem notas musicais.
Na Grécia primitiva, o termo que designava o poeta era aedo, que significava cantor.
Era simultaneamente o autor e o recitador de sua produção, o que o distinguia do rapsodo,
que apenas executava os poemas de outro poeta.
Embora o primeiro poeta grego, Homero, tenha sido autor de dois importantíssimos poemas
épicos, a Ilíada e a Odisseia, surgiu a necessidade de uma poesia individual, como expressão pessoal,
tratando de acontecimentos da vida cotidiana e comunitária. Nascia a poesia lírica, para ser cantada
com acompanhamento musical.
Entre os vários tipos de poesia lírica grega, destaca-se a poesia mélica (de “melo-
dia”) que através de Safo e Alceu foi a que teve o acompanhamento musical mais
completo e a maior liberdade de composição.
Havia também a poesia de coro e as elegias, que conservavam um pouco das re-
lações com a poesia épica, na medida em que glorificavam deuses e vencedores
de jogos, mantendo uma certa natureza política e bélica. (SOARES, 1989, p. 15)
Entre os latinos, predominou o termo vate, significando adivinho, sacerdote, visto que suas
palavras aproximavam-se das profecias, enunciadas por sacerdotes, por inspiração dos deuses.
Essa denominação conferia ao poeta uma distinção entre os demais artistas. O termo reaparecerá
mais tarde entre os poetas românticos, no século XIX, que se acreditavam inspirados por influxos
que transcendiam o humano, com vocação distintiva dos outros mortais.
O livro sobre a arte poética, de Aristóteles, escrito no século IV antes de Cristo, contém o
pensamento da Antiguidade sobre a forma poética. Entre esses ensinamentos, salienta-se a atenção
dada à metáfora, no capítulo XXI do texto: “A metáfora é a transposição de nome de uma coisa para
outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para
a outra, por via da analogia” (ARISTÓTELES, 1964). Na linguagem da poesia, segundo o pensador
grego, a elocução do verso pode adotar diferentes espécies de nomes: ou o termo próprio, ou um
termo dialetal (que ele não recomenda), ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, a palavra
forjada, ou alongada, ou abreviada1, ou modificada. Trata-se de modos de alterações nas palavras
1 A língua grega era baseada em acentos de duração. Por isso, vogais longas produziam alongamento da palavras e
as breves, sua abreviação. As alterações provocavam efeitos semânticos diferentes.
40 Teoria da literatura II
(seja por meio de mudanças neológicas, seja na composição do termo). É possível inferir que as
palavras do autor visavam indicar que o texto poético tem o poder de intervir na língua cotidiana
para criar efeitos significativos. Essa importância dada à linguagem permanece até os dias de hoje.
Observemos um poema de Safo (séc. VII a VI a.C.) para conferir essas características:
Basta-me ver-te e ficam mudos os meus lábios, ata-se a minha língua, um fogo
sutil corre sob minha pele, tudo escurece ante o meu olhar, zunem-me os ouvi-
dos, escorre por mim o suor, acometem-me tremuras e fico mais pálida que a
palha: dir-se-ia que estou morta. (CARA, 1989)
Mais do que sentimento, o que se pode afirmar é que a poesia lírica, por intermédio da
musicalidade e da liberdade de expressão, investiga a alma humana, nela explorando as reações
diante da realidade (objetiva e de relações humanas) e, em especial, o inconsciente. A passagem das
descrições bélicas, cívicas e coletivas (da poesia épica) para a individualidade e profundidade de
exploração da alma humana não se deu num salto, de imediato. Foi passando por transformações
lentas e históricas. De uma atitude teologal, através da alegoria, pôde ensinar verdades da alma e
da religião durante a Idade Média e o Renascimento.
Gêneros literários: o lírico 41
Cumpre ressaltar que nesse período vigorou também, na poesia provençal e nas cantigas
portuguesas, uma forte corrente de poesia erótica nas cantigas d’escárnio e maldizer medievais e nos
poemas de Manuel du Bocage (1765-1805) e Gregório de Matos Guerra (1623/1633-1696).
Após o Barroco, em que se filiam esses dois poetas, o movimento Iluminista do século XVIII
criou uma poesia filosófica que desembocou no Romantismo do século XIX. Neste, a poesia tra-
tou do infinito, do universo, da natureza e da espiritualidade, bem como – por meio de imagens
em profusão, de símbolos e de musicalidade – dos sentimentos amorosos, da morte e da amizade.
O Romantismo foi o grande responsável por essa avaliação da poesia lírica como um texto literário
dominado pelo subjetivismo emocional, em que o poeta somente consegue atingir o ápice da arte
na medida em que se deixa dominar pela esfera pessoal, por seu mundo interior. É verdade que o
Romantismo traz para a arte um novo conceito de sujeito. Não mais o sujeito clássico “submetido
à convenção universalista do logos – o penso, logo existo – que definia o ego da tradição clássica”
(CARA, 1989). Mas um novo conceito de subjetividade, relacionado à liberdade de expressão, à
expressão da emotividade, à elevação do indivíduo-poeta para além da situação cotidiana e das
funções sociais burguesas: o poeta se alçará à categoria de vate, um profeta inspirado pelos deuses.
Com a chegada do Simbolismo ao final do século XIX, em especial Rimbaud (1854-1891),
e da vanguarda francesa, o poeta-vidente (voyant2) mergulha no inconsciente, o que pode ser com-
provado pela frase rimbaudiana: “Je est un Autre”(Eu é um Outro), indicando que a poesia fará
um mergulho nas zonas nebulosas da mente, do inconsciente, procurando descobrir o monstro
indecifrável que habita cada ser humano. A frase famosa foi escrita numa carta Paul Demeny em
15 de maio de 1871 e traz uma concepção original para explicar a criação artística, pois indica que
o poeta perdeu o controle sobre o que se passa dentro dele. O poeta continua: “Assisto à eclosão de
meu pensamento: eu o olho, eu o escuto...” Há um deslocamento da concepção clássica de subjeti-
vidade enquanto pólo de identidade. Perde-se essa unidade e essa referência.
O advento da psicanálise e os estudos sobre o inconsciente, realizados por Freud, estão na
base do Surrealismo e do modo automatizado de criação de poemas. O automatismo psíquico
“pelo qual [os escritores] se propõem exprimir , seja oralmente, seja por escrito, seja por outras
maneiras, o funcionamento real do pensamento. Trata-se de construir poemas ditados sob a
ausência de qualquer controle exercido pela razão e fora de qualquer preocupação estética ou
moral” (VAILLANT, 2005).
Ainda segundo Salete Cara (1989), “o sujeito lírico moderno é aquele que, a partir do
Simbolismo, toma consciência de que o espaço da poesia não é nem o espaço da realidade
(a objetividade será impossível, portanto), nem o espaço do eu (a dita subjetividade será encarada
também como ilusória)”. Há, portanto, uma dissociação entre o sujeito lírico e a poesia que o expressa
e o mundo dos sentimentos, causada pela transformação da noção de sujeito e de subjetividade.
Buscar nos poemas a manifestação exclusiva de sentimentos equivale a desconhecer a natureza e as
funções da poesia lírica contemporânea.
2 O termo aparece na obra Cartas de um Vidente (Lettres à um voyant), de Rimbaud, publicada em 1871.
42 Teoria da literatura II
O Mapa
(QUINTANA, 1994)
Podemos perceber o quanto as palavras evocam espaços e paisagens: ruas, casas, o vento,
o corpo feminino são descritos e valorizados enquanto imagens de seres existentes no real.
O leitor imagina essas imagens, sem que as palavras as desenhem de forma mimética no pa-
pel. Essa é a presença evocada das imagens numa poesia tradicional. O poema figurado traz
essa imagem com palavras em posições e formatos que tentam reproduzir a referência externa.
Vejamos, por exemplo, o poema ao lado.
Gêneros literários: o lírico 43
Esse poema francês tem como título A gravata e o relógio. Como pode ser observado, são
as palavras que, por sua distribuição pelo espaço da página, constroem e visualizam as imagens.
Do mesmo poeta, o poema Paysage sugere uma árvore:
CET
ARBRISSEAU
QUI SE PRÉPARE
A FRUCTIFIER
TE
RES
SEM
BLE
A inspiração de Apollinaire foi o cubismo, arte de vanguarda que buscava geometrizar as ima-
gens, insistindo, portanto, no valor visual e de síntese que a pintura poderia mostrar. Apollinaire,
convencido da força da imagem, denominou esses textos lirismo visual e influenciou os artistas
que o sucederam, a tal ponto que estimulou a integração entre o visual, a palavra, o som e o uso
do espaço. “Várias formas modernas de poesia como a surrealista, a experimentalista, a concreta
e a visual, exploraram as possibilidades de figurativização textual propondo caligramas como o
seguinte Pêndulo (1962), de E. M. de Melo e Castro”, segundo Carlos Ceia:
P
P
PÊ
P Ê N
O
D U L
P Ê N D L
U
N
P Ê D U
N
P Ê D
N
P Ê
Fonte: CASTRO, 2007.
Soneto Soma
A presença das imagens visuais, nascidas do desenvolvimento 14 X
da tecnologia, da sociedade imagética em que estamos imersos e da
14342
inventividade dos poetas contemporâneos, fez nascer um novo tipo 23306
de poesia, denominada poesia visual. Nela, as palavras não precisam 41612
32216
necessariamente representar a imagem. A visualidade pode vir re-
50018
presentada por outros signos não verbais, como no “Soneto Soma 14
21254
X”, de E.M. de Melo e Castro: 14018
32414
31235
54122
30425
43313
51215
89353
Gêneros literários: o lírico 45
Espero que todos concordem em que todo bom poeta, seja ele ou não um grande poeta, tem
algo a dar além do prazer: pois, se fosse somente prazer, o próprio prazer não seria no maior
grau. Além da intenção específica que a poesia possa ter [...], há sempre a comunicação de
alguma experiência nova, de algum entendimento novo do familiar, ou a expressão de alguma
coisa que sentimos mas para a qual não temos palavras, que amplia nossa conscientização,
ou apura a nossa sensibilidade. Entretanto, assim como não se refere à qualidade do prazer
individual, essa conferência também não diz respeito aos benefícios individuais causados pela
poesia. Creio que todos entendem quer o tipo de prazer que a poesia pode dar, quer o tipo de
diferença, além do prazer, que traz a nossas vidas. Sem produzir esses dois efeitos, simples-
mente não há poesia. Podemos ter conhecimento disso, mas ao mesmo tempo negligenciar
46 Teoria da literatura II
algo que a poesia faz para nós coletivamente, enquanto sociedade. E digo isso no seu sentido
mais amplo, pois considero importante que cada povo tenha sua própria poesia, não apenas
para aqueles que gostam de poesia – esses podem sempre aprender outras línguas e deleitar-
-se com sua poesia – mas porque faz realmente diferença na sociedade como um todo, e isso
para as pessoas que não gostam de poesia. Estou incluindo até mesmo os que desconhecem os
nomes de seus poetas nacionais. Esse o tema real dessa conferência.
Podemos observar que a poesia difere de qualquer outra arte por ter, para o povo da mesma
raça e língua do poeta, um valor que não tem para os outros. É bem verdade que até a música
e a pintura têm uma característica local e racial, mas, evidentemente, as dificuldades de apre-
ciação dessas artes, para um estrangeiro, são bem menores... Por outro lado, é verdade também
que os escritos em prosa têm, em sua própria língua, um sentido que se perde na tradução;
todos nós percebemos, porém, que estamos perdendo muito menos ao ler um romance tra-
duzido do que ao ler um poema: e na tradução de alguns tipos de trabalho científico a perda
pode ser virtualmente nula. Que a poesia é muito mais local do que a prosa pode ser verificado
na história das línguas europeias. Através da Idade Média até há algumas centenas de anos,
o latim continuava sendo a língua usada para a Filosofia, Teologia e Ciência. O impulso para
o uso literário das línguas dos povos começou com a poesia. E isso se torna perfeitamente
natural ao percebermos que a poesia está primeiramente ligada à expressão dos sentimentos
e das emoções, e que sentimentos e essas emoções são particulares, embora isso seja geral.
É mais fácil pensar numa língua estrangeira do que sentir nela. Portanto, nenhuma arte é mais
obstinadamente nacional do que a poesia. E um povo pode ter sua língua extirpada, e ser
obrigado a usar outra língua nas escolas, mas, a não ser que se ensine àquele povo a sentir na
nova língua, não se conseguirá extirpar a antiga. E ela reaparecerá na poesia, que é o veículo do
sentimento. Acabei de dizer sentir na nova língua e refiro-me a algo bem maior do que apenas
expressar seus sentimentos numa nova língua. Um pensamento expresso numa língua dife-
rente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um sentimento ou emoção expressos
numa língua diferente não são o mesmo sentimento e a mesma emoção. Uma das razões para
aprendermos bem pelo menos uma outra língua é a de adquirir uma espécie de personalidade
suplementar; uma das razões para não assimilar uma nova língua em lugar da nossa própria
é a de que nenhum de nós quer se transformar numa pessoa diferente. Uma língua superior
dificilmente poderá ser aniquilada, a não ser por meio do extermínio do povo que a fala.
Quando uma língua suplanta outra é porque, geralmente, tem vantagens que a recomendam e
que oferecem não só a diferença em si, mas um nível maior e mais refinado para o pensamento
e para o sentimento do que a língua inicial mais primitiva.
As emoções e os pensamentos, então, expressam-se melhor na língua comum ao povo – ou
seja, a língua comum a todas as classes, a estrutura, o ritmo, o som, o idioma de uma língua
expressam a personalidade do povo que a fala. Quando digo que a poesia mais do que a prosa
está ligada à expressão da emoção e do sentimento, não quero dizer que a poesia precisa des-
pir-se de todo conteúdo intelectual ou significado, nem que a grande poesia tem conteúdo
igual ao da poesia menor. Desenvolver essa pesquisa, porém, afastar-me-ia muito de minha
finalidade imediata. Vou considerar como certo que todos encontram a expressão mais cons-
ciente de seus sentimentos profundos na poesia de sua própria língua mais do que em qual-
quer outra arte ou na poesia de uma outra língua. Isso não significa, evidentemente, que a
verdadeira poesia se limita aos sentimentos que qualquer um pode reconhecer e compreender;
não devemos limitar a poesia popular. É suficiente que num povo homogêneo os sentimentos
dos mais refinados e complexos tenham algo em comum com o dos mais rudes e simples. [...]
Gêneros literários: o lírico 47
Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é só indiretamente voltado para seu povo:
seu dever direto é para com sua língua, que lhe cabe em primeiro lugar preservar, em segundo
ampliar e melhorar. Ao expressar o que os outros sentem, ele está também modificando o
sentimento, tornando-o mais consciente: está fazendo com que as pessoas percebam melhor
o que sentem, ensinando-lhes, portanto, algo a respeito de si mesmas. Mas ele não é ape-
nas uma pessoa mais consciente do que as outras; é, também, individualmente diferente das
outras pessoas e também dos outros poetas, e pode fazer com que seus leitores compartilhem
conscientemente novas sensações ainda não vivenciadas. Essa é a diferença entre o escritor
meramente excêntrico ou louco e o poeta genuíno. O primeiro pode ter sensações únicas mas
não partilháveis, e, portanto, inúteis; o segundo descobre novas variações de sensibilidade que
podem ser utilizadas por outros. E ao expressá-las ele está desenvolvendo e enriquecendo a
língua que fala.
Atividades
1. Escolha três letras de canções populares brasileiras. A seguir, escreva essas letras em folhas/telas
separadas e descubra se elas têm características de poemas líricos.
2. Faça uma análise do Soneto do amor total, poema da obra de Vinicius de Moraes. Aplique no
texto a teoria sobre poesia lírica e reflita sobre o resultado obtido.
3. Analise o soneto de Shakespeare aqui reproduzido e estabeleça uma comparação com o so-
neto de Vinicius de Moraes da atividade 2.
Soneto
Na classificação herdada da cultura grega, o gênero épico é um dos dois gêneros nobres da
literatura. No texto mais completo de Teoria Literária que nos foi legado por Aristóteles, a Poética,
ele está no mesmo nível qualitativo que a tragédia; os dois compõem a parte nobre da arte literária
grega, destinados que estão a tratar de assuntos elevados com personagens heroicas. O termo épico
deriva do grego epos, que significa palavra, notícia, oráculo, o que contribui para estabelecer na
origem a ligação com a mitologia (oráculo), o caráter informativo, histórico (notícia) e o veículo
dessa transmissão, a palavra.
(HOMERO, 1962)
O tom elevado da dicção poética, a regularidade dos versos, a mitologia, a presença do herói
e da associação ao povo grego conferem aos versos citados, não apenas o horror da guerra, mas a
necessidade de cantar e expressar os acontecimentos que foram marcantes para o desempenho do
herói e a configuração mais completa dos fatores que levaram às batalhas sucessivas. Essa figuração
e o propósito de (re)construir uma época ligada às origens do povo e da religião grega irão conferir
ao texto épico de Homero uma importância cultural e histórica ímpar. Saem de suas descrições e
do modo como apresenta os fatos da guerra as figurações imaginárias que estarão representadas
nas esculturas, na pintura, na cerâmica, na história grega dos séculos que se seguiram. Essa per-
manência, além de seu texto magnífico, dá bem a medida da relevância de seu trabalho na cultura
ocidental, de vez que herdamos dessa mitologia e dessa literatura muito do que veio a compor
também o imaginário e cultura dos povos influenciados pela Grécia.
A esse tipo de narrativa elevada, em versos e de caráter coletivo, denomina-se epopeia,
a forma poética do gênero épico. Para Angélica Soares (1989, p. 31), a epopeia é
uma longa narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de interesse nacio-
nal e social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos (o
50 Teoria da literatura II
Cabe observar que a dificuldade de definir o gênero épico e as variadas interpretações que
se dá aos textos que recebem essa denominação passam pelas alterações sofridas pelos textos ao
longo da história, atendendo às necessidades expressivas e receptivas da literatura. Há, porém,
conforme Zumthor, uma tripla perspectiva que se faz presente a cada momento em que se tenta
chegar a uma definição mais precisa do que seja a epopeia, texto que compõe o gênero épico.
A primeira perspectiva é a da estética, isto é, de uma concepção filosófica que indague da natureza
da forma épica, como, por exemplo, os elementos indispensáveis que a compõem e seu sentido para
uma explicação convincente de sua especificidade. Também o modo de percepção apresenta um ou-
tro enfoque, um outro caminho para o entendimento do gênero, o que diz respeito à recepção do
texto épico e seu reconhecimento pelo leitor. Para que se confirme o gênero, faz-se necessário que
o leitor reconheça nele características distintivas e próprias. A terceira abordagem relaciona-se às
estruturas narrativas, isto é, o gênero pode ser definido se contiver alguns elementos narrativos,
apresentados de modo específico, como a dimensão heroica dos protagonistas, a extensa linha de
tempo dos acontecimentos, o caráter coletivo do tema, a justaposição de fatos e outros mais. O que
se torna permanente nessa tentativa de definição do gênero é a sua característica narrativa, isto é,
o relato de fatos numa linha de tempo histórico ou mítico.
Quanto ao caráter oral dessas narrativas, não há como negar, em sua origem remota, a pre-
sença exclusiva da voz do rapsodo – cantor-poeta e disseminador dessas narrativas primitivas.
Tão logo a escrita assume o caráter fixador dessas narrativas, a oralidade se torna dispensável na
origem e as epopeias ganham autoria. Nada, porém, garante que a ordem atual dos livros cor-
responda exatamente à recitação dos cantadores/contadores. A hipótese é de que os episódios
fossem narrados de maneira quase independente na oralidade. Os escribas de Atenas teriam
dado a esse texto sua forma final (HAVELOCK, 1996).
Do ponto de vista formal e de estrutura do texto, a composição épica devia apresentar quatro
partes, indispensáveis, com autonomia e regras próprias: a proposição, em que era apresentado o
Gêneros literários: o épico ou narrativo 51
tema a ser desenvolvido; a invocação, um pedido de proteção aos deuses para que o poeta pudesse
chegar a bom termo em seu trabalho; a narração, a parte mais longa e principal da narrativa épica,
em que eram narrados os feitos do herói-protagonista; o epílogo, coerente e coeso com todo o texto
anterior e com final feliz.
Para Angélica Soares (1989), “o sentido de épico se manifesta toda vez que se tem a intenção
de abarcar a multiplicidade dinâmica da realidade em uma só obra, criando-se uma unidade”. É por
essa intenção que, mesmo mudando a aparência da forma literária, o épico permanece enquanto
opção estética.
Ao longo de séculos, esse modo de conceber o texto épico se tornou normativo e regulou a
criação literária do gênero narrativo, mesmo depois que a epopeia caiu em desuso, substituída pelo
52 Teoria da literatura II
romance. A unidade de ação (que compreende não apenas a coerência entre as partes, mas sua orde-
nação em partes indispensáveis como princípio, meio e fim), o predomínio da ação sobre os perso-
nagens, a possibilidade de ações simples ou complexas, a presença do patético (pathos em grego pode
ser doença ou sofrimento) − estão presentes na literatura romântica, que também abusou de peri-
pécias e reconhecimentos. Sem esquecer do caráter retórico do cuidado com a beleza da linguagem,
com o uso significativo e conotativo das figuras de linguagem e recursos linguísticos.
Se a narrativa contemporânea relegou muitas dessas características a um plano secundário,
ou mesmo recusou-as na totalidade, os textos que formaram a história desse gênero épico-narrativo
foram construídos em atendimento e na tradição dos preceitos aristotélicos.
Ao estudar o gênero épico, Staiger ressalta que, mesmo sem abrir mão da organicidade e da
sequência das partes da epopeia, e citando Schiller, “A autonomia das partes é uma das características
principais da poesia épica”. Essa autonomia consiste na qualidade dos versos isolados, ou que podem
ser isolados, dentro da narrativa épica, pois “a finalidade do artista épico descansa em cada ponto de
seu movimento; por isso não nos apressamos impacientemente até um objetivo, e sim demoramo-nos
de bom grado a cada passo”, no dizer de Schiller (apud STAIGER, 1972, p. 103). Esse caráter de inde-
pendência dos versos da epopeia está correlacionado à concepção de que os últimos anos de vida de
um homem não decorrem dos primeiros, visto que não há ainda, em Homero, a concepção do ama-
durecimento, pois “o homem épico vive exclusivamente a vida de cada dia”, no entender de Staiger.
1 Exempla e moralidades eram narrativas de fundo moralizante. Farsas eram textos cômicos, visando a desmascarar
indivíduos e sociedade, geralmente em forma dramática, muito comuns e prestigiadas na Idade Média. Fabliaux eram
poemas narrativos em verso de cunho realista, cômico grosseiro, muitas vezes pornográficos, sem finalidade moralizante.
A novela é uma narrativa de feitos ora heroicos, existentes desde a Grécia Antiga, ora picarescos, com protagonistas
copiados do povo e com crítica social e sátira, ora bucólicos, ora sentimentais (MOISÉS, 1997). Também se atribui à
novela a definição de “narrativa feita de alguma matéria tradicional, arranjada de novo” (AGUIAR E SILVA, 1976).
Gêneros literários: o épico ou narrativo 53
Na Idade Média, há dois tipos de narrativas: a canção de gesta, destinada ao canto e cuja nar-
rativa girava em torno de um herói que representava uma ação coletiva; e o romance, que “se ocupa
das aventuras de uma personagem, criatura de ficção, por meio do vário e misterioso mundo, apre-
sentando um caráter descritivo-narrativo” (AGUIAR E SILVA, 1976). As canções de gesta eram
poemas épicos franceses, compostas do século XI ao século XIII, cuja ação se passava no século
VIII no reinado de Carlos Magno, em versos decassílabos, com estrofes de diferente número de
versos e declamadas por jograis. O termo romance foi atribuído a esse gênero por se tratar de nar-
rativas escritas em língua vulgar, o romanço, e não no latim tradicional. A palavra romance significa
como os romanos, à moda dos romanos. Diferentemente da canção de gesta, o romance medieval
é destinado à leitura e à recitação. Entre os romances do período, dois tipos se sobressaem: o ro-
mance de cavalaria e o romance sentimental. O primeiro deles reproduz uma cosmovisão galante e
cortês, mas também com comportamentos e ações guerreiras, apoiados substancialmente em dois
temas: o amor e a aventura, com final feliz para os amores narrados. As novelas de cavalaria trata-
vam dos feitos heroicos de cavaleiros medievais, como A busca do Graal, de Gautier Map (séc. XII),
o Amadis de Gaula (séc. XVI, anônimo). Já o romance sentimental pode conter maior dose de ero-
tismo ou maior dose de sentimentalidade. Personagens e ação narrativa acontecem em ambientes
burgueses ou aristocráticos, com predomínio do estudo do caráter amoroso e com final geralmente
trágico (AGUIAR E SILVA, 1976).
Quando, com as mudanças históricas, passa a se configurar um embate, um conflito entre
indivíduo e sociedade, um conflito que provoca a dilaceração das relações pessoais, internas e
externas, dos protagonistas, a epopeia, enquanto gênero narrativo, é substituída pelo romance.
Segundo Lukács (2000, p. 51), enquanto “a epopeia afeiçoa uma totalidade de vida acabada por ela
mesma, o romance procura descobrir e edificar a totalidade secreta da vida”. Esse caráter de segre-
do, de desconhecimento, investe o romance de um enfoque psicológico, desconhecido da epopeia.
Por isso, “a forma interior do romance é a marcha para si do indivíduo problemático, o movimento
progressivo que − a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea puramente existente e
privada de significação para o indivíduo − o leva a um claro conhecimento de si”. Esse mergulho na
individualidade, no sujeito em conflito consigo mesmo e com a sociedade, demonstra um estado
de desequilíbrio constante, oposto ao mundo épico da Antiguidade.
No entanto, permanece na forma romanesca o caráter narrativo. A alteração do protagonista
herói não anula o caráter de objetividade do discurso narrativo e nem dos componentes do texto
literário (personagens, narrador, espaço, tempo). Se o verso é abandonado pela narração em prosa,
a presença dos demais elementos mantém o caráter narrativo e a proximidade entre as duas formas
literárias: a epopeia e o romance.
Mikhail Bakhtin, na obra Questões de Literatura e de Estética (1988), levanta algumas ques-
tões a respeito da passagem epopeia-romance:
É muito importante e interessante o problema da interação de gêneros no interior
da unidade da literatura, em dado período. Em certas épocas – no período clás-
sico dos gregos, no século de ouro da literatura romana, na época do classicismo
– na grande literatura (ou seja, na literatura dos grupos sociais preponderantes),
todos os gêneros, em medida significativa, completavam-se uns aos outros de
54 Teoria da literatura II
Essa nova perspectiva traz à discussão do gênero épico na passagem para o romance informa-
ções sobre a existência em tempos antigos de formas narrativas que virão a compor um novo cenário
da literatura em séculos posteriores, quando forem produzidas em maior quantidade e variedade.
Ao tratar dos romances que iniciam a nova tradição narrativa, Ian Watt (1990) assim trata
da alteração relativa ao tempo, comparando a narrativa romanesca às demais narrativas de épocas
anteriores da história da literatura:
um aspecto da importância que o romance atribui à dimensão do tempo:
sua ruptura com a tradição literária anterior de usar histórias atemporais para
refletir verdades morais imutáveis. O enredo do romance também se distingue
da maior parte da ficção anterior por utilizar a experiência passada como a
causa da ação presente.: uma relação causal atuando através do tempo substitui
a confiança que as narrativas ais antigas depositavam nos disfarces e coincidên-
cias; e isso tende a dar ao romance uma estrutura mais coesa. (WATT 1990)
A partir da segunda metade do século XVIII é que o romance se afirma como um tipo
de discurso literário com características parcialmente herdadas de textos narrativos anteriores,
mas com uma forma literária diferente, que se delineia com muito vigor à medida que a história
dessa forma se vai construindo.
• Paraíso Perdido, do poeta inglês John Milton (1667), a mais representativa das epopeias
em língua inglesa pela força dos personagens;
• L’Henriade, de Voltaire (1723-1728);
• O Uraguai, do brasileiro Basílio da Gama (1769);
• Caramuru, do brasileiro Santa Rita Durão (1781).
Ampliandoseus conhecimentos
O Romance de Cavalaria
(BAKHTIN, 1488, p. 269-271)
No romance de cavalaria, a aparência do acaso (de todas essas coincidências e não coincidên-
cias fortuitas) não é a mesma do romance grego. Lá, trata-se de um mecanismo tosco de dis-
crepâncias e semelhanças temporais num espaço abstrato repleto de raridades e curiosidades.
Aqui, o acaso tem o atrativo do maravilhoso e do misterioso, ele se personifica na imagem de
fadas boas e más, de mágicos bons e maus, ele fica à espreita nos bosques, nos castelos encan-
tados etc. Na maioria das vezes, o herói não sofre calamidades, interessantes somente para
o leitor, mas aventuras maravilhosas, interessantes (e fascinantes) também para ele mesmo.
A aventura recebe um tom novo devido a todo esse mundo maravilhoso onde ela ocorre.
Gêneros literários: o épico ou narrativo 57
Mais adiante, nesse mundo insólito, realizam-se atos heroicos que glorificam os próprios
heróis e pelos quais eles glorificam os outros (os suseranos, a dama). O ato heroico distingue
nitidamente a aventura do romance de cavalaria da aventura do romance grego, aproximan-
do-a da aventura épica. O elemento glória e glorificação era também absolutamente estranho
ao romance grego e do mesmo modo aproxima o romance de cavalaria ao epos.
Diferentemente dos heróis do romance grego, os heróis do romance de cavalaria são indivi-
duais e ao mesmo tempo representativos. Os heróis dos romances gregos parecem-se com os
outros, mas têm nomes diferentes, sobre cada um deles pode-se escrever apenas um romance,
á sua volta não se criam ciclos, variantes, série de romances de vários autores, cada herói é
propriedade particular de seu autor e lhe pertence como um objeto. Todos eles [...] não repre-
sentam nada nem ninguém, têm vida própria. Os vários heróis dos romances de cavalaria em
nada se parecem uns com os outros, nem pela aparência, nem pelo destino. Lancelot não se
assemelha a Parzival. Parzival não se assemelha a Tristão. Em compensação, sobre cada um
deles são criados vários romances. Estruturalmente falando, eles não são heróis de romances
isolados (e, estritamente falando, não há romances de cavalaria isolados, fechados sobre si
mesmos, individuais), eles são heróis de ciclos. E eles, naturalmente, não pertencem a cada
romancista como propriedade particular (é evidente que não se trata da ausência de direitos
autorais e de representação), eles são semelhantes aos heróis épicos, pertencem ao repositório
comum das figuras, que é na verdade internacional e não nacional como no epos.
Enfim, o herói e o mundo maravilhoso onde ele atua constituem um único bloco, não havendo
fendas entre eles. É bem verdade que esse mundo não é a pátria nacional, por toda parte ele
é uniformemente estrangeiro (sem que esse caráter seja acentuado), o herói passa de país em
país, confronta-se com diversos suseranos, realiza viagens marítimas, mas seu mundo é sem-
pre uno e sempre preenchido por uma mesma fama, por uma mesma concepção dos atos
heroicos e da desonra; o herói pode glorificar a si e aos outros por todo esse mundo; em toda
parte são aclamados os mesmos nomes célebres.
Nesse mundo o herói sente-se em casa (mas não na sua pátria); ele é tão maravilhoso como
esse mundo: maravilhosa é sua origem, maravilhosas são as circunstâncias do seu nascimento,
de sua infância e juventude, maravilhosa é sua natureza física e assim por diante. Ele é a carne
e o osso do osso desse mundo de maravilhas: é o seu melhor representante.
Todas essas singularidades do romance de aventuras de cavalaria diferenciam-no radical-
mente do romance grego, aproximando-o do epos. O primeiro romance de cavalaria em ver-
sos tem sua base nos limites entre o epos e o romance, o que determina seu lugar especial na
história do romance. Com as particularidades indicadas determina-se também o cronotopo
[que significa “tempo-espaço] original desse romance – um mundo maravilhoso num tempo
de aventuras.
A seu modo, esse cronotopo é muito limitado e circunscrito. Ele não está mais repleto de rari-
dades e curiosidades, mas de magia; nele, cada coisa − armas, roupas, fontes, pontes etc. − tem
alguma propriedade mágica ou simplesmente encantadora. Esse mundo também tem muito
de simbólico, não do caráter grosseiro de um rébus [romance de enigma], mas se aproximando
da fábula oriental.
Atividades
1. Assista ao filme Troia, dirigido por Wolfgang Petersen, de 2004, da Warner Brothers,
e comente a figura do herói Aquiles, considerando as características do gênero épico.
58 Teoria da literatura II
3. Avalie e faça uma comparação entre as primeiras estrofes de Eneida, de Virgílio e Os Lusíadas,
de Camões.
Eneida
LIVRO I
Os Lusíadas
(Camões)
5
Gêneros literários: o dramático
O gênero dramático tem seu nome derivado do termo grego drama, que significa ação.
Essa origem acabou por marcar a natureza desse tipo de texto: refere-se, como queria Aristóteles,
às “pessoas que agem e obram diretamente” (ARISTÓTELES, 1964, p. 264), isto é, os atores sobre
o palco e as personagens em suas falas. Do ponto de vista textual, os diálogos – isto é, as falas di-
retas – constituem o traço distintivo, específico do gênero dramático. O narrativo e o dramático
se aproximam como gênero por três razões:
• narram uma história;
• representam a realidade por meio de personagens; e
• contêm falas-diálogos como uma das formas diretas desses personagens dizerem e
se dizerem.
E, além dessas três características, o teatro busca necessariamente outra manifestação
direta: o palco. As peças de teatro, que compõem o gênero dramático, foram escritas para se-
rem representadas física e concretamente em um espaço que, se não foi destinado para esse fim
exclusivo – o teatro −, transforma-se em cenário, em palco, por força da presença e da atuação
das personagens, encarnadas por atores.
Todavia, embora destinado ao palco, o drama tem existência própria e pode ser estudado
enquanto gênero literário e texto verbal com características específicas. Esse é o enfoque que nos
interessa desenvolver: o drama como peça teatral, como dramaturgia, isto é, uma forma de compo-
sição literária com características próprias que a distinguem e a individualizam.
já habita o ser humano. Tudo isso se organiza para que, conforme escreve Aristóteles, “se trata,
não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também fatos capazes de excitarem o terror e a
compaixão, e estas emoções nascem principalmente quando os fatos se encadeiam contra nossa ex-
pectativa, pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna”
(ARISTÓTELES, 1964, p. 279).
5.1.2 Os protagonistas
Encontramos em Aristóteles (1964, p. 271) a preocupação em estabelecer a razão de ser das
personagens, como quando afirma, no capítulo VI:
como a imitação se aplica a uma ação e a ação supõe personagens que agem,
é absolutamente necessário que essas personagens sejam tais ou tais pelo cará-
ter e pelo pensamento (pois é segundo estas diferenças de caráter e de pensa-
mento que falamos da natureza de seus atos); daí resulta naturalmente que são
duas as causas que decidem dos atos: o pensamento e o caráter: e, de acordo
com estas influências, o fim é alcançado ou falhado.
Para o teórico grego, quatro são os aspectos que regem a personalidade, o caráter de
um personagem:
• o primeiro é que deve ser de boa qualidade – “A personagem terá caráter se suas palavras
e ações revelarem' escolha premeditada, e será bom o caráter se a escolha for boa”;
• o segundo aspecto é o da conformidade – qualquer que seja o comportamento, ele deve
corresponder logicamente ao tipo ou gênero que encarna, pois mulheres não se compor-
tam como homens e vice-versa;
• o terceiro aspecto corresponde à semelhança, isto é, se a personagem é compatível com a
realidade que imita;
• o quarto aspecto é a coerência consigo mesmo, isto é, a necessidade de permanecer ao
longo da tragédia com as mesmas características.
5.1.3 A reconciliação
Para Pavis, “apesar do castigo e da morte, o herói trágico se reconcilia com a lei moral e
a justiça eterna” (1999, p. 417). Esse aspecto confere exemplaridade aos textos trágicos gregos,
de vez que a representação dos dramas sobre o palco visavam a educar os espectadores, seja na
informação sobre a origem mitológica do povo grego, seja nos ensinamentos morais, axiológicos
e ideológicos presentes nas narrativas dramáticas.
62 Teoria da literatura II
5.1.4 O destino
A noção de destino (que em grego é identificado pela palavra moira) é fundamental para a
tragédia grega e representa a luta mais importante que o homem trava ao longo da vida:
O destino assume às vezes a forma de uma fatalidade ou de um destino que
esmaga o homem e reduz a nada sua ação. O herói tem conhecimento dessa
instância superior e aceita confrontar-se com ela sabendo-se que está selando
sua própria perda ao dar início ao combate. (PAVIS, 1999, p. 417)
cidade do Rio de Janeiro (naquela época a capital do Brasil) e se prepara para encontrar Lola, uma
espanhola por quem se sente atraído, mas é recebido por Lourenço, o cocheiro dela.
CENA V
EUSÉBIO, LOURENÇO
EUSÉBIO (consigo) – Sim, sinhô; isto é que se chama vi busca lã e saí tosquiado!
Se Dona Fortunata soubesse... (Dando com Lourenço.) Vamos lá, seu... cumo o
sinhô se chama?
LOURENÇO – Lourenço, para servir a Vossa Excelência.
EUSÉBIO – Vamos lá, seu Lourenço... (Sem arredar pé de onde está.) Isto é o
diabo! Enfim!.. Mas que espanhola danada! (Encaminha-se para a porta e faz
lugar para Lourenço passar.) Faz favô!
LOURENÇO – (Inclinando-se.) – Oh, meu senhor... isso nunca... eu, um
cocheiro!... Então! Por obséquio!
EUSÉBIO – Passe, seu Lourenço, passe que o sinhô é de casa, e está fardado!
(Lourenço passa e Eusébio acompanha-o.)
• a fusão eu-mundo;
• o eterno momento presente;
• a marca linguística do eu;
• a função expressiva;
• a interjeição “Ai!” parece ser a melhor representação do sentimento poético; e
• o lugar central da pessoa é estar em fusão com o mundo.
Já no gênero épico:
• o eu está em face do mundo narrado, que se desenvolve a partir do passado;
• os pronomes que melhor expressam o épico são ele, ela, isto aí;
• o texto tem função representativa;
• “Eis aí” seria a melhor expressão da posição do narrador; e
• o lugar central da pessoa é estar inserida no mundo narrado, que a envolve de todos os
lados.
Enquanto isso, no gênero dramático:
• o leitor tem acesso ao mundo emancipado da subjetividade, à tensão para o futuro e à
forma linguística do diálogo – expressa pelo tu;
• as funções da linguagem são a expressiva e a interpelativa;
• “Deves fazer isso!” seria a fórmula da fala dramática; e
• o lugar central da pessoa é destacado do restante, é um lugar livre e autônomo.
Para Rosenfeld (1991, p. 40), “O discurso dramático, que prepara para a decisão ou leva a
ela, é uma forma de ação; no fundo, tem somente significado enquanto fonte de futuro, expressão
da vontade. [...] O diálogo é a arquiforma de toda dialética, é contradição e síntese ao mesmo
tempo”. Já segundo Maria del Carmen Bobes (1987, p. 15, tradução nossa), em Semiologia da Obra
Dramática, “A obra se desdobra em texto literário e texto espetacular. O receptor também se torna
complexo porque será um leitor individual (leitura) ou será um espectador coletivo (público)”.
Osório Mateus considera que a diferença entre o texto escrito verbal e a representação se-
miótica está embrionariamente contida no texto escrito:
Trata-se de um texto necessariamente operável: as indicações destinam-se à exe-
cução; todos os acontecimentos indicados pelas didascálias ou pressupostos pelas
réplicas são programas de operação (e, neste sentido também, referência a uma
situação concreta do discurso); por outro lado, as réplicas implicam necessaria-
mente um projeto de oralidade, que é uma outra forma específica de execução.
(MATEUS, 1977, p. 25)
Nessas considerações a respeito das diferenças e da significação de cada um dos textos, seja
dramaturgia, seja texto encenado, Anne Ubersfeld escolhe tratar do primeiro em sua obra Lire le
Théatre (1977), em que afirma que o texto de teatro, impresso ou manuscrito, possui um certo
número de características:
68 Teoria da literatura II
5.5.2 A tragédia
A palavra provém dos termos grego tragos (“bode”) e ode (“canto”), em uma referência aos
rituais de homenagem a Dioniso – o deus do vinho, das plantações e do teatro –, nos quais se
sacrificava um bode para se obter a proteção divina. Aristóteles construiu desde muito cedo na
Teoria da Literatura as definições e características dessa forma teatral. Vale relembrar que, ao longo
de séculos, a tragédia foi considerada a forma mais perfeita de teatro, como tratamos na primeira
parte deste capítulo.
5.5.3 A comédia
Etimologicamente, significa canto da aldeia ou canto dos aldeões, dos termos gregos comos
(“aldeia”) e ode (“canto”). Os historiadores registram que a comédia nasceu de rituais ao deus
Dioniso, a quem se atribuíam a alegria, a dança e o erotismo, já que ele liberava os sentidos por
força do vinho, bebida como é associado. As personagens cômicas são de extração social modesta,
Gêneros literários: o dramático 69
o desfecho é feliz e a função é provocar o riso pela amostra do ridículo dos comportamentos hu-
manos. Tem função de corrigir vícios e defeitos, mas o faz de forma irônica e cômica. É por vezes
violenta e obscena; por outras, leve e galante.
Estão inclusas nessa classificação ampla:
• as comédias altas e baixas da Antiguidade;
• a comédia-balé do século XVII;
• a comédia de caráter, em que as personagens são apresentadas com muita perfeição;
• a comédia de costumes, de vida longa e que trata dos comportamentos sociais;
• a comédia de ideias, comum ao final do século XIX e em todo o século XX, tendo nos
argumentos o foco principal;
• a comédia de intriga, repleta de reviravoltas, tendo a ação como principal elemento;
• a comédia de situação, em que o quiproquó, os enganos e as trocas são elementos indispensáveis;
• a comédia heroica, meio-termo entre a tragédia e a comédia, predominando a psicologia
e os compromissos burgueses;
• a comédia lacrimosa do Romantismo;
• a comédia pastoral dos séculos XVI e XVII, de natureza bucólica;
• a comédia satírica, de crítica à sociedade ou a certos ridículos humanos (cf. PAVIS, 1999).
Herdada da Antiguidade, a comédia é uma forma teatral de muita riqueza e variedade, que
demonstrou muito vigor e até hoje desperta constante interesse, atraindo públicos de diferentes tipos.
5.6.1 O mistério
Peça religiosa que tratava de episódios da vida de Cristo, episódios da Bíblia.
5.6.2 O milagre
Peça religiosa que tinha como assunto a vida de homens piedosos e santos, com intenção
didática e moralizante.
70 Teoria da literatura II
5.6.3 O auto
Também denominado auto sacramental, era peça de cunho religioso, frequente na Espanha e
em Portugal. No Brasil, chegou com José de Anchieta, que escreveu e encenou com os índios vários
autos em português, latim, tupi e espanhol. Os autos tratavam de problemas morais e teológicos.
5.6.4 A farsa
Embora existisse já na Grécia, essa espécie de texto desenvolveu-se muito na Idade Média.
A palavra provém do francês farcir, que significa rechear. Era composta de cenas cômicas que
se incluíam no meio dos autos religiosos para agradar e chamar a atenção dos fiéis. Tem caráter
grosseiro, por vezes escatológico. É uma forma resistente ao tempo, muito popular, e que, por ve-
zes, assume um caráter subversivo: “Graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da
realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a angústia
trágica” (PAVIS, 1999, p. 164).
5.9.1 O drama
No prefácio intitulado “Do grotesco e do sublime” à sua peça Cromwell, de 1827, o autor
francês Victor Hugo, também poeta e romancista, defende o drama como uma forma teatral ade-
quada às ideias do Romantismo europeu. Toma como modelo Shakespeare, que, já no século XVI,
Gêneros literários: o dramático 71
havia rompido parcialmente com a tragédia aristotélica, introduzindo elementos novos, como a
prosa, o cômico, as personagens populares, os bufões, assim como o maravilhoso bretão, isto é,
a presença de elementos sobrenaturais na trama, conforme a tradição do teatro inglês. As ideias
básicas do drama romântico giram em torno da quebra das unidades aristotélicas de tempo, espa-
ço e ação, além de haver busca do espetacular e mistura de gêneros.
Essa nova forma terá desdobramentos constantes e de grande alcance literário e teatral ao
longo do século XIX, adquirindo o caráter histórico (bem de acordo com os ideais nacionalistas e
heroicos da época), ou caráter burguês (quando as questões familiares e domésticas ganham im-
portância), ou caráter de tese (o denominado drama de tese – forma apropriada ao Naturalismo e
ao cientificismo constantes ao final do século), ou caráter poético (o denominado drama poético,
em reação às peças naturalistas, unindo teatro e música – os gêneros dramático e lírico).
5.10.1 A ópera
Como texto teatral, a ópera tem as características de um drama trágico ou lírico, cantado
com acompanhamento de orquestra e números de dança. Ela surgiu na Itália no século XVI e logo
obteve sucesso em toda a Europa. Do ponto de vista cênico, apresenta diferenças em relação ao tea-
tro convencional. O texto da ópera se denomina libreto e contém apenas o resumo do que é cantado
no palco, consistindo em um roteiro da ação dramática.
72 Teoria da literatura II
5.10.2 A opereta
Merece destaque pelo relevo que teve entre os séculos XIX e XX. Trata-se de uma ópera cur-
ta com libreto e partitura de tons divertidos, alegres e muito movimentados, com partes cantadas
alternadas com partes faladas. É de origem francesa, mas alcançou seu ápice com as composições
do austríaco Johann Strauss.
5.10.3 O melodrama
Seu nome combina duas palavras gregas: melo + drama, isto é, ação com música. Existe
desde o século XVI e foi tomado no início como sinônimo de ópera. O enredo era o do teatro
trágico greco-latino, e a partir de 1790 passou a ser uma peça de teatro que dispensa a músi-
ca, ganhando independência como forma dramática. No entanto, guardou da fase inicial uma
tendência ao trágico.
Caracteriza o novo melodrama o fato de ser uma peça em prosa, em torno
de ingredientes fáceis, explorados ilimitadamente: o sentimentalismo, não
raro tombando no patético, a comicidade ocasional, assassínios, mistérios,
o suspense, incêndios, cenas de medo, equívocos que se desfazem como que
por milagre, segundo um ritmo ofegante, sem obediência à verossimilhança,
epílogos felizes, linguagem despojada, “popular”, de imediato entendimento.
(MOISÉS, 1997, p. 322)
Podemos inferir dessa descrição que as telenovelas, assim como as radionovelas, são herdei-
ras diretas dessa forma dramática.
5.10.4 O vaudeville
Trata-se de uma comédia recheada de árias ou canções conhecidas, com enredos engraçados
e muitos equívocos entre personagens e situações. Surgido na França, no século XVI, alcançou
grande sucesso nos séculos seguintes. Mas foi no século XIX que se tornou mais conhecido, quando
emigrou para os Estados Unidos, onde se transformou no music-hall, um teatro de variedades que
incluía números de mágica, dança e canto. Está na origem dos musicais do cinema de Hollywood.
Na França, durante o século XIX, ainda, transformou-se em uma comédia ligeira, sem pre-
tensões intelectuais, mas com grande sucesso.
Gêneros literários: o dramático 73
Desde Aristóteles
(SZONDI, 2001, p. 23-27)
só poderia ser reconhecida em um outro horizonte. O adjetivo dramático não expressa, no que
segue, nenhuma qualidade (como nos Conceitos Fundamentais da Poética, de Staiger), mas
significa simplesmente pertencente ao drama (diálogo dramático = “diálogo no drama”). Em
oposição a drama e dramático, o termo dramática ou dramaturgia é usado também no sentido
mais amplo, designando tudo o que é escrito para o palco. [...]
Como a evolução da dramaturgia moderna se afasta do próprio drama, seu exame não pode
passar sem um conceito contrário. É como tal que aparece o termo épico: ele designa um traço
estrutural comum da epopeia, do conto, do romance e de outros gêneros, ou seja, a presença
do que se tem denominado o sujeito da forma épica ou o eu-épico.
Atividades
1. Analise a seguinte afirmação de Girard e Ouellet, no livro O Universo do Teatro:
A fala permite, evidentemente, “relatar as experiências, exprimir os diferentes
estados e processos psíquicos vividos pela personagem que fala num determi-
nado momento” [os autores estão citando Roman Ingarden]. Esta função ex-
pressiva está ligada à duração, ao acento, à entonação do comediante, tais como
a mímica e o gesto.
Explique essa afirmação relacionando-a com a teoria do texto dramático e do texto cênico
ou espetacular.
2. Pesquise na biblioteca de seu município ou na internet a relação entre a catarse (definida por
Aristóteles) e a função social do texto dramático.
3. Leia o fragmento da cena inicial da comédia Amor por anexins (1870), do dramaturgo
brasileiro Aluísio Azevedo:
Ato único
Sala simples, janela à esquerda, portas ao fundo e à direita. Mesa à esquerda com
preparos de costura. Num dos cantos da sala uma talha d’água. Cadeiras.
Cena I
(Inês)
Inês (Cose sentada à mesa, e olha para a rua, pela janela.) – Lá está parado à
esquina o homem dos anexins! Não há meio de ver-me livre de semelhante
cáustico. Ora eu, uma viúva, e, de mais a mais com promessa de casamento,
havia de aceitar para marido aquele velho! Não vê! E ninguém o tira dali!
Isto até dá que falar à vizinhança... (Desce à boca de cena.) [...] Ainda hoje
escreveu-me uma cartinha, a terceira em que me fala de amor, e a segunda em
que me pede em casamento. (Tira uma carta da algibeira.) Ela aqui está. (Lê.)
“Minha bela senhora. Estimo que estas duas regras vão encontrá-la no gozo
da mais perfeita saúde. Eu vou indo como Deus é servido. Antes assim que
amortalhado. Venho pedi-la em casamento pela Segunda vez. Ruim é quem
em ruim conta se tem, e eu que não me tenho nessa conta. Jamais senti por
outra o que sinto pela senhora; mas uma vez é a primeira.” (Declamando.)
76 Teoria da literatura II
Para tratar desse gênero literário que extrapola a divisão clássica tripartida − lírico, épico e
dramático −, faz-se necessária uma reflexão sobre a questão dos gêneros na atualidade e sua rela-
ção com uma nova perspectiva de julgamento sobre os discursos e seu papel na cultura. Essa nova
perspectiva é a que estuda os denominados gêneros de fronteira.
Verificamos como essa mudança de óptica sobre o papel do leitor traz, em sua essência,
a perspectiva de maior liberdade de avaliação e a possibilidade de entrada de outros discursos
verbais e escritos no conjunto das formas literárias, conforme ficou demonstrado na enumera-
ção dos gêneros de fronteira. Essa perspectiva está relacionada com a ampliação do conceito de
literatura, que deixa de lado a ideia de que textos literários são exclusivamente os pertencentes
a uma cultura erudita. Também diz respeito a uma constante atitude de quebra de paradigmas,
principalmente daqueles herdados da cultura bipolar vigente até os anos 1950. Nessa bipola-
ridade, predomina um pensamento dual e opositivo (bom versus mau, erudito versus popular,
estética versus ciência, normas versus desordem). A ruptura se dá com a vigência de um pen-
samento dialético e desconstrutivo, em um momento cultural pós-estruturalista, que recebeu a
denominação de pós-modernismo ou hipermodernismo (CULLER, 1997). Nessa nova visão da
cultura, da arte e da literatura, predomina um comportamento mais liberal e sem preconceitos.
Em consequência, surge um olhar mais aberto para os escritos, criando condições de aceitação
para formas textuais diferenciadas, que são acolhidas no seio dos chamados estudos literários.
Entre elas, cabe destacar o ensaio, um discurso analítico de uso frequente na universidade e nos
ambientes e meios de comunicação que tratam da literatura.
6.2 O ensaio
O ensaio é um gênero textual com longa existência dentro das produções escritas do
Ocidente. O termo foi criado por Michel de Montaigne (1533-1592), considerado até hoje o mais
representativo dos autores dessa modalidade textual. Sua obra, Ensaios, data de 1580. Alguns crí-
ticos, como Massaud Moisés (1997), consideram a Poética, de Aristóteles; os Diálogos, de Platão;
as Meditações, de Marco Aurélio; além dos escritos de Sêneca, Plutarco e Teofrasto, como ensaios.
Em Língua Inglesa, os Ensaios, de Francis Bacon, datam de 1597. Outros autores de língua inglesa
que se sobressaíram nesse gênero textual foram Addison, Steele, Hazlitt, Ralph Waldo Emerson,
D. H. Lawrence, Virginia Woolf e T. S. Eliot. Na América do Sul, Machado de Assis, Paulo Prado,
Décio de Almeida Prado, Pedro Nava, Jorge Luís Borges e Eduardo Galeano. Em francês, Roland
Barthes e, em italiano, Ítalo Calvino.
O termo é usado para descrever uma composição em prosa, de extensão variada (al-
guns teóricos chegam a limitar o texto entre 2 e 20 páginas), tratando de um assunto específico.
Em sua etimologia, vem do latim exagiu(m), que significa ação de pesar. Na acepção de Montaigne,
tem a ver com exame, experiência, prova, tentativa. Segundo Angélica Soares (1989, p. 65), “a eti-
mologia da palavra ensaio aponta para ‘tentativa’, ‘inacabamento’ e ‘experiência’”. Mas é impossível
estabelecer uma definição rigorosa porque o termo é usado para os mais diferentes tipos de texto e
os autores o usam com igual imprecisão: “sob o rótulo de ensaio, se inscrevem hoje textos tão con-
clusivos (ensaios críticos, científicos, filosóficos, políticos, históricos) que ensaiar já não é apenas
Gêneros literários: o ensaístico 79
tentar ou experimentar uma interpretação da realidade por meio de exposições pessoais do es-
critor, sobre assuntos de seu domínio” (SOARES, 1989, p. 65). Para Lúcia Lippi de Oliveira (1997,
p. 63), o ensaio pode ser caracterizado de maneira mais abrangente: “O ensaio se apresenta como
texto fragmentado cujos aspectos vazios podem ser ocupados de diferentes formas [...] tem sido
visto como forma aberta, basicamente marcando tendências antiescolásticas no campo religioso,
filosófico ou mesmo científico”. Essa abertura para a divergência e uma possível interpretação da
realidade termina por tornar o texto ensaístico uma manifestação da individualidade interpretati-
va de seu autor, conduzindo, no caso da literatura, quase que fatalmente, para uma simbiose entre
o texto literário que é objeto da análise e o discurso crítico contaminado pela linguagem literária.
Em um dos textos críticos de Machado de Assis (1997, p. 18), intitulado Notícia da atual literatura
brasileira: instinto de nacionalidade, considerado uma das reflexões teóricas mais pertinentes para
definir o caráter da nossa literatura, o autor afirma:
Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim
a defesa do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola
produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa
a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente
justa a de não haverem trabalhado para a independência literária, quando a
independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo, quando
entre a metrópole e a colônia criara a história e a homogeneidade das tradições,
dos costumes e da educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão
quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura
brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.
de satisfação pelo leitor, agente da interpretação. E em um dos trechos desse ensaio, afirma Barthes
(1997, p. 27-28, grifos do autor) que:
O prazer do texto não é forçosamente do tipo triunfante, heroico, musculoso.
Não tem necessidade de se arquear. Meu prazer pode muito bem assumir a
forma de uma deriva. A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e
que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e
intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imó-
vel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo).
Há deriva, toda vez que a linguagem social, o socioleto, me falta (como se diz:
falta-me o ânimo). Daí porque um outro nome da deriva seria: o Intratável – ou
talvez ainda: a Asneira.
Essa escrita que se faz simultaneamente analítica e criativa desloca o texto do ensaio para uma
situação de descoberta das potencialidades da língua pelo leitor, alterando o que deveria ser a aná-
lise objetiva de um elemento teórico. Sobre essa posição de Barthes a respeito da crítica literária e,
por extensão, do ensaio, afirma Jérôme Roger (2002, p. 166): “Ao colocar sem subterfúgios a ques-
tão da crítica como forma de literatura, Barthes revelou-se indiretamente um escritor, sendo tanto
vilipendiado quanto, em seguida, adotado pela crítica universitária”. Temos, portanto, na obra de
Barthes, um exemplo contemporâneo do ensaio de crítica literária que usa os componentes do dis-
curso literário, alterando um gênero que deveria ser estritamente científico.
Após essa disputa, chegamos hoje ao conceito de que sempre é possível “relatar diferente-
mente os mesmos acontecimentos, compreender a teia de significados de diferentes relatos [que]
nos coloca no espaço da hermenêutica” (OLIVEIRA, 1997, p. 63). Assim, podemos reencontrar
na contemporaneidade o sujeito intérprete atuando com seu repertório e sua posição crítica so-
bre os objetos (obras literárias inclusive) de seu interesse científico. Em consequência, “o ensaio
aparece assim como o gênero mais permeável aos saberes que rompem as barreiras entre as disci-
plinas e que abandonam a ideia ingênua de que o texto científico expressa a realidade, confirman-
do o espaço do ensaio como uma das formas de oposição a qualquer pensamento essencialista”
(OLIVEIRA, 1997, p. 68).
A abertura e a multidisciplinaridade, acentuamos novamente, provocarão uma mudança na
própria expressão linguística e discursiva, trazendo para os ensaio sobre a literatura a contamina-
ção do dizer literário. Duplamente anticientífico, na abordagem e na escrita, o ensaio se apresenta
como um texto que desafia a tradição clássica da separação tripartida dos gêneros.
Essa consciência da autoria induz ao entendimento do texto crítico como uma das espécies
mistas do gênero literário.
Na ficção, o exemplo clássico é Tristam Shandy (1759-1767), obra de Laurence Sterne em que se
observa um constante diálogo com o leitor sobre o ato de ler e, sobretudo, sobre a construção do
romance. Na França, Xavier de Maistre (1763-1852) também fez do diálogo com o leitor a oportu-
nidade de esclarecer sobre as intenções e a construção de sua narrativa, intitulada Viagem à Roda
do meu Quarto (1794). Nessa, ele proclama já de início as qualidades de seu texto:
Não, não conservarei mais o meu livro in petto; aqui o tendes, senhores, lede.
Eu empreendi e executei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu
quarto. As observações interessantes que fiz e o prazer contínuo que experi-
mentei ao longo do caminho davam-me o desejo de torná-la pública; a certeza
de ser útil me convenceu a fazê-lo. Meu coração sente uma satisfação inexpri-
mível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um recur-
so certo contra o tédio e um calmante para os males que sofrem. O prazer que
se sente ao viajar em seu quarto está ao abrigo do ciúme inquieto dos homens;
é independente da fortuna. (MAISTRE, 1989, p. 5)
Os protagonistas são os personagens Leitor e Leitora, e todo o texto é uma longa exposição
em forma ficcional de conceitos sobre o romance contemporâneo, exemplificado em dez diferentes
inícios de narrativa, que não continuam nem se finalizam. Esses começos ficcionais se alternam
com situações, também fictícias, dos protagonistas, com isso havendo uma exposição dissertativa
e crítica sobre literatura. É um exemplo extraordinário de como o romance fala de sua própria
construção dentro da ficção.
Na poesia, a consciência do fazer poético e a expressão dessa consciência em versos tam-
bém têm um histórico de muitos textos ao longo do tempo. No fragmento de poema que segue,
de autoria de Álvares de Azevedo (1831-1852), intitulado Idéias íntimas (1852), é possível detectar
o julgamento literário de outros escritores na expressão do poeta romântico.
(MADUREIRA, 1989)
Assim, a literatura também assume um discurso teórico-crítico que une o fazer literá-
rio à reflexão ensaística sobre questões de produção de textos específicos. É possível verificar,
portanto, que a classificação fechada dos gêneros passa a ser transformada pela ação dos pró-
prios escritores, em um evoluir que reflete as mudanças na concepção da arte literária e propicia
a reflexão teórica renovada.
As dimensões da crítica
(BORNHEIM, 2000, p. 44-45)
Não é apenas curioso observar que a crítica, já em suas origens, nasce no contexto de uma
ambiguidade deveras significativa. É que se verifica, por um lado, a crítica que reduz a obra de
arte à condição de um objeto, e ela se deixa guiar por coordenadas que regem a própria vigên-
cia desse objeto (objeto aqui pode ser tanto a obra derivada daquela estética do objeto, quanto a
obra que se prende àquela estética do sujeito; em definitivo, a categoria do objeto termina vito-
riosa). Acontece que, por outro lado, há um tipo de crítica que também se quer como obra de
arte – a concorrer de certo modo com a criatividade da própria arte. Pense-se em Baudelaire,
84 Teoria da literatura II
no jovem Lukács, em Walter Benjamin e em tantos outros que fizeram da crítica um tipo de
obra de arte, espécie de gênero paralelo à realidade que ela mesma comenta. Essa tendência
bastante disseminada vê, pois, no ato de escrever sobre uma obra um sucedâneo que repete à
sua maneira a gênese geradora da obra. Seria como que uma criação em grau outro, teimosa
em persistir em sua autonomia, em coadunar-se com a especificidade de sua linguagem.
Assim é que se podem ler certos ensaios sobre arte e literatura, em Sartre por exemplo, que são
sem dúvida capítulos da crítica, mas que ostentam em verdade uma autonomia que os torna
em certo sentido autossuficientes. A peculiaridade desse tipo de crítica reside totalmente no
fato de seu autor instalar-se na intimidade do elã criativo que dá origem à própria obra de
arte – já não se a considera a partir de um resultado-objeto a oferecer-se em sua precisa com-
posição. Vista nesta perspectiva, caberia dizer que a crítica contemporânea vive de um para-
doxo: ela se sente compelida a exercer o seu mister simplesmente pela análise desse resultado
final que se dá à percepção do espectador. O paradoxo está em que, por este viés, o crítico se
aproxima da obra enquanto ela constitui um objeto dado à percepção; e todo o engenho crí-
tico move-se, por consequência, dentro das fronteiras estipuladas pela ampla hegemonia da
dicotomia sujeito-objeto. É por aí que se pode entender o sucesso, mas também o fracasso –
e em todos os casos a medida – de métodos como o do new criticism e o do estruturalismo. [...]
A crise atual da crítica deriva, ao que tudo indica, dessa dissonância radical entre dois níveis:
o ato criador que gera a obra e o retardamento de uma crítica que, ainda que de modo velado,
insiste na visualização por meio de uma normatividade pretensamente objetiva. Essa, repito,
talvez seja a raiz do impasse que habita a crítica em sua própria essência, como que a indicar
sua transitoriedade. As portas, entretanto, e já em nome de uma bela tradição, permanecem
amplamente abertas: tudo se oferece à meditação, uma meditação que busca penetrar o sen-
tido de uma obra e o sentido, até, da arte de modo geral.
Atividades
1. Reúna duas resenhas críticas sobre literatura, retiradas de jornais, revistas ou da internet.
Verifique se existe na linguagem delas elementos que podem ser associados à linguagem das
obras literárias.
A marcha do tempo
O centenário de Jean-Paul Sartre ocorre quando o compromisso político do
intelectual, doutrina a que o seu nome ficou ligado por antonomásia, de há
muito deixou de ser imperativo contornável na República das Letras. O que se
vê, ao contrário, e pelo mundo todo, é o predomínio do esteticismo e seu cor-
relato experimentalismo arbitrário, tanto na poesia quanto na prosa de ficção,
nada havendo de mais gratuito e socialmente descompromissado que as diver-
sas vanguardas que, na segunda metade do século XX, derivaram-se sucessi-
vamente umas das outras pelo processo mecânico e imitativo da homogenia.
Gêneros literários: o ensaístico 85
No que nos concerne, há pontos de referência por assim dizer didáticos, se tomar-
mos para demonstração dos escritores representativos. Jorge Amado abandonou
o realismo socialista, a que se entregara com fervor doutrinário na primeira parte
de sua carreira, adotando o realismo burguês e correspondente desencanto ideo-
lógico. Autor que anunciara escrever com o máximo de realidade e o mínimo de
literatura, começou a fazê-lo, e cada vez mais, com o máximo de literatura e o
mínimo de realidade. É a diferença que separa, por um lado, o período de Mar
Morto (1936), Os Subterrâneos da Liberdade (1954), e, por outro lado, a série que
se inicia em 1958 com Gabriela, Cravo e Canela: a luta de classes transferiu-se pre-
dominantemente para a posição horizontal, sem excluir a pornografia que devia
ser aceita como recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes
seria impensável: os comunistas daquela época e da nossa não riem nem sorriem.
O caso Drummond de Andrade é ainda mais expressivo, com a transição
igualmente didática de A Rosa do Povo, em 1945, Claro Enigma, seis anos
depois, salto mortal que, com elegância olímpica, conduziu-o de Zhdanov a
Paul Valéry, o que, em termos literários, foi um ganho inestimável: os aconte-
cimentos, que antes o fascinavam, com o russo em Berlim e o nome imortal de
Stalingrado, passaram a entediá-lo, apostasia de que nenhum outro escaparia
ileso. A questão do papel social do escritor é mais complexa do que pareceria
à primeira vista. Escritor é palavra genérica que só adquire sentido e realidade
por meio de múltiplas espécies, não raro estranhas e antagônicas entre si.
(O texto na íntegra está disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/wil-
sonmartins148.html>. Acesso em: 7 de jun. 2018.)
[...] a crítica já em suas origens, nasce no contexto de uma ambiguidade deveras signi-
ficativa. É que se verifica, por um lado, a crítica que reduz a obra de arte à condição de
um objeto, e ela se deixa guiar pelas coordenadas que regem a própria vigência desse
objeto [...] Acontece que, por outro lado, há um tipo de crítica que também se quer
como obra de arte – a concorrer de certo modo com a criatividade da própria arte.”
BORHEIM, Gerd. As dimensões da crítica. In: MARTINS, Maria Helena (Org.) Rumos da
Crítica. São Paulo: Senac/Itaú Cultural, 2000. p. 44.
A poesia está associada a um dos gêneros literários, o lírico. Na Teoria da Literatura, pode
ser encontrado o entendimento de que a poesia se refere a um modo de escrita imaginativa,
caracterizada pelo uso do verso metrificado. Não era esse o conceito de poesia até o século XIX.
Atribuía-se esse termo a toda produção que tivesse vínculo com o imaginário, independente-
mente da forma escrita – em verso ou prosa. A partir desse século, a essa produção passou a ser
atribuído o termo literatura.
Para Horácio (65 a.C.-8 d.C.), na Roma antiga, a função da poesia era dupla: servia para
entreter e comover, dela se retirando preocupações de ordem filosófica.
Os preceitos imitativos da poesia foram mantidos até a segunda metade do século XVIII,
com o advento do Iluminismo. O filósofo Vico concebia poesia pela perspectiva da lingua-
gem. Como esclareceu Abrams (apud AGUIAR E SILVA, 1976, p. 148), “o fato capital nesse
88 Teoria da literatura II
fiada, que será mais rija e sadia [...] será tão granítica quanto possível; sua força
estará na sua verdade, em seu poder de interpretação (evidentemente, é sempre
aí que reside a força poética); quero dizer que ela não tentará parecer vigorosa
por via do fragor retórico e da extravagância faustosa. (POUND, 1976, p. 20)
Em Teoria da Literatura, Vítor Manuel de Aguiar e Silva sintetiza quais sejam, em seu enten-
der, o objeto e as funções da poesia:
• “o caráter simbólico e imaginário de toda a criação poética”;
• a poesia “se relaciona não só com a atividade consciente do homem, mas também com o
seu dinamismo inconsciente”;
• há “relações mútuas entre invenção e execução [...] o poema como exclusivo produto de
uma revelação íntima e misteriosa, ou o poema como resultado estrito de uma laboriosa
realização” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 202-203).
Para Octavio Paz (1982, p. 47),
A criação poética se inicia como violência sobre a linguagem. O primeiro ato
dessa operação consiste no desenraizamento das palavras. O poeta arranca-as
de suas conexões e misteres habituais: separados do mundo informativo da fala,
os vocábulos se tornam únicos como se acabassem de nascer. O segundo ato é o
regresso da palavra: o poeta se converte em objeto de participação.
Convém, ainda, distinguir poema de poesia. Para Massaud Moisés (1997, p. 400), poema é
toda composição literária de índole poética [...] assumida ortodoxamente, a co-
nexão entre poema e poesia implicaria um juízo de valor, ainda que de primeiro
grau: todo poema encerraria poesia, e vice-versa, sistematicamente a poesia se
coagularia em poema. Na verdade, a correlação apenas se observa como ten-
dência, historicamente verificável, pois existem poemas sem poesia, e a poesia
pode surgir no âmbito de um romance ou de um conto.
Em consequência, podemos afirmar que poema é a parte material do texto (versos, estrofes
e, eventualmente, poema em prosa) e a poesia tem um conceito mais fluido e histórico. Nesta,
predominam um conteúdo emotivo-conceitual que extrapola os parâmetros da lógica formal,
um tempo que corresponde à duração, a um presente eterno, à constelação de metáforas distri-
buídas e articuladas no poema, à predominância dos estados do eu poético sobre acontecimentos
(MOISÉS, 1997, p. 406).
De todo modo, a poesia se distingue por padrões verbais específicos: síntese; variações sin-
táticas; uso especial de palavras e frases; modo elaborado de figuras de linguagem, principalmente
a metáfora e o símbolo; ritmo; metro e efeitos sonoros. A poesia apresenta uma combinação equi-
librada dos recursos sonoros e imagéticos, bem como o frescor de ideias.
ocorreu, por exemplo, com as cantigas de amigo da Idade Média em Portugal, que exprimiam as
mágoas amorosas de moças do povo, mas foram escritas por homens. Por exemplo, uma cantiga
composta pelo rei Dom Dinis:
Essa presença de uma voz pessoal e em primeira pessoa confere ao poema uma caracterís-
tica confessional e de credibilidade, tal como em um poema de Manuel Bandeira (1970, p. 121),
já no século XX:
Profundamente
A primeira pessoa (“adormeci”, “ouvi”, “minha avó” etc.) pode ser entendida como a do poe-
ta (Manuel Bandeira), mas pode ser também a de qualquer criança ou adulto rememorando a
infância. É exatamente essa possibilidade de posicionarem-se outras subjetividades, além daquela
do poeta, que sinaliza o texto de qualidade, sem que esse texto fique preso a um encaminhamento
puramente confessional e intransferível – a tal ponto que esse sujeito lírico, muitas vezes expresso
em primeira pessoa (mas não sempre), pode ser uma impostação, uma máscara assim descrita por
Bakhtin (1988, p. 133): “Essa pureza monovocal e essa franqueza intencional, irrestrita do discurso
poético acabado, é obtida a preço de uma certa convencionalidade da linguagem poética”. O cará-
ter convencional pode impedir que se estabeleça um paralelo com a vida do escritor, mas favorece
o trabalho objetivo com a linguagem, de vez que o envolvimento emocional pode ser substituído
pelo trabalho artesanal do texto poético, o que vai conferir ao texto alto grau de poesia, conforme
o entendimento de Pound e Baudelaire.
Portanto, a poesia apresenta uma visão subjetiva do mundo e dos homens. Essa subjetividade
localiza-se na interioridade do poeta, mas se manifesta no discurso poético. Por sua vez, essa subjeti-
vidade no discurso pode se realizar diretamente, por meio do eu lírico, como apresentar-se por meio
de máscaras, isto é, o poeta disfarça-se sob outros nomes e símbolos. Um deles é o da primeira pessoa
explícita, conforme vimos no poema de Manuel Bandeira. Outro modo é o uso de pseudônimos,
de outros nomes que funcionam como metáforas do próprio poeta. Em Carlos Drummond de
Andrade (2000, p. 20), por exemplo, o poeta é substituído por José, no poema “José”:
E agora , José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
[...]
Trata-se de caso único na poesia e até hoje é motivo de estudos e discussões a respeito dessa
extraordinária divisão de um mesmo poeta em diferentes identidades, biografias, assuntos e cor-
respondentes maneiras de escrita. A multiplicidade é uma das marcas da poesia.
Cecília Meireles (1972, p. 224) assim poetava:
Autorretrato
Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.
Eu sou trezentos...
Assim, podemos concluir que, embora se fale de um sujeito lírico, não temos em poesia uma
unidade psíquica nesse sujeito e nem mesmo em suas formas de representação no poema, dado que
ele pode assumir diferentes nomes, pode ocultar-se e desconhecer-se.
Uma doença – II
As palavras assinaladas transportam para uma visão crítica do mundo na atualidade, concreti-
zando a ideia de desequilíbrio e do pensamento necessitado de apoio, de qualquer tipo de segurança
que o impeça de entrar em crise, de desequilibrar-se: o mundo não é mais a mente em desequilíbrio,
mas acrescenta o sentido de fragilidade e de artificialidade, originado na aura postiça e na leve e po-
rosa cortiça. Mas, acima de questões de compreensão do texto poético, podemos avaliar que efeitos de
singularidade e beleza o texto adquire pelo uso constante e harmônico dessas metáforas.
A linguagem poética: poema x poesia 95
7.3.1 Acróstico
Trata-se de uma forma poética em que “certas letras formam uma palavra ou frase, em ge-
ral um nome próprio. Quando se juntam as letras iniciais, tem-se o acróstico propriamente dito,
que se lê na vertical, de cima para baixo ou no sentido inverso” (MOISÉS, 1997, p. 11). É forma
poética popular, adotada em álbuns de recordação, em bilhetes, em dedicatórias. Abaixo, um
acróstico escrito por Sílvia Arcoverde (2007):
Adoração
À Elisa Lucinda
Eu Adoro
Lê-La e devorá-La
Ícone da linguagem poética
Sedutora, morena e sensual
Autêntica e apaixonante
Linda
Única
Completa
Inspiração dos meus versos
Navio, chegada, porto
Diva, deusa
Arte do começo ao fim.
(ARCOVERDE, 2007)
7.3.2 Balada
É poema de tom geralmente melancólico e que, enquanto forma fixa, apresenta geralmente
quatro estrofes, versos octossílabos, rimas cruzadas ou variáveis e repetição do mesmo conceito ou
ideia ao fim de cada estrofe.
Manuel Bandeira traduziu a “Balada da linda menina do Brasil” (BANDEIRA, 1970, p. 422),
de Rubén Darío, de que citamos apenas a estrofe final, cujos dois últimos versos se repetiram nas
estrofes anteriores.
96 Teoria da literatura II
7.3.3 Canção
Há variados tipos de canção, entre eles a canção medieval trovadoresca, a clássica, a român-
tica e a moderna. Segundo Massaud Moisés,
há que distinguir a canção popular da canção erudita. A primeira, que assume
outros apelativos conforme o idioma (abc nordestino, modinha, lied, song,
saga etc.) limita-se com o folclore e a música e não apresenta moldes definidos.
A outra modalidade [...] caracteriza-se pela obediência a esquemas cultos e
precisos. (1997, p. 68, grifos do autor)
Entre esses esquemas estão uma limitação entre 7 e 20 versos e um sentimento vibrante de
amor, paixão, ódio, vingança, saudade, tristeza etc., com um transbordamento da alma do poeta.
Na canção, geralmente estão ligados o amor e o lirismo.
Canção
[...]
Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...
Mal oiço e quase choro.
Por que choro não sei.
Tão tênue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Ou pinhais e eu estar triste.
7.3.4 Elegia
Na origem, a elegia acompanhava os cantos fúnebres. Por isso, conserva o caráter lamen-
toso, de perda, de desengano amoroso e de dor íntima. Na época clássica greco-latina, alcançou
grande prestígio, quando tratava de diferentes assuntos. Na elegia, “o poeta mais francamente se
põe em cena. Ele queixa-se e louva; moraliza; geralmente exorta. Quase atua como orador: seja o
orador político e popular, que busca desencadear nas almas sentimentos belicosos e patrióticos;
seja o orador filósofo, que disserta acerca da vida humana seus prazeres e males” (MOISÉS, 1997,
p. 167-168).
A linguagem poética: poema x poesia 97
No início, essa forma obedecia a uma estrutura poemática de dísticos (estrofes de dois ver-
sos), mas ela se alterou ao longo do tempo. A forma poética se expandiu e foi popular em todos os
países do Ocidente. Na atualidade, é praticada e está sempre relacionada com sentimentos doloro-
sos, em especial os despertados pela perda ou ausência do ser amado.
Elegia
Um dos poetas mais valorizados na criação de poemas nesse formato é Rainer Maria Rilke
(1875-1926). Em pouco mais de duas semanas, de janeiro a fevereiro de 1922, Rilke compôs
os dez poemas que integram as Elegias de Duíno, uma das obras poéticas mais influentes na
literatura ocidental.
7.3.5 Haicai
Forma poética japonesa em estrofe única de três versos, com total de 17 sílabas métricas,
assim divididas: primeiro verso, cinco sílabas; segundo verso, sete sílabas; no último, cinco sílabas
(5-7-5). Apresenta uma impressão a respeito de uma cena ou de um objeto natural, criando uma
imagem de forte impacto lírico. A seguir, dois exemplos de Helena Kolody.
Saudades
Um sabiá cantou.
Longe, dançou o arvoredo.
Choveram saudades.
Flecha de sol
A flecha de sol
Pinta estrelas na vidraça.
Despede-se o dia.
7.3.6 Hino
Composição poética ligada à música desde sua origem grega. Tem temática elevada, de tona-
lidade cívica, patriótica, religiosa ou profana. Seu objetivo é sempre de elogiar e exaltar. Os poetas
do Romantismo, em especial, serviram-se dessa forma para exaltar a natureza e a pátria. É uma
composição livre, definida mais pelo tom e pelo assunto do que pelos aspectos da estrutura de
versos ou estrofes ou ritmo.
Hino à Pátria
7.3.7 Madrigal
De origem italiana, atravessou os séculos e está ligado a temas amorosos e à música.
Na origem, possuía forma fixa – dois ou três tercetos seguidos de um ou dois dísticos em versos
decassílabos rimados –, mas o passar do tempo deixou o madrigal com forma livre, predominan-
do a estrofe única de dez versos e alternando decassílabos e hexassílabos. O exemplo a seguir é
de Manuel Bandeira (1970, p. 90).
A linguagem poética: poema x poesia 99
Madrigal melancólico
O que eu adoro em ti
não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
[...]
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
7.3.8 Ode
Trata-se de uma composição poética que apresenta tom cerimonioso, sendo dirigida a uma
pessoa ou entidade abstrata, sempre séria e de tom elevado. Há diferentes odes: a ode pindárica,
a sáfica, a horaciana e a irregular.
A primeira delas, feita ao estilo do poeta grego Píndaro, exaltava os vencedores da guerra ou
dos jogos olímpicos, usando três estrofes diferentes no poema.
A ode praticada pela poeta grega Safo, assim como as de Anacreonte e Alceu, cantava o
amor, o vinho e os prazeres da mesa.
A ode horaciana é mais pessoal e reflexiva, composta por uma série de estrofes iguais.
Durante a Idade Média, a ode foi esquecida e retornou com vigor no Humanismo do século
XV. O Romantismo do século XIX continuou a cultivá-la, mas sem tanta constância. A partir do sé-
culo XX, a ode apresenta forma livre, temas contemporâneos dos poetas. Foi cultivada por nomes
importantes da literatura, como Miguel Torga, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade,
entre outros.
Ode triunfal
7.3.9 Parlenda
É um poema infantil, fortemente rimado, e se destina aos jogos das crianças.
Hoje é domingo,
Pede cachimbo.
Cachimbo é de barro,
Bate no jarro [...]
IV
P
P
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P Ê N
O
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P Ê N D L
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P Ê
A linguagem poética: poema x poesia 101
7.3.12 Soneto
Uma das mais conhecidas e praticadas entre as formas poéticas líricas. Sua origem data do
século XII, na Itália, e é atribuída a Giacomo da Lentino (1180(?)-1246(?)). Tem dois esquemas
de composição.
• O soneto italiano ou petrarquiano (do italiano Petrarca – 1304-1374) compreende duas
quadras (estrofes de quatro versos) e dois tercetos (estrofes de três versos), com rima
abbaabba nos quartetos e cdecde ou cdcdcd nos tercetos. É o formato mais utilizado para
a composição do poema.
• O soneto inglês ou shakespeariano (de Shakespeare) é composto por três quartetos e um
dístico (estrofe de dois versos) final e rimas ababcdcdefefgg.
Atualmente, a apresentação visual do soneto ganhou uma nova imagem: os 14 versos apare-
cem em apenas um bloco, mantendo, no entanto, a perspectiva temática e a chave de ouro ou fecho
de ouro, isto é, o último verso contém a ideia, o conceito ou o tema fundamental do poema.
Qualquer que seja o formato, foi adotado em todo o Ocidente e teve inicialmente o tema
amoroso como exclusivo, mas sua evolução permitiu uma ampliação temática: a sátira, o humor,
as reflexões sobre a vida e a morte, sobre a beleza e a poesia, sobre o cotidiano e a religião. Essa
abertura temática renovou a forma poética.
7.3.13 Trova
É uma composição de uma só estrofe, geralmente um quarteto, que condensa todo o sen-
timento e a reflexão do poeta. É extremamente popular e sua musicalidade se origina no uso do
verso heptassílabo, isto é, a redondilha maior. Nosso folclore é rico nesse tipo de composição,
repetida oralmente.
102 Teoria da literatura II
Existem outras formas poéticas, mas com menor e menos expressiva ocorrência, e por isso
elas não foram aqui arroladas.
As unidades expressivas
(CANDIDO, 2004, p. 103-111)
Neste ponto, estudaremos outras unidades, que constituem a linguagem poética propriamente
dita: palavras e combinações de palavras dotadas de um significado próprio que o poeta lhes
dá, e que se tornam condutoras do significado do poema. No trabalho criador, o poeta (1) usa
palavras na acepção corrente; (2) usa palavras dotadas de acepção diversa da corrente, mas que
é aceita por um grupo; (3) usa palavras dotadas de uma acepção que ele cria, e que pode ou
não tornar-se convencional. Em qualquer dos casos, está efetuando uma operação semântica
peculiar – que é arranjar as palavras de maneira que o seu significado apresente ao auditor,
ou leitor, um supersignificado, próprio ao conjunto do poema, e que constitui o seu significado
geral. As palavras ou combinações de palavras usadas podem ser signos normais, figuras, ima-
gens, metáforas, alegorias, símbolos, em cujo estudo agora entramos.
Como preliminar, detenhamo-nos um pouco no tipo de homem que faz versos. Antes de mais
nada, devemos registrar que ele é dotado de um senso especial em relação às palavras, e que
sabe explorá-las por meio de uma técnica adequada a extrair delas o máximo de eficácia. Só a
tais homens ocorre o fenômeno chamado inspiração, que é uma espécie de força interior que
o leva para certos caminhos da expressão.
Bilac, por exemplo, tinha mania com as palavras, os nomes, as combinações de nomes. Dizia
que alguns deles equivaliam a um maxixe, e gostava de os pronunciar dançando, ou então
ficava obsedado por certos vocábulos, pronunciando-os de vários modos, explorando a sua
sonoridade, comparando-os com outros. [...]
Quando fica nesta camada de percepção sonora e rítmica o poeta ainda não completou o seu
equipamento. É preciso possuir também um senso apurado dos significados que a palavra
pode ter – desdobrando-a, aproximando-a de outras, extraindo significações insuspeitadas.
O verso é uma unidade indissolúvel de ritmo, sonoridade e significado [...] interagindo ambos
na constituição de uma unidade expressiva. Justamente na busca de tais significados é que o
poeta emprega a palavra como imagem ou como símbolo.
A base de toda imagem, metáfora, alegoria ou símbolo é a analogia, isto é, a semelhança entre
coisas diferentes, e aqui encontramos, no plano dos significados, um problema que já encontrá-
vamos no plano das sonoridades como sinestesia: o da correspondência. Com base na possibili-
dade de estabelecer analogias, o poeta cria a sua linguagem, oscilando entre a afirmação direta
e o símbolo hermético. Raramente o poema é feito apenas com um ou outro destes ingredien-
tes polares, e na sequência dos versos somos capazes de notar a gradação que os separa. Muitas
vezes, o elemento simbólico não está nas especificidades das palavras, ou na sequência de
A linguagem poética: poema x poesia 103
imagens, mas no efeito final do poema tomado em bloco. E em tudo observamos a capacidade
peculiar de sentir e manipular palavras.
Por que o poeta tem este dom, é difícil dizer, e a reposta cabe à psicologia da criação, que não
nos interessa no momento. Mas podemos mencionar alguns elementos diretamente ligados
ao nosso tema.
Antes de mais nada, como muito bem diz e rediz John Press (The fire and the fountain, capítulo
II), a poesia depende de uma acuidade e potência invulgares dos sentidos baseadas na riqueza
emocional. Gente fina, sem paixões, sem intensidade emocional, não faz poesia grande.
Ora, esta generosidade de temperamento está ligada a uma forte sensorialidade (digamos
assim em lugar de sensualidade para evitar equívocos); a uma capacidade de perceber viva
e intensamente com os sentidos; logo, de apreender com força as coisas e o espetáculo do
mundo. Daí o sentimento das analogias, a capacidade de correlacionar, de substituir e de
transpor, que está na base da formação das imagens. Há poetas que denotam mais claramente
do que outros esta capacidade, porque manifestam os aspectos exteriores da sua sensoriali-
dade: senso das cores, dos ritmos, do tato, do gosto. Noutros, tais aspectos aparecem difusos
ou sublimados, mas em todos estão presentes quando analisamos a contextura de sua obra.
Muitas vezes a sensorialidade aparece como algo interior, pois o poeta traduz em lingua-
gem introspectiva seu senso agudo das formas e dos sons, por exemplo. Um temperamento
poderoso como o de Antero de Quental, mas que ao mesmo tempo se alia a uma capacidade
invulgar de reflexão, é capaz de escrever com êxito poesias de transposição externa do mundo
e de transposição interna do mundo. [...] a analogia está na base da linguagem poética, pela
sua função de vincular os opostos, as coisas diferentes, e refazer o mundo pela imagem.
Atividades
1. Escolha um quadro de Leonardo da Vinci – pode ser, por exemplo, A Gioconda (Monalisa)
ou Nossa Senhora das Rocas. Descubra o que nele é referência e o que é figurado. Analise o
modo como é composta a figura central e como se relaciona com o fundo do quadro.
2. Busque imagens de sua coleção pessoal de fotografias. Escolha algumas e observe o que nelas
você considera como metáforas de momentos de sua existência ou de pessoas próximas.
3. Recolha na fala cotidiana exemplos de palavras e expressões que não são usadas no sentido
próprio, mas em sentido figurado. Tente descobrir e explicar qual o sentido original.
8
A linguagem poética: o ritmo e a rima
De sua origem, a poesia lírica traz a ligação com a música, que permanece no verso atual
sob as formas do ritmo do verso e todos os efeitos estilísticos e estéticos nascidos das combinações
sonoras de sílabas e letras, como a rima.
Ao passar da forma somente cantada para a escrita, nesta se conservariam re-
cursos que aproximariam música e palavra: as repetições de estrofes, de ritmos,
de versos (refrão), de palavras, de sílabas, de fonemas, responsáveis não só pela
criação das rimas, mas de todas as imagens que põem em tensão o som e o sen-
tido das palavras. (SOARES, 2000, p. 24)
Mesmo a mudança histórica do suporte poético, que passou do canto à folha impressa,
não repudiou a ligação entre elementos tão significativos como o ritmo do verso ou a sonoridade
significativa das palavras, registrados na sua versão escrita.
o leitor atento, treinado a ouvir, poderá captar no poema o ritmo e o significado como uma
unidade indissolúvel.” (GOLDSTEIN, 2006, p. 12). Na medida em que observamos, analisamos
e relacionamos os diferentes usos dos recursos sonoros e procuramos descobrir qual é a unidade
que formam com o significado, o estudo desses recursos ganha importância e relevo para a com-
preensão e a avaliação da musicalidade de um poema.
IX
Descobrimos que o primeiro verso/linha tem uma subunidade de sentido − “Só quem ousou
tocar a lira” −, assim como o verso/linha seguinte. Mas o terceiro não se completa nele mesmo −
“sente o quanto inspira” − e precisa encadear-se com o seguinte. Temos um caso de encadeamento
que se justifica pela semântica. Mais claramente se verifica essa incompletude do verso e a neces-
sidade de encadear-se com os seguintes na segunda estrofe citada: o segundo e o terceiro versos –
“as vozes são curvas/ eternas e puras” − estão em uma relação de completa dependência.
Há gradação nessa dependência: o terceiro verso da estrofe está mais ligado ao segundo do que este ao
primeiro. A diferença de grau não interfere na denominação de encadeamento para os dois versos em
relação ao primeiro − “Somente no reino vago” − dessa segunda estrofe.
O verso segue algumas regras e normas relativas ao modo como se organiza e como é medida
sua extensão, bem como a relação que mantém na estrofe e no poema. As regras e normas que medem
sua extensão e sua organização se denominam métrica (do grego métron = “medida”).
Esse modo de distribuir o tempo da elocução das palavras desapareceu na passagem para
as línguas modernas, mas não desapareceu, porém, da crítica literária e da análise de poemas –
que, com frequência, costumam qualificar o ritmo de alguns versos como jâmbicos, ou trocaicos,
ou espondaicos e por aí afora.
Para conhecer como funciona esse sistema em língua portuguesa, convém esclarecer al-
gumas pequenas regras da escansão1. As sílabas métricas não correspondem exatamente à divi-
são das sílabas gramaticais. Por exemplo, ao final de cada verso, a última palavra terá contadas
as suas sílabas somente até a sílaba tônica. No verso “Minha terra tem palmeiras” conta-se até
“-mei-” (o que dará mi/nha/terr/a/tem/pal/mei- 7 sílabas métricas). Outra alteração das síla-
bas gramaticais se dá quando ocorre ou uma elisão ou sinérese ou diérese ou hiato2.
O verso é formado por sílabas métricas, que formam o ritmo. O número dessas sílabas totais
varia de 1 a 12. Os versos que ultrapassam esse número são compostos pelos anteriores, por exem-
plo, um verso de 17 sílabas métricas seria composto de 10 e 7 ou de 9 e 8. Os versos até 12 sílabas
são considerados regulares.
O esquema rítmico (ER) contém acentuação variada a partir dos versos com três sílabas. Essa
variação estará de acordo com as tendências da versificação em língua portuguesa e atende a crité-
rios de ordem semântica: para acentuar tal ou qual ideia, muda-se a acentuação do ER para fins de
efeito enfático, de intensificação do sentido. Antonio Candido esclarece (2004, p. 82):
1 Escansão é a técnica de decompor o verso em seus elementos fundamentais (MOISÉS, 1997, p. 196).
2 A elisão resulta da fusão de vogais no encontro de duas palavras (a expressão “do interior” passa a ser contado
“do+ in/te/rior”, 3 sílabas). A sinérese é a junção de vogais no interior de uma palavra (“saudade” passa a ser sau/
da/de). A diérese é a separação de vogais juntas no interior de uma palavra (“branquear” é lida como branque + ar).
O hiato é a separação de vogais em palavras lado a lado: no verso da poeta Florbela Espanca: “Ó Anto! Eu adoro os teus
estranhos versos”, temos a métrica “Ó+An/ to!+eu/ a/do/ro+os/teus/es/tra/nhos/ver...”, um verso de 10 sílabas métri-
cas (MOISÉS, 1997, p. 198-199).
108 Teoria da literatura II
1 1 monossílabo
2 2 dissílabo
3
3 trissílabo
1e3
1e4
4 tetrassílabo
2e4
2e5
5 3e5 pentassílabo ou redondilha menor
1, 3 e 5
3e6
2e6
6 hexassílabo
2, 4 e 6
1, 4 e 6
4e8
2, 6 e 8
8 octossílabo
3, 5 e 8
2, 5 e 8
4e9
9 eneassílabo
3, 6 e 9
6 e 10
10 decassílabo
4, 8 e 10
5 e 11
11 2, 5, 8 e 11 endecassílabo
2, 4, 6 e 11
6 e 12
12 4, 8 e 12 dodecassílabo ou alexandrino
4, 6, 8 e 12
A linguagem poética: o ritmo e a rima 109
Como se verifica a funcionalidade desse quadro? Pelos efeitos rítmicos, semânticos e estilís-
ticos resultantes da escolha por um ou outro desses metros. As épocas históricas, a preferência por
determinadas formas fixas e as intenções dos poetas dão unidade ao poema e o valorizam formal
e esteticamente.
Exemplo de poema com verso de uma sílaba:
É um metro raro para compor todo um poema. Aparece mais na literatura moderna e atual
em estrofes com metros variados, provocando sempre um efeito surpreendente pela saliência que
dá ao significado.
Norma Goldstein encontrou um belo exemplo em Cassiano Ricardo:
Rua
torta.
Lua
morta.
Tua
porta.
amor
humor
Esse poema de Oswald de Andrade representa muito bem duas fases de sua poesia: a síntese
e o humor. É um poema-piada que, no entanto, trata das possíveis faces do amor. O trocadilho cria-
do pela rima aproxima as duas palavras e as faz equivalerem em uma unidade de sentido: a de que
o amor é alegre, mas por vezes ridículo. Essa significação nasce rapidamente, assim como é rápido
todo o poema, inclusive sua métrica. Há total semelhança entre o número de sílabas gramaticais e
o de sílabas métricas.
Exemplo de poema com versos de três sílabas:
Rosalina
Rosalina.
Rosa ou Lina?
Lina ou Linda?
Flor ainda!
Flor purpúrea,
Mais singela
Que Adozinda:
Rosalina!
Rosalinda!
Além do belo jogo de palavras, com trocas sonoras bastante chamativas pelo uso constante
da vogal aguda -i-, percebemos a leveza do jogo do nome da mulher, acentuada sobretudo pela
leveza do ritmo rápido de versos em três sílabas métricas (Ro/sa /li.., Ro /sa+ou / Lin..., Li/ na+ou/
Lin..., Flor/a/ in... etc.).
Exemplo de poema com versos de quatro sílabas:
Elisa
O rouxinol
que na balseira
do rio à beira,
canção fagueira
que tão bem soa,
cadente entoa
ao por do sol
e no arrebol
duma manhã
fresca e louçã; [...]
O movimento conferido pelo ritmo rápido e a regularidade do metro conferem ao texto li-
geireza e alegria (“fagueira”), cadência (“cadente”) e musicalidade (“que tão bem soa”). Ao esquema
silábico (ES 4) correspondem dois esquemas rítmicos (ER): 1-4 e 2-4.
Exemplo de poema com versos de cinco sílabas:
Piscina
Para o mesmo ES 5, temos três diferentes ritmos que indicam três alvos do olhar do poeta: a
piscina, a carranca e a lua. O movimento do olhar que percebe a paisagem é o movimento do verso
que se altera para acompanhar esse olhar.
Exemplo de poema com versos de seis sílabas:
Isto
Lembrança
NUM ÁLBUM
Como o triste marinheiro (ER 4, 7)
Deixa em terra uma lembrança, (ER 3, 7)
Levando n’alma a esperança (ER 2, 4, 7)
E a saudade que consome, (ER 3, 7)
Assim nas folhas do álbum (ER 2, 4, 7)
Eu deixo meu pobre nome. (ER 2, 5, 7)
E, se nas ondas da vida (ER 2 ,4, 7)
Minha barca for fendida (ER 3, 7)
E meu corpo espedaçado, (ER 3, 7)
Ao ler o canto sentido (ER 2, 4, 7)
Do pobre nauta perdido (ER 2, 4, 7)
Teus lábios dirão – coitado! (ER 2, 5, 7)
O verso de sete sílabas é o metro mais popular da língua portuguesa. Nele estão os versos
da literatura de cordel, das quadrinhas, das cantigas, dos poemas sentimentais, das canções.
A riqueza rítmica, como se pode observar no exemplo acima, confere grande dinamicidade e
variedade de efeitos.
Esse poema de Casimiro de Abreu foi escrito em junho de 1858, em um álbum de moça,
tipo de exercício poético até descompromissado e que atesta a popularidade desse ritmo.
Manuel Bandeira (1970, p. 193) tira um excelente efeito ao usar a redondilha maior,
quebrando-a em ER 3 em alguns versos do poema Belo belo:
A quebra em quero quero intensifica não apenas a mudança de ritmo mas sobretudo a
mudança de sentido: do negativo para o desejo mais explícito. Isso mais uma vez comprova a função
expressiva que o poeta retira do uso da métrica.
Exemplo de poema com versos de oito sílabas:
O poeta ironiza a si mesmo e a seu poema ao qualificar seus octossílabos já senis, mas tira
poderosos efeitos da comparação entre sua idade e a juventude das debutantes. Além desse comen-
tário de ordem semântica, podemos verificar que a mudança rítmica acentua ao final os valores da
juventude: primeiros instantes, amor, sonho.
Exemplo de poema com versos de nove sílabas:
A tempestade
[...]
E no túrgido ocaso se avista (ER 3 ,6, 9)
Entre a cinza que o céu apolvilha (ER 3, 6, 9)
Um clarão momentâneo que brilha, (ER 3, 6, 9)
Sem das nuvens o seio rasgar; (ER 3, 6, 9)
Logo um raio cintila e mais outro, (ER 3, 6, 9)
Ainda outro veloz, fascinante, (ER 3, 6, 9)
Qual centelha que em rápido instante (ER 3, 6, 9)
Se converte d’incêndios em mar. [...] (ER 3, 6, 9)
Nesse poema, Gonçalves Dias exibe um belo trabalho com a diferente metrificação e seus
efeitos. O longo poema descreve uma tempestade, desde os primeiros sinais no céu até a devastação
que causa e o rastro de destruição que deixa. E, à medida que a tempestade se aproxima, o poema,
que começa com versos dissílabos, vai crescendo metricamente de estrofe a estrofe, atinge o grau
máximo no endecassílabo, e finaliza no verso de duas sílabas, como começou. Esse movimento
rítmico, que se amplia de estrofe a estrofe, é um exemplo de virtuosismo poético, de grande efeito
estético, fundindo sentido, imagem e música.
Não se pode minimizar a extraordinária regularidade rítmica. Gonçalves Dias é um dos
maiores poetas brasileiros – pela emoção e pela musicalidade de seus versos.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 113
O verso decassilábico foi o preferido dos poetas épicos e dos grandes sonetistas das línguas
europeias. Muito maleável e rico em recursos métricos na divisão do verso, o decassílabo permite
tanto o transbordamento sentimental quanto a lógica dos pensamentos elevados e também argu-
mentações sobre a natureza do mundo e da humanidade. A alteração isolada do último verso cita-
do expõe o núcleo da reflexão do poeta: o amor é travo e trevo. O jogo de palavras tem a ver com
as contradições do sentimento amoroso (“travo” e “trevo”). O claustro amoroso é lugar de prece e
adoração, tal como o poeta se comporta diante da ausência da amada, e para dizer dessa situação o
ritmo se altera, diferenciando-se este verso dos demais versos da estrofe citada.
Exemplo de poema com versos de 11 sílabas:
A tempestade
[...]
Remexe-se a copa dos troncos altivos, (RE 2, 5, 8, 11)
Transtorna-se, toda, baqueia também; (RE 2, 5, 8, 11)
E o vento, que as rochas abala no cerro. (RE 2, 5, 8, 11)
Os troncos enlaça nas asas de fero, (RE 2, 5, 8, 11)
E atira-os raivoso dos montes além. (RE 2, 5, 8, 11)
Novamente, podemos observar a regularidade rítmica dos versos de Gonçalves Dias. A pre-
sença da tempestade é inexorável. A natureza é destruída de forma implacável: a tempestade man-
tém sua regularidade e poder de destruição. Os versos mantêm a cadência.
Exemplo de poema com versos de 12 sílabas:
O anel de vidro
De acordo com o número de versos, as estrofes podem ser conforme o quadro a seguir:
Número de versos Nome da estrofe
um verso monóstico
3 O verso alexandrino, muito difundido na Idade Média, assim se denomina, provavelmente, porque procede do
Romance de Alexandre, de Lambert le Tort, Alexandre de Bernay e Pierre de Saint-Clouds.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 115
O agrupamento dos versos em estrofes pode apresentar formato regular, o que significa
que todas as estrofes de um poema têm o mesmo número de versos, ou pode ser constituído por
um texto que esteja construído com diferentes números de verso em cada estrofe. Essa distinção
visa, ela também, a acompanhar a significação do texto ou o formato fixo determinado pela tradi-
ção. Neste último caso, temos, por exemplo, o soneto, composto por duas quadras e dois tercetos.
Também o numero de estrofes varia de poema para poema.
Observemos o poema “XXXIII”, da obra Losango Cáqui, de Mário de Andrade (1987, p. 146):
A combinação de estrofes (uma oitava, um dístico e um verso isolado) dão ao poema uma
dinamicidade própria: da autenticação do fato exterior, passando pela constatação da paz interior.
Chegando à conclusão metafísica do último verso, o poema se constrói em um movimento em
direção ao abstrato. A combinação de estrofes diferentes auxilia, portanto, na compreensão das
ideias e do conceito de arte expressos pelo poema.
O funcionamento das rimas pode ser descrito por meio de sua classificação, que expomos-
na sequência4.
Madrigal
É a posição em que habitualmente lemos a rima: ao final do verso, com sonoridade seme-
lhante apenas a partir da vogal tônica da última palavra.
4 Adotaremos nos exemplos, preferencialmente, a obra de um só poeta para demonstrar a riqueza de recursos que
um artista do verso mobiliza para construir seus textos. Escolhemos Manuel Bandeira por várias razões, e uma delas
foi a profunda ligação de sua poesia com a música e os efeitos que essa relação pode trazer para o enriquecimento dos
poemas e o surgimento de muitos efeitos poéticos.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 117
Soneto italiano
Maçã
[...]
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente
Vemos nesses versos um extraordinário trabalho de repetição sonora com rimas toantes,
em que as vogais - i -, - e - aparecem em variações sutis, criando sonoridades recorrentes e que
estabelecem alto grau de unidade sonora no poema.
Pavilhão
Epílogo
A menina idílio
Temos na rima fútil/ inconsútil dois adjetivos – é, portanto, rima pobre. Temos em passa um
verbo e em desgraça um substantivo – é, portanto, uma rima rica.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 119
Podemos verificar nas rimas desse soneto a coincidência de letras/sons a partir da última
vogal tônica em altivez/fez, imerecido/gemido, engana/humana, espanto/santo, senão/então: são
todas elas rimas pobres, dada a semelhança integral entre elas. Já nos pares pensamento/sentimento
e vida/vivida, vemos que há coincidência nas letras/sons que antecedem a vogal tônica. Essas são
rimas ricas.
Madrigal
Soneto italiano
O descante do arlequim
[...]
E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade...
Além da rima, também podem ser apontados entre recursos sonoros alguns outros,
conforme a seguir.
8.4.6.1 Aliteração
Consiste na repetição de consoantes com finalidade expressiva.
8.4.6.2 Assonância
Consiste na repetição de vogais com finalidade expressiva.
Brisa
8.4.6.4 Onomatopeia
Essa figura de linguagem visa reproduzir sonoridades do real, aproveitando-as para,
em conjunto com as demais palavras do verso, reforçar a expressão da ideia do poeta.
Os sinos
[...]
Sino de Belém, pelos que ainda vêm!
Sino de Belém bate bem-bem-bem.
O ritmo
(CANDIDO, 2004, p. 70-72)
Os elementos que compõem o verso são indissolúveis, e não podemos imaginar um sem o
outro. Mas se tentássemos, por um esforço de abstração, imaginar quais os que funcionam
com maior importância na caracterização de um verso, chegaríamos provavelmente à conclu-
são de que é o ritmo. Ele é a alma, a razão de ser do movimento sonoro, o esqueleto que ampara
122 Teoria da literatura II
todo o significado. Considerando isto, muitos chegaram à conclusão de que o ritmo seria uma
espécie de manifestação, na arte, de realidades elementares da vida. A tradução de ritmos
orgânicos, por exemplo; uma vez que também a vida se manifesta basicamente por meio de
ritmos: a pulsação cardíaca, o movimento respiratório, a marcha, o gesto. Sendo assim, o ritmo
teria um fundamento biológico e estaria ancorado na própria natureza. O verso corresponde,
de fato, a uma certa realidade respiratória, que se define antes de mais nada pela possibilidade
de emitir a sucessão de sons em certas unidades de emissão respiratória.
Para outros, o ritmo possuiria uma realidade marcada pela atividade social do homem. Teria,
por exemplo, nascido do trabalho – pois como todos sabem, o gesto produtivo é mais rápido,
mais duradouro e mais eficiente se for regular. Há uma acentuada economia de esforço e um
aumento de produtividade no gesto regular: o da enxada caindo em cadência, o do martelo
batendo em cadência. Do ângulo coletivo, é sabido que a regularidade do gesto não só permite
mais eficácia, mas é frequentemente condição para que o ato se realize. Assim, um grupo de
homens levantando um peso só o pode fazer se houver coordenação dos movimentos. O ritmo
dá unidade ao grupo, tornando eficiente o seu esforço e reforçando o sentimento de partici-
pação, de interdependência, como requisito para as realizações. Inclusive o cansaço físico é
diminuído, aumentando-se a capacidade de resistência.
Estes pontos de vista levam a duas atitudes opostas quanto à origem do ritmo: ou ele preexiste à
consciência do homem, pois já existe na própria natureza, inclusive nos movimentos fisiológicos;
ou ele é uma criação do homem, derivando das atividades sociais. No primeiro caso, o homem
traduz pelos seus meios de expressão um fenômeno que é anterior e superior a ele. No segundo
caso, o homem cria um meio próprio de expressão, que é subordinado inteiramente a ele. Mais
ainda: no primeiro caso, o ritmo seria um fenômeno natural, embora esteticamente disciplinado;
no segundo, seria um fenômeno puramente estético, embora de ordem social.
Colocadas assim, de maneira extremada, as duas posições ficam insatisfatórias; mas se fosse
preciso decidir esquematicamente por uma ou outra, parece que a primeira teria mais razão
de ser. Com efeito, é inegável que, como realidade objetiva, o movimento rítmico preexiste a
qualquer sistematização. Mesmo o canto de certos pássaros ou o grito de certos animais se
ordena numa modulação rítmica – mostrando que antes do trabalho humano e sua influência
como organizador do gesto, a natureza conhecia o ritmo, e que o homem poderia tê-lo apren-
dido nessa fonte.
[...]
Com isso, ficamos de posse de algumas noções importantes: o ritmo é uma realidade profunda
da vida e da sociedade; quando o homem imprime ritmo à sua palavra, para obter efeito esté-
tico, está criando um elemento que liga essa palavra ao mundo natural e social; está criando
para esta palavra uma eficácia equivalente à eficácia que o ritmo pode trazer ao gesto humano
produtivo. Ritmo é, portanto, elemento essencial à expressão estética nas artes da palavra,
quando se trata de versos, isto é, um tipo altamente concentrado e atuante da palavra. Ele
permite criar a unidade sonora na diversidade dos sons. [...]
Precisando a definição esboçada, digamos que:
O ritmo do verso nas línguas neolatinas é a sua divisão em partes mais acentuadas e partes
menos acentuadas que se sucedem, e a integração dessas partes numa unidade expressiva.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 123
Atividades
1. Pesquise na internet a letra da canção Construção (1971), de Chico Buarque, e nela analise
a organização das rimas e os efeitos obtidos com o trabalho sobre as palavras. Escreva um
pequeno texto com seus comentários.
2. Pesquise cantigas de roda, parlendas e cantos folclóricos (de ninar, de trabalho etc.) em sua
comunidade. Registre esses textos. Analise sua composição rítmica e rímica.
3. Analise o soneto Língua Portuguesa, de Olavo Bilac, aplicando cada um dos recursos
sonoros tratados nesse capítulo. Redija um documento e discuta com seus colegas as ideias
sobre língua portuguesa e os recursos sonoros para a afirmação dessa ideias.
Língua portuguesa
O trabalho com a formação de leitores que é realizado pela escola privilegia, desde a mais
tenra idade do aluno, a leitura de narrativas. Aquelas que são afetivamente denominadas histo-
rinhas irão ao longo do tempo se ampliar em narrativas mais extensas e mais complexas. No en-
tanto, nesses momentos iniciais da formação começam a se desenhar na mente do pequeno leitor
estruturas narrativas que, futuramente, comporão um quadro de exigências do leitor em relação
aos textos que lê. Não apenas os escritos colaboram na formação dessa qualificação tácita de
narrativa: também as histórias relatadas e ouvidas no cotidiano ajudarão a imprimir na mente do
leitor modelos narrativos reais ou ficcionais. Vamos, por meio de um breve panorama histórico
e de reflexões teóricas, tentar explicar que estruturas narrativas são essas que atuam na formação
de leitores e que modelos os escritores seguem ao compor suas obras.
No entanto, nesse período renascentista, é escrito por Miguel Cervantes de Saavedra o monu-
mental Dom Quixote de la Mancha (1605-1615), que assinala não apenas o nascimento do romance
moderno mas também é, até hoje, considerado o mais importante romance escrito no Ocidente.
Mas somente a partir do final do século XVII o romance assumiu o formato básico com que até
hoje se apresenta aos leitores. Na França, o modelo inicial foi A Princesa de Clèves (1678), de Madame
de Lafayette. Na Inglaterra, Daniel Defoe é considerado o criador do romance inglês com Robinson
Crusoé (1719) e Moll Flanders (1722). Outro romancista de extraordinária narrativa até hoje inova-
dora foi Laurence Sterne, com Tristram Shandy (1759-1767). O romance inglês ganhou destaque e
maturidade no século XIX, quando Charles Dickens e outros escritores hoje menos conhecidos con-
seguem atrair um grande público e consolidar as convenções do realismo. O século XIX foi o período
de amadurecimento do romance em toda a Europa e, por extensão, nas ex-colônias europeias da
América, o que o tornou a mais popular e mais importante forma literária.
Com o advento do realismo e do naturalismo, enquanto perspectivas de pensamento,
ideologia e forma artística, o romance ganhou impulso por meio de autores como os franceses
Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Sthendal e Émile Zola; os russos Alejksandr Pushkin, Ivan
Turgueniev, o extraordinário Fyodor Dostoiévski e Leon Tolstoi. Entre os ingleses, Jane Austen,
sir Walter Scott (escocês de nascimento), William Makepeace, Thackeray, o já citado Charles
Dickens, George Eliot e Thomas Hardy. Nos Estados Unidos, James Fenimore Cooper, Nathaniel
Hawthorne, Herman Melville, Mark Twain e Henry James. Em Portugal, Eça de Queirós e Alexandre
Herculano. No Brasil, Machado de Assis domina todo o século, secundado por José de Alencar e
Aluísio Azevedo.
As inovações do século XX como o monólogo interior1 ou fluxo da consciência
(ou melhor, do inconsciente) e o estilo indireto livre2,além da liberação temática para tratar do
sexo e da opressão social, contribuíram para impressionantes avanço e atualização do roman-
ce ocidental. Entre os mais conhecidos e respeitados escritores desse séculos estão os nomes de
1 O monólogo interior, também denominado fluxo da consciência (o stream of consciousness da teoria de língua
inglesa) é a representação escrita dos pensamentos interiores de um personagem, suas impressões e memórias como
se fossem transcritos diretamente no momento e na forma em que ocorrem. Há, contudo, uma certa polêmica em
relação ao nome a ser empregado: uma linha da crítica considera o fluxo da consciência o nome genérico que incluiria
o monólogo interior como a forma concreta de sua realização. Outros teóricos invertem a relação: o monólogo interior
abrange o fluxo da consciência, entendido como uma técnica especial de representação fora da lógica dos pensamentos,
de sua sintaxe e pontuação (ou ausência de pontuação).
2 “O diálogo ou discurso indireto livre constitui espécime híbrido em que se fundem a terceira pessoa, usada pelo
ficcionista para narrar a história, e a primeira pessoa, com que a personagem exprime seus pensamentos de maneira
autônoma” (MOISÉS, 1997, p. 144).
A estrutura da narrativa: r omance 127
James Joyce, Marcel Proust, Franz Kafka, Thomas Mann, Virgínia Woolf, William Faulkner e
D. H. Lawrence. Em Portugal, José Saramago, Miguel Torga e António Lobo Antunes. No Brasil,
um quadro amplo de importantes romancistas como Clarice Lispector, Graciliano Ramos, João
Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso e Jorge Amado.
Toda seleção passa sempre pelo descarte de nomes e obras: corremos o risco de esquecer de
incluir algumas obras e alguns autores que marcaram a literatura desses países, mas há, sem dúvida,
nesse cânone rápido anteriormente enumerado, nomes de indiscutível qualidade literária que figu-
ram em qualquer seleção de romancistas do século passado. A dificuldade para selecionar e apontar
os mais marcantes só vem comprovar a afirmação de que o romance se desenvolve extraordinaria-
mente como gênero a partir do século XIX, em especial no século XX.
Mais do que os demais humanos, presos no fundo da caverna, o poeta é responsável por
criar a sombra da sombra; o que o torna indigno de participar da República imaginada por Platão.
Aristóteles, discípulo de Platão, transforma a imitação do real não em condenação, mas em arte:
ele estabelece, no livro Poética, que a natureza da arte dramática e da epopeia é a imitação.
A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. [...] Pela
imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam
prazer. A prova é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que, ao
conseguirmos olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas ima-
gens mais exatas; é o caso dos mais repugnantes animais ferozes e dos cadáveres.
[...] Sentem prazer em olhar essas imagens, cuja vista os instrui e os induz a
discorrer sobre cada uma e a discernir aí fulano ou sicrano. Se acontece alguém
não ter visto ainda o original, não é a imitação que produz o prazer, mas a per-
feita execução, ou a cor ou outra causa do mesmo gênero. Como nos é natural
a tendência à imitação, bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois é evi-
dente que os metros são parte do ritmo), na origem os homens mais aptos por
natureza para estes exercícios aos poucos foram dando origem à poesia por suas
128 Teoria da literatura II
Fica visível nessa citação o quanto a imitação do real é encarada como natural e origem da
obra poético-literária. Também a divisão entre a imitação de heróis ou de pessoas ordinárias, que irá
produzir a divisão tragédia-comédia, autoriza o entendimento de que imitar o real não se restringe
a idealizá-lo. Também estabelece a finalidade dessa criação literária: a exaltação ou a censura.
Ao longo dos séculos, a literatura foi entendida, em períodos que se revezavam, ora
como alegoria, abstração, simbolismo, idealização e alienação, em uma perspectiva platônica;
ora como tendo a função de retrato, reprodução do real, compromisso com a denúncia de con-
flitos e problemas vividos pelos homens e pela sociedade, em uma perspectiva de utilidade e de
pragmatismo do discurso literário. O romance, por sua popularidade e aceitação, concentrou
essa disputa teórica nos vários períodos estéticos. Assim, o Realismo do século XIX incorporou
a ideia de que o objetivo da reprodução da realidade social e humana era a denúncia e a modi-
ficação de comportamentos e crenças. Já a literatura simbolista e a literatura fantástica parecem
ignorar a realidade, concentrando suas intenções em idealizações, em sombras, em alterações
da realidade. No entanto, o que vai qualificar a literatura é também a técnica literária, que diz
respeito ao tratamento formal do discurso. Aguiar e Silva (1976) esclarece qual é o modo de en-
tender essa relação entre realidade e literatura:
Esse sistema linguístico, com os seus significados denotativos e conotativos,
com a sua dimensão referencial e sociocultural, é indissociável de uma determi-
nada historicidade e de um determinado universo ideológico – lembremo-nos
de que “um certo modo de usar a linguagem se identifica com um certo modo
de pensar a sociedade” – e, no texto literário, tanto os sinais como os símbolos,
dependentes dos vários códigos que confluem na estruturação do idiolecto
textual, nunca deixam de reenviar, dentro do seu específico estatuto semântico,
a essa historicidade e a esse universo ideológico – em suma, a uma certa ma-
neira de entender e valorar a vida e a morte. [...] Tanto na literatura fantástica
[...] como na literatura dita “realista” existe sempre uma correlação semântica
com o mundo real, matriz primigênia e mediata da obra literária. A lingua-
gem literária, todavia, não referencia diretamente esse mundo: ela institui uma
objetualidade peculiar, um heterocosmo com estrutura e funções específicas,
onde o ser se funde com o não ser, o existente com o inexistente, o possível com
o impossível, e é por meio deste heterocosmo, deste como se, que se constitui e
manifesta essa correlação semântica. (AGUIAR E SILVA,1976, p. 45-46).
Como se pode observar, a perspectiva pela qual se deve encarar o discurso literário (e por
extensão o romance, uma de suas formas representativas) é a da linguagem, capaz de reconstruir
em uma objetualidade peculiar, isto é, em um texto peculiar, em uma representação especial e pró-
pria, todas as questões e aspectos da realidade social e individual. Mesmo a literatura considerada
fantástica trata de aspectos da realidade. Surge aqui uma diferença importante na concepção de
literatura e de romance: a de que imitar é diferente de narrar, conceito que Platão e Aristóteles
também estabeleceram ao tratarem dos modos de imitar. Atualmente, a teoria distingue o que seja
mostrar (showing) e contar (telling).
A estrutura da narrativa: r omance 129
Essa posição teórica tem a ver com a posição do narrador diante da realidade. No primeiro
caso, a realidade será apresentada sem intermediação do narrador (exclusivamente por meio das
personagens e de suas falas). No segundo caso, o narrador é o responsável pela apresentação da
narrativa ao leitor. Em qualquer um desses modos de apresentar a realidade, o que permanece e
merece importância é o relato, isto é, o texto que nasce do objetivo de tratar da realidade, mas o
processo de contar ou de mostrar insere-se sempre no conceito de ficção.
Ficção é um termo genérico que identifica histórias inventadas, aplicado habitualmente para
romances, contos, novelas, fábulas e outras narrativas em prosa. O adjetivo fictício, formado a par-
tir de ficção, pode ter seu sentido aproximado de imaginativo ou inventivo.
Portanto, o romance mantém um vínculo indissolúvel com a realidade, embora manifeste
essa realidade sob formas escritas e inventivas, em um cuidadoso trabalho de organização do texto
e de seus componentes narrativos. Também é possível verificar como ao longo da história do ro-
mance essa relação foi se configurando em formas narrativas com características diferentes.
Tendo em vista essa diversidade e admitindo que a classificação que propomos pode ser con-
testada em alguns pontos, vamos, mesmo assim, propor uma possível distinção entre as diferentes
expressões do gênero romanesco.
130 Teoria da literatura II
O primeiro desses textos é o romance Agathon (1766), de Wieland, e o exemplo mais com-
pleto é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796), de Goethe.
Incluem-se nessa categoria David Copperfield (1849-1850), de Dickens; Retrato de um
Artista quando Jovem, (1916), de James Joyce; O Tambor (1959), de Günther Grass. No Brasil,
O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, Amar, Verbo Intransitivo (1927), de Mário de Andrade, e
Menino de Engenho (1933), de José Lins do Rego.
Entre os escritores que se dedicaram explicitamente a esse tipo de romance contam-se Victor
Hugo, com Os Miseráveis (1862), por exemplo, e Émile Zola, com Germinal. No Brasil, Aluísio
Azevedo, com O Cortiço (1900) e Casa de Pensão (1884), é o representante desse tipo de romance.
E ela tem seguidores em Edgar Allan Poe, William Faulkner e, atualmente, Stephen King. O cinema
tem explorado muito esse tipo de narrativa, haja vista que a constituição desse romance atrai dema-
siadamente o leitor, usando reviravoltas, muita ação e elementos fantasmagóricos.
Estava, portanto, aberta a porta para a passagem do romance psicológico, que vai tomar como
parâmetro “a exploração do labiríntico espaço interior da alma humana” (AGUIAR E SILVA, 1976,
p. 314). Entre os nomes mais relevantes irão aparecer James Joyce, Virgínia Woolf, Marcel Proust,
Franz Kafka, William Faulkner, Hermann Broch. No Brasil, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector e a
obra extraordinária e precoce da segunda fase de Machado de Assis.
132 Teoria da literatura II
Jorge Luis Borges (apud RODRIGUES, 1988, p. 15) tem desse tipo de romance uma visão
crítica bastante pertinente:
O romance típico, “psicológico”, propende a ser informe. Os russos e os dis-
cípulos dos russos demonstraram até a saciedade que ninguém é impossível:
suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram
ao ponto de separarem-se para sempre, delatores por fervor ou por humildade
[...] Essa liberdade plena acaba equivalendo à plena desordem. Por outro lado,
o romance “psicológico” quer ser também romance “realista”: prefere que es-
queçamos seu caráter de artifício verbal e faz de toda vã precisão (ou de toda
lânguida vagueza) um novo toque verossímil.
Nessa linha de ruptura podem ser inclusos James Joyce, Jorge Luis Borges, William Faulkner,
o movimento francês do nouveau roman (Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor e
outros). No Brasil, temos Mário de Andrade com Macunaíma (1928), João Guimarães Rosa com
Grande Sertão: Veredas (1956), Valêncio Xavier com O Mez da Grippe (1971).
(1774), de Goethe. Também Jean-Jacques Rousseau arrebanhou leitores fiéis e seguidores das ideias
de A Nova Heloísa (1761). Outro texto muito famoso desse subgênero é Paulo e Virgínia (1789),
de Bernardin de Saint-Pierre.
Tão popular, o romance sentimental é um dos responsáveis por uma associação feita por lei-
tores com conhecimento precário: eles acreditam que romance é exclusivamente o de sentimentos,
lágrimas e finais felizes ou trágicos.
No Brasil, temos os romances urbanos e os perfis de mulher de José de Alencar, muito lidos
no século XIX. Também A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo e A Escrava Isaura
(1875), de Bernardo Guimarães.
9.3.11 Folhetim
Ao surgir, em 1790, recebeu o nome francês de feuilleton e era uma crítica teatral publicada
em rodapé de jornal. Nasceu o romance de folhetim nas páginas do jornal por volta dos anos 1840,
na França. Não mais uma crítica de teatro, mas uma obra ficcional, era uma publicação diária,
A estrutura da narrativa: r omance 135
em série, sempre no rodapé da primeira página do jornal. O enredo era enovelado e em muitos
capítulos, para ajudar a vender o periódico. De fato, ganharam a vida com a venda dos folhetins
Balzac, George Sand, Alexandre Dumas pai. O mais popular foi Eugène Sue com o romance Os
Mistérios de Paris (1842-1843).
Esse tipo de narrativa é assim justificado em seu apelo de popularização:
Gravitando em torno das classes humildes ou marginais, o que atendia às expec-
tativas românticas no sentido da popularização do produto de arte, o romance
em folhetim se caracterizava pelo desfiar quilométrico de episódios emaranhada-
mente convencionais e por um sentimentalismo piegas. (MOISÉS, 1997, p. 232)
É nesse ocultar ou indeterminar que o fantástico cria uma ambiência de suspensão de expli-
cações e de racionalismos. O texto não dá explicações aos acontecimentos estranhos, deixando ao
leitor toda a responsabilidade de preencher, ou não, os vazios deixados pelo relato.
Integram esse subgênero os escritores sul-americanos que, no século XX, criaram obras
de grande impacto, como Cem Anos de Solidão (1968), de Gabriel García Márquez. Consideram-
se também as obras extraordinárias de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e mais Carlos Fuentes,
Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Adolfo Bioy Casares, Juan Carlos Onetti, Juan Rulfo, Mario
Vargas Llosa, Guillermo Cabrera Infante, Severo Sarduy, Manuel Puig e o brasileiro Murilo Rubião.
136 Teoria da literatura II
9.3.14 Roman-fleuve
Como caracterização, pode-se dizer que a expressão roman-fleuve ou romance-rio “desig-
na as obras ficcionais que se organizam em ciclos contínuos, à semelhança de um estuário fluvial,
caracterizadas pelo grande número de personagens e de ações que se sucedem ou se imbricam”
(MOISÉS, 1997, p. 461). Como exemplo mais marcante, temos a obra Em Busca do Tempo Perdido
(1913-1927), de Marcel Proust. Também encontramos esse modo contínuo de composição em
Doris Lessing (Children of Violence, cinco romances, 1952-1969), Anthony Powell (A Dance to
the Music of Time, 12 romances, 1951-1975). No Brasil, os melhores exemplos são a trilogia O
Tempo e o Vento (1949-1961), de Erico Verissimo, e Tragédia Burguesa, de Octavio de Faria,
com 15 volumes.
Entre os escritores que compuseram textos em formato epistolar, temos Samuel Richardson,
em Pâmela (1740-1741) e Clarissa (1747-1748). Também Jean-Jacques Rousseau escreveu um
romance epistolar, A Nova Heloísa (1761). Uma das mais conhecidas obras é Ligações Perigosas
(1782), de Chordelos de Laclos. Na atualidade, John Barth em Letters (1979) e Alice Walker em
A Cor Púrpura (1982). Trata-se de uma forma rara no romance brasileiro, mas podemos ter em
Reflexos do Baile (1976), de Antônio Callado, um bom exemplo.
nesse herói, uma característica de transgressão dos códigos aceitos pela sociedade. “Quanto à sátira
social [...] cabe insistir em que o pícaro é a paródia do processo de ascensão dentro de uma sociedade
que rejeita os valores da burguesia e onde o parecer tinha prevalência sobre o ser” (GONZALEZ,
1988, p. 44).
Essas narrativas de esperteza são muito populares e pertencem também à tradição oral,
como os contos de Pedro Malasartes, personagem ibérico que emigrou inclusive para a literatura
folclórica do Brasil.
Entre os autores, podem ser citados: o anônimo criador do primeiro romance picaresco,
Lazarilho de Tormes; Henry Fielding, com Tom Jones (1749); Manuel Antônio de Almeida, com
Memórias de um Sargento de Milícias (1848); e Mário de Andrade, com Macunaíma (1928).
A organização dos diferentes subgêneros apresentada aqui não implica que todas as variá-
veis estejam relacionadas na lista. Acreditamos, no entanto, que os principais foram classificados
e caracterizados.
Estas transformações trazem à tona duas observações. Em primeiro lugar, modificaram radi-
calmente o espaço-tempo e sua simbolização no romance: velocidade, diversidade e multipli-
cidade substituíram duração, número limitado e convenções de lugares. Em segundo lugar,
permitiram que se refletisse sobre a imbricação entre permanência e novidade da qual falamos
anteriormente. Permanência de temas por um lado, como, por exemplo, a viagem. Mas, por
outro lado, modificações incessantes, aumento e diversificação dos lugares e meios de locomo-
ção, relativização e confrontação das visões e dos valores, inserção de novas cenas, criação de
metáforas, mudança de sentido de figuras antigas, integração de um léxico técnico ou etno-
gráfico diferente.
Romance e saberes
Uma outra dimensão também é suscetível a influenciar a evolução romanesca: a dos saberes.
Ela exerce, em primeiro lugar, pela configuração geral dos conhecimentos no seio da qual
inscrevem-se a literatura e o romance. Serão precisos séculos para que as ciências e as artes
libertem-se do poder religioso. O século XVII é, desse ponto de vista, um marco com a afir-
mação de um procedimento científico autônomo. Em segundo lugar, será preciso esperar os
séculos XVIII e XIX para que a literatura especifique-se em favor do desmembramento das
Belas Letras que reuniam história, sociologia, e filosofia etc. em formas que nos fazem hesitar
ao tentarmos classificar certos autores (Michelet) e certos textos. Mas feitas estas distinções, o
romance deverá refletir sobre os saberes e as formas que lhe são deixadas.
A segunda metade do século XIX viu afirmar-se uma opção que era a da concorrência e
complementariedade com as ciências sociais e o jornalismo. Voltado para o exterior, para
a representação do mundo, o romance explora um de seus filões mais clássicos e maiores,
fundamenta-se nos conhecimentos e nos testemunhos, e trabalha os códigos realistas.
O final do século XIX e o começo do XX conhecerão um crescimento prodigioso da Psicologia
e depois da Psicanálise. Paralelamente, um outro filão romanesco será reativado: o da aventura
interior, do indivíduo e da expressão. Isto tomará novas formas: as do fluido, do contraditório,
do monólogo interior, da multiplicação das perspectivas...
Mas pode o romance concorrer com ou aplicar saberes, mesmo que novos? Deste modo,
não continua ele a submeter-se ao que lhe é exterior? Esta será a posição de muitos escritores,
de Gide (Les faux monnnayeurs e o Journal des faux monnnayeurs) [ao grupo do jornal de
literatura] Tel quel que centrarão novamente o romance nele mesmo por meio do jogo
de mise-en-abyme [sic]: a escritura torna-se tema do romance. Para citar de outra forma as
célebres palavras de J. Ricardo, ou poderíamos dizer que, ao romance de aventura (da exte-
rioridade do mundo ou da interioridade do indivíduo) sucede a aventura no romance, que
reflete sobre ele mesmo.
Tratam-se, é claro, apenas de pistas muito fragmentárias. A questão dos saberes que geram o
romance ou dos quais o romance nutre-se é de grande importância [...] Está ligada à questão
dos valores. De fato, o desenvolvimento e a multiplicação dos saberes institucionais e cien-
tíficos modificam os valores outrora unívocos, impostos pelos poderes político e religiosos.
Isto permite que o romance combine e oponha em seu seio vários sistemas de valores dife-
rentes, isto é, no século XX, lhe permitirá obscurecer ou suspender todo o sistema avaliativo
em seu seio...
A estrutura da narrativa: r omance 139
Atividades
1. Henry James, em A Arte do Romance, afirma que o romance é “a mais independente, mais
elástica e mais prodigiosa de todas” as formas literárias, a ponto de parecer não ter regras.
Você concorda com essa afirmação? Argumente em um texto, apresentando alguns exemplos.
2. Compare os dois textos a seguir e depois explique por que um é histórico e o outro integra
um romance.
Fragmento 1
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das
Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra,
estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas – os
quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam
botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo de asno. E quarta-feira
seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primei-
ramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais
baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o
capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
(Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: <http://objdigital.
bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf>. Acesso em: 3 jul. 2018.)
Fragmento 2
22 de abril
Logo de manhã alguns fura-buxos voaram por sobre as naus e com isso agita-
ram-se todos, por serem estes sinais da proximidade de terra.
Isto era por volta da hora nona e aconteceu que um soldado deu-me um pon-
tapé e mandou-me ir consertar uma vela que tinha-se rasgado. Subi até o cesto
da gávea e então aconteceu algo de que muito me orgulho e demonstra que o
Altíssimo, ao menos uma vez, voltou seus grandes olhos para mim. E foi isso
que avistei ao longe o cume de um monte e depois dele, logo atrás, umas ser-
ras. Com toda a força gritei então: “Terra à vista!”
Olhando para baixo, vi que o convés estava cheio e havia enorme alvoroço, de
modo que os degredados, os marinheiros e os padres abraçavam-se, não se
importando com hierarquia ou odores.
Navegando naquela direção vimos que se tratava de uma ilha, que o capitão
Cabral deu por bem nomear Vera Cruz. Tem ela muito arvoredo e assim nos
alegramos e demos graças a Deus, porque nos mandava frutas e água fresca.
140 Teoria da literatura II
Os tipos de romance são os mais variados, mas há neles elementos permanentes, que po-
dem ser estudados em separado, embora façam sentido pleno apenas quando vistos em conjunto e
relacionados. Como se apresentam e que valor têm os principais componentes que integram uma
estrutura narrativa do gênero romance?
Mikhail Bakhtin vê no romance uma multiplicidade de “unidades estilísticas heterogêneas”,
que dão a essa forma literária originalidade e identidade, e o autor as enumera:
• A narrativa direta e literária do autor (em todas as suas variedades multiformes).
• A estilização de diversas formas da narrativa tradicional oral.
• Estilizações de diversas formas da narrativa (escrita) semiliterária tradicional (cartas,
diários etc.).
• Diversas formas literárias, mas que estão fora do discurso literário do autor: escritos mo-
rais, filosóficos, científicos, declamação retórica, descrições etnográficas, informações
protocolares etc.
• Os discursos das personagens, estilisticamente individualizados. (BAKHTIN, 1988, p. 74)
A multiplicidade é composta, portanto, pela combinação de vários discursos que interferem
e se combinam no momento de produção do romance – desde as narrativas orais, que permane-
cem na memória e afloram na escrita no momento de criação do romance, até diferentes tipos de
narrativa não literária, que fornecem informações, modos de dizer e estruturas linguísticas para o
romancista. O romance, gênero democrático, gerencia todas essas formas. Como resultado, temos
uma variedade de subgêneros, bem como uma diversificada gama de procedimentos e elementos
que formam o grande gênero. A seguir, vamos tratar de alguns desses elementos.
1 Para evitar duplicidade de gênero, adotamos como feminina a palavra personagem e fizemos as concordâncias
necessárias ao longo do texto, mesmo nas citações.
A estrutura da narrativa: elementos do romance 143
Em 1921, surgiu uma obra de capital importância para o estudo do narrador, A Técnica da
Ficção (The Craft of the Fiction), de Percy Lubbock. Nela, o autor estabelece que a diferença entre
narrar (telling) e mostrar (showing) reside na intervenção, ou não, do narrador:
completa essa dupla (narrar e mostrar) a oposição cena e sumário (panorama).
Na cena, os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a mediação
de um narrador que, ao contrário, no sumário, os conta e resume; condensa-os,
passando por cima de detalhes e, às vezes, sumariando em poucas páginas um
longo tempo da história.
Na verdade, Lubbock distingue a apresentação, que pode ser cênica ou panorâ-
mica, e o tratamento dado, que pode ser dramático ou pictórico, ou uma combi-
nação dos dois, pictórico-dramático.
O tratamento é dramático quando a apresentação se faz pela cena, e é pictórico
quando ele é predominantemente feito pelo sumário. Pictórico-dramático, com-
binação da cena e do sumário, sobretudo quando a “pintura” dos acontecimen-
tos se reflete na mente de uma personagem, através da predominância do estilo
indireto livre.2 (LEITE, 2000, p. 14-15, grifos nossos)
Vamos exemplificar o que seja, em um romance, uma cena. Observe que não há a presença
do narrador, mas é possível distinguir dois interlocutores, as histórias em comum, os sentidos
subentendidos, o jogo entre passado e presente, uma ligação afetiva entre eles.
2 Discurso direto é a reprodução da fala da personagem, em primeira pessoa, introduzida por travessão ou aspas
(− Vamos para casa. ). O discurso indireto se dá quando o narrador conta o que a personagem pensou ou disse, frase
introduzida por um verbo com o sentido de declaração (O marido disse: “Vamos para casa.”). No estilo indireto livre, há
uma fusão dos dois modos de enunciar a fala da personagem, como, por exemplo: “O marido quase intimou a mulher: –
Vamos para casa”.
144 Teoria da literatura II
Em sua obra Figures III, Gerard Genette propõe uma outra classificação. Há um primeiro
tipo, o do narrador que está representado dentro daquilo que é narrado – a diegese3. Esse é o nar-
rador homodiegético, que pode se subdividir em extradiegético (o narrador não é uma das persona-
gens nominadas) e intradiegético (o narrador é uma das personagens).
Quando o narrador não está representado no discurso, pode ser confundido com o autor
implícito. Essa ausência do narrador leva à classificação de narrador heterodiegético (AGUIAR E
SILVA, 1976, p. 270-271).
Como podemos inferir, as denominações são mutáveis e se referem a conceitos de literatura
que se alteram ao longo do tempo. E, embora a nomenclatura se altere, podemos observar que as
posições mudam pouco:
• o narrador representado ou não na fábula ou diegese;
• o narrador é uma das personagens do relato;
• o narrador tem visão ampla ou restrita.
3 Diegese é denominação semelhante a história, fábula, enunciado ou narrado: trata-se do relato, produto da narração
do narrador, o mundo fictício no qual se situam as personagens, situações e acontecimentos que constituem o enuncia-
do narrado no romance.
A estrutura da narrativa: elementos do romance 147
A palavra ação pode ser tomada como sinônimo de enredo, argumento e fábula. “A ação
sempre engloba mais de uma personagem”, segundo Moisés (1997, p. 10), o que faz com que muitas
vezes a compreensão da ação de um romance passe pela soma da ação de todas as personagens que
compõem a sua narrativa.
A esse entendimento da ação narrativa, Aguiar e Silva (1976, p. 289) acrescenta a presença
das descrições, que, embora não sejam fatos, têm “por função representar personagens, objetos e
aspectos vários do espaço geográfico e histórico-sociológico, constituem uma pausa ou uma sín-
cope na sintagmática narrativa”, sempre relacionadas com o foco narrativo, que ajuda a distinguir
seus diferentes modos de realização e funções. Temos assim que a narrativa é feita de momentos
dinâmicos, quando se relatam fatos, e estáticos, quando procede às mais diferentes descrições.
Voltando à reflexão sobre a ação, devemos lembrar que entre suas leis estão as duas unida-
des, originadas na Antiguidade clássica: a unidade de tempo e a unidade de ação.
Aristóteles, o primeiro dos teóricos a doutrinar acerca da matéria, postulava a
unidade da ação, pois “tal como é necessário que nas outras artes miméticas haja
unidade de imitação, dada a unidade de objeto, assim também a fábula, por-
que é imitação de ações, deve mimetizar as ações que sejam unas e completas,
e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez supri-
mido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo.”
(MOISÉS, 1997, p. 11)
Além dessa visão unitária, podemos verificar que a ação serviu de base para que Alfredo
Bosi classificasse os diferentes tipos de tensão criados pelos fatos narrados nos romances brasilei-
ros a partir de 1930. São quatro diferentes tipos:
1. Romance de tensão mínima. Em que há conflito, mas este configura-se em termos de opo-
sição verbal, sentimental quando muito: as personagens não se destacam visceralmente
da estrutura e da paisagem que as condicionam. Exemplos: as histórias populistas de Jorge
Amado, os romances e crônicas da classe média de Erico Verissimo e Marques Rebelo e
muito do neorregionalismo mais recente.
2. Romances de tensão crítica. O herói opõe-se e resiste agonicamente às pressões da nature-
za e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas o seu mal-estar permanente.
Exemplo: as obras maduras de José Lins do Rego e todo Graciliano Ramos.
3. Romances de tensão interiorizada. O herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu/mun-
do pela ação; evade-se, subjetivando o conflito. Exemplos: os romances psicológicos em
suas várias modalidades (memorialismo, intimismo, autoanálise...), de Otávio de Faria,
Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins.
4. Romances de tensão transfigurada. O herói procura ultrapassar o conflito que o constitui
existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade. Exemplos: as ex-
periências radicais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O conflito, assim “resolvido”,
força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia. (BOSI, 2000, p. 442)
A ação se organiza em uma unidade temporal: começo, meio e fim. Para melhor descrever
essa sequência, vamos lembrar que Henry James a dividiu e nomeou da seguinte maneira:
148 Teoria da literatura II
• apresentação;
• complicação;
• desenvolvimento;
• clímax; e
• desenlace (MESQUITA, 1986, p. 25).
Para a mesma sequência, os teóricos franceses Greimas e Larivaille propuseram um
esquema abstrato de uma superestrutura, também denominada esquema canônico da narrativa
ou esquema quinário, que se apoia na noção de transformação e é composta por esta sequência
(REUTER, 1996, p. 49):
Há nessa mudança uma alteração realizada entre o estado inicial da narrativa e seu final.
No romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o primeiro crime ocorrido no mosteiro é o
fato desencadeador, que perturba a tranquilidade da vida das personagens e obriga a uma dinâmica
de fatos até que a resolução dos crimes restaure o estado inicial de equilíbrio, no final do romance.
Entre os formalistas russos, destaca-se Tomachévski, que estudou os motivos que, distri-
buídos intencionalmente ao longo da narrativa, podem se associar ou não, criando vínculos entre
as partes da história, a ela conferindo unidade e coerência. Tomachévski denominou-os motivos
associados e motivos livres (cf. MESQUITA, 1986, p. 27).
Os motivos associados são aqueles que não podem ser retirados da narrativa, sob pena de ela
não manter a relação de causa e efeito entre as partes do romance, a causalidade.
Já os motivos livres podem ser omitidos sem comprometer a história, embora representem
sempre uma alteração significativa em nível de discurso.
Por exemplo, se for retirada da fábula de O Nome da Rosa o motivo do livro de Aristóteles
sobre a comédia, todo o enredo desaba.
Na ação, deve-se considerar que a relação com personagens, com tempo e espaço é estreita
e indissolúvel. Não se entende a ação desvinculada dos demais elementos da história. Se os separa-
mos, é apenas por uma atitude analítica formal. No texto literário, eles são inseparáveis.
Essa distinção permite que o leitor transite de uma visão denotativa (o espaço, como sa-
las, paisagens, edifícios, ruas) para uma visão conotativa (a ambientação, que pode ser de beleza,
de alegria, de tristeza, de calor humano). Para Antônio Dimas, o espaço é patente e explícito e a
ambientação é subjacente e implícita (DIMAS, 1985, p. 20). Portanto, o espaço preenche funções
que extrapolam a verossimilhança necessária para o entendimento das ações e situações das per-
sonagens, contribuindo de forma significativa para o entendimento final de um texto. Em O Nome
da Rosa, a biblioteca é o depósito dos livros, suas estantes, andares e forma física, mas é também
o ambiente indispensável para o mistério, a noção de cultura, a sensação de ausência do livro de
Aristóteles, o labirinto da inteligência humana e muitos sentidos mais.
Observemos o exemplo de um espaço narrado que passa do sentido denotativo para o cono-
tativo, isto é, do espaço para a ambientação:
A seus pés estendia-se a praça triangular, não inteiramente mas quase como a
imaginara. As árvores da área ajardinada erguiam-se completamente escuras,
debruadas pelo asfalto do largo caminho marginal já ressequido, e cujo cinza
se destaca delas. No interior da estação, as lâmpadas estavam acesas. Lá se
achava o saguão com os criados de hotel. A. não mais pensava neles. Baixava
o olhar sobre as pessoas que caminhavam a passo lento ao longo das casas.
Ouvia o rangido da areia sob os sapatos daqueles que perambulavam na rua
em forma de “S” através do jardim. Contemplava com prazer os cachorros
levados para um passeio. De vez em quando, ainda se ouvia um passarinho.
Às vezes um cão latia. Ser dado à luz por uma mãe, ser parido corporalmente
por um corpo; ser mesmo corpo; corpo, cujas costelas se dilatam ao ritmo da
respiração; corpo, cujos dedos são capazes de cingir uma balaustrada de ferro,
de abraçar a matéria morta com a força da carne viva; perene alternação entre
o animado e o inanimado, um a amparar o outro em infinita transparência.
(BROCH, 1988, p. 64-65)
É possível observar que a descrição dos elementos do espaço físico (árvores, praça, ruas,
areia) e do espaço humano-social (criados, passantes) e seres animados (pessoas, cães, passarinho)
se combinam para criar uma ambiência que leva a personagem A. a refletir sobre a transparência
do mundo.
É possível perceber que os elementos que compõem o cenário desse jardim procuram
aproximar-se de um cenário real, criando verossimilhança para o entendimento do leitor.
Mas há possibilidade de o romance ter espaços imaginários, como nos romances de ficção cien-
tífica. O efeito de realidade está relacionado muito mais às suas funções na narrativa do que à
150 Teoria da literatura II
realidade empírica. Isto é: nas narrativas, mesmo os espaços mais reconhecíveis como reais, não
estão lá para servir à geografia, mas à coerência e às relações internas do texto. Podem significar
lugares tranquilizadores ou angustiantes, lugares de aventuras, partes diferentes do mundo (co-
nhecidas ou exóticas). E também podem significar “etapas da vida, a ascensão e a degradação so-
cial, raízes e lembranças [...] podem caracterizar [personagens] por metonímia (a casa remete à
personagem em Balzac) ou simbolizar tal status ou tal desejo” (REUTER, 1996, p. 61). Qualquer
que seja sua função, o espaço não existe desvinculado dos demais elementos do romance – tem-
po, ação, personagens, narrador, gênero literário, tendência estética etc.
A descrição é o tipo de texto escolhido preferencialmente para tratar do espaço. E a descri-
ção pode atuar de diferentes maneiras nas narrativas. Bourneuf e Ouellet tratam de algumas delas:
• desvio – depois de uma passagem muito ativa e agitada a descrição de um ambiente ofe-
rece a promessa de um repouso;
• suspense – a inserção de uma passagem descritiva num momento crítico com o objetivo
de aguçar nossa curiosidade factual;
• abertura – ao antecipar o andamento de um romance;
• alargamento – ao verticalizar informações, complementando dados anteriores, num es-
forço de microscopia. (DIMAS, 1985, p. 412; BOURNEUF; OUELLET, 1976, p. 154-162)
ou de elipse, quando – para acelerar a narrativa – a narração omite detalhes e minúcias do fato
que está ocorrendo.
De um modo geral, os romances mais simples adotam uma narração cronológico-lógica,
isto é, obedecendo à cronologia do fato mais distante no tempo ao mais recente, com todos
os fatos intermediários. No entanto, a narrativa complexa adota anacronias, ou seja, alterações
na ordem de aparecimento dos fatos narrados – seja por retrospecção (flashbacks), seja por
antecipação (flashforwards).
Qualquer que seja o uso do tempo, tal como os demais elementos da narrativa, o objetivo é
intensificar o sentido, criando efeitos estéticos insubstituíveis.
A descrição dos gestos e dos costumes da personagem será justificada em seguida por seu
assassinato. Todas as armas de que dispunha, sem munição ou deixadas em casa, nada puderam
fazer para preservar sua vida: será morto desarmado. Mesmo a tradição familiar e os cuidados
noturnos foram em vão, pois foi assassinado durante o dia. Mesmo que as informações sobre a
personagem sejam negadas pelos acontecimentos, nem por isso deixam de estar em relação com
os fatos, nem por isso deixam de justificar o acaso infeliz de que, justo no dia de sua morte, tenha
saído de casa desprotegido. A verossimilhança se mantém.
Há diferentes classificações de personagens. Em Aspects of the Novel (Aspectos do Romance)
E. M. Forster classifica as personagens como planas e redondas.
152 Teoria da literatura II
As personagens planas são construídas em torno de uma só ideia ou qualidade, isto é, para
qualificá-las leva-se em conta o caráter e a ideologia. Podem ser divididas em dois outros modelos:
o tipo e a caricatura. No tipo, encontramos uma qualificação que se repete do mesmo modo em
outros romances – é o estereótipo, como o da personagem cínica, da sádica, da ambiciosa, da beata,
sem aprofundamento e sem individualização. A caricatura, também baseada em um defeito único,
resulta em uma personagem com forte dose de distorção e de exagero. Por exemplo, a personagem
José Dias em Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis.
As personagens redondas são definidas por sua complexidade, isto é, porque apresentam
várias qualidades ou tendências, às vezes até conflitantes, e não podem ser simplificadas. Como
exemplo, a personagem Bento Santiago, de Dom Casmurro, ou o capitão Ahab em Moby Dick
(1851), de Melville. Personagens redondas podem adquirir ainda status de símbolos, como o Dom
Quixote, do romance homônimo de Cervantes (1605-1615).
A análise literária contemporânea substituiu essa classificação por qualidades e assumiu uma
posição que observa mais a construção da narrativa e suas características de narratividade. Por isso,
surgiram novas classificações. Philippe Hamon propôs categorias semiológicas para as personagens:
Personagens referenciais: são aquelas que remetem a um sentido pleno e fixo,
comumente chamadas de personagens históricas. Essa espécie de personagem
está imobilizada por uma cultura, e sua apreensão e reconhecimento dependem
do grau de participação do leitor nessa cultura. Tal condição assegura o efeito
do real e contribui para que essa espécie de personagem seja designada herói.
Como exemplos marcantes, considerem-se todas as personagens de A Ordem
do Dia, de Márcio Souza.
Personagens embrayeurs: são as que funcionam como elemento de conexão e
que só ganham sentido na relação com os outros elementos da narrativa, do
discurso, pois não remetem a nenhum signo exterior. Seria o caso, por exemplo,
de Watson ao lado de Sherlock Holmes.
Personagens anáforas: são aquelas que só podem ser apreendidas completamente
na rede de relações formada pelo tecido da obra. Diadorim, de Grande Sertão:
Veredas, poderia estar nessa categoria. Essa classificação, que permite ainda en-
frentar a personagem como participante das três categorias ao mesmo tempo, foi
utilizada aqui apenas como um exemplo da radicalização da teoria da persona-
gem, tomada como matéria do discurso e analisada sob os critérios fornecidos
pela Linguística e pela Semiologia e/ou Semiótica. (BRAIT, 1999, p. 45-46)
Quando a personagem é tomada como agente da ação, e não por sua qualidade
de caráter ou de ideologia, surge nova classificação. Etienne Souriau, em Deux
cent mille Situations Dramatiques, e Wladimir Propp, em Morfologia do Conto,
estabeleceram seis categorias a partir desse ponto de observação e análise, que
foram retomadas em Semântica Estrutural, obra de Greimas, que denominou
sistema actancial a esse conjunto de funções.
Condutor da ação: personagem que dá o primeiro impulso à ação; é a que re-
presenta a força temática: pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de
uma carência.
Oponente: personagem que possibilita a existência do conflito; força antagonista
que tenta impedir a força temática de se deslocar.
Objeto desejado: força de atração, fim visado, objeto de carência; elemento que
representa o valor a ser atingido.
A estrutura da narrativa: elementos do romance 153
Essas são formas de buscar um melhor entendimento das funções das personagens em uma
narrativa, embora toda classificação apresente um certo reducionismo da questão e não funcione
com personagens mais densas e complexas. Northrop Frye, por exemplo, em A Anatomia da
Crítica (1957), considera que a evolução da literatura ocidental está ligada à imagem do herói e
se caracteriza pela diminuição da força desse herói, substituído por personagens problemáticas.
Yves Reuter (1996, p. 58) demonstra também a impossibilidade de esgotar os modos de analisar
as personagens:
No entanto, não esgotamos a análise da personagem que não deve esquecer
outras dimensões importantes.
Assim, seu funcionamento se diferencia conforme o gênero (as personagens do
conto não possuem psicologia...), conforme a época (nos séculos precedentes, o
lugar do herói numa narrativa “nobre” era reservado a homens bem-nascidos;
a psicologia e o físico remetiam não a um indivíduo, mas a uma representação
convencional de sua categoria), conforme a ideologia do autor (Quais tipos de
personagens estão presentes? Quais não aparecem? Como elas são descritas?
Com referência a quais discursos sociais da época?)
A variedade das formas de apresentação das personagens traz como consequência essa di-
versidade do olhar crítico, que, mesmo múltiplo, auxilia o leitor a enxergar melhor a composição
escrita literária desse elemento ficcional, ao mesmo tempo em que municia o olhar crítico a pensar
e avaliar esse elemento e sua configuração ao longo da narrativa.
Insistimos em que essa divisão [matéria narrada da história e discurso que narra] tem por
fim iniciar didaticamente os estudos sobre o enredo. Nenhum dos planos referidos pode ser
dissociado de outro. História, ação, discurso são interdependentes e o enredo, trama ou intriga
é resultante dessa interdependência.
Fora da obra, podemos ter um assunto, uma fábula, uma sucessão de episódios, com registro
na História, na Imprensa, na memória de um indivíduo ou de uma sociedade. [...] esse assunto,
por isso, não constitui a obra literária. É o tratamento verbal que um poeta, um escritor dá a
esse material que recorta a sua forma, compõe o poema, o conto, o romance, a peça de teatro.
Na narrativa, esse tratamento aparece/se oculta no plano da instância narrante, voz do narra-
dor, discurso, enunciação.
154 Teoria da literatura II
Esse plano administra a narração, ordena os fatos, decide a perspectiva, o ponto de vista, o foco
narrativo, a partir do qual de focaliza a matéria narrada.
É aí ainda que se articulam as categorias de tempo e de espaço; impõe-se o ritmo, mais lento ou
mais acelerado, da narrativa. O enredo é arquitetura do tempo, e arquitetura do espaço, já que
o tempo é espaço vivido.
Se há uma cronologia respeitada, isto é, se é narrado antes o que aconteceu antes e depois o
que aconteceu depois, o ritmo será mais rápido. Se, ao contrário, há idas e vindas no tempo/
espaço – flashbacks (retrospectivas), flashforwards ou prolepses (antecipações) – mistura de
planos temporais, tecnicamente chamada analepse, o ritmo se retardará.
Em função de a narrativa voltar-se mais para os acontecimentos exteriores, privilegiando o
tempo cronológico, ou para os estados interiores das personagens ou do narrador, com o pre-
domínio do tempo psicológico, o seu ritmo será afetado e o enredo se situará tipologicamente.
Sendo a enunciação o ato linguístico, a atitude de quem emite o enunciado (que é o fato
linguístico), é também nesse plano que se imprime o tom, a dicção, ao discurso que narra.
Esse tom pode ser neutro ou se revestir de acento irônico, caricatural, patético, elegíaco,
picaresco etc.
Igualmente aí se estabelece a proporção entre narração propriamente dita (diegesis) e des-
crição (mimesis).
A ação em uma narrativa se desenvolverá à proporção que as situações se vão modificando.
Tal processo pode fluir sem interrupções ou pode ser retardado por descrições de objetos,
quadros, paisagens, detalhes, gestos, traços físicos ou morais de personagens etc.
Além da descrição, outros procedimentos podem retardar o desenrolar da estória, da ação,
da matéria narrada.
A digressão, ou desvio da sequência narrativa pelo discurso, é um desses procedimentos.
O discurso pode apresentar reflexões, diálogos com o leitor, opiniões, considerações filosó-
ficas, avaliações, comentários sobre aquilo que narra ou sobre a própria maneira de narrar,
estilo etc. (Neste último caso, pode-se falar em metadiscurso, metaliteratura, quase sempre
com efeitos anti-ilusionistas, a lembrar ao leitor que está diante de uma obra de ficção.) Tais
recursos são, entre outros, meios de controlar o ritmo, tornar o texto mais ou menos tenso e,
logicamente, interferir no sentido do mesmo. [...]
O enredo necessariamente sofrerá, na sua estruturação, consequências, efeitos diversos, a par-
tir dos diversos procedimentos do discurso. Poderá ser mais concentrado ou mais disperso;
mais cerrado ou fragmentado. Poderá até ser destruído, quando o discurso chega a pulverizar
a linha do tempo e desprezar o princípio lógico da causalidade (causa e efeito) na articulação
dos sucessos narrados.
Nos extremos das possibilidades de composição do enredo, podemos citar de um lado um
romance policial nos moldes tradicionais, uma narrativa popular, uma narrativa mítica, e de
outro, um romance, novela ou conto contemporâneos, um romance, novela ou conto psicoló-
gicos, com monólogos interiores, fluxos de consciência etc. [...]
A extinta novela de rádio, a narrativa das novelas de televisão (misto de cinema, teatro, litera-
tura e música), certos tipos de romance romântico, o romance de folhetim do passado, publi-
cado em capítulos (revivido hoje em obras-primas como O Nome da Rosa, de Umberto Eco
e A Grande Arte, de Rubem Fonseca), jogam com recursos que, ao mesmo tempo, procuram
A estrutura da narrativa: elementos do romance 155
prender a atenção do leitor/espectador/ouvinte, pela sucessão dos fatos narrados, e fazer durar
mais tempo a narração dos mesmos.
Além dos recursos já referidos, devemos lembrar outros, como as micronarrativas encaixadas,
as idas e vindas no tempo, as expressões ou projeções do mundo interior das personagens
(suas lembranças, sonhos, desejos, fantasias), todos meios de alterar o fluir e o significar do
enredo. [...]
No século XX, as grandes mudanças de concepções, valores, o advento de importantes fatos
sócio-históricos e de novas teorias e descobertas, como a Teoria da Relatividade, a Física
Quântica, a desestruturação do átomo, a Psicanálise, a razão dialógica, o novo espírito cientí-
fico, afetarão a construção da obra de arte em geral e da literatura em particular.
Atividades
1. Compare os dois trechos de romances e procure analisar a descrição do espaço e do tem-
po, sob o ponto de vista de escolhas da enunciação e possíveis efeitos semânticos obtidos
pelas descrições.
Era então nos fins de agosto. Na longa alameda macadamizada que vai junto do
rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de
senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres, velhas
fiavam à porta; crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando seus enormes
ventres nus; as galinhas em redor iam picando vorazmente as imundícies esque-
cidas. Em redor do chafariz cheio de ruído, onde os cântaros arrastam sobre a
pedra, as criadas ralham, soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas cam-
badas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cântaro bojudo
de barro equilibrado à cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares,
meneando os quadris. [...] E quando o crepúsculo caiu, uma lamparina luziu no
nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se iluminando uma a uma,
com uma luz soturna, as janelas do hospital. (QUEIROZ, 1993, p. 23)
Lá um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, quase rente do hor-
izonte, um abrir longínquo e espaçado de relâmpago: era inverno na certa no
alto sertão. As experiências confirmavam que com duas semanas de inverno,
o Paraíba apontaria na várzea com a sua primeira cabeça-d’água. O rio no
verão ficava seco de se atravessar a pé enxuto. Apenas, aqui e ali, pelo seu leito,
formavam-se grandes poços, que venciam a estiagem. Nestes pequenos açudes
se pescava, lavavam-se os cavalos, tomava-se banho. Nas vazantes plantavam
batata-doce e cavavam pequenas cacimbas para o abastecimento de gente que
vinha das caatingas, andando léguas, de pote na cabeça. O seu leito de areia
branca cobria-se de salsas e juncos verde-escuro, enquanto pelas margens os
marizeiros davam uma sombra camarada nos meios-dias.
(REGO, 1960, p. 18-19)
2. Leia o trecho, analise a forma de apresentação da personagem e exemplifique as faces de sua
caracterização com exemplos tirados do trecho.
“A narração de uma obra constitui a totalidade dos acontecimentos ou atos que envolvem
todos os figurantes em cena. Entretanto, pode ser concebida como a soma das ações das per-
sonagens individualmente consideradas ou em pequenos grupos” (MOISÉS, 1997, p. 10-11).
11
A estrutura da narrativa: conto e novela
O gênero literário narrativo compreende dois subgêneros, denominados conto e novela. Embora
conservem do grande gênero algumas características de semelhança, conforme veremos a seguir,
também apresentam elementos narrativos diferenciados, que lhes dão identidade. O conto tem sido
um dos subgêneros mais praticados no Brasil, em especial a partir da segunda metade do século XX.
A quantidade gerou qualidade e alta diversidade na criação textual. Portanto, o estudo dessa modali-
dade de narrativa se torna útil e necessário.
11.1.1 O conto
Uma das primeiras características que sobressaem nas definições do subgênero conto é a
de que se trata de uma narrativa de curta extensão que não é suficiente de, por si só, constituir
um volume impresso (BALDICK, 2004, p. 236). No entanto, esse critério distintivo não é capaz
de esclarecer o que seja um conto. Torna-se necessário investigar melhor sua origem histórica e
as alterações que ele vem sofrendo ao longo do tempo para só então obter um quadro mais claro
sobre sua natureza.
Um dos elementos distintivos dessa forma narrativa consiste no caráter sintético do texto:
uma ação simples, com poucas personagens, uma ambientação social sucinta. A economia do con-
to é uma das suas maiores virtudes e um fator de diferenciação, mas essa economia não impede a
qualidade literária ou as múltiplas interpretações. Esclarece Eickenbaum (1971, p. 162):
Short story é um termo que subentende sempre uma estória e que deve respon-
der a duas condições: dimensões reduzidas e destaque dado à conclusão. Essas
condições criam uma forma que, em seus limites e em seus procedimentos,
é inteiramente diferente daquela do romance.
Para alguns, os contos egípcios – Os contos mágicos – são os mais antigos: devem
ter aparecido por volta de quatro mil anos antes de Cristo. [...] O da história
de Caim e Abel, da Bíblia [...] ou os textos literários do mundo clássico greco
-latino: as várias estórias que existem na Ilíada ou na Odisseia, de Homero.
E chegam os contos do Oriente: a Pantchatantra (VI a.C.), em sânscrito, ganha
tradução árabe (VII d.C.) e inglesa (XVI d.C.); e as Mil e uma noites circulam da
Pérsia (século X) para o Egito (século XII) e para toda a Europa (século XVIII).
A migração desses contos – seja enquanto transmissão oral, por meio dos contadores de
histórias, seja por escrito, em publicações e traduções – atesta a intercomunicação entre as regiões
do Oriente e do Ocidente, causada pelo reconhecimento da importância dessas narrativas.
A origem remota e seu desenvolvimento posterior também permitem separar o conto em
duas grandes categorias:
• o conto tradicional ou popular;
• o conto erudito ou literário (essa última denominação é encontrada em Massaud Moisés).
Os contos maravilhosos
são narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no co-
tidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou familiares,
objetos mágicos, gênios, duendes etc.) e têm como eixo gerador uma problemá-
tica social (ou ligada à vida prática, concreta). (COELHO, 1987, p. 14)
A estrutura da narrativa: conto e novela 159
O pesquisador alemão André Jolles escreveu, em 1930, uma obra importante para tratar
dessas formas iniciais de conto popular. O livro se intitulou em português Formas Simples, de que
a primeira tradução no Brasil data de 1976. Nessa obra, o escritor trata da lenda, da saga, do mito,
da adivinha, do ditado, do caso, do memorável, e do chiste. São formas populares de narrar histó-
rias. Quando estuda o conto, ele dá como espaço de seu surgimento o livro Contos para as Crianças
e a Família (1812-1822), dos irmãos Grimm.
Esses contos maravilhosos, recolhidos pelos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm, têm fontes
muito remotas, como informa Nelly Novaes Coelho (1987): a narrativa egípcia Os dois irmãos,
de Anana, ou Setna e o Livro mágico (ambos de aproximadamente o século XIV a.C.); os indianos
Pantshatantra (séc. V) e Calila e Dimna (com texto em sânscrito desaparecido, mas reescrito a par-
tir de narrativas orais entre os séculos IX e XIII da era cristã); As mil e uma Noites (final do século
XV), de origem persa e árabe. Dos celtas, da região das atuais França, Itália e Espanha, em período
anterior à era cristã, vieram as fadas que irão povoar os contos maravilhosos do Ocidente.
A partir do século XVII e da obra de Charles Perrault, Os Contos de Mamãe Gansa (1697),
baseada parcialmente em O Conto dos Contos (1634), do italiano Giambattista Basile, a publicação
de narrativas curtas destinadas ao público infantil e adulto aumentou progressivamente, demons-
trando a atração exercida sobre o público leitor. Entre os autores, destacam-se Madame d’Aulnoy
e seus Contos de Fadas (1698), os já citados irmãos Grimm, e também Hans Christian Andersen
em Contos (Eventyr), de 1835 a 1872. Ao longo do século XIX, esse tipo de narrativa já apresentava
uma evolução com a Condessa de Ségur em Novos Contos de Fadas (1856), Lewis Carroll em Alice
no País das Maravilhas (1865) e Collodi em Pinóquio (1883).
Essa tradição não se esgotou, pois nos dias de hoje essas narrativas são retomadas nas es-
colas, que muitas vezes as utilizam pelas características moralistas e instrutivas, presentes em boa
parte dessa produção.
assuntos, efeitos e discurso literário do conto também trouxe reflexões teóricas sobre ele, como as
realizadas por Poe e Machado de Assis, que indagam sobre as qualidades de síntese e rapidez na
narração das ações e da construção de personagens, concluindo que se trata de uma forma narra-
tiva de grande riqueza literária.
No século XX e nos tempos atuais, o conto continua sendo um subgênero de prestígio.
Grandes contistas renovaram recursos e modos de expressão, obtendo crescente diversidade, sem-
pre provocando o interesse dos leitores. Entre os muitos contistas, podem ser citados Katherine
Mansfield e Virgínia Woolf na Inglaterra, o irlandês James Joyce, o tcheco Franz Kafka, os argenti-
nos Júlio Cortazar e Jorge Luis Borges.
A novela, entretanto, apresenta algumas dificuldades de conceituação, dado que inicialmente
ela foi confundida com o conto e que, até hoje, diferentes línguas e culturas entendem e denominam
textos como novelas sem o mesmo significado que damos a essa palavra em língua portuguesa:
Para alguns, a novela vem do italiano novella, ou seja, pequenas histórias.
Em Boccacio, a novella era breve, não mais de dez páginas, se opondo ao roman-
ce medieval, forma mais longa e difusa, que desenvolvia uma intriga amorosa
completa. E Bocaccio chama seus textos indistintamente de “histórias, relatos,
parábolas, fábulas”. (GOTLIB, 2000, p. 15)
Essa confusão terminológica durará alguns séculos, pois a noção de literatura e de estudos
teóricos a respeito da literatura surgiram apenas no século XIX.
O termo novel passa para o espanhol. Cervantes escreve suas Novelas ejemplares,
em 1621, e estas experimentam já um processo de extensão. E Lope de Vega
escreve então novelas que são, segundo ele, anteriormente chamadas cuentos.
[...] Atualmente, romance é novela . Novela é novela corta. E conto é cuento.
(GOTLIB, 2000, p. 15)
Em francês ocorre algo semelhante: o escritor La Fontaine, autor das hoje denominadas fá-
bulas, no século XVII, usou indistintamente nouvelle e conte. Guy de Maupassant, no século XIX,
denominou suas nouvelles como contes. O século XX criou formas híbridas e podemos encontrar
contos em verso (mais próximos dos comportamentos narrativos e poéticos da epopeia).
Nas literaturas de língua inglesa, registra-se novamente um desencontro terminológico com
os termos em português:
Novel, usada do século XVI ao XVIIII, como prosa narrativa de ficção com
personagens ou ações representando a vida diária, diferenciava-se do romance,
forma mais longa e mais tradicional. No século XIX, com o declínio do
romance antigo, de reminiscências medievais, a novel preencheu o espaço dis-
ponível, perdeu as associações originais, deixou de ser breve, virou romance.
Hoje, novel, em inglês, é romance. Só no século XIX surge um termo específico
para a estória curta, a short story. Há ainda a long short story para a novela. E o
tale para o conto e o conto popular. (GOTLIB, 2000, p. 14-15)
O período do Romantismo foi muito fértil na produção de novelas, dado que sua natu-
reza favorecia a expressão da cosmovisão romântica: o sentimentalismo, o estilo derramado e a
preferência por uma narrativa de peripécias e reviravoltas. Segundo Massaud Moisés, “a novela
tornou-se um dos entretenimentos mais caros à burguesia, porventura em razão de oferecer-lhe
A estrutura da narrativa: conto e novela 161
alimento à imaginação e preencher-lhe as largas horas de ócio” (MOISÉS, 1997, p. 362). No século
XVIII, Goethe usou o termo novelle para classificar Os Sofrimentos do Jovem Werther, uma das
obras mais influentes da época. Foi a época de Camilo Castelo Branco, Garrett e Herculano em
Portugal, Eugène Sue e Alexandre Dumas pai na França, Joaquim Norberto e Teixeira e Sousa no
Brasil. Os autores no século XX continuaram produzindo novelas, como se pode verificar na obra
de Erico Verissimo e Jorge Amado. A famosa obra Morte em Veneza (1912), de Thomas Mann,
é considerada uma novela, assim como O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad, e O Velho
e o Mar (1952), de Ernest Hemingway.
11.1.4.1 No conto
Para tratar desse tópico, convém primeiramente esclarecer o que será entendido como ação.
Para tanto, servimo-nos da definição exposta por Nádia Gotlib:
atos praticados por um sujeito, ou atitudes e caracteres que, em conjunto,
compõem o enredo; este agir, fazer ou acontecer se desenvolve em processo,
organizando-se numa sequência, que compõe a linha de ação; se a ação é forte
e predominante entre outros elementos de construção do conto, este é chama-
do conto de ação. (GOTLIB, 1999, p. 93)
alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o pro-
blema. De repente, disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola.
Aqui vai a razão. (MACHADO DE ASSIS, 1975, p. 161)
tradicional e se estendeu, como método analítico, para as demais narrativas, como os romances,
os contos eruditos e as novelas.
Em ensaio de 1901, Brander Matthews trouxe mais uma forma de conceber o conto como
um subgênero especial. Para ele,
existe uma diferença entre conto e romance que não é só de extensão, mas de
natureza; o conto tem uma unidade de impressão, que o romance obrigatoria-
mente não tem. E por que tal unidade ocorre? Por causa da singularidade dos
elementos que compõem a narrativa do conto: o conto é o que tem unidade de
tempo, de lugar e de ação. O conto é o que lida com um só elemento: persona-
gem, acontecimento, emoção e situação. (GOTLIB, 2000, p. 59)
Adotamos essa concepção até os dias de hoje para distinguir o conto das demais narrativas
literárias, como a novela e o romance.
Por último, temos a contribuição de Júlio Cortazar, um contista extraordinário, que também
pensou o fazer literário e sua recepção, e lançou a ideia do conto excepcional, assim definido por
ele no estudo “Alguns aspectos do conto”, publicado na obra Valise de Cronópio (1974):
O excepcional reside numa qualidade parecida à do ímã: um bom tema atrai
todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor,
uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até ideias que lhe
flutuavam virtualmente na memória e na sensibilidade: um bom tema é como
um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas
vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos
revela sua existência. (GOTLIB, 2000, p. 66)
11.1.5 Na novela
A ação na novela é essencialmente plural, porque é constituída por células narrativas e de
ação, apresentadas em um entrelaçamento e cada uma com independência de temporalidade, isto
é, cada uma tem unidade de tempo, com começo, meio e fim. Essa independência não significa
que cada célula, espécie de conto, não faça parte de uma unidade maior, para a qual contribui com
uma parcela de sentido. Se aproximarmos esta noção caleidoscópica da novela das narrativas das
telenovelas brasileiras, podemos relacionar essas células ao núcleo de personagens/acontecimen-
tos existente na teledramaturgia: o núcleo burguês, o núcleo cômico, o núcleo dos operários etc.
Os acontecimentos são primordiais: eles propiciam a dinâmica da narrativa, além de justificar as
reviravoltas do enredo.
Embora múltiplo, o espaço também se torna convergente, o que por vezes leva a alguns
encontros artificiais de personagens vindos de diferentes regiões do país ou da cidade e, coinciden-
temente, encontrando-se na mesma praça, no mesmo restaurante, na mesma casa. A variedade e o
grande número dos espaços acompanham a quantidade de personagens e ações – e, muitas vezes,
esse espaço toma formas exclusivamente fictícias, com a função de servir de cenário para a preocu-
pação central da novela: os acontecimentos.
A estrutura da narrativa: conto e novela 165
A ação das novelas tem um ritmo rápido, de vez que se apoia no enredo, sem descrições,
dissertações e episódios de lentidão. Na verdade, cada célula acaba repetindo a mesma estrutura:
Desse modo, “a carga dramática da novela vai avultando paulatinamente, à proporção que
os episódios se sucedem” (MOISÉS, 1997, p. 367). O final da novela desvenda o enigma ou os mis-
térios dispersos ao longo da narrativa, como se verifica na novela policial. A existência desses mis-
térios cria no leitor a expectativa por conhecer o desenlace, que nem sempre é definitivo, porque
a novela pode admitir sua continuação em outros livros, como ocorre, por exemplo, com os textos
em série: Harry Potter, de J. K. Rowling, as novelas policiais de George Simenon (com o detetive
Maigret) ou de Agatha Christie, com Miss Marple ou Hercule Poirot.
o epílogo da novela articula-se estreitamente à sua macroestrutura: evoluindo
numa linha horizontal, a novela exemplifica à perfeição o que poderia se chamar
de obra “fechada”, na medida em que as células dramáticas parecem bastar-se a si
próprias, não estabelecem com a vida senão vínculos indiretos. [...] Todavia, mos-
tra-se estruturalmente “aberta”: colocado o ponto final na sucessão de episódios,
outros poderiam ser acrescentados, bastando chamar à cena acontecimentos pos-
teriores, ou personagens secundárias, cuja existência não se completara no correr
da fabulação. (MOISÉS, 1997, p. 368)
Verifica-se, portanto, que a novela é uma forma de intensa atração para leitores em busca
de narrativas ágeis, de média extensão e com uma estrutura narrativa tradicional, que possa ser
imediatamente apreendida.
166 Teoria da literatura II
Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: “Um homem, em Monte
Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida.” A forma clássica do conto
está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um
paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa exci-
são é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história um (o relato do jogo) e
constrói em segredo a história dois (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber
cifrar a história dois nos interstícios da história um. Uma história visível esconde uma história
secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.
1 Metaficcional diz respeito à narrativa que chama a atenção do leitor para a própria ficcionalidade, isto é, que tem
como assunto o próprio fazer narrativo , a própria feitura do texto.
A estrutura da narrativa: conto e novela 167
A história do suicídio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano
e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico
e ameaçador.
Para Borges, a história um é um gênero e a história dois sempre a mesma. Para atenuar ou dis-
simular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que
os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de Tchecov, seria contada por Borges segundo os estereótipos
(levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na
planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario
Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a conden-
sação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.
A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da
construção cifrada da história dois o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os
materiais de uma história visível. Em La muerte y la brújula, a história dois é uma construção
deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em El muerto; com Nolan
em Tema del traidor y del héroe; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma
de narrar.
O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a
busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca
da vida, uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não
numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.
Atividades
1. Procure lembrar de um conto infantil que você tenha ouvido na infância. Escreva-o ou copie
o texto de um livro ou da internet. Aplique as características do conto tradicional e comente
o resultado.
2. Escreva um resumo de seu dia. Escolha um fato que lhe tenha chamado a atenção. Conte
esse fato com personagens, em terceira pessoa, em um texto de, no máximo, 30 linhas. Ana-
lise o texto tendo por base as qualidades de um conto.
3. Leia as principais as notícias do dia. Descubra nelas um assunto que possa ser tratado em
forma literária. Primeiro, faça um resumo do assunto escolhido e, depois, escreva essa histó-
ria respeitando as normas do conto.
12
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio
É somente em 1800 que o escritor francês Jean Louis Geoffroy começa a publicar, no Journal
des Débats, textos em feuilletons (os folhetins) que em nada se assemelhavam aos registros histó-
ricos medievais. “Seus imitadores entre nós [no Brasil], aparecidos depois de 1836, traduziam o
termo para folhetim, mas já para a derradeira quadra do século a palavra crônica principiou seu
curso normal” (MOISÉS, 1997, p. 132). Antonio Candido (1992, p. 15), em estudo clássico sobre o
assunto, intitulado A vida ao rés do chão, acrescenta:
No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários as-
pectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a
originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente
dita foi folhetim, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia – polí-
ticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da seção “Ao correr da pena”,
título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para
o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o folhetim foi encurtando e
ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar
muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de
tamanho, até chegar ao que é hoje.
Nessa rápida passagem por uma história de pouco mais de dois séculos dessa forma literá-
ria, é importante salientar o fato de que, no Brasil, a evolução e a difusão da crônica constituíram
fator distintivo dentro da história da literatura. Em 1971, Gerald Moser escrevia um estudo para
uma publicação feita na Carolina do Sul, nos Estados Unidos, intitulado The cronica: a new genre
in Brazilian Literature? (A crônica: um novo gênero na literatura brasileira?) Até hoje, os dicionários
de termos literários em língua inglesa não incluem o verbete crônica, mas ao longo de todos esses
anos cresceu uma vasta produção de crônicas e um grande número de estudos sobre essa forma li-
terária. Arrigucci (1987, p. 53) também deu destaque ao desenvolvimento dessa forma de literatura
no Brasil: “Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar.”
Não são poucos e nem insignificantes do ponto de vista literário os autores de crônicas no
Brasil: José de Alencar, Machado de Assis, Francisco Otaviano, Olavo Bilac, João do Rio, Humberto
de Campos, Rachel de Queiroz, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlos
Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Nelson Rodrigues, Alcione Araújo, Otto Lara
Rezende, Carlos Heitor Cony, Affonso Romano de Sant’Anna, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo
Jabor, Ferreira Gullar, Marcelo Coelho e muitos mais.
Antonio Candido (1992, p. 16) considera, acerca da crônica, que “o seu grande prestígio
atual é um bom sintoma do processo da busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício
e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo”. Assim, a partir do
século XIX ela se distanciou das raízes históricas e se aproximou do jornalismo.
Agora se trata simplesmente de um relato ou comentário de fatos corriqueiros
do dia a dia, dos fait divers, fatos da atualidade que alimentam o noticiário dos
jornais desde que estes se tornaram instrumentos de informação de grande tira-
gem, no século [XIX]. A crônica virou uma seção do jornal ou da revista. Para
que se possa compreendê-la adequadamente, em seu modo de ser e significação,
deve ser pensada, sem dúvida, em relação com a imprensa, a que sempre esteve
vinculada sua produção. Mas seria injusto reduzi-la a um apêndice do jornal,
pelo menos no Brasil, onde dependeu na origem da influência europeia, alcan-
çando logo, porém, um desenvolvimento próprio extremamente significativo.
(ARRIGUCCI, 1987, p. 53)
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 171
Em um primeiro momento, ela tomou assuntos emprestados dos jornalistas e assim os cro-
nistas se transformaram em comentaristas responsáveis pela crônica policial, a social, a de teatro,
a de economia e outras. Mas a dose de subjetividade, de humor e – posteriormente – a busca da
expressão literária foram direcionando cada vez mais o gênero para um caminho próprio: “foi
largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo)
para ficar, sobretudo, com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissa-
da e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia
adentro” (CANDIDO, 1992, p. 15). Esse comentário nos leva a indagar quais seriam as caracterís-
ticas das narrativas literárias que permeiam a crônica, e que ultrapassam os modos de escrita do
texto jornalístico.
transitoriedade temporal do que há no conto por exemplo. Mas a síntese traz aproximação maior
com a poesia, que também é um gênero breve, e obriga o escritor a concentrar os recursos estéticos
expressivos em uma ambiência textual reduzida.
Em janeiro de 1958, Rubem Braga escreveu no mesmo pequeno espaço que ocupava na
página do jornal, um romance policial carioca em capítulos brevíssimos, compostos mais pela enu-
meração de frases, sem conetivos e nem coesão sintática, mas que, em forma de flashes e imagens
concentradas, permitem ao leitor seguir a ordem dos acontecimentos e as divergências surgidas do
caso narrado:
Crime ou suicídio? – A polícia acredita em latrocínio – Muller teria sido major
das Tropas de Assalto Nazistas – Impressões digitais apontarão o criminoso –
Dentro de 24 horas a Polícia deve ter em mãos o assassino do alemão, declara o
Delegado do 2.º Distrito – Moços da juventude transviada frequentavam o apar-
tamento da 5 de Julho – Teria prometido uma lambreta para o Natal – Mulher
ruiva, a chave do mistério! – Ainda envolto em mistério o crime do Edifício
Tudinha – Procura-se: moço louro de bigode curto – Avolumam-se as suspeitas
sobre Aristóbulo – Incomunicável a doméstica Severina – “Batida” no Morro da
Catacumba. (BRAGA, 1999, p. 76-77)
– Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo?
– Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?
Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda:
– Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...
E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha:
– Terrível, não acha?
Mas ele não pensa assim:
– Não acho não: sou o atual marido dela.
(SABINO, 1983, p. 57)
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 173
Como se pode observar, o diálogo mantém a estrutura linguística da oralidade (“não sabia?”,
“me desculpe”, “não acha?”), mas também apresenta vocabulário e expressões mais comuns à escri-
ta, como “impávido”, “e não tendo mais o que dizer”, “sou o atual marido”.
E segundo Jorge de Sá, o dialogismo1 reside no equilíbrio entre
o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível perma-
neça como o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que
estão sendo tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas
conversas diárias e em nossas reflexões, quando também conversamos com um
interlocutor que nada mais é do que o nosso outro lado, nossa outra metade,
sempre numa determinada circunstância. (SÁ, 1987, p. 11)
Alter ego de Fernando Sabino (o autor do trecho acima), o narrador mistura a voz das cartas
recebidas (que chega a citar como em tentar as letras) com a avaliação crítica realizada pelo escritor,
que se põe a confissões a respeito de conceitos de literatura e vocação literária. A ironia de seus
comentários dirige-se a dois destinatários: o leitor que lhe escreveu a carta (que é uma segunda voz
no texto) e qualquer leitor, inclusive nós, que não temos presença física no texto, em termos de pa-
lavras que nos incluam, mas estamos presentes o tempo todo e com quem mais continuadamente
o texto dialoga.
Ainda segundo Jorge de Sá, o toque de lirismo reflexivo diz respeito à extensão poética e de
pensamento que o narrador faz, motivado pela observação da realidade externa. Qualquer imagem,
acontecimento ou percepção dá origem a elaborada reflexão sobre a condição humana. Vejamos
mais um trecho de Drummond:
Esse dia que ainda se reserva aos Finados é quase desnecessário em seu simbo-
lismo, porque os moços não reparam nele, e os maduros e os velhos têm já for-
mado o seu sentimento da morte e dos mortos. Esta é uma conquista do tempo,
e prescinde de comemorações para se consolidar. Basta o exercício de viver, para
1 Dialogismo é termo cunhado pelo linguista e teórico Mikhail Bakhtin na obra A poética de Dostoievski e se refere à
presença de várias vozes dentro da narrativa, criando uma pluralidade de perspectivas, de ideias, de discursos. Opõe-se
ao discurso monológico, em que a voz do narrador abafa e subordina todas as outras possíveis manifestações de per-
sonagens com a imposição do ponto de vista exclusivo do narrador.
174 Teoria da literatura II
nos desprender capciosamente da vida, ou, pelo menos, para entrelaçá-la de tal
jeito com a morte, que passamos a sentir essa última como forma daquela, e for-
ma talvez mais apurada, à maneira de uma gravura que só se completa depois de
provas sucessivas. [...] Posso informar pessoalmente que a imbricação da ideia
de morte na ideia de vida não é arrasadora para o homem, senão que constitui
uma das sínteses morais a que o tempo nos conduz, com parte da experiência
individual. (ANDRADE, 1970, p. 76)
Assim como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade reali-
zava perfeitamente essa simbiose entre narração e poesia, observação e filosofia de vida, matéria e
simbologia. Talvez seja essa característica que autoriza e justifica a inclusão da crônica como sub-
gênero entre as demais narrativas literárias.
A complexidade das dores e alegrias humanas é apresentada ao leitor de modo sintético,
mas nem por isso menos significativo, emocionante e verdadeiro. Por essa qualidade, a crônica se
confirma como um texto de densidade, escapando da vala comum dos escritos pseudoliterários,
tal como Fernando Sabino caracterizou os escritos do quase-escritor-ex-estudante-de-medicina.
Ao comentar uma conversa com amiga de tempos remotos, ocorrida em uma casa em que
habitualmente os amigos se encontravam em dia de domingo, Rubem Braga assim conclui, de for-
ma magistral, sua crônica:
Penso em tudo que vivi nestes anos – tanta coisa tão intensa que veio e foi –
e penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui.
A casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai
singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de
cada domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina,
estará sentada na mesma sala, sob a mesma lâmpada. E com seus dois olhinhos
pretos verá o mesmo senhor calado, de cara triste – o mesmo senhor que numa
noite de domingo, sem o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto
país onde encontrará outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram
também suas noites de domingo – e não voltaram mais. (BRAGA, 1998, p. 268)
para a crônica. Um dos exemplos para essa categoria pode ser a crônica Quarto de moça, de Rubem
Braga (1999, p. 145-146).
a crítica social (seja dos caracteres, seja dos costumes) aparece no tom irônico da representação e
da análise, ou na paródia a discursos sociais estabelecidos. De grande importância e numerosas,
as crônicas humorísticas brasileiras obtêm bastante sucesso junto ao público leitor. As crônicas do
livro O Melhor das Comédias da Vida Privada (2004), de Luis Fernando Verissimo, enquadram-se
nessa classificação.
acréscimo, o ensaio se debruça sobre o texto literário, há uma contaminação intertextual. Na crítica
literária contemporânea, há uma forte e nítida tendência a construir ensaios com objetivos que
escapam à ciência e tocam na literatura. Massaud Moisés afirma (1997, p. 177): “o ensaísta é por
definição o bom escritor”. Ressalte-se que “bom escritor” não significa necessariamente um litera-
to, mas aproximam-se muito as duas ideias – a de ensaio e a de literatura.
Em 1931, apareceu a primeira edição de um dos mais importantes livros de ensaios li-
terários do século XX: O Castelo de Axel, do crítico norte-americano Edmund Wilson. Nesse
volume, ele trata de autores do simbolismo e da literatura de sua contemporaneidade (1870 a
1930), como Gertrud Stein, W. B. T. Yeats, Marcel Proust, T. S. Eliot e James Joyce, e também da
grande discussão entre Rimbaud e a Villiers d’Isle-Adam. Entre as numerosas informações sobre
o assunto e a argumentação cerrada em prol da modernidade, há momentos em que Edmund
Wilson (2004, p. 157) apresenta clara aderência ao escritor estudado e se posiciona pessoalmente
em um estilo forte e narrativo:
Proust destruiu ferozmente a hierarquia social que acabara de expor. Seus va-
lores, diz-nos ele, são uma impostura: afetando pretender honras e distinções,
aceita tudo quanto seja vulgar e mesquinho; seu orgulho não é em nada mais
nobre que o instinto, que compartilha com a encarregada da toilette e a irmã do
ascensorista, de cuspir nas pessoas que por acaso estejam em posição desfavorá-
vel. E diga o que quiser, em contrário, o mundo social, ele ou ignora ou procura
aniquilar os raros impulsos em prol da justiça e da beleza que tornam os homens
admiráveis. Parece estranho que tantos críticos tenham considerado o romance
de Proust “amoral”: a verdade é que ele estava preocupado com a moralidade, a
ponto de chegar a recorrer ao melodrama. O próprio Proust (por parte da mãe)
era meio judeu, e a despeito de todo o seu refinamento parisiense, ainda subsis-
tia nele muita capacidade de apocalíptica indignação moral do clássico profeta
judeu. Aquele tom de lamentação e queixa, que ressoa por todo o livro e que, na
verdade o autor quase nunca abandona, salvo para trocá-lo pelo humor vívido
das cenas sociais, estas mesmas acrimoniosas em suas implicações, é, realmen-
te, muito pouco francês, aparentando-se antes à literatura judaica. (WILSON,
2004, p. 157)
Nesse fragmento, percebe-se como o ensaio não trata apenas da definição do que seja um
homem distraído ou a distração, pois une questões de ordem filosófica (“a atração pelo reverso
deste mundo”), axiomas (“um homem que se distrai nega o mundo moderno”), jogos de palavras e
sonoridades (“abstraído, retraído, contraído” e “joga o todo pelo todo”). Assim, o discurso teórico
se ornamenta com recursos da linguagem literária.
Ao comentar os desafios da tecnologia no início do século XX e escolher para representá-los
a máquina de escrever, a crítica brasileira Flora Süssekind constrói em seu ensaio Cinematógrafo
das Letras, de 1987, alguns momentos de ludismo verbal, sem perda da precisão de conceitos e
exemplos, muito próximos da literatura:
Convite temerário à desautomatização que explica, em parte, o fato de, por um
lado, as melhores realizações no campo da prosa de ficção de 1920 (o Miramar,
Pathé Baby, o Serafim e Macunaíma) não terem propriamente constituído siste-
ma na literatura brasileira posterior, e, por outro, de se terem glosado, da poesia,
à diluição, apenas o tom coloquial e os cacoetes humorísticos, e não os seus
irônicos assassinatos de artefatos puros e subjetividades tirânicas. O proble-
ma difícil mesmo para restauradores mutantes e capazes de assumir trajes ora
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 179
memorialistas, ora neonaturalistas, ora espiritualistas: “After the first death, there
is no other.” (Dylan Thomas.) O que parece lançar grande parte da produção lite-
rária pós-1920 num projeto de ocultamento sistemático dessa morte. Uma espécie
de projeto em abismo: “Depois da primeira morte”, multiplicam-se as tentativas
de ressurreição. Ou melhor: de esconder cadáveres, fingir que jamais houve morte
alguma. E desaparecer com os muitos registros de óbito espalhados habilmente na
ficção e na poesia do século XX. (SÜSSEKIND, 1987, p. 150-151)
A metáfora criada sobre a morte como similar ao desaparecimento de autores, obras e con-
quistas importantes obtidas nos momentos heroicos do Modernismo de 1922 é mantida em sua
rede semântica (cadáveres, óbito, primeira morte). Além do mais, a citação de verso da composição
poética de Dylan Thomas enfatiza melhor a posição contemporânea da crítica e reforça, em outra
linguagem, a idéia central desse fragmento.
Vimos, assim, como o ensaio de crítica literária pode obter efeitos de significação e de beleza
que transcendem a linguagem puramente científica desse subgênero da prosa. No entanto, se com-
parado à crônica, o ensaio se situa em posição menos confortável no âmbito da literatura, porque a
maior parte da produção ensaística, mesmo em crítica literária, mantém um tratamento linguístico
mais semelhante ao de textos não literários.
A literatura na poltrona
(CASTELO, 2007, p. 48-52)
Ao crítico cabe não só o papel de marcador – daquele que gruda com firmeza a seu objeto e
dele não se afasta, como um zagueiro – mas também o de investigador, isto é, daquele que des-
venda os elementos que, ocultos ou disfarçados, sustentam a estrutura de uma ficção, ou de um
poema. O escritor argentino Ricardo Piglia já mostrou que a função do crítico se assemelha
à do agente de polícia, do investigador profissional que, partindo de pistas muito esmaecidas,
e só aos poucos, tenta (em vão, porque isso nunca se consegue) reconstruir as bases de um
relato, detendo-se não nas luzes emitidas em sua superfície, mas nas vigas obscuras que o
sustentam. [...]
Não existem duas maneiras iguais de observar uma mesma obra de arte, ou de ler um mesmo
livro. Um livro puro, fechado, intocável, não existe. Livros só ganham prestígio e popularidade,
ou sofrem o peso do desprezo e do esquecimento quando atravessados por leituras. É na mente
de cada leitor – depois de passar pelo filtro da interpretação pessoal, que é sempre única – que
um livro passa a existir. Todo leitor, mesmo o mais discreto e ingênuo dos leitores, é, a seu
modo, um crítico. Uma vez que toda leitura, mesmo a mais comovida e apaixonada, mesmo a
mais amadora, é sempre crítica também.
Além disso, todo crítico, mesmo o mais científico, isto é, o mais rigoroso, o que mais se atém a
princípios, perspectivas teóricas e dogmas, qualquer crítico trabalha sempre, e também, com a
imaginação. Ela é uma espécie de cola que jamais se desgruda das palavras e que, na verdade,
as constitui. Emoções, memórias pessoais, associações inconscientes, impulsos, as forças do
gosto agem, em segredo, mesmo na mais grave das críticas literárias. Quando lê um livro, um
180 Teoria da literatura II
crítico traça em sua mente, ainda que de modo sutil e inconsciente, e mesmo contra a sua
vontade, um retrato do autor e de sua obra. Ele, para usar a palavra correta, os imagina. Uma
torrente de fantasias a respeito da obra e de seu autor age na mente de qualquer leitor, mesmo
o mais distraído, ou despreparado, ou, ao contrário, o mais prudente deles. E estas fantasias
são tão poderosas quanto a formação teórica, o arsenal de leituras, ou o preparo intelectual.
Por isso, e esta constatação causa repugnância a alguns praticantes da crítica, a crítica literária
é, ela também, e sempre, um gênero literário – um gênero criativo, por mais neutra que seja
a estratégia de um crítico, por mais científica que ela pretenda ser. Quando lê um livro, o crí-
tico lê, um pouco, a si mesmo, como se estivesse a se mirar em um espelho de papel. Como
já observou outro escritor argentino, Juan José Saer, se nos emocionamos com um escritor, é
porque nele encontramos algo de nós mesmos. É porque nos vemos nele. Além disso, mesmo
em um crítico frio e cerebral, a leitura de um livro deve provocar determinada perturbação ou,
como diz Saer, “uma espécie de terremoto”. “Se lemos Homero e gostamos de Homero, e nos
emocionamos com Homero, é porque ele nos faz encontrar em nós mesmos os sentimentos e
emoções que evoca”, diz. Não existe leitura neutra: críticos não são máquinas.
Há, em consequência, algo de pessoal e inalienável na leitura que um crítico (que qualquer lei-
tor) faz de um livro. Positiva ou negativa, não importa, essa leitura pessoal enriquece, sempre,
a obra, emprestando-lhe novas perspectivas e alargando, assim, suas zonas de interferência.
Vem expandir seus horizontes e, mesmo, o raio de interpretações que aquele livro (qualquer
livro) lança sobre o mundo. O crítico literário, como Maria Bethânia ou Elis Regina, é um
intérprete que, ao ler um livro e escrever sobre ele, lhe dá, em certa medida, sua própria feição.
Em outras palavras, é um sujeito que o lê como se fosse seu. E é nesse como se que está o cora-
ção da leitura. Mas é também ali que se guarda todo o perigo. Quando a ética é descartada, no
vazio que deixa se instalam os interesses de grupo, as pequenas vinganças, ou as provocações
que, atuando como se lhe alargassem a perspectiva, na verdade a encurtam. A ausência de ética
age, justamente, ali onde a ética devia estar. [...]
Em consequência, porque guarda aspectos vizinhos aos da criação literária, a crítica deve ser
exercida com a máxima delicadeza, o que não significa dizer falta de contundência ou vaci-
lação intelectual. Não quer dizer condescendência, ou ausência de rigor. Rigor e delicadeza
não se excluem; ao contrário, se alimentam. Toda crítica é subjetiva – ela ergue um certo
olhar, uma contemplação particular, que envolve a obra como um manto, tanto para realçá-la
(como fazem as saias das bailarinas). Como para ocultá-la (como fazem os véus das devotas).
Se é um olhar pessoal, ela não é, não pode ser, científica, ainda que exercida dentro de certos
rigores e a partir de certos aparatos críticos e certas tradições. Se não é científica, ela é, pode-
-se dizer, artística – uma vez que a inventividade, ainda que em registro diverso do que ocorre
na criação literária, nela atua com tanta força quanto em uma obra de ficção. A crítica literária
é uma obra literária de caráter nobre; obra que se desdobra sobre outra obra. Justaposição
que alarga seus horizontes, mas também os deixa mais vulneráveis e, em consequência, mais
vulneráveis à manipulação.
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 181
Atividades
1. Compare os fragmentos de crônica reproduzidos a seguir. Classifique-os dentro dos tipos
estudados e explique os efeitos semânticos e literários que eles podem conter.
Meninas
Primeiro dia de aula. A menina escreveu seu nome completo na primeira página
do caderno escolar, depois seu endereço, depois o nome da cidade, depois o
nome do estado, depois “Brasil”, “América do Sul”, “Terra”, “Sistema Solar”, “Via
Láctea” e “Universo”. A Rute, sentada ao seu lado, olhou, viu o que ela tinha
escrito e disse: “Faltou o CEP.”
Quase brigaram.
Ela era apaixonada pelo Marcos, o Marcos não lhe dava bola. Um dia, no
recreio, uma bola chutada pelo Marcos bateu na sua coxa.
Ele abanou de longe, gritou “Desculpa”, depois foi difícil tomar banho de chu-
veiro sem molhar a coxa e apagar a marca da bola. Ela teve que ficar com a perna
dobrada para fora do boxe, a mãe não entendeu o chão todo molhado, mas o
que é que mãe entende de paixão?
(VERISSIMO, Luis Fernando. O Melhor das Comédias da Vida Privada. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2004, p. 91.)
A viajante
Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá.
Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sos-
sego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não
direi que fique.
Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa
ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando;
nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida –
e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes)
estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem
melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio – você que não
chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um
instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas, e
mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste,
mas passou.
(BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas as Melhores de Rubem Braga. 13. ed.
Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 159.)
2. Pesquise, em revistas, jornais ou periódicos diversos, exemplos de crônicas diferentes.
Estude nelas os elementos que têm valor literário. Depois, escreva um comentário sobre
os resultados encontrados.
3. Pesquise na internet um ensaio científico sobre crônica e verifique se nele existem carac-
terísticas literárias. Aponte quais são e que efeitos provocam na leitura e na argumentação
do texto.
Gabarito
2.
3.
• Os filmes são organizados por categorias: drama, comédia, terror ou suspense, documen-
tários, desenho animado ou infantil, arte, clássicos. Essa classificação obedece a determi-
nados critérios, que podem ser: provocam o riso (comédia); filmes antigos (clássicos);
falam de amor ou de conflitos diversos (dramas).
184 Teoria da literatura II
• A escolha, por exemplo, da categoria drama pode levar à constatação de que diferen-
tes subtipos estão nela contidos: sentimentais, de guerra, de suspense, policiais, conflitos
sociais.
2.
• A escolha, por exemplo, pode ser de gibis do Mauricio de Sousa (Mônica, Cascão etc.),
pois muitos adultos conhecem esse tipo de revista. Caso não haja condições de adquirir
ou ter essas revistas, você pode fazer o mesmo trabalho com tiras de jornal. Tiras são his-
torietas de dois ou mais quadrinhos.
• Trabalhar com mais de duas histórias.
• Aplicar a elas os critérios de gênero lírico, narrativo ou dramático. Por exemplo, verificar
se há personagens que falam; se há narrador; se há linguagem com ornamentos (metáfo-
ras, muitos adjetivos, jogos sonoros); se há história com começo, meio e fim; se há conflito
de ideias, de sentimentos, de posições ideológicas; se há desenvolvimento temporal (em
dias, semanas, meses, anos).
• O objetivo é, nessa etapa, apenas localizar, descrever essas descobertas.
• Trabalhar com histórias ilustradas facilita o entendimento pelo auxílio dado pela imagem.
3.
• Selecione três letras de canções populares brasileiras. Pode ser canções antigas, pagode,
sertanejo, rock etc.
• Transcreva as letras das canções em folhas separadas.
• Aplique nos textos das canções as características da poesia lírica vistas no texto teórico.
• Aponte a subjetividade, o ritmo, a sonoridade, as imagens, o trabalho com a criação de
efeitos semânticos na linguagem, a cosmovisão individual.
Gabarito 185
É possível observar, nessa letra, a perspectiva da primeira pessoa (eu lírico); o conflito é um
caso de amor e abandono; as comparações são feitas com elementos da natureza que sem-
pre julgamos belos (estrelas, céu, sol, mar); o exagero da perspectiva amorosa (“meu amor
é imensidão), as lembranças idealizadas do passado (“a gente andava nas estrelas”, “horas
lindas” etc.) são alguns dos elementos líricos da canção.
2.
• Você deverá observar: a forma fixa do soneto (12 versos: duas quadras + dois tercetos), o
tema amoroso, o texto em primeira pessoa (eu lírico), as imagens (amigo, amante, bicho),
a sensualidade (corpo, desejo, amante), a visão idealizada daquele que ama (amar “mais
do que pude”, “e te amo além), a súplica amorosa e outros elementos.
• Com base nesses elementos e na teoria, verifique o que de lírico existe. Não é um texto
dramático ou narrativo (é um diálogo com interlocutor ausente, não tem personagens que
falem, somente o eu lírico).
186 Teoria da literatura II
3.
• Verifique nos sonetos não apenas o aspecto formal (14 versos), mas, sobretudo, o tema
do amor e da passagem do tempo, comum aos dois poetas. O tema do amor é tratado de
forma mais filosófica em Shakespeare; no poeta brasileiro, toma uma tonalidade mais
sensual.
• O soneto de Shakespeare está num bloco só (12 versos), finalizando numa estrofe de dois
versos (dístico). Em Vinicius de Moraes, o soneto tem a forma italiana (14 versos em
quatro estrofes: 4,4).
• Após assistir ao filme, selecione cenas em que é possível identificar características épicas
no comportamento do personagem Aquiles. Por exemplo, suas atitudes guerreiras, sua
compaixão pelo pai do troiano morto, Heitor.
• Para confirmar essas características heroicas, você pode pesquisar sobre a Guerra de Troia
na internet e ler partes da Ilíada, de Homero. Consulte o site: <www.greciantiga.org>. Acesso
em: 11 jul. 2018.
• Compare os relatos desses três textos. O resultado apontará maior idealização no filme,
mais poesia na narrativa de Homero (figuras de linguagem, jogos sonoros, mais detalhes
na construção do herói) e, no texto histórico, maior precisão e visão contraditória a res-
peito da participação de Aquiles.
2.
3.
• ver na afirmação as funções que podem estar no escrito – experiências, estados e proces-
sos psíquicos;
• relacionar essas funções com a necessidade de representação no palco – entoação, gestos,
tempos de fala, movimentos no palco;
• concluir pela necessidade de unir o texto escrito e o texto encenado.
2. Como resultado da pesquisa, você:
3.
• Verifique que as rubricas direcionam bastante bem a ação dos atores e as expressões fa-
ciais e gestuais: declamando, guardando a carta, olha para a rua, pela janela.
• Há muitos provérbios antigos ou ainda presentes em nossa cultura. Esses provérbios justi-
ficam o título da peça: “Antes assim que amortalhado”, “como Deus é servido”, “quem não
deve não teme” e outros.
• O conflito se dá entre a rejeição de Inês e a insistência em casar da parte de Isaías.
Compare os textos, verificando repetições (estilo sucinto e direto, importância da obra, com-
prometimento ético/humano da obra) e diferenças (o regionalismo nordestino e a universa-
lização, a literatura e a vida, a defesa do artista).
188 Teoria da literatura II
Você pode encontrar tanto textos objetivos quanto textos subjetivos. O que vai ser importan-
te é a qualidade da linguagem, do ponto de vista da literatura, não da gramática.
Assim, por exemplo, é possível comparar os trechos encontrados com um trecho do primei-
ro capítulo de Vidas secas, romance de Graciliano Ramos, conforme abaixo.
A subjetividade em frases e trechos como: “sem excluir a pornografia que devia ser aceita
como recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes seria impensável: os
comunistas daquela época e da nossa não riem nem sorriem.”, “Lembremos”, “A celebridade
traz nela mesma o vírus traiçoeiro da efemeridade”.
A qualidade do texto pode ser medida pela clareza da exposição das ideias, da justeza dos
conceitos, da avaliação que se faz dos escritores. Todas elas estão no texto citado.
3. O texto já apresenta a hesitação: a crítica que analisa o objeto, a crítica que se quer
igualmente arte.
Você pode tratar da mudança de paradigma da atualidade: três gêneros clássicos e mais as
mudanças históricas.
Também pode dizer que, para também ser arte, a crítica precisa ter o tratamento de lingua-
gem como a poesia e o romance, por exemplo.
Busque exemplos em livros e na internet para fundamentar sua resposta.
a presença dos mecenas (homens ricos que sustentavam financeiramente os artistas e recebiam
em troca quadros com suas imagens ou de seus familiares).
Nos quadros, você pode observar os procedimentos de cores, linhas e formas que constroem
o sentido dos quadros (o claro e o escuro, a perspectiva central que valoriza a imagem,
a busca de realismo das figuras pintadas, a expressão enigmática do primeiro quadro e a
religiosidade do segundo quadro) e também os elementos pintados no plano de fundo dos
quadros – como eles são variados, com detalhes da natureza, têm um horizonte longínquo,
não são apenas decorativos, pois falam das paisagens italianas.
2. As fotos registram momentos, paisagens e pessoas que representaram algum valor afetivo,
interesse ou necessidade de registro do fotógrafo. Interprete essas fotos buscando a relação
entre elas, verificando as analogias entre as imagens.
Você dará a suas fotos uma interpretação baseada em seus conhecimentos pessoais, procu-
rando ver nelas algum valor simbólico, alguma interpretação mais profunda: as ideias de
amor, de fé, de amizade, de alegria etc.
É importante ir além do registro puramente histórico (“esta foi tirada quando...”) para enten-
dê-las, agora que o tempo passou, como estados de alma.
3. Expressões como a vida é um rio, o caminho do saber, minha princesa, ele é um palhaço apro-
ximam sentidos diferentes e produzem imagens ampliadas e simbólicas, graças à existência
das metáforas.
Você pode reunir os exemplos que tem na memória, pesquisar com pessoas ou buscar em
livros, sempre estabelecendo sentidos e procurando relações no terreno da metáfora.
O objetivo é descobrir que os recursos poéticos são parte integrante da vida humana.
2.
• Levante o máximo de textos que puder e analise apenas uma parcela deles – digamos, 30
a 50% do material coletado.
• Analise os textos. Você irá descobrir a permanência dos mesmos procedimentos de ritmo
(versos de cinco e sete sílabas) e textos rimados em diferentes esquemas.
• Se puder, deve registrar inclusive o modo como são cantados ou declamados.
• Desse modo, concluirá pela absoluta convencionalidade dos textos e poderá comparar
com a cultura escrita, mais erudita.
• Depois, você pode organizar uma exposição ou trocar informações pela internet com
seus colegas.
3.
• Você deve tratar do tipo de rimas e de ritmos, verso a verso, dos efeitos sonoros de ali-
teração e assonância, do formato do soneto e concluir pelo atendimento às normas de
metrificação e de rima.
• Verá que o que se diz sobre a língua portuguesa (“esplendor e sepultura”) se pratica no texto.
• Pode comentar, expandindo a questão de ritmo e rima, o valor e o uso da língua nos
dias atuais.
Para cada uma dessas situações, deve argumentar e exemplificar por escrito.
• A independência: escrito em prosa, sem extensão fixa, sem personagens fixos, sem modo
de narrar preestabelecido. Mas pode incorporar cenas dialogadas (gênero dramático) e
poesia (reprodução de poemas e estilo poético).
• A elasticidade: deve comprovar com os exemplos dos 15 tipos descritos no texto teórico
deste capítulo.
• A capacidade de renovação: com base nos 15 tipos, é possível argumentar o quanto o
romance foi se transformando e também imaginar que ele não vai interromper sua vida
cultural tão cedo.
Observe, no fragmento 1, as palavras “segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas”,
a data, a precisão dos nomes e fatos.
Gabarito 191
2. Nesse caso, você deve observar a descrição que une o físico ao moral.
Deve verificar como a personagem se qualifica pela relação de inveja e desgosto com os outros.
É possível denominar esse personagem de personagem-tipo.
Você também pode associar as características físicas (“seco e nervoso”) com as condições
psíquicas da personagem.
Observe também a crítica social: os medíocres é que vencem na vida.
4. A citação pede que você relacione a ação (enredo) à personagem como agente do fazer. Isto
é, tem validade pelo que faz e não por qualidades morais, por exemplo.
Você deve pensar o quadro das funções e o papel da personagem (Souriau, Propp, Hamon).
Atente-se ao fato de que o narrador é também uma personagem, isto é, está representada por
um fazer que é a escrita.
Você pode exemplificar com base no repertório de leituras de romances e narrativas que traz
de sua experiência pessoal de leitor.
192 Teoria da literatura II
A primeira tem efeitos de humor que nascem da gradação de lugares até chegar ao uni-
verso, contraposta à fala de Rute, que descobre uma falha pequena ante a imensidão do
endereço. Depois o trocadilho dar bola e levar uma bolada. Mais o efeito de humor do
banho pela metade.
A segunda é evocativa (o passado interpretado pelo viés da explicação filosófica) e tem a
alegoria do rio (várias metáforas: “barranca”, “águas”, “espumas”, “corrente”). Tem também,
como característica do cronista, a presença da vida e da morte como reflexão.
Gabarito 193
2. Jornais e revistas trazem crônicas sempre. Seja em formato de crônicas políticas ou sociais,
seja econômicas ou culturais. Alguns têm até crônicas literárias.
3. Por exemplo, o estudo sobre “A crônica na ordem do dia: relações entre realidade, história,
atualidade e ficção em O quase de Luis Fernando Veríssimo”, de Elaine Aparecida Lima, dis-
ponível em: <www.urutagua.uem.br//007/07lima.htm>. Acesso em: 3 jul. 2018.
Nele é possível observar a adesão da crítica literária ao seu objeto de estudo: os adjetivos
com que se refere às crônicas de Machado de Assis, a beleza literária que vê em seus textos, a
importância histórica destes, levam à a avaliação positiva do final do texto.
O resultado que pode surgir em outros ensaios pesquisados pode ser a comprovação de que
são mais científicos e menos poéticos.
Você deve comprovar com citações do texto tudo o que afirmar a respeito dele.
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Referências 199
TEORIA DA LITERATURA II
de seus subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças
estabelecidas à medida que eles foram se espelhando na sociedade e nas di-
ferentes culturas.
São apresentadas as características relativas aos conteúdos, à identidade e à
contextualização histórica dos três gêneros literários clássicos: o lírico, o épico
e o dramático, mostrando que tal categorização não é definitiva e permanen-
te. Nesse sentido, esta obra também expande o sentido da leitura para outras
expressões artísticas, criando relações entre a literatura e as diferentes artes
humanas, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema.
As informações aqui trazidas favorecem a reflexão e o desejo de conhecer
melhor as obras que constituem uma biblioteca mínima para o entendimento
desse universo, indo além dos limites da orientação do profissional docente,
capacitando o leitor a se comunicar com qualidade com os textos literários e
também com o mundo que eles representam e presentificam. Afinal, a teoria
aliada à prática cotidiana constitui o fundamento da aprendizagem, do conhe-
cimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético.