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O estudo teórico da literatura implica conhecer os modelos que orientaram,

explicita ou implicitamente, a criação de textos literários ao longo da história.


Tendo isso em vista, este livro investiga os gêneros literários esclarecendo a
origem de termos e conceitos, os textos mais importantes de cada um deles e

TEORIA DA LITERATURA II
de seus subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças
estabelecidas à medida que eles foram se espelhando na sociedade e nas di-
ferentes culturas.
São apresentadas as características relativas aos conteúdos, à identidade e à
contextualização histórica dos três gêneros literários clássicos: o lírico, o épico
e o dramático, mostrando que tal categorização não é definitiva e permanen-
te. Nesse sentido, esta obra também expande o sentido da leitura para outras
expressões artísticas, criando relações entre a literatura e as diferentes artes
humanas, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema.
As informações aqui trazidas favorecem a reflexão e o desejo de conhecer
melhor as obras que constituem uma biblioteca mínima para o entendimento
desse universo, indo além dos limites da orientação do profissional docente,
capacitando o leitor a se comunicar com qualidade com os textos literários e
também com o mundo que eles representam e presentificam. Afinal, a teoria
aliada à prática cotidiana constitui o fundamento da aprendizagem, do conhe-
cimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético.

Marta Morais da Costa


Fundação Biblioteca Nacional
Código Logístico
ISBN 978-85-387-6461-8

9 788538 764618 57922


Teoria da literatura II

Marta Morais da Costa

IESDE BRASIL S/A


2018
© 2007 - 2018 – IESDE BRASIL S/A.
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dos direitos autorais.
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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
C874t Costa, Marta Morais da
Teoria da literatura II / Marta Morais da Costa. - [2. ed.]. -
Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018.
200 p. : il. ; 21 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6461-8

1. Gêneros literários. 2. Literatura. I. Título.


CDD: 807
18-50211
CDU: 82

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
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Marta Morais da Costa
Doutora e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Licenciada
em Letras Português-Francês pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem experiência e
pesquisas na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira e Leitura, atuando principalmente
nos seguintes temas: formação do leitor, formação de professores, leitura de múltiplas linguagens,
ficção contemporânea, dramaturgia e história do teatro brasileiro.
Sumário

Apresentação 9

1 Natureza do fenômeno ­literário 11


1.1 Os conceitos do discurso literário 11
1.2 O discurso literário: características 16

2 Gêneros literários: conceituação histórica 23


2.1 O que é gênero literário? 23
2.2 O conceito na Antiguidade clássica e medieval 24
2.3 O conceito no Renascimento 27
2.4 O conceito no Romantismo 27
2.5 Conceitos ao longo dos séculos XIX e XX 28
2.6 A perspectiva da atualidade 30

3 Gêneros literários: o lírico 35


3.1 O que é poesia lírica? 35
3.2 A concepção musical da Antiguidade 38
3.3 Lirismo, subjetividade e sentimento 40
3.4 Lirismo e visualidade 42

4 Gêneros literários: o épico ou narrativo 49


4.1 O que é o gênero épico? 49
4.2 Preceitos aristotélicos sobre a epopeia 51
4.3 A passagem do épico ao romance 52
4.4 Os tipos de epopeias 54

5 Gêneros literários: o dramático 59


5.1 A teoria aristotélica do trágico 59
5.2 A dramaturgia épica 63
5.3 As duas linguagens do gênero dramático 64
5.4 Texto dramático e texto cênico 66
5.5 Formas principais do gênero dramático 68
5.6 Formas medievais 69
5.7 Forma renascentista: a tragicomédia 70
5.8 Forma do Iluminismo: o drama burguês 70
5.9 Formas do Romantismo e do século XIX 70
5.10 Formas que unem teatro e música 71
5.11 Formas do teatro na atualidade 73

6 Gêneros literários: o ensaístico 77


6.1 O gênero de fronteira 77
6.2 O ensaio 78
6.3 A crítica literária e suas funções 80
6.4 O ensaio no discurso literário: a metaficção e a metapoesia 81

7 A linguagem poética: ­poema x poesia 87


7.1 O objeto e as funções da poesia 87
7.2 A metáfora e a metonímia 93
7.3 Poemas de forma fixa 95

8 A linguagem poética: o ritmo e a rima 105


8.1 Palavra poética e música 105
8.2 Versos e ritmos 106
8.3 Versos e estrofes 114
8.4 Rimas e figuras de efeito sonoro 115

9 A estrutura da narrativa: ­romance 125


9.1 Nascimento e evolução do romance 125
9.2 Ficção e realidade 127
9.3 Tipologia do romance 129

10 A estrutura da narrativa: elementos do romance 141


10.1 O foco narrativo 141
10.2 Ação: história e discurso 146
10.3 Espaço e tempo: realismo e imaginário 148
10.4 As personagens e modos de representação 151
11 A estrutura da narrativa: conto e novela 157
11.1 Características do conto e da novela 157
11.2 Tipologia da narrativa curta 166

12 A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 169


12.1 Crônica, tempo e realidade 169
12.2 A importância literária da crônica 171
12.3 O ensaio como literatura 176

Gabarito 183

Referências 195
9

Apresentação

O estudo teórico da literatura implica conhecer os modelos que orientaram, explícita ou im-
plicitamente, a criação de textos literários ao longo da história da cultura. Assim, uma obra que se
proponha a i­ nvestigar os gêneros literários, como esta que ora apresentamos, procura trazer infor-
mações que esclareçam a origem de termos e conceitos, os textos mais importantes dos diferentes
gêneros e subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças estabelecidas entre
os textos, na medida em que eles foram se espelhando e interagindo uns com os outros.

O primeiro objetivo deste livro é apresentar as linhas gerais que definem os três gêneros lite-
rários clássicos: o lírico, o épico e o dramático. Ao mesmo tempo, os conteúdos mostram que essa
classificação não é definitiva e permanente, em especial na atualidade, momento em que a cultura
e a literatura passam por alterações profundas dos paradigmas da ciência e da arte.

Um segundo objetivo é o de tratar de forma mais minuciosa as principais características


desses três gêneros, assim como as possíveis classificações de subgêneros que eles contêm. Para
atender a esse objetivo, também são tratados tópicos teóricos que abordam os aspectos de identi-
dade de cada gênero, seja os relativos aos conteúdos e à contextualização histórica , seja aqueles que
dizem respeito aos aspectos discursivos.

Um terceiro objetivo é o de apresentar as ideias manifestas em textos literários, com sua


transcrição parcial, acompanhada de comentários sintéticos e objetivos. Privilegia-se, portanto, o
estudo do texto literário como base para melhor compreensão das ideias teóricas expostas. Afinal,
a literatura é composta pelos textos literários; a teoria lhes é posterior e explicativa.

O último objetivo é o de expandir o sentido da leitura da literatura para outras expressões


artísticas, criando relações entre literatura e artes, como a música, o teatro, as artes plásticas e o ci-
nema. A intenção é favorecer a ampliação do sentido da literatura para integrá-la à cultura humana
e ao momento histórico.

A tarefa de atingir esses objetivos permite que, a cada assunto tratado, as informações trazi-
das favoreçam a reflexão do leitor e o desejo de conhecer melhor as obras citadas. Estas constituem
uma biblioteca mínima para o aprofundamento dos tópicos desenvolvidos, dado que a aprendi-
zagem integral se faz também com a continuidade dos estudos, fora dos limites da orientação
do profissional docente, quando o estudante se lança, por desejo e vontade próprios, à leitura e à
pesquisa complementares.

Por fim, a teoria da literatura que trata dos gêneros literários auxilia fortemente na com-
preensão do fato literário e das razões que orientaram os escritores a criar poemas, narrativas e
peças de teatro filiados de alguma maneira a textos anteriores e a concepções discursivas que fo-
ram se repetindo ao longo do tempo. É a permanência de algumas características que, guardadas
as devidas proporções e contextualizações, continuam a direcionar o pensamento criativo ou a ser
combatidas por esse pensamento, na busca de novas formas de expressão escrita.
10

A leitura de poemas, peças teatrais ou narrativas, realizada com o embasamento teórico


correspondente e atualizado, cresce e se dinamiza, capacitando o leitor a se comunicar com qua-
lidade com os textos literários, prioritariamente, e depois com o mundo que esses textos apresen-
tam, representam e presentificam. Porque teoria e prática são os fundamentos da aprendizagem,
do conhecimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético.
1
Natureza do fenômeno ­literário

Para tratar da natureza do fenômeno literário, convém lembrar que ele é uma criação his-
tórica, ideológica e mutante. Isso se deve a vários fatores: o primeiro deles diz respeito à ideia que
se faz sobre a constituição do que seja um texto literário, que resulta em uma unidade completa e
polissêmica. Para tanto, convém analisar a natureza do texto literário para que seja possível estabe-
lecer alguns parâmetros de avaliação e julgamento.

1.1 Os conceitos do discurso literário


Os sentidos atribuídos ao termo literatura variaram ao longo da história e apresentam va-
riáveis em cada leitor. As diferentes acepções do termo não se referem apenas ao caráter singular
de cada indivíduo ou de cada época histórica. São inerentes à natureza do objeto que estudamos.
O texto literário se qualifica muito mais pelas diferenças que apresenta quando comparado
aos não literários do que por seu próprio e mutável modo de ser. Portanto, tratar de textos literários
implica conhecer as infinitas nuances que eles vão assumindo na obra de um mesmo autor, nos
autores de uma mesma geração, na sucessão de autores, obras e épocas literárias e artísticas.
Apesar da dificuldade decorrente dessa mutabilidade, é possível verificar que algumas carac-
terísticas permanecem ao longo do tempo. É sobre essas qualidades permanentes que este capítulo
vai discorrer.
Manuel Bandeira (1886-1968), poeta brasileiro, escreveu no poema Testamento a
seguinte estrofe:

[...]
Vi terras da minha terra,
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
[...]

(BANDEIRA, 1970)

É possível encontrar nesses poucos versos uma das razões da existência da literatura: ver ter-
ras, andar por espaços reais deixam marcas no ser humano viajante, mas o que realmente tem im-
portância é a invenção, aquilo que, se não existe em algum lugar, existe no desejo do escritor. E é o
fato mais importante, mais real do que a própria realidade. Essa condição de criação de realidades,
a partir de estímulos do concreto, do referencial, do observável, é a condição básica da literatura.
Mesmo que esteja lastreada no real, é pela capacidade de recriação, de refeitura, de tradução em
palavras que o mundo ganha existência.
12 Teoria da literatura II

Mais concretamente, a literatura se apoia necessariamente em cinco elementos indis-


pensáveis: um autor, um leitor, um texto, uma língua e um referente (COMPAGNON, 1999).
Essa associação é a base de qualquer reflexão teórica, que pode tratar do todo ou de partes especí-
ficas de cada um desses elementos.
Do ponto de vista da autoria, é cada vez mais frequente a separação entre a biografia do
autor e o texto literário que escreveu. Roland Barthes, em artigo de 1968, intitulado La mort de
l’auteur (A morte do autor), trata o produtor do texto como um “personagem moderno”, encar-
nação do indivíduo burguês, contaminado pela ideologia do capitalismo, o proprietário do texto
(COMPAGNON, 1999). Para Barthes, deve-se levar em consideração a linguagem, impessoal e
anônima, portanto valorizando mais a transformação do escritor em discurso, isto é, numa orga-
nização textual histórica e ideologicamente marcada na linguagem. É com linguagem que o leitor
conhece o autor. Portanto, o que ele viveu e pensou na sua realidade pessoal pode não ter originado
ou aparecer na íntegra naquilo que escreveu e no assunto ou tema de que tratou. Cabe ao leitor
compreender no texto o que ele diz, independentemente das intenções do autor. O new cristicism
norte-americano considerava a relação texto-intenção do autor como intentional fallacy, ou “ilusão
intencional” ou “erro intencional”. Em 1969, o filósofo Michel Foucault na conferência Qu’est-ce
qu’un auteur? (O que é um autor?) também tratou dessa questão e concluiu que a atividade do
leitor pode acontecer mesmo que ele nada saiba sobre o autor e suas intenções. O foco principal da
literatura é o texto: dele sairão os sentidos, as relações do interior do texto e do texto com os demais
textos da realidade.
Quanto ao leitor, seu lugar é o da compreensão e da interpretação do discurso literário.
A evolução histórica da importância atribuída ao papel do leitor demonstra que houve, a partir
da segunda metade do século XX, a valorização cada vez mais intensa de sua atividade. Surge em
1967, no discurso de Hans Robert Jauss, na abertura do ano letivo da Universidade de Constança,
na Alemanha, a estética da recepção, uma corrente da teoria que reavalia a história da literatura
a partir dos modos de ler e do desempenho interpretativo do leitor. O aspecto mais significativo
dessa teoria é o de que o texto já contém, na sua organização verbal, a pressuposição do trabalho
do leitor. Em outras palavras, ao escrever a obra o autor já visualiza sua recepção, já compõe no
próprio texto literário uma figura de leitor, prevê as reações dele no modo como descreve, por
exemplo, uma cena romântica, ou de suspense, ou de humor. Há, quando se considera a organi-
zação verbal da obra, um certo controle sobre o modo como o leitor entenderá o texto e reagirá
a ele. Esses componentes de previsão da recepção do texto, outro teórico da estética da recepção,
Wolfgang Iser (1996), denominará leitor implícito (ISER, 1996).

1.1.1 A linguagem como distinção entre discurso literário e não literário


Quanto ao componente língua de uma obra literária, Compagnon explica que, mesmo em
se tratando de neologismos, o texto literário somente será compreensível se houver um conhe-
cimento linguístico mais ou menos comum aos dois sujeitos do diálogo literário: o autor e o lei-
tor. Mais do que uma compreensão linguística do texto (sintaxe, léxico, morfologia, semântica),
o discurso literário fará uso subversivo das normas da língua, buscando a expressão que melhor
se ajuste à rede de sentidos que o texto quer criar. Rede que terá como objetivo a recriação da
língua cotidiana, o estabelecimento de patamares poéticos, que criam uma camada mais densa
Natureza do fenômeno ­literário 13

de significados e, principalmente, coloca esses significados em uma proposital rede de relações


semânticas hiperssignificativa.

Ah! toda alma num cárcere anda presa,


Soluçando nas trevas, entre as grades
Do calabouço olhando imensidades,
Mares, estrelas, tardes, natureza.

(CRUZ E SOUSA, 1981)

Nesse fragmento de poema de Cruz e Sousa, pode-se observar como a descrição da natureza
física (trevas, mares, estrelas, tardes) não se referem à sua forma concreta, mas devem ser entendi-
das como metáforas, figuras que apontam para modos de ser íntimos, da alma. Entre as palavras ali
apresentadas, também se observa uma relação de correspondência de sentidos: as trevas da noite
são as trevas da alma (a dor, o sofrimento, a angústia e outros). O calabouço é mais a prisão do
corpo, que evita que a alma possa subir às imensidades do espírito.
A linguagem cotidiana visa mais a ação e a informação, para atingir o nível da compreensão,
mas dificilmente pede atitude interpretativa, como o faz sempre a literatura.
Vejamos como isso ocorre em textos concretos.
A mesma engenharia que encurtou assombrosamente as distâncias entulhou o
mundo com automóveis que atravancam as vias expressas e cuja fumaça prome-
te esturricar o planeta. Na tentativa de compreender os mistérios que permeiam
uma estranha economia na qual mais e menos não se anulam, muitos se puse-
ram a analisar seus eventos capitais – especialmente a Segunda Guerra Mundial,
aquele que talvez seja o mais importante dos acontecimentos do século XX.
(CASTRO, 2007)

As informações fornecidas são o objetivo principal do texto: as consequências negativas do


avanço tecnológico, a existência de pesquisadores que tentam compreender o fenômeno, a Segunda
Guerra Mundial, como acontecimento histórico importante.
Outra é a intenção de Carlos Drummond de Andrade ao enfocar o mesmo momento históri-
co quando escreve Carta a Stalingrado, sobre um dos episódios épicos, heroicos da Segunda Grande
Guerra: a resistência extrema, até a total destruição da cidade de Stalingrado (hoje Volgogrado),
para não se render ao exército alemão nazista.

Stalingrado...
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
Outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
E o hálito selvagem da liberdade
Dilata os seus peitos que estalam e caem
Enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo
Que nós, na escuridão, ignorávamos.

(DRUMMOND, 1971, p. 130)


14 Teoria da literatura II

Mais do que o assunto, o que sobressai é a sequência de imagens com intenção de exaltar
o foco de resistência (“homens, a face negra de pó e de pólvora”), a poética metáfora (“o hálito
selvagem da liberdade”), o conflito em imagens de morte e vida, contraditórias e humanas (“seus
peitos que estalam e caem” opostos a “outros, vingadores, se elevam”), a sonoridade do jogo de
palavras (pó e pólvora) e a sequência de verbos que dinamiza o verso (estalam, caem, elevam).
Esses procedimentos comprovam que o texto busca outros efeitos que não são apenas os de
informar o leitor.
Além dessas qualidades, a percepção de que a literatura de teor lírico e estético recua ante o
horror da guerra, substituída pelo texto não literário do jornal, mais objetivo e informativo.
Vemos, portanto, na comparação entre os dois textos, aparecerem características e funções
diferentes que permitem compreender que a literatura tem uma natureza própria e uma função
que ultrapassa a notícia ou fato, obrigando o leitor a interpretar o que lê, não apenas a conhecer
o assunto de que o texto trata. Essa diferença exemplifica bem a afirmação de que a “literatura é
tradicionalmente uma arte verbal”.
É exatamente nas palavras – no verbal – que podemos encontrar e valorizar o caráter estético
da literatura. A linguagem entendida como “todo sistema de comunicação que utiliza signos orga-
nizados de modo particular” no dizer do linguista Iuri Lotman (apud PROENÇA FILHO, 1986).
A língua é um sistema de signos e a linguagem é uma atividade produzida pelo falante-escritor
sobre esse sistema. Portanto, a investigação sobre a natureza da literatura não pode, em hipótese
alguma, ignorar a atividade do escritor sobre o sistema da língua. É na linguagem que se revela a
qualidade do texto literário. É dessa atividade, exercida de modo pessoal e particular, que se forma
o estilo individual de cada escritor.
Pode-se concluir que uma das distinções entre o discurso literário e o não literário é que o
primeiro, enquanto objeto linguístico, está apoiado na conotação, na plurissignificação (em que
os sentidos se multiplicam pela força da interpretação do leitor), enquanto o texto não literário é
monossignificativo, de sentido mais fixo e comum a todos os leitores.

1.1.2 A literatura enquanto criação: o autor e o leitor


A partir do século XIX, o critério de valoração do texto literário recebeu impulso com a defe-
sa da ideia de que a busca do novo era um padrão indispensável aos textos denominados literários.
As noções de criatividade, individualidade e subjetividade introduzem o pensamento de que
o texto literário somente mereceria valor se apresentasse qualidades de inovação.

1.1.2.1 O autor
O caráter criativo do texto literário decorre do exercício de liberdade do artista, seja na ques-
tão da linguagem e da multiplicação dos sentidos, seja porque, por estar inserida em uma cultura,
a literatura realiza um movimento duplo de respeito à tradição cultural dos povos e a busca de
romper com essa tradição, instaurando o novo, o diferente, o incomum.
Essa perspectiva dialética pode ser conferida na sucessão dos estilos de época – ou períodos
literários ou tendências estéticas – ao longo da história. Eles correspondem às respostas que a arte
Natureza do fenômeno ­literário 15

literária foi atribuindo ao modo diferente de interpretar o mundo, próprio de cada época histórica.
Esse movimento contínuo e motivado pela necessidade e pela urgência de dar respostas aos desa-
fios do cotidiano, às manifestações do pensamento e aos impulsos do inconsciente e do imaginário,
produz o aparecimento de diferentes gêneros literários, de diferentes modos de expressão narrativa
e poética, de diferente entendimento das funções da literatura, de alterações substanciais dos mo-
dos de escrita e organização dos textos literários.
A criação literária não é, portanto, apenas um desejo individual do escritor, mas está rela-
cionada à ideologia, às condições de produção, às mudanças nas expectativas do público leitor,
ao papel do escritor na cultura, às necessidades humanas de expressão, à capacidade reflexiva
dos criadores.
No início do século XIX, o movimento artístico do Romantismo opôs-se ao Neoclassicismo
do período anterior, não pela necessidade de renovação simplesmente, mas porque não conse-
guiu mais responder aos anseios da sociedade industrial nascente, à nova percepção da natureza
– seja física, seja emocional – da sociedade burguesa, que ascendia ao poder. A linguagem literária
romântica manifesta o desejo de liberdade dessa outra visão de mundo (cosmovisão), exigindo
a quebra dos padrões da língua e da linguagem figurada, almejando uma sintonia maior com a
emergência das novas nacionalidades políticas, da curiosidade por outras terras, culturas e épo-
cas históricas. O Romantismo não apenas reage a essas alterações externas, como também cria
uma nova sensibilidade, mais emotiva, mais questionadora, menos acomodada à tradição, como
ficou comprovado na influência exercida pelo romance As Aventuras do Jovem Werther, de Goethe
(1785), que incentivou, sem o querer, uma sequência trágica de suicídio de jovens, identificados e
se reconhecendo no personagem Werther. O Romantismo criou uma literatura que, por força da
repetição de padrões ao longo dos anos em que teve vigência, formou a sensibilidade emotiva e
rebelde que passou a identificar artistas, leitores e escritores no século XIX. Tome-se o exemplo de
Byron, Victor Hugo, Musset, Álvares de Azevedo e Castro Alves.

1.1.2.2 O leitor
A literatura considerada fenômeno artístico de criação não afeta exclusivamente o artista
criador, mas estabelece exigências também quanto ao processo de sua recepção pelo leitor. Devido
à associação necessária entre autor e leitor (é o leitor que dá vida à obra literária, pois um livro não
lido existe somente enquanto um objeto), qualquer alteração inovadora nos padrões tradicionais
da escrita literária acaba se refletindo na mudança de sua forma de recepção. A quebras das nor-
mas da tragédia clássica francesa do século XVII com a representação do Le Cid (1636), de Pierre
Corneille, deu origem à longa Querela dos Antigos e dos Modernos(1653-1715), uma polêmica tra-
vada entre os intelectuais franceses partidários da escrita clássica e os que acreditavam na alteração
dos padrões dessa escrita, defendendo a modernidade.
Da mesma maneira, o século XX foi pródigo em manifestos e explicações sobre novas ma-
neiras de escrever e ler a literatura; entre eles, o Futurismo (1910), o Cubismo (1924), a Poesia Pau-
Brasil (1924), a Poesia Concreta (1956).
A quebra dos padrões tradicionais da leitura afeta o que a estética da recepção (1967), corren-
te da Teoria Literária que estuda a leitura e os modos de ler, denomina “horizonte de expectativas”,
16 Teoria da literatura II

isto é, modos de ler aprendidos ao longo de experiências anteriores de leitura de textos formam um
modo pessoal de ler. O leitor compreende romances, por exemplo, a partir da aprendizagem cons-
truída em experiências de leituras anteriores de textos semelhantes. Em cada novo texto, o leitor
pretende aplicar seus conhecimentos e ser bem-sucedido na tarefa, aplicando padrões de leitura
conhecidos. Quando o texto é inovador, o leitor reage com desconfiança, insegurança, curiosidade
ou recusa. Há, portanto, da parte do leitor, a necessidade de ajustes do “horizonte de expectativas”
diante dos textos criativos. Uma obra de criação que propõe um estranhamento, termo com que
caracterizavam a literariedade os Formalistas Russos no início do século XX, também tem que ser
entendida como estranha pelo leitor. Assim, o ciclo da criação se completa e se efetiva.

1.2 O discurso literário: características


Depois das explanações sobre a conceituação de literatura como uma arte que se desenvolve
na linguagem e das preocupações do autor com a precisão dos termos e a escolha dos efeitos que
possam vir a ser provocados no leitor, convém estudarmos de modo aproximativo como se verifi-
cam na linguagem os procedimentos que formam a literariedade de um texto.

1.2.1 Características do discurso literário


Para Domício Proença Filho (1986), a distinção entre discurso literário e não literário passa
por um conjunto de características interdependentes. Para esse pesquisador, a literatura se mani-
festa como tal por agregar complexidade, multissignificação, predomínio da conotação, liberdade
na criação, ênfase no significante e variabilidade.

1.2.1.1 A complexidade
Por complexidade, Proença Filho entende a capacidade da literatura ultrapassar a repro-
dução da realidade e atingir espaços de universalidade. Para tal, a literatura obedece a um duplo
movimento: debruça-se sobre si mesma, pensando e expressando seu modo de fazer e criando
essencialmente um puro objeto de linguagem. Nesse caso, o mundo e sua realidade são traduzidos
em forma de palavras e papel, formando uma outra realidade com leis e regulamentos próprios,
os da poética.
O segundo movimento se relaciona com a capacidade da literatura expressar e questionar o
mundo exterior. Esse poder de representação, denominado mimese1, demonstra a ligação do artis-
ta-escritor com a realidade do mundo exterior e da interioridade das pessoas. Essa ligação tende a
ser representada pelo discurso literário, que funciona como resposta às grandes questões, dúvidas
e perturbações da vida.

1.2.1.2 Multissignificação
Também denominada em alguns outros estudos como plurissignificação. Domício Proença
quer entender como tal a força da literatura para criar e amplificar tanto os significantes (por
exemplo, a palavra enquanto letras e sons) e os significados (isto é, as ideias que as palavras

1 Termo utilizado por Aristóteles na obra Poética, do V a.C., com o significado de “imitação”.
Natureza do fenômeno ­literário 17

expressam). A literatura proporciona desvios “mais ou menos acentuados em relação ao uso


linguístico comum”.
Para a potencialização do caráter multissignificativo do discurso literário contribuem as re-
lações estabelecidas pelo texto com o âmbito sociocultural, o momento histórico, a relação com
espaços míticos e arquetípicos da tradição da língua e da arte. Essa intervenção no status da língua
produz uma desacomodação dos sentidos e permite que sejam várias e múltiplas as interpretações
para um mesmo texto.

1.2.1.3 Predomínio da conotação


Quanto ao predomínio da conotação, a reflexão de Proença Filho se detém a expor o quanto
a linguagem literária transcende o sentido informativo para atingir o nível poético e estético da
linguagem, sem que a informação ou a poeticidade existam separadamente. O escritor simulta-
neamente trata da realidade e a ultrapassa para mostrar o quanto a linguagem pode criar sentidos
superiores de significação e beleza.

1.2.1.4 A liberdade de criação


Essa qualidade diz respeito à ruptura de normas historicamente estabelecidas pelo discurso
literário. A inserção de novas formas de dizer, muito mais do que a introdução de novos assuntos,
desloca os marcos da história da literatura. Cada escritor que renova a literatura, faz com que o
todo do sistema seja repensado e realocado.
O novo também desacomoda o leitor e traz a possibilidade de alterações posteriores na li-
teratura de uma época, quando os seguidores do criador original se põem a imitar, no todo ou em
partes, a arte do mestre.

1.2.1.5 A ênfase no significante


Novamente, retorna a discussão sobre a importância da linguagem no texto literário. A cria-
ção verbal está relacionada diretamente à potencialização dos recursos linguísticos colocados à
disposição do escritor: o som, o desenho da letra, a musicalidade da frase, a ambiguidade e mul-
tissignificação de palavras e frases, as relações semânticas estabelecidas pela rede de palavras em
correspondência e entre partes diferentes do texto, a exploração semântica de alterações sintáticas
e outros mais. A poesia, mais do que as narrativas, explora esses recursos linguísticos.
“Pálida à luz da lâmpada sombria” é um verso de um dos sonetos sem título do poeta brasileiro
Álvares de Azevedo. Nele, a repetição da letra e do som do grafema/fonema “l” acentua a cor tênue do
rosto e da luz artificial, ajudando a criar um clima fantasmagórico e de sonho, de realidade atenuada,
que será fundamental para o entendimento de todo o poema. Recai, portanto, sobre o som e a letra o
reforço semântico do verso: o significante torna-se ainda mais material e importante.

1.2.1.6 Variabilidade
A noção de variabilidade integra indissociavelmente o modo de ser da literatura e diz res-
peito às mutações que o discurso literário e seu entendimento sofreram e sofrem em diferentes
culturas e épocas, e na mesma cultura em diferentes épocas da história. A noção de literatura como
18 Teoria da literatura II

discurso com características específicas e próprias somente surge no século XIX. Até essa época,
poesias e narrativas integravam os escritos culturais, indistintamente. “Antes de 1800, literatura e
termos análogos em outras línguas europeias significavam ‘textos escritos’ ou ‘conhecimento de
livros’. [...]. Eram exemplos de uma categoria mais ampla de práticas exemplares de escrita e pensa-
mento, que incluía discursos, sermões, história e filosofia” (CULLER, 1999).
A variação do conceito de literatura se apóia tanto nas mudanças formais quanto na sua
representatividade dentro da(s) cultura(s).
Vimos, portanto, neste capítulo, como a literatura se apresenta enquanto construção linguís-
tica e discursiva diferenciada dos demais textos da cultura, a sua relação com a ideia de criação e
receptividade e quais as características apresentadas pelo discurso literário para se tornar distinto
dos não literários.

Ampliando seus conhecimentos

O livro, seu valor e a análise literária


Beleza, estilo, modernidade, relação com a vida...
A que deve se apegar o crítico?

(TEIXEIRA, 2006)

Há muitos critérios pelos quais o leitor produz o sentido de um texto. A história da crí-
tica literária, nessa acepção, será o conjunto de transformações dos métodos e técnicas
para a construção do sentido. Por livro pode-se entender o objeto que o autor escreveu;
por trabalho de arte, o movimento das imagens desencadeadas pelo ato de leitura. Ler é
formular hipóteses sobre o modo correto de transformar o livro em obra de arte. Assim,
o conhecimento do livro arremata a produção iniciada pelo artista. As obras de arte não
existem sem enquadramento num sistema de referência interpretativa. Falar de uma obra
não é falar apenas dela, mas dos sentidos que se agregaram a ela ao longo de sua existência
como artefato verbal e como evento cultural. A história de um livro é a tradição de sua
leitura. Nesse sentido, toda obra apresenta-se como palimpsesto. Dom Casmurro não foi
escrito exclusivamente por Machado de Assis, mas por todos aqueles que procuraram dis-
cutir seu sentido a partir da estrutura oferecida pelo autor para que a história a fecundasse
com as diversas hipóteses de inclusão ou exclusão semântica. O valor de um livro será dire-
tamente proporcional à força da obra liberada por ele, a qual decorrerá das imprevisíveis
operações que constituem os atos de assimilação e interpretação. A intenção do autor não
se comunica senão como índice abstraído das configurações do texto, que poderá produzir
maior ou menor número de imagens no universo mental do leitor. Como fenômeno de
comunicação, o sentido, apenas latente na face muda do livro sem leitura, depende do leitor,
que promoverá as necessárias associações daquele objeto com as imagens e os conceitos
de sua experiência intelectual e existencial. Conhecer a crítica é dominar o repertório das
relações impostas ao leitor, as quais, obedecendo à configuração retórica do texto, oscilam
conforme as convicções de cada momento. Assim, um só livro poderia, em princípio, conter
toda a história da literatura, posto que muitas poderão ser as alterações de seu significado
Natureza do fenômeno ­literário 19

ao longo dos tempos. A percepção crítica de um livro não foge, teoricamente, à esfera de
conhecimento de qualquer objeto, enquadrando-se, portanto, no horizonte da física e da
gnosiologia. Se a percepção artística consiste na transformação de estímulos físicos em
noções abstratas e se é difícil caracterizar com precisão o valor da mesma coisa em diferen-
tes sociedades, mais difícil será, por certo, determinar as razões da estima de objetos polis-
sêmicos, seja um texto literário, um filme, uma pintura ou uma música. Tradicionalmente,
a produção do sentido artístico de um texto decorre da aproximação dele com a ideia de
beleza, donde resulta a dimensão de seu valor. Segundo uma visão consagrada, as coisas
apresentam qualidades primárias e secundárias. As qualidades primárias não sofrem varia-
ção no processo de seu conhecimento, mesmo que se alterem as condições de percepção.
As secundárias sofrem alteração de acordo com a mudança das circunstâncias em que são
percebidas. No escuro, não se alcança a cor de uma folha verde. O valor artístico de um
objeto será, então, entendido como qualidade secundária, pois depende intrinsecamente
da situação de conhecimento e de juízo. Se a própria física tende a considerar o cérebro
humano como componente necessário ao conceito de cor, o mesmo deve ser pensado sobre
o conceito de belo e de valor artístico, que, pela perspectiva interativa, serão sempre noções
relativas e dependentes de repertórios e de padrões histórico-sociais que integram a poética
cultural dos diversos períodos. Existem críticos que valorizam o livro a partir da observação
de traços de estilo e de recorrências temáticas que se deixam interpretar como projeção da
personalidade do autor. Conhecido como método psicológico, esse procedimento associa
biografia e arte, concebendo, não raro, o artista como um ser doentio, para quem a ativi-
dade criadora funciona como sublimação de distúrbios pessoais. Atenuando a função da
imaginação no processo criativo, tal pressuposto oferece o risco de descaracterizar o poder
de escolha na arte, pois conduz a atenção do crítico para aspectos inconscientes da criação.
Vinculado a este seria o critério daqueles que, no livro, procuram marcas da alma coletiva,
concebida como essência da nacionalidade. Denominada romântica ou nacionalista, tal
hipótese notabilizou-se pela sistematização tradicional do estudo da Literatura Brasileira,
que passou a ser dividida em Período Colonial e Nacional. Pode ser considerada variante do
mesmo princípio a linha de investigação conhecida como crítica ideológica, que examina
possíveis vestígios de classe social na configuração do texto artístico. Por não levar muito
em conta a história das formas literárias e suas dimensões intrínsecas, essa diretriz expõe-se
ao risco de atribuir à ideologia de classe o que pode pertencer ao gênero artístico. Tal seria,
por exemplo, o caso de uma análise que interpretasse o estilo digressivo do narrador de um
romance do Segundo Reinado brasileiro como traço da elite escravista do período.
Há também os críticos que procuram a identidade do texto com certo espírito geral da huma-
nidade. Segundo eles, existiriam algumas constantes universais que independem de lugar e
tempo, captadas somente por grandes artistas. Uma das dificuldades desse tipo de crítica con-
siste em que ela interpreta as assimilações de uma cultura por outra como manifestação da
onipresença da natureza humana, que desconhece a noção de geografia e de história e que,
portanto, surge com igual força tanto em comunidades primitivas quanto em comunidades
desenvolvidas. Ao eleger tal noção como categoria de valor, essa abordagem procura, na prá-
tica, aproximar literaturas tidas como menores daquelas que estabelecem o padrão de quali-
dade europeu. O adjetivo universal tornou-se tão previsível nessa área, que, em vez de descre-
ver qualquer qualidade objetiva do livro, indica, antes, carência de vocabulário crítico. Outra
hipótese valorativa muito difundida é a que se detém no grau de realismo das obras, procu-
rando nelas a fidelidade com que se retratam os homens em sua circunstância social e existen-
cial. Essa posição encontra obstáculo na suposição de que a ideia de realidade, não importa a
forma que possa assumir, impõe-se como principal objetivo de todos os artistas e tendências.
20 Teoria da literatura II

Mesmo aqueles que valorizam o tema da interioridade, da fantasia e do sonho fazem-no em


nome de presumíveis verdades essenciais do indivíduo. O brutalismo de Graciliano Ramos
também se justifica como apego à noção de existência, entendida tanto em dimensão social
quanto psicológica. Assim, o princípio da veracidade, sendo comum à vasta maioria dos artis-
tas e períodos, pode mostrar-se ineficaz na análise valorativa de obras particulares.
Existe ainda a leitura que valoriza a arte pelo critério de atualidade. De acordo com ela, há
artistas dotados de poder divinatório, no sentido de fazer em seu tempo o que será consagrado
em tempos futuros, propriedade algo metafísica que os torna antecipadores de formas e temas
tidos como ótimos na história da arte. Assim, o melhor escritor seria aquele que, superando o
diálogo com os contemporâneos, adiantasse possíveis códigos futuros. É corrente o princípio
de que certos autores ou tendências preparam a constituição de outras tendências e autores,
o que se patenteia pela adoção do prefixo pré, relacionado a nomes de escolas ou indivíduos.
Adota-se, nesses casos, o princípio de que uma unidade menos importante existe em função
de outra de maior relevo, como se observa na designação pré-modernista aplicada a autores
como Lima Barreto ou Monteiro Lobato, cuja principal função seria preparar as conquistas da
arte associada a 1922.
Conforme os princípios interpretativos sumariamente apresentados acima, a obra de arte terá
tanto mais valor quanto mais convincentemente exprima o ideal de perfeição, a psicologia
individual, o espírito de um povo, os interesses de uma classe, a natureza humana, o homem
em suas relações com a vida ou a ideia de modernidade. Apesar de desgastadas, tais hipóte-
ses valorativas ainda se apresentam como modelos possíveis no Brasil. Em perspectiva atual,
talvez fosse conveniente entender o núcleo de suas respectivas matérias como construções
culturais associadas ao Estado, à escola, à igreja, à política ou à ciência, instituições que esta-
belecem (e fazem correr como verdades mais ou menos naturais) o conceito de beleza, de eu,
de nacionalidade, de ideologia, de humanidade, de sociedade e de atualidade, entre outros.
Segundo a visão aqui proposta, a obra de arte literária, sendo fato de linguagem ou ocorrência
semiótica, será considerada como manifestação do discurso social de seu tempo, desde que
entendido como categoria conceitual. Assim, a crítica deveria saber relacionar o discurso sin-
gular de um texto com a matriz discursiva de que ele extrai sua fala, estabelecendo homologias
entre a configuração específica do livro e a generalidade dos enunciados que ela incorpora,
seja para corroborar, ratificar, recusar ou criticar. O crítico atual não deveria, portanto, limi-
tar-se à procura da possível identidade de um poema com o ideal de beleza, de uma imagem
com seu autor, de um romance com seu povo, de um conto com a classe que o compôs, de
um verso com a humanidade, de uma descrição com o objeto descrito ou de um autor com a
antecipação de outro. Em vez de estabelecer esse tipo de relação, o crítico deverá, sobretudo,
reconhecer na obra as estruturas artísticas externas de que ela se apropria ou com as quais
dialoga, tais como a noção de gênero literário, de estilo, de formas, espécies, procedimentos,
tradições e tópicas. Ao lado de inúmeros outros exemplos como esses, deve-se ter em conta,
ainda, o debate cultural de que a obra participa e o conceito de ponto de vista do emissor, que
determina o tom da elocução e de cuja percepção depende a correta classificação da modali-
dade de imitação operada. Nesse sentido, seria igualmente desejável que o crítico conhecesse
as doutrinas poéticas e os manifestos de escola, em que se sistematizam os diversos conceitos
de arte, que, inevitavelmente, se alteram com o tempo. Oswald de Andrade, a partir de certo
momento, deixou de gostar de Olavo Bilac; em compensação, o segundo negaria o estatuto de
poeta ao primeiro.
Natureza do fenômeno ­literário 21

Atividades
1. Escolha um tema (amizade, cultura, morte, amor, ambição etc.) e selecione três textos lite-
rários e três textos de revistas/jornais ou científicos. Compare o modo como tratam o tema
e escreva suas conclusões.

2. Pesquise em livros de Teoria da Literatura, História Cultural, Artes e dicionários e em textos


da internet diferentes conceitos para o termo literatura. Compare esses conceitos. Selecione
os que lhe parecerem mais apropriados e faça um quadro ou gráfico das ocorrências mais
frequentes. Comente os resultados em texto escrito.

3. Entreviste cinco pessoas sobre o sentido e a função que conferem à literatura. Reproduza as
respostas por escrito e compare-as com as ideias expostas neste capítulo. Comente o resul-
tado por escrito.
2
Gêneros literários: conceituação histórica

O estudo dos gêneros literários é fonte de permanente reflexão porque implica o conví-
vio com diferentes formas de escrever a literatura e de compreender as nuances dos diferentes
gêneros ao longo da história, bem como com a mudança e transformação da escrita literária.
Na contemporaneidade, a questão dos gêneros literários desperta muita polêmica, porque, após
as sucessivas alterações e experimentos, a literatura, hoje, admite uma pluralidade de formas e,
sobretudo, uma intensa e múltipla mescla de gêneros, que resulta em mudanças profundas na
clássica divisão em três gêneros (o lírico, o épico ou narrativo, e o dramático). Procuraremos,
por essa razão, apresentar a evolução dos gêneros, a partir da visão clássica da Antiguidade,
chegando até a conceituação contemporânea.

2.1 O que é gênero literário?


As obras literárias apresentam semelhanças no modo como se apresentam discursivamente
ou em suas estruturas ou em suas finalidades ou nos efeitos pretendidos na sua leitura. Esses quatro
aspectos (discurso, estrutura, finalidade e efeitos no leitor) concorrem para que os textos literários
pertençam a agrupamentos distintos que os explicam e, simultaneamente, os normatizam e restrin-
gem. Assim, pode-se verificar como os poemas se assemelham formalmente, seja por conter rimas,
por se dividir em estrofes, ou por sua extensão. Também os textos corridos, em prosa, podem ser
agrupados por suas qualidades formais evidentes, como a extensão, o modo de narrar, a construção
dos diálogos. São características observáveis de imediato. No entanto, outras podem ser de mais
difícil localização. O estudo que verifica e classifica essas diferenças é o dos gêneros literários.
Em 1962, Wellek & Warren defendiam que uma definição de gênero poderia ser
um agrupamento de obras literárias, teoricamente baseado tanto na forma ex-
terior (metro e estrutura específicos), como também na forma interior (atitu-
de, tom, finalidade – mais grosseiramente, sujeito e público). (1971, p. 293)
Existiriam, para eles, três gêneros: o lírico, o épico e o dramático. Cada um deles
seria dividido em formas fixas, como a ode, o romance, a crônica, o soneto e
outros mais.

A etimologia do termo nasce no latim generu(m) que, segundo Massaud Moisés (1997),
significa família, raça. Já para Angélica Soares (1989) a palavra proveniente da mesma língua latina
genus, -eris, significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie, geração. Em qualquer das duas
origens, pode-se perceber a ideia de agrupamento, de coletividade. Cremos ser esta a marca mais
importante a ser considerada. Ao se tratar dos gêneros literários, será dado relevo ao conjunto de
textos que apresenta características semelhantes.
Outro aspecto diz respeito ao caráter histórico desses agrupamentos. Isto quer dizer que,
ao longo dos séculos, houve alteração na composição dos gêneros, nasceram novos e desapa-
receram alguns deles. O que indica uma natureza ligada à evolução do homem e da sociedade.
24 Teoria da literatura II

E. Deschamps afirmava que, “para julgar a prosa, é preciso espírito, razão e erudi-
ção [...]; enquanto que, para julgar a poesia é preciso o sentimento das artes e da imaginação
e são duas qualidades raras entre leitores e romancistas.” (CHASSANG; SENNINGER, 1958).
Essa concepção de exigências diferentes para formas diferentes de expressão literária – a prosa
e a poesia – já indica que há diferenças de natureza entre elas: a primeira propõe um texto com
maior racionalidade e a segunda usa preferencialmente a imaginação. No entanto, vamos encon-
trar exceções a essa visão generalista.
Os estudos críticos e também os valorativos servem-se dessas categorias ou espécies da li-
teratura para avaliar e distinguir os textos. Um escritor, ao escrever, também se reporta (embora
nem sempre com conhecimento acadêmico e teórico profundo) a essas espécies no momento de
compor e as normas que as regem funcionam como balizas, como marcas de direcionamento para
o texto que está sendo criado. Há escritores e obras que, ao contrário, conhecendo as diferentes
espécies, procuram desfazê-las, contradizê-las, renová-las ou rejeitá-las.
É o caso, por exemplo, da criação do drama romântico, quando Victor Hugo, no “Prefácio”
da peça Cromwell, em 1827, recusa os modelos da dramaturgia dos períodos históricos anteriores
(neoclassicismo e barroco) e propõe uma reformulação da tragédia clássica, defendendo o surgi-
mento do drama, uma peça teatral autônoma que incluiria elementos da tragédia e da comédia,
em atendimento à nova sociedade, ao homem renovado do Romantismo e à necessidade de uma
forma de expressão diferenciada.Também é o caso da estética pós-moderna, a partir dos anos 1950,
que defende a maior autonomia das formas literárias, podendo haver, inclusive, em uma mesma
obra a existência de dois ou mais gêneros. Assim, a narrativa (gênero épico) tem condições de in-
cluir poemas (gênero lírico) e trechos dialogados, sem a presença do narrador (gênero dramático),
além de outros gêneros textuais não literários como o jornal, a publicidade, verbetes de dicionário
e até mesmo textos de outras linguagens, como o cinema, a fotografia, o desenho e outros.
Os gêneros literários são, portanto, formas textuais que se agrupam por similaridade e que,
partindo de um núcleo comum, sofrem alterações, ao longo do tempo, em atendimento às necessi-
dades de expressão dos escritores de diferentes gerações.
Para averiguar sua permanência, ou não, vamos verificar como se desenvolveu a história dos
gêneros literários.

2.2 O conceito na Antiguidade clássica e medieval


A primeira informação sobre a existência de gêneros literários vem do filósofo grego Platão
(428 a.C-347 a.C), que registrou no livro II da obra República (394 a.C.) a diferença entre o modo
de construir a comédia e a tragédia – por imitação; os ditirambos1 pela exposição do poeta e
a poesia épica e textos afins, que apresentaria uma mistura das duas composições anteriores.
Dessa tripartição, surgiriam mais tarde, respectivamente, o gênero dramático, o lírico e o épico,
assim apresentados provavelmente no período do Romantismo no século XIX.

1 O ditirambo era uma canto de louvor a Dioniso, o deus do teatro, do vinho e da dança.
Gêneros literários: conceituação histórica 25

No entender de Angélica Soares:


Como Platão atribuísse às artes uma função moralizante, a classificação das obras
literárias através de seu conceito de imitação (o poeta, como o pintor, operava
um terceiro grau de imitação, pois imitava a obra do artesão que, por sua vez,
já era imitação das formas singulares, imperecíveis e imutáveis, que compunham
o Mundo das Ideias) serviria de base à condenação que faz aos poetas que, ao con-
cederem autonomia à voz das personagens, em nada contribuíam para o projeto
político de edificação de uma polis ideal. (SOARES, 1989)

Observamos nessa avaliação platônica sobre a função do poeta o quanto a poesia – e por
extensão a literatura – atua na sociedade como uma atividade à margem dos procedimentos e
finalidades utilitárias, servindo a uma outra concepção de papel social. Ao mesmo tempo, essa
perspectiva desmerecedora da arte poética acaba contaminando a criação literária, como até hoje
podemos verificar quando costuma se opor às ditas ciências exatas (engenharia, arquitetura, mate-
mática, economia) e às ciências do homem e à arte.
Os diferentes tipos e modos de representar a realidade por meio da arte nascem, portanto,
sob o signo da exclusão e da marginalização social. Os gêneros literários nesse momento da his-
tória da humanidade são vistos apenas como critérios formais, já que a expressão artística é de
pouco valor e fica reduzida a um exercício de imitação em terceiro grau, sem qualidade artística
ou expressiva.
Um pouco desse preconceito foi combatido por Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), que procurou
atender a critérios mais apropriados ao objeto artístico e sistematizou melhor as formas literárias.
Em sua obra Poética (que não chegou a concluir) ele se refere às seguintes formas: a epopeia, a tragé-
dia, a comédia, o ditirambo, a aulética2 e a citarística3, privilegiando, porém, as três primeiras.
Aristóteles retoma a ideia de que a arte consiste na imitação (mimesis ou mimese) e o
prazer do leitor e do espectador está em reconhecer como o artista consegue representar bem
até mesmo o feio, o repugnante, o horrível. “A ênfase na diferença entre o mundo empírico e a
realidade da arte leva o filósofo [Aristóteles] a valorizar o trabalho poético e a se voltar para o
estudo de seus modos de constituição, a fim de detectar as diferentes modalidades ou gêneros da
poesia”, segundo Angélica Soares (1989, p.10).
Aristóteles estabeleceu a diferença entre os gêneros baseadas nos meios com que imitam,
nos objetos que imitam e na maneira com a qual imitam a realidade. Em relação aos meios, aponta
o ritmo, o metro e o canto, empregados isolada ou conjuntamente. O teatro pode contê-los todos,
mas não a epopeia ou a narrativa. Nesta, predomina o metro e o ritmo. Em relação ao objeto imi-
tado, a comédia “propõe-se imitar os homens, representando-os piores, a outra [a tragédia] me-
lhores do que são na realidade.” Para o filósofo, a comédia se preocupa em apresentar os vícios, e a
tragédia, as virtudes. Quanto à maneira de imitar, afirma que “é possível imitar os mesmos objetos
nas mesmas situações, numa simples narrativa ou pela introdução de um terceiro [o narrador],
como faz Homero, ou insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outra personagem, ou
ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem elas

2 A aulética, entre gregos e romanos, era a arte de tocar aulo, uma espécie de flauta.
3 Gênero de música ou poesia destinada a ter acompanhamento de cítara, instrumento de cordas, derivado da lira.
26 Teoria da literatura II

próprias” (ARISTÓTELES, 1964). Vemos aí descrita a classificação que atualmente fazemos em


narrador de terceira pessoa, narrador em primeira pessoa e texto dramático dialogado.
Esse filósofo grego estudou a extensão da ação dramática: “a tragédia é a imitação de uma
ação completa formando um todo e de certa extensão” (ARISTÓTELES, 1964). Para constituir um
todo, é necessário que a peça tenha começo, meio e fim. O que determina a extensão é a natureza
do assunto e o grau de atenção de que o espectador é suscetível. Isto significa a indeterminação do
tempo ou do volume do texto, substituídos pela atenção do leitor e o tipo de assunto escolhido. Essa
compreensão terá vigor na história da literatura até o século XX.
Entre os elementos que compõem uma ação complexa, Aristóteles (1964) trata da peripécia4
e o reconhecimento como o fato que “faz passar da ignorância ao conhecimento, mudando a amizade
em ódio ou inversamente nas pessoas [...] ou ficar sabendo que uma pessoa fez ou não fez determi-
nada coisa” (ARISTÓTELES, 1964).
Também tratou da unidade da ação e da diferença entre ação simples – “aquela cujo desen-
volvimento permanece uno e contínuo e na qual a mudança não resulta nem de peripécia, nem de
reconhecimento” (ARISTÓTELES, 1964) – e complexa – a que tem na peripécia e no reconheci-
mento a alteração no destino do protagonista. Também tratou da relação entre o gênero literário
e o personagem, afirmando que os Princípios estruturais das narrativas e das peças de teatro con-
servam, até hoje, a conceituação estabelecida por Aristóteles no quarto século antes da era cristã.
Para o escritor latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.), na Carta aos Pisões, é importante que os
poetas (palavra empregada indistintamente para poesia, narrativa ou teatro, à época todos escritos
em versos) respeitem “o domínio e o tom de cada gênero literário” e que “guarde cada gênero o
lugar que lhe coube e lhe assenta” (HORÁCIO, 1981). Também é nesta carta que Horácio admite
a possibilidade de transposição dos gêneros ao afirmar que “É difícil dar tratamento original a
argumentos cediços, mas, a ser o primeiro a encenar temas desconhecidos, ainda não explorados,
é preferível transpor para a cena uma passagem da Ilíada” (HORÁCIO, 1981). Há, portanto, nesse
argumento mais do que a recusa de assuntos novos: a possibilidade de transpor do gênero épico
(Ilíada) para o teatro abre a possibilidade de alterações significativas na concepção normativa de
gênero literário. Também é dele a concepção da função específica da literatura: “Os poetas desejam
ou ser úteis, ou deleitar, ou dizer coisas ao mesmo tempo agradáveis e proveitosas para a vida”
(HORÁCIO, 1981). A visão utilitária da arte – que fizera Platão recusar a presença de poetas em
seu projeto de uma nova República – soma-se à de entreter (deleitar) e até a possibilidade de fundir
as duas, com resultados importantes para o leitor.
A herança clássica na Idade Média recebe poucas complementações de relevância, à exceção
de Dante Alighieri, que, “na Epistola a Can Grande Della Scala, classifica o estilo em nobre, médio
e humilde, situando-se no primeiro a epopeia e a tragédia, no segundo a comédia e no último a ele-
gia” (SOARES, 1989). Percebe-se a permanência da epopeia e da tragédia em nível elevado, como
em Aristóteles. A elegia, entretanto, faz sua entrada entre os gêneros literários, anunciando a inclu-
são futura do gênero lírico, não necessariamente acompanhado de música (como a lira, a flauta e

4 Mudança de ação no sentido contrário ao que foi indicado e sempre em conformidade com o verossímil e necessário.
Gêneros literários: conceituação histórica 27

a cítara), mas como texto verbal. Massaud Moisés, ao comentar a pequena quantidade de estudos
sobre os gêneros na Idade Média, informa que, na prática literária, há um surto criativo de “va-
riedades formais novas”: na poesia lírica, novas organizações das estrofes, a rima e a metrificação
ganham em variedade, surge o romance em prosa e o teatro se moderniza (MOISÉS, 1997). Esse
movimento criador desmente antigas interpretações do período histórico medieval como uma ida-
de de trevas, sem avanços ou alterações.

2.3 O conceito no Renascimento


O Renascimento, a partir do século XVI, ao contrário do período medieval, trouxe contri-
buições muito relevantes à consolidação dos gêneros literários e, sobretudo, à quantidade e qua-
lidade dos estudos teóricos. Seus representantes, denominados humanistas, foram pródigos em
normatizar as ideias da Antiguidade clássica, retomando e reafirmando os conceitos expressos
principalmente por Aristóteles e Horácio. Não ficaram, porém, apenas nos aspectos reprodutivos
da teoria, agregando reflexões próprias e as novidades criadas na Idade Média. “No geral, enten-
diam os gêneros como fórmulas fixas, sustentadas por doutrinas e regras inflexíveis, às quais os
criadores de arte deveriam obedecer cegamente” (MOISÉS, 1997, p. 242).
Esses teóricos adotaram estritamente o conceito de mímesis e passaram a legislar a produ-
ção literária, considerando que a imitação da natureza é o objeto da arte, e não a sua reapresen-
tação por meio da recriação em linguagem artística. Estabeleceram um critério de valoração em
que, quanto mais a obra se aproximasse dessa cópia da natureza, mais perfeita ela seria. É de se
imaginar, portanto, que a criação literária se submete a normas que garantam essa reprodução fiel.
Em relação aos gêneros literários, o resultado foi a retomada da divisão tripartite de Platão
e os valores a ela atribuídos por Aristóteles: tragédia e epopeia como gêneros elevados e a comédia
como gênero inferior: “entendiam os gêneros como fórmulas fixas, sustentadas por doutrinas e
regras inflexíveis, às quais os criadores de arte deveriam obedecer cegamente. Entretanto, deve-se
às teorias poéticas italianas a inclusão da lírica como o terceiro gênero ao lado da épica e do teatro”
(MOISÉS, 1997, p. 42). A lírica, substituindo o ditirambo, apresenta algumas formas fixas, como o
soneto, a ode, a canzone, o rondó e a balada.
Um dos nomes mais importantes nesse momento da história dos gêneros literários é Nicolas
Boileau (1636-1711), que, em 1674, escreve Arte Poética, espécie de compêndio de normas do
pensamento neoclássico a respeito dos gêneros. Ele “localiza [...] o valor da arte na razão, pela qual
acreditava que se alcançassem o bom-senso, o equilíbrio, a adequação e a clareza: condições ne-
cessárias à poesia” (SOARES, 1989, p.13). Em 1693, esses postulados normativos são questionados
pela Querela dos Antigos e dos Modernos (Querelle des Anciens et des Modernes), em que escritores
ditos modernos defendem sua maior liberdade de criação, fugindo às regras e normas.

2.4 O conceito no Romantismo


A reação ao período racional e normativo do Renascimento se consolidou a partir do século
XVIII com os pré-românticos alemães do movimento de Tempestade e Ímpeto (Sturm und Drang),
28 Teoria da literatura II

que, insistindo no caráter mutável dos gêneros nos sucessivos períodos históricos e no desapareci-
mento dos “esquemas estruturais repetitivos” (WELLEK; WARREN, 1971), defenderão a necessi-
dade de inovação nas obras literárias.
A mudança dos públicos leitores, a valorização da individualidade e as rápidas modificações
na preferência de formas literárias levam à elasticidade das classificações e ao rápido aparecimento
de novas espécies de textos. Sobretudo, verifica-se o desenvolvimento e multiplicação de narra-
tivas, em especial do romance, que mantém as características básicas do antigo gênero épico e o
substitui. O Romantismo favorecerá o aparecimento do romance histórico (devido ao forte acento
nacionalista que pode conter) e do romance gótico, como “um conjunto de estereótipos (descriti-
vo-acessórios e narrativos, por exemplo, castelos em ruínas, horrores católico-romanos, retratos
misteriosos, passagens secretas a que conduzem painéis que deslizam, raptos, emparedamentos,
perseguições através de florestas sombrias)” (WELLEK; WARREN, 1971, p. 294). No gênero dra-
mático, a principal contribuição é o aparecimento do drama, conforme foi anunciado e caracteriza-
do pelo escritor francês Victor Hugo no prefácio de Cromwell, de 1827. Nesse texto, o dramaturgo
francês defende o hibridismo do gênero dramático, justificando sua posição pela comparação com
a vida real, que é feita de riso e pranto, belo e feio, grotesco e sublime. O drama vem a ser, portanto,
a expressão no teatro da nova classe burguesa, com personagens saídas da realidade presente, com
linguagem coloquial e com a liberdade de apresentação de situações dramáticas, muito ao gosto do
período estético do Romantismo.
A moderna teoria dos gêneros é claramente descritiva. Não limita o número
das espécies possíveis e não prescreve regras aos autores. Admite que as espé-
cies tradicionais possam “misturar-se” e produzir uma espécie nova (como a
tragicomédia). Reconhece que os gêneros podem ser construídos tanto numa
base de englobamento ou “enriquecimento” como de “pureza” (isto é, gênero
tanto por acréscimo como por redução). Em lugar de sublinhar a distinção en-
tre as várias espécies, interessa-se – à maneira da preocupação romântica pelo
caráter único de cada “gênio original” e de cada obra de arte – em descobrir o
denominador comum de uma espécie, os seus processos e objetivos literários.
[...] O prazer que uma obra de arte literária instila no homem é composto por
uma sensação de novidade e por uma sensação de reconhecimento. (WELLEK;
WARREN, 1971, p. 297)

Esse foi um importante passo para a discussão a respeito da concepção e das classificações
dos gêneros literários porque instaurou a possibilidade de revisão dos conceitos, da introdução
no painel das diferentes espécies literárias de novas formas e de questionamento de classifica-
ções dogmáticas, já que o princípio da individualidade estabelecia a liberdade de criação e de
escolhas. O espírito romântico na criação literária espalha-se, portanto, para o estudo e crítica
dos gêneros literários.

2.5 Conceitos ao longo dos séculos XIX e XX


Destaca-se após o período romântico a contribuição do crítico francês Ferdinand Brunetière
(1849-1906), quem procurou relacionar os gêneros literários e a teoria evolucionista de Spencer:
o resultado foi o conceito de que os gêneros se assemelhavam aos seres vivos, ou seja, nasciam,
Gêneros literários: conceituação histórica 29

desenvolviam-se e morriam, sujeitos ao ciclo vital que rege qualquer ser vivo. Dava-se, assim, uma
explicação científica para o aparecimento e desaparecimento de espécies e gêneros. Essa visão evo-
lucionista encontrou forte reação no filósofo italiano Benedetto Croce (1886-1952), que concebia
“todo conhecimento ou é intuitivo ou lógico, produzindo respectivamente imagens ou conceitos.
Ao conhecimento intuitivo se liga a ideia de expressão. Intuir era expressar ações que nos liberta-
riam da submissão intelectualista, que nos subordina ao tempo e ao espaço da realidade” (SOARES,
1989, p. 15). Há, portanto, nesse entendimento da criação literária, por imagens, um desligamento
da realidade empírica, o que resulta na supervalorização do indivíduo criador. Como consequên-
cia, a literatura se vincula muito mais ao imaginário do que às leis físicas da natureza. Essa aproxi-
mação com a criação subjetiva contraria as classificações de gêneros e de espécies literárias.
Dessa discussão a respeito das relações da literatura com a realidade empírica ou com o ima-
ginário levam à duas direções diferentes na interpretação dos gêneros literários:
1. realista, pressupõe que os gêneros à semelhança das Ideias platônicas, consti-
tuem realidade única, perene e pré-existente;
2. nominalista, encara as Ideias e os gêneros como simples denominações da
verdadeira realidade, as obras literárias. [...] Wladislaw Folkierski [indagou]
[...]: “os gêneros literários são preexistentes às obras ou , ao contrário, abs-
trações extraídas de algumas obras-primas mais geralmente imitadas? Se
não são preexistentes, terão todavia influência direta nas obras, nos autores,
na crítica? Constituem um código suscetível de constranger a liberdade do
escritor?” (MOISÉS, 1997, p. 245, grifos do autor)
Estava instalada a discussão e os partidários de um e outro lado foram se apresentando ao
longo do final do século XIX e ao longo do século seguinte. Com o surgimento das pesquisas e
reflexões teóricas dos formalistas russos, no começo do século XX, aprofundou-se o conceito de
que as obras literárias têm vida e leis próprias, que permitem reconhecer e classificar os textos por
sua literariedade, isto é, pela natureza própria e específica da literatura. Parte dessa natureza pode
ser localizada no conceito de estranhamento, de Chklovski. Isto é, a obra literária propriamente
considerada é aquela que, em relação às demais, consegue distinguir-se como um corpo estranho,
novo, diferente das expectativas e da história tradicionais da evolução da literatura. Esse destaque é
um dos ingredientes da obra que causa estranhamento ao leitor e à série literária em que se localiza.
Outro formalista, Tomachevski, “consideraria como traços dos gêneros um grupamento em
torno de procedimentos perceptíveis. Esses traços seriam dominantes na obra, embora houvesse
outros procedimentos necessários à criação do conjunto artístico” (SOARES, 1989, p. 17). Entre
esses procedimentos estariam a temática, os motivos e a linguagem poética figurada. O que valerá
para a significação e abrangência dos gêneros literários se localiza na dimensão histórica. Em con-
sequência, sempre estará presente no conceito de gênero a dimensão histórica.
Outra contribuição importante para a teoria dos gêneros vem de Mikhail Bakhtin, linguista
e teórico russo, que salienta o papel da percepção, isto é, das expectativas do leitor na relação com
a obra literária e com o modo com que ela filtra a realidade empírica. O agrupamento de obras
que tivessem procedimento semelhante as incluiria em gênero semelhante, do mesmo modo que a
percepção do leitor seria alterada ao longo do tempo pelas mudanças que o contexto em que vivia
poderia atuar sobre ele, e manter ou modificar sua percepção de cada gênero. “Assim, os gêneros
30 Teoria da literatura II

apresentariam mudanças, em sintonia com o sistema da literatura, a conjuntura social e os valores


de cada cultura” (SOARES, 1989, p. 18).
O francês André Jolles trabalhou com formas literárias orais e primitivas, a que chamou
fundamentais ou formas simples. Entre elas, a legenda, a saga, o ditado, o mito, a adivinha, o caso,
o memorável, o conto, o chiste. Essas nove categorias, pouco valorizadas até o aparecimento de
sua pesquisa, descrita no livro As Formas Simples, ganharam a partir de seus estudos um lugar
na classificação dos gêneros e espécies e motivaram muita discussão sobre o valor dessas novas
formas narrativas.
Outro estudioso com valiosa colaboração para a discussão e definição dos gêneros literários
foi Emil Staiger, que, na obra Conceitos Fundamentais da Poética, em 1946, vai defender a ideia de
uma base tripartite: lírica, épica e dramática, mas com a possibilidade de que as marcas estilísticas
de cada gênero pudessem existir em quaisquer textos, sem a restrição deste ou daquele gênero.
Assim, os termos e os procedimentos de escrita épicos, dramáticos ou líricos podem ser considera-
dos adjetivos, ou seja, é possível encontrarmos na história da literatura obras que, embora perten-
centes a um gênero maior, apresentam característica dos outros dois. Assim, podem-se descobrir
em epopeias (narrativas) momentos líricos, ou em poemas categorias das narrativas, ou em peças
de teatro procedimentos da poesia e das narrativas. Houve, assim, uma ampliação do conceito de
gênero, alargando as possibilidades de escrita e de valorização do literário.

2.6 A perspectiva da atualidade


Uma contribuição marcante para os estudos a respeito dos gêneros literários veio de
Northrop Frye, na obra Anatomia da Crítica, de 1957. A primeira modificação foi a criação de um
quarto gênero; além da lírica, da épica (epos) e da literatura dramática, haveria a ficção, diferente
da épica por ser contínua, enquanto esta seria episódica, ou seja, construída pela união de quadros
mais ou menos independentes. Segundo Angélica Soares (1989, p. 19-20):
Cada um dos quatro gêneros se liga a uma forma própria de mímesis: o epos é
apresentado pela mímesis da escrita assertiva, o drama pela mímesis externa ou
da convenção, a lírica pela mímesis interna. Quatro também são as modalidades
da ficção: o romanesco (romance), o romance (novel), a forma confessional e
a sátira menipeia ou anatomia. Enquanto o romanesco não busca a criação de
“gente real”, o romance (novel) apresenta personagens que trazem suas másca-
ras sociais. A forma confessional, por sua vez, não pode ser confundida com
autobiografia. O romancista ocupa-se da análise exaustiva das relações huma-
nas, enquanto o satirista menipeu, voltado para termos e atitudes intelectuais,
prende-se às suas peculiaridades.

Essa nova proposta não encontrou eco na crítica literária recente, em que tem se discutido
com ênfase a questão dos gêneros para negá-la, dada a explosão de formas novas surgidas a partir
dos anos 1950 com o advento do pós-moderno ou do hipermoderno. Para avaliar as produções
literárias do passado, principalmente dos períodos em que imperavam normas e preceitos, o co-
nhecimento dos gêneros permite avaliar os textos que romperam, ou não, com esses padrões de sua
época. Já para a produção contemporânea, há duas posições diferentes. A primeira é a da negação
Gêneros literários: conceituação histórica 31

de toda e qualquer norma ou forma preestabelecida. A segunda é a que põe sob a responsabilidade
do leitor reconhecer, ou não, o gênero literário a que a obra faz referência e, a partir dessa cons-
tatação, avaliar a importância dessa relação. A estética da recepção, modo crítico que valoriza a
participação do leitor como construtor dos sentidos do texto e que tem em Hans-Robert Jauss um
de seus fundadores, trata os gêneros literários como uma das possibilidades de estabelecimento de
marcos históricos da literatura, ou seja, com reflexos na própria localização dos autores na história
da literatura. Também valoriza o modo variável com que o leitor reconhece e administra essas ca-
racterísticas no momento de interpretação e valorização da obra que lê.
Qualquer que seja a posição adotada, o estudo dos gêneros literários permite uma melhor
compreensão do texto e, sobretudo, permite distinguir o quanto o autor se aproxima ou afasta dos
modelos, ou valorizar a consciência crítica do autor em relação ao gênero em que sua obra venha
a se situar, inovando, usando os limites metaliterariamente, isto é, tirando proveito da exposição,
de contradições e do debate dentro do próprio texto literário que escreve.

Ampliando seus conhecimentos

A teoria estético-recepcional
(JAUSS, 1994, p. 41-44)

A teoria estético-recepcional não permite somente apreender sentido e forma da obra literária
no desdobramento histórico de sua compreensão. Ela demanda também que se insira a obra
isolada em sua série literária, a fim de que se conheça sua posição e significado histórico no
contexto da experiência da literatura. No passo que conduz de uma história da recepção das
obras à história da literatura, como acontecimento, esta última revela-se um processo no qual
a recepção passiva de leitor e crítico transforma-se na recepção ativa e na nova produção do
autor – ou visto de outra perspectiva, um processo no qual a nova obra pode resolver proble-
mas formais e morais legados pela anterior, podendo ainda propor novos problemas.
De que maneira pode a obra isolada, fixada numa série cronológica pela história positivista
da literatura e, desse modo, reduzida exteriormente a um factum, ser trazida de volta para o
interior de seu contexto sucessório histórico e, assim, novamente compreendida como um
acontecimento? A teoria da escola formalista pretende solucionar esse problema – como já
se disse aqui – por intermédio de seu princípio da evolução literária. Segundo tal princípio,
a obra nova brota do pano de fundo das obras anteriores ou contemporâneas a ela, atinge,
na qualidade de forma bem-sucedida, o ápice de uma época literária, é reproduzida e, assim,
progressivamente automatizada, para então, finalmente, tendo já se imposto a forma seguinte,
prosseguir vegetando no cotidiano da literatura como gênero desgastado. Caso se intentasse
analisar e descrever uma época literária de acordo com esse programa – que, ao que eu saiba,
até hoje jamais foi aplicado –, poder-se-ia esperar de tal empreitada um quadro que, em mui-
tos aspectos, resultaria superior ao oferecido pela história convencional da literatura. Tal expo-
sição estabeleceria relações entre as séries fechadas em si mesmas – as quais coexistem na
história convencional sem nenhuma conexão a vinculá-las, emolduradas, quando muito, por
um esboço de história geral (ou seja, séries de obras de um mesmo autor, de uma escola ou de
um estilo)–, bem como relações entre as séries de diferentes gêneros, revelando assim a inte-
ração evolutiva das funções e das formas. As obras que aí se destacariam, se corresponderiam e
32 Teoria da literatura II

se substituiriam, figurariam, então, como momentos de um processo que não precisa mais ser
construído tendo em vista um ponto de chegada, pois, enquanto autogeração dialética de novas
formas, ele não necessita de nenhuma teleologia. Vista dessa maneira, a dinâmica própria da
evolução literária ver-se-ia ademais, isenta do dilema dos critérios de seleção: o que importa
aqui é a obra na qualidade de forma nova na série literária, e não a autorreprodução de for-
mas, expedientes artísticos e gêneros naufragados, os quais se deslocam para o segundo plano,
até que um novo projeto formalista de uma história da literatura que se vê como evolução e,
paradoxalmente, exclui todo desenvolvimento orientado, o caráter histórico de uma obra seria
sinônimo de seu caráter artístico: tal e qual o princípio que afirma ser a obra de arte percebida
contra o pano de fundo de outras obras, o significado e o caráter evolutivo de um fenômeno
literário pressupõem como marco decisivo a inovação.
A teoria formalista da evolução literária é decerto a tentativa mais importante no sentido
de uma renovação da história da literatura. A descoberta de que também no domínio da
literatura as mudanças históricas se processam no interior de um sistema, a intentada fun-
cionalização do desenvolvimento literário e, não em menor grau, a teoria da automatização
são conquistas das quais não devemos abrir mão, ainda que a canonização unifacetada da
mudança necessite de correção. A crítica já apontou suficientemente as fraquezas da teo-
ria formalista da evolução: o mero contraste ou variação estética não bastaria para expli-
car o desenvolvimento da literatura; a questão acerca do sentido tomado pela mudança das
formas literárias teria permanecido irrespondida; a inovação, por si só, não constituiria ainda
o caráter artístico; e, finalmente, não se teria, por sua simples negação, abolido a relação entre
evolução literária e mudança social. [...]
A descrição da evolução literária como uma luta incessante do novo contra o velho, ou como
alternância entre canonização e automatização das formas, reduz o caráter histórico da lite-
ratura à atualidade unidimensional de suas mudanças e limita a compreensão histórica à
percepção destas últimas. Contudo, as mudanças da série literária somente perfazem uma
sequência histórica quando a oposição entre a forma velha e a nova dá a conhecer também
a especificidade de sua mediação. Tal mediação pode ser definida como o problema “que
cada obra de arte coloca e lega, enquanto horizonte das ‘soluções’ possíveis posteriormente a
ela”. Entretanto, a descrição da estrutura modificada e dos novos procedimentos artísticos de
uma obra não remete necessariamente de volta a esse problema e, portanto, à sua função na
série histórica. A fim de determinar esta última – isto é, a fim de conhecer o problema legado
para o qual a obra nova na série literária constitui uma resposta –, o intérprete tem de lançar
mão de sua própria experiência, pois o horizonte passado da forma nova e da forma velha,
do problema e da solução, somente se faz reconhecível na continuidade de sua mediação,
no horizonte presente a obra recebida. Como evolução literária, a história da literatura pres-
supõe o processo histórico de recepção e produção estética como condição da mediação de
todas as oposições formais ou qualidades diferenciais.
O fundamento estético-recepcional devolve à evolução literária não apenas a direção perdida,
na medida em que o ponto de vista do historiador da literatura torna-se o ponto de fuga – mas
não de chegada! – do processo: ele abre também o olhar para a profundidade temporal da
experiência literária, dando a conhecer a distância variável entre o significado atual e o sig-
nificado virtual de uma obra – cujo potencial de significado o formalismo reduz à inovação,
enquanto critério único de valor – não tem de ser sempre e necessariamente perceptível de
imediato, já no horizonte primeiro de sua publicação, que dirá então esgotado na oposição
pura e simples entre a forma velha e a nova. A distância que separa a percepção atual, primeira,
de significado virtual – ou, em outras palavras: a resistência que a obra nova opõe à expectativa
Gêneros literários: conceituação histórica 33

de seu público inicial pode ser tão grande que um longo processo de recepção faz-se neces-
sário para que se alcance aquilo que, no horizonte inicial, revelou-se inesperado e inacessível.
Por ocorrer aí de o significado virtual de uma obra permanecer longamente desconhecido,
até que a evolução literária tenha atingido o horizonte no qual a atualização de uma forma mais
recente permita, então, encontrar o acesso à compreensão da mais antiga e incompreendida.
Assim foi que somente a lírica obscura de Mallarmé e de sua escola é que preparou o terreno
para o retorno à já longamente desprezada e esquecida poesia barroca e, em particular, para a
reinterpretação filológica e o renascimento de Gôngora. Exemplos de como uma nova forma
literária pode reabrir o acesso a obras já esquecidas podem ser dados em profusão; encaixam-
-se aí os assim chamados renascimentos – “assim chamados” porque o significado do termo
pode dar a impressão de um retorno por força própria, frequentemente encobrindo o fato
de que a tradição literária não é capaz de transmitir-se por si mesma e de que, portanto, um
passado literário só logra retornar quando uma nova recepção o traz de volta ao presente, seja
porque, num retorno intencional, uma postura estética modificada se reapropria de coisas
passadas, seja porque o novo momento de evolução literária lança uma luz inesperada sobre
uma literatura esquecida, luz essa que lhe permite encontrar nela o que anteriormente não era
possível buscar ali.

Atividades
1. Selecione um gênero (categoria) de filme (drama, comédia, suspense etc.) e procure assistir a
alguns filmes dessa categoria. Verifique quais são os componentes que se repetem e que não
são encontrados nas demais categorias e registre os aspectos mais relevantes que encontrou.

2. Escolha uma revista em quadrinhos de sua preferência e procure aplicar às histórias nela
contidas as características dos gêneros aqui estudados. Trabalhe com mais de duas histórias
e registre os resultados.

3. Compare um filme, um romance e a letra de uma canção em que o riso seja o objetivo final
dos textos. Verifique o que há de comum no modo como a história é organizada. Compare
e escreva os resultados.
3
Gêneros literários: o lírico

Dos três gêneros literários, é a poesia que adquire mais tardiamente destaque e identidade.
É apenas no Renascimento que ela ganhará estatura semelhante à do gênero épico e à do gênero
dramático. Esse nascimento tardio deveu-se a alguns fatores históricos, dos quais trataremos a
seguir. O gênero, conjunto de textos que, pela repetição de formas, funciona como horizonte de
expectativas para o leitor e “modelo de escritura” para o autor (TODOROV, 1980, p. 49), é uma
maneira reguladora de leitura e produção. O caráter discursivo do gênero literário é que lhe dá
identidade e, ao mesmo tempo, submete-se às transformações históricas, como arte humana.
O termo lírica provém do grego lyrikós, significando originariamente “som proveniente da
lira ou relativo à lira”, instrumento musical de quatro cordas. Em consequência, o gênero literário
pressupõe um componente musical, expresso pelo ritmo e pela sonoridade de versos e palavras.
Segundo Moisés (1997, p. 306), “o vocábulo lirismo foi cunhado no interior do Romantismo fran-
cês, com vistas a designar o caráter acentuadamente individualista e emocional assumido pela
poesia lírica a partir do século XIX”. Essa outra interpretação do gênero lírico indica o quanto o
momento histórico influencia o entendimento da terminologia e da teoria a respeito da literatura.

3.1 O que é poesia lírica?


Para conceituar poesia lírica é preciso ler e pensar sobre diferentes escritores que tentaram
definir esse gênero literário. Todorov (1980, p. 95) principia sua reflexão sobre poesia afirmando:
“O discurso da poesia caracteriza-se em primeiro lugar, e de modo evidente, por sua natureza
versificada”. Se o verso, isto é, a linha melódica interrompida fosse suficiente para determinar a
identidade da poesia, a simples aproximação visual do texto permitiria ao leitor classificar o gênero
literário. No entanto, essa diferença é incapaz de dar conta do sentido de poesia. Ele não está no
verso, ou no sofrimento do poeta ou no acúmulo de exemplos da linguagem figurada (metáforas,
metonímias, símiles, analogias, elipses e outros). Segundo Todorov (1980, p. 96-97),
uma parte esmagadora dos nossos contemporâneos nem aderem à teoria orna-
mental [a do verso], nem à teoria afetiva [a do sofrimento do poeta], mas a uma
terceira, cuja origem é claramente romântica; uma parte tão predominante que
temos dificuldade em perceber que não se trata, no fim das contas, senão de
uma teoria entre outras (e não da verdade enfim revelada). Nesse caso, a dife-
rença semântica entre poesia e não poesia não mais é procurada no conteúdo da
significação, mas na maneira de significar: sem significar outra coisa, o poema
significa de outro modo. Uma maneira diferente de dizer a mesma coisa seria:
as palavras são (somente) signos na linguagem cotidiana, ao passo que elas se
tornam, em poesia, símbolos: daí o nome de simbolista que utilizo para designar
essas teorias. (TODOROV, 1980, p. 96-97)

Para melhor esclarecer o que entende por símbolo, o teórico faz referência à tradição
alemã de pensamento sobre o texto poético (Schlegel, Novalis, Schelling, Kant, Hegel, Solger).
36 Teoria da literatura II

São escritores dos séculos XVIII e XIX, do apogeu do movimento literário conhecido como Sturm
und Drang (Tempestade e Ímpeto), que combateu a herança neoclássica e instaurou uma nova
literatura na Europa. Revolução essa que chegou posteriormente ao Brasil. No que consiste essa
concepção de símbolo e, por extensão, de poesia?
Poderíamos resumi-la em cinco pontos (ou cinco oposições entre símbolo e
“alegoria”): 1. o símbolo mostra o devir do sentido, não seu ser; a produção,
e não o produto acabado. 2. O símbolo é intransitivo, não serve apenas para
transmitir a significação, mas deve ser percebido em si mesmo. 3. O símbolo
é intrinsecamente coerente, o que quer dizer que um símbolo isolado é mo-
tivado (não arbitrário). 4. O símbolo realiza a fusão dos contrários, e mais
especificamente, a do abstrato e do concreto, do ideal e do material, do geral
e do particular. 5. O símbolo exprime o indizível, isto é, aquilo que os signos
não simbólicos não chegam a transmitir; é, por conseguinte, intraduzível, e seu
sentido é plural – inesgotável. (TODOROV, 1980, p. 97)

Temos aí uma perspectiva bastante significativa e didática do que seja a matéria-prima da


poesia, o símbolo. As negações de Todorov fazem sentido, porque é muito frequente encontrarmos,
na tentativa de compreender o gênero lírico, a associação entre a subjetividade do leitor e a do
poeta. Posição que ele denominou teoria afetiva. Maria Lúcia Aragão (1997, p. 75), por exemplo,
ao tratar do gênero lírico, afirma:
a extensão da composição lírica [...] deve ser de pequeno tamanho para não trair
o que há de essencial na disposição anímica do poeta, e para que haja unidade e
coesão do clima lírico no poema.
Ao falarmos em clima, estamos partindo do pressuposto de que o importante no
estilo lírico não são as conexões lógicas. A comunicação entre o leitor e o poema
não exige que a compreensão ocupe o primeiro plano. O leitor se emociona
primeiro, para depois entender. Por este motivo, Staiger afirma que “para a insi-
nuação ser eficaz, o leitor precisa estar indefeso, receptivo”. Isso acontece quando
a alma do leitor está afinada com a do poeta. (grifos do autor)

No entanto, Emil Staiger não é de todo partidário de uma arte poética baseada exclusiva-
mente na afetividade. Ao tentar defini-la, em outro momento da obra Conceitos Fundamentais
da Poética, taxativamente esclarece: “Dizem que uma poesia é bela, e pensam apenas na sensa-
ção, palavras e versos. Ninguém pensa, entretanto, que a verdadeira força e valor de uma poesia
está na situação, em seus motivos. A partir daí fazem-se milhares de poesias em que o motivo
é nulo e que simulam uma espécie de existência, simplesmente através de sensações e versos
sonoros” (STAIGER, 1972, p. 25). É possível perceber nessas poucas tentativas como os autores
citados combatem diferentes aspectos já estabelecidos e repetidos a respeito da definição de
poesia. É mais fácil negar o que está em desacordo com a ideia dos autores do que conseguir
definir exatamente o que é a poesia lírica. No entanto, também Staiger enumera qualidades que
considera definidoras de poesia:
Se a ideia de lírico, sempre idêntica a si mesma, fundamenta todos os fenôme-
nos estilísticos até então descritos, essa mesma ideia uma e idêntica precisa ser
revelada e ter nome. Unidade entra a música das palavras e de sua significação;
atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão (1); perigo de der-
ramar-se, retido pelo refrão e repetições de outro tipo (2); renúncia à coerência
gramatical, lógica e formal (3); poesia da solidão compartilhada apenas pelos
Gêneros literários: o lírico 37

poucos que se encontram na mesma “disposição anímica” (4); tudo isto indica
que em poesia lírica não há distanciamento. (STAIGER, 1972, p. 51)

Essa ausência de distanciamento, isto é, o leitor não pode deixar de se envolver com o poema
lido, faz com que haja, por vezes, confusão entre o eu lírico (manifestação subjetiva no poema) e
o eu biográfico (o poeta enquanto ser vivo). Para que essa diferença se torne mais clara, Angélica
Soares (1989, p. 26) assim a qualifica:
1.º) o eu lírico ganha sempre forma no modo especial de construção do poema:
na seleção e combinação das palavras, na sintaxe, no ritmo e na imagística;
2.º) assim, ele se configura e existe diferentemente em cada texto, dirigindo-nos
a recepção;
3.º) e, por isso, não se confunde com a pessoa do poeta (o eu biográfico), mesmo
quando expresso na primeira pessoa do discurso. (SOARES, 1989, p. 26)

Diferentemente do escritor que compõe a sua autobiografia e tenta descrever o passado,


o poeta tenta compreendê-lo, o que pressupõe uma atitude objetiva, mas a autobiografia, que tam-
bém faz a reflexão sobre o passado, mantém um laço com o passado e com o relógio, ao passo que
o poeta lírico, ao debruçar-se sobre si mesmo e sobre seu passado, o faz sempre no tempo presente,
como se os fatos estivessem a seu lado, dominantemente ocorrendo, num fluir contínuo. “O pas-
sado como objeto de narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro
de recordação” (STAIGER, 1972, p. 55). O fato de todos os teóricos tratarem dessa questão da con-
fusão que pode se estabelecer entre sujeito lírico e sujeito empírico demonstra o quanto a poesia
provoca a interação intensa do leitor com o texto, ao ponto de confundir o que se lê com o que se
vive. Fernando Paixão (1982, p. 31) também se detém no estudo dessa relação, considerando esse
tipo de subjetividade do ponto de vista discursivo, e afirma:
Apoiada em sua força simbólica, a linguagem dos poetas – os bons poetas, é cla-
ro – se realça por ser um dos raros discursos correntes em nossa sociedade em
que existe o tom de confissão e de sinceridade, ainda que afirmem o contrário os
famosos versos de Fernando Pessoa: “o poeta é um fingidor/ finge tão comple-
tamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente”. O dizer poético,
ao meu ver, representa apesar de tudo um dos poucos que ainda mantêm uma
relação de necessidade com a vida. (PAIXÃO, 1982, p. 31)

Podemos inferir o quanto de imaginada biografia e realidade podem conter os versos de


Augusto dos Anjos:

Vozes de um túmulo

Morri! E a Terra – a mãe comum – o brilho


Destes meus olhos apagou!...Assim
Tântalo, aos reais convivas, num festim,
Serviu as carnes do seu próprio filho!

Pos que para este cemitério vim?!


Por quê?! Antes da vida o angusto trilho
Palmilhasse, do que este que palmilho
E que me assombra, porque não tem fim!
[...]

(ANJOS, 1987)
38 Teoria da literatura II

Inconcebível na vida real esse poeta-defunto, mas perfeitamente possível na literatura. Lemos um
texto em primeira pessoa, com eu explícito, mas que não pode ser acreditado integralmente. Trata-se
de um texto simbólico, figurado, para tratar de assuntos relevantes à existência humana, como a força
inexorável do tempo e da morte. Fica evidente que as semelhanças físico-biológicas que possam existir
entre o eu lírico expresso nos verbos e pronomes de primeira pessoa desse texto não correspondem
ao eu empírico Augusto dos Anjos, muito vivo no momento da escrita. Pode haver, sim, semelhanças
anímicas e de pensamento, difíceis de serem comprovadas e aproximadas, porque pertencem ao ima-
ginário e ao inconsciente do autor. Muitas vezes, o poeta nem comunga dos mesmos sentimentos e usa
imagens comuns e constantes da literatura poética, repetindo-as por serem estéticas ou por estarem de
acordo com aquelas usadas no período literário em que se enquadra sua obra.
Salete Cara (1989, p. 69) conclui a definição do que acredita ser a poesia lírica com a
seguinte síntese: “o lirismo se encontra onde se encontra uma expressão particular cuja figu-
ra é criada pelas relações – de acorde ou dissonância – entre som, sentido, ritmo e imagens.
Essas relações são comandadas pela visão subjetiva de um sujeito lírico”. Observe-se a importância
dos termos que a autora grifou, porque eles expressam os elementos relevantes e indispensáveis
à poesia de qualidade.
Todorov (1980), ao tratar do gênero lírico, apresenta quatro teorias para explicar a natureza
do discurso lírico: a ornamental, a afetiva, a simbólica e a sintática. A ornamental é uma teoria
pragmática que considera o poema como um artefato retórico, isto é, destinado a agradar e não
a instruir. Consequentemente, um bom poema lírico é o mais belo, o mais carregado de orna-
tos poéticos (figuras de linguagem, figuras sonoras, construções sintáticas elaboradas). A teoria
afetiva considera que a poesia enfatiza os efeitos emotivos do poema, criando diferenças com a
linguagem comum, mais voltada para a apresentação de ideias. A poesia busca o efeito afetivo,
patético, de sentimentos. A teoria simbólica defende a diferença entre a poesia e a não poesia esta-
belecida não pelo conteúdo, mas pela maneira de significar. Essa maneira está no uso das palavras
no seu sentido de símbolos, isto é, na capacidade de exprimir o indizível, de realizar a fusão dos
contrários, de ter valor intrínseco, em si mesmo, de não ser restrito a um sentido único. A teoria
sintática prega “a coerência e unidade entre os diferentes planos do texto”, valorizando sua cons-
trução fônica, gramatical e semântica.
Mais uma vez é possível observar a pluralidade de enfoques existentes na compreensão
e definição do gênero lírico, de vez que ele está ancorado na história da literatura e da cultura,
passível de transformações do ponto de vista da produção e da recepção dos textos literários.

3.2 A concepção musical da Antiguidade


A expressão mais antiga da poesia lírica provavelmente foi em forma oral, de modo a que a
voz, por si só, pudesse reproduzir a musicalidade das palavras. A poesia oral nasceu da intenção
de colocar na estrutura do texto o sentido intensificado e a de buscar efeitos a serem obtidos jun-
to aos ouvintes, como a descoberta de uma nova forma de olhar para o mundo e para o homem,
os sentimentos, a descrição da natureza.
Gêneros literários: o lírico 39

Os tratados científicos da Antiguidade usavam o verso, mas nem por isso os textos per-
tenciam ao gênero lírico. “Entre gregos, egípcios e hebreus a lírica associava-se, primitivamente,
às práticas religiosas. Todavia, os críticos romanos, caudatários dos gregos, enfatizaram-lhe
o aspecto estético, ou seja, consideravam-na simplesmente uma poesia de natureza musical,
acompanhada pela lira e destinada ao canto” (MOISÉS, 1997).
Quanto ao caráter musical da poesia oral e da escrita grega, é preciso salientar a constituição
da língua grega clássica, cuja acentuação era intensiva (sílabas longas e sílabas breves) e não tônica,
como na língua portuguesa. Salete Cara (1989, p. 15) esclarece que,
Embora hoje em dia a gente não possa mais saber o que foi exatamente a música
grega e pouca coisa tenha sobrado dos textos de poesia, a não ser fragmentos,
é possível observar que as palavras não tinham posição secundária em relação à
música, mas permaneciam com suas potencialidades de ritmo e canto. De canto
com as próprias palavras, sem notas musicais.

Na Grécia primitiva, o termo que designava o poeta era aedo, que significava cantor.
Era simultaneamente o autor e o recitador de sua produção, o que o distinguia do rapsodo,
que apenas executava os poemas de outro poeta.
Embora o primeiro poeta grego, Homero, tenha sido autor de dois importantíssimos poemas
épicos, a Ilíada e a Odisseia, surgiu a necessidade de uma poesia individual, como expressão pessoal,
tratando de acontecimentos da vida cotidiana e comunitária. Nascia a poesia lírica, para ser cantada
com acompanhamento musical.
Entre os vários tipos de poesia lírica grega, destaca-se a poesia mélica (de “melo-
dia”) que através de Safo e Alceu foi a que teve o acompanhamento musical mais
completo e a maior liberdade de composição.
Havia também a poesia de coro e as elegias, que conservavam um pouco das re-
lações com a poesia épica, na medida em que glorificavam deuses e vencedores
de jogos, mantendo uma certa natureza política e bélica. (SOARES, 1989, p. 15)

Entre os latinos, predominou o termo vate, significando adivinho, sacerdote, visto que suas
palavras aproximavam-se das profecias, enunciadas por sacerdotes, por inspiração dos deuses.
Essa denominação conferia ao poeta uma distinção entre os demais artistas. O termo reaparecerá
mais tarde entre os poetas românticos, no século XIX, que se acreditavam inspirados por influxos
que transcendiam o humano, com vocação distintiva dos outros mortais.
O livro sobre a arte poética, de Aristóteles, escrito no século IV antes de Cristo, contém o
pensamento da Antiguidade sobre a forma poética. Entre esses ensinamentos, salienta-se a atenção
dada à metáfora, no capítulo XXI do texto: “A metáfora é a transposição de nome de uma coisa para
outra, transposição do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou de uma espécie para
a outra, por via da analogia” (ARISTÓTELES, 1964). Na linguagem da poesia, segundo o pensador
grego, a elocução do verso pode adotar diferentes espécies de nomes: ou o termo próprio, ou um
termo dialetal (que ele não recomenda), ou uma metáfora, ou um vocábulo ornamental, a palavra
forjada, ou alongada, ou abreviada1, ou modificada. Trata-se de modos de alterações nas palavras

1 A língua grega era baseada em acentos de duração. Por isso, vogais longas produziam alongamento da palavras e
as breves, sua abreviação. As alterações provocavam efeitos semânticos diferentes.
40 Teoria da literatura II

(seja por meio de mudanças neológicas, seja na composição do termo). É possível inferir que as
palavras do autor visavam indicar que o texto poético tem o poder de intervir na língua cotidiana
para criar efeitos significativos. Essa importância dada à linguagem permanece até os dias de hoje.

3.3 Lirismo, subjetividade e sentimento


É muito comum ouvirmos pessoas definirem a poesia como aquela que objetiva traduzir ou
comunicar sentimentos, como o amor, a amizade, a perda, a beleza da vida. Por conta dessa crença,
a avaliação dos poemas tende a considerar o texto como simples tradução dos sentimentos pessoais
do autor, confundindo frequentemente a biografia do poeta com o eu lírico.
Massaud Moisés (1997, p. 307) acredita que a poesia contém “uma dada experiência e uma
dada postura mental perante a realidade do mundo”. Essa concepção não significa que a beleza do
texto esteja unicamente centrada na subjetividade ou na sentimentalidade. Embora a força dos sen-
timentos seja muito grande na poesia lírica, é a organização do texto, são as palavras elaboradas de
forma inovadora que transportam com maior eficiência e beleza o conteúdo subjetivo do poema.
[...] o aspecto mais característico do lírico [é] a ambiguidade do conteúdo e da
sua expressão correspondente, resultante da permanente autocontemplação do
poeta e, ainda, do próprio esforço de reduzir à equação poética os ingredientes
do mundo interior: a metáfora representa, distorce, o conteúdo, tornando-o ou
revelando-o ambíguo.
Por outro lado, a introjeção do poeta somente lhe permite esquadrinhar as
primeiras camadas interiores, as que dizem respeito ao “eu” emocional e senti-
mental: o lirismo se constitui na manifestação imediata das inquietudes emo-
cionais e sentimentais; no estado natural do “eu” para si próprio e, portanto,
na expressão da resposta mais pronta do poeta em face dos estímulos externos
e internos. [...]
O conceito emocional da poesia lírica explicaria o consórcio com a música:
esta, porque fluida, meramente sonora, não vocabular, não significativa, parece
traduzir de modo flagrante os contornos íntimos e difusos do poeta, infensos ao
vocabulário comum. (MOISÉS, 1997)

Observemos um poema de Safo (séc. VII a VI a.C.) para conferir essas características:
Basta-me ver-te e ficam mudos os meus lábios, ata-se a minha língua, um fogo
sutil corre sob minha pele, tudo escurece ante o meu olhar, zunem-me os ouvi-
dos, escorre por mim o suor, acometem-me tremuras e fico mais pálida que a
palha: dir-se-ia que estou morta. (CARA, 1989)

Mais do que sentimento, o que se pode afirmar é que a poesia lírica, por intermédio da
musicalidade e da liberdade de expressão, investiga a alma humana, nela explorando as reações
diante da realidade (objetiva e de relações humanas) e, em especial, o inconsciente. A passagem das
descrições bélicas, cívicas e coletivas (da poesia épica) para a individualidade e profundidade de
exploração da alma humana não se deu num salto, de imediato. Foi passando por transformações
lentas e históricas. De uma atitude teologal, através da alegoria, pôde ensinar verdades da alma e
da religião durante a Idade Média e o Renascimento.
Gêneros literários: o lírico 41

Cumpre ressaltar que nesse período vigorou também, na poesia provençal e nas cantigas
portuguesas, uma forte corrente de poesia erótica nas cantigas d’escárnio e maldizer medievais e nos
poemas de Manuel du Bocage (1765-1805) e Gregório de Matos Guerra (1623/1633-1696).
Após o Barroco, em que se filiam esses dois poetas, o movimento Iluminista do século XVIII
criou uma poesia filosófica que desembocou no Romantismo do século XIX. Neste, a poesia tra-
tou do infinito, do universo, da natureza e da espiritualidade, bem como – por meio de imagens
em profusão, de símbolos e de musicalidade – dos sentimentos amorosos, da morte e da amizade.
O Romantismo foi o grande responsável por essa avaliação da poesia lírica como um texto literário
dominado pelo subjetivismo emocional, em que o poeta somente consegue atingir o ápice da arte
na medida em que se deixa dominar pela esfera pessoal, por seu mundo interior. É verdade que o
Romantismo traz para a arte um novo conceito de sujeito. Não mais o sujeito clássico “submetido
à convenção universalista do logos – o penso, logo existo – que definia o ego da tradição clássica”
(CARA, 1989). Mas um novo conceito de subjetividade, relacionado à liberdade de expressão, à
expressão da emotividade, à elevação do indivíduo-poeta para além da situação cotidiana e das
funções sociais burguesas: o poeta se alçará à categoria de vate, um profeta inspirado pelos deuses.
Com a chegada do Simbolismo ao final do século XIX, em especial Rimbaud (1854-1891),
e da vanguarda francesa, o poeta-vidente (voyant2) mergulha no inconsciente, o que pode ser com-
provado pela frase rimbaudiana: “Je est un Autre”(Eu é um Outro), indicando que a poesia fará
um mergulho nas zonas nebulosas da mente, do inconsciente, procurando descobrir o monstro
indecifrável que habita cada ser humano. A frase famosa foi escrita numa carta Paul Demeny em
15 de maio de 1871 e traz uma concepção original para explicar a criação artística, pois indica que
o poeta perdeu o controle sobre o que se passa dentro dele. O poeta continua: “Assisto à eclosão de
meu pensamento: eu o olho, eu o escuto...” Há um deslocamento da concepção clássica de subjeti-
vidade enquanto pólo de identidade. Perde-se essa unidade e essa referência.
O advento da psicanálise e os estudos sobre o inconsciente, realizados por Freud, estão na
base do Surrealismo e do modo automatizado de criação de poemas. O automatismo psíquico
“pelo qual [os escritores] se propõem exprimir , seja oralmente, seja por escrito, seja por outras
maneiras, o funcionamento real do pensamento. Trata-se de construir poemas ditados sob a
ausência de qualquer controle exercido pela razão e fora de qualquer preocupação estética ou
moral” (VAILLANT, 2005).
Ainda segundo Salete Cara (1989), “o sujeito lírico moderno é aquele que, a partir do
Simbolismo, toma consciência de que o espaço da poesia não é nem o espaço da realidade
(a objetividade será impossível, portanto), nem o espaço do eu (a dita subjetividade será encarada
também como ilusória)”. Há, portanto, uma dissociação entre o sujeito lírico e a poesia que o expressa
e o mundo dos sentimentos, causada pela transformação da noção de sujeito e de subjetividade.
Buscar nos poemas a manifestação exclusiva de sentimentos equivale a desconhecer a natureza e as
funções da poesia lírica contemporânea.

2 O termo aparece na obra Cartas de um Vidente (Lettres à um voyant), de Rimbaud, publicada em 1871.
42 Teoria da literatura II

3.4 Lirismo e visualidade


Uma nova percepção da linguagem poética, nascida na Grécia, vem ao encontro da van-
guarda da literatura no século XX: é a imagem visual. A construção do poema que não se restringe
ao ritmo, tom ou sonoridade das palavras, mas agrega a tudo isso o componente visual. O poema
se desenha juntamente com as palavras (e até mesmo sem elas), em composições que desafiam a
inventividade dos poetas e a interpretação dos leitores.
Há formas diferentes de aproveitamento do espaço da página para que a imagem adquira
visualidade e significação. A primeira forma é dos poemas figurados, “composições poéticas cujos
versos se organizam de modo a sugerir a forma do objeto que lhes constitui o tema, como um ovo,
coração, asa, pirâmide, altar, cálice, relógio etc.” (MOISÉS, 1997, p. 400).
Observemos um poema como o de Mario Quintana (1906-1994), reproduzido a seguir:

O Mapa

Olho o mapa da cidade


Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É nem que fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)
Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso
Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)
E talvez de meu repouso...

(QUINTANA, 1994)

Podemos perceber o quanto as palavras evocam espaços e paisagens: ruas, casas, o vento,
o corpo feminino são descritos e valorizados enquanto imagens de seres existentes no real.
O leitor imagina essas imagens, sem que as palavras as desenhem de forma mimética no pa-
pel. Essa é a presença evocada das imagens numa poesia tradicional. O poema figurado traz
essa imagem com palavras em posições e formatos que tentam reproduzir a referência externa.
Vejamos, por exemplo, o poema ao lado.
Gêneros literários: o lírico 43

Trata-se de um poema conhecido como O ovo,


do grego Simias de Rodes, datado de três séculos antes
de Cristo. As palavras são dispostas de maneira a re-
produzir a imagem do significado que traduzem.
Guilherme Apollinaire (1880-1918) criou no
início do século XX para este tipo de texto o nome de
caligrama3. Os hieróglifos egípcios foram os primeiros
caligramas conhecidos. Segue-se o poema de Símias
de Rodes. Esse tipo de composição existiu ao longo
da Idade Média e do Barroco, mas teve seu desenvol-
vimento mais intenso com as criações de Guilhaume
Apollinaire. Também pode ser designado, além de poema figurado, como carmen figuratum, pat-
tern poem, Bildergedicht ou poema figurativo. Verifique um exemplo de caligrama de Apollinaire:

3 Do grego, que significa “escrita bela”.


44 Teoria da literatura II

Esse poema francês tem como título A gravata e o relógio. Como pode ser observado, são
as palavras que, por sua distribuição pelo espaço da página, constroem e visualizam as imagens.
Do mesmo poeta, o poema Paysage sugere uma árvore:

CET
ARBRISSEAU
QUI SE PRÉPARE
A FRUCTIFIER
TE
RES
SEM
BLE

A inspiração de Apollinaire foi o cubismo, arte de vanguarda que buscava geometrizar as ima-
gens, insistindo, portanto, no valor visual e de síntese que a pintura poderia mostrar. Apollinaire,
convencido da força da imagem, denominou esses textos lirismo visual e influenciou os artistas
que o sucederam, a tal ponto que estimulou a integração entre o visual, a palavra, o som e o uso
do espaço. “Várias formas modernas de poesia como a surrealista, a experimentalista, a concreta
e a visual, exploraram as possibilidades de figurativização textual propondo caligramas como o
seguinte Pêndulo (1962), de E. M. de Melo e Castro”, segundo Carlos Ceia:

P
P

P Ê N
O

D U L
P Ê N D L
U
N
P Ê D U
N
P Ê D
N
P Ê
Fonte: CASTRO, 2007.

Soneto Soma
A presença das imagens visuais, nascidas do desenvolvimento 14 X
da tecnologia, da sociedade imagética em que estamos imersos e da
14342
inventividade dos poetas contemporâneos, fez nascer um novo tipo 23306
de poesia, denominada poesia visual. Nela, as palavras não precisam 41612
32216
necessariamente representar a imagem. A visualidade pode vir re-
50018
presentada por outros signos não verbais, como no “Soneto Soma 14
21254
X”, de E.M. de Melo e Castro: 14018
32414

31235
54122
30425

43313
51215
89353
Gêneros literários: o lírico 45

Jayro Luna assim analisa o texto:


No caso da utilização de elementos estatístico-probabilísticos na poesia concre-
ta portuguesa, tomemos como exemplo um poema de E.M. de Melo e Castro,
“Soneto Soma 14X”, do livro Poligonia do Soneto, 1963.
É um soneto que se insere naqueles que farão a crítica do soneto como
forma poética.
O soneto “Soma 14X” é composto de números e, nesse sentido, conhecendo
algumas da regras compositivas do soneto, e observando, que no caso deste poe-
ma, a soma dos números de um verso devam totalizar 14, é possível subtrair-se
alguns versos e pedir a alguém que complete os versos faltantes, num raro exer-
cício de análise matemática da forma.
O soneto em questão, apresenta rimas numéricas, assim, no caso da reconstitui-
ção é possível, sabendo-se com qual determinado verso rima, já saber de ante-
mão qual o último dos cinco números que compõem o verso. Os outros quatro
números do verso, resultaram de uma soma baseada no fato do total do verso
dar 14, e de que não há um só verso repetido neste soneto. Observe-se ainda,
que o último verso deste soneto, o verso chave de ouro dá soma 28 (duas vezes
14), como que a querer dizer que é um verso que vale mais do que os outros.
Numericamente, portanto, é possível neste nosso exercício de reconstrução pro-
duzir variantes do soneto, mas que funcionalmente, exerceram o mesmo papel
desempenhado pelo original de Meio e Castro, que crítica justamente a forma
padrão para o fazer poético.
Cabe observar ainda, que se retirássemos não um verso, mas somente um nú-
mero de cada verso, a possibilidade de reconstrução integral do soneto em rela-
ção ao original, seria de 100%. (LUNA, 2005, p. 74-75)

Trata-se da evolução do poema lírico ao longo da história da literatura, com a contribuição


de novos tempos e novas tecnologias. Há nessa visualidade inteira correspondência com o modo
de olhar da contemporaneidade e com a possibilidade de criar múltiplos objetos, mantendo sempre
a capacidade de surpreender e de provocar descobertas no leitor.

Ampliando seus conhecimentos

Todo bom poeta


(ELLIOT, 1972, p. 33-35)

Espero que todos concordem em que todo bom poeta, seja ele ou não um grande poeta, tem
algo a dar além do prazer: pois, se fosse somente prazer, o próprio prazer não seria no maior
grau. Além da intenção específica que a poesia possa ter [...], há sempre a comunicação de
alguma experiência nova, de algum entendimento novo do familiar, ou a expressão de alguma
coisa que sentimos mas para a qual não temos palavras, que amplia nossa conscientização,
ou apura a nossa sensibilidade. Entretanto, assim como não se refere à qualidade do prazer
individual, essa conferência também não diz respeito aos benefícios individuais causados pela
poesia. Creio que todos entendem quer o tipo de prazer que a poesia pode dar, quer o tipo de
diferença, além do prazer, que traz a nossas vidas. Sem produzir esses dois efeitos, simples-
mente não há poesia. Podemos ter conhecimento disso, mas ao mesmo tempo negligenciar
46 Teoria da literatura II

algo que a poesia faz para nós coletivamente, enquanto sociedade. E digo isso no seu sentido
mais amplo, pois considero importante que cada povo tenha sua própria poesia, não apenas
para aqueles que gostam de poesia – esses podem sempre aprender outras línguas e deleitar-
-se com sua poesia – mas porque faz realmente diferença na sociedade como um todo, e isso
para as pessoas que não gostam de poesia. Estou incluindo até mesmo os que desconhecem os
nomes de seus poetas nacionais. Esse o tema real dessa conferência.
Podemos observar que a poesia difere de qualquer outra arte por ter, para o povo da mesma
raça e língua do poeta, um valor que não tem para os outros. É bem verdade que até a música
e a pintura têm uma característica local e racial, mas, evidentemente, as dificuldades de apre-
ciação dessas artes, para um estrangeiro, são bem menores... Por outro lado, é verdade também
que os escritos em prosa têm, em sua própria língua, um sentido que se perde na tradução;
todos nós percebemos, porém, que estamos perdendo muito menos ao ler um romance tra-
duzido do que ao ler um poema: e na tradução de alguns tipos de trabalho científico a perda
pode ser virtualmente nula. Que a poesia é muito mais local do que a prosa pode ser verificado
na história das línguas europeias. Através da Idade Média até há algumas centenas de anos,
o latim continuava sendo a língua usada para a Filosofia, Teologia e Ciência. O impulso para
o uso literário das línguas dos povos começou com a poesia. E isso se torna perfeitamente
natural ao percebermos que a poesia está primeiramente ligada à expressão dos sentimentos
e das emoções, e que sentimentos e essas emoções são particulares, embora isso seja geral.
É mais fácil pensar numa língua estrangeira do que sentir nela. Portanto, nenhuma arte é mais
obstinadamente nacional do que a poesia. E um povo pode ter sua língua extirpada, e ser
obrigado a usar outra língua nas escolas, mas, a não ser que se ensine àquele povo a sentir na
nova língua, não se conseguirá extirpar a antiga. E ela reaparecerá na poesia, que é o veículo do
sentimento. Acabei de dizer sentir na nova língua e refiro-me a algo bem maior do que apenas
expressar seus sentimentos numa nova língua. Um pensamento expresso numa língua dife-
rente pode ser praticamente o mesmo pensamento, mas um sentimento ou emoção expressos
numa língua diferente não são o mesmo sentimento e a mesma emoção. Uma das razões para
aprendermos bem pelo menos uma outra língua é a de adquirir uma espécie de personalidade
suplementar; uma das razões para não assimilar uma nova língua em lugar da nossa própria
é a de que nenhum de nós quer se transformar numa pessoa diferente. Uma língua superior
dificilmente poderá ser aniquilada, a não ser por meio do extermínio do povo que a fala.
Quando uma língua suplanta outra é porque, geralmente, tem vantagens que a recomendam e
que oferecem não só a diferença em si, mas um nível maior e mais refinado para o pensamento
e para o sentimento do que a língua inicial mais primitiva.
As emoções e os pensamentos, então, expressam-se melhor na língua comum ao povo – ou
seja, a língua comum a todas as classes, a estrutura, o ritmo, o som, o idioma de uma língua
expressam a personalidade do povo que a fala. Quando digo que a poesia mais do que a prosa
está ligada à expressão da emoção e do sentimento, não quero dizer que a poesia precisa des-
pir-se de todo conteúdo intelectual ou significado, nem que a grande poesia tem conteúdo
igual ao da poesia menor. Desenvolver essa pesquisa, porém, afastar-me-ia muito de minha
finalidade imediata. Vou considerar como certo que todos encontram a expressão mais cons-
ciente de seus sentimentos profundos na poesia de sua própria língua mais do que em qual-
quer outra arte ou na poesia de uma outra língua. Isso não significa, evidentemente, que a
verdadeira poesia se limita aos sentimentos que qualquer um pode reconhecer e compreender;
não devemos limitar a poesia popular. É suficiente que num povo homogêneo os sentimentos
dos mais refinados e complexos tenham algo em comum com o dos mais rudes e simples. [...]
Gêneros literários: o lírico 47

Podemos dizer que o dever do poeta, como poeta, é só indiretamente voltado para seu povo:
seu dever direto é para com sua língua, que lhe cabe em primeiro lugar preservar, em segundo
ampliar e melhorar. Ao expressar o que os outros sentem, ele está também modificando o
sentimento, tornando-o mais consciente: está fazendo com que as pessoas percebam melhor
o que sentem, ensinando-lhes, portanto, algo a respeito de si mesmas. Mas ele não é ape-
nas uma pessoa mais consciente do que as outras; é, também, individualmente diferente das
outras pessoas e também dos outros poetas, e pode fazer com que seus leitores compartilhem
conscientemente novas sensações ainda não vivenciadas. Essa é a diferença entre o escritor
meramente excêntrico ou louco e o poeta genuíno. O primeiro pode ter sensações únicas mas
não partilháveis, e, portanto, inúteis; o segundo descobre novas variações de sensibilidade que
podem ser utilizadas por outros. E ao expressá-las ele está desenvolvendo e enriquecendo a
língua que fala.

Atividades
1. Escolha três letras de canções populares brasileiras. A seguir, escreva essas letras em folhas/telas
separadas e descubra se elas têm características de poemas líricos.

2. Faça uma análise do Soneto do amor total, poema da obra de Vinicius de Moraes. Aplique no
texto a teoria sobre poesia lírica e reflita sobre o resultado obtido.

Soneto do amor total

Amo-te tanto, meu amor ... não cante


O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante


E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente


De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde


É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

3. Analise o soneto de Shakespeare aqui reproduzido e estabeleça uma comparação com o so-
neto de Vinicius de Moraes da atividade 2.

Soneto

Lanço-me ao leito, exausto de fadiga,


Repousa o corpo ao fim da caminhada;
Mais eis que a outra jornada a mente obriga
Quando é do corpo a obrigação passada.
48 Teoria da literatura II

A ti meu pensamento – na distância –


Em santa romaria então me leva,
E fico, as frouxas pálpebras em ânsia,
Olhando, como os cegos veem na treva.
E a vista de minh’alma ali desvenda
Aos olhos sem visão tua figura,
Que igual a joia erguida em noite horrenda,
Renova a velha face à noite escura.
Ai! que de dia o corpo, à noite a alma,
Por tua e minha culpa têm calma.
4
Gêneros literários: o épico ou narrativo

Na classificação herdada da cultura grega, o gênero épico é um dos dois gêneros nobres da
literatura. No texto mais completo de Teoria Literária que nos foi legado por Aristóteles, a Poética,
ele está no mesmo nível qualitativo que a tragédia; os dois compõem a parte nobre da arte literária
grega, destinados que estão a tratar de assuntos elevados com personagens heroicas. O termo épico
deriva do grego epos, que significa palavra, notícia, oráculo, o que contribui para estabelecer na
origem a ligação com a mitologia (oráculo), o caráter informativo, histórico (notícia) e o veículo
dessa transmissão, a palavra.

4.1 O que é o gênero épico?


Para qualificar o gênero épico, é conveniente retomarmos a história e o momento em que
surgiu o primeiro e valioso monumento literário desse gênero: as duas epopeias de Homero (mea-
dos do século IX a.C.), a Ilíada, que trata da guerra dos gregos pela tomada de Troia, e a Odisseia,
a narrativa do herói Ulisses em sua longa viagem de volta ao lar, após o final da guerra. A leitura dos
primeiros versos da Ilíada já permite identificar algumas das características desse gênero literário:

Canta-me a cólera – ó deusa! – funesta de Aquiles Pelida,


Causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
E de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto das aves.

(HOMERO, 1962)

O tom elevado da dicção poética, a regularidade dos versos, a mitologia, a presença do herói
e da associação ao povo grego conferem aos versos citados, não apenas o horror da guerra, mas a
necessidade de cantar e expressar os acontecimentos que foram marcantes para o desempenho do
herói e a configuração mais completa dos fatores que levaram às batalhas sucessivas. Essa figuração
e o propósito de (re)construir uma época ligada às origens do povo e da religião grega irão conferir
ao texto épico de Homero uma importância cultural e histórica ímpar. Saem de suas descrições e
do modo como apresenta os fatos da guerra as figurações imaginárias que estarão representadas
nas esculturas, na pintura, na cerâmica, na história grega dos séculos que se seguiram. Essa per-
manência, além de seu texto magnífico, dá bem a medida da relevância de seu trabalho na cultura
ocidental, de vez que herdamos dessa mitologia e dessa literatura muito do que veio a compor
também o imaginário e cultura dos povos influenciados pela Grécia.
A esse tipo de narrativa elevada, em versos e de caráter coletivo, denomina-se epopeia,
a forma poética do gênero épico. Para Angélica Soares (1989, p. 31), a epopeia é
uma longa narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de interesse nacio-
nal e social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos (o
50 Teoria da literatura II

narrador, o narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo), uma at-


mosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, reúne
mitos, heróis e deuses, podendo-se apresentar em prosa (como as canções de
gesta medievais) ou em verso (como Os Lusíadas). (SOARES, 1989)

A historiografia literária e a teoria da literatura não chegaram, porém, ao consenso sobre


o que seja a epopeia. Paul Zumthor, um dos mais importantes estudiosos da poesia oral levanta
algumas questões a respeito da conceituação dessa forma literária.
Definir a epopeia não é tarefa simples. Refere-se esse termo a uma estética, a
um modo de percepção ou às estruturas narrativas? Alguns o relacionam a toda
espécie de poesia oral narrativa, especialmente de argumento histórico, sem le-
var em consideração o tom solene ou a extensão. Para T. Tedlock, um gênero
épico propriamente dito, caracterizado pelas regras de versificação, só existe no
seio de culturas semiletradas; nas sociedades primariamente orais, o equivalen-
te funcional seria o conto [...], mas que enfraquece o valor de outras pesquisas.
Em último caso, assim como D. Bynum, poderíamos propor que epopeia e épico
são apenas designações metafóricas da poesia oral, fundadas sobre o grego epos...
termo este que, em Homero, invoca simplesmente a palavra transportada pela
voz. (ZUMTHOR, 1997)

Cabe observar que a dificuldade de definir o gênero épico e as variadas interpretações que
se dá aos textos que recebem essa denominação passam pelas alterações sofridas pelos textos ao
longo da história, atendendo às necessidades expressivas e receptivas da literatura. Há, porém,
conforme Zumthor, uma tripla perspectiva que se faz presente a cada momento em que se tenta
chegar a uma definição mais precisa do que seja a epopeia, texto que compõe o gênero épico.
A primeira perspectiva é a da estética, isto é, de uma concepção filosófica que indague da natureza
da forma épica, como, por exemplo, os elementos indispensáveis que a compõem e seu sentido para
uma explicação convincente de sua especificidade. Também o modo de percepção apresenta um ou-
tro enfoque, um outro caminho para o entendimento do gênero, o que diz respeito à recepção do
texto épico e seu reconhecimento pelo leitor. Para que se confirme o gênero, faz-se necessário que
o leitor reconheça nele características distintivas e próprias. A terceira abordagem relaciona-se às
estruturas narrativas, isto é, o gênero pode ser definido se contiver alguns elementos narrativos,
apresentados de modo específico, como a dimensão heroica dos protagonistas, a extensa linha de
tempo dos acontecimentos, o caráter coletivo do tema, a justaposição de fatos e outros mais. O que
se torna permanente nessa tentativa de definição do gênero é a sua característica narrativa, isto é,
o relato de fatos numa linha de tempo histórico ou mítico.
Quanto ao caráter oral dessas narrativas, não há como negar, em sua origem remota, a pre-
sença exclusiva da voz do rapsodo – cantor-poeta e disseminador dessas narrativas primitivas.
Tão logo a escrita assume o caráter fixador dessas narrativas, a oralidade se torna dispensável na
origem e as epopeias ganham autoria. Nada, porém, garante que a ordem atual dos livros cor-
responda exatamente à recitação dos cantadores/contadores. A hipótese é de que os episódios
fossem narrados de maneira quase independente na oralidade. Os escribas de Atenas teriam
dado a esse texto sua forma final (HAVELOCK, 1996).
Do ponto de vista formal e de estrutura do texto, a composição épica devia apresentar quatro
partes, indispensáveis, com autonomia e regras próprias: a proposição, em que era apresentado o
Gêneros literários: o épico ou narrativo 51

tema a ser desenvolvido; a invocação, um pedido de proteção aos deuses para que o poeta pudesse
chegar a bom termo em seu trabalho; a narração, a parte mais longa e principal da narrativa épica,
em que eram narrados os feitos do herói-protagonista; o epílogo, coerente e coeso com todo o texto
anterior e com final feliz.
Para Angélica Soares (1989), “o sentido de épico se manifesta toda vez que se tem a intenção
de abarcar a multiplicidade dinâmica da realidade em uma só obra, criando-se uma unidade”. É por
essa intenção que, mesmo mudando a aparência da forma literária, o épico permanece enquanto
opção estética.

4.2 Preceitos aristotélicos sobre a epopeia


Na poética clássica, Aristóteles foi quem melhor tratou da configuração dos gêneros literá-
rios, em especial da tragédia e da epopeia, tendo em vista que seu livro sobre a comédia desapareceu,
se é que verdadeiramente existiu. Ao estudar esses dois gêneros, dedicou o capítulo V à comparação
e distinção entre eles e afirma: “Quanto à epopeia, por seu estilo corre parelha com a tragédia na
imitação dos assuntos sérios, mas sem empregar um só metro simples e a forma narrativa. Nisto
a epopeia difere da tragédia” (ARISTÓTELES, 1964, p. 270). Temos, portanto, que, na origem, o
verso era uma das maneiras de distinguir os dois gêneros, mas não apenas ele. O tempo de duração,
a dimensão temporal, era outro critério, pois “a epopeia não se limita [...] em sua duração”. Quanto
às demais partes constitutivas (personagens, ação, ritmo e outros), o filósofo grego abordou nos
capítulos XXXIII e XXIV. Neles, estabelece que as epopeias, tal como na tragédia, ”encerrem uma
só ação, inteira e completa, com princípio, meio e fim, para que, assemelhando-se a um organismo
vivente, causem o prazer que lhes é próprio.” (ARISTÓTELES, 1964, p. 310). Esse princípio de cons-
trução da epopeia será obedecido nos séculos posteriores, somente passando por contestação em
obras de ruptura a partir do século XVIII e, mais intensamente, no século XX.
Um dos componentes mais relevantes da epopeia é a fábula. Não se entende o termo fábu-
la no sentido comum de historieta com animais e/ou alegorias que trazem uma moral explícita.
Para Aristóteles, o termo grego é mythos que, traduzido, passou a fábula. Em várias passagens do
livro Poética, e sempre conferindo ao termo grande importância, Aristóteles insiste que a fábula é
componente básica da epopeia e da tragédia. Segundo ele, “a imitação de uma ação é mito (fábula);
chamo fábula a com­binação dos atos” (ARISTÓTELES, 1964, p. 271). Também acrescenta: “resulta
serem os atos e a fábula a finalidade da tragédia; ora, a finalidade é, em tudo, o que mais importa.”
(ARISTÓTELES, 1964, p. 272), para logo adiante reforçar esse conceito, afirmando: “O princípio,
como que a alma da tragédia é a fábula; só depois vem a pintura dos caracteres” (ARISTÓTELES,
1964, p. 273). Mais adiante retoma a caracterização de epopeia, afirmando que ela
apresenta ainda as mesmas espécies que a tragédia: deve ser simples ou comple-
xa, ou de caráter, ou patética. Os elementos essenciais são os mesmos, salvo o
canto e a encenação; também são necessários os reconhecimentos, as peripécias
e os acontecimentos patéticos. Deve, além disso, apresentar pensamentos e be-
leza de linguagem. (ARISTÓTELES, 1964)

Ao longo de séculos, esse modo de conceber o texto épico se tornou normativo e regulou a
criação literária do gênero narrativo, mesmo depois que a epopeia caiu em desuso, substituída pelo
52 Teoria da literatura II

romance. A unidade de ação (que compreende não apenas a coerência entre as partes, mas sua orde-
nação em partes indispensáveis como princípio, meio e fim), o predomínio da ação sobre os perso-
nagens, a possibilidade de ações simples ou complexas, a presença do patético (pathos em grego pode
ser doença ou sofrimento) − estão presentes na literatura romântica, que também abusou de peri-
pécias e reconhecimentos. Sem esquecer do caráter retórico do cuidado com a beleza da linguagem,
com o uso significativo e conotativo das figuras de linguagem e recursos linguísticos.
Se a narrativa contemporânea relegou muitas dessas características a um plano secundário,
ou mesmo recusou-as na totalidade, os textos que formaram a história desse gênero épico-narrativo
foram construídos em atendimento e na tradição dos preceitos aristotélicos.
Ao estudar o gênero épico, Staiger ressalta que, mesmo sem abrir mão da organicidade e da
sequência das partes da epopeia, e citando Schiller, “A autonomia das partes é uma das características
principais da poesia épica”. Essa autonomia consiste na qualidade dos versos isolados, ou que podem
ser isolados, dentro da narrativa épica, pois “a finalidade do artista épico descansa em cada ponto de
seu movimento; por isso não nos apressamos impacientemente até um objetivo, e sim demoramo-nos
de bom grado a cada passo”, no dizer de Schiller (apud STAIGER, 1972, p. 103). Esse caráter de inde-
pendência dos versos da epopeia está correlacionado à concepção de que os últimos anos de vida de
um homem não decorrem dos primeiros, visto que não há ainda, em Homero, a concepção do ama-
durecimento, pois “o homem épico vive exclusivamente a vida de cada dia”, no entender de Staiger.

4.3 A passagem do épico ao romance


O gênero épico, pautado pelo discurso narrativo, traduzia uma visão de mundo apoiada
na coletividade. A sucessão histórica, no entanto, acentuou cada vez mais o papel do indivíduo,
destacando-o de sua comunidade.
Para Lukács (2000), o mundo homérico é entendido como a “infância feliz da humanidade”,
porque nele existe a integração entre interior e exterior, indivíduo e mundo, alma e ato. Nesse mun-
do prevalecem as ideias de harmonia e perfeição, embora convivam com a nostalgia de uma “pátria
arquetípica”. Há equilíbrio entre indivíduo e sociedade, configurando uma imagem de felicidade
helênica. O herói épico não é apresentado como um indivíduo isolado, mas como representante de
sua coletividade, ambos se confundem na narrativa.
Os historiadores apontam na Antiguidade clássica a existência de uma narrativa proto-
romanesca latina, o Satyricon, de Petrônio, uma feroz sátira social. A passagem para o romance se
deu paulatinamente, com a evolução das formas narrativas medievais, como as novelas de cavalaria,
canções de gesta, moralidades, exempla, farsas, fabliaux e a novela1 (AGUIAR E SILVA, 1976).

1 Exempla e moralidades eram narrativas de fundo moralizante. Farsas eram textos cômicos, visando a desmascarar
indivíduos e sociedade, geralmente em forma dramática, muito comuns e prestigiadas na Idade Média. Fabliaux eram
poemas narrativos em verso de cunho realista, cômico grosseiro, muitas vezes pornográficos, sem finalidade moralizante.
A novela é uma narrativa de feitos ora heroicos, existentes desde a Grécia Antiga, ora picarescos, com protagonistas
copiados do povo e com crítica social e sátira, ora bucólicos, ora sentimentais (MOISÉS, 1997). Também se atribui à
novela a definição de “narrativa feita de alguma matéria tradicional, arranjada de novo” (AGUIAR E SILVA, 1976).
Gêneros literários: o épico ou narrativo 53

Na Idade Média, há dois tipos de narrativas: a canção de gesta, destinada ao canto e cuja nar-
rativa girava em torno de um herói que representava uma ação coletiva; e o romance, que “se ocupa
das aventuras de uma personagem, criatura de ficção, por meio do vário e misterioso mundo, apre-
sentando um caráter descritivo-narrativo” (AGUIAR E SILVA, 1976). As canções de gesta eram
poemas épicos franceses, compostas do século XI ao século XIII, cuja ação se passava no século
VIII no reinado de Carlos Magno, em versos decassílabos, com estrofes de diferente número de
versos e declamadas por jograis. O termo romance foi atribuído a esse gênero por se tratar de nar-
rativas escritas em língua vulgar, o romanço, e não no latim tradicional. A palavra romance significa
como os romanos, à moda dos romanos. Diferentemente da canção de gesta, o romance medieval
é destinado à leitura e à recitação. Entre os romances do período, dois tipos se sobressaem: o ro-
mance de cavalaria e o romance sentimental. O primeiro deles reproduz uma cosmovisão galante e
cortês, mas também com comportamentos e ações guerreiras, apoiados substancialmente em dois
temas: o amor e a aventura, com final feliz para os amores narrados. As novelas de cavalaria trata-
vam dos feitos heroicos de cavaleiros medievais, como A busca do Graal, de Gautier Map (séc. XII),
o Amadis de Gaula (séc. XVI, anônimo). Já o romance sentimental pode conter maior dose de ero-
tismo ou maior dose de sentimentalidade. Personagens e ação narrativa acontecem em ambientes
burgueses ou aristocráticos, com predomínio do estudo do caráter amoroso e com final geralmente
trágico (AGUIAR E SILVA, 1976).
Quando, com as mudanças históricas, passa a se configurar um embate, um conflito entre
indivíduo e sociedade, um conflito que provoca a dilaceração das relações pessoais, internas e
externas, dos protagonistas, a epopeia, enquanto gênero narrativo, é substituída pelo romance.
Segundo Lukács (2000, p. 51), enquanto “a epopeia afeiçoa uma totalidade de vida acabada por ela
mesma, o romance procura descobrir e edificar a totalidade secreta da vida”. Esse caráter de segre-
do, de desconhecimento, investe o romance de um enfoque psicológico, desconhecido da epopeia.
Por isso, “a forma interior do romance é a marcha para si do indivíduo problemático, o movimento
progressivo que − a partir de uma obscura sujeição à realidade heterogênea puramente existente e
privada de significação para o indivíduo − o leva a um claro conhecimento de si”. Esse mergulho na
individualidade, no sujeito em conflito consigo mesmo e com a sociedade, demonstra um estado
de desequilíbrio constante, oposto ao mundo épico da Antiguidade.
No entanto, permanece na forma romanesca o caráter narrativo. A alteração do protagonista
herói não anula o caráter de objetividade do discurso narrativo e nem dos componentes do texto
literário (personagens, narrador, espaço, tempo). Se o verso é abandonado pela narração em prosa,
a presença dos demais elementos mantém o caráter narrativo e a proximidade entre as duas formas
literárias: a epopeia e o romance.
Mikhail Bakhtin, na obra Questões de Literatura e de Estética (1988), levanta algumas ques-
tões a respeito da passagem epopeia-romance:
É muito importante e interessante o problema da interação de gêneros no interior
da unidade da literatura, em dado período. Em certas épocas – no período clás-
sico dos gregos, no século de ouro da literatura romana, na época do classicismo
– na grande literatura (ou seja, na literatura dos grupos sociais preponderantes),
todos os gêneros, em medida significativa, completavam-se uns aos outros de
54 Teoria da literatura II

modo harmonioso, e toda literatura, enquanto totalidade de gêneros se apresen-


tava em larga medida como uma entidade orgânica de ordem superior. Porém,
é característico: o romance não entrava nunca nesta entidade, ele não participava
da harmonia dos gêneros. Naquela época, o romance levava uma existência não
oficial, fora do limiar da grande literatura. Na entidade orgânica da literatura,
organizada hierarquicamente, entravam somente gêneros constituídos, com per-
sonagens fixados e definidos. Eles podiam se limitar e se completar mutuamente,
conservando a natureza de seu gênero. (BAKTHIN, 1988)

Deve-se creditar, no entanto, às mudanças históricas um alargamento do gênero épico,


de vez que irão apresentar-se nos textos dessa categoria novas formas (crônica, conto, novela)
e outros modos de narrar, com multiplicação de narradores, fragmentação, tempos narrativos
complexos, personagens tão diferentes e numerosas como as personalidades humanas.
Para esse mesmo autor, a Grécia antiga produziu também romances, que ele denomina
“romances gregos” e que distingue como “romance de aventuras de provações” e “romance grego
ou sofista”. Ressalta que
todos os elementos do romance [...] sejam os de enredo, os descritivos, ou os
retóricos não são de modo algum novos: todos eles encontravam-se e foram
bem desenvolvidos em outros gêneros da literatura clássica: os temas de amor
(primeiro encontro, paixão à primeira vista, saudade) foram desenvolvidos
na poesia de amor helênica, outros temas (tempestades, naufrágios, guerras,
raptos) são desenvolvidos pela epopeia clássica. (BAKHTIN, 1988)

Essa nova perspectiva traz à discussão do gênero épico na passagem para o romance informa-
ções sobre a existência em tempos antigos de formas narrativas que virão a compor um novo cenário
da literatura em séculos posteriores, quando forem produzidas em maior quantidade e variedade.
Ao tratar dos romances que iniciam a nova tradição narrativa, Ian Watt (1990) assim trata
da alteração relativa ao tempo, comparando a narrativa romanesca às demais narrativas de épocas
anteriores da história da literatura:
um aspecto da importância que o romance atribui à dimensão do tempo:
sua ruptura com a tradição literária anterior de usar histórias atemporais para
refletir verdades morais imutáveis. O enredo do romance também se distingue
da maior parte da ficção anterior por utilizar a experiência passada como a
causa da ação presente.: uma relação causal atuando através do tempo substitui
a confiança que as narrativas ais antigas depositavam nos disfarces e coincidên-
cias; e isso tende a dar ao romance uma estrutura mais coesa. (WATT 1990)

A partir da segunda metade do século XVIII é que o romance se afirma como um tipo
de discurso literário com características parcialmente herdadas de textos narrativos anteriores,
mas com uma forma literária diferente, que se delineia com muito vigor à medida que a história
dessa forma se vai construindo.

4.4 Os tipos de epopeias


Os estudiosos divergem quanto à denominação e exemplificação dos tipos existentes de epo-
peias. É possível verificar que diferentes compreensões do gênero produzem classificações diferen-
tes para um mesmo texto. Apresentaremos a seguir duas dessas classificações.
Gêneros literários: o épico ou narrativo 55

4.4.1 Quanto à localização espaçotemporal


Vamos apresentar a seguir alguns tipos de epopeias que foram escritas ao longo da histórica
do Ocidente, obedecendo a um critério de espaço geográfico e de tempo histórico.

4.4.1.1 A epopeia clássica


Constituem esse grupo os textos criados na Grécia e em Roma. O texto épico clássico tem em
Homero o seu representante mais significativo. Suas duas epopeias, Ilíada e Odisseia, foram construídas
em forma de poema, com métrica regular, que facilitavam a memorização, e que foram cantadas em
partes – ou cantos – diante do público; cumpriam papel de construção do imaginário grego. Seu forma-
to mítico, destinado a explicar a origem remota do mundo e da história, é voltado a narrar o papel dos
deuses e os feitos dos homens, os valores ideológicos predominantes, o sentido de honra, a vingança,
os clãs familiares e tantos outros. O artista, por sua vez, prestava homenagem às musas e se reconhecia
como instrumento da beleza e da verdade artística.
Entre as principais obras dessa concepção homérica da epopeia, estão: a Ilíada e a Odisseia,
de Homero, e a Eneida, de Virgílio.

4.4.1.2 A epopeia medieval


Fazem parte dessa classificação obras que foram criadas anonimamente, escritas em latim vul-
gar e que se constituem em textos que divulgaram fatos e feitos que acabaram por constituir, ao longo
dos séculos, a ideia de uma unidade europeia medieval. Encontraram ambientação em regiões que
hoje constituem a Inglaterra, a Alemanha, a França e a Espanha. Desses textos, podemos citar:
• os poemas do ciclo de Carlos Magno, como A canção de Rolando, na França;
• a Canção dos Nibelungos, na Alemanha;
• o poema inglês Beowulf;
• o Cantar de mio Cid, na Espanha.
Também podem ser inclusos no período histórico medieval a epopeia de cavalaria Orlando
Apaixonado, de Matteo Maria Boiardo (1497), e A Divina Comédia, de Dante Alighieri (séc. XIV d.C.)

4.4.1.3 A epopeia do período do Renascimento e do Arcadismo


Fazem parte dessa categoria os poemas épicos que, sem perder as características de dicção
elevada, de heróis pertencentes a comunidades, já apresentam autoria, de modo a poderem ser
associada a poetas nominados. Estão nesse grupo:
• o texto modelar Orlando Furioso, do italiano Ludovico Ariosto (1532), que influenciou
muitos outros textos;
• Os Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões (1572), a maior e mais importante epopeia em
língua portuguesa;
• Jerusalém Libertada, de Torquato Tasso (1581), uma epopeia sobre as cruzadas;
• A Rainha das Fadas, de Edmund Spenser (1596);
56 Teoria da literatura II

• Paraíso Perdido, do poeta inglês John Milton (1667), a mais representativa das epopeias
em língua inglesa pela força dos personagens;
• L’Henriade, de Voltaire (1723-1728);
• O Uraguai, do brasileiro Basílio da Gama (1769);
• Caramuru, do brasileiro Santa Rita Durão (1781).

4.4.2 Segundo a gênese e as características formais do texto


• A epopeia natural, folclórica ou primitiva: “caracteriza-se por ser anônima e brotar
espontaneamente da alma dos povos jovens, espécie de criação coletiva de que o poeta
seria rapsodo ou compilador”(MOISÉS, 1997). Estariam nessa categoria Ilíada, Odisseia,
Canção de Rolando, Cantar del mio Cid.
• A epopeia erudita ou artificial: texto criado por um único poeta, como Eneida, de Virgílio,
Os Lusíadas, de Camões, e Divina Comédia, de Dante Alighieri (MOISÉS, 1997).
• A epopeia herói-cômica, em que os textos apresentam como ridículos personagens he-
roicos, enredos de tom elevado, conferindo a episódios insignificantes e rotineiros um
tratamento elevado. Estão nessa categoria poemas como:
• Batracomiomaquia, do século V a.C., outrora atribuída a Homero e posteriormente
ao poeta lendário Pigres;
• Moschea, (1521), de Teófilo Folengo, sátira às guerras de moscas contra formigas;
• Morgante, o grande (1482), de Luigi Pulci, que zomba do romance de cavalaria;
• O cântaro roubado (1622), de Alessandro Tassoni;
• Eneida travestida (1653), do francês Paul Scarron;
• Gatomaquia (1634), de Lope de Vega. (ENCICLOPÉDIA, 1981)
A enumeração de poemas e de características permite considerar a poesia épica como
composta por textos diferenciados e que se prolongam enquanto literatura ao longo dos séculos,
perdendo sua força pela irrupção do romance e de formas narrativas modernas, que virão a ocupar
o espaço mantido pela epopeia até, aproximadamente, o final do século XIX.

Ampliandoseus conhecimentos

O Romance de Cavalaria
(BAKHTIN, 1488, p. 269-271)

No romance de cavalaria, a aparência do acaso (de todas essas coincidências e não coincidên-
cias fortuitas) não é a mesma do romance grego. Lá, trata-se de um mecanismo tosco de dis-
crepâncias e semelhanças temporais num espaço abstrato repleto de raridades e curiosidades.
Aqui, o acaso tem o atrativo do maravilhoso e do misterioso, ele se personifica na imagem de
fadas boas e más, de mágicos bons e maus, ele fica à espreita nos bosques, nos castelos encan-
tados etc. Na maioria das vezes, o herói não sofre calamidades, interessantes somente para
o leitor, mas aventuras maravilhosas, interessantes (e fascinantes) também para ele mesmo.
A aventura recebe um tom novo devido a todo esse mundo maravilhoso onde ela ocorre.
Gêneros literários: o épico ou narrativo 57

Mais adiante, nesse mundo insólito, realizam-se atos heroicos que glorificam os próprios
heróis e pelos quais eles glorificam os outros (os suseranos, a dama). O ato heroico distingue
nitidamente a aventura do romance de cavalaria da aventura do romance grego, aproximan-
do-a da aventura épica. O elemento glória e glorificação era também absolutamente estranho
ao romance grego e do mesmo modo aproxima o romance de cavalaria ao epos.
Diferentemente dos heróis do romance grego, os heróis do romance de cavalaria são indivi-
duais e ao mesmo tempo representativos. Os heróis dos romances gregos parecem-se com os
outros, mas têm nomes diferentes, sobre cada um deles pode-se escrever apenas um romance,
á sua volta não se criam ciclos, variantes, série de romances de vários autores, cada herói é
propriedade particular de seu autor e lhe pertence como um objeto. Todos eles [...] não repre-
sentam nada nem ninguém, têm vida própria. Os vários heróis dos romances de cavalaria em
nada se parecem uns com os outros, nem pela aparência, nem pelo destino. Lancelot não se
assemelha a Parzival. Parzival não se assemelha a Tristão. Em compensação, sobre cada um
deles são criados vários romances. Estruturalmente falando, eles não são heróis de romances
isolados (e, estritamente falando, não há romances de cavalaria isolados, fechados sobre si
mesmos, individuais), eles são heróis de ciclos. E eles, naturalmente, não pertencem a cada
romancista como propriedade particular (é evidente que não se trata da ausência de direitos
autorais e de representação), eles são semelhantes aos heróis épicos, pertencem ao repositório
comum das figuras, que é na verdade internacional e não nacional como no epos.
Enfim, o herói e o mundo maravilhoso onde ele atua constituem um único bloco, não havendo
fendas entre eles. É bem verdade que esse mundo não é a pátria nacional, por toda parte ele
é uniformemente estrangeiro (sem que esse caráter seja acentuado), o herói passa de país em
país, confronta-se com diversos suseranos, realiza viagens marítimas, mas seu mundo é sem-
pre uno e sempre preenchido por uma mesma fama, por uma mesma concepção dos atos
heroicos e da desonra; o herói pode glorificar a si e aos outros por todo esse mundo; em toda
parte são aclamados os mesmos nomes célebres.
Nesse mundo o herói sente-se em casa (mas não na sua pátria); ele é tão maravilhoso como
esse mundo: maravilhosa é sua origem, maravilhosas são as circunstâncias do seu nascimento,
de sua infância e juventude, maravilhosa é sua natureza física e assim por diante. Ele é a carne
e o osso do osso desse mundo de maravilhas: é o seu melhor representante.
Todas essas singularidades do romance de aventuras de cavalaria diferenciam-no radical-
mente do romance grego, aproximando-o do epos. O primeiro romance de cavalaria em ver-
sos tem sua base nos limites entre o epos e o romance, o que determina seu lugar especial na
história do romance. Com as particularidades indicadas determina-se também o cronotopo
[que significa “tempo-espaço] original desse romance – um mundo maravilhoso num tempo
de aventuras.
A seu modo, esse cronotopo é muito limitado e circunscrito. Ele não está mais repleto de rari-
dades e curiosidades, mas de magia; nele, cada coisa − armas, roupas, fontes, pontes etc. − tem
alguma propriedade mágica ou simplesmente encantadora. Esse mundo também tem muito
de simbólico, não do caráter grosseiro de um rébus [romance de enigma], mas se aproximando
da fábula oriental.

Atividades
1. Assista ao filme Troia, dirigido por Wolfgang Petersen, de 2004, da Warner Brothers,
e comente a figura do herói Aquiles, considerando as características do gênero épico.
58 Teoria da literatura II

2. Escolha um herói de romance e procure verificar nele se há características do gênero épico.


Crie um quadro comparativo e comente o resultado.

3. Avalie e faça uma comparação entre as primeiras estrofes de Eneida, de Virgílio e Os Lusíadas,
de Camões.

Eneida

LIVRO I

Eu, que entoava na delgada avena


Rudes canções, e egresso das florestas,
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
A avidez do colono, empresa grata
Aos aldeãos; de Marte ora as horríveis
Armas canto, e o varão que, lá de Troia
Prófugo, á Italia e de Lavino ás praias
Trouxe-o primeiro o fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
E o lembrado rancor da seva Juno;
Muito em guerras sofreu, na Ausonia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros veem da sublimada Roma.

(Públio Virgílio Marão)

Os Lusíadas

As armas e os barões assinalados,


Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando;
E aqueles, que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando;
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

(Camões)
5
Gêneros literários: o dramático

O gênero dramático tem seu nome derivado do termo grego drama, que significa ação.
Essa origem acabou por marcar a natureza desse tipo de texto: refere-se, como queria Aristóteles,
às “pessoas que agem e obram diretamente” (ARISTÓTELES, 1964, p. 264), isto é, os atores sobre
o palco e as personagens em suas falas. Do ponto de vista textual, os diálogos – isto é, as falas di-
retas – constituem o traço distintivo, específico do gênero dramático. O narrativo e o dramático
se aproximam como gênero por três razões:
• narram uma história;
• representam a realidade por meio de personagens; e
• contêm falas-diálogos como uma das formas diretas desses personagens dizerem e
se dizerem.
E, além dessas três características, o teatro busca necessariamente outra manifestação
direta: o palco. As peças de teatro, que compõem o gênero dramático, foram escritas para se-
rem representadas física e concretamente em um espaço que, se não foi destinado para esse fim
exclusivo – o teatro −, transforma-se em cenário, em palco, por força da presença e da atuação
das personagens, encarnadas por atores.
Todavia, embora destinado ao palco, o drama tem existência própria e pode ser estudado
enquanto gênero literário e texto verbal com características específicas. Esse é o enfoque que nos
interessa desenvolver: o drama como peça teatral, como dramaturgia, isto é, uma forma de compo-
sição literária com características próprias que a distinguem e a individualizam.

5.1 A teoria aristotélica do trágico


A obra intitulada Poética foi escrita por Aristóteles em data pouco precisa, mas segura-
mente no século IV a.C. Ela chegou até nós conforme uma cópia manuscrita feita no século
XII d.C., acrescida de versões dos séculos XIII e XIV e da tradução árabe do século X. Trata-se,
portanto, de obra reconstituída, de vez que seus originais não conseguiram atravessar os séculos.
É um volume que trata da epopeia e da tragédia, vistos como gêneros que têm algumas caracte-
rísticas em comum. A parte relativa à teoria da comédia, anunciada no volume sobre a tragédia,
desapareceu completamente.
Os dados históricos sobre essa reconstituição não prejudicaram o enorme sucesso que a obra
exerceu ao longo dos séculos na cultura ocidental. É um texto composto por 27 capítulos curtos,
repletos de exemplos e citações, em um formato muito didático. Há especulações sobre o fato de
essa obra não ter sido escrita totalmente por Aristóteles, tendo sido completada por discípulos e até
comentadores tardios. A base da teoria dessa obra, que acabou se transformando em normatização
para o gênero dramático ao longo dos tempos até a chegada do Romantismo, no século XIX, é a
definição dada por Aristóteles para o gênero:
60 Teoria da literatura II

A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão;


num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas for-
mas, segundo as partes; ação apresentada, não com a ajuda de uma narrativa,
mas por atores, e que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a
purgação dessas emoções. (ARISTÓTELES, 1964, p. 271)

O livro Poética está organizado conforme a sequência a seguir:


• os três primeiros capítulos tratam da mimese;
• capítulo 2 – distinção entre comédia e tragédia;
• os capítulos 4 e 5 apresentam uma teoria sobre gêneros literários;
• capítulo 6 – definição da tragédia e de seus componentes;
• capítulos 7 a 22 – estudo minucioso dos componentes da tragédia – enredo, caráter, pen-
samento, elocução, espetáculo e música (melopeia);
• capítulo 9 – distinção entre poesia e história;
• capítulo 13 – uma discussão sobre personagem;
• capítulo 14 – os enredos que causam piedade e terror;
• capítulo 15 – a passagem da cópia da natureza à criação artística e os objetivos do desen-
volvimento da personagem;
• capítulo 16 – tipos de reconhecimento;
• capítulo 17 – processos de construção da peça teatral;
• capítulo 18 – estrutura da peça, classificação e papel do coro;
• capítulo 19 a 23 – qualidades da elocução e do pensamento;
• capítulos 24 a 27 – distinção entre epopeia e tragédia.
Essa organização dos poucos capítulos abrange uma vasta quantidade e uma grande variedade
de assuntos relacionados à forma da tragédia e aos princípios que regem o sentimento trágico, que está
presente em outras obras literárias além da tragédia e leva à investigação frequente da Filosofia e da
Antropologia. Pavis (1999) enumera os componentes do que denomina sistema clássico da tragédia,
o qual transcende uma orientação de como se estrutura uma tragédia e busca seu sentido permanente,
que por sua vez mantém a importância da tragédia grega ao longo dos séculos.
Adotaremos a classificação das características do trágico em Patrice Pavis combinadas com
a teorização de Aristóteles sobre esses itens. Podemos enumerar os aspectos constitutivos do texto
trágico conforme expomos a seguir.

5.1.1 O conflito e o momento


Segundo Pavis (1999, p. 417), “o trágico é produzido por uma série de catástrofes ou de
fenômenos naturais horríveis, mas por causa de uma fatalidade que persegue encarniçadamente
a existência humana”. Há nesse conceito a ideia de que o conflito, o embate de forças igualmen-
te poderosas, nasce da própria natureza humana: os fatos que representarão mais concretamente
essa tragédia (mortes, suicídios, acidentes) representam apenas a concretização da fatalidade que
Gêneros literários: o dramático 61

já habita o ser humano. Tudo isso se organiza para que, conforme escreve Aristóteles, “se trata,
não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também fatos capazes de excitarem o terror e a
compaixão, e estas emoções nascem principalmente quando os fatos se encadeiam contra nossa ex-
pectativa, pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna”
(ARISTÓTELES, 1964, p. 279).

5.1.2 Os protagonistas
Encontramos em Aristóteles (1964, p. 271) a preocupação em estabelecer a razão de ser das
personagens, como quando afirma, no capítulo VI:
como a imitação se aplica a uma ação e a ação supõe personagens que agem,
é absolutamente necessário que essas personagens sejam tais ou tais pelo cará-
ter e pelo pensamento (pois é segundo estas diferenças de caráter e de pensa-
mento que falamos da natureza de seus atos); daí resulta naturalmente que são
duas as causas que decidem dos atos: o pensamento e o caráter: e, de acordo
com estas influências, o fim é alcançado ou falhado.

Para o teórico grego, quatro são os aspectos que regem a personalidade, o caráter de
um personagem:
• o primeiro é que deve ser de boa qualidade – “A personagem terá caráter se suas palavras
e ações revelarem' escolha premeditada, e será bom o caráter se a escolha for boa”;
• o segundo aspecto é o da conformidade – qualquer que seja o comportamento, ele deve
corresponder logicamente ao tipo ou gênero que encarna, pois mulheres não se compor-
tam como homens e vice-versa;
• o terceiro aspecto corresponde à semelhança, isto é, se a personagem é compatível com a
realidade que imita;
• o quarto aspecto é a coerência consigo mesmo, isto é, a necessidade de permanecer ao
longo da tragédia com as mesmas características.

Obedecidos esses aspectos, a personagem ganha qualidade e força dramática.


Pavis (1999, p. 417) esclarece que “qualquer que seja a natureza exata das forças em confron-
to, o conflito trágico clássico sempre opõe o homem e um princípio moral ou religioso superior”.
Portanto, as personagens – mesmo as mais poderosas, como reis, príncipes e guerreiros – são fracas
e submissas a um destino que as esmaga e destrói.

5.1.3 A reconciliação
Para Pavis, “apesar do castigo e da morte, o herói trágico se reconcilia com a lei moral e
a justiça eterna” (1999, p. 417). Esse aspecto confere exemplaridade aos textos trágicos gregos,
de vez que a representação dos dramas sobre o palco visavam a educar os espectadores, seja na
informação sobre a origem mitológica do povo grego, seja nos ensinamentos morais, axiológicos
e ideológicos presentes nas narrativas dramáticas.
62 Teoria da literatura II

5.1.4 O destino
A noção de destino (que em grego é identificado pela palavra moira) é fundamental para a
tragédia grega e representa a luta mais importante que o homem trava ao longo da vida:
O destino assume às vezes a forma de uma fatalidade ou de um destino que
esmaga o homem e reduz a nada sua ação. O herói tem conhecimento dessa
instância superior e aceita confrontar-se com ela sabendo-se que está selando
sua própria perda ao dar início ao combate. (PAVIS, 1999, p. 417)

5.1.5 A liberdade e o sacrifício


Em decorrência do conflito entre o herói e as entidades superiores que representam o
destino, o sentimento trágico pode se transformar em uma afirmação de liberdade:
O trágico é, portanto, tanto a marca da fatalidade quanto a fatalidade livre-
mente aceita pelo herói: este resgata o desafio trágico, aceita lutar, assume a
falta (que às vezes lhe é imputada equivocadamente) e não procura compro-
misso algum com os deuses: está disposto a morrer para afirmar sua liberda-
de. (PAVIS, 1999, p. 417)

5.1.6 A falha trágica


Assim o herói trágico é definido por Aristóteles: “Permanece entre os casos extremos o herói
colocado numa situação intermediária: a do homem que, sem se distinguir por sua superioridade
e justiça, não é mau nem pervertido, mas cai na desgraça devido a algum erro” (ARISTÓTELES,
1964, p. 272). Esse erro (em grego denominado hamartia) será a causa efetiva do desenlace trágico
e do castigo imposto ao herói. O termo hamartia pode se referir ao orgulho ou ao delírio ocasio-
nado pela vontade dos deuses. Qualquer que seja essa falha trágica, ela será a responsável pelo
desfecho, pelo resultado final da ação trágica.

5.1.7 O efeito produzido: a catarse


Aristóteles não considerou apenas a peça trágica como um objeto textual a ser descrito,
classificado e apreciado: também se preocupou em definir a função que o espetáculo criado com
base no texto poderia exercer sobre os espectadores. Nomeou esse efeito de catharsis, que definiu
como “ação apresentada [...] que, suscitando a compaixão e o terror, tem por efeito obter a purga-
ção dessas emoções”. Não há consenso na crítica sobre o entendimento dessa função: “não se sabe
se é eliminação das paixões ou purificação pelas paixões” (PAVIS, 1999, p. 417). Qualquer que seja
o entendimento, fica saliente o conceito moralizador do teatro para a sociedade grega, pois assistir
aos espetáculos era viver a experiência de uma possível transformação interior, uma aprendizagem
de modos de tratar as relações do homem com o destino, com o sofrimento, com medos interiores.
Aristóteles afirma que são seis as partes que compõem a tragédia:
• a fábula, isto é, o mito;
• os caracteres, isto é, as personagens;
Gêneros literários: o dramático 63

• a elocução, isto é, a composição métrica e as figuras;


• o pensamento;
• o espetáculo apresentado; e
• a melopeia.
Aristóteles também trata da unidade e da coerência da fábula, isto é, da ação com começo,
meio e fim e com uma extensão limitada no tempo.
Seguida com certo rigor pelos tragediógrafos até o século XIX, a normatividade da Poética
não impediu a criação de textos que escaparam parcialmente a esses padrões, como as obras de
Sêneca e de Shakespeare. Essa fuga ao normativismo aristotélico representa o início do proces-
so de modernização da dramaturgia, que irá culminar na criação do drama, em 1827, quando,
no prefácio a sua peça Cromwell, Victor Hugo defendeu a ideia de um texto unindo o grotesco e o
sublime, a tragédia e a comédia. A esse novo subgênero, Hugo denominou drama.

5.2 A dramaturgia épica


No século XX, ganhou forma uma outra teoria a respeito do teatro e da dramaturgia. Essa
nova teoria nasceu com os estudos e as peças do dramaturgo e diretor alemão Bertolt Brecht
(1898-1956). Em sua proposta de uma maneira diferente de fazer teatro, esse dramaturgo foi bus-
car em fontes diversas os procedimentos e valores para dar base sólida a suas ideias. Os mistérios
da Idade Média, o teatro asiático e o próprio teatro clássico europeu lhe forneceram os materiais
cênicos e dramatúrgicos para o que denominou teatro épico, que reúne no mesmo texto dois gêne-
ros literários: o dramático e o épico. Brecht expôs seu pensamento em Observações sobre a Ópera
“Mahagonny” (1931) e no Pequeno Organon (1948).

5.2.1 Em que consiste essa nova dramaturgia?


Em primeiro lugar, o acontecimento passado é mostrado pela narração de forma distan-
ciada. O narrador serve de intermediário, mantendo à distância a possibilidade de identificação
imediata com personagens ou situações dramáticas. As personagens são apresentados de forma
objetiva, como nas narrativas épicas. O narrador se permite interferir na ação representada para
dar a sua perspectiva ou comentar o que está sendo apresentado.
Há distanciamento no tempo da ação e no seu espaço: sempre a ação é deslocada para sé-
culos anteriores e para lugares distantes da Alemanha e até da Europa (Ásia, Estados Unidos e
outros). A intenção principal é fazer do leitor e do espectador juízes dos acontecimentos, que são
distantes e imparciais. Sem perder a qualidade de entretenimento, é um teatro para levar à reflexão
e à tomada de posição política, visando à transformação da realidade.
64 Teoria da literatura II

A seguir, apresentamos alguns princípios e conceitos aplicados à dramaturgia e ao


espetáculo épico.
Distanciamento entre ator e personagem, conquistado por meio da denúncia da teatralida-
Efeito V ou efeito de
de, da não identificação completa do ator com o papel a ser representado e forte presença
distanciamento
do narrador.
Conjunto de gestos, mímica e pantomima capaz de identificar socialmente e historica-
Gestus ou gestus social
mente a personagem, sua relação com as demais e sua atitude crítica diante da sociedade.
O social determina o pensar do homem. Por isso, no épico, personagens e espectadores são
Caráter social
seres em processo, mutáveis diante do mundo e com capacidade de interferir na sociedade.
O choque entre conteúdo e forma e a heterogeneidade entre os significados dos signos
Pensamento dialético formadores do texto e da cena provocam a formação dialética dos argumentos e dos
acontecimentos.
A emoção está presente no teatro épico, mas deve ser objeto de reflexão do espectador,
O papel da emoção
para impedir a identificação com ela, a fim de não prejudicar a observação e o raciocínio.
A unidade do espetáculo épico não está na ação, tampouco no espaço e no tempo: está
na figura do narrador, em que se projetam os acontecimentos e as demais personagens.
A função da unidade
O espetáculo épico poderia ser cortado em mil pedaços e, ainda assim, manter-se-ia vivo
como tal.
A ação retrocede e avança, pois o narrador narra os acontecimentos. Dessa forma, é o
Ação dramática
narrador que se movimenta em torno da ação épica, que parece estar em repouso.
A ação narrada está no pretérito. Por isso não há encadeamento linear, tampouco suces-
Tempo da ação são rigorosa de acontecimentos, podendo a ação dar saltos de acordo com o objetivo
didático da peça.

5.3 As duas linguagens do gênero dramático


Em 1957, o teórico alemão Roman Ingarden escreveu um artigo intitulado As funções da
linguagem teatral, em que analisava a composição do texto dramático e estabelecia uma dupla
articulação na linguagem apresentada pelo texto escrito dessa modalidade discursiva. Ingarden
considerou o teatro como um “caso-limite da obra de arte literária. As palavras pronunciadas pelas
personagens formam o texto principal da peça de teatro enquanto as indicações para a direção da-
das pelo autor formam o texto secundário” (INGARDEN, 1978, p. 3). A divisão, portanto, em texto
principal e texto secundário permite distinguir as duas modalidades de linguagem presentes em um
texto dramático. Elas não são distintas apenas da perspectiva visual (a linguagem secundária vem
impressa em itálico, negrito, maiúsculas ou entre parênteses, enquanto a linguagem principal vem
em fonte normal), mas principalmente no modo de realização mental e nas funções que têm dentro
do universo do teatro.
A linguagem secundária se manifesta na rubrica ou didascália. Roman Ingarden a denomi-
nou linguagem secundária, sem atribuir ao adjetivo nenhum critério de valor: secundária porque
não se transforma em palavra dita; secundária por tomar outra via que não a da oralização para
acontecer, como o faz o diálogo ou fala; secundária porque dialoga com a fala das personagens em
outros códigos que não os verbais.
Vejamos um exemplo concreto, um fragmento da comédia-opereta (também denominada
revista-de-ano) A Capital Federal, de Artur Azevedo (1987, p. 369-370), encenada no Rio de Janeiro
em 1873. Na cena reproduzida, Eusébio (um homem do interior, casado com Fortunata) visita a
Gêneros literários: o dramático 65

cidade do Rio de Janeiro (naquela época a capital do Brasil) e se prepara para encontrar Lola, uma
espanhola por quem se sente atraído, mas é recebido por Lourenço, o cocheiro dela.

CENA V
EUSÉBIO, LOURENÇO
EUSÉBIO (consigo) – Sim, sinhô; isto é que se chama vi busca lã e saí tosquiado!
Se Dona Fortunata soubesse... (Dando com Lourenço.) Vamos lá, seu... cumo o
sinhô se chama?
LOURENÇO – Lourenço, para servir a Vossa Excelência.
EUSÉBIO – Vamos lá, seu Lourenço... (Sem arredar pé de onde está.) Isto é o
diabo! Enfim!.. Mas que espanhola danada! (Encaminha-se para a porta e faz
lugar para Lourenço passar.) Faz favô!
LOURENÇO – (Inclinando-se.) – Oh, meu senhor... isso nunca... eu, um
cocheiro!... Então! Por obséquio!
EUSÉBIO – Passe, seu Lourenço, passe que o sinhô é de casa, e está fardado!
(Lourenço passa e Eusébio acompanha-o.)

No conjunto de palavras desse fragmento, observa-se a diferença gráfica entre diferentes


conjuntos (maiúsculas, itálico, alternância de formas gráficas). As sentenças destinadas à fala dos
atores (portanto, a serem efetivamente pronunciadas) são entrecortadas por informações destina-
das a ser representadas por atores, sem palavras: inclinando-se, passa, acompanha-o. Outras rubri-
cas desaparecerão na representação cênica, como os nomes das personagens em maiúsculas e o
número do ato. No texto escrito dramático, a linguagem secundária aponta para fora dele, para a
encenação. Mas enquanto escrito e lido, pode auxiliar o leitor a realizar mentalmente o espetáculo
de teatro, encená-lo na imaginação, complementando a compreensão do texto que lê. Durante o
espetáculo, essa linguagem secundária (escrita em signos verbais) se transformará em outras lin-
guagens do teatro: o gesto, a movimentação cênica, o figurino, o cenário, a música e outras mais.
Natureza misteriosa a dessa palavra do texto dramático, que não se quer pronunciada, mas
quer entrar no cérebro do espectador por caminhos plurais – nem sempre eficazes para a com-
preensão. O risco de não ser compreendida é assumido e pode ser compensado pela múltipla codi-
ficação oferecida ao leitor. Esse processo de recusa do percurso usual da palavra para ir ao encontro
de outras vias de realização, mais custosas e de resultado menos certeiro, foge à lei de economia da
língua – na qual se privilegia a relação custo-benefício – para instalar-se no terreno dos valores.
Entre esses valores, ressaltamos os de ordem histórica, individual e estética.
A tragédia e a comédia antigas usavam esse recurso da rubrica com parcimônia, pois o teatro
clássico concebia o cenário como convenção: as três portas a indicar sempre os mesmos espaços
poupavam a rubrica descritiva de cenário, tornando-a por vezes simples formalidade.
Para André Helbo (1989, p. 25), esse texto de produção ou de direção cênica pode ter quatro
diferentes tipos de orientação:
66 Teoria da literatura II

• pensadas para o ator – concernente aos detalhes de interpretação;


• pensadas para a encenação – referentes às demais linguagens cênicas, como luz, cenário,
iluminação etc.;
• pensadas para o leitor – colocadas no texto preferencialmente para a leitura individual; ou
• pensadas para o espectador implícito – de direção individual, mas apontando para
a encenação.
Do ponto de vista histórico, as rubricas foram se tornando mais numerosas na medida em
que o teatro se aproximou do século XX. No teatro clássico greco-latino ou no teatro renascentista
e no teatro clássico francês, bem como em Shakespeare, seu uso foi contido, muitas vezes retirado
do próprio diálogo entre as personagens, quando em versões póstumas. Mas o século XX tem sido
pródigo em sua quantidade e sua variedade. Pode-se relacionar esse acréscimo justamente à rarefa-
ção do diálogo dramático e à acentuação das qualidades cênicas do espetáculo.
O mesmo André Helbo aponta para três ocorrências típicas de uso da rubrica:
• quando o espetáculo previsto pelo texto escrito descarta a palavra falada, as rubricas são
responsáveis pelas cenas silenciosas;
• quando o espetáculo se refere a um texto dramático ausente, a rubrica assume a função de
uma versão imitativa de textos já conhecidos;
• quando o espetáculo alude implicitamente a uma voz dramática ausente – por exemplo,
quando a encenação joga com a contradição entre o que é dito e o que é contracenado –,
a rubrica pode ter uma feição dialética.

Também devemos considerar a diferença entre a quantidade de rubricas quando se trata de


diferentes gêneros do texto dramático: a quantidade de indicações existente nas comédias supera
em muito a quantidade de rubricas em tragédias no teatro grego, no qual, por exemplo, não se en-
contram interferências dessa linguagem secundária na fala das personagens.

5.4 Texto dramático e texto cênico


Para distinguir esses dois tipos de texto que dizem respeito ao gênero dramático e seu des-
dobramento para o palco, Anatol Rosenfeld (1991, p. 21) assim os define em Prismas do Teatro:
O teatro não é literatura, nem veículo dela. É uma arte diversa da literatura. O texto,
a peça, literatura enquanto meramente declamados, tornam-se teatro no momento
em que são representados, no momento, portanto, em que os declamadores, através
da metamorfose, se transformam em personagens. A base do teatro é a fusão do
ator com a personagem, a identificação de um eu com outro eu – fato que marca
a passagem de uma arte puramente temporal e auditiva (literatura) ao domínio de
uma arte espaço-temporal ou audiovisual.

Perseguindo o objetivo de esclarecer como se dá a diferença entre os gêneros, Rosenfeld diz


que o gênero lírico apresenta:
Gêneros literários: o dramático 67

• a fusão eu-mundo;
• o eterno momento presente;
• a marca linguística do eu;
• a função expressiva;
• a interjeição “Ai!” parece ser a melhor representação do sentimento poético; e
• o lugar central da pessoa é estar em fusão com o mundo.
Já no gênero épico:
• o eu está em face do mundo narrado, que se desenvolve a partir do passado;
• os pronomes que melhor expressam o épico são ele, ela, isto aí;
• o texto tem função representativa;
• “Eis aí” seria a melhor expressão da posição do narrador; e
• o lugar central da pessoa é estar inserida no mundo narrado, que a envolve de todos os
lados.
Enquanto isso, no gênero dramático:
• o leitor tem acesso ao mundo emancipado da subjetividade, à tensão para o futuro e à
forma linguística do diálogo – expressa pelo tu;
• as funções da linguagem são a expressiva e a interpelativa;
• “Deves fazer isso!” seria a fórmula da fala dramática; e
• o lugar central da pessoa é destacado do restante, é um lugar livre e autônomo.
Para Rosenfeld (1991, p. 40), “O discurso dramático, que prepara para a decisão ou leva a
ela, é uma forma de ação; no fundo, tem somente significado enquanto fonte de futuro, expressão
da vontade. [...] O diálogo é a arquiforma de toda dialética, é contradição e síntese ao mesmo
tempo”. Já segundo Maria del Carmen Bobes (1987, p. 15, tradução nossa), em Semiologia da Obra
Dramática, “A obra se desdobra em texto literário e texto espetacular. O receptor também se torna
complexo porque será um leitor individual (leitura) ou será um espectador coletivo (público)”.
Osório Mateus considera que a diferença entre o texto escrito verbal e a representação se-
miótica está embrionariamente contida no texto escrito:
Trata-se de um texto necessariamente operável: as indicações destinam-se à exe-
cução; todos os acontecimentos indicados pelas didascálias ou pressupostos pelas
réplicas são programas de operação (e, neste sentido também, referência a uma
situação concreta do discurso); por outro lado, as réplicas implicam necessaria-
mente um projeto de oralidade, que é uma outra forma específica de execução.
(MATEUS, 1977, p. 25)

Nessas considerações a respeito das diferenças e da significação de cada um dos textos, seja
dramaturgia, seja texto encenado, Anne Ubersfeld escolhe tratar do primeiro em sua obra Lire le
Théatre (1977), em que afirma que o texto de teatro, impresso ou manuscrito, possui um certo
número de características:
68 Teoria da literatura II

• sua matéria de expressão é linguística;


• ele se diz diacronicamente, segundo uma leitura linear, em oposição ao caráter material-
mente polissêmico dos signos de representação;
• a leitura é pouco confortável devido ao grande número de trous textuels (vazios textuais);
• as rubricas podem ser contraditadas pela mobilização dos signos quando da representação;
• trabalha com a identificação e o distanciamento, a denegação e a ilusão teatral
(cf. UBERSFELD, 1977, p. 23).
É possível verificar que as diferentes posições a respeito do texto dramático, em sua relação
com a literatura, conseguem – por sua variedade – complementar a caracterização e a importância
do estudo específico do texto escrito, mesmo que a princípio ele esteja destinado ao palco e aos
atores. Isso porque ao longo dos séculos a dramaturgia se impôs como forma e natureza específicas
para tratar do homem, da sociedade e da arte.

5.5 Formas principais do gênero dramático


As formas ou espécies literárias estão fortemente relacionadas com os períodos estético-his-
tóricos. Como o teatro é uma arte profundamente relacionada com os públicos, sua recepção pode
ser imediata e, portanto, ele é dependente do sucesso ou fracasso dessa recepção. Daí que os dra-
maturgos constantemente procurem expressar em formas aceitáveis suas ideias. Em um movimen-
to dialético, também a história do teatro registra rupturas formais, novas espécies surgidas de um
desejo de inovação e do desgaste de certas formas, transformadas em fórmulas. Vamos apresentar
algumas das principais espécies (formas) registradas pela história do teatro ocidental.

5.5.1 Formas clássicas


Da Antiguidade greco-latina, herdamos formas de composição dramatúrgica e de represen-
tação teatral que permanecem com vigor nos dias de hoje, como a tragédia e a comédia, evidente-
mente atualizadas. Quanto ao drama satírico, ele se perdeu na cultura ocidental de hoje.

5.5.2 A tragédia
A palavra provém dos termos grego tragos (“bode”) e ode (“canto”), em uma referência aos
rituais de homenagem a Dioniso – o deus do vinho, das plantações e do teatro –, nos quais se
sacrificava um bode para se obter a proteção divina. Aristóteles construiu desde muito cedo na
Teoria da Literatura as definições e características dessa forma teatral. Vale relembrar que, ao longo
de séculos, a tragédia foi considerada a forma mais perfeita de teatro, como tratamos na primeira
parte deste capítulo.

5.5.3 A comédia
Etimologicamente, significa canto da aldeia ou canto dos aldeões, dos termos gregos comos
(“aldeia”) e ode (“canto”). Os historiadores registram que a comédia nasceu de rituais ao deus
Dioniso, a quem se atribuíam a alegria, a dança e o erotismo, já que ele liberava os sentidos por
força do vinho, bebida como é associado. As personagens cômicas são de extração social modesta,
Gêneros literários: o dramático 69

o desfecho é feliz e a função é provocar o riso pela amostra do ridículo dos comportamentos hu-
manos. Tem função de corrigir vícios e defeitos, mas o faz de forma irônica e cômica. É por vezes
violenta e obscena; por outras, leve e galante.
Estão inclusas nessa classificação ampla:
• as comédias altas e baixas da Antiguidade;
• a comédia-balé do século XVII;
• a comédia de caráter, em que as personagens são apresentadas com muita perfeição;
• a comédia de costumes, de vida longa e que trata dos comportamentos sociais;
• a comédia de ideias, comum ao final do século XIX e em todo o século XX, tendo nos
argumentos o foco principal;
• a comédia de intriga, repleta de reviravoltas, tendo a ação como principal elemento;
• a comédia de situação, em que o quiproquó, os enganos e as trocas são elementos indispensáveis;
• a comédia heroica, meio-termo entre a tragédia e a comédia, predominando a psicologia
e os compromissos burgueses;
• a comédia lacrimosa do Romantismo;
• a comédia pastoral dos séculos XVI e XVII, de natureza bucólica;
• a comédia satírica, de crítica à sociedade ou a certos ridículos humanos (cf. PAVIS, 1999).
Herdada da Antiguidade, a comédia é uma forma teatral de muita riqueza e variedade, que
demonstrou muito vigor e até hoje desperta constante interesse, atraindo públicos de diferentes tipos.

5.5.4 O drama satírico


Era composto de enredos que tratavam da vida do deus grego Dioniso (denominado Baco
entre os romanos). Tais enredos eram representados como peças obrigatórias nos concursos tea-
trais da época grega clássica.

5.6 Formas medievais


A Idade Média contribuiu para a história das formas teatrais com textos de caráter sobretudo
religioso, o que seria de se esperar de uma época em que a cultura e a própria vida giravam em
torno da teologia.

5.6.1 O mistério
Peça religiosa que tratava de episódios da vida de Cristo, episódios da Bíblia.

5.6.2 O milagre
Peça religiosa que tinha como assunto a vida de homens piedosos e santos, com intenção
didática e moralizante.
70 Teoria da literatura II

5.6.3 O auto
Também denominado auto sacramental, era peça de cunho religioso, frequente na Espanha e
em Portugal. No Brasil, chegou com José de Anchieta, que escreveu e encenou com os índios vários
autos em português, latim, tupi e espanhol. Os autos tratavam de problemas morais e teológicos.

5.6.4 A farsa
Embora existisse já na Grécia, essa espécie de texto desenvolveu-se muito na Idade Média.
A palavra provém do francês farcir, que significa rechear. Era composta de cenas cômicas que
se incluíam no meio dos autos religiosos para agradar e chamar a atenção dos fiéis. Tem caráter
grosseiro, por vezes escatológico. É uma forma resistente ao tempo, muito popular, e que, por ve-
zes, assume um caráter subversivo: “Graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da
realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a angústia
trágica” (PAVIS, 1999, p. 164).

5.7 Forma renascentista: a tragicomédia


Essa forma dramática surgiu no século XVI, combinando elementos da tragédia e da co-
média. Não apresenta acontecimentos funestos e o desfecho é feliz, embora não seja cômico. Pode
fazer uma fusão do real com o imaginário e, por vezes, traz a presença do maravilhoso. É uma nar-
rativa com reconhecimentos, peripécias e aventuras galantes. Em alguns autores, há preocupação
“com o espetacular, com o surpreendente, com o heroico, com o patético, com o barroco” (PAVIS,
1999, p. 420).

5.8 Forma do Iluminismo: o drama burguês


Também denominado tragédia burguesa, era considerado um gênero sério, intermediário
entre a comédia e a tragédia, mas já rompendo com a estrutura da tragédia clássica, substituindo
os “personagens da história greco-romana pelos cidadãos burgueses do tempo, divisados no seu
habitat próprio e nas condições peculiares à sua classe social, a par de certo realismo” (MOISÉS,
1997, p. 162).

5.9 Formas do Romantismo e do século XIX


O século XIX trouxe para a literatura muitas formas inovadoras e, sobretudo, um espírito
revolucionário, com ideias de alteração de padrões dramatúrgicos herdados de séculos anteriores.
A força das ideias e da pregação renovou os palcos europeus.

5.9.1 O drama
No prefácio intitulado “Do grotesco e do sublime” à sua peça Cromwell, de 1827, o autor
francês Victor Hugo, também poeta e romancista, defende o drama como uma forma teatral ade-
quada às ideias do Romantismo europeu. Toma como modelo Shakespeare, que, já no século XVI,
Gêneros literários: o dramático 71

havia rompido parcialmente com a tragédia aristotélica, introduzindo elementos novos, como a
prosa, o cômico, as personagens populares, os bufões, assim como o maravilhoso bretão, isto é,
a presença de elementos sobrenaturais na trama, conforme a tradição do teatro inglês. As ideias
básicas do drama romântico giram em torno da quebra das unidades aristotélicas de tempo, espa-
ço e ação, além de haver busca do espetacular e mistura de gêneros.
Essa nova forma terá desdobramentos constantes e de grande alcance literário e teatral ao
longo do século XIX, adquirindo o caráter histórico (bem de acordo com os ideais nacionalistas e
heroicos da época), ou caráter burguês (quando as questões familiares e domésticas ganham im-
portância), ou caráter de tese (o denominado drama de tese – forma apropriada ao Naturalismo e
ao cientificismo constantes ao final do século), ou caráter poético (o denominado drama poético,
em reação às peças naturalistas, unindo teatro e música – os gêneros dramático e lírico).

5.9.2 A revista de ano


Peça cômica que tinha como objetivo rever no palco os principais acontecimentos do ano.
Era de origem francesa, mas se aclimatou com muito sucesso em Portugal e no Brasil. Apresenta
um tom satírico e crítico muito agudo. No princípio, era composta de sátiras contra os políticos.
Depois, foi ganhando cores espetaculares e se tornando espetáculo de muito luxo e efeitos coreo-
gráficos e musicais.

5.9.3 A mágica ou féerie


Peça com assunto do maravilhoso infantil (fadas, duendes, gigantes etc.). Sua tendência ao
espetacular e aos efeitos especiais, que deslumbravam as plateias, garantiu também um público
adulto em peças com assuntos voltados a aventuras e o sobrenatural. Era comum o uso de ma-
quinismos (máquinas para criar efeitos especiais). Teve origem na França, mas se espalhou pela
Europa. De Portugal veio para o Brasil e até no século XX foi possível encontrar notícias da exis-
tência desse tipo de peça e de espetáculo.

5.10 Formas que unem teatro e música


Ao longo da história do teatro ocidental, a música sempre fez parte do espetáculo, seja como
acompanhamento musical, seja como elemento do diálogo das personagens e, portanto, dos atores.
Por isso, importantes formas teatrais são criadas e até hoje praticadas nas culturas europeias e nas
culturas dos países colonizados pela Europa.

5.10.1 A ópera
Como texto teatral, a ópera tem as características de um drama trágico ou lírico, cantado
com acompanhamento de orquestra e números de dança. Ela surgiu na Itália no século XVI e logo
obteve sucesso em toda a Europa. Do ponto de vista cênico, apresenta diferenças em relação ao tea-
tro convencional. O texto da ópera se denomina libreto e contém apenas o resumo do que é cantado
no palco, consistindo em um roteiro da ação dramática.
72 Teoria da literatura II

Esse gênero se divide em modalidades como:


• a ópera séria ou grande ópera, cuja ação tende a ter as características da tragédia clássica,
sendo inteiramente cantada, com cenas de multidão e grandes massas corais;
• a ópera-bufa, toda cantada e com enredo de comédia;
• a ópera-cômica, que não é totalmente cantada, apresentando falas sem acompanhamento
musical e tendo, por vezes, características de farsa; e
• a ópera espiritual ou oratório, pequena peça lírica musical, de enredo elevado.

5.10.2 A opereta
Merece destaque pelo relevo que teve entre os séculos XIX e XX. Trata-se de uma ópera cur-
ta com libreto e partitura de tons divertidos, alegres e muito movimentados, com partes cantadas
alternadas com partes faladas. É de origem francesa, mas alcançou seu ápice com as composições
do austríaco Johann Strauss.

5.10.3 O melodrama
Seu nome combina duas palavras gregas: melo + drama, isto é, ação com música. Existe
desde o século XVI e foi tomado no início como sinônimo de ópera. O enredo era o do teatro
trágico greco-latino, e a partir de 1790 passou a ser uma peça de teatro que dispensa a músi-
ca, ganhando independência como forma dramática. No entanto, guardou da fase inicial uma
tendência ao trágico.
Caracteriza o novo melodrama o fato de ser uma peça em prosa, em torno
de ingredientes fáceis, explorados ilimitadamente: o sentimentalismo, não
raro tombando no patético, a comicidade ocasional, assassínios, mistérios,
o suspense, incêndios, cenas de medo, equívocos que se desfazem como que
por milagre, segundo um ritmo ofegante, sem obediência à verossimilhança,
epílogos felizes, linguagem despojada, “popular”, de imediato entendimento.
(MOISÉS, 1997, p. 322)

Podemos inferir dessa descrição que as telenovelas, assim como as radionovelas, são herdei-
ras diretas dessa forma dramática.

5.10.4 O vaudeville
Trata-se de uma comédia recheada de árias ou canções conhecidas, com enredos engraçados
e muitos equívocos entre personagens e situações. Surgido na França, no século XVI, alcançou
grande sucesso nos séculos seguintes. Mas foi no século XIX que se tornou mais conhecido, quando
emigrou para os Estados Unidos, onde se transformou no music-hall, um teatro de variedades que
incluía números de mágica, dança e canto. Está na origem dos musicais do cinema de Hollywood.
Na França, durante o século XIX, ainda, transformou-se em uma comédia ligeira, sem pre-
tensões intelectuais, mas com grande sucesso.
Gêneros literários: o dramático 73

5.11 Formas do teatro na atualidade


A característica da dramaturgia na atualidade é a de ser múltipla e mista em suas formula-
ções. As divisões entre as formas literárias, sua nominação e sua caracterização passam hoje por
uma fase de crítica e de negação. A busca do diferente e do inusitado leva os dramaturgos a tes-
tarem combinações criativas de formas e, sobretudo, a criação de formas novas, direcionadas, so-
bretudo, para o espetáculo, para o palco, como a performance, o teatro do absurdo, o teatro total,
o teatro antropológico, o drama absoluto, o teatro do corpo, o teatro do oprimido e o teatro pobre,
levando muitas vezes à ausência total da palavra.

Ampliando seus conhecimentos

Desde Aristóteles
(SZONDI, 2001, p. 23-27)

Desde Aristóteles, os teóricos têm condenado o aparecimento de traços épicos no domínio da


poesia dramática. Mas quem tenta hoje expor o desenvolvimento da dramaturgia moderna
não pode se arrogar esse papel de juiz, por razões que deve esclarecer previamente para si
mesmo e para seus leitores.
O que autorizava as primeiras doutrinas do drama a exigir o cumprimento das leis da forma
dramática era sua concepção particular de forma, que não conhecia nem a história nem
a dialética entre formas e conteúdo. Parecia-lhes que, nas obras de arte dramáticas, a forma
preestabelecida do drama realizava-se quando unida a uma matéria selecionada com vistas
a ela. Se essa realização era malsucedida, se o drama apresentava traços épicos, o erro se achava
na escolha da matéria. Na Poética, Aristóteles escreve: “O poeta deve [...] lembrar-se de não
dar forma épica à sua tragédia. Por épico eu entendo, porém, um conteúdo de muitas ações,
como se alguém quisesse dramatizar, por exemplo, a matéria inteira da Ilíada.” Igualmente,
o empenho de Goethe e Schiller em distinguir poesia épica e poesia dramática tinha por fim
prático evitar a escolha errada da matéria.
Essa concepção tradicional, fundada na dualidade originária de forma e conteúdo, tampouco
conhece a categoria do histórico. A forma preestabelecida é historicamente indiferente; só a
matéria é historicamente condicionada, e o drama aparece, segundo o esquema, comum a
todas as teorias pré-historicistas, como realização histórica de uma forma atemporal.
A consideração da forma dramática como não vinculada à história significa, ao mesmo tempo,
que o drama é possível em qualquer tempo e pode ser invocado na poética de qualquer época.
Esse nexo entre a poética supra-histórica e a concepção não dialética de forma e conteúdo nos
remete ao vértice do pensamento dialético e histórico: à obra de Hegel. Na Ciência da lógica
encontra-se a frase: “As verdadeiras obras de arte são somente aquelas cujo conteúdo e forma
se revelam completamente idênticos.” Essa identidade é de essência dialética: na mesma pas-
sagem, Hegel a nomeia “relação absoluta do conteúdo e da forma [...] a conversão de uma na
outra, de sorte que o conteúdo não é nada mais que a conversão da forma em conteúdo, e a
forma não é nada mais do que a conversão do conteúdo em forma.”.A identificação de forma
e conteúdo aniquila igualmente a oposição de atemporal e histórico, contida na antiga rela-
ção, e tem por consequência a historicização do conceito de forma e, em última instância, a
74 Teoria da literatura II

historicização da própria poética dos gêneros. A lírica, a épica e a dramática se transformam,


de categorias sistemáticas, em categorias históricas.
Após essa transformação nos fundamentos da poética, a ciência viu-se diante de três vias. Ela
podia adotar a concepção de que as três categorias fundamentais da poética haviam perdido,
juntamente com a essência sistemática, sua razão de ser – daí Benedetto Croce excluí-las de
sua estética. No polo diametralmente oposto, encontrava-se a tentativa de afastar-se de uma
poética historicamente fundada, dos gêneros poéticos concretos, rumo ao atemporal. Dela dá
testemunho (ao lado da obra pouco profícua de R. Hartl, [...] Ensaio de uma Fundamentação
Psicológica dos Gêneros Poéticos) a Poética, de E. Staiger, que ancora os conceitos de gênero em
diversos modos de ser do homem e, em última instância, nos três êxtases do tempo. A subs-
tituição necessária dos três conceitos fundamentais lírica, épica e dramática por lírico, épico
e dramático torna patente que essa nova fundamentação altera a poética em sua totalidade e
particularmente em relação com a própria criação poética.
Mas uma terceira alternativa consistia em perseverar no terreno historicizado. Na sucessão
de Hegel, ela levou os escritos que projetaram uma estética histórica não limitada à poesia:
A Teoria do Romance, de G. Lukács; Origem do Drama Barroco Alemão, de W. Benjamin; e
Filosofia da Nova Música, de Th.W. Adorno. Aqui, a concepção dialética de Hegel da rela-
ção forma-conteúdo rendeu frutos, ao se compreender a forma como conteúdo precipitado.
A metáfora expressa ao mesmo tempo o caráter sólido e duradouro da forma e sua origem no
conteúdo, ou seja, suas propriedades significativas. [...]
As contradições entre a forma dramática e os problemas do presente não devem ser expostas
in abstracto, mas apreendidas no interior da obra como contradições técnicas, isto é, como
dificuldades. Seria natural querer determinar, com base em um sistema de gêneros poéticos, as
mudanças na dramaturgia moderna que derivam das problematizações da forma dramática.
Mas é preciso renunciar à poética sistemática, isto é, normativa, não certamente para escapar a
uma avaliação forçosamente negativa das tendências épicas, mas porque a concepção histórica
e dialética de forma e conteúdo retira os fundamentos da poética sistemática enquanto tal.
Desse modo, o ponto de partida terminológico é constituído somente pelo conceito de drama.
Como conceito histórico, ele representa um fenômeno da história literária, isto é, o drama, tal
como se desenvolveu na Inglaterra elisabetana e sobretudo na França do século XVII, sobre-
vivendo ao classicismo alemão. Ao colocar em evidência o que precipitou na forma dramá-
tica como enunciado sobre a existência humana, ele faz de um fenômeno da história literária
um documento da história da humanidade. Deve-se mostrar as exigências técnicas do drama
como reflexo de exigências existenciais, e a totalidade que ele projeta não é de essência siste-
mática mas filosófico-histórica. A história foi banida para os hiatos entre as formas poéticas, e
unicamente a reflexão sobre a história é capaz de lançar pontes sobre eles.
No entanto, o conceito de drama não tem vínculos históricos somente em seu conteúdo, mas
também em sua origem. Visto que a forma de uma obra expressa sempre algo de inquestioná-
vel, o claro entendimento desse enunciado formal geralmente só é obtido em uma época para
a qual o que era antes inquestionável se tornou questionável, para a qual o evidente se tornou
problema. Dessa maneira, o drama é aqui conceitualizado nos termos de sua impossibilidade
atual, e esse conceito de drama é já compreendido como o momento de um questionamento
sobre a possibilidade do drama moderno.
Portanto, é designado a seguir por drama apenas uma determinada forma de poesia teatral.
Nem as peças religiosas da Idade Média nem as peças históricas de Shakespeare fazem parte
dela. A perspectiva histórica requer a abstração também da tragédia grega, já que sua essência
Gêneros literários: o dramático 75

só poderia ser reconhecida em um outro horizonte. O adjetivo dramático não expressa, no que
segue, nenhuma qualidade (como nos Conceitos Fundamentais da Poética, de Staiger), mas
significa simplesmente pertencente ao drama (diálogo dramático = “diálogo no drama”). Em
oposição a drama e dramático, o termo dramática ou dramaturgia é usado também no sentido
mais amplo, designando tudo o que é escrito para o palco. [...]
Como a evolução da dramaturgia moderna se afasta do próprio drama, seu exame não pode
passar sem um conceito contrário. É como tal que aparece o termo épico: ele designa um traço
estrutural comum da epopeia, do conto, do romance e de outros gêneros, ou seja, a presença
do que se tem denominado o sujeito da forma épica ou o eu-épico.

Atividades
1. Analise a seguinte afirmação de Girard e Ouellet, no livro O Universo do Teatro:
A fala permite, evidentemente, “relatar as experiências, exprimir os diferentes
estados e processos psíquicos vividos pela personagem que fala num determi-
nado momento” [os autores estão citando Roman Ingarden]. Esta função ex-
pressiva está ligada à duração, ao acento, à entonação do comediante, tais como
a mímica e o gesto.

Explique essa afirmação relacionando-a com a teoria do texto dramático e do texto cênico
ou espetacular.

2. Pesquise na biblioteca de seu município ou na internet a relação entre a catarse (definida por
Aristóteles) e a função social do texto dramático.

3. Leia o fragmento da cena inicial da comédia Amor por anexins (1870), do dramaturgo
brasileiro Aluísio Azevedo:

Ato único
Sala simples, janela à esquerda, portas ao fundo e à direita. Mesa à esquerda com
preparos de costura. Num dos cantos da sala uma talha d’água. Cadeiras.
Cena I
(Inês)
Inês (Cose sentada à mesa, e olha para a rua, pela janela.) – Lá está parado à
esquina o homem dos anexins! Não há meio de ver-me livre de semelhante
cáustico. Ora eu, uma viúva, e, de mais a mais com promessa de casamento,
havia de aceitar para marido aquele velho! Não vê! E ninguém o tira dali!
Isto até dá que falar à vizinhança... (Desce à boca de cena.) [...] Ainda hoje
escreveu-me uma cartinha, a terceira em que me fala de amor, e a segunda em
que me pede em casamento. (Tira uma carta da algibeira.) Ela aqui está. (Lê.)
“Minha bela senhora. Estimo que estas duas regras vão encontrá-la no gozo
da mais perfeita saúde. Eu vou indo como Deus é servido. Antes assim que
amortalhado. Venho pedi-la em casamento pela Segunda vez. Ruim é quem
em ruim conta se tem, e eu que não me tenho nessa conta. Jamais senti por
outra o que sinto pela senhora; mas uma vez é a primeira.” (Declamando.)
76 Teoria da literatura II

Que enfiada de anexins! Pois é o mesmo homem a falar! (Continua a ler.)


“Tenho uns cobres a render; são poucos, é verdade, mas de hora em hora Deus
melhora, e mais tem Deus para dar do que o diabo para levar. Não devo nada
a ninguém, e quem não deve não teme. Tenho boa casa e boa mesa, e onde
come um comem dois. Irei saber da resposta hoje mesmo. Todo seu, Isaías.”
(Guardando a carta.) Está bem aviado, Senhor Isaías! Vou às compras; é um
excelente meio de me ver livre de vossemecê e de seus anexins. Vou preparar-
-me. (Sai pela porta da direita. Pausa.)

Verifique nesse trecho como se apresentam as rubricas e as falas da personagem Inês.


Selecione na linguagem da personagem Isaías os provérbios citados e faça uma projeção de
qual pode ser o conflito dessa peça. Depois, se puder, leia o texto completo para verificar se
sua projeção foi acertada, em: <www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.
do?select_action=&co_obra=16565>. Acesso em: 11 jul. 2018.
6
Gêneros literários: o ensaístico

Para tratar desse gênero literário que extrapola a divisão clássica tripartida − lírico, épico e
dramático −, faz-se necessária uma reflexão sobre a questão dos gêneros na atualidade e sua rela-
ção com uma nova perspectiva de julgamento sobre os discursos e seu papel na cultura. Essa nova
perspectiva é a que estuda os denominados gêneros de fronteira.

6.1 O gênero de fronteira


O gênero de fronteira é uma modalidade de texto considerada periférica em relação aos três
gêneros clássicos e tradicionais da literatura: o épico, o lírico e o dramático. Entre esses gêneros se
encontram “a psicografia mediúnica, o cordel, o ensaio, o prefácio, a crônica, a biografia, a memória,
o romance histórico, a tradução, a epistolografia, o relato de viagem, o diário e até mesmo questões de
fraude literária” (AGUIAR et al., 1997, p. 9).
O surgimento dessas variantes da tradição se deve, por um lado e em especial, aos momen-
tos de ruptura da história cultural e literária, quando a necessidade de expressão busca formas
apropriadas, mais adequadas ao novo momento histórico. Por outro lado, a crítica literária busca,
na valorização desses textos de fronteira, um desprendimento dos valores tradicionais atribuídos à
literatura para melhor avaliar as novas formas. Assim, por exemplo, levar em consideração o diário,
texto confidencial e supostamente secreto, particular, e dele fazer objeto de estudo, considerando
seu discurso e sua linguagem, implica abrir mão de critérios considerados eruditos, clássicos, esté-
ticos, para buscar no novo objeto outros valores, outras funções, outros modos de escrita e de preo-
cupação com a efetividade da linguagem utilizada. A adequação da linguagem ao novo formato é
critério indiscutível para se chegar a entender o funcionamento do gênero de fronteira. Observe-se
que na lista apresentada anteriormente não se fala de conteúdos, mas em formas de narrativa e es-
crita. Esse é um ponto importante da questão do estudo dos gêneros de fronteira. E o fato de eles
serem tidos como periféricos já indica uma posição afastada dos gêneros considerados canônicos,
e, por isso, mais valorizados.
Torna-se necessário, portanto, no trabalho com os gêneros de fronteira, que o estudioso
adote novos critérios e novos modelos de abordagem desses textos. Na verdade, o que ocorre é
que o processo de interpretação passou a comandar os critérios. O leitor, o sujeito que interpreta,
passou a levar em conta novas funções para os textos e passou a atribuir a eles outros valores, ques-
tionando as normas estabelecidas por uma crítica prescritiva e autoritária. Ao tratar das alterações
ocorridas na cultura, Terry Eagleton (2005, p. 81) avalia a posição do leitor diante da obra literária
desta maneira:
O que importa não são as obras em si, mas a maneira como são coletivamente
interpretadas, maneiras que as próprias obras dificilmente poderiam ter pre-
visto. Tomadas em conjunto, elas são apresentadas como evidência da unidade
atemporal do espírito humano, da superioridade do imaginativo sobre o real,
78 Teoria da literatura II

da inferioridade das ideias com relação aos sentimentos, da verdade de que o


indivíduo está no centro do universo, da relativa desimportância do público
com relação à vida interpessoal, ou do prático com relação ao contemplativo e
outros preconceitos modernos desse tipo.

Verificamos como essa mudança de óptica sobre o papel do leitor traz, em sua essência,
a perspectiva de maior liberdade de avaliação e a possibilidade de entrada de outros discursos
verbais e escritos no conjunto das formas literárias, conforme ficou demonstrado na enumera-
ção dos gêneros de fronteira. Essa perspectiva está relacionada com a ampliação do conceito de
literatura, que deixa de lado a ideia de que textos literários são exclusivamente os pertencentes
a uma cultura erudita. Também diz respeito a uma constante atitude de quebra de paradigmas,
principalmente daqueles herdados da cultura bipolar vigente até os anos 1950. Nessa bipola-
ridade, predomina um pensamento dual e opositivo (bom versus mau, erudito versus popular,
estética versus ciência, normas versus desordem). A ruptura se dá com a vigência de um pen-
samento dialético e desconstrutivo, em um momento cultural pós-estruturalista, que recebeu a
denominação de pós-modernismo ou hipermodernismo (CULLER, 1997). Nessa nova visão da
cultura, da arte e da literatura, predomina um comportamento mais liberal e sem preconceitos.
Em consequência, surge um olhar mais aberto para os escritos, criando condições de aceitação
para formas textuais diferenciadas, que são acolhidas no seio dos chamados estudos literários.
Entre elas, cabe destacar o ensaio, um discurso analítico de uso frequente na universidade e nos
ambientes e meios de comunicação que tratam da literatura.

6.2 O ensaio
O ensaio é um gênero textual com longa existência dentro das produções escritas do
Ocidente. O termo foi criado por Michel de Montaigne (1533-1592), considerado até hoje o mais
representativo dos autores dessa modalidade textual. Sua obra, Ensaios, data de 1580. Alguns crí-
ticos, como Massaud Moisés (1997), consideram a Poética, de Aristóteles; os Diálogos, de Platão;
as Meditações, de Marco Aurélio; além dos escritos de Sêneca, Plutarco e Teofrasto, como ensaios.
Em Língua Inglesa, os Ensaios, de Francis Bacon, datam de 1597. Outros autores de língua inglesa
que se sobressaíram nesse gênero textual foram Addison, Steele, Hazlitt, Ralph Waldo Emerson,
D. H. Lawrence, Virginia Woolf e T. S. Eliot. Na América do Sul, Machado de Assis, Paulo Prado,
Décio de Almeida Prado, Pedro Nava, Jorge Luís Borges e Eduardo Galeano. Em francês, Roland
Barthes e, em italiano, Ítalo Calvino.
O termo é usado para descrever uma composição em prosa, de extensão variada (al-
guns teóricos chegam a limitar o texto entre 2 e 20 páginas), tratando de um assunto específico.
Em sua etimologia, vem do latim exagiu(m), que significa ação de pesar. Na acepção de Montaigne,
tem a ver com exame, experiência, prova, tentativa. Segundo Angélica Soares (1989, p. 65), “a eti-
mologia da palavra ensaio aponta para ‘tentativa’, ‘inacabamento’ e ‘experiência’”. Mas é impossível
estabelecer uma definição rigorosa porque o termo é usado para os mais diferentes tipos de texto e
os autores o usam com igual imprecisão: “sob o rótulo de ensaio, se inscrevem hoje textos tão con-
clusivos (ensaios críticos, científicos, filosóficos, políticos, históricos) que ensaiar já não é apenas
Gêneros literários: o ensaístico 79

tentar ou experimentar uma interpretação da realidade por meio de exposições pessoais do es-
critor, sobre assuntos de seu domínio” (SOARES, 1989, p. 65). Para Lúcia Lippi de Oliveira (1997,
p. 63), o ensaio pode ser caracterizado de maneira mais abrangente: “O ensaio se apresenta como
texto fragmentado cujos aspectos vazios podem ser ocupados de diferentes formas [...] tem sido
visto como forma aberta, basicamente marcando tendências antiescolásticas no campo religioso,
filosófico ou mesmo científico”. Essa abertura para a divergência e uma possível interpretação da
realidade termina por tornar o texto ensaístico uma manifestação da individualidade interpretati-
va de seu autor, conduzindo, no caso da literatura, quase que fatalmente, para uma simbiose entre
o texto literário que é objeto da análise e o discurso crítico contaminado pela linguagem literária.
Em um dos textos críticos de Machado de Assis (1997, p. 18), intitulado Notícia da atual literatura
brasileira: instinto de nacionalidade, considerado uma das reflexões teóricas mais pertinentes para
definir o caráter da nossa literatura, o autor afirma:
Dado que as condições deste escrito o permitissem, não tomaria eu sobre mim
a defesa do mau gosto dos poetas arcádicos nem o fatal estrago que essa escola
produziu nas literaturas portuguesa e brasileira. Não me parece, todavia, justa
a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente
justa a de não haverem trabalhado para a independência literária, quando a
independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo, quando
entre a metrópole e a colônia criara a história e a homogeneidade das tradições,
dos costumes e da educação. As mesmas obras de Basílio da Gama e Durão
quiseram antes ostentar certa cor local do que tornar independente a literatura
brasileira, literatura que não existe ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora.

No pequeno trecho citado, pode-se perceber a contaminação do discurso crítico-literário pelos


recursos da literatura, como as expressões iscados daquele mal, no ventre do futuro e alvorecendo ago-
ra, que enriquecem a linguagem reflexiva com o inusitado e incomum uso das imagens metafóricas.
A simbiose de elementos críticos e literários autoriza Lúcia Oliveira (1997, p. 68) a melhor
definir o ensaio como um texto que
se apresenta como uma das vertentes da modernidade ao expressar a riqueza da
experiência subjetiva já que se presta à reflexão da intuição individual. O ensaio
recusa o método científico se entendermos como tal a procura de leis, por outro
lado ele se adaptou à época moderna e ao novo espírito científico na medida
[em] que colocou no lugar dos conceitos a atenção à realidade, no lugar da in-
terpretação da autoridade a vida do homem em sua real diversidade.

E a autora posiciona Montaigne e Descartes nesse modo de praticar o texto ensaístico,


em que predomina a subjetividade. O cientificismo do século XIX trouxe para o campo ensaístico
a disputa entre, por um lado, a objetividade dos conceitos, a necessidade de comprovação e a ob-
servação fechada sobre a realidade e, por outro lado, essa subjetividade exercida pelos ensaístas da
linhagem de Montaigne.
Em um ensaio teórico marcante para a compreensão das relações entre texto e leitor, Roland
Barthes escreveu O Prazer do Texto (1973), um texto repleto de metáforas e comparações que
buscam refletir na linguagem a complexidade da sensação prazerosa ao se ler um livro que toca
profundamente o inconsciente e as tarefas de compreensão e apreensão de sensações de plenitude e
80 Teoria da literatura II

de satisfação pelo leitor, agente da interpretação. E em um dos trechos desse ensaio, afirma Barthes
(1997, p. 27-28, grifos do autor) que:
O prazer do texto não é forçosamente do tipo triunfante, heroico, musculoso.
Não tem necessidade de se arquear. Meu prazer pode muito bem assumir a
forma de uma deriva. A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e
que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e
intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imó-
vel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo).
Há deriva, toda vez que a linguagem social, o socioleto, me falta (como se diz:
falta-me o ânimo). Daí porque um outro nome da deriva seria: o Intratável – ou
talvez ainda: a Asneira.

Essa escrita que se faz simultaneamente analítica e criativa desloca o texto do ensaio para uma
situação de descoberta das potencialidades da língua pelo leitor, alterando o que deveria ser a aná-
lise objetiva de um elemento teórico. Sobre essa posição de Barthes a respeito da crítica literária e,
por extensão, do ensaio, afirma Jérôme Roger (2002, p. 166): “Ao colocar sem subterfúgios a ques-
tão da crítica como forma de literatura, Barthes revelou-se indiretamente um escritor, sendo tanto
vilipendiado quanto, em seguida, adotado pela crítica universitária”. Temos, portanto, na obra de
Barthes, um exemplo contemporâneo do ensaio de crítica literária que usa os componentes do dis-
curso literário, alterando um gênero que deveria ser estritamente científico.
Após essa disputa, chegamos hoje ao conceito de que sempre é possível “relatar diferente-
mente os mesmos acontecimentos, compreender a teia de significados de diferentes relatos [que]
nos coloca no espaço da hermenêutica” (OLIVEIRA, 1997, p. 63). Assim, podemos reencontrar
na contemporaneidade o sujeito intérprete atuando com seu repertório e sua posição crítica so-
bre os objetos (obras literárias inclusive) de seu interesse científico. Em consequência, “o ensaio
aparece assim como o gênero mais permeável aos saberes que rompem as barreiras entre as disci-
plinas e que abandonam a ideia ingênua de que o texto científico expressa a realidade, confirman-
do o espaço do ensaio como uma das formas de oposição a qualquer pensamento essencialista”
(OLIVEIRA, 1997, p. 68).
A abertura e a multidisciplinaridade, acentuamos novamente, provocarão uma mudança na
própria expressão linguística e discursiva, trazendo para os ensaio sobre a literatura a contamina-
ção do dizer literário. Duplamente anticientífico, na abordagem e na escrita, o ensaio se apresenta
como um texto que desafia a tradição clássica da separação tripartida dos gêneros.

6.3 A crítica literária e suas funções


A Teoria da Literatura apresenta, discute e estabelece os modos de entendimento do texto
literário, bem como de sua apreensão pelos leitores. Da mesma forma, constitui métodos de estudo,
decorrentes das transformações do próprio objeto que estuda. Com base nesses pressupostos e no
método adotado, surge a crítica literária. Etimologicamente, o termo crítica provém do verbo grego
krinein, que significa “separar para distinguir”, “julgar”.
A função da crítica literária se dá, pois, por meio da teoria e do método e se define por
Gêneros literários: o ensaístico 81

desempenhar suas funções de caracterização da obra, através da distinção dos


elementos que a compõem e a identificam na sua diferença. Como atividade
de investigação, a crítica se exerce no sentido de conduzir-se para dentro dos
vestígios deixados pelo poético. Objetivando reconduzir a obra literária à sua
origem, o seu fundamento, a crítica, qualquer que seja a via de acesso escolhi-
da (sociológica, psicológica, linguística...), não pode descartar-se da sua dupla
feição: enquanto crítica obedecerá a um rigor, que lhe é garantido pelo método
de abordagem e, enquanto literária, incluirá literariamente o sentido que, na
literatura, ultrapassa o campo de conhecimento com o qual se articulou, na
construção do modelo de leitura. (SOARES, 2000, p. 100)

O importante, na visão de Angélica Soares, é a relação entre a área de conhecimento (a litera-


tura) e sua destinação final (a construção de um modelo de leitura). Para chegar a essa destinação,
o crítico passa – conforme entendimento da própria etimologia – pelo ato de apreciar, de valorar
o texto criticado:
Se por julgar se compreender a formulação de juízos de valor, infere-se que a
crítica mergulha raízes na ideia de valor, ao menos como derradeira instância:
o ofício do crítico tem por meta a fundação de uma escala de valor entre as
obras que compõem a literatura de um povo. Admitindo-se o valor como a re-
lação entre o crítico e a obra, depreende-se a relatividade do ato crítico: o valor
se acha não no objeto do conhecimento, nem no sujeito que o pratica, mas na
relação que ambos estabelecem. (MOISÉS, 1997, p. 130)

Salienta-se nessa posição de Massaud Moisés a importância da qualidade de relação estabe-


lecida entre o crítico e a obra, o que valoriza não o estado de cada um (o valor do crítico ou o valor
da obra literária), mas o encontro entre os dois, que resultará sem dúvida na avaliação mais perti-
nente, na compreensão mais profunda, na visão crítica mais aguçada. Se não houver esse encontro,
a crítica trará como resultado uma avaliação menos cabível, mais sujeita a contestações. Também
é de salientar nessa relatividade a condição do crítico como autor de um texto e, portanto, viven-
ciando todas as qualidades e problemas da escrita. Seu texto terá como resultado ser “fruto pessoal
e intransferível” (MOISÉS, 1997, p. 131) e uma manifestação metalinguística, isto é, a linguagem
sobreposta, tendo como assunto a própria linguagem – no caso, o texto do literato.
Desse modo o leitor tem acesso a um texto secundário (metalinguagem [...]) do
qual espera fruir prazer e conhecimento, e uma orientação para melhor aprovei-
tar o texto primário (do ficcionista ou poeta), que, por seu turno, deve oferecer-
-lhe deleite espiritual e alargamento de consciência e de saber. De onde a crítica
também consistir numa atividade criadora, mas de segundo grau. (MOISÉS,
1997, p. 131)

Essa consciência da autoria induz ao entendimento do texto crítico como uma das espécies
mistas do gênero literário.

6.4 O ensaio no discurso literário: a metaficção e a metapoesia


Denomina-se metaficção ou metapoesia quando a ficção ou o poema chama a atenção
para a própria ficcionalidade e poeticidade. A história da literatura registra muitos exemplos de
obras poéticas ou romanescas que usam a palavra para tratar do próprio ato de escrever literatura.
82 Teoria da literatura II

Na ficção, o exemplo clássico é Tristam Shandy (1759-1767), obra de Laurence Sterne em que se
observa um constante diálogo com o leitor sobre o ato de ler e, sobretudo, sobre a construção do
romance. Na França, Xavier de Maistre (1763-1852) também fez do diálogo com o leitor a oportu-
nidade de esclarecer sobre as intenções e a construção de sua narrativa, intitulada Viagem à Roda
do meu Quarto (1794). Nessa, ele proclama já de início as qualidades de seu texto:
Não, não conservarei mais o meu livro in petto; aqui o tendes, senhores, lede.
Eu empreendi e executei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu
quarto. As observações interessantes que fiz e o prazer contínuo que experi-
mentei ao longo do caminho davam-me o desejo de torná-la pública; a certeza
de ser útil me convenceu a fazê-lo. Meu coração sente uma satisfação inexpri-
mível quando penso no número infinito de infelizes a quem ofereço um recur-
so certo contra o tédio e um calmante para os males que sofrem. O prazer que
se sente ao viajar em seu quarto está ao abrigo do ciúme inquieto dos homens;
é independente da fortuna. (MAISTRE, 1989, p. 5)

No romance Se um Viajante numa Noite de Inverno, Ítalo Calvino (1923-1985) começa a


narrativa do primeiro capítulo pela citação do próprio romance:
Você vai começar o novo romance de Ítalo Calvino Se um Viajante numa Noite
de Inverno. Pare. Concentre-se. Afaste qualquer outro pensamento. Deixe o
mundo que o cerca se esfumar no vago. A porta, será melhor fechá-la. Do outro
lado, a televisão está sempre ligada. Diga imediatamente aos outros: “Não,
eu não quero ver televisão!” Fale mais alto, se eles não o ouvirem: “Estou lendo!
Não quero ser perturbado!” Com toda essa barulhada, pode ser que não o te-
nham escutado: fale mais alto, grite: “estou começando o novo romance de Ítalo
Calvino!”. (CALVINO, 1989, p. 9)

Os protagonistas são os personagens Leitor e Leitora, e todo o texto é uma longa exposição
em forma ficcional de conceitos sobre o romance contemporâneo, exemplificado em dez diferentes
inícios de narrativa, que não continuam nem se finalizam. Esses começos ficcionais se alternam
com situações, também fictícias, dos protagonistas, com isso havendo uma exposição dissertativa
e crítica sobre literatura. É um exemplo extraordinário de como o romance fala de sua própria
construção dentro da ficção.
Na poesia, a consciência do fazer poético e a expressão dessa consciência em versos tam-
bém têm um histórico de muitos textos ao longo do tempo. No fragmento de poema que segue,
de autoria de Álvares de Azevedo (1831-1852), intitulado Idéias íntimas (1852), é possível detectar
o julgamento literário de outros escritores na expressão do poeta romântico.

Ossian o bardo é triste como a sombra


Que seus cantos povoa. O Lamartine
É monótono e belo como a noite,
Como a lua no mar e o som das ondas...
Mas pranteia uma eterna monodia
Tem na lira do gênio uma só corda,
Fibra de amor e Deus que um sopro agita:
Se desmaia de amor a Deus se volta,
Se pranteia por Deus de amor suspira.
Basta de Shakespeare. Vem tu agora,
Fantástico alemão, poeta ardente
Gêneros literários: o ensaístico 83

Que ilumina o clarão das gotas pálidas


Do nobre Johannisberg! Nos teus romances
Meu coração deleita-se... contudo
Parece-me que vou perdendo o gosto,
Vou ficando blasé, passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar. Vivo fumando
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu de inverno... Solitário
Passo as noites aqui e os dias longos [...]

(AZEVEDO, 1971, p.124-125)

Na atualidade, no período denominado Pós-Modernismo, a metaficção e a metapoesia se


tornaram cada vez mais presentes na literatura. Vejamos mais um exemplo de poema metapoético,
este de Pedro Paulo de Senna Madureira:

As palavras querem romper


as amarras do poema.
Recusam-se a guardar o silêncio
que entre o meu e o teu olhar
se lê.
Nada a fazer.
As palavras se anulam
na memória.
Poesia:
luz que não se vê. [...]

(MADUREIRA, 1989)

Assim, a literatura também assume um discurso teórico-crítico que une o fazer literá-
rio à reflexão ensaística sobre questões de produção de textos específicos. É possível verificar,
portanto, que a classificação fechada dos gêneros passa a ser transformada pela ação dos pró-
prios escritores, em um evoluir que reflete as mudanças na concepção da arte literária e propicia
a reflexão teórica renovada.

Ampliando seus conhecimentos

As dimensões da crítica
(BORNHEIM, 2000, p. 44-45)

Não é apenas curioso observar que a crítica, já em suas origens, nasce no contexto de uma
ambiguidade deveras significativa. É que se verifica, por um lado, a crítica que reduz a obra de
arte à condição de um objeto, e ela se deixa guiar por coordenadas que regem a própria vigên-
cia desse objeto (objeto aqui pode ser tanto a obra derivada daquela estética do objeto, quanto a
obra que se prende àquela estética do sujeito; em definitivo, a categoria do objeto termina vito-
riosa). Acontece que, por outro lado, há um tipo de crítica que também se quer como obra de
arte – a concorrer de certo modo com a criatividade da própria arte. Pense-se em Baudelaire,
84 Teoria da literatura II

no jovem Lukács, em Walter Benjamin e em tantos outros que fizeram da crítica um tipo de
obra de arte, espécie de gênero paralelo à realidade que ela mesma comenta. Essa tendência
bastante disseminada vê, pois, no ato de escrever sobre uma obra um sucedâneo que repete à
sua maneira a gênese geradora da obra. Seria como que uma criação em grau outro, teimosa
em persistir em sua autonomia, em coadunar-se com a especificidade de sua linguagem.
Assim é que se podem ler certos ensaios sobre arte e literatura, em Sartre por exemplo, que são
sem dúvida capítulos da crítica, mas que ostentam em verdade uma autonomia que os torna
em certo sentido autossuficientes. A peculiaridade desse tipo de crítica reside totalmente no
fato de seu autor instalar-se na intimidade do elã criativo que dá origem à própria obra de
arte – já não se a considera a partir de um resultado-objeto a oferecer-se em sua precisa com-
posição. Vista nesta perspectiva, caberia dizer que a crítica contemporânea vive de um para-
doxo: ela se sente compelida a exercer o seu mister simplesmente pela análise desse resultado
final que se dá à percepção do espectador. O paradoxo está em que, por este viés, o crítico se
aproxima da obra enquanto ela constitui um objeto dado à percepção; e todo o engenho crí-
tico move-se, por consequência, dentro das fronteiras estipuladas pela ampla hegemonia da
dicotomia sujeito-objeto. É por aí que se pode entender o sucesso, mas também o fracasso –
e em todos os casos a medida – de métodos como o do new criticism e o do estruturalismo. [...]
A crise atual da crítica deriva, ao que tudo indica, dessa dissonância radical entre dois níveis:
o ato criador que gera a obra e o retardamento de uma crítica que, ainda que de modo velado,
insiste na visualização por meio de uma normatividade pretensamente objetiva. Essa, repito,
talvez seja a raiz do impasse que habita a crítica em sua própria essência, como que a indicar
sua transitoriedade. As portas, entretanto, e já em nome de uma bela tradição, permanecem
amplamente abertas: tudo se oferece à meditação, uma meditação que busca penetrar o sen-
tido de uma obra e o sentido, até, da arte de modo geral.

Atividades
1. Reúna duas resenhas críticas sobre literatura, retiradas de jornais, revistas ou da internet.
Verifique se existe na linguagem delas elementos que podem ser associados à linguagem das
obras literárias.

2. Leia um trecho da crítica de Wilson Martins, publicada em O Globo, em 23 de julho de 2005,


e aponte qualidades de análise e de subjetividade do crítico presentes no texto. Avalie a qua-
lidade do texto crítico.

A marcha do tempo
O centenário de Jean-Paul Sartre ocorre quando o compromisso político do
intelectual, doutrina a que o seu nome ficou ligado por antonomásia, de há
muito deixou de ser imperativo contornável na República das Letras. O que se
vê, ao contrário, e pelo mundo todo, é o predomínio do esteticismo e seu cor-
relato experimentalismo arbitrário, tanto na poesia quanto na prosa de ficção,
nada havendo de mais gratuito e socialmente descompromissado que as diver-
sas vanguardas que, na segunda metade do século XX, derivaram-se sucessi-
vamente umas das outras pelo processo mecânico e imitativo da homogenia.
Gêneros literários: o ensaístico 85

No que nos concerne, há pontos de referência por assim dizer didáticos, se tomar-
mos para demonstração dos escritores representativos. Jorge Amado abandonou
o realismo socialista, a que se entregara com fervor doutrinário na primeira parte
de sua carreira, adotando o realismo burguês e correspondente desencanto ideo-
lógico. Autor que anunciara escrever com o máximo de realidade e o mínimo de
literatura, começou a fazê-lo, e cada vez mais, com o máximo de literatura e o
mínimo de realidade. É a diferença que separa, por um lado, o período de Mar
Morto (1936), Os Subterrâneos da Liberdade (1954), e, por outro lado, a série que
se inicia em 1958 com Gabriela, Cravo e Canela: a luta de classes transferiu-se pre-
dominantemente para a posição horizontal, sem excluir a pornografia que devia
ser aceita como recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes
seria impensável: os comunistas daquela época e da nossa não riem nem sorriem.
O caso Drummond de Andrade é ainda mais expressivo, com a transição
igualmente didática de A Rosa do Povo, em 1945, Claro Enigma, seis anos
depois, salto mortal que, com elegância olímpica, conduziu-o de Zhdanov a
Paul Valéry, o que, em termos literários, foi um ganho inestimável: os aconte-
cimentos, que antes o fascinavam, com o russo em Berlim e o nome imortal de
Stalingrado, passaram a entediá-lo, apostasia de que nenhum outro escaparia
ileso. A questão do papel social do escritor é mais complexa do que pareceria
à primeira vista. Escritor é palavra genérica que só adquire sentido e realidade
por meio de múltiplas espécies, não raro estranhas e antagônicas entre si.
(O texto na íntegra está disponível em: <http://www.jornaldepoesia.jor.br/wil-
sonmartins148.html>. Acesso em: 7 de jun. 2018.)

3. Interprete este trecho sob a ótica de um gênero de fronteira:

[...] a crítica já em suas origens, nasce no contexto de uma ambiguidade deveras signi-
ficativa. É que se verifica, por um lado, a crítica que reduz a obra de arte à condição de
um objeto, e ela se deixa guiar pelas coordenadas que regem a própria vigência desse
objeto [...] Acontece que, por outro lado, há um tipo de crítica que também se quer
como obra de arte – a concorrer de certo modo com a criatividade da própria arte.”
BORHEIM, Gerd. As dimensões da crítica. In: MARTINS, Maria Helena (Org.) Rumos da
Crítica. São Paulo: Senac/Itaú Cultural, 2000. p. 44.

Escreva o resultado de sua interpretação.


7
A linguagem poética: ­poema x poesia

A poesia está associada a um dos gêneros literários, o lírico. Na Teoria da Literatura, pode
ser encontrado o entendimento de que a poesia se refere a um modo de escrita imaginativa,
caracterizada pelo uso do verso metrificado. Não era esse o conceito de poesia até o século XIX.
Atribuía-se esse termo a toda produção que tivesse vínculo com o imaginário, independente-
mente da forma escrita – em verso ou prosa. A partir desse século, a essa produção passou a ser
atribuído o termo literatura.

7.1 O objeto e as funções da poesia


O termo poesia deriva do grego poiesis, com o significado de “fazer” e “criar”. Portanto,
etimologicamente há a ideia de trabalho e de invenção. Não há indicação de sentimento, verso
ou musicalidade, qualidades que serão acrescidas ao longo da história.
No início da cultura grega, de que a cultura ocidental é herdeira, a poesia tinha duas for-
mas de expressão: a épica e a dramática. Sua finalidade era a imitação dos homens e da natureza.
Encontramos a conceituação desse objeto do texto poético em Platão (aproximadamente 428-347
a.C.) e em Aristóteles (384-322 a.C.).
Platão não considerava que a poesia fosse séria na medida em que se tratava da imitação do
que já era imitação na natureza, pois da realidade o homem somente tem acesso a imagens, a som-
bras. Na concepção de uma nova sociedade, expressa pelo filósofo no Livro X da obra República,
o poeta não tem utilidade social, porque se encontra em um terceiro estágio: o primeiro pertence
à divindade que criou a ideia de, por exemplo, cadeira. Em segundo lugar, vem o artesão que fabri-
cou a cadeira. Por último, o poeta que representa abstratamente essa cadeira.
Já para Aristóteles, a imitação, função essencial da poesia, consistia na representação dos
homens em ação, seus caracteres, suas paixões e seus atos.
O dito de Simônides, difundido por Plutarco, de que a “pintura é poesia muda
e a poesia pintura falante”, e uma célebre fórmula de Horácio, erroneamente
interpretada – ut pictura poesis – contribuíram para enraizar a crença de que
a essência da poesia consistia na imitação da natureza. Trata-se, aliás, de uma
concepção estética que facilmente se impunha aos espíritos, sobretudo em esté-
ticas informadas por filosofias do objeto, como foram em geral a filosofia grega
e as filosofias ocidentais dela derivadas. (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 146)

Para Horácio (65 a.C.-8 d.C.), na Roma antiga, a função da poesia era dupla: servia para
entreter e comover, dela se retirando preocupações de ordem filosófica.
Os preceitos imitativos da poesia foram mantidos até a segunda metade do século XVIII,
com o advento do Iluminismo. O filósofo Vico concebia poesia pela perspectiva da lingua-
gem. Como esclareceu Abrams (apud AGUIAR E SILVA, 1976, p. 148), “o fato capital nesse
88 Teoria da literatura II

desenvolvimento foi a substituição da metáfora do poema como imitação, um espelho da natu-


reza, pela do poema como um heterocosmo, uma segunda natureza, criada pelo poeta num ato
análogo à criação do mundo por Deus”.
Já no Renascimento, a ênfase foi para a cultura, o cultivo do bom gosto (dentro dos critérios
da época) e o trabalho paciente de aperfeiçoamento dos aspectos materiais dos poemas. Trata-se
de conceber o texto como manifestação equilibrada, lúcida e comedida, mesmo que a sua ori-
gem esteja vinculada ao recebimento “dos céus de uma secreta dádiva” (AGUIAR E SILVA, 1976,
p. 194). A genialidade do poeta precisava estar apoiada em um conhecimento e um saber sólidos,
bem como no domínio de uma técnica apurada. A poesia, portanto, podia surgir da inspiração,
mas logo dominada pela obediência a normas.
No período do Romantismo (parte dos séculos XVIII e XIX), “a teoria do gênio e a estética
romântica introduziram no próprio coração da poesia o irracional e o inconsciente” (AGUIAR E
SILVA, 1976, p. 195). No entanto, em plena vigência do Romantismo, surgiu uma voz dissonante:
Edgar Allan Poe (1809-1849) escreveu em 1845 um ensaio fundamental para a concepção do modo
de fazer e da própria natureza da poesia, intitulado A filosofia da composição. Nele, o autor norte-
americano analisa com minúcias a criação de seu poema O corvo, e estabelece alguns pressupostos
da construção poética, como a precisão e o rigor lógico, indispensáveis para o sucesso do poema.
Os elementos formadores desse texto são o efeito de beleza, a extensão exata (em torno de cem ver-
sos), a palavra catalisadora do sentido (em forma de refrão), o tom melancólico e o cuidado com a
construção dos versos e estrofes.
Com esse poema, O corvo, muitos críticos dão como iniciada a poesia moderna. Charles
Baudelaire (1821-1867), outro poeta fundamental para a modernidade, também defendeu o rigor
formal, a desconfiança em relação à inspiração e à irracionalidade, e o sempre presente espírito
crítico que o poeta deve manter em relação a sua poesia.
A teoria da poesia como segunda natureza, proposta por Vico, recebeu um reforço no pen-
samento de Freud, segundo quem “a criação poética (e artística, de um modo geral) se situa neste
domínio das realizações simbólicas e das compensações fictícias: o escritor afasta-se da realidade
hostil e cria um mundo imaginário no qual projeta as suas ‘recordações recalcadas da infância e as
pulsões afetivas a elas ligadas’, procurando assim satisfazer os seus fantasmas íntimos e desconhe-
cidos” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 180).
Nesses dois posicionamentos, é possível perceber um deslocamento do aspecto imitativo,
que passa do real empírico e exterior para as realidades de linguagem (a segunda natureza enquan-
to criação análoga) e de interiorização no inconsciente (as recordações e o recalque). Em qualquer
um dos dois, o objeto deixou de ser exclusivamente a concretude do mundo exterior.
Em uma obra intitulada A Arte da Poesia, Ezra Pound (1885-1972) expôs os princípios de
sua crença na poesia, todos eles apoiados na ideia de que um poema tem como objeto essencial a
linguagem, manifesta, sobretudo, em ritmo, símbolos, formas e técnicas de composição. Para tanto,
expressou em 1954 sua expectativa:
quanto à poesia do século XX, e a poesia que espero ver escrita no decorrer da
próxima década, aproximadamente, creio que ela será o oposto da conversa
A linguagem poética: ­poema x poesia 89

fiada, que será mais rija e sadia [...] será tão granítica quanto possível; sua força
estará na sua verdade, em seu poder de interpretação (evidentemente, é sempre
aí que reside a força poética); quero dizer que ela não tentará parecer vigorosa
por via do fragor retórico e da extravagância faustosa. (POUND, 1976, p. 20)

Em Teoria da Literatura, Vítor Manuel de Aguiar e Silva sintetiza quais sejam, em seu enten-
der, o objeto e as funções da poesia:
• “o caráter simbólico e imaginário de toda a criação poética”;
• a poesia “se relaciona não só com a atividade consciente do homem, mas também com o
seu dinamismo inconsciente”;
• há “relações mútuas entre invenção e execução [...] o poema como exclusivo produto de
uma revelação íntima e misteriosa, ou o poema como resultado estrito de uma laboriosa
realização” (AGUIAR E SILVA, 1976, p. 202-203).
Para Octavio Paz (1982, p. 47),
A criação poética se inicia como violência sobre a linguagem. O primeiro ato
dessa operação consiste no desenraizamento das palavras. O poeta arranca-as
de suas conexões e misteres habituais: separados do mundo informativo da fala,
os vocábulos se tornam únicos como se acabassem de nascer. O segundo ato é o
regresso da palavra: o poeta se converte em objeto de participação.

Convém, ainda, distinguir poema de poesia. Para Massaud Moisés (1997, p. 400), poema é
toda composição literária de índole poética [...] assumida ortodoxamente, a co-
nexão entre poema e poesia implicaria um juízo de valor, ainda que de primeiro
grau: todo poema encerraria poesia, e vice-versa, sistematicamente a poesia se
coagularia em poema. Na verdade, a correlação apenas se observa como ten-
dência, historicamente verificável, pois existem poemas sem poesia, e a poesia
pode surgir no âmbito de um romance ou de um conto.

Em consequência, podemos afirmar que poema é a parte material do texto (versos, estrofes
e, eventualmente, poema em prosa) e a poesia tem um conceito mais fluido e histórico. Nesta,
predominam um conteúdo emotivo-conceitual que extrapola os parâmetros da lógica formal,
um tempo que corresponde à duração, a um presente eterno, à constelação de metáforas distri-
buídas e articuladas no poema, à predominância dos estados do eu poético sobre acontecimentos
(MOISÉS, 1997, p. 406).
De todo modo, a poesia se distingue por padrões verbais específicos: síntese; variações sin-
táticas; uso especial de palavras e frases; modo elaborado de figuras de linguagem, principalmente
a metáfora e o símbolo; ritmo; metro e efeitos sonoros. A poesia apresenta uma combinação equi-
librada dos recursos sonoros e imagéticos, bem como o frescor de ideias.

7.1.1 O sujeito lírico e suas representações


Um poema lírico expressa habitualmente uma meditação ou uma disposição de alma e de
espírito de um indivíduo, de um sujeito, de uma única voz pessoal. Nem sempre essa voz é a do
poeta biográfico, empírico: pode ser uma voz inventada, criada para aquele determinado poema.
Assim, um poeta homem pode escolher uma voz feminina para se apresentar no texto. Foi o que
90 Teoria da literatura II

ocorreu, por exemplo, com as cantigas de amigo da Idade Média em Portugal, que exprimiam as
mágoas amorosas de moças do povo, mas foram escritas por homens. Por exemplo, uma cantiga
composta pelo rei Dom Dinis:

Ai flores, ai flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo!
ai Deus, e u é?
Ai flores, ai flores do verde ramo,
se sabedes novas do meu amado!
ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amigo,
aquel que mentiu do que pôs comigo!
ai Deus, e u é?
Se sabedes novas do meu amado,
aquel que mentiu do que mi há jurado!
ai Deus, e u é?

(apud MONGELLI, 1992-1994)

Essa presença de uma voz pessoal e em primeira pessoa confere ao poema uma caracterís-
tica confessional e de credibilidade, tal como em um poema de Manuel Bandeira (1970, p. 121),
já no século XX:

Profundamente

Quando ontem adormeci


Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei


Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões passavam errantes
Silenciosamente
[...]
Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

– Estão todos dormindo


Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.

(BANDEIRA, 1970, p. 121)


A linguagem poética: ­poema x poesia 91

A primeira pessoa (“adormeci”, “ouvi”, “minha avó” etc.) pode ser entendida como a do poe-
ta (Manuel Bandeira), mas pode ser também a de qualquer criança ou adulto rememorando a
infância. É exatamente essa possibilidade de posicionarem-se outras subjetividades, além daquela
do poeta, que sinaliza o texto de qualidade, sem que esse texto fique preso a um encaminhamento
puramente confessional e intransferível – a tal ponto que esse sujeito lírico, muitas vezes expresso
em primeira pessoa (mas não sempre), pode ser uma impostação, uma máscara assim descrita por
Bakhtin (1988, p. 133): “Essa pureza monovocal e essa franqueza intencional, irrestrita do discurso
poético acabado, é obtida a preço de uma certa convencionalidade da linguagem poética”. O cará-
ter convencional pode impedir que se estabeleça um paralelo com a vida do escritor, mas favorece
o trabalho objetivo com a linguagem, de vez que o envolvimento emocional pode ser substituído
pelo trabalho artesanal do texto poético, o que vai conferir ao texto alto grau de poesia, conforme
o entendimento de Pound e Baudelaire.
Portanto, a poesia apresenta uma visão subjetiva do mundo e dos homens. Essa subjetividade
localiza-se na interioridade do poeta, mas se manifesta no discurso poético. Por sua vez, essa subjeti-
vidade no discurso pode se realizar diretamente, por meio do eu lírico, como apresentar-se por meio
de máscaras, isto é, o poeta disfarça-se sob outros nomes e símbolos. Um deles é o da primeira pessoa
explícita, conforme vimos no poema de Manuel Bandeira. Outro modo é o uso de pseudônimos,
de outros nomes que funcionam como metáforas do próprio poeta. Em Carlos Drummond de
Andrade (2000, p. 20), por exemplo, o poeta é substituído por José, no poema “José”:

E agora , José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José?
e agora, você?
[...]

(ANDRADE, 2000, p. 20)

Caso extraordinário na literatura ocidental é o de Fernando Pessoa, poeta português que


escreveu sob quatro heterônimos: Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Fernando
Pessoa ele mesmo.
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever
uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no
estilo de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei
o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retra-
to da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse,
o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao
Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresen-
tar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns
dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira
92 Teoria da literatura II

– foi em 8 de março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um


papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trin-
ta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei
definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri
com um título, “O guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimen-
to de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro.

Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a


sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta
poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis
poemas que constituem a “Chuva oblíqua”, de Fernando Pessoa. Imediatamente
e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando
Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexis-
tência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instinta e subcons-
cientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo
Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura
já o “via”. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me
impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem
interrupção nem emenda, surgiu a “Ode triunfal” de Álvaro de Campos – a ode
com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma “coterie” inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realida-
de. Guardei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discus-
sões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador
de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente
de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a
discussão entre Ricardo Reis a Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes,
e como eu não sou nada na matéria. [...]
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração,
sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma de-
liberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando
sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (PESSOA, 1974, p. 96)

Trata-se de caso único na poesia e até hoje é motivo de estudos e discussões a respeito dessa
extraordinária divisão de um mesmo poeta em diferentes identidades, biografias, assuntos e cor-
respondentes maneiras de escrita. A multiplicidade é uma das marcas da poesia.
Cecília Meireles (1972, p. 224) assim poetava:

Autorretrato

Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.

(MEIRELES, 1972, p. 224)

Ou o poeta Mário de Andrade, em um de seus poemas mais conhecidos:


A linguagem poética: ­poema x poesia 93

Eu sou trezentos...

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,


As sensações renascem de si mesmas, sem repouso,
[...]
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal toparei comigo...

(ANDRADE, 1987, p. 211)

Assim, podemos concluir que, embora se fale de um sujeito lírico, não temos em poesia uma
unidade psíquica nesse sujeito e nem mesmo em suas formas de representação no poema, dado que
ele pode assumir diferentes nomes, pode ocultar-se e desconhecer-se.

7.2 A metáfora e a metonímia


O uso de palavras em sentido figurado, isto é, tomadas em sentido que provoca efeitos
expressivos, é uma das marcas mais relevantes da poesia. Há, segundo a retórica, dois diferentes
tipos gerais de figuras: de linguagem ou palavra e de pensamento.
As figuras de palavras (que incluem as imagens sonoras e de estrutura do verso) podem ser:
• de dicção ou prosódia;
• de morfologia;
• de harmonia ou combinação; e
• de construção (repetição, omissão, transposição, discordância).
Já as figuras de pensamento remetem a efeitos poéticos atuando sobre o nível do sentido
das palavras, frases e versos. Entre esses recursos que alteram os sentidos habituais das palavras e
frases, temos os tropos, que compreende:
• tropos de similaridade (imagem, metáfora, símbolo, catacrese e alegoria); e
• tropos de contiguidade (metonímia, sinédoque e antonomásia).
Na atualidade, a retórica tem utilizado o termo figura de maneira genérica, englobando in-
clusive metáfora e metonímia. Assim, como procedimentos regulares do discurso, literário ou não,
sobressaem a metáfora e a metonímia, sobre as quais existe vasta bibliografia e maior discussão
ainda sobre o entendimento de sua concepção e uso. Vamos adotar aqui o sentido apontado pela
retórica contemporânea, que dá a ambas uma definição relacionada com o efeito que causam no
discurso cotidiano – efeito esse que amplifica, torna plural e estético o sentido final.
Em sentido restrito, a metáfora é uma figura de linguagem em que algo é semelhante e identi-
ficado com outra coisa mais, e em que se atribui a A uma qualidade associada a B. Esse entendimento
tem a ver com a etimologia do termo: em grego, metáfora significa transporte, translação. Assim, um
objeto, uma ideia, uma pessoa ou sua ação são descritos por uma palavra ou expressão que normal-
mente é atribuída a outro objeto, ideia, pessoa ou ação, buscando causar um efeito de comparação de
qualidades afins aos dois. Essa qualidade comum abre a possibilidade, pela necessária comparação,
94 Teoria da literatura II

do surgimento de novos sentidos, ampliando-os. Desse modo, o conceito de transporte é superado


porque não se trata apenas de estabelecer uma relação um a um: a analogia entre as duas palavras vai
além da semelhança, criando um sentido terceiro, porque cada um deles fica contaminado e acrescido.
A expressão li todo o Camões implica a relação de transferência em que o autor deve ser en-
tendido como sua obra, enquanto em Ele é um tigre há a transferência das qualidades do animal para
a pessoa. No primeiro exemplo, temos um tropo denominado metonímia; no segundo, a metáfora.
A metonímia estabelece uma relação de contiguidade, isto é, fica evidente a relação de causa
e efeito, da parte pelo todo, do conteúdo pelo continente ou vice-versa. Já a metáfora trabalha com
a relação de similaridade.
São metonímias, por exemplo, usar lata pelo líquido que ela contém (“Só de refrigerante,
ela bebeu três latas!”); a imprensa, por jornalismo; o Palácio do Planalto, pela Presidência da República.
A metáfora, por sua vez, exige um entendimento de atributos mais amplos e específicos
de cada uso particular. Uma mulher onça ou felina pode implicar vários sentidos: elasticidade,
ferocidade, movimentos suaves e ondulados, pele matizada e sedosa. Compare por exemplo com
a expressão mulher rosa ou flor: perfume, beleza, transitoriedade, espinhos que ferem. Esses exem-
plos nos dão a indicação de que a metáfora propicia maior amplitude do sentido e, portanto, torna
mais plural a compreensão do texto, não apenas transferindo mas também criando novas acepções
resultantes do hibridismo dos sentidos.
Podemos verificar a importância do discurso figurado e, em especial, da metáfora no poema
que segue, de Paulo Henriques Britto (2007, p. 26):

Uma doença – II

O mundo está fora de esquadro.


Na tênue moldura da mente
as coisas não cabem direito.
A consciência oscila um pouco,
como uma cristaleira em falso.
Em torno de tudo há uma aura
que é claramente postiça.
O mundo precisa de um calço,
fina fatia de cortiça.

(BRITTO, 2007, p. 26, grifos do autor)

As palavras assinaladas transportam para uma visão crítica do mundo na atualidade, concreti-
zando a ideia de desequilíbrio e do pensamento necessitado de apoio, de qualquer tipo de segurança
que o impeça de entrar em crise, de desequilibrar-se: o mundo não é mais a mente em desequilíbrio,
mas acrescenta o sentido de fragilidade e de artificialidade, originado na aura postiça e na leve e po-
rosa cortiça. Mas, acima de questões de compreensão do texto poético, podemos avaliar que efeitos de
singularidade e beleza o texto adquire pelo uso constante e harmônico dessas metáforas.
A linguagem poética: ­poema x poesia 95

7.3 Poemas de forma fixa


Com a liberdade formal estabelecida na literatura a partir do Simbolismo do final do século
XIX, as normas definidas ao longo do tempo para construção de poemas de modo rígido foram
postas por terra. E não apenas o verso e suas qualidades lexicais, sonoras e rítmicas se alteraram:
também se modificaram os conteúdos e as formas.
A poemática trata da classificação das formas poéticas. Algumas dessas formas desapare-
ceram no tempo, e fazem parte apenas de uma história da literatura. É o caso do rondó, do gazal,
da vilanela, do triolé e do solau.
Vamos tratar apenas das formas mais relevantes da poesia lírica, segundo um critério de
permanência no tempo e segundo sua presença mais significativa na história da literatura.

7.3.1 Acróstico
Trata-se de uma forma poética em que “certas letras formam uma palavra ou frase, em ge-
ral um nome próprio. Quando se juntam as letras iniciais, tem-se o acróstico propriamente dito,
que se lê na vertical, de cima para baixo ou no sentido inverso” (MOISÉS, 1997, p. 11). É forma
poética popular, adotada em álbuns de recordação, em bilhetes, em dedicatórias. Abaixo, um
acróstico escrito por Sílvia Arcoverde (2007):

Adoração

À Elisa Lucinda

Eu Adoro
Lê-La e devorá-La
Ícone da linguagem poética
Sedutora, morena e sensual
Autêntica e apaixonante
Linda
Única
Completa
Inspiração dos meus versos
Navio, chegada, porto
Diva, deusa
Arte do começo ao fim.

(ARCOVERDE, 2007)

7.3.2 Balada
É poema de tom geralmente melancólico e que, enquanto forma fixa, apresenta geralmente
quatro estrofes, versos octossílabos, rimas cruzadas ou variáveis e repetição do mesmo conceito ou
ideia ao fim de cada estrofe.
Manuel Bandeira traduziu a “Balada da linda menina do Brasil” (BANDEIRA, 1970, p. 422),
de Rubén Darío, de que citamos apenas a estrofe final, cujos dois últimos versos se repetiram nas
estrofes anteriores.
96 Teoria da literatura II

Balada da linda menina do Brasil

Princesa em flor, nada na vida,


Por mais gracioso ou senhoril,
Iguala a esta joia querida:
A pequena Ana Margarida,
Linda menina do Brasil.

(DARÍO apud BANDEIRA, 1970, p. 422)

7.3.3 Canção
Há variados tipos de canção, entre eles a canção medieval trovadoresca, a clássica, a român-
tica e a moderna. Segundo Massaud Moisés,
há que distinguir a canção popular da canção erudita. A primeira, que assume
outros apelativos conforme o idioma (abc nordestino, modinha, lied, song,
saga etc.) limita-se com o folclore e a música e não apresenta moldes definidos.
A outra modalidade [...] caracteriza-se pela obediência a esquemas cultos e
precisos. (1997, p. 68, grifos do autor)

Entre esses esquemas estão uma limitação entre 7 e 20 versos e um sentimento vibrante de
amor, paixão, ódio, vingança, saudade, tristeza etc., com um transbordamento da alma do poeta.
Na canção, geralmente estão ligados o amor e o lirismo.

Canção

[...]
Forma longínqua e incerta
Do que eu nunca terei...
Mal oiço e quase choro.
Por que choro não sei.
Tão tênue melodia
Que mal sei se ela existe
Ou se é só o crepúsculo,
Ou pinhais e eu estar triste.

(PESSOA, 1965, p. 117)

Entre as canções modernas, podemos encontrar as religiosas, as patrióticas, as amorosas,


as nostálgicas, as sertanejas, as toadas e os desafios, as décimas, o galope à beira-mar etc.

7.3.4 Elegia
Na origem, a elegia acompanhava os cantos fúnebres. Por isso, conserva o caráter lamen-
toso, de perda, de desengano amoroso e de dor íntima. Na época clássica greco-latina, alcançou
grande prestígio, quando tratava de diferentes assuntos. Na elegia, “o poeta mais francamente se
põe em cena. Ele queixa-se e louva; moraliza; geralmente exorta. Quase atua como orador: seja o
orador político e popular, que busca desencadear nas almas sentimentos belicosos e patrióticos;
seja o orador filósofo, que disserta acerca da vida humana seus prazeres e males” (MOISÉS, 1997,
p. 167-168).
A linguagem poética: ­poema x poesia 97

No início, essa forma obedecia a uma estrutura poemática de dísticos (estrofes de dois ver-
sos), mas ela se alterou ao longo do tempo. A forma poética se expandiu e foi popular em todos os
países do Ocidente. Na atualidade, é praticada e está sempre relacionada com sentimentos doloro-
sos, em especial os despertados pela perda ou ausência do ser amado.

Elegia

Ganhei (perdi) meu dia.


E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaça, num suspiro.
E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.

(ANDRADE, 2000, p. 212)

Um dos poetas mais valorizados na criação de poemas nesse formato é Rainer Maria Rilke
(1875-1926). Em pouco mais de duas semanas, de janeiro a fevereiro de 1922, Rilke compôs
os dez poemas que integram as Elegias de Duíno, uma das obras poéticas mais influentes na
literatura ocidental.

7.3.5 Haicai
Forma poética japonesa em estrofe única de três versos, com total de 17 sílabas métricas,
assim divididas: primeiro verso, cinco sílabas; segundo verso, sete sílabas; no último, cinco sílabas
(5-7-5). Apresenta uma impressão a respeito de uma cena ou de um objeto natural, criando uma
imagem de forte impacto lírico. A seguir, dois exemplos de Helena Kolody.

Saudades

Um sabiá cantou.
Longe, dançou o arvoredo.
Choveram saudades.

(KOLODY, 1993, p. 20)

Flecha de sol

A flecha de sol
Pinta estrelas na vidraça.
Despede-se o dia.

(KOLODY, 1993, p. 16)


98 Teoria da literatura II

7.3.6 Hino
Composição poética ligada à música desde sua origem grega. Tem temática elevada, de tona-
lidade cívica, patriótica, religiosa ou profana. Seu objetivo é sempre de elogiar e exaltar. Os poetas
do Romantismo, em especial, serviram-se dessa forma para exaltar a natureza e a pátria. É uma
composição livre, definida mais pelo tom e pelo assunto do que pelos aspectos da estrutura de
versos ou estrofes ou ritmo.

Hino à Pátria

Pátrio Céu, amplitude tranquila


De brilhante celagem azul,
Céu da Pátria, onde fulge e cintila
Toda noite o Cruzeiro do Sul,
Céu azul, onde a nuvem eu passa,
Coando a luz do luar, como um véu,
Cora e ri toda cheia de graça...
Pátrio Céu, glória a ti, Pátrio Céu!
A esta Terra, onde o engenho divino
Esgotou seu poder criador,
Brasileiros, cantemos um hino,
Hino feito de glória e amor.
Terra ideal, de extensões infinitas,
Cheia de ouro e de amor, Terra ideal,
Que, amorosa e cativa, palpitas
Às carícias de um sol tropical,
Pátria amada, onde a luz tanto brilha,
Esplendores são tantos os teus
Que tu és a maior maravilha
Das que existem criadas por Deus.
A esta Terra, onde o engenho divino
Esgotou seu poder criador,
Brasileiros, cantemos um hino,
Hino feito de glória e amor.
Pátria amada, tão pródiga e rica,
E de quem nenhum filho descrê,
Pátria amável, a quem se dedica
Todo aquele que um dia te vê,
Se ao teu brilho se juntam mais brilhos,
Como a um sol vêm juntar-se mais sóis,
Agradece-o também aos teus filhos
Pelo afeto tornados heróis.
A esta Terra, onde o engenho divino
Esgotou seu poder criador [...]

(FRANCISCA JÚLIA apud LAJOLO; ZILBERMAN, 1993)

7.3.7 Madrigal
De origem italiana, atravessou os séculos e está ligado a temas amorosos e à música.
Na origem, possuía forma fixa – dois ou três tercetos seguidos de um ou dois dísticos em versos
decassílabos rimados –, mas o passar do tempo deixou o madrigal com forma livre, predominan-
do a estrofe única de dez versos e alternando decassílabos e hexassílabos. O exemplo a seguir é
de Manuel Bandeira (1970, p. 90).
A linguagem poética: ­poema x poesia 99

Madrigal melancólico

O que eu adoro em ti
não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
[...]
O que eu adoro em ti – lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

(BANDEIRA, 1970, p. 90)

7.3.8 Ode
Trata-se de uma composição poética que apresenta tom cerimonioso, sendo dirigida a uma
pessoa ou entidade abstrata, sempre séria e de tom elevado. Há diferentes odes: a ode pindárica,
a sáfica, a horaciana e a irregular.
A primeira delas, feita ao estilo do poeta grego Píndaro, exaltava os vencedores da guerra ou
dos jogos olímpicos, usando três estrofes diferentes no poema.
A ode praticada pela poeta grega Safo, assim como as de Anacreonte e Alceu, cantava o
amor, o vinho e os prazeres da mesa.
A ode horaciana é mais pessoal e reflexiva, composta por uma série de estrofes iguais.
Durante a Idade Média, a ode foi esquecida e retornou com vigor no Humanismo do século
XV. O Romantismo do século XIX continuou a cultivá-la, mas sem tanta constância. A partir do sé-
culo XX, a ode apresenta forma livre, temas contemporâneos dos poetas. Foi cultivada por nomes
importantes da literatura, como Miguel Torga, Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade,
entre outros.

Ode triunfal

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r- eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
[...]

(PESSOA, 1965, p. 306)


100 Teoria da literatura II

7.3.9 Parlenda
É um poema infantil, fortemente rimado, e se destina aos jogos das crianças.

Hoje é domingo,
Pede cachimbo.
Cachimbo é de barro,
Bate no jarro [...]

7.3.10 Poema bucólico


Composição poética que tem como assunto a vida no campo, e por isso também é deno-
minado pastoril ou campestre. Pode ser um idílio (poema em monólogo que exalta os encantos do
campo) e écloga ou égloga (poema dialogados que trata também do amor simples).

IV

Sou pastor; não te nego; os meus montados


São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;
Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.
Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;
Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.

(COSTA, 1966, p. 36)

7.3.11 Poema figurativo


Composição existente desde a Antiguidade, reproduz no aspecto visual o sentido do poema
– por exemplo, em formato de cruz, de ovo, de pirâmide. No século XX, Guillaume Appolinaire
denominou essas composições de caligramas. Os poemas figurativos estão na origem da poesia vi-
sual da atualidade e neles predomina o ritmo visual e não mais o sonoro, como nas demais formas
poéticas líricas. Como exemplo, apresentamos o poema Pêndulo, de E. M. de Melo e Castro (1962):

P
P

P Ê N
O

D U L
P Ê N D L
U
N
P Ê D U
N
P Ê D
N
P Ê
A linguagem poética: ­poema x poesia 101

7.3.12 Soneto
Uma das mais conhecidas e praticadas entre as formas poéticas líricas. Sua origem data do
século XII, na Itália, e é atribuída a Giacomo da Lentino (1180(?)-1246(?)). Tem dois esquemas
de composição.
• O soneto italiano ou petrarquiano (do italiano Petrarca – 1304-1374) compreende duas
quadras (estrofes de quatro versos) e dois tercetos (estrofes de três versos), com rima
abbaabba nos quartetos e cdecde ou cdcdcd nos tercetos. É o formato mais utilizado para
a composição do poema.
• O soneto inglês ou shakespeariano (de Shakespeare) é composto por três quartetos e um
dístico (estrofe de dois versos) final e rimas ababcdcdefefgg.
Atualmente, a apresentação visual do soneto ganhou uma nova imagem: os 14 versos apare-
cem em apenas um bloco, mantendo, no entanto, a perspectiva temática e a chave de ouro ou fecho
de ouro, isto é, o último verso contém a ideia, o conceito ou o tema fundamental do poema.
Qualquer que seja o formato, foi adotado em todo o Ocidente e teve inicialmente o tema
amoroso como exclusivo, mas sua evolução permitiu uma ampliação temática: a sátira, o humor,
as reflexões sobre a vida e a morte, sobre a beleza e a poesia, sobre o cotidiano e a religião. Essa
abertura temática renovou a forma poética.

Vai tudo em mim

Vai tudo em mim, enfim, se despedindo


neste pomar sem ramos ou maçãs,
sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs
que me recordem o que foi e é findo.
Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs
do que eu não fui agora vão cobrindo
os ermos epitáfios, indo e vindo
entre as hermas e as lápides mais chãs.
Tudo se esvai num remoinho infindo
de atávicas moléculas malsãs:
essas do avô, do pai e das irmãs
que o sangue foi à alma transmitindo.
Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo
em meu encalço vem me perseguindo.

(JUNQUEIRA, 2005, p. 198)

7.3.13 Trova
É uma composição de uma só estrofe, geralmente um quarteto, que condensa todo o sen-
timento e a reflexão do poeta. É extremamente popular e sua musicalidade se origina no uso do
verso heptassílabo, isto é, a redondilha maior. Nosso folclore é rico nesse tipo de composição,
repetida oralmente.
102 Teoria da literatura II

Lá vai a garça voando


Com as penas que Deus lhe deu.
Contando pena por pena,
Mais pena padeço eu.

Existem outras formas poéticas, mas com menor e menos expressiva ocorrência, e por isso
elas não foram aqui arroladas.

Ampliando seus conhecimentos

As unidades expressivas
(CANDIDO, 2004, p. 103-111)

Neste ponto, estudaremos outras unidades, que constituem a linguagem poética propriamente
dita: palavras e combinações de palavras dotadas de um significado próprio que o poeta lhes
dá, e que se tornam condutoras do significado do poema. No trabalho criador, o poeta (1) usa
palavras na acepção corrente; (2) usa palavras dotadas de acepção diversa da corrente, mas que
é aceita por um grupo; (3) usa palavras dotadas de uma acepção que ele cria, e que pode ou
não tornar-se convencional. Em qualquer dos casos, está efetuando uma operação semântica
peculiar – que é arranjar as palavras de maneira que o seu significado apresente ao auditor,
ou leitor, um supersignificado, próprio ao conjunto do poema, e que constitui o seu significado
geral. As palavras ou combinações de palavras usadas podem ser signos normais, figuras, ima-
gens, metáforas, alegorias, símbolos, em cujo estudo agora entramos.
Como preliminar, detenhamo-nos um pouco no tipo de homem que faz versos. Antes de mais
nada, devemos registrar que ele é dotado de um senso especial em relação às palavras, e que
sabe explorá-las por meio de uma técnica adequada a extrair delas o máximo de eficácia. Só a
tais homens ocorre o fenômeno chamado inspiração, que é uma espécie de força interior que
o leva para certos caminhos da expressão.
Bilac, por exemplo, tinha mania com as palavras, os nomes, as combinações de nomes. Dizia
que alguns deles equivaliam a um maxixe, e gostava de os pronunciar dançando, ou então
ficava obsedado por certos vocábulos, pronunciando-os de vários modos, explorando a sua
sonoridade, comparando-os com outros. [...]
Quando fica nesta camada de percepção sonora e rítmica o poeta ainda não completou o seu
equipamento. É preciso possuir também um senso apurado dos significados que a palavra
pode ter – desdobrando-a, aproximando-a de outras, extraindo significações insuspeitadas.
O verso é uma unidade indissolúvel de ritmo, sonoridade e significado [...] interagindo ambos
na constituição de uma unidade expressiva. Justamente na busca de tais significados é que o
poeta emprega a palavra como imagem ou como símbolo.
A base de toda imagem, metáfora, alegoria ou símbolo é a analogia, isto é, a semelhança entre
coisas diferentes, e aqui encontramos, no plano dos significados, um problema que já encontrá-
vamos no plano das sonoridades como sinestesia: o da correspondência. Com base na possibili-
dade de estabelecer analogias, o poeta cria a sua linguagem, oscilando entre a afirmação direta
e o símbolo hermético. Raramente o poema é feito apenas com um ou outro destes ingredien-
tes polares, e na sequência dos versos somos capazes de notar a gradação que os separa. Muitas
vezes, o elemento simbólico não está nas especificidades das palavras, ou na sequência de
A linguagem poética: ­poema x poesia 103

imagens, mas no efeito final do poema tomado em bloco. E em tudo observamos a capacidade
peculiar de sentir e manipular palavras.
Por que o poeta tem este dom, é difícil dizer, e a reposta cabe à psicologia da criação, que não
nos interessa no momento. Mas podemos mencionar alguns elementos diretamente ligados
ao nosso tema.
Antes de mais nada, como muito bem diz e rediz John Press (The fire and the fountain, capítulo
II), a poesia depende de uma acuidade e potência invulgares dos sentidos baseadas na riqueza
emocional. Gente fina, sem paixões, sem intensidade emocional, não faz poesia grande.
Ora, esta generosidade de temperamento está ligada a uma forte sensorialidade (digamos
assim em lugar de sensualidade para evitar equívocos); a uma capacidade de perceber viva
e intensamente com os sentidos; logo, de apreender com força as coisas e o espetáculo do
mundo. Daí o sentimento das analogias, a capacidade de correlacionar, de substituir e de
transpor, que está na base da formação das imagens. Há poetas que denotam mais claramente
do que outros esta capacidade, porque manifestam os aspectos exteriores da sua sensoriali-
dade: senso das cores, dos ritmos, do tato, do gosto. Noutros, tais aspectos aparecem difusos
ou sublimados, mas em todos estão presentes quando analisamos a contextura de sua obra.
Muitas vezes a sensorialidade aparece como algo interior, pois o poeta traduz em lingua-
gem introspectiva seu senso agudo das formas e dos sons, por exemplo. Um temperamento
poderoso como o de Antero de Quental, mas que ao mesmo tempo se alia a uma capacidade
invulgar de reflexão, é capaz de escrever com êxito poesias de transposição externa do mundo
e de transposição interna do mundo. [...] a analogia está na base da linguagem poética, pela
sua função de vincular os opostos, as coisas diferentes, e refazer o mundo pela imagem.

Atividades
1. Escolha um quadro de Leonardo da Vinci – pode ser, por exemplo, A Gioconda (Monalisa)
ou Nossa Senhora das Rocas. Descubra o que nele é referência e o que é figurado. Analise o
modo como é composta a figura central e como se relaciona com o fundo do quadro.

2. Busque imagens de sua coleção pessoal de fotografias. Escolha algumas e observe o que nelas
você considera como metáforas de momentos de sua existência ou de pessoas próximas.

3. Recolha na fala cotidiana exemplos de palavras e expressões que não são usadas no sentido
próprio, mas em sentido figurado. Tente descobrir e explicar qual o sentido original.
8
A linguagem poética: o ritmo e a rima

De sua origem, a poesia lírica traz a ligação com a música, que permanece no verso atual
sob as formas do ritmo do verso e todos os efeitos estilísticos e estéticos nascidos das combinações
sonoras de sílabas e letras, como a rima.
Ao passar da forma somente cantada para a escrita, nesta se conservariam re-
cursos que aproximariam música e palavra: as repetições de estrofes, de ritmos,
de versos (refrão), de palavras, de sílabas, de fonemas, responsáveis não só pela
criação das rimas, mas de todas as imagens que põem em tensão o som e o sen-
tido das palavras. (SOARES, 2000, p. 24)

Mesmo a mudança histórica do suporte poético, que passou do canto à folha impressa,
não repudiou a ligação entre elementos tão significativos como o ritmo do verso ou a sonoridade
significativa das palavras, registrados na sua versão escrita.

8.1 Palavra poética e música


Em um primeiro olhar, a palavra escrita se apresenta como desenho sobre a folha de papel.
Se o leitor abstrair o significado e fixar os olhos apenas sobre as marcas pretas na página, verá que
a distribuição das palavras realmente desenha formas, com canais, espaços em branco, geometrias,
ritmos visuais.
O leitor da palavra escrita também forma mentalmente uma imagem sonora da palavra,
ao evocar o modo como ela se pronuncia, mesmo que leia silenciosamente o texto escrito. Essa é uma
segunda camada de apreensão física do texto, que é sonora e compõe, por força de nossa memória
auditiva, sons encadeados em frases melódicas, em ritmo variado: é a denominada musicalidade.
Essa apreensão de palavras e frases não impede que os significados sejam acoplados à
experiência sensorial. O texto vai produzindo seu sentido no leitor com a contribuição dos
aspectos fônicos e sonoros.
Há, portanto, na ação de ler, a mescla de atividades do ver, do ouvir e do pensar. Para que a
poe-sia se torne significativa para o leitor, essas atividades precisam se conjugar e construir rela-
ções mais ou menos coerentes, mais ou menos eficazes, mais ou menos compreensíveis para o lei-
tor. Segundo Angélica Soares (2000, p. 26), “no texto lírico, os recursos sonoros e de significação se
aliam de tal forma, que se cria uma unidade”. Essa unidade justifica o fato de que é possível analisar
os recursos sonoros para melhor compreensão do poema e para melhor compreensão da técnica e
do talento do poeta.
O mesmo entendimento do papel representado pelo ritmo e pelo significado é apontado
por Norma Goldstein, acentuando a atuação do leitor, nele distinguindo diferentes qualidades
de acordo com sua capacidade de trabalhar isolada ou conjuntamente com os elementos sonoros
e de significação: “O leitor comum perceberá o ritmo poético isolado do significado, enquanto
106 Teoria da literatura II

o leitor atento, treinado a ouvir, poderá captar no poema o ritmo e o significado como uma
unidade indissolúvel.” (GOLDSTEIN, 2006, p. 12). Na medida em que observamos, analisamos
e relacionamos os diferentes usos dos recursos sonoros e procuramos descobrir qual é a unidade
que formam com o significado, o estudo desses recursos ganha importância e relevo para a com-
preensão e a avaliação da musicalidade de um poema.

8.2 Versos e ritmos


Etimologicamente, a palavra verso deriva do latim versu[m], com o significado de virado, vol-
tado e, por extensão, o movimento de retorno para a linha seguinte depois que a anterior se concluiu.
Habitualmente, associamos o verso a uma linha manuscrita ou impressa interrompida. Mas há versos
que se prolongam na linha seguinte, em um encadeamento de versos denominado enjambement ou
encadeamento. Observemos um fragmento de poema de Rainer Maria Rilke (2002, p. 31):

IX

Só quem ousou tocar a lira,


mesmo na escuridão,
sente o quanto inspira
infinda louvação.
[...]
Somente no reino vago
as vozes são curvas
eternas e puras.

Descobrimos que o primeiro verso/linha tem uma subunidade de sentido − “Só quem ousou
tocar a lira” −, assim como o verso/linha seguinte. Mas o terceiro não se completa nele mesmo −
“sente o quanto inspira” − e precisa encadear-se com o seguinte. Temos um caso de encadeamento
que se justifica pela semântica. Mais claramente se verifica essa incompletude do verso e a neces-
sidade de encadear-se com os seguintes na segunda estrofe citada: o segundo e o terceiro versos –
“as vozes são curvas/ eternas e puras” − estão em uma relação de completa dependência.
Há gradação nessa dependência: o terceiro verso da estrofe está mais ligado ao segundo do que este ao
primeiro. A diferença de grau não interfere na denominação de encadeamento para os dois versos em
relação ao primeiro − “Somente no reino vago” − dessa segunda estrofe.
O verso segue algumas regras e normas relativas ao modo como se organiza e como é medida
sua extensão, bem como a relação que mantém na estrofe e no poema. As regras e normas que medem
sua extensão e sua organização se denominam métrica (do grego métron = “medida”).

8.2.1 Sistema quantitativo


Na Antiguidade clássica, o verso era medido pelo número de pés, e esses pés obedeciam
ao critério quantitativo de tempo despendido na enunciação das sílabas. As línguas clássicas
(grego antigo e latim) possuíam palavras que alternavam sílabas longas e sílabas breves, isto é,
sua enunciação levava mais ou menos tempo. A indicação desse tempo era dada por sinais grá-
ficos: sílaba longa, pelo sinal / − / e sílaba breve, pelo sinal /∪/. Os pés eram, portanto, medidas
A linguagem poética: o ritmo e a rima 107

que identificavam na palavra e no grupo de palavras as sequências de tempo da enunciação.


Os principais pés métricos do sistema quantitativo eram conforme o quadro abaixo:
Uma breve e uma longa /∪−/ Pé jâmbico

Uma longa e uma breve /−∪/ Pé trocaico ou troqueu

Duas longas /−−/ Pé espondeu

Uma longa e duas breves /−∪∪/ Pé dátilo

Duas breves e uma longa /∪∪−/ Pé anapesto ou anapéstico

Esse modo de distribuir o tempo da elocução das palavras desapareceu na passagem para
as línguas modernas, mas não desapareceu, porém, da crítica literária e da análise de poemas –
que, com frequência, costumam qualificar o ritmo de alguns versos como jâmbicos, ou trocaicos,
ou espondaicos e por aí afora.

8.2.2 Sistema de intensidade


As línguas modernas não têm mais esse sistema quantitativo (longas e breves) para medir os
versos: elas usam o sistema de intensidade, isto é, o de acentuação tônica, alternando sílabas átonas
e tônicas. Por isso se diz que nosso sistema é silábico-acentual.
Na verdade, um sistema influencia o outro. Certas épocas são rígidas, impondo
regras de composição aos escritores. Outras são menos rigorosas, permitindo
ao escritor a liberdade de compor independentemente de regras. Encontramos
grandes poetas tanto entre os que seguiram, quanto entre os que aboliram as
regras. (GOLDSTEIN, 2006, p. 19)

Para conhecer como funciona esse sistema em língua portuguesa, convém esclarecer al-
gumas pequenas regras da escansão1. As sílabas métricas não correspondem exatamente à divi-
são das sílabas gramaticais. Por exemplo, ao final de cada verso, a última palavra terá contadas
as suas sílabas somente até a sílaba tônica. No verso “Minha terra tem palmeiras” conta-se até
“-mei-” (o que dará mi/nha/terr/a/tem/pal/mei- 7 sílabas métricas). Outra alteração das síla-
bas gramaticais se dá quando ocorre ou uma elisão ou sinérese ou diérese ou hiato2.
O verso é formado por sílabas métricas, que formam o ritmo. O número dessas sílabas totais
varia de 1 a 12. Os versos que ultrapassam esse número são compostos pelos anteriores, por exem-
plo, um verso de 17 sílabas métricas seria composto de 10 e 7 ou de 9 e 8. Os versos até 12 sílabas
são considerados regulares.
O esquema rítmico (ER) contém acentuação variada a partir dos versos com três sílabas. Essa
variação estará de acordo com as tendências da versificação em língua portuguesa e atende a crité-
rios de ordem semântica: para acentuar tal ou qual ideia, muda-se a acentuação do ER para fins de
efeito enfático, de intensificação do sentido. Antonio Candido esclarece (2004, p. 82):

1 Escansão é a técnica de decompor o verso em seus elementos fundamentais (MOISÉS, 1997, p. 196).
2 A elisão resulta da fusão de vogais no encontro de duas palavras (a expressão “do interior” passa a ser contado
“do+ in/te/rior”, 3 sílabas). A sinérese é a junção de vogais no interior de uma palavra (“saudade” passa a ser sau/
da/de). A diérese é a separação de vogais juntas no interior de uma palavra (“branquear” é lida como branque + ar).
O hiato é a separação de vogais em palavras lado a lado: no verso da poeta Florbela Espanca: “Ó Anto! Eu adoro os teus
estranhos versos”, temos a métrica “Ó+An/ to!+eu/ a/do/ro+os/teus/es/tra/nhos/ver...”, um verso de 10 sílabas métri-
cas (MOISÉS, 1997, p. 198-199).
108 Teoria da literatura II

Ao número de sílabas poéticas de um verso chama-se metro; ao número de


segmentos rítmicos, chama-se ritmo. [...] A alternância das sílabas em si
nada significa, mas sim a alternância de tonicidade e atonicidade dentro de
grupos silábicos que formam unidades rítmicas. A constatação importante
que devemos fazer agora é que cada metro ou esquema silábico obtido pela
reunião de sílabas poéticas pode ter vários correspondentes rítmicos. Assim,
um verso de dez sílabas pode ter as suas sílabas tônicas distribuídas de modo
diverso, resultando em várias combinações de ritmo. Por outras palavras,
a um esquema silábico ou métrico constante – ES ou EM – correspondem
esquemas rítmicos variáveis – ER.

Em língua portuguesa, Norma Goldstein (2006, p. 35-36) aponta um quadro de esquemas


silábicos (ES) e correspondentes esquemas rítmicos (ER), com acréscimos nossos.
Número de sílabas
Sílabas acentuadas ER Nome do verso
poéticas ES

1 1 monossílabo

2 2 dissílabo

3
3 trissílabo
1e3

1e4
4 tetrassílabo
2e4

2e5
5 3e5 pentassílabo ou redondilha menor
1, 3 e 5

3e6
2e6
6 hexassílabo
2, 4 e 6
1, 4 e 6

7 Qualquer sílaba e a última heptassílabo ou redondilha maior

4e8
2, 6 e 8
8 octossílabo
3, 5 e 8
2, 5 e 8

4e9
9 eneassílabo
3, 6 e 9

6 e 10
10 decassílabo
4, 8 e 10

5 e 11
11 2, 5, 8 e 11 endecassílabo
2, 4, 6 e 11

6 e 12
12 4, 8 e 12 dodecassílabo ou alexandrino
4, 6, 8 e 12
A linguagem poética: o ritmo e a rima 109

Como se verifica a funcionalidade desse quadro? Pelos efeitos rítmicos, semânticos e estilís-
ticos resultantes da escolha por um ou outro desses metros. As épocas históricas, a preferência por
determinadas formas fixas e as intenções dos poetas dão unidade ao poema e o valorizam formal
e esteticamente.
Exemplo de poema com verso de uma sílaba:
É um metro raro para compor todo um poema. Aparece mais na literatura moderna e atual
em estrofes com metros variados, provocando sempre um efeito surpreendente pela saliência que
dá ao significado.
Norma Goldstein encontrou um belo exemplo em Cassiano Ricardo:

Rua
torta.

Lua
morta.

Tua
porta.

(RICARDO apud GOLDSTEIN, 2006, p. 20)

Exemplo de poema com versos de duas sílabas:

amor
humor

(ANDRADE, 1972, p. 95)

Esse poema de Oswald de Andrade representa muito bem duas fases de sua poesia: a síntese
e o humor. É um poema-piada que, no entanto, trata das possíveis faces do amor. O trocadilho cria-
do pela rima aproxima as duas palavras e as faz equivalerem em uma unidade de sentido: a de que
o amor é alegre, mas por vezes ridículo. Essa significação nasce rapidamente, assim como é rápido
todo o poema, inclusive sua métrica. Há total semelhança entre o número de sílabas gramaticais e
o de sílabas métricas.
Exemplo de poema com versos de três sílabas:

Rosalina

Rosalina.
Rosa ou Lina?
Lina ou Linda?
Flor ainda!
Flor purpúrea,
Mais singela
Que Adozinda:
Rosalina!
Rosalinda!

(BANDEIRA, 1970, p. 309)


110 Teoria da literatura II

Além do belo jogo de palavras, com trocas sonoras bastante chamativas pelo uso constante
da vogal aguda -i-, percebemos a leveza do jogo do nome da mulher, acentuada sobretudo pela
leveza do ritmo rápido de versos em três sílabas métricas (Ro/sa /li.., Ro /sa+ou / Lin..., Li/ na+ou/
Lin..., Flor/a/ in... etc.).
Exemplo de poema com versos de quatro sílabas:

Elisa

O rouxinol
que na balseira
do rio à beira,
canção fagueira
que tão bem soa,
cadente entoa
ao por do sol
e no arrebol
duma manhã
fresca e louçã; [...]

(ABREU, 1961, p. 293)

O movimento conferido pelo ritmo rápido e a regularidade do metro conferem ao texto li-
geireza e alegria (“fagueira”), cadência (“cadente”) e musicalidade (“que tão bem soa”). Ao esquema
silábico (ES 4) correspondem dois esquemas rítmicos (ER): 1-4 e 2-4.
Exemplo de poema com versos de cinco sílabas:

Piscina

Que silêncio enorme! (ER 3,5)


Na piscina verde (ER 3,5)
Gorgoleja trépida (ER 3,5)
A água da carranca. (ER 1,5)
Só a lua se banha (ER 3,5)
– Lua gorda e branca – (ER 3,5)
Na piscina verde. (ER 3,5)
Como a lua é branca! (ER 1,3,5)

(BANDEIRA, 1970, p.175)

Para o mesmo ES 5, temos três diferentes ritmos que indicam três alvos do olhar do poeta: a
piscina, a carranca e a lua. O movimento do olhar que percebe a paisagem é o movimento do verso
que se altera para acompanhar esse olhar.
Exemplo de poema com versos de seis sílabas:

Isto

Dizem que finjo ou minto (ER 1,4,6)


Tudo que escrevo. Não. (ER 1,4,6)
Eu simplesmente sinto (ER 1,4,6)
Com a imaginação. (ER 2,4,6)
A linguagem poética: o ritmo e a rima 111

Não uso o coração. (ER 2,4,6)


Tudo o que sonho ou passo, (ER 1,4,6)
O que me falha ou finda, (ER 1,4,6)
É como um terraço (ER 1,4,6)
Sobre outra coisa ainda. (ER 1,4,6)
Essa coisa é que é linda. [...] (ER 1,4,6)

(PESSOA, 1965, p. 165)

É possível verificar que em ES 6 a variação corresponde a alterações de sentido: ER 2, 4, 6


estão em versos com a afirmação do imaginário e do inconsciente sobre o sentimento, negando
uma poesia que fosse exclusivamente sentimental ou fingidamente sentimental.
Exemplo de poema com versos de sete sílabas:

Lembrança

NUM ÁLBUM
Como o triste marinheiro (ER 4, 7)
Deixa em terra uma lembrança, (ER 3, 7)
Levando n’alma a esperança (ER 2, 4, 7)
E a saudade que consome, (ER 3, 7)
Assim nas folhas do álbum (ER 2, 4, 7)
Eu deixo meu pobre nome. (ER 2, 5, 7)
E, se nas ondas da vida (ER 2 ,4, 7)
Minha barca for fendida (ER 3, 7)
E meu corpo espedaçado, (ER 3, 7)
Ao ler o canto sentido (ER 2, 4, 7)
Do pobre nauta perdido (ER 2, 4, 7)
Teus lábios dirão – coitado! (ER 2, 5, 7)

(ABREU, 1961, p. 203)

O verso de sete sílabas é o metro mais popular da língua portuguesa. Nele estão os versos
da literatura de cordel, das quadrinhas, das cantigas, dos poemas sentimentais, das canções.
A riqueza rítmica, como se pode observar no exemplo acima, confere grande dinamicidade e
variedade de efeitos.
Esse poema de Casimiro de Abreu foi escrito em junho de 1858, em um álbum de moça,
tipo de exercício poético até descompromissado e que atesta a popularidade desse ritmo.
Manuel Bandeira (1970, p. 193) tira um excelente efeito ao usar a redondilha maior,
quebrando-a em ER 3 em alguns versos do poema Belo belo:

Belo belo minha bela


Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida [...]
112 Teoria da literatura II

A quebra em quero quero intensifica não apenas a mudança de ritmo mas sobretudo a
mudança de sentido: do negativo para o desejo mais explícito. Isso mais uma vez comprova a função
expressiva que o poeta retira do uso da métrica.
Exemplo de poema com versos de oito sílabas:

Madrigal para as debutantes de 1946

Outro, não eu, ó debutantes! (ER 4, 8)


Cante as galas primaveris. (ER 3, 8)
Que o meu estro de relutantes (ER 3, 8)
Octossílabos já senis (ER 3, 8)
Mais imagina do que diz (ER 4, 8)
O que nos primeiros instantes (ER 2, 5, 8)
Do amor e do sonho sentis. [...] (ER 2, 5, 8)

(BANDEIRA, 1970, p. 333)

O poeta ironiza a si mesmo e a seu poema ao qualificar seus octossílabos já senis, mas tira
poderosos efeitos da comparação entre sua idade e a juventude das debutantes. Além desse comen-
tário de ordem semântica, podemos verificar que a mudança rítmica acentua ao final os valores da
juventude: primeiros instantes, amor, sonho.
Exemplo de poema com versos de nove sílabas:

A tempestade

[...]
E no túrgido ocaso se avista (ER 3 ,6, 9)
Entre a cinza que o céu apolvilha (ER 3, 6, 9)
Um clarão momentâneo que brilha, (ER 3, 6, 9)
Sem das nuvens o seio rasgar; (ER 3, 6, 9)
Logo um raio cintila e mais outro, (ER 3, 6, 9)
Ainda outro veloz, fascinante, (ER 3, 6, 9)
Qual centelha que em rápido instante (ER 3, 6, 9)
Se converte d’incêndios em mar. [...] (ER 3, 6, 9)

(GONÇALVES DIAS, 1988, p. 108)

Nesse poema, Gonçalves Dias exibe um belo trabalho com a diferente metrificação e seus
efeitos. O longo poema descreve uma tempestade, desde os primeiros sinais no céu até a devastação
que causa e o rastro de destruição que deixa. E, à medida que a tempestade se aproxima, o poema,
que começa com versos dissílabos, vai crescendo metricamente de estrofe a estrofe, atinge o grau
máximo no endecassílabo, e finaliza no verso de duas sílabas, como começou. Esse movimento
rítmico, que se amplia de estrofe a estrofe, é um exemplo de virtuosismo poético, de grande efeito
estético, fundindo sentido, imagem e música.
Não se pode minimizar a extraordinária regularidade rítmica. Gonçalves Dias é um dos
maiores poetas brasileiros – pela emoção e pela musicalidade de seus versos.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 113

Exemplo de poema com versos de dez sílabas:


É assim que vens

É assim que vens, amor, surdo e traiçoeiro, (ER 4, 6, 10)


Dizer-me a mim o que sequer me atrevo, (ER 4, 6, 10)
Pois que ardem as palavras se as escrevo (ER 2, 6, 10)
E logo se dissolvem no nevoeiro? (ER 2, 6, 10)
É assim que vens, pé ante pé, no enlevo (ER 4, 6, 10)
De quem flutua e corre mais ligeiro (ER 4, 6, 10)
Que o vento nos beirais de algum mosteiro (ER 2, 6, 10)
Em cujo claustro a prece é um travo e um trevo? [...] (ER 4, 8, 10)

(JUNQUEIRA, 2005, p. 151)

O verso decassilábico foi o preferido dos poetas épicos e dos grandes sonetistas das línguas
europeias. Muito maleável e rico em recursos métricos na divisão do verso, o decassílabo permite
tanto o transbordamento sentimental quanto a lógica dos pensamentos elevados e também argu-
mentações sobre a natureza do mundo e da humanidade. A alteração isolada do último verso cita-
do expõe o núcleo da reflexão do poeta: o amor é travo e trevo. O jogo de palavras tem a ver com
as contradições do sentimento amoroso (“travo” e “trevo”). O claustro amoroso é lugar de prece e
adoração, tal como o poeta se comporta diante da ausência da amada, e para dizer dessa situação o
ritmo se altera, diferenciando-se este verso dos demais versos da estrofe citada.
Exemplo de poema com versos de 11 sílabas:

A tempestade

[...]
Remexe-se a copa dos troncos altivos, (RE 2, 5, 8, 11)
Transtorna-se, toda, baqueia também; (RE 2, 5, 8, 11)
E o vento, que as rochas abala no cerro. (RE 2, 5, 8, 11)
Os troncos enlaça nas asas de fero, (RE 2, 5, 8, 11)
E atira-os raivoso dos montes além. (RE 2, 5, 8, 11)

(GONÇALVES DIAS, 1988, p. 108)

Novamente, podemos observar a regularidade rítmica dos versos de Gonçalves Dias. A pre-
sença da tempestade é inexorável. A natureza é destruída de forma implacável: a tempestade man-
tém sua regularidade e poder de destruição. Os versos mantêm a cadência.
Exemplo de poema com versos de 12 sílabas:

O anel de vidro

Aquele pequenino anel que tu me deste, (ER 6, 12)


– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou... (ER 6, 12)
Assim também o eterno amor que prometeste (ER 6, 8, 12)
– Eterno! Era bem pouco e cedo se acabou. (ER 6, 12)
Frágil penhor que foi do amor que me tiveste, (ER 4, 8, 12)
Símbolo da afeição que o tempo aniquilou – (ER 6, 12)
Aquele pequenino anel que tu me deste, (ER 6, 12)
– Ai de mim – era vidro e logo se quebrou...[...] (ER 6, 12)

(BANDEIRA, 1970, p. 45)


114 Teoria da literatura II

O verso dodecassílabo ou alexandrino3 era o preferido dos poetas clássicos e parnasianos.


Sua extensão casava com os assuntos sérios e épicos tratados nos poemas. Manuel Bandeira,
no exemplo citado, buscou opor-se aos parnasianos, dentro da linha de atuação do Modernismo
brasileiro de 1922. A marca dessa oposição pode ser verificada: o verso é o clássico, inclusive
respeitando os ritmos clássicos para esse tamanho de verso, e, no entanto, a forma do poema
e o tom de seu discurso partem de uma cantiga infantil, para contradizer, pela intertextualidade,
o verso solene parnasiano. Os versos que apresentam ritmo diferenciado tratam intensivamente
dessa fragilidade do anel e do amor.
Cremos que se possa dizer, após a apresentação dos exemplos, que realmente o ritmo
tem a ver com a significação da palavra e do verso. Pode-se por vezes apenas metrificar, isto é,
identificar as sílabas e seus acentos, sem interpretar semanticamente. Mas para interpretar um
poema será sempre necessário associar a análise da métrica à relação que as palavras têm com
significados e sentidos.
Os exemplos até aqui apresentados pertencem à categoria dos versos regulares, porque apre-
sentam identidade de esquema silábico – entre eles. Também são exemplos que se referem à poesia
lógico-discursiva, que não busca se utilizar de recursos gráfico-visuais para a expressão das ideias.
No caso da poesia nãoverbal e da poesia visual, não se aplicam os esquemas aqui apresenta-
dos, de vez que os textos têm a proposta de uma sintaxe e fraseologia específicas.

8.3 Versos e estrofes


A estrofe pode ser entendida como
cada uma das seções que constituem um poema, ou seja, cada agrupamento de
versos, rimados ou não, com unidade de conteúdo e de ritmo. [...] Pouco impor-
ta que o número e extensão dos versos variem totalmente: a estrofe instaura-se
como uma soma de versos com sentido e melodia próprios, repetidos ou não ao
longo do poema. (MOISÉS, 1997, p. 207)

De acordo com o número de versos, as estrofes podem ser conforme o quadro a seguir:
Número de versos Nome da estrofe
um verso monóstico

dois versos dístico, parelha ou pareado

três versos terceto ou trístico

quatro versos quarteto, quadra ou tetrástico

cinco versos quinteto, quintilha ou pentástico

seis versos sexteto, sextilha ou hexástico

sete versos sétima, septilha, septena, hepteto ou heptástico

oito versos oitava ou octástico


(Continua)

3 O verso alexandrino, muito difundido na Idade Média, assim se denomina, provavelmente, porque procede do
Romance de Alexandre, de Lambert le Tort, Alexandre de Bernay e Pierre de Saint-Clouds.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 115

nove versos nona ou eneagésima

dez versos décima, década ou decástico

Fonte: MOISÉS, 1997, p. 209-210; GOLDSTEIN, 2006, p. 39.

O agrupamento dos versos em estrofes pode apresentar formato regular, o que significa
que todas as estrofes de um poema têm o mesmo número de versos, ou pode ser constituído por
um texto que esteja construído com diferentes números de verso em cada estrofe. Essa distinção
visa, ela também, a acompanhar a significação do texto ou o formato fixo determinado pela tradi-
ção. Neste último caso, temos, por exemplo, o soneto, composto por duas quadras e dois tercetos.
Também o numero de estrofes varia de poema para poema.
Observemos o poema “XXXIII”, da obra Losango Cáqui, de Mário de Andrade (1987, p. 146):

Meu gozo profundo ante a manhã Sol


a vida carnaval...
Amigos
Amores
Risadas
Os piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos
de artistas de cinema, desses que vêm nos maços de cigarros
Me sinto a Assunção, de Murillo!
Já estou livre da dor...
Mas todo vibro da alegria de viver.
Eis porque minha alma inda é impura.

A combinação de estrofes (uma oitava, um dístico e um verso isolado) dão ao poema uma
dinamicidade própria: da autenticação do fato exterior, passando pela constatação da paz interior.
Chegando à conclusão metafísica do último verso, o poema se constrói em um movimento em
direção ao abstrato. A combinação de estrofes diferentes auxilia, portanto, na compreensão das
ideias e do conceito de arte expressos pelo poema.

8.4 Rimas e figuras de efeito sonoro


Segundo Norma Goldstein (2006, p. 44), “rima é o nome que se dá à repetição de sons
semelhantes, ora no final de versos diferentes, ora no interior do mesmo verso, ora em posi-
ções variadas, criando um parentesco fônico entre palavras presentes em dois ou mais versos”.
Para Antonio Candido (2004, p. 62), “a função principal da rima é criar a recorrência do som de
modo marcante, estabelecendo uma sonoridade contínua e nitidamente perceptível no poema”.
E também sabemos sobre a rima, que ela é um poderoso recurso mnemônico, isto é, serve de marca
para facilitar a memorização.
Trata-se de recurso formal de amplas possibilidades expressivas, não apenas pelas diferentes
combinações, mas também pela utilização constante ao longo da história. Antonio Candido (2004,
p. 61-62) se refere rapidamente a essa importância histórica ao informar que
Toda a história do verso português se fez sob a égide da rima, embora desde
o Renascimento haja voltado a prática do verso branco dos clássicos latinos.
[...] A rima apareceu nas literaturas latinas como consequência da decadência
116 Teoria da literatura II

da métrica quantitativa [...] O afrouxamento da métrica quantitativa deu lugar


ao aparecimento de métrica rímica [da rima], baseada na sucessão das sílabas,
com acentos tônicos distribuídos em algumas delas. Não é necessário buscar
a sua origem em outros fatores, embora eles possam ter interferido, como a
alegada influência da poesia árabe depois da conquista da Península Ibérica.
O fato é que desde o século IV e V da nossa era já se notava sua ocorrência
no próprio latim. O fato acentuou-se à medida que decaiu a língua latina e se
formaram as neolatinas. Tanto numa quanto nas outras, ela foi usada na Idade
Média. Já nos séculos XI e XII o seu uso era geral e desenvolvido nas români-
cas, e os trovadores provençais foram os que a aperfeiçoaram e de certo modo
a estabeleceram como recurso sine qua da poesia em idioma vulgar.

O funcionamento das rimas pode ser descrito por meio de sua classificação, que expomos-
na sequência4.

8.4.1 Quanto à posição no verso


A rima pode ser interna quando o final de um verso rima com o interior do verso seguinte
(alguns estudiosos chamam-na de rima encadeada); ou externa, que é a mais conhecida, a rima ao
final de cada verso.
Exemplo de rima interna: em Manuel Bandeira, no poema A dama branca, encontramos os
versos “Essa constância de anos a fio/ Sutil, captara-me” (BANDEIRA, 1970, p. 68). A rima fio/sutil
se realiza, apesar das letras diferenciadas, porque o som é semelhante. O som final de um verso –
fio – é retomado no início do verso seguinte – sutil.
Exemplo de rima externa:

Madrigal

A luz do sol bate na lua...


Bate na lua, cai no mar...
Do mar ascende à face tua...
Vem reluzir em teu olhar...

(BANDEIRA, 1970, p. 72)

É a posição em que habitualmente lemos a rima: ao final do verso, com sonoridade seme-
lhante apenas a partir da vogal tônica da última palavra.

8.4.2 Quanto à semelhança de letras


A rima pode ser consoante, quando apresenta semelhança de consoantes e vogais, e toante,
quando a semelhança é apenas entre vogais.

4 Adotaremos nos exemplos, preferencialmente, a obra de um só poeta para demonstrar a riqueza de recursos que
um artista do verso mobiliza para construir seus textos. Escolhemos Manuel Bandeira por várias razões, e uma delas
foi a profunda ligação de sua poesia com a música e os efeitos que essa relação pode trazer para o enriquecimento dos
poemas e o surgimento de muitos efeitos poéticos.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 117

Exemplo de rima consoante:

Soneto italiano

Frescura das sereias e do orvalho,


Graça dos brancos pés dos pequeninos,
Voz das manhãs cantando pelos sinos,
Rosa mais alta no mais alto galho.

(BANDEIRA, 1970, p. 160)

Exemplo de rimas toantes:

Maçã

[...]
És vermelha como o amor divino
Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples


Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.

(BANDEIRA, 1970, p. 157)

Vemos nesses versos um extraordinário trabalho de repetição sonora com rimas toantes,
em que as vogais - i -, - e - aparecem em variações sutis, criando sonoridades recorrentes e que
estabelecem alto grau de unidade sonora no poema.

8.4.3 Quanto à distribuição ao longo do poema


As rimas podem ser:
• cruzadas ou alternadas, no esquema ABABAB;
• emparelhadas ou geminadas, no esquema AA BB CC;
• interpoladas ou intercaladas, no esquema ABBA ABBA;
• misturadas.
Exemplo de rima cruzada ou alternada:

Poema de uma quarta-feira de cinzas

Entre a turba grosseira e fútil


Um Pierrô doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
Feita de sonho e de desgraça.

(BANDEIRA, 1970, p. 76)


118 Teoria da literatura II

Exemplo de rima emparelhada ou geminada:

Pavilhão

Muros altos de teu corpo.


Não havia entrada em teu horto.
(Que onda de asas ascendia!
Oh o que ali se passaria!)
Tornaste a ficar fechada.
Não havia em tua alma entrada!

(BANDEIRA, 1970, p. 461, grifos nossos)

Exemplo de rima interpolada ou intercalada:

Epílogo

Eu quis um dia, como Schumann, compor


Um Carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior...

(BANDEIRA, 1970, p. 76, grifos nossos)

Exemplo de rima misturada:

A menina idílio

A verde terra em flor


Do cemitério novo
Te acolheu de manhã
Em seu coração fresco.

(BANDEIRA, 1970, p. 460, grifos nossos)

8.4.4 Quanto à categoria gramatical


Neste caso, as rimas podem ser pobres, quando rimam palavras da mesma categoria grama-
tical; e ricas, quando a categoria gramatical é diferente.
Exemplo de rima rica e pobre:

Poema de uma quarta-feira de cinzas

Entre a turba grosseira e fútil


Um Pierrô doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
Feita de sonho e de desgraça.

(BANDEIRA, 1970, p. 76, grifos nossos)

Temos na rima fútil/ inconsútil dois adjetivos – é, portanto, rima pobre. Temos em passa um
verbo e em desgraça um substantivo – é, portanto, uma rima rica.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 119

8.4.5 Quanto à extensão dos sons que rimam


Quando há identidade da vogal tônica em diante, denomina-se rima pobre. Quando há
identidade desde antes da vogal tônica, denomina-se rima rica.

Soneto inglês n.º 2

Aceitar o castigo imerecido,


Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

(BANDEIRA, 1970, p. 161-162)

Podemos verificar nas rimas desse soneto a coincidência de letras/sons a partir da última
vogal tônica em altivez/fez, imerecido/gemido, engana/humana, espanto/santo, senão/então: são
todas elas rimas pobres, dada a semelhança integral entre elas. Já nos pares pensamento/sentimento
e vida/vivida, vemos que há coincidência nas letras/sons que antecedem a vogal tônica. Essas são
rimas ricas.

8.4.6 Quanto à acentuação tônica


A rima pode ser aguda ou oxítona, quando a palavra final do verso é oxítona. A rima pode
ser grave ou paroxítona, quando a palavra final do verso é paroxítona. A rima pode ser esdrúxula
ou proparoxítona, quando a palavra final é proparoxítona.
Exemplo de rima aguda ou oxítona:

Madrigal

A luz do sol bate na lua...


Bate na lua, cai no mar...
Do mar ascende à face tua...
Vem reluzir em teu olhar...

(BANDEIRA, 1970, p. 72)


120 Teoria da literatura II

Exemplo de rima grave ou paroxítona:

Soneto italiano

Frescura das sereias e do orvalho,


Graça dos brancos pés dos pequeninos,
Voz das manhãs cantando pelos sinos,
Rosa mais alta no mais alto galho.

(BANDEIRA, 1970, p. 160)

Exemplo de rima esdrúxula ou proparoxítona:

O descante do arlequim

[...]
E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade...

(BANDEIRA, 1970, p. 67)

Além da rima, também podem ser apontados entre recursos sonoros alguns outros,
conforme a seguir.

8.4.6.1 Aliteração
Consiste na repetição de consoantes com finalidade expressiva.

Na messe que enloirece estremece a quermesse,


O sol, o celestial girassol, esmorece,
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo a fina flor dos fenos.

(CASTRO apud CANDIDO, 2004, p. 41)

Os sons fricativos e sibilantes visam a um efeito de reprodução de sons e cores de um amarelo


competitivo entre o sol e as plantas.

8.4.6.2 Assonância
Consiste na repetição de vogais com finalidade expressiva.

Oração para aviadores

Santa Clara , clareai


Estes ares.
Dai-nos ventos regulares,
De feição.
Estes mares, estes ares,
Clareai.

(BANDEIRA, 1970, p. 223)


A linguagem poética: o ritmo e a rima 121

O significado de claridade é associado às vogais abertas, em especial a vogal a, em suas com-


binações ai e ão.

8.4.6.3 Repetição de palavras


A repetição de palavras não significa falta de vocabulário do poeta, mas o desejo de enfa-
tizar com nuances o que ele pensa expressar no poema. Há um acréscimo de significação a cada
palavra repetida.

Brisa

Vamos viver no nordeste, Anarina.


[...] Aqui faz muito calor
No Nordeste faz calor também.
Mas lá tem brisa:
Vamos viver de brisa, Anarina.

(BANDEIRA, 1970, p. 183)

8.4.6.4 Onomatopeia
Essa figura de linguagem visa reproduzir sonoridades do real, aproveitando-as para,
em conjunto com as demais palavras do verso, reforçar a expressão da ideia do poeta.

Os sinos

[...]
Sino de Belém, pelos que ainda vêm!
Sino de Belém bate bem-bem-bem.

Sino da Paixão, pelos que lá vão!


Sino da Paixão bate bão-bão-bão.

(BANDEIRA, 1970, p. 88)

Cremos que a exemplificação e as marcas de relevo adotadas mostraram, com minúcias,


os recursos e efeitos de sentido obtidos na construção de poemas que devem ser considerados
pelo leitor para que ele apreenda a riqueza estética de um texto poético.

Ampliando seus conhecimentos

O ritmo
(CANDIDO, 2004, p. 70-72)

Os elementos que compõem o verso são indissolúveis, e não podemos imaginar um sem o
outro. Mas se tentássemos, por um esforço de abstração, imaginar quais os que funcionam
com maior importância na caracterização de um verso, chegaríamos provavelmente à conclu-
são de que é o ritmo. Ele é a alma, a razão de ser do movimento sonoro, o esqueleto que ampara
122 Teoria da literatura II

todo o significado. Considerando isto, muitos chegaram à conclusão de que o ritmo seria uma
espécie de manifestação, na arte, de realidades elementares da vida. A tradução de ritmos
orgânicos, por exemplo; uma vez que também a vida se manifesta basicamente por meio de
ritmos: a pulsação cardíaca, o movimento respiratório, a marcha, o gesto. Sendo assim, o ritmo
teria um fundamento biológico e estaria ancorado na própria natureza. O verso corresponde,
de fato, a uma certa realidade respiratória, que se define antes de mais nada pela possibilidade
de emitir a sucessão de sons em certas unidades de emissão respiratória.
Para outros, o ritmo possuiria uma realidade marcada pela atividade social do homem. Teria,
por exemplo, nascido do trabalho – pois como todos sabem, o gesto produtivo é mais rápido,
mais duradouro e mais eficiente se for regular. Há uma acentuada economia de esforço e um
aumento de produtividade no gesto regular: o da enxada caindo em cadência, o do martelo
batendo em cadência. Do ângulo coletivo, é sabido que a regularidade do gesto não só permite
mais eficácia, mas é frequentemente condição para que o ato se realize. Assim, um grupo de
homens levantando um peso só o pode fazer se houver coordenação dos movimentos. O ritmo
dá unidade ao grupo, tornando eficiente o seu esforço e reforçando o sentimento de partici-
pação, de interdependência, como requisito para as realizações. Inclusive o cansaço físico é
diminuído, aumentando-se a capacidade de resistência.
Estes pontos de vista levam a duas atitudes opostas quanto à origem do ritmo: ou ele preexiste à
consciência do homem, pois já existe na própria natureza, inclusive nos movimentos fisiológicos;
ou ele é uma criação do homem, derivando das atividades sociais. No primeiro caso, o homem
traduz pelos seus meios de expressão um fenômeno que é anterior e superior a ele. No segundo
caso, o homem cria um meio próprio de expressão, que é subordinado inteiramente a ele. Mais
ainda: no primeiro caso, o ritmo seria um fenômeno natural, embora esteticamente disciplinado;
no segundo, seria um fenômeno puramente estético, embora de ordem social.
Colocadas assim, de maneira extremada, as duas posições ficam insatisfatórias; mas se fosse
preciso decidir esquematicamente por uma ou outra, parece que a primeira teria mais razão
de ser. Com efeito, é inegável que, como realidade objetiva, o movimento rítmico preexiste a
qualquer sistematização. Mesmo o canto de certos pássaros ou o grito de certos animais se
ordena numa modulação rítmica – mostrando que antes do trabalho humano e sua influência
como organizador do gesto, a natureza conhecia o ritmo, e que o homem poderia tê-lo apren-
dido nessa fonte.
[...]
Com isso, ficamos de posse de algumas noções importantes: o ritmo é uma realidade profunda
da vida e da sociedade; quando o homem imprime ritmo à sua palavra, para obter efeito esté-
tico, está criando um elemento que liga essa palavra ao mundo natural e social; está criando
para esta palavra uma eficácia equivalente à eficácia que o ritmo pode trazer ao gesto humano
produtivo. Ritmo é, portanto, elemento essencial à expressão estética nas artes da palavra,
quando se trata de versos, isto é, um tipo altamente concentrado e atuante da palavra. Ele
permite criar a unidade sonora na diversidade dos sons. [...]
Precisando a definição esboçada, digamos que:
O ritmo do verso nas línguas neolatinas é a sua divisão em partes mais acentuadas e partes
menos acentuadas que se sucedem, e a integração dessas partes numa unidade expressiva.
A linguagem poética: o ritmo e a rima 123

Atividades
1. Pesquise na internet a letra da canção Construção (1971), de Chico Buarque, e nela analise
a organização das rimas e os efeitos obtidos com o trabalho sobre as palavras. Escreva um
pequeno texto com seus comentários.

2. Pesquise cantigas de roda, parlendas e cantos folclóricos (de ninar, de trabalho etc.) em sua
comunidade. Registre esses textos. Analise sua composição rítmica e rímica.

3. Analise o soneto Língua Portuguesa, de Olavo Bilac, aplicando cada um dos recursos
sonoros tratados nesse capítulo. Redija um documento e discuta com seus colegas as ideias
sobre língua portuguesa e os recursos sonoros para a afirmação dessa ideias.

Língua portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,


És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!
9
A estrutura da narrativa: ­romance

O trabalho com a formação de leitores que é realizado pela escola privilegia, desde a mais
tenra idade do aluno, a leitura de narrativas. Aquelas que são afetivamente denominadas histo-
rinhas irão ao longo do tempo se ampliar em narrativas mais extensas e mais complexas. No en-
tanto, nesses momentos iniciais da formação começam a se desenhar na mente do pequeno leitor
estruturas narrativas que, futuramente, comporão um quadro de exigências do leitor em relação
aos textos que lê. Não apenas os escritos colaboram na formação dessa qualificação tácita de
narrativa: também as histórias relatadas e ouvidas no cotidiano ajudarão a imprimir na mente do
leitor modelos narrativos reais ou ficcionais. Vamos, por meio de um breve panorama histórico
e de reflexões teóricas, tentar explicar que estruturas narrativas são essas que atuam na formação
de leitores e que modelos os escritores seguem ao compor suas obras.

9.1 Nascimento e evolução do romance


A origem do termo romance está relacionada com a língua utilizada e o formato escrito dessa
língua. Etimologicamente, romance significa língua vulgar, provinda do latim falado pelos romanos.
Em dado momento histórico, o latim começou a se diluir nas diferentes línguas nacionais: o francês,
o espanhol, o italiano, o romeno, o português. “O verbo romancear tem o sentido de ‘traduzir do
latim para o francês’ no século XII e de ‘escrever em francês’ no século XIV” (REUTER, 1996, p. 5).
Apenas a literatura espanhola mantém diferente denominação. Em espanhol, romance é uma compo-
sição em versos, de origem popular, de autoria quase sempre anônima, com lugares exóticos, histórias
de amor e celebração da vida simples e rústica. O que em português se denomina romance equivale
a novela em espanhol. Em inglês, o mesmo gênero se denomina novel. O novo gênero literário nasce,
portanto, relacionado não com acontecimentos ou personagens, mas com fundamento na língua em
que é escrito.
O gênero romance não existiu na Antiguidade clássica, tendo aparecido como narrativa he-
roica na Idade Média, no formato de romance de cavalaria, já com uma concepção puramente
ficcional. Após o final da Idade Média, no Renascimento, o romance adquiriu feição pastoril e
sentimental. No período barroco, ele adquiriu a característica de um relato ficcional apoiado em
muitas aventuras, com trama complicada e muitas vezes inverossímil. Nesse mesmo período bar-
roco, surgiu na Espanha o romance picaresco, com personagens do povo e aventuras resolvidas
pela esperteza do protagonista. O texto inicial dessa variável do romance é A vida de Lazarilho de
Tormes (1554), de autor anônimo.
O Lazarilho de Tormes é inovador não apenas por diferir tematicamente da nar-
rativa idealista da época, que se ocupava preferentemente de aventuras de cavalei-
ros andantes, alheios à realidade histórica imediata ou de pastores cuja falsidade
encobria-se de apaixonadas histórias. A narração em primeira pessoa elimina o
usual intermediário que era então o narrador onisciente. E nos coloca no interior
126 Teoria da literatura II

da experiência do próprio protagonista. Dessa maneira, já não estarmos perante


a reiteração de um estereótipo narrativo que não pode sofrer maiores variações,
como era o caso do herói das novelas de cavalaria. [...] o autor divide os [per-
sonagens] que triunfaram em aqueles que “herdaram nobres estados” e aqueles
que “com força e manha remando chegaram a bom porto”. Força e manha são os
caminhos de ascensão social válidos na época face ao caráter estamental que a
sociedade espanhola teima então em conservar. E são os caminhos que o pícaro
parodia nesta sua primeira, e, mesmo que ínfima, significativa existência aventu-
reira. (GONZÁLEZ, 1988, p. 9-10)

No entanto, nesse período renascentista, é escrito por Miguel Cervantes de Saavedra o monu-
mental Dom Quixote de la Mancha (1605-1615), que assinala não apenas o nascimento do romance
moderno mas também é, até hoje, considerado o mais importante romance escrito no Ocidente.
Mas somente a partir do final do século XVII o romance assumiu o formato básico com que até
hoje se apresenta aos leitores. Na França, o modelo inicial foi A Princesa de Clèves (1678), de Madame
de Lafayette. Na Inglaterra, Daniel Defoe é considerado o criador do romance inglês com Robinson
Crusoé (1719) e Moll Flanders (1722). Outro romancista de extraordinária narrativa até hoje inova-
dora foi Laurence Sterne, com Tristram Shandy (1759-1767). O romance inglês ganhou destaque e
maturidade no século XIX, quando Charles Dickens e outros escritores hoje menos conhecidos con-
seguem atrair um grande público e consolidar as convenções do realismo. O século XIX foi o período
de amadurecimento do romance em toda a Europa e, por extensão, nas ex-colônias europeias da
América, o que o tornou a mais popular e mais importante forma literária.
Com o advento do realismo e do naturalismo, enquanto perspectivas de pensamento,
ideologia e forma artística, o romance ganhou impulso por meio de autores como os franceses
Honoré de Balzac, Gustave Flaubert, Sthendal e Émile Zola; os russos Alejksandr Pushkin, Ivan
Turgueniev, o extraordinário Fyodor Dostoiévski e Leon Tolstoi. Entre os ingleses, Jane Austen,
sir Walter Scott (escocês de nascimento), William Makepeace, Thackeray, o já citado Charles
Dickens, George Eliot e Thomas Hardy. Nos Estados Unidos, James Fenimore Cooper, Nathaniel
Hawthorne, Herman Melville, Mark Twain e Henry James. Em Portugal, Eça de Queirós e Alexandre
Herculano. No Brasil, Machado de Assis domina todo o século, secundado por José de Alencar e
Aluísio Azevedo.
As inovações do século XX como o monólogo interior1 ou fluxo da consciência
(ou melhor, do inconsciente) e o estilo indireto livre2,além da liberação temática para tratar do
sexo e da opressão social, contribuíram para impressionantes avanço e atualização do roman-
ce ocidental. Entre os mais conhecidos e respeitados escritores desse séculos estão os nomes de

1 O monólogo interior, também denominado fluxo da consciência (o stream of consciousness da teoria de língua
inglesa) é a representação escrita dos pensamentos interiores de um personagem, suas impressões e memórias como
se fossem transcritos diretamente no momento e na forma em que ocorrem. Há, contudo, uma certa polêmica em
relação ao nome a ser empregado: uma linha da crítica considera o fluxo da consciência o nome genérico que incluiria
o monólogo interior como a forma concreta de sua realização. Outros teóricos invertem a relação: o monólogo interior
abrange o fluxo da consciência, entendido como uma técnica especial de representação fora da lógica dos pensamentos,
de sua sintaxe e pontuação (ou ausência de pontuação).
2 “O diálogo ou discurso indireto livre constitui espécime híbrido em que se fundem a terceira pessoa, usada pelo
ficcionista para narrar a história, e a primeira pessoa, com que a personagem exprime seus pensamentos de maneira
autônoma” (MOISÉS, 1997, p. 144).
A estrutura da narrativa: r­ omance 127

James Joyce, Marcel Proust, Franz Kafka, Thomas Mann, Virgínia Woolf, William Faulkner e
D. H. Lawrence. Em Portugal, José Saramago, Miguel Torga e António Lobo Antunes. No Brasil,
um quadro amplo de importantes romancistas como Clarice Lispector, Graciliano Ramos, João
Guimarães Rosa, Lúcio Cardoso e Jorge Amado.
Toda seleção passa sempre pelo descarte de nomes e obras: corremos o risco de esquecer de
incluir algumas obras e alguns autores que marcaram a literatura desses países, mas há, sem dúvida,
nesse cânone rápido anteriormente enumerado, nomes de indiscutível qualidade literária que figu-
ram em qualquer seleção de romancistas do século passado. A dificuldade para selecionar e apontar
os mais marcantes só vem comprovar a afirmação de que o romance se desenvolve extraordinaria-
mente como gênero a partir do século XIX, em especial no século XX.

9.2 Ficção e realidade


Platão é o primeiro a estabelecer uma relação entre a produção literária (no caso, a poesia) e
a realidade. A base de seu Mito da Caverna é o conceito de que os humanos não têm acesso direto
à realidade, pois são dominados pela agnoia, ignorância.
Platão viu a maioria da humanidade condenada a uma infeliz condição.
Imaginou (no Livro VII de A República, um diálogo escrito entre 380-370 a.C.)
todos presos desde a infância no fundo de uma caverna, imobilizados, obriga-
dos pelas correntes que os atavam a olharem sempre a parede em frente. O que
veriam então? Supondo a seguir que existissem algumas pessoas, uns prisionei-
ros, carregando para lá para cá, sobre suas cabeças, estatuetas de homens, de
animais, vasos, bacias e outros vasilhames, por detrás do muro onde os demais
estavam encadeados, havendo ainda uma escassa iluminação vindo do fundo do
subterrâneo, disse que os habitantes daquele triste lugar só poderiam enxergar o
bruxuleio das sombras daqueles objetos, surgindo e se desfazendo diante deles.
Era assim que viviam os homens, concluiu ele. Acreditavam que as imagens
fantasmagóricas que apareciam aos seus olhos (que Platão chama de ídolos)
eram verdadeiras, tomando o espectro pela realidade. A sua existência era pois
inteiramente dominada pela ignorância (agnoia). (SCHILLING, 2007)

Mais do que os demais humanos, presos no fundo da caverna, o poeta é responsável por
criar a sombra da sombra; o que o torna indigno de participar da República imaginada por Platão.
Aristóteles, discípulo de Platão, transforma a imitação do real não em condenação, mas em arte:
ele estabelece, no livro Poética, que a natureza da arte dramática e da epopeia é a imitação.
A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. [...] Pela
imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam
prazer. A prova é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que, ao
conseguirmos olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas ima-
gens mais exatas; é o caso dos mais repugnantes animais ferozes e dos cadáveres.
[...] Sentem prazer em olhar essas imagens, cuja vista os instrui e os induz a
discorrer sobre cada uma e a discernir aí fulano ou sicrano. Se acontece alguém
não ter visto ainda o original, não é a imitação que produz o prazer, mas a per-
feita execução, ou a cor ou outra causa do mesmo gênero. Como nos é natural
a tendência à imitação, bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois é evi-
dente que os metros são parte do ritmo), na origem os homens mais aptos por
natureza para estes exercícios aos poucos foram dando origem à poesia por suas
128 Teoria da literatura II

improvisações. O gênero poético separou-se em diversas espécies, consoante o


caráter moral de cada uma. Os espíritos mais propensos à gravidade reprodu-
ziram belas ações e seus autores, os espíritos de menor valor voltaram-se para
as pessoas ordinárias a fim de as censurar, do mesmo modo que os primeiros
compunham hinos em louvor de seus heróis. (ARISTÓTELES, 1964, p. 266)

Fica visível nessa citação o quanto a imitação do real é encarada como natural e origem da
obra poético-literária. Também a divisão entre a imitação de heróis ou de pessoas ordinárias, que irá
produzir a divisão tragédia-comédia, autoriza o entendimento de que imitar o real não se restringe
a idealizá-lo. Também estabelece a finalidade dessa criação literária: a exaltação ou a censura.
Ao longo dos séculos, a literatura foi entendida, em períodos que se revezavam, ora
como alegoria, abstração, simbolismo, idealização e alienação, em uma perspectiva platônica;
ora como tendo a função de retrato, reprodução do real, compromisso com a denúncia de con-
flitos e problemas vividos pelos homens e pela sociedade, em uma perspectiva de utilidade e de
pragmatismo do discurso literário. O romance, por sua popularidade e aceitação, concentrou
essa disputa teórica nos vários períodos estéticos. Assim, o Realismo do século XIX incorporou
a ideia de que o objetivo da reprodução da realidade social e humana era a denúncia e a modi-
ficação de comportamentos e crenças. Já a literatura simbolista e a literatura fantástica parecem
ignorar a realidade, concentrando suas intenções em idealizações, em sombras, em alterações
da realidade. No entanto, o que vai qualificar a literatura é também a técnica literária, que diz
respeito ao tratamento formal do discurso. Aguiar e Silva (1976) esclarece qual é o modo de en-
tender essa relação entre realidade e literatura:
Esse sistema linguístico, com os seus significados denotativos e conotativos,
com a sua dimensão referencial e sociocultural, é indissociável de uma determi-
nada historicidade e de um determinado universo ideológico – lembremo-nos
de que “um certo modo de usar a linguagem se identifica com um certo modo
de pensar a sociedade” – e, no texto literário, tanto os sinais como os símbolos,
dependentes dos vários códigos que confluem na estruturação do idiolecto
textual, nunca deixam de reenviar, dentro do seu específico estatuto semântico,
a essa historicidade e a esse universo ideológico – em suma, a uma certa ma-
neira de entender e valorar a vida e a morte. [...] Tanto na literatura fantástica
[...] como na literatura dita “realista” existe sempre uma correlação semântica
com o mundo real, matriz primigênia e mediata da obra literária. A lingua-
gem literária, todavia, não referencia diretamente esse mundo: ela institui uma
objetualidade peculiar, um heterocosmo com estrutura e funções específicas,
onde o ser se funde com o não ser, o existente com o inexistente, o possível com
o impossível, e é por meio deste heterocosmo, deste como se, que se constitui e
manifesta essa correlação semântica. (AGUIAR E SILVA,1976, p. 45-46).

Como se pode observar, a perspectiva pela qual se deve encarar o discurso literário (e por
extensão o romance, uma de suas formas representativas) é a da linguagem, capaz de reconstruir
em uma objetualidade peculiar, isto é, em um texto peculiar, em uma representação especial e pró-
pria, todas as questões e aspectos da realidade social e individual. Mesmo a literatura considerada
fantástica trata de aspectos da realidade. Surge aqui uma diferença importante na concepção de
literatura e de romance: a de que imitar é diferente de narrar, conceito que Platão e Aristóteles
também estabeleceram ao tratarem dos modos de imitar. Atualmente, a teoria distingue o que seja
mostrar (showing) e contar (telling).
A estrutura da narrativa: r­ omance 129

Essa posição teórica tem a ver com a posição do narrador diante da realidade. No primeiro
caso, a realidade será apresentada sem intermediação do narrador (exclusivamente por meio das
personagens e de suas falas). No segundo caso, o narrador é o responsável pela apresentação da
narrativa ao leitor. Em qualquer um desses modos de apresentar a realidade, o que permanece e
merece importância é o relato, isto é, o texto que nasce do objetivo de tratar da realidade, mas o
processo de contar ou de mostrar insere-se sempre no conceito de ficção.
Ficção é um termo genérico que identifica histórias inventadas, aplicado habitualmente para
romances, contos, novelas, fábulas e outras narrativas em prosa. O adjetivo fictício, formado a par-
tir de ficção, pode ter seu sentido aproximado de imaginativo ou inventivo.
Portanto, o romance mantém um vínculo indissolúvel com a realidade, embora manifeste
essa realidade sob formas escritas e inventivas, em um cuidadoso trabalho de organização do texto
e de seus componentes narrativos. Também é possível verificar como ao longo da história do ro-
mance essa relação foi se configurando em formas narrativas com características diferentes.

9.3 Tipologia do romance


Apresentaremos a seguir algumas formas ou subgêneros com que o romance se mostrou
e se mostra aos leitores. Será possível verificar como algumas delas se mantêm ao longo do tem-
po, como outras se desdobram em formas alternativas e, por fim, como outras desapareceram.
Também é preciso considerar que um mesmo autor pode escrever romances que cabem em dife-
rentes classificações. O objetivo dessa classificação não é enquadrar os romances e torná-los imper-
meáveis a outras diferentes propostas de classificação: trata-se de, pela constatação de repetições e
semelhanças, esclarecer um pouco mais as qualidades desse gênero tão multiforme e tão complexo
como se tornou o romance na atualidade.
Vária pode ser a classificação dos romances, de acordo com o prisma adotado
pelo crítico e com o aspecto da obra posto em relevo. Assim, 1) romance de
tempo histórico ou cronológico, e romance de tempo psicológico ou introspectivo,
conforme explore uma ou outra das dimensões temporais; 2) romance linear ou
progressivo, ou de entretenimento, e vertical ou analítico; 3) romance histórico,
picaresco, de terror (gótico), de formação (bildungroman) etc. A série pode pros-
seguir até chegar a minudências tão menos fecundas quanto mais especiosas.
Para abreviar a questão, talvez fosse mais pertinente acolher a divisão proposta
por Edwin Muir (The Structure of the Novel, 1929): 1) romance de ação, quando
a intriga ressalta mais do que os demais componentes da obra, como de hábito
na ficção romântica; 2) romance de personagem, quando a ênfase é posta nos
protagonistas e, por seu intermédio, na comunidade social, como, por exemplo,
o romance realista e naturalista; 3) romance de drama, quando a personagem e
a ação se fundem num corpo só, de tal forma “que temos dificuldade em achar
termos para descrevê-la sem dar aparência de exagerar”, como, por exemplo,
D. Casmurro. (MOISÉS, 1997, p. 456, grifos nossos)

Tendo em vista essa diversidade e admitindo que a classificação que propomos pode ser con-
testada em alguns pontos, vamos, mesmo assim, propor uma possível distinção entre as diferentes
expressões do gênero romanesco.
130 Teoria da literatura II

9.3.1 Romance de formação (bildungroman)


O conceito desse subgênero de narrativa vem da Alemanha (bildung, “formação” e roman,
“romance”). Relevantes são as suas características e a sua permanência ao longo da história.
Vítor Aguiar e Silva (1976, p. 310) descreve a essência desse tipo de romance
que narra e analisa o desenvolvimento espiritual, o desabrochamento espiritual,
a aprendizagem humana e social de um herói. Este é um adolescente ou um jo-
vem adulto que, confrontando-se com seu meio, vai aprendendo a conhecer-se a
si mesmo e aos outros, vai gradualmente penetrando nos segredos e problemas
da existência, haurindo nas suas experiências vitais a conformação do seu espí-
rito e do seu caráter.

O primeiro desses textos é o romance Agathon (1766), de Wieland, e o exemplo mais com-
pleto é Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister (1795-1796), de Goethe.
Incluem-se nessa categoria David Copperfield (1849-1850), de Dickens; Retrato de um
Artista quando Jovem, (1916), de James Joyce; O Tambor (1959), de Günther Grass. No Brasil,
O Ateneu (1888), de Raul Pompéia, Amar, Verbo Intransitivo (1927), de Mário de Andrade, e
Menino de Engenho (1933), de José Lins do Rego.

9.3.2 Romance de tese ou romance social


Esse subgênero tem a ver com um texto com finalidade utilitária, de vez que se compromete
em convencer o leitor a respeito das ideias expressas. Segundo Massaud Moisés (1997, p. 460),
trata-se de um
romance em que, na discussão de questões sociais, políticas ou religiosas, se
defende uma tese oriunda das Ciências, da Filosofia ou da Teologia. Para bem
situar esse romance, é forçoso entender que o vocábulo tese pode conter pelo
menos duas conotações: uma, de caráter amplo, outra restrito. No primeiro
caso alude à ideia segundo a qual toda obra de arte guarda uma tese implícita,
ou seja, uma pessoal e subjetiva visão de mundo. [...] o sentido restrito se aplica
tão só à prosa de ficção e, por vezes, ao teatro: o romance de tese consistiria
numa narrativa comportando uma doutrina, geralmente explícita, emprestada
de uma forma de conhecimento não estético, que o escritor encampa e forceja
por divulgar ou corporificar através de uma adequada fabulação.

Entre os escritores que se dedicaram explicitamente a esse tipo de romance contam-se Victor
Hugo, com Os Miseráveis (1862), por exemplo, e Émile Zola, com Germinal. No Brasil, Aluísio
Azevedo, com O Cortiço (1900) e Casa de Pensão (1884), é o representante desse tipo de romance.

9.3.3 Romance gótico


É uma narrativa de terror e suspense, muitas vezes com a ação localizada no interior de um
castelo ou monastério. É um tipo de texto criado por Horace Walpole em O Castelo de Otranto
(1764) e depois explorado por vários romancistas ingleses, entre os quais Ann Radcliffe, cujos
Mistérios de Udolpho (1794) fez muito sucesso. Nessa literatura, o aparecimento de monstros e
fantasmas é admissível. Teve aceitação muito grande no Romantismo europeu. A partir de então,
o ambiente grotesco e de ambientação claustrofóbica também passou a denominar-se gótico. Por isso,
a essa categoria pertencem Frankenstein (1818), de Mary Shelley, e Drácula (1897), de Bram Stocker.
A estrutura da narrativa: r­ omance 131

E ela tem seguidores em Edgar Allan Poe, William Faulkner e, atualmente, Stephen King. O cinema
tem explorado muito esse tipo de narrativa, haja vista que a constituição desse romance atrai dema-
siadamente o leitor, usando reviravoltas, muita ação e elementos fantasmagóricos.

9.3.4 Romance histórico


É um romance em que a ação se passa durante um específico período histórico, embora
o narrador faça seu relato décadas ou séculos depois. É uma narrativa que exige intensa pesqui-
sa, pois reconstitui a mentalidade, os costumes e, por vezes, até a língua do período retratado.
Apresenta uma mistura de personagens reais e inventados, mas mantém um mínimo de fideli-
dade aos fatos históricos a que se refere, embora se ligue muito mais às convenções do romance
do que à disciplina da história. O protagonista pode ser tanto uma figura histórica quanto um
personagem inventado.
Entre os primeiros cultores desse tipo de romance estão Walter Scott, com extensa obra
romanesca iniciada com Waverley (1814), e James Fenimore Cooper, com Leatherstocking Tales
(1823-1841). Outros nomes e obras integram os clássicos, como Victor Hugo com Nossa Senhora
de Paris (1831), Alexandre Dumas com Os Três Mosqueteiros (1844), e Leão Tolstói com Guerra
e Paz (1863-1869). No século XX, deu-se o sucesso extraordinário de ... E o Vento Levou (1936),
de Margaret Mitchell. Ainda pode ser citada a obra Beloved (1987), de Toni Morrison, entre muitos
outros. No Brasil, temos José de Alencar com A Guerra dos Mascates (1873), Ana Miranda com
Boca do Inferno (1989) e Desmundo (1996), e Luiz Antonio de Assis Brasil com Breviário das Terras
do Brasil (1997).

9.3.5 Romance psicológico


Os avanços da ciência que estuda a mente humana revolucionaram o modo de compo-
sição de personagens e o tratamento do tempo ficcional. Em 1889, o filósofo Henri Bergson,
no Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência, estimulou os escritores a criarem um novo tipo
de romance:
Se agora algum romancista ousado, despedaçando a teia habilmente tecida do
nosso eu convencional, nos mostra sob essa lógica aparente um absurdo fun-
damental, sob esta justaposição de estados simples uma penetração infinita
de mil impressões diversas que já deixaram de existir no momento em que as
designamos, louvamo-lo por nos ter conhe­cido melhor do que nós nos conhe-
cemos a nós próprios [...] ele [o romancista] convidou-nos à reflexão, pondo
na expressão exterior alguma coisa dessa contradição, dessa penetração mútua,
que constitui a própria essência dos elementos expressos. Encorajados por ele,
afastamos por um instante o véu que tínhamos interposto entre a nossa cons-
ciência e nós. Voltou a pôr-nos em presença de nós mesmos. (BERGSON apud
AGUIAR E SILVA, 1976, p. 314)

Estava, portanto, aberta a porta para a passagem do romance psicológico, que vai tomar como
parâmetro “a exploração do labiríntico espaço interior da alma humana” (AGUIAR E SILVA, 1976,
p. 314). Entre os nomes mais relevantes irão aparecer James Joyce, Virgínia Woolf, Marcel Proust,
Franz Kafka, William Faulkner, Hermann Broch. No Brasil, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector e a
obra extraordinária e precoce da segunda fase de Machado de Assis.
132 Teoria da literatura II

Jorge Luis Borges (apud RODRIGUES, 1988, p. 15) tem desse tipo de romance uma visão
crítica bastante pertinente:
O romance típico, “psicológico”, propende a ser informe. Os russos e os dis-
cípulos dos russos demonstraram até a saciedade que ninguém é impossível:
suicidas por felicidade, assassinos por benevolência, pessoas que se adoram
ao ponto de separarem-se para sempre, delatores por fervor ou por humildade
[...] Essa liberdade plena acaba equivalendo à plena desordem. Por outro lado,
o romance “psicológico” quer ser também romance “realista”: prefere que es-
queçamos seu caráter de artifício verbal e faz de toda vã precisão (ou de toda
lânguida vagueza) um novo toque verossímil.

A diversidade de personagens e situações está relacionada diretamente ao realismo, isto é,


à intenção do romancista de fazer com que seu relato se aproxime da vida empírica, conferin-
do à narrativa credibilidade, mesmo que as situações, conforme Borges descreveu, pareçam a
princípio inverossímeis.

9.3.6 Romance experimental


Nesse subgênero, podem ser inclusos obras e autores que, intencionalmente, propõem-se a
rever normas anteriores e os modos de escrever convencionais. Essa atitude de rebeldia localiza-se
historicamente no século XX, em atendimento às ideias divulgadas pelas vanguardas europeias.
Entre essas mudanças, podem ser apontadas as seguintes:
o enredo do romance moderno torna-se muitas vezes caótico e confuso, pois o
romancista quer exprimir com autenticidade a vida e o destino humano, e estes
aparecem como o reino do absurdo, do incongruente e do fragmentário. [...]
a recusa da cronologia linear e a introdução no romance de múltiplos planos
temporais que se interpenetram e se confundem, constituem uma fundamental
linha de rumo do romance coetâneo [...] a confusão da cronologia e a mul-
tiplicidade dos planos temporais estão intimamente relacionadas com o uso
do monólogo interior e com o fato de o romance moderno ser frequentemen-
te construído com base numa memória que evoca e reconstitui o acontecido.
(AGUIAR E SILVA, 1976, p. 319)

Nessa linha de ruptura podem ser inclusos James Joyce, Jorge Luis Borges, William Faulkner,
o movimento francês do nouveau roman (Alain Robbe-Grillet, Nathalie Sarraute, Michel Butor e
outros). No Brasil, temos Mário de Andrade com Macunaíma (1928), João Guimarães Rosa com
Grande Sertão: Veredas (1956), Valêncio Xavier com O Mez da Grippe (1971).

9.3.7 Romance sentimental


Esse subgênero data do final do século XVIII e está diretamente relacionado com o surgi-
mento do Romantismo como uma tendência artístico-literária. Assumindo os valores da burguesia
ascendente, o romance sentimental se apoiou em situações convencionais, personagens familiares
e estilo retórico, com acentuada ênfase no sofrimento. O advento desse subgênero provocou gran-
de entusiasmo nos leitores, favorecendo processos de identificação e catarse. É muito conhecido
o episódio do acréscimo de suicídios reais entre os leitores de Os Sofrimentos do Jovem Werther
A estrutura da narrativa: r­ omance 133

(1774), de Goethe. Também Jean-Jacques Rousseau arrebanhou leitores fiéis e seguidores das ideias
de A Nova Heloísa (1761). Outro texto muito famoso desse subgênero é Paulo e Virgínia (1789),
de Bernardin de Saint-Pierre.
Tão popular, o romance sentimental é um dos responsáveis por uma associação feita por lei-
tores com conhecimento precário: eles acreditam que romance é exclusivamente o de sentimentos,
lágrimas e finais felizes ou trágicos.
No Brasil, temos os romances urbanos e os perfis de mulher de José de Alencar, muito lidos
no século XIX. Também A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo e A Escrava Isaura
(1875), de Bernardo Guimarães.

9.3.8 Romance cientificista ou de ficção científica


São romances que exploram as condições da existência humana a partir da investigação ou
projeção de condições de vida inteligente ou não, que podem trazer consequências possíveis ou im-
prováveis para os seres humanos. As descobertas científicas fornecem o solo sobre o qual se assen-
tam as narrativas. Atualmente, narrativas sobre consequências da guerra nuclear ou de desastres
ambientais formam o repertório de situações para essas obras narrativas. O cinema e a televisão
muito têm explorado esse filão narrativo e com sucesso. É uma forma narrativa que se desenvolveu
enormemente com o crescimento e a popularização das ciências.
Mary Shelley, com Frankenstein (1818), é considerada a pioneira da ficção científica. Seu
romance apresenta um protagonista que, obcecado, procura se igualar a Deus criando um ser hu-
mano em laboratório. A seguir, um dos escritores mais conhecidos e populares é o francês Jules
Verne, também chamado Júlio Verne, com Viagem ao Centro da Terra (1864) e A Volta ao Mundo
em 80 Dias (1873), entre outros, antecipando muitas das descobertas e criações tecnológicas da
humanidade. A lista de autores é extensa: H. G. Wells, Ray Bradbury, Arthur Clarke, Isaac Asimov,
Robert Heinlein, Thomas Pinchon, Kurt Vonnegut, Ítalo Calvino e Doris Lessing.

9.3.9 Romance de aventuras


Um herói ou uma heroína capaz de superar com ousadia e valentia os mais difíceis obstá-
culos, viagens a cenários exóticos, episódios excitantes e de muita tensão, suspense, perigos e de-
safios; essa é a receita desse subgênero. O seu protótipo está na Antiguidade clássica: é a Odisseia,
de Homero, narrativa sobre as peripécias de retorno ao lar de Ulisses, herói de Troia que viaja por
longos dez anos, enfrentando muitas dificuldades e obstáculos, até chegar a seu destino. Robert
Louis Stevenson em A Ilha do Tesouro (1813) também exemplifica bem esse subgênero narrativo.
Outros escritores que se tornaram conhecidos por escreverem romances de aventuras foram
Alexandre Dumas, Rafael Sabatini e James Fenimore Cooper. Também aqui o cinema veio buscar
muitas das narrativas que constituíram o roteiro de produções de sucesso na época em que foram
lançados. O Último dos Moicanos, de J. F. Cooper; e Os Três Mosqueteiros, de Dumas, exemplificam
essa relação entre cinema e literatura.
134 Teoria da literatura II

9.3.10 Romance policial


Há duas linhas de entendimento da origem do romance policial.
A primeira afirma que o desenvolvimento da sociedade, as leis, a polícia e o desenvolvimen-
to dos procedimentos e da tecnologia de investigação seriam responsáveis pela crença no poder
policial para descobrir criminosos, nas leis para punir e na comprovação de uma sociedade que
gera cada vez mais intensos desejos de poder e ambição que levam ao crime.
A segunda linha é metafísica, entendendo que “somos seres empenhados em extrair,
de qualquer jeito, o inteligível do sensível. Enquanto não compreendemos, sofremos. Mas, desde que
compreendemos, experimentamos uma alegria intelectual incomparável” (NARCEJAC, 1991, p. 10).
Pode-se entender aqui como romance policial apenas aquele que apresenta uma tripla
configuração: a vítima, o criminoso e o detetive (que pode ser um policial). Mas há também
a possibilidade de entender esse subgênero como um romance de investigação. Nesse caso,
quem busca descobrir o criminoso pode não ser um detetive, ou policial, ou mesmo um homem
(Agatha Christie criou Miss Marple, uma inteligente velhinha que desvenda crimes sem sair de
sua pequena cidade, pois todos os tipos e situações humanos nela estão representados).
O texto do romance policial tem um formato estereotipado. François Fosca, em Histoire et
Technique du Roman Policier (1937), assim apresenta os seus requisitos indispensáveis:
• O caso que constitui o assunto é um mistério aparentemente inexplicável.
• Uma personagem (ou mais) – simultânea ou sucessivamente – é considerada, sem razão,
culpada, porque índices superficiais parecem designá-la.
• Uma minuciosa observação dos fatos, materiais e psicológicos, que segue a discussão dos
testemunhos, e acima de tudo um rigoroso método de raciocínio triunfam sobre as teo-
rias apressadas. O analista nunca adivinha. Ele observa e raciocina.
• A solução, que concorda perfeitamente com os fatos, é totalmente imprevista.
• Quanto mais extraordinário parece um caso, tanto mais fácil é resolvê-lo. (FOSCA apud
NARCEJAC, 1991, p. 22-23)
Alguns autores apontam a tragédia grega Édipo Rei, de Sófocles, como o primeiro exemplo de
um texto de investigação, mas as principais características desse subgênero foram estabelecidas pela
primeira vez por Edgar Allan Poe, em Os Crimes da Rua Morgue, A Carta Roubada e em O Mistério
de Marie Roget, de 1841. Seguem-se a ele Arthur Conan Doyle (criador de Sherlock Holmes),
Agatha Christie, Dashiel Hammet, Raymond Chandler, George Simenon, Patrícia Highsmith.
A extraordinária popularidade do subgênero abrange hoje incontáveis escritores, dentre os quais
se destaca Denis Lehane, autor de Entre Meninos e Lobos. No Brasil, temos entre os cultores desse
tipo de literatura Rubem Fonseca, Patrícia Melo e Luiz Alfredo Garcia-Roza.

9.3.11 Folhetim
Ao surgir, em 1790, recebeu o nome francês de feuilleton e era uma crítica teatral publicada
em rodapé de jornal. Nasceu o romance de folhetim nas páginas do jornal por volta dos anos 1840,
na França. Não mais uma crítica de teatro, mas uma obra ficcional, era uma publicação diária,
A estrutura da narrativa: r­ omance 135

em série, sempre no rodapé da primeira página do jornal. O enredo era enovelado e em muitos
capítulos, para ajudar a vender o periódico. De fato, ganharam a vida com a venda dos folhetins
Balzac, George Sand, Alexandre Dumas pai. O mais popular foi Eugène Sue com o romance Os
Mistérios de Paris (1842-1843).
Esse tipo de narrativa é assim justificado em seu apelo de popularização:
Gravitando em torno das classes humildes ou marginais, o que atendia às expec-
tativas românticas no sentido da popularização do produto de arte, o romance
em folhetim se caracterizava pelo desfiar quilométrico de episódios emaranhada-
mente convencionais e por um sentimentalismo piegas. (MOISÉS, 1997, p. 232)

Em Portugal, escreveram em folhetim Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco. No Brasil,


Manuel Antônio de Almeida, José de Alencar, Machado de Assis, Lima Barreto, Luiz Antonio de
Assis Brasil e muitos outros.
A estrutura em capítulos terminados em suspense, a ação com vários núcleos e seus confli-
tos, a predominância do tom sentimental na abordagem dos personagens e da ação fazem com que
os folhetins estejam na origem das atuais telenovelas brasileiras.

9.3.12 Romance de realismo mágico


Para escritores e críticos literários, a verossimilhança é uma convenção artística articulada
com o código estético da época. O século XVIII, profundamente ligado à racionalidade e à ciência,
rejeitava o fantástico e promovia a laicização da cultura e a afirmação do empirismo e do pensa-
mento antimetafísico. No entanto, não impediu que, em corrente subterrânea, corressem as águas
do fantástico. Prova disso é o romance O Diabo Amoroso (1772), de Jacques Cazotte, repleto de
metamorfoses e enganos em convivência aparentemente realista com o fantástico: o diabo aparece
travestido em Biondetta, uma bela mulher por quem o protagonista se deixa seduzir. O mais famo-
so pacto com o diabo está na história de Fausto e de suas versões, por vários autores: Marlowe em
1588, Goethe em 1773, Thomas Mann em 1947 e Guimarães Rosa em 1956.
Segundo Selma Rodrigues (1988, p. 48),
o fantástico, como todo relato de ação, tende a um fim. O enunciado fantás-
tico, especificamente, apresenta uma zona de interrupção, um escamoteio de
dados que construiriam a sentido total da ação [...] apresentando em mais alto
grau que qualquer outro tipo de narrativa, certos vazios, certas indeterminações.
(RODRIGUES, 1988, p. 48)

É nesse ocultar ou indeterminar que o fantástico cria uma ambiência de suspensão de expli-
cações e de racionalismos. O texto não dá explicações aos acontecimentos estranhos, deixando ao
leitor toda a responsabilidade de preencher, ou não, os vazios deixados pelo relato.
Integram esse subgênero os escritores sul-americanos que, no século XX, criaram obras
de grande impacto, como Cem Anos de Solidão (1968), de Gabriel García Márquez. Consideram-
se também as obras extraordinárias de Jorge Luis Borges e Julio Cortázar, e mais Carlos Fuentes,
Miguel Angel Asturias, Alejo Carpentier, Adolfo Bioy Casares, Juan Carlos Onetti, Juan Rulfo, Mario
Vargas Llosa, Guillermo Cabrera Infante, Severo Sarduy, Manuel Puig e o brasileiro Murilo Rubião.
136 Teoria da literatura II

9.3.13 Roman à clef


O roman à clef ou romance com chave é uma construção caracterizada pelas personagens
que, sob nome fictício, são identificadas pelo leitor como pessoas reais, devidamente ocultadas
pelo autor sob nomes que são anagramas ou que lembram, pela sonoridade, os nomes reais origi-
nais. O romance O Ateneu, de Raul Pompéia, tem na personagem do pedagogo doutor Aristarco
Argolo de Ramos a representação de Abílio José Borges, o barão de Macaúbas, uma figura histórica
do Brasil do Segundo Império.

9.3.14 Roman-fleuve
Como caracterização, pode-se dizer que a expressão roman-fleuve ou romance-rio “desig-
na as obras ficcionais que se organizam em ciclos contínuos, à semelhança de um estuário fluvial,
caracterizadas pelo grande número de personagens e de ações que se sucedem ou se imbricam”
(MOISÉS, 1997, p. 461). Como exemplo mais marcante, temos a obra Em Busca do Tempo Perdido
(1913-1927), de Marcel Proust. Também encontramos esse modo contínuo de composição em
Doris Lessing (Children of Violence, cinco romances, 1952-1969), Anthony Powell (A Dance to
the Music of Time, 12 romances, 1951-1975). No Brasil, os melhores exemplos são a trilogia O
Tempo e o Vento (1949-1961), de Erico Verissimo, e Tragédia Burguesa, de Octavio de Faria,
com 15 volumes.

9.3.15 Romance epistolar


É um romance escrito em forma de cartas seriadas, trocadas entre as personagens da nar-
rativa. Combina uma linguagem simples e direta com a oportunidade de explorar as emoções das
personagens. Sartre (1989, p. 122), ao avaliar a técnica do romance por cartas, afirma:
A carta é o relato subjetivo de um evento; remete àquele que a escreveu, que se
torna ao mesmo tempo ator e subjetividade testemunha. Quanto ao evento em
si, ainda que recente, já vem repensado e explicado: a carta sempre supõe uma
defasagem entre o fato (que pertence a um passado próximo) e o seu relato, feito
ulteriormente e num momento de lazer.

Entre os escritores que compuseram textos em formato epistolar, temos Samuel Richardson,
em Pâmela (1740-1741) e Clarissa (1747-1748). Também Jean-Jacques Rousseau escreveu um
romance epistolar, A Nova Heloísa (1761). Uma das mais conhecidas obras é Ligações Perigosas
(1782), de Chordelos de Laclos. Na atualidade, John Barth em Letters (1979) e Alice Walker em
A Cor Púrpura (1982). Trata-se de uma forma rara no romance brasileiro, mas podemos ter em
Reflexos do Baile (1976), de Antônio Callado, um bom exemplo.

9.3.16 Romance picaresco


Trata-se de um texto em que o protagonista de baixa extração social, um desvalido, vence os
obstáculos à custa de espertezas. Muitas vezes, a narrativa acompanha essa personagem por lugares
variados, em uma viagem ou peregrinação. Ao mesmo tempo, são descritos costumes e paisagens que
compõem o quadro espacial e social em que se desenvolve a narrativa. No Brasil, esse tipo de per-
sonagem consegue sobreviver às custas de comportamentos e ações de um malandro. Há, portanto,
A estrutura da narrativa: r­ omance 137

nesse herói, uma característica de transgressão dos códigos aceitos pela sociedade. “Quanto à sátira
social [...] cabe insistir em que o pícaro é a paródia do processo de ascensão dentro de uma sociedade
que rejeita os valores da burguesia e onde o parecer tinha prevalência sobre o ser” (GONZALEZ,
1988, p. 44).
Essas narrativas de esperteza são muito populares e pertencem também à tradição oral,
como os contos de Pedro Malasartes, personagem ibérico que emigrou inclusive para a literatura
folclórica do Brasil.
Entre os autores, podem ser citados: o anônimo criador do primeiro romance picaresco,
Lazarilho de Tormes; Henry Fielding, com Tom Jones (1749); Manuel Antônio de Almeida, com
Memórias de um Sargento de Milícias (1848); e Mário de Andrade, com Macunaíma (1928).
A organização dos diferentes subgêneros apresentada aqui não implica que todas as variá-
veis estejam relacionadas na lista. Acreditamos, no entanto, que os principais foram classificados
e caracterizados.

Ampliando seus conhecimentos

Romance e transformações sociais


(REUTER, 1996, p. 18-21)

As transformações demográficas, econômicas, sociais e técnicas, que modificam o mundo e


a existência, não deixam de ter repercussão no romance. Tomaremos dois exemplos entre
muitos outros.
A urbanização que se acelera nos séculos XIX e XX impõe o tema da cidade. Este vai ser
trabalhado em diferentes níveis no romance. Substitui lugares tradicionais (castelos, cortes,
caminhos...) por um lugar que concentra trajetos espaciais e sociais antes divididos (dos bair-
ros elegantes aos bairros pobres), simboliza de fato a mobilidade social e a aventura individual.
Este lugar também reúne ações antes dispersas: o encontro, os perigos, a segurança... Permite
a descrição de diferentes meios de interpenetração dos grupos sociais. Cria novas metáforas: a
cidade como animal ou como selva... Reativa antigas metáforas: os subterrâneos, os labirintos,
o poder oculto das sociedades secretas nos bastidores da cidade...
Os progressos técnicos se impõem progressivamente nos transportes. Deste ponto de vista, é
toda uma visão do espaço e do tempo que se modifica. O encurtamento dos deslocamentos sig-
nifica uma redução do tempo das viagens (e de certas separações ou fugas) e um aumento do
espaço disponível conhecido. Muda o que é digno de ser narrado: passa-se de crônicas de via-
gens na França ou na Europa para uma integração do universo, até de outros universos, na fic-
ção. Uma volta ao mundo em 80 dias não é mais objeto de apostas insanas. Consequentemente,
o Estrangeiro perde sua estranheza. O tema do Persa, com um olhar espantado sobre o nosso
mundo, apaga-se. O Estrangeiro torna-se íntimo, interior, ou se cristaliza em convenções exó-
ticas na literatura de massa. Os trajetos a pé ou a cavalo são substituídos pelos de trem ou de
avião. A partir de então, as próprias visões modificam-se e aceleram-se, as possibilidades de
encontro multiplicam-se, as decisões são tomadas mais rapidamente, em algumas horas de
Paris a Roma ou em Nova York.
138 Teoria da literatura II

Estas transformações trazem à tona duas observações. Em primeiro lugar, modificaram radi-
calmente o espaço-tempo e sua simbolização no romance: velocidade, diversidade e multipli-
cidade substituíram duração, número limitado e convenções de lugares. Em segundo lugar,
permitiram que se refletisse sobre a imbricação entre permanência e novidade da qual falamos
anteriormente. Permanência de temas por um lado, como, por exemplo, a viagem. Mas, por
outro lado, modificações incessantes, aumento e diversificação dos lugares e meios de locomo-
ção, relativização e confrontação das visões e dos valores, inserção de novas cenas, criação de
metáforas, mudança de sentido de figuras antigas, integração de um léxico técnico ou etno-
gráfico diferente.

Romance e saberes
Uma outra dimensão também é suscetível a influenciar a evolução romanesca: a dos saberes.
Ela exerce, em primeiro lugar, pela configuração geral dos conhecimentos no seio da qual
inscrevem-se a literatura e o romance. Serão precisos séculos para que as ciências e as artes
libertem-se do poder religioso. O século XVII é, desse ponto de vista, um marco com a afir-
mação de um procedimento científico autônomo. Em segundo lugar, será preciso esperar os
séculos XVIII e XIX para que a literatura especifique-se em favor do desmembramento das
Belas Letras que reuniam história, sociologia, e filosofia etc. em formas que nos fazem hesitar
ao tentarmos classificar certos autores (Michelet) e certos textos. Mas feitas estas distinções, o
romance deverá refletir sobre os saberes e as formas que lhe são deixadas.
A segunda metade do século XIX viu afirmar-se uma opção que era a da concorrência e
complementariedade com as ciências sociais e o jornalismo. Voltado para o exterior, para
a representação do mundo, o romance explora um de seus filões mais clássicos e maiores,
fundamenta-se nos conhecimentos e nos testemunhos, e trabalha os códigos realistas.
O final do século XIX e o começo do XX conhecerão um crescimento prodigioso da Psicologia
e depois da Psicanálise. Paralelamente, um outro filão romanesco será reativado: o da aventura
interior, do indivíduo e da expressão. Isto tomará novas formas: as do fluido, do contraditório,
do monólogo interior, da multiplicação das perspectivas...
Mas pode o romance concorrer com ou aplicar saberes, mesmo que novos? Deste modo,
não continua ele a submeter-se ao que lhe é exterior? Esta será a posição de muitos escritores,
de Gide (Les faux monnnayeurs e o Journal des faux monnnayeurs) [ao grupo do jornal de
literatura] Tel quel que centrarão novamente o romance nele mesmo por meio do jogo
de mise-en-abyme [sic]: a escritura torna-se tema do romance. Para citar de outra forma as
célebres palavras de J. Ricardo, ou poderíamos dizer que, ao romance de aventura (da exte-
rioridade do mundo ou da interioridade do indivíduo) sucede a aventura no romance, que
reflete sobre ele mesmo.
Tratam-se, é claro, apenas de pistas muito fragmentárias. A questão dos saberes que geram o
romance ou dos quais o romance nutre-se é de grande importância [...] Está ligada à questão
dos valores. De fato, o desenvolvimento e a multiplicação dos saberes institucionais e cien-
tíficos modificam os valores outrora unívocos, impostos pelos poderes político e religiosos.
Isto permite que o romance combine e oponha em seu seio vários sistemas de valores dife-
rentes, isto é, no século XX, lhe permitirá obscurecer ou suspender todo o sistema avaliativo
em seu seio...
A estrutura da narrativa: r­ omance 139

Atividades
1. Henry James, em A Arte do Romance, afirma que o romance é “a mais independente, mais
elástica e mais prodigiosa de todas” as formas literárias, a ponto de parecer não ter regras.
Você concorda com essa afirmação? Argumente em um texto, apresentando alguns exemplos.

2. Compare os dois textos a seguir e depois explique por que um é histórico e o outro integra
um romance.

Fragmento 1
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das
Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de terra,
estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas – os
quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam
botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo de asno. E quarta-feira
seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primei-
ramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais
baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o
capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz!
(Trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha. Disponível em: <http://objdigital.
bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf>. Acesso em: 3 jul. 2018.)

Fragmento 2
22 de abril
Logo de manhã alguns fura-buxos voaram por sobre as naus e com isso agita-
ram-se todos, por serem estes sinais da proximidade de terra.
Isto era por volta da hora nona e aconteceu que um soldado deu-me um pon-
tapé e mandou-me ir consertar uma vela que tinha-se rasgado. Subi até o cesto
da gávea e então aconteceu algo de que muito me orgulho e demonstra que o
Altíssimo, ao menos uma vez, voltou seus grandes olhos para mim. E foi isso
que avistei ao longe o cume de um monte e depois dele, logo atrás, umas ser-
ras. Com toda a força gritei então: “Terra à vista!”
Olhando para baixo, vi que o convés estava cheio e havia enorme alvoroço, de
modo que os degredados, os marinheiros e os padres abraçavam-se, não se
importando com hierarquia ou odores.
Navegando naquela direção vimos que se tratava de uma ilha, que o capitão
Cabral deu por bem nomear Vera Cruz. Tem ela muito arvoredo e assim nos
alegramos e demos graças a Deus, porque nos mandava frutas e água fresca.
140 Teoria da literatura II

Então, com muito gosto, jogamos o resto dos biscoitos ao mar.


(Trecho do romance Terra Papagalli, de José Roberto Torero e Marcus Aurelius
Pimenta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 37.)

3. Escolha um capítulo de telenovela, descreva-o e aponte nele as características semelhantes


às do romance sentimental. Esteja atento ao modo como a narração atende às expectativas
do telespectador.
10
A estrutura da narrativa: elementos do romance

Os tipos de romance são os mais variados, mas há neles elementos permanentes, que po-
dem ser estudados em separado, embora façam sentido pleno apenas quando vistos em conjunto e
relacionados. Como se apresentam e que valor têm os principais componentes que integram uma
estrutura narrativa do gênero romance?
Mikhail Bakhtin vê no romance uma multiplicidade de “unidades estilísticas heterogêneas”,
que dão a essa forma literária originalidade e identidade, e o autor as enumera:
• A narrativa direta e literária do autor (em todas as suas variedades multiformes).
• A estilização de diversas formas da narrativa tradicional oral.
• Estilizações de diversas formas da narrativa (escrita) semiliterária tradicional (cartas,
diários etc.).
• Diversas formas literárias, mas que estão fora do discurso literário do autor: escritos mo-
rais, filosóficos, científicos, declamação retórica, descrições etnográficas, informações
protocolares etc.
• Os discursos das personagens, estilisticamente individualizados. (BAKHTIN, 1988, p. 74)
A multiplicidade é composta, portanto, pela combinação de vários discursos que interferem
e se combinam no momento de produção do romance – desde as narrativas orais, que permane-
cem na memória e afloram na escrita no momento de criação do romance, até diferentes tipos de
narrativa não literária, que fornecem informações, modos de dizer e estruturas linguísticas para o
romancista. O romance, gênero democrático, gerencia todas essas formas. Como resultado, temos
uma variedade de subgêneros, bem como uma diversificada gama de procedimentos e elementos
que formam o grande gênero. A seguir, vamos tratar de alguns desses elementos.

10.1 O foco narrativo


Na crítica literária atual há uma sobrevalorização do foco narrativo no momento de análise
de um romance, ou conto, ou crônica. E o foco narrativo recebe diferentes denominações: ponto de
vista, foco de narração, visão, ângulo de visão, perspectiva. Qualquer que seja essa denominação,
o importante é conhecer sua função e seu funcionamento. Lígia Leite faz pequenas distinções entre
eles. Para ela, “ângulo de visão é o lugar a partir do qual são enfocados os fatos narrados” (LEITE,
2000, p. 87). A autora dá essa mesma conceituação para visão, mas o ponto de vista ela iguala à
definição de
foco narrativo: problema técnico da ficção que supõe questionar “quem narra?’’,
“como?”, “de que ângulo?’’. Para muitos é sinônimo de ponto de vista, perspec-
tiva, situação narrativa ou mesmo narrador. O termo ficou conhecido a partir
do livro de Cleanth Brooks e R.P. Warren, Understanding Fiction, de 1943, onde
aparece, em inglês como focus of narration. (LEITE, 2000, p. 89)
142 Teoria da literatura II

Qual a importância do estudo desse elemento no estudo do romance? A perspectiva adotada


pelo narrador direciona não apenas o desenrolar da narrativa, mas também indica sob que condi-
ções ela foi escrita. Com base no conhecimento dessas condições, o leitor é conduzido a entender
de determinada maneira o que está sendo contado. Há, portanto, um valor determinante, de ordem
semântica: a compreensão do texto passa pelo filtro do narrador, que é o responsável direto pela
variedade de escritas sobre um mesmo tema, além de conduzir o olhar do leitor para a história,
ou fábula, ou enunciado do texto. O narrador se situa, por conseguinte, dentro do processo de
enunciação, que pode ser definido como “ato pelo qual as frases de um enunciado são atualizadas
por um locutor particular, em circunstâncias temporais e espaciais determinadas” (LEITE, 2000,
p. 88). Conhecer essas circunstâncias temporais e espaciais determinadas ajuda a entender por que
o romance se organiza do modo que se apresenta ao leitor. Entender essa organização capacita o
leitor a descobrir linhas e entrelinhas da criação literária.
De todo modo, uma outra distinção se faz necessária: a diferença entre o autor e o narrador.
O primeiro é uma pessoa física, com biografia e carteira de identidade, um ser socialmente diferen-
ciado, que cria e narra histórias com as mais diferentes finalidades e direcionadas a leitores empí-
ricos, de carne e osso. Já o narrador é o contador da história, existe somente no papel, pode ou não
representar as ideias do escritor. Quando assume uma fala semelhante à do escritor, pode ser con-
siderado um alter ego do autor, isto é, um outro eu. No entanto, para Aguiar e Silva (1976, p. 268),
“o narrador constitui a instância produtora do discurso narrativo, não devendo ser confundido,
na sua natureza e na sua função, com o autor, pois o narrador é uma criatura fictícia como qual-
quer outra personagem”1. Se, por vezes, ideologicamente podem ser confundidos autor e narrador,
sob o ponto de vista discursivo é impossível confundir os dois, que têm funções diferentes no
discurso: o narrador atua no discurso como personagem, enquanto o autor está fora desse discurso.
Segundo o escritor Henry James, o narrador deveria ter uma presença discreta e “por meio
do contar e do mostrar equilibrados possa dar a impressão ao leitor de que a história se conta a
si própria, de preferência, alojando-se na mente de uma personagem que faça o papel de refletor
de suas ideias” (LEITE, 2000, p. 13). Essa presença seria tão discreta que poderia ser considerada
como um “desaparecimento estratégico do narrador, disfarçado numa terceira pessoa que se con-
funde com a primeira” (LEITE, 2000, p. 13).
A narrativa do romance mistura imaginação e realidade, ficção e história. Nessa narrativa,
a memória da personagem e a memória do autor se confundem, podendo chegar à valorização das
pequenas coisas, dos fatos cotidianos. Como pode ser verificado na obra do cronista e jornalista
Carlos Heitor Cony, o escritor e o narrador se confundem:
Já a minha vingança, − se é que a mereço − é que o pai realizou o que se prome-
tia todos os dias: fazer grandes coisas. Mandou-me uma mensagem que eu não
preciso abrir nem ler. Tudo pode ter acabado, menos o pai que continua fazen-
do coisas − grandes coisas − para deslumbrar o filho, surgindo magicamente
entre os túmulos do cemitério com os caramelos, na sacristia da catedral com

1 Para evitar duplicidade de gênero, adotamos como feminina a palavra personagem e fizemos as concordâncias
necessárias ao longo do texto, mesmo nas citações.
A estrutura da narrativa: elementos do romance 143

o sanduíche de presunto, no velório do cardeal com o prato de botequim enro-


lado no guardanapo de quadradinhos vermelhos e brancos, tão banal, tão ele,
tão grande. (CONY, 1996, p. 211)

Em 1921, surgiu uma obra de capital importância para o estudo do narrador, A Técnica da
Ficção (The Craft of the Fiction), de Percy Lubbock. Nela, o autor estabelece que a diferença entre
narrar (telling) e mostrar (showing) reside na intervenção, ou não, do narrador:
completa essa dupla (narrar e mostrar) a oposição cena e sumário (panorama).
Na cena, os acontecimentos são mostrados ao leitor, diretamente, sem a mediação
de um narrador que, ao contrário, no sumário, os conta e resume; condensa-os,
passando por cima de detalhes e, às vezes, sumariando em poucas páginas um
longo tempo da história.
Na verdade, Lubbock distingue a apresentação, que pode ser cênica ou panorâ-
mica, e o tratamento dado, que pode ser dramático ou pictórico, ou uma combi-
nação dos dois, pictórico-dramático.
O tratamento é dramático quando a apresentação se faz pela cena, e é pictórico
quando ele é predominantemente feito pelo sumário. Pictórico-dramático, com-
binação da cena e do sumário, sobretudo quando a “pintura” dos acontecimen-
tos se reflete na mente de uma personagem, através da predominância do estilo
indireto livre.2 (LEITE, 2000, p. 14-15, grifos nossos)

Vamos exemplificar o que seja, em um romance, uma cena. Observe que não há a presença
do narrador, mas é possível distinguir dois interlocutores, as histórias em comum, os sentidos
subentendidos, o jogo entre passado e presente, uma ligação afetiva entre eles.

− Nós queremos tanta coisa, não é mesmo?


− É. Suponho que sim.
− Você me beijou na beira de um lago.
− Dez mil anos atrás.
− Ainda está acontecendo.
− Num certo sentido, está.
− Na realidade. Está acontecendo naquele presente. Isto está acontecendo
neste presente.
− Você está cansado, querido. Precisa descansar.
(CUNNINGHAM, 2001, p. 58)

2 Discurso direto é a reprodução da fala da personagem, em primeira pessoa, introduzida por travessão ou aspas
(− Vamos para casa. ). O discurso indireto se dá quando o narrador conta o que a personagem pensou ou disse, frase
introduzida por um verbo com o sentido de declaração (O marido disse: “Vamos para casa.”). No estilo indireto livre, há
uma fusão dos dois modos de enunciar a fala da personagem, como, por exemplo: “O marido quase intimou a mulher: –
Vamos para casa”.
144 Teoria da literatura II

Agora, um exemplo da presença do narrador na forma panorâmica:

Enquanto ele dava os primeiros passos na Companhia Fluvial do Caribe escre-


via cartas grátis no Portal dos Escrivães, os amigos de Florentino Ariza tinham
a certeza de que o perdiam pouco a pouco, sem retorno. Assim era. Ao voltar da
viagem pelo rio ainda via alguns deles na esperança de atenuar as lembranças
de Fermina Daza, jogava bilhar com eles, foi aos últimos bailes, prestava-se aos
azeres de ser rifado entre as moças, prestava-se a tudo que lhe parecesse bom
para voltar a ser o que tinha sido.
(GARCÍA MÁRQUEZ, 2015, p. 214)

O narrador resume os acontecimentos, não os narra em detalhes, economiza o tempo da


narrativa e acelera o ritmo. Vejamos, agora, um exemplo de representação pictórico-dramática,
com o uso do diálogo indireto livre:

Quando chega à Quadrant (o açougue e a quitanda já suspenderam o toldo)


dobra rumo à estação de trem. Ela irá, acha, até Londres; simplesmente irá até
Londres, como Nelly durante a tarde, embora sua incumbência seja a própria
viagem, a meia-hora no trem, o desembarque em Paddington, a possibilidade
de descer uma rua e mais outra e outra ainda. Que agitação! Que mergulho!
Parece-lhe que pode sobreviver, prosperar, se tiver Londres à sua volta...
(CUNNINGHAM, 2001, p. 135)

É possível verificar como a voz do narrador, que vinha descrevendo os pensamentos da


personagem, é interrompida por duas expressões, marcadas pelos pontos de exclamação, que não
pertencem ao narrador – foram ditas pela personagem, que se mistura com a narração em forma
de fala, de diálogo, mas sem as marcas de, por exemplo, “e ela disse: Que agitação!”
A seguir, veremos ao menos três perspectivas para o foco narrativo:
• A perspectiva restrita, com limitação do horizonte narrativo, é a da primeira pessoa, que
Jean Pouillon denomina visão com. Ele assim a define:
Escolhe-se uma única personagem que constituirá o centro da narrativa, ao qual
se atribui uma atenção maior ou, em todo caso, diferente da que se atribui aos
demais. Descrevemo-lo de dentro; penetramos imediatamente a sua conduta,
como se nós mesmos a manifestássemos (...) Na realidade, [a personagem] é
central não porque seja vista no centro, mas sim porque é sempre a partir dela
que vemos os outros. (POUILLON, 1974, p. 54)

• A perspectiva do narrador onisciente, que tudo sabe, desde os comportamentos exteriores


até os pensamentos das personagens. Jean Pouillon denomina essa perspectiva de visão
por trás ou por detrás:
A estrutura da narrativa: elementos do romance 145

Em lugar de situar-se no interior de uma personagem, o autor [narrador] pode


tentar distanciar-se da mesma, não para vê-la do exterior, para ver os seus gestos
e ouvir simplesmente as suas palavras, mas para considerar de maneira objetiva
e direta a sua vida psíquica. (POUILLON, 1974, p. 62)

• À perspectiva do narrador em terceira pessoa não onisciente, Pouillon denomina visão


de fora:
O exterior das personagens é apresentado de uma maneira a nos ir revelando pro-
gressivamente o seu caráter. O romancista se abstém mesmo de o mostrar explici-
tamente, de o comentar; limita-se a descrever a conduta. Seria esta a visão natural
que teríamos das personagens quando nos colocamos frente a eles, na posição de
um outro; [...] ficamos “por fora” e por assim dizer “diante” do herói, vendo-o agir,
ação a partir da qual tomamos conhecimento do que lê é, conhecimento esse que
permanece evidentemente abstrato e mais ou menos hipotético. (POUILLON,
1974, p. 75-76)

Mais recente, a teoria de Norman Friedman multiplica as situações e as denominações.


Segundo ele, existem as categorias a seguir:
• O autor onisciente intruso ou onisciência do autor-editor, em que o autor pode ocupar
as mais diferentes visões, e pode tecer comentários sobre vários aspectos da narrativa,
sejam eles de ordem moral, de costumes ou de caracteres.
• A onisciência neutra ou narrador onisciente neutro, semelhante à anterior, mas sem
as intromissões.
• O “eu” como testemunha – trata-se de narração em primeira pessoa, em que o narrador é
personagem periférica.
• O“eu” como protagonista – também narração em primeira pessoa, nesta situação o narra-
dor é a personagem principal.
• A onisciência seletiva múltipla ou onisciência multisseletiva – o narrador desaparece e em
seu lugar assumem a voz da enunciação as próprias personagens, várias delas.
• A onisciência seletiva – o ponto de vista em terceira pessoa é sustentado por uma única
personagem fixa, que tudo conhece, tanto o exterior como o interior.
• O modo dramático – com a ausência de ardor, de autor, a enunciação é assumida pelas
personagens, que se apresentam diretamente e são identificadas pelo que dizem ou fazem.
• A câmera, caso-limite da narração, presente em narrativas contemporâneas – há exclusão
total do autor e os fatos são relatados como flashes, takes (tomadas de cena), “como se
apanhados por uma câmera, arbitrária e mecanicamente” (LEITE, 2000, p. 62).
146 Teoria da literatura II

Em sua obra Figures III, Gerard Genette propõe uma outra classificação. Há um primeiro
tipo, o do narrador que está representado dentro daquilo que é narrado – a diegese3. Esse é o nar-
rador homodiegético, que pode se subdividir em extradiegético (o narrador não é uma das persona-
gens nominadas) e intradiegético (o narrador é uma das personagens).
Quando o narrador não está representado no discurso, pode ser confundido com o autor
implícito. Essa ausência do narrador leva à classificação de narrador heterodiegético (AGUIAR E
SILVA, 1976, p. 270-271).
Como podemos inferir, as denominações são mutáveis e se referem a conceitos de literatura
que se alteram ao longo do tempo. E, embora a nomenclatura se altere, podemos observar que as
posições mudam pouco:
• o narrador representado ou não na fábula ou diegese;
• o narrador é uma das personagens do relato;
• o narrador tem visão ampla ou restrita.

10.2 Ação: história e discurso


A distinção entre história e discurso surge na linguística e, em especial, em Ferdinand
Saussure, quando ele entende que há uma oposição entre parole (“fala”) e langue (“língua, sistema
linguístico”). Posteriormente, baseado nessa distinção, Émile Benveniste criou a oposição entre
história e discurso (LEITE, 2000, p. 86).
No romance, a história compreende o plano do conteúdo, o enunciado, aquilo que é possível
resumir em um romance.
Discurso, por sua vez, compreende o plano da forma, a enunciação, o modo como vem con-
tada a história.
Os dois planos são indissolúveis, pois temos acesso ao enunciado somente por meio do
discurso. Isso significa que o estudo do romance precisa levar em conta essa dicotomia que apon-
ta para resultados diferentes. O leitor que se prende à história, mesmo que tenha acesso a ela no
discurso, tem sua atenção condicionada aos fatos e acontecimentos narrados. Já a atenção dada
ao modo como a narrativa, o romance se organiza, permite aprofundar a análise e a compreensão
literária e estética do texto lido.
Dentro do conhecimento da história, ressalta-se a ação narrativa, entendida como o enca-
deamento coerente de acontecimentos, regido pelas leis da sucessividade e da causalidade e dotado
de um sentido unitário, embora passe por situações transformadoras. Não obstante a literatura
contemporânea, em função das alterações havidas na cultura e na ciência, venha experimentando
novas formas narrativas nem lineares e nem causais, essas leis ainda explicam grande parte da pro-
dução romanesca de séculos.

3 Diegese é denominação semelhante a história, fábula, enunciado ou narrado: trata-se do relato, produto da narração
do narrador, o mundo fictício no qual se situam as personagens, situações e acontecimentos que constituem o enuncia-
do narrado no romance.
A estrutura da narrativa: elementos do romance 147

A palavra ação pode ser tomada como sinônimo de enredo, argumento e fábula. “A ação
sempre engloba mais de uma personagem”, segundo Moisés (1997, p. 10), o que faz com que muitas
vezes a compreensão da ação de um romance passe pela soma da ação de todas as personagens que
compõem a sua narrativa.
A esse entendimento da ação narrativa, Aguiar e Silva (1976, p. 289) acrescenta a presença
das descrições, que, embora não sejam fatos, têm “por função representar personagens, objetos e
aspectos vários do espaço geográfico e histórico-sociológico, constituem uma pausa ou uma sín-
cope na sintagmática narrativa”, sempre relacionadas com o foco narrativo, que ajuda a distinguir
seus diferentes modos de realização e funções. Temos assim que a narrativa é feita de momentos
dinâmicos, quando se relatam fatos, e estáticos, quando procede às mais diferentes descrições.
Voltando à reflexão sobre a ação, devemos lembrar que entre suas leis estão as duas unida-
des, originadas na Antiguidade clássica: a unidade de tempo e a unidade de ação.
Aristóteles, o primeiro dos teóricos a doutrinar acerca da matéria, postulava a
unidade da ação, pois “tal como é necessário que nas outras artes miméticas haja
unidade de imitação, dada a unidade de objeto, assim também a fábula, por-
que é imitação de ações, deve mimetizar as ações que sejam unas e completas,
e todos os acontecimentos se devem suceder em conexão tal que, uma vez supri-
mido ou deslocado um deles, também se confunda ou mude a ordem do todo.”
(MOISÉS, 1997, p. 11)

Além dessa visão unitária, podemos verificar que a ação serviu de base para que Alfredo
Bosi classificasse os diferentes tipos de tensão criados pelos fatos narrados nos romances brasilei-
ros a partir de 1930. São quatro diferentes tipos:
1. Romance de tensão mínima. Em que há conflito, mas este configura-se em termos de opo-
sição verbal, sentimental quando muito: as personagens não se destacam visceralmente
da estrutura e da paisagem que as condicionam. Exemplos: as histórias populistas de Jorge
Amado, os romances e crônicas da classe média de Erico Verissimo e Marques Rebelo e
muito do neorregionalismo mais recente.
2. Romances de tensão crítica. O herói opõe-se e resiste agonicamente às pressões da nature-
za e do meio social, formule ou não em ideologias explícitas o seu mal-estar permanente.
Exemplo: as obras maduras de José Lins do Rego e todo Graciliano Ramos.
3. Romances de tensão interiorizada. O herói não se dispõe a enfrentar a antinomia eu/mun-
do pela ação; evade-se, subjetivando o conflito. Exemplos: os romances psicológicos em
suas várias modalidades (memorialismo, intimismo, autoanálise...), de Otávio de Faria,
Lúcio Cardoso, Cornélio Pena, Cyro dos Anjos, Lygia Fagundes Telles, Osman Lins.
4. Romances de tensão transfigurada. O herói procura ultrapassar o conflito que o constitui
existencialmente pela transmutação mítica ou metafísica da realidade. Exemplos: as ex-
periências radicais de Guimarães Rosa e Clarice Lispector. O conflito, assim “resolvido”,
força os limites do gênero romance e toca a poesia e a tragédia. (BOSI, 2000, p. 442)
A ação se organiza em uma unidade temporal: começo, meio e fim. Para melhor descrever
essa sequência, vamos lembrar que Henry James a dividiu e nomeou da seguinte maneira:
148 Teoria da literatura II

• apresentação;
• complicação;
• desenvolvimento;
• clímax; e
• desenlace (MESQUITA, 1986, p. 25).
Para a mesma sequência, os teóricos franceses Greimas e Larivaille propuseram um
esquema abstrato de uma superestrutura, também denominada esquema canônico da narrativa
ou esquema quinário, que se apoia na noção de transformação e é composta por esta sequência
(REUTER, 1996, p. 49):

Estado Inicial → Complicação ou Força Perturbadora → Dinâmica →


Resolução ou Força ­Equilibradora → Estado Final

Há nessa mudança uma alteração realizada entre o estado inicial da narrativa e seu final.
No romance O Nome da Rosa, de Umberto Eco, o primeiro crime ocorrido no mosteiro é o
fato desencadeador, que perturba a tranquilidade da vida das personagens e obriga a uma dinâmica
de fatos até que a resolução dos crimes restaure o estado inicial de equilíbrio, no final do romance.
Entre os formalistas russos, destaca-se Tomachévski, que estudou os motivos que, distri-
buídos intencionalmente ao longo da narrativa, podem se associar ou não, criando vínculos entre
as partes da história, a ela conferindo unidade e coerência. Tomachévski denominou-os motivos
associados e motivos livres (cf. MESQUITA, 1986, p. 27).
Os motivos associados são aqueles que não podem ser retirados da narrativa, sob pena de ela
não manter a relação de causa e efeito entre as partes do romance, a causalidade.
Já os motivos livres podem ser omitidos sem comprometer a história, embora representem
sempre uma alteração significativa em nível de discurso.
Por exemplo, se for retirada da fábula de O Nome da Rosa o motivo do livro de Aristóteles
sobre a comédia, todo o enredo desaba.
Na ação, deve-se considerar que a relação com personagens, com tempo e espaço é estreita
e indissolúvel. Não se entende a ação desvinculada dos demais elementos da história. Se os separa-
mos, é apenas por uma atitude analítica formal. No texto literário, eles são inseparáveis.

10.3 Espaço e tempo: realismo e imaginário


Em um sentido mais primário, o espaço pode ser entendido como os locais em que se passa
a ação romanesca, podendo estar mais próximo do real ou mais estranho e fantasioso. Há, porém,
um entendimento mais amplo e complexo do que seja o espaço. Uma primeira distinção pode ser
estabelecida entre espaço e ambientação:
A estrutura da narrativa: elementos do romance 149

Por ambientação, entenderíamos o conjunto de processos conhecidos ou pos-


síveis, destinados a provocar, na narrativa, a noção de um determinado am-
biente. Para a aferição do espaço, levamos da nossa experiência do mundo;
para ajuizar sobre a ambientação, onde transparecem os recursos expressivos
do autor, impõe-se um certo conhecimento da arte narrativa. (LINS apud
DIMAS, 1985, p. 20)

Essa distinção permite que o leitor transite de uma visão denotativa (o espaço, como sa-
las, paisagens, edifícios, ruas) para uma visão conotativa (a ambientação, que pode ser de beleza,
de alegria, de tristeza, de calor humano). Para Antônio Dimas, o espaço é patente e explícito e a
ambientação é subjacente e implícita (DIMAS, 1985, p. 20). Portanto, o espaço preenche funções
que extrapolam a verossimilhança necessária para o entendimento das ações e situações das per-
sonagens, contribuindo de forma significativa para o entendimento final de um texto. Em O Nome
da Rosa, a biblioteca é o depósito dos livros, suas estantes, andares e forma física, mas é também
o ambiente indispensável para o mistério, a noção de cultura, a sensação de ausência do livro de
Aristóteles, o labirinto da inteligência humana e muitos sentidos mais.
Observemos o exemplo de um espaço narrado que passa do sentido denotativo para o cono-
tativo, isto é, do espaço para a ambientação:

A seus pés estendia-se a praça triangular, não inteiramente mas quase como a
imaginara. As árvores da área ajardinada erguiam-se completamente escuras,
debruadas pelo asfalto do largo caminho marginal já ressequido, e cujo cinza
se destaca delas. No interior da estação, as lâmpadas estavam acesas. Lá se
achava o saguão com os criados de hotel. A. não mais pensava neles. Baixava
o olhar sobre as pessoas que caminhavam a passo lento ao longo das casas.
Ouvia o rangido da areia sob os sapatos daqueles que perambulavam na rua
em forma de “S” através do jardim. Contemplava com prazer os cachorros
levados para um passeio. De vez em quando, ainda se ouvia um passarinho.
Às vezes um cão latia. Ser dado à luz por uma mãe, ser parido corporalmente
por um corpo; ser mesmo corpo; corpo, cujas costelas se dilatam ao ritmo da
respiração; corpo, cujos dedos são capazes de cingir uma balaustrada de ferro,
de abraçar a matéria morta com a força da carne viva; perene alternação entre
o animado e o inanimado, um a amparar o outro em infinita transparência.
(BROCH, 1988, p. 64-65)

É possível observar que a descrição dos elementos do espaço físico (árvores, praça, ruas,
areia) e do espaço humano-social (criados, passantes) e seres animados (pessoas, cães, passarinho)
se combinam para criar uma ambiência que leva a personagem A. a refletir sobre a transparência
do mundo.
É possível perceber que os elementos que compõem o cenário desse jardim procuram
aproximar-se de um cenário real, criando verossimilhança para o entendimento do leitor.
Mas há possibilidade de o romance ter espaços imaginários, como nos romances de ficção cien-
tífica. O efeito de realidade está relacionado muito mais às suas funções na narrativa do que à
150 Teoria da literatura II

realidade empírica. Isto é: nas narrativas, mesmo os espaços mais reconhecíveis como reais, não
estão lá para servir à geografia, mas à coerência e às relações internas do texto. Podem significar
lugares tranquilizadores ou angustiantes, lugares de aventuras, partes diferentes do mundo (co-
nhecidas ou exóticas). E também podem significar “etapas da vida, a ascensão e a degradação so-
cial, raízes e lembranças [...] podem caracterizar [personagens] por metonímia (a casa remete à
personagem em Balzac) ou simbolizar tal status ou tal desejo” (REUTER, 1996, p. 61). Qualquer
que seja sua função, o espaço não existe desvinculado dos demais elementos do romance – tem-
po, ação, personagens, narrador, gênero literário, tendência estética etc.
A descrição é o tipo de texto escolhido preferencialmente para tratar do espaço. E a descri-
ção pode atuar de diferentes maneiras nas narrativas. Bourneuf e Ouellet tratam de algumas delas:
• desvio – depois de uma passagem muito ativa e agitada a descrição de um ambiente ofe-
rece a promessa de um repouso;
• suspense – a inserção de uma passagem descritiva num momento crítico com o objetivo
de aguçar nossa curiosidade factual;
• abertura – ao antecipar o andamento de um romance;
• alargamento – ao verticalizar informações, complementando dados anteriores, num es-
forço de microscopia. (DIMAS, 1985, p. 412; BOURNEUF; OUELLET, 1976, p. 154-162)

Da mesma maneira, as indicações temporais cumprem diferentes funções dentro de um


romance. O tempo tem, como o espaço, o objetivo de construir a verossimilhança do texto. Alguns
romances baseiam-se em fatos históricos (o passado); outros, no tempo sucessivo e rápido da aven-
tura; outros ainda, têm o presente como tempo privilegiado (o romance psicológico e o de costu-
mes contemporâneos); enquanto ainda outros escolhem um tempo imaginário, como o futuro – é
o caso dos romances de ficção científica; ou então se misturam todos esses tempos.
O tempo cronológico do texto está preso à enunciação, ao discurso, à narração. Pode ter as
seguintes conformações:
A narração ulterior [...] o narrador avisa que ele narra o que acontece anterior-
mente, num passado mais ou menos longínquo.
A narração anterior [...] com valor de predição, frequentemente sob a forma de
sonhos ou de profecias, ela antecipa a sequência dos acontecimentos, o futuro. [...]
A narração simultânea dá a ilusão de que ela é escrita no momento da ação.
Ela está frequentemente ligada à narração homodiegética centrada no ator ou
à narração heterodiegética neutra.
A narração intercalada é na realidade uma combinação das duas primeiras, a
narração se inserindo, de maneira retrospectiva ou prospectiva, nas pausas da
ação (REUTER, 1996, p. 87-88).
Também a enunciação, ao apressar ou retardar os fatos narrados, determina o ritmo do
tempo narrativo. Os procedimentos são os de sumário (quando o tempo cronológico longo é
resumido, por exemplo, em uma frase como “Sete meses depois...”) ou de cena (quando o leitor
tem a impressão de que o fato narrado está se desenrolando naquele momento, sob seus olhos)
A estrutura da narrativa: elementos do romance 151

ou de elipse, quando – para acelerar a narrativa – a narração omite detalhes e minúcias do fato
que está ocorrendo.
De um modo geral, os romances mais simples adotam uma narração cronológico-lógica,
isto é, obedecendo à cronologia do fato mais distante no tempo ao mais recente, com todos
os fatos intermediários. No entanto, a narrativa complexa adota anacronias, ou seja, alterações
na ordem de aparecimento dos fatos narrados – seja por retrospecção (flashbacks), seja por
antecipação (flashforwards).
Qualquer que seja o uso do tempo, tal como os demais elementos da narrativa, o objetivo é
intensificar o sentido, criando efeitos estéticos insubstituíveis.

10.4 As personagens e modos de representação


Este é o elemento mais essencial dos romances, de tal maneira que se pode afirmar que
“toda história é história das personagens” (REUTER, 1996, p. 54). É essencial que se defina a per-
sonagem, não por sua função imitativa – isto é, mais ou menos semelhante a uma pessoa real –,
mas por seu papel, sua função na narrativa. “O problema da personagem é, antes de tudo, um pro-
blema linguístico, pois a personagem não existe fora das palavras” (BRAIT, 1999, p. 11), ao ponto
de as personagens serem denominadas seres de papel. Mesmo quando representam pessoas, eles só
existem dentro de normas da ficção, normas que se alteram no tempo e no entendimento do que
seja literatura. Mesmo quando idealizada ou imaginária, a personagem precisa ter verossimilhança
interna, isto é, ser plausível, coerente em seu ser e seu fazer narrativo.
Santiago Nasar pôs calça e camisa de linho branco, não engomadas, iguais
às que vestira no dia anterior para o casamento. Era um luxo para a ocasião.
Se não fosse pela chegada do bispo, teria vestido a roupa cáqui e as botas de
montar com que ia, nas segundas-feiras, a O Divino Rosto, a fazenda que her-
dou do pai e que administrava com muito bom juízo embora sem muita sorte.
À caça levava ao cinto uma 357 Magnum, cujas balas blindadas, segundo dizia,
podiam partir um cavalo pelo meio. Em tempo de perdizes, levava também seus
apeiros de cetraria. Tinha no armário, além disso, um rifle 30.06 Manlinncher
Schönauer, um rifle 300 Holland Magnum, um 22 Hornet com mira telescópica
de duplo alcance, e uma Winchester de repetição. Dormia sempre como o pai
dormiu, a arma escondida dentro da fronha do travesseiro, mas antes de sair de
casa naquele dia tirou-lhe as balas e as pôs na gaveta do criado-mudo. “Nunca
deixava carregada”, disse-me sua mãe. (GARCÍA MÁRQUEZ, 2014, p. 9)

A descrição dos gestos e dos costumes da personagem será justificada em seguida por seu
assassinato. Todas as armas de que dispunha, sem munição ou deixadas em casa, nada puderam
fazer para preservar sua vida: será morto desarmado. Mesmo a tradição familiar e os cuidados
noturnos foram em vão, pois foi assassinado durante o dia. Mesmo que as informações sobre a
personagem sejam negadas pelos acontecimentos, nem por isso deixam de estar em relação com
os fatos, nem por isso deixam de justificar o acaso infeliz de que, justo no dia de sua morte, tenha
saído de casa desprotegido. A verossimilhança se mantém.
Há diferentes classificações de personagens. Em Aspects of the Novel (Aspectos do Romance)
E. M. Forster classifica as personagens como planas e redondas.
152 Teoria da literatura II

As personagens planas são construídas em torno de uma só ideia ou qualidade, isto é, para
qualificá-las leva-se em conta o caráter e a ideologia. Podem ser divididas em dois outros modelos:
o tipo e a caricatura. No tipo, encontramos uma qualificação que se repete do mesmo modo em
outros romances – é o estereótipo, como o da personagem cínica, da sádica, da ambiciosa, da beata,
sem aprofundamento e sem individualização. A caricatura, também baseada em um defeito único,
resulta em uma personagem com forte dose de distorção e de exagero. Por exemplo, a personagem
José Dias em Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis.
As personagens redondas são definidas por sua complexidade, isto é, porque apresentam
várias qualidades ou tendências, às vezes até conflitantes, e não podem ser simplificadas. Como
exemplo, a personagem Bento Santiago, de Dom Casmurro, ou o capitão Ahab em Moby Dick
(1851), de Melville. Personagens redondas podem adquirir ainda status de símbolos, como o Dom
Quixote, do romance homônimo de Cervantes (1605-1615).
A análise literária contemporânea substituiu essa classificação por qualidades e assumiu uma
posição que observa mais a construção da narrativa e suas características de narratividade. Por isso,
surgiram novas classificações. Philippe Hamon propôs categorias semiológicas para as personagens:
Personagens referenciais: são aquelas que remetem a um sentido pleno e fixo,
comumente chamadas de personagens históricas. Essa espécie de personagem
está imobilizada por uma cultura, e sua apreensão e reconhecimento dependem
do grau de participação do leitor nessa cultura. Tal condição assegura o efeito
do real e contribui para que essa espécie de personagem seja designada herói.
Como exemplos marcantes, considerem-se todas as personagens de A Ordem
do Dia, de Márcio Souza.
Personagens embrayeurs: são as que funcionam como elemento de conexão e
que só ganham sentido na relação com os outros elementos da narrativa, do
discurso, pois não remetem a nenhum signo exterior. Seria o caso, por exemplo,
de Watson ao lado de Sherlock Holmes.
Personagens anáforas: são aquelas que só podem ser apreendidas completamente
na rede de relações formada pelo tecido da obra. Diadorim, de Grande Sertão:
Veredas, poderia estar nessa categoria. Essa classificação, que permite ainda en-
frentar a personagem como participante das três categorias ao mesmo tempo, foi
utilizada aqui apenas como um exemplo da radicalização da teoria da persona-
gem, tomada como matéria do discurso e analisada sob os critérios fornecidos
pela Linguística e pela Semiologia e/ou Semiótica. (BRAIT, 1999, p. 45-46)
Quando a personagem é tomada como agente da ação, e não por sua qualidade
de caráter ou de ideologia, surge nova classificação. Etienne Souriau, em Deux
cent mille Situations Dramatiques, e Wladimir Propp, em Morfologia do Conto,
estabeleceram seis categorias a partir desse ponto de observação e análise, que
foram retomadas em Semântica Estrutural, obra de Greimas, que denominou
sistema actancial a esse conjunto de funções.
Condutor da ação: personagem que dá o primeiro impulso à ação; é a que re-
presenta a força temática: pode nascer de um desejo, de uma necessidade ou de
uma carência.
Oponente: personagem que possibilita a existência do conflito; força antagonista
que tenta impedir a força temática de se deslocar.
Objeto desejado: força de atração, fim visado, objeto de carência; elemento que
representa o valor a ser atingido.
A estrutura da narrativa: elementos do romance 153

Destinatário: personagem beneficiária da ação; aquela que obtém o objeto dese-


jado e que não é necessariamente a condutora da ação.
Adjuvante: personagem auxiliar; ajuda ou impulsiona uma das outras forças.
Árbitro, juiz: personagem que intervém em uma ação conflitual a fim de resol-
vê-la. (BRAIT, 1999, p. 49-50)

Essas são formas de buscar um melhor entendimento das funções das personagens em uma
narrativa, embora toda classificação apresente um certo reducionismo da questão e não funcione
com personagens mais densas e complexas. Northrop Frye, por exemplo, em A Anatomia da
Crítica (1957), considera que a evolução da literatura ocidental está ligada à imagem do herói e
se caracteriza pela diminuição da força desse herói, substituído por personagens problemáticas.
Yves Reuter (1996, p. 58) demonstra também a impossibilidade de esgotar os modos de analisar
as personagens:
No entanto, não esgotamos a análise da personagem que não deve esquecer
outras dimensões importantes.
Assim, seu funcionamento se diferencia conforme o gênero (as personagens do
conto não possuem psicologia...), conforme a época (nos séculos precedentes, o
lugar do herói numa narrativa “nobre” era reservado a homens bem-nascidos;
a psicologia e o físico remetiam não a um indivíduo, mas a uma representação
convencional de sua categoria), conforme a ideologia do autor (Quais tipos de
personagens estão presentes? Quais não aparecem? Como elas são descritas?
Com referência a quais discursos sociais da época?)

A variedade das formas de apresentação das personagens traz como consequência essa di-
versidade do olhar crítico, que, mesmo múltiplo, auxilia o leitor a enxergar melhor a composição
escrita literária desse elemento ficcional, ao mesmo tempo em que municia o olhar crítico a pensar
e avaliar esse elemento e sua configuração ao longo da narrativa.

Ampliando seus conhecimentos

O discurso que narra


(MESQUITA, 1986, p. 33-38)

Insistimos em que essa divisão [matéria narrada da história e discurso que narra] tem por
fim iniciar didaticamente os estudos sobre o enredo. Nenhum dos planos referidos pode ser
dissociado de outro. História, ação, discurso são interdependentes e o enredo, trama ou intriga
é resultante dessa interdependência.
Fora da obra, podemos ter um assunto, uma fábula, uma sucessão de episódios, com registro
na História, na Imprensa, na memória de um indivíduo ou de uma sociedade. [...] esse assunto,
por isso, não constitui a obra literária. É o tratamento verbal que um poeta, um escritor dá a
esse material que recorta a sua forma, compõe o poema, o conto, o romance, a peça de teatro.
Na narrativa, esse tratamento aparece/se oculta no plano da instância narrante, voz do narra-
dor, discurso, enunciação.
154 Teoria da literatura II

Esse plano administra a narração, ordena os fatos, decide a perspectiva, o ponto de vista, o foco
narrativo, a partir do qual de focaliza a matéria narrada.
É aí ainda que se articulam as categorias de tempo e de espaço; impõe-se o ritmo, mais lento ou
mais acelerado, da narrativa. O enredo é arquitetura do tempo, e arquitetura do espaço, já que
o tempo é espaço vivido.
Se há uma cronologia respeitada, isto é, se é narrado antes o que aconteceu antes e depois o
que aconteceu depois, o ritmo será mais rápido. Se, ao contrário, há idas e vindas no tempo/
espaço – flashbacks (retrospectivas), flashforwards ou prolepses (antecipações) – mistura de
planos temporais, tecnicamente chamada analepse, o ritmo se retardará.
Em função de a narrativa voltar-se mais para os acontecimentos exteriores, privilegiando o
tempo cronológico, ou para os estados interiores das personagens ou do narrador, com o pre-
domínio do tempo psicológico, o seu ritmo será afetado e o enredo se situará tipologicamente.
Sendo a enunciação o ato linguístico, a atitude de quem emite o enunciado (que é o fato
linguístico), é também nesse plano que se imprime o tom, a dicção, ao discurso que narra.
Esse tom pode ser neutro ou se revestir de acento irônico, caricatural, patético, elegíaco,
picaresco etc.
Igualmente aí se estabelece a proporção entre narração propriamente dita (diegesis) e des-
crição (mimesis).
A ação em uma narrativa se desenvolverá à proporção que as situações se vão modificando.
Tal processo pode fluir sem interrupções ou pode ser retardado por descrições de objetos,
quadros, paisagens, detalhes, gestos, traços físicos ou morais de personagens etc.
Além da descrição, outros procedimentos podem retardar o desenrolar da estória, da ação,
da matéria narrada.
A digressão, ou desvio da sequência narrativa pelo discurso, é um desses procedimentos.
O discurso pode apresentar reflexões, diálogos com o leitor, opiniões, considerações filosó-
ficas, avaliações, comentários sobre aquilo que narra ou sobre a própria maneira de narrar,
estilo etc. (Neste último caso, pode-se falar em metadiscurso, metaliteratura, quase sempre
com efeitos anti-ilusionistas, a lembrar ao leitor que está diante de uma obra de ficção.) Tais
recursos são, entre outros, meios de controlar o ritmo, tornar o texto mais ou menos tenso e,
logicamente, interferir no sentido do mesmo. [...]
O enredo necessariamente sofrerá, na sua estruturação, consequências, efeitos diversos, a par-
tir dos diversos procedimentos do discurso. Poderá ser mais concentrado ou mais disperso;
mais cerrado ou fragmentado. Poderá até ser destruído, quando o discurso chega a pulverizar
a linha do tempo e desprezar o princípio lógico da causalidade (causa e efeito) na articulação
dos sucessos narrados.
Nos extremos das possibilidades de composição do enredo, podemos citar de um lado um
romance policial nos moldes tradicionais, uma narrativa popular, uma narrativa mítica, e de
outro, um romance, novela ou conto contemporâneos, um romance, novela ou conto psicoló-
gicos, com monólogos interiores, fluxos de consciência etc. [...]
A extinta novela de rádio, a narrativa das novelas de televisão (misto de cinema, teatro, litera-
tura e música), certos tipos de romance romântico, o romance de folhetim do passado, publi-
cado em capítulos (revivido hoje em obras-primas como O Nome da Rosa, de Umberto Eco
e A Grande Arte, de Rubem Fonseca), jogam com recursos que, ao mesmo tempo, procuram
A estrutura da narrativa: elementos do romance 155

prender a atenção do leitor/espectador/ouvinte, pela sucessão dos fatos narrados, e fazer durar
mais tempo a narração dos mesmos.
Além dos recursos já referidos, devemos lembrar outros, como as micronarrativas encaixadas,
as idas e vindas no tempo, as expressões ou projeções do mundo interior das personagens
(suas lembranças, sonhos, desejos, fantasias), todos meios de alterar o fluir e o significar do
enredo. [...]
No século XX, as grandes mudanças de concepções, valores, o advento de importantes fatos
sócio-históricos e de novas teorias e descobertas, como a Teoria da Relatividade, a Física
Quântica, a desestruturação do átomo, a Psicanálise, a razão dialógica, o novo espírito cientí-
fico, afetarão a construção da obra de arte em geral e da literatura em particular.

Atividades
1. Compare os dois trechos de romances e procure analisar a descrição do espaço e do tem-
po, sob o ponto de vista de escolhas da enunciação e possíveis efeitos semânticos obtidos
pelas descrições.

Era então nos fins de agosto. Na longa alameda macadamizada que vai junto do
rio, entre os dois renques de velhos choupos, entreviam-se vestidos claros de
senhoras passeando. Do lado do Arco, na correnteza de casebres pobres, velhas
fiavam à porta; crianças sujas brincavam pelo chão, mostrando seus enormes
ventres nus; as galinhas em redor iam picando vorazmente as imundícies esque-
cidas. Em redor do chafariz cheio de ruído, onde os cântaros arrastam sobre a
pedra, as criadas ralham, soldados, com a sua fardeta suja, enormes botas cam-
badas, namoravam, meneando a chibata de junco; com o seu cântaro bojudo
de barro equilibrado à cabeça sobre a rodilha, raparigas iam-se aos pares,
meneando os quadris. [...] E quando o crepúsculo caiu, uma lamparina luziu no
nicho do santo, por cima do Arco; e defronte iam-se iluminando uma a uma,
com uma luz soturna, as janelas do hospital. (QUEIROZ, 1993, p. 23)
Lá um dia, para as cordas das nascentes do Paraíba, via-se, quase rente do hor-
izonte, um abrir longínquo e espaçado de relâmpago: era inverno na certa no
alto sertão. As experiências confirmavam que com duas semanas de inverno,
o Paraíba apontaria na várzea com a sua primeira cabeça-d’água. O rio no
verão ficava seco de se atravessar a pé enxuto. Apenas, aqui e ali, pelo seu leito,
formavam-se grandes poços, que venciam a estiagem. Nestes pequenos açudes
se pescava, lavavam-se os cavalos, tomava-se banho. Nas vazantes plantavam
batata-doce e cavavam pequenas cacimbas para o abastecimento de gente que
vinha das caatingas, andando léguas, de pote na cabeça. O seu leito de areia
branca cobria-se de salsas e juncos verde-escuro, enquanto pelas margens os
marizeiros davam uma sombra camarada nos meios-dias.
(REGO, 1960, p. 18-19)
2. Leia o trecho, analise a forma de apresentação da personagem e exemplifique as faces de sua
caracterização com exemplos tirados do trecho.

O primeiro a chegar era Julião Zuzarte, um parente muito afastado de Jorge,


e seu antigo condiscípulo nos primeiros anos da Politécnica. Era um homem
seco e nervoso, com lunetas azuis, os cabelos compridos caídos sobre a gola.
Tinha o curso de cirurgião da Escola. Muito inteligente, estudava desespe-
radamente, mas, como ele dizia, era um tumba. Aos trinta anos, pobre, com
dívidas, sem clientela, começava a estar farto do seu quarto andar na Baixa,
dos seus jantares de doze vinténs, do seu paletó coçado de alamares; e enta-
lado na vida mesquinha, via os outros, medíocres, os superficiais, furar, subir,
instalar-se à larga na prosperidade!
(QUEIROZ, 1971, p. 26)

3. Explique a afirmação a seguir, de Massaud Moisés:

“A narração de uma obra constitui a totalidade dos acontecimentos ou atos que envolvem
todos os figurantes em cena. Entretanto, pode ser concebida como a soma das ações das per-
sonagens individualmente consideradas ou em pequenos grupos” (MOISÉS, 1997, p. 10-11).
11
A estrutura da narrativa: conto e novela

O gênero literário narrativo compreende dois subgêneros, denominados conto e novela. Embora
conservem do grande gênero algumas características de semelhança, conforme veremos a seguir,
também apresentam elementos narrativos diferenciados, que lhes dão identidade. O conto tem sido
um dos subgêneros mais praticados no Brasil, em especial a partir da segunda metade do século XX.
A quantidade gerou qualidade e alta diversidade na criação textual. Portanto, o estudo dessa modali-
dade de narrativa se torna útil e necessário.

11.1 Características do conto e da novela


Conto e novela são dois modos de construir narrativas ficcionais que têm como elemento
comum a mais curta extensão do texto – com exceções, como ocorre com as produções artísticas
de um modo geral – quando comparada com o romance, por exemplo. A denominação que o conto
recebe em inglês – short story – bem demonstra o quanto a extensão é elemento relevante na qua-
lificação dessa forma literária.

11.1.1 O conto
Uma das primeiras características que sobressaem nas definições do subgênero conto é a
de que se trata de uma narrativa de curta extensão que não é suficiente de, por si só, constituir
um volume impresso (BALDICK, 2004, p. 236). No entanto, esse critério distintivo não é capaz
de esclarecer o que seja um conto. Torna-se necessário investigar melhor sua origem histórica e
as alterações que ele vem sofrendo ao longo do tempo para só então obter um quadro mais claro
sobre sua natureza.
Um dos elementos distintivos dessa forma narrativa consiste no caráter sintético do texto:
uma ação simples, com poucas personagens, uma ambientação social sucinta. A economia do con-
to é uma das suas maiores virtudes e um fator de diferenciação, mas essa economia não impede a
qualidade literária ou as múltiplas interpretações. Esclarece Eickenbaum (1971, p. 162):
Short story é um termo que subentende sempre uma estória e que deve respon-
der a duas condições: dimensões reduzidas e destaque dado à conclusão. Essas
condições criam uma forma que, em seus limites e em seus procedimentos,
é inteiramente diferente daquela do romance.

Na origem, o conto está relacionado à fábula, ao apólogo, à parábola, à narrativa exemplar e


às narrativas folclóricas de um modo geral. “De gênese desconhecida, o conto remonta aos primór-
dios da própria arte literária. Alguns exemplares podem ser localizados centenas ou milhares de
anos antes do nascimento de Cristo” (MOISÉS, 1997, p. 99). A ocorrência de contos nesse período
remoto da história pode ser comprovada pelos exemplos citados por Nádia Gotlib (2000, p. 6):
158 Teoria da literatura II

Para alguns, os contos egípcios – Os contos mágicos – são os mais antigos: devem
ter aparecido por volta de quatro mil anos antes de Cristo. [...] O da história
de Caim e Abel, da Bíblia [...] ou os textos literários do mundo clássico greco
-latino: as várias estórias que existem na Ilíada ou na Odisseia, de Homero.
E chegam os contos do Oriente: a Pantchatantra (VI a.C.), em sânscrito, ganha
tradução árabe (VII d.C.) e inglesa (XVI d.C.); e as Mil e uma noites circulam da
Pérsia (século X) para o Egito (século XII) e para toda a Europa (século XVIII).

A migração desses contos – seja enquanto transmissão oral, por meio dos contadores de
histórias, seja por escrito, em publicações e traduções – atesta a intercomunicação entre as regiões
do Oriente e do Ocidente, causada pelo reconhecimento da importância dessas narrativas.
A origem remota e seu desenvolvimento posterior também permitem separar o conto em
duas grandes categorias:
• o conto tradicional ou popular;
• o conto erudito ou literário (essa última denominação é encontrada em Massaud Moisés).

11.1.2 O conto tradicional ou popular


A fábula, citada por alguns autores como uma das origens do conto tradicional, tem uma
configuração estável: animais ou seres alegóricos, como a Morte, dialogam com o objetivo de re-
presentar uma ideia moral, o que dá ao texto caráter utilitário. É sempre uma narrativa muito curta.
O apólogo é muito semelhante à fábula por sua finalidade moralizante e utilitária, mas alguns
autores o distinguem, afirmando que as fábulas apresentam como personagens preferencialmente
os animais, enquanto o apólogo pode ter como personagens “objetos inanimados, como plantas,
pedras, rios, relógios, moedas, estátuas etc.” (MOISÉS, 1997, p. 34).
Outra forma citada é a da parábola, que, mais complexa do que as anteriores, tem perso-
nagens humanos como protagonistas; o final continua sendo moralista, mas se apoia bastante no
aspecto simbólico, dele decorrendo a complexidade.
As narrativas exemplares ou de exemplo são ainda pequenas histórias destinadas e ilustrar
uma lição moral. Muito populares na Idade Média, apareciam entre as palavras de um sermão ou
de um trabalho religioso didático. São aparentadas à fábula, à parábola e às alegorias.
Os contos de fadas,
com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso) [...] desen-
volvem-se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas,
gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos mágicos, metamorfoses, tempo e espaço
fora da realidade conhecida etc.) e têm como eixo gerador uma problemática
existencial. (COELHO, 1987, p. 13)

Os contos maravilhosos
são narrativas que, sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no co-
tidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou familiares,
objetos mágicos, gênios, duendes etc.) e têm como eixo gerador uma problemá-
tica social (ou ligada à vida prática, concreta). (COELHO, 1987, p. 14)
A estrutura da narrativa: conto e novela 159

O pesquisador alemão André Jolles escreveu, em 1930, uma obra importante para tratar
dessas formas iniciais de conto popular. O livro se intitulou em português Formas Simples, de que
a primeira tradução no Brasil data de 1976. Nessa obra, o escritor trata da lenda, da saga, do mito,
da adivinha, do ditado, do caso, do memorável, e do chiste. São formas populares de narrar histó-
rias. Quando estuda o conto, ele dá como espaço de seu surgimento o livro Contos para as Crianças
e a Família (1812-1822), dos irmãos Grimm.
Esses contos maravilhosos, recolhidos pelos filólogos Jacob e Wilhelm Grimm, têm fontes
muito remotas, como informa Nelly Novaes Coelho (1987): a narrativa egípcia Os dois irmãos,
de Anana, ou Setna e o Livro mágico (ambos de aproximadamente o século XIV a.C.); os indianos
Pantshatantra (séc. V) e Calila e Dimna (com texto em sânscrito desaparecido, mas reescrito a par-
tir de narrativas orais entre os séculos IX e XIII da era cristã); As mil e uma Noites (final do século
XV), de origem persa e árabe. Dos celtas, da região das atuais França, Itália e Espanha, em período
anterior à era cristã, vieram as fadas que irão povoar os contos maravilhosos do Ocidente.
A partir do século XVII e da obra de Charles Perrault, Os Contos de Mamãe Gansa (1697),
baseada parcialmente em O Conto dos Contos (1634), do italiano Giambattista Basile, a publicação
de narrativas curtas destinadas ao público infantil e adulto aumentou progressivamente, demons-
trando a atração exercida sobre o público leitor. Entre os autores, destacam-se Madame d’Aulnoy
e seus Contos de Fadas (1698), os já citados irmãos Grimm, e também Hans Christian Andersen
em Contos (Eventyr), de 1835 a 1872. Ao longo do século XIX, esse tipo de narrativa já apresentava
uma evolução com a Condessa de Ségur em Novos Contos de Fadas (1856), Lewis Carroll em Alice
no País das Maravilhas (1865) e Collodi em Pinóquio (1883).
Essa tradição não se esgotou, pois nos dias de hoje essas narrativas são retomadas nas es-
colas, que muitas vezes as utilizam pelas características moralistas e instrutivas, presentes em boa
parte dessa produção.

11.1.3 O conto erudito ou literário


Quanto às características formais, o conto erudito tem origens tão antigas quanto o conto
popular e maravilhoso. Episódios da Bíblia (como as histórias de Judite, de Salomé, do filho pródi-
go, destacáveis do conjunto), ou trechos da Odisseia e das Metamorfoses, de Ovídio, podem ser con-
siderados contos. Também na Idade Média as narrativas de Boccaccio no Decamerão (1348-1353)
ou as Novelas Exemplares (1613), de Cervantes, ou ainda, no século XVIII, Zadig, Micromegas,
Cândido e A Princesa de Babilônia, de Voltaire, exemplificam a composição literária do conto.
Porém, foi no século XIX que esta forma literária alcançou autonomia e esplendor
(MOISÉS, 1997, p. 100), tanto pela quantidade de escritores e obras quanto, sobretudo, pela quali-
dade literária das narrativas. O crescimento da produção de contos eruditos se deveu à descoberta
dos intensos recursos expressivos dessa forma literária, aliada ao modo de ler histórico: a rapidez
da vida nas cidades e as novas profissões e seus exercício levam à escassez de tempo para o lazer e
a leitura. O texto curto e com unidade favorece o encontro com o leitor. Grandes contistas podem
ser nomeados nesse período: Edgar Allan Poe nos Estados Unidos, Guy de Maupassant na França,
Machado de Assis no Brasil, Anton Tchekov na Rússia, Eça de Queirós em Portugal. A riqueza de
160 Teoria da literatura II

assuntos, efeitos e discurso literário do conto também trouxe reflexões teóricas sobre ele, como as
realizadas por Poe e Machado de Assis, que indagam sobre as qualidades de síntese e rapidez na
narração das ações e da construção de personagens, concluindo que se trata de uma forma narra-
tiva de grande riqueza literária.
No século XX e nos tempos atuais, o conto continua sendo um subgênero de prestígio.
Grandes contistas renovaram recursos e modos de expressão, obtendo crescente diversidade, sem-
pre provocando o interesse dos leitores. Entre os muitos contistas, podem ser citados Katherine
Mansfield e Virgínia Woolf na Inglaterra, o irlandês James Joyce, o tcheco Franz Kafka, os argenti-
nos Júlio Cortazar e Jorge Luis Borges.
A novela, entretanto, apresenta algumas dificuldades de conceituação, dado que inicialmente
ela foi confundida com o conto e que, até hoje, diferentes línguas e culturas entendem e denominam
textos como novelas sem o mesmo significado que damos a essa palavra em língua portuguesa:
Para alguns, a novela vem do italiano novella, ou seja, pequenas histórias.
Em Boccacio, a novella era breve, não mais de dez páginas, se opondo ao roman-
ce medieval, forma mais longa e difusa, que desenvolvia uma intriga amorosa
completa. E Bocaccio chama seus textos indistintamente de “histórias, relatos,
parábolas, fábulas”. (GOTLIB, 2000, p. 15)

Essa confusão terminológica durará alguns séculos, pois a noção de literatura e de estudos
teóricos a respeito da literatura surgiram apenas no século XIX.
O termo novel passa para o espanhol. Cervantes escreve suas Novelas ejemplares,
em 1621, e estas experimentam já um processo de extensão. E Lope de Vega
escreve então novelas que são, segundo ele, anteriormente chamadas cuentos.
[...] Atualmente, romance é novela . Novela é novela corta. E conto é cuento.
(GOTLIB, 2000, p. 15)

Em francês ocorre algo semelhante: o escritor La Fontaine, autor das hoje denominadas fá-
bulas, no século XVII, usou indistintamente nouvelle e conte. Guy de Maupassant, no século XIX,
denominou suas nouvelles como contes. O século XX criou formas híbridas e podemos encontrar
contos em verso (mais próximos dos comportamentos narrativos e poéticos da epopeia).
Nas literaturas de língua inglesa, registra-se novamente um desencontro terminológico com
os termos em português:
Novel, usada do século XVI ao XVIIII, como prosa narrativa de ficção com
personagens ou ações representando a vida diária, diferenciava-se do romance,
forma mais longa e mais tradicional. No século XIX, com o declínio do
romance antigo, de reminiscências medievais, a novel preencheu o espaço dis-
ponível, perdeu as associações originais, deixou de ser breve, virou romance.
Hoje, novel, em inglês, é romance. Só no século XIX surge um termo específico
para a estória curta, a short story. Há ainda a long short story para a novela. E o
tale para o conto e o conto popular. (GOTLIB, 2000, p. 14-15)

O período do Romantismo foi muito fértil na produção de novelas, dado que sua natu-
reza favorecia a expressão da cosmovisão romântica: o sentimentalismo, o estilo derramado e a
preferência por uma narrativa de peripécias e reviravoltas. Segundo Massaud Moisés, “a novela
tornou-se um dos entretenimentos mais caros à burguesia, porventura em razão de oferecer-lhe
A estrutura da narrativa: conto e novela 161

alimento à imaginação e preencher-lhe as largas horas de ócio” (MOISÉS, 1997, p. 362). No século
XVIII, Goethe usou o termo novelle para classificar Os Sofrimentos do Jovem Werther, uma das
obras mais influentes da época. Foi a época de Camilo Castelo Branco, Garrett e Herculano em
Portugal, Eugène Sue e Alexandre Dumas pai na França, Joaquim Norberto e Teixeira e Sousa no
Brasil. Os autores no século XX continuaram produzindo novelas, como se pode verificar na obra
de Erico Verissimo e Jorge Amado. A famosa obra Morte em Veneza (1912), de Thomas Mann,
é considerada uma novela, assim como O Coração das Trevas (1902), de Joseph Conrad, e O Velho
e o Mar (1952), de Ernest Hemingway.

11.1.4 A ação e a representação da realidade no texto narrativo


Na tentativa de esclarecer melhor quais elementos formam o conto e a novela − dois sub-
gêneros com identidade própria −, vamos tratar da ação, com os diferentes sentidos e valores que
adquiriu ao longo do tempo, e dos modos de representação da realidade no texto literário narrativo
que estudamos.

11.1.4.1 No conto
Para tratar desse tópico, convém primeiramente esclarecer o que será entendido como ação.
Para tanto, servimo-nos da definição exposta por Nádia Gotlib:
atos praticados por um sujeito, ou atitudes e caracteres que, em conjunto,
compõem o enredo; este agir, fazer ou acontecer se desenvolve em processo,
organizando-se numa sequência, que compõe a linha de ação; se a ação é forte
e predominante entre outros elementos de construção do conto, este é chama-
do conto de ação. (GOTLIB, 1999, p. 93)

Verificamos a importância da personagem para a qualificação desse componente narrativo:


enquanto caráter, sujeito ou atitude, a personagem é o responsável pela ação, seja ela de que tipo for.
Personagem e acontecimentos não têm nenhum compromisso de reproduzir a realidade:
o que será permanente e relevante é o modo como a literatura, enquanto arte de inventar, reelabora o
acontecimento, a pessoa real, o espaço e o contexto em que se desenvolve a ação narrativa. Estamos
no terreno do fictício e portanto submetidos a normas e leis próprias desse modo de representar em
palavras. Assim, o entendimento de representação enquanto transposição para a linguagem escrita
concretiza o sentido do verbo latino fingere, de onde provém ficção, que significa “modelar, com-
por, imaginar, fingir” (MOISÉS, 1997, p. 229). Enfim, quando tratamos do conto e de seu poder de
representação, incluímos nessa tarefa os recursos de linguagem utilizados para a figuração literária.
E é possível verificar que, ao longo da evolução do conto, os modos de representação em um
discurso literário foram se alterando. Os estudiosos e teóricos dessa forma literária foram, com o
tempo, retomando-se uns aos outros e compondo um painel bastante descritivo.
Tomemos como exemplo o início do Conto de Escola, de Machado de Assis, de 1896:
A escola era na rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de
1840. Naquele dia – uma segunda-feira, do mês de maio – deixei-me estar al-
guns instantes na rua da Princesa a ver onde iria brincar a manhã. Hesitava
entre o morro de S. Diogo e o campo de Sant’Ana, que não era estão esse parque
atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito,
162 Teoria da literatura II

alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o pro-
blema. De repente, disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola.
Aqui vai a razão. (MACHADO DE ASSIS, 1975, p. 161)

A representação espacial metonímica da cidade do Rio de Janeiro e a época em que se passa


a ação fazem parecer um relato biográfico. No entanto, a vagueza e a omissão de dados mais carac-
terísticos (o sobradinho e apenas grade de pau; a rua, o morro e o campo nominados não situam
melhor o leitor; a comparação entre o tempo atual e o passado serve-se apenas de, novamente,
uma metonímia). É impossível reconstituir essa paisagem, porque a intenção do narrador não está
nela verdadeiramente. Dirige-se à escola. Mas o trecho citado serviu para qualificar a personagem:
criança (onde iria brincar a manhã), narrador adulto (esse parque atual, construção de gentleman)
que inverte o tempo da ação, começando no meio dela (a razão é anterior à escolha do caminho
da escola; depois irá até ela e viverá alguns acontecimentos). O modo de narrar, com omissões e
mudanças temporais, representa um fazer do narrador, um modo de compor o texto que visa ao
efeito do suspense e, posteriormente, da surpresa.
Portanto, mesmo um texto curto como o conto abriga modos de dizer/escrever literários.
Existem outros modos que tornarão mais específico o texto do conto, e dirão respeito à ação narra-
tiva. Nádia Gotlib, servindo-se de boa bibliografia, apresenta e discorre sobre essas idiossincrasias
do conto.

11.1.4.2 O conto tradicional


Um estudo relevante que trata dessa forma de conto é o realizado por Vladimir Propp em
Morfologia do conto (1928). O pesquisador toma como base os contos do ciclo da Baba Yaga, espé-
cie de fada má da literatura folclórica russa, e estabelece, a partir deles, um conjunto de qualidades
reiteradas e que formam um padrão. Assim, trata em seu estudo das ações constantes e das perso-
nagens, em número de sete. Os esquemas obtidos serão quase integralmente mantidos em estudos
posteriores, aplicados a gêneros literários diferentes (como o dramático) e a romances, novelas e
contos eruditos, estudos esses de A. J. Greimas, Claude Brémond e Etienne Souriau.
Propp dividiu as ações constantes em 31 funções, que podem ser realizadas por personagens
diferentes, de modos diferentes e nem todas estão juntas em um mesmo relato. A passagem entre as
funções provoca os movimentos do conto (GOTLIB, 2000, p. 21). Entre essas funções estão “o afas-
tamento de um membro da família”, “a interdição”, “o herói abandona sua casa”, os obstáculos em
número de três, “o agressor desmascarado”, “a tarefa cumprida”, “o agressor punido”, “o casamento”.
Na medida que lemos essa lista incompleta, já a podemos entender e preenchê-la com alguma his-
tória conhecida – o que confirma a pertinência da categorização de Propp.
Quanto às personagens, Propp identificou sete – o antagonista ou agressor, o doador, o au-
xiliar, a princesa e seu pai, o mandatário, o herói e o falso herói –, cada uma delas atuando em sua
esfera de ação, que corresponde às funções que cumpre cada personagem. Posteriormente, nos
anos 1960, A. J. Greimas criou o que denominou sistema actancial, com vinte funções e seis per-
sonagens agrupados por oposição: sujeito versus objeto, destinador versus destinatário e adjuvante
versus oponente. Essa compreensão das personagens, de seus papéis e funções, extrapolou o conto
A estrutura da narrativa: conto e novela 163

tradicional e se estendeu, como método analítico, para as demais narrativas, como os romances,
os contos eruditos e as novelas.

11.1.4.3 O conto erudito


Para estabelecer uma teoria do conto, Nádia Gotlib apresenta diferentes perspectivas em
seu livro: a unidade de efeito de Poe, efeito e contenção em Tchekhov, o enredo em Maupassant,
a epifania em Joyce, a simetria na construção de Brander Matthews, e o excepcional em Cortazar.
Vamos abordar, a partir da apresentação de Nádia Gotlib, cada um desses enfoques no tocante à
ação e à representação.
Intitulado “Review of Twice-told tales”, o texto de Edgar Allan Poe que embasa a sua teoria so-
bre o conto é o seu prefácio para uma reedição de obra de Hawthorne, Nesse prefácio ele afirma que
No conto breve , o autor é capaz de realizar a plenitude de sua intenção, seja ela
qual for. Durante a hora da leitura atenta, a alma do leitor está sob controle do
escritor. Não há nenhuma influência externa ou extrínseca que resulte de cansa-
ço ou interrupção. (POE apud GOTLIB, 2000, p. 34)

Em outras palavras, a brevidade do texto leva à rapidez da leitura, mantendo concentrado


o poder da narração para realizar determinados efeitos no leitor: “em quase todas as classes de
composição, a unidade de efeito ou impressão é um ponto da maior importância”, insiste ele (POE
apud GOTLIB, 2000, p. 32). Conclui Nádia Gotlib: “logo, é preciso dosar a obra, de forma a permi-
tir sustentar esta excitação durante um determinado tempo. Se o texto for longo demais ou breve
demais, esta excitação ou efeito ficará diluído” (GOTLIB, 2000, p. 32).
Seguindo o mesmo pensamento da brevidade do conto, Tchekhov acrescenta como elemen-
tos caracterizadores a condensação, a concentração ou compactação, além da tensão unitária: “para
conseguir compactar os elementos do conto, ou apresentá-los com concisão, o autor tem de con-
trolar a tendência aos excessos e ao supérfluo” (GOTLIB, 2000, p. 43). O exemplo do início do
conto machadiano exposto anteriormente aponta insistentemente para essa concisão: a descrição
da dúvida da personagem entre um espaço ou outro é econômica, daí o uso da metonímia e apenas
os nomes dos espaços, sem longas descrições.
Em Guy de Maupassant, o objetivo central do conto é a narração natural do acontecimento.
Nele, o interesse pela representação da realidade supera a contenção, sem que o conto se estenda
demasiado. Em sua obra de muitos contos, predomina o enredo: “sua imensa produção, de cerca
de trezentos contos, traz uma fácil fluência natural do acontecimento, com precisão e descontraí-
da firmeza, produto de uma intensa elaboração, seguindo os conselhos de seu mestre Flaubert”
(GOTLIB, 2000, p. 46).
Joyce trouxe mais um componente para a composição do conto: para ele, o conto deveria
ter como momento especial a epifania – “Epifania, tal como a concebeu James Joyce, é identificada
como uma e­ spécie ou grau de apreensão do objeto que poderia ser identificada com o objetivo do
conto, enquan­to uma forma de representação da realidade [...] é uma ‘manifestação espiritual súbi-
ta’.” (GOTLIB, 2000, p. 51). Tal atributo não ocorre em qualquer contista, mas apenas entre aqueles
que entendem a escrita literá­ria como forma de acesso à interioridades e a revelações espirituais,
como Clarice Lispector.
164 Teoria da literatura II

Em ensaio de 1901, Brander Matthews trouxe mais uma forma de conceber o conto como
um subgênero especial. Para ele,
existe uma diferença entre conto e romance que não é só de extensão, mas de
natureza; o conto tem uma unidade de impressão, que o romance obrigatoria-
mente não tem. E por que tal unidade ocorre? Por causa da singularidade dos
elementos que compõem a narrativa do conto: o conto é o que tem unidade de
tempo, de lugar e de ação. O conto é o que lida com um só elemento: persona-
gem, acontecimento, emoção e situação. (GOTLIB, 2000, p. 59)

Adotamos essa concepção até os dias de hoje para distinguir o conto das demais narrativas
literárias, como a novela e o romance.
Por último, temos a contribuição de Júlio Cortazar, um contista extraordinário, que também
pensou o fazer literário e sua recepção, e lançou a ideia do conto excepcional, assim definido por
ele no estudo “Alguns aspectos do conto”, publicado na obra Valise de Cronópio (1974):
O excepcional reside numa qualidade parecida à do ímã: um bom tema atrai
todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor,
uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até ideias que lhe
flutuavam virtualmente na memória e na sensibilidade: um bom tema é como
um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas
vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos
revela sua existência. (GOTLIB, 2000, p. 66)

Sobressai, portanto, acima de todas as qualidades de extensão, unidade e efeito, a marca da


literatura, da estética do texto, da capacidade de criação do excepcional, que transcende a escrita
cotidiana e se torna insubstituível.

11.1.5 Na novela
A ação na novela é essencialmente plural, porque é constituída por células narrativas e de
ação, apresentadas em um entrelaçamento e cada uma com independência de temporalidade, isto
é, cada uma tem unidade de tempo, com começo, meio e fim. Essa independência não significa
que cada célula, espécie de conto, não faça parte de uma unidade maior, para a qual contribui com
uma parcela de sentido. Se aproximarmos esta noção caleidoscópica da novela das narrativas das
telenovelas brasileiras, podemos relacionar essas células ao núcleo de personagens/acontecimen-
tos existente na teledramaturgia: o núcleo burguês, o núcleo cômico, o núcleo dos operários etc.
Os acontecimentos são primordiais: eles propiciam a dinâmica da narrativa, além de justificar as
reviravoltas do enredo.
Embora múltiplo, o espaço também se torna convergente, o que por vezes leva a alguns
encontros artificiais de personagens vindos de diferentes regiões do país ou da cidade e, coinciden-
temente, encontrando-se na mesma praça, no mesmo restaurante, na mesma casa. A variedade e o
grande número dos espaços acompanham a quantidade de personagens e ações – e, muitas vezes,
esse espaço toma formas exclusivamente fictícias, com a função de servir de cenário para a preocu-
pação central da novela: os acontecimentos.
A estrutura da narrativa: conto e novela 165

Entre os processos de narração, sobressaem os diálogos (acompanhando o grande número


de personagens) e a narração, cujo papel é o de orientar o leitor intensamente, resumindo, ex-
plicando, qualificando a ação. Para tanto, a linguagem se caracteriza por um registro quase oral,
de entendimento rápido pelo leitor.
As personagens são numerosas para atender a todos os enredos e células da ação, com um
grande número de coadjuvantes, muitas vezes existindo apenas para dar aos espaços uma atmosfe-
ra social. São personagens pouco densos, até pelo grande número e a impossibilidade de o narrador
deter-se demoradamente para construir uma figura com nuances e contradições. Como resultado,
os processos de aglutinação das diferentes
células dramáticas [...] podem ser de dois tipos: 1) ou as personagens mantêm-
-se ao longo da novela, servindo de elo [...] entre as suas várias unidades e de
elemento catalisador para as peripécias que se sucedem; 2) ou vão sendo subs-
tituídas a cada episódio: a passagem de uma célula a outra dá-se pelo acaso ou
pela morte do protagonista da fração dramática, e pela consequente substituição
por uma personagem anteriormente colocada em segundo plano. (MOISÉS,
1997, p. 367)

A ação das novelas tem um ritmo rápido, de vez que se apoia no enredo, sem descrições,
dissertações e episódios de lentidão. Na verdade, cada célula acaba repetindo a mesma estrutura:

início → clímax → epílogo

Desse modo, “a carga dramática da novela vai avultando paulatinamente, à proporção que
os episódios se sucedem” (MOISÉS, 1997, p. 367). O final da novela desvenda o enigma ou os mis-
térios dispersos ao longo da narrativa, como se verifica na novela policial. A existência desses mis-
térios cria no leitor a expectativa por conhecer o desenlace, que nem sempre é definitivo, porque
a novela pode admitir sua continuação em outros livros, como ocorre, por exemplo, com os textos
em série: Harry Potter, de J. K. Rowling, as novelas policiais de George Simenon (com o detetive
Maigret) ou de Agatha Christie, com Miss Marple ou Hercule Poirot.
o epílogo da novela articula-se estreitamente à sua macroestrutura: evoluindo
numa linha horizontal, a novela exemplifica à perfeição o que poderia se chamar
de obra “fechada”, na medida em que as células dramáticas parecem bastar-se a si
próprias, não estabelecem com a vida senão vínculos indiretos. [...] Todavia, mos-
tra-se estruturalmente “aberta”: colocado o ponto final na sucessão de episódios,
outros poderiam ser acrescentados, bastando chamar à cena acontecimentos pos-
teriores, ou personagens secundárias, cuja existência não se completara no correr
da fabulação. (MOISÉS, 1997, p. 368)

Verifica-se, portanto, que a novela é uma forma de intensa atração para leitores em busca
de narrativas ágeis, de média extensão e com uma estrutura narrativa tradicional, que possa ser
imediatamente apreendida.
166 Teoria da literatura II

11.2 Tipologia da narrativa curta


Há grande semelhança entre os tipos de narrativa constituintes do conto e da novela.
Luzia de Maria Reis destaca entre os tipos de conto “os contos de humor, os contos fantásti-
cos, os contos de mistério e terror, os contos realistas, os contos psicológicos, os contos sombrios,
os contos cômicos, os contos religiosos, os contos minimalistas, os contos estruturados de acordo
com as técnicas da narrativa” (REIS, 1987, p. 10). Este último é o conto erudito. Além desses, temos
também os contos maravilhosos (com protagonistas equivalentes aos seres humanos ou com pro-
tagonistas em formato de animais ou plantas, ou objetos).
A distinção entre eles se faz pelo efeito produzido no leitor (humor, mistério, terror, som-
brios), pela atmosfera dominante na narrativa (cômico, fantástico, realista, religioso) ou pelo trata-
mento dado às personagens (psicológico) ou pelos aspectos formais (minimalista, erudito).
Massaud Moisés também enumera tipos de novela: “novela de cavalaria, novela sentimental
e bucólica, novela picaresca, novela histórica, novela policial e de mistério” (MOISÉS, 1997, p. 368).
Como na classificação dos contos, as novelas também se apresentam a partir do efeito (mistério,
sentimental), pela atmosfera (bucólica), pelo personagem protagonista (picaresca), pelo assunto
(de cavalaria, policial, histórica).
Porém, essas classificações não são suficientes para dar conta das narrativas múltiplas que
apareceram ao longo da história. Por exemplo, contos experimentais, contos metaficcionais1, con-
tos didáticos e contos filosóficos. De qualquer modo, toda classificação é sempre passível de omis-
sões e de critérios ou denominações tão fechadas, alheias à criatividade do fazer literário.

Ampliando seus conhecimentos

Teses sobre o conto


(PIGLIA, 2001)

Num de seus cadernos de notas Tchecov registrou este episódio: “Um homem, em Monte
Carlo, vai ao cassino, ganha um milhão, volta para casa, se suicida.” A forma clássica do conto
está condensada no núcleo dessa narração futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se) a intriga se estabelece como um
paradoxo. A anedota tende a desvincular a história do jogo e a história do suicídio. Essa exci-
são é a chave para definir o caráter duplo da forma do conto.
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro plano a história um (o relato do jogo) e
constrói em segredo a história dois (o relato do suicídio). A arte do contista consiste em saber
cifrar a história dois nos interstícios da história um. Uma história visível esconde uma história
secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.

1 Metaficcional diz respeito à narrativa que chama a atenção do leitor para a própria ficcionalidade, isto é, que tem
como assunto o próprio fazer narrativo , a própria feitura do texto.
A estrutura da narrativa: conto e novela 167

O efeito de surpresa se produz quando o final da história secreta aparece na superfície.


Cada uma das duas histórias é contada de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias sig-
nifica trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade. Os mesmos acontecimentos entram
simultaneamente em duas lógicas narrativas antagônicas. Os elementos essenciais de um conto
têm dupla função e são utilizados de maneira diferente em cada uma das duas histórias.
Os pontos de cruzamento são a base da construção.
No início de La muerte y la brújula, um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está ali
porque é imprescindível na armação da história secreta. Como fazer com que um gângster
como Red Scharlach fique a par das complexas tradições judias e seja capaz de armar a Lönrot
uma cilada mística e filosófica? Borges lhe consegue esse livro para que se instrua. Ao mesmo
tempo usa a história um para dissimular essa função: o livro parece estar ali por contiguidade
com o assassinato de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica. “Um desses lojistas
que descobriram que qualquer homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma
edição popular da Historia secreta de los hasidim. O que é supérfluo numa história, é básico na
outra. O livro do lojista é um exemplo (como o volume das Mil e uma noites em “El sur”; como
a cicatriz em “La forma de la espada”) da matéria ambígua que faz funcionar a microscópica
máquina narrativa que é um conto.
O conto é uma narrativa que encerra uma história secreta. Não se trata de um sentido oculto
que depende da interpretação: o enigma não é senão uma história que se conta de modo enig-
mático. A estratégia da narrativa está posta a serviço dessa narrativa cifrada. Como contar
uma história enquanto se está contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas técnicos
do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes.
A versão moderna do conto que vem de Tchecov, Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o
Joyce de Dublinenses, abandona o final surpreendente e a estrutura fechada; trabalha a tensão
entre as duas histórias sem nunca resolvê-las. A história secreta conta-se de um modo cada vez
mais elusivo. O conto clássico à Poe contava uma história anunciando que havia outra; o conto
moderno conta duas histórias como se fossem uma só.
A teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese desse processo de transformação:
o mais importante nunca se conta. A história secreta se constrói com o não dito, com o suben-
tendido e a alusão.
O grande rio dos dois corações, um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal ponto
a história dois (os efeitos da guerra em Nick Adams) que o conto parece a descrição trivial
de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza toda sua perícia na narração hermética da
história secreta. Usa com tal maestria a arte da elipse que consegue com que se note a ausên-
cia da outra história.
O que Hemingway faria com o episódio de Tchecov? Narrar com detalhes precisos a partida e
o ambiente onde se desenrola o jogo, a técnica utilizada pelo jogador para apostar e o tipo de
bebida que toma. Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar, mas escrever o conto como
se o leitor já soubesse disso.
Kafka conta com clareza e simplicidade a história secreta e narra sigilosamente a história visí-
vel até transformá-la em algo enigmático e obscuro. Essa inversão funda o kafkiano.
168 Teoria da literatura II

A história do suicídio no argumento de Tchecov seria narrada por Kafka em primeiro plano
e com toda naturalidade. O terrível estaria centrado na partida, narrada de um modo elíptico
e ameaçador.
Para Borges, a história um é um gênero e a história dois sempre a mesma. Para atenuar ou dis-
simular a monotonia essencial dessa história secreta, Borges recorre às variantes narrativas que
os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de Tchecov, seria contada por Borges segundo os estereótipos
(levemente parodiados) de uma tradição ou de um gênero. Uma partida num armazém, na
planície entrerriana, contada por um velho soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario
Ascasubi. A narração do suicídio seria uma história construída com a duplicidade e a conden-
sação da vida de um homem numa cena ou ato único que define seu destino.
A variante fundamental que Borges introduziu na história do conto consistiu em fazer da
construção cifrada da história dois o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói perversamente uma trama secreta com os
materiais de uma história visível. Em La muerte y la brújula, a história dois é uma construção
deliberada de Scharlach. O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em El muerto; com Nolan
em Tema del traidor y del héroe; com Emma Zunz.
Borges (como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento os problemas da forma
de narrar.
O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente algo que estava oculto. Reproduz a
busca sempre renovada de uma experiência única que nos permita ver, sob a superfície opaca
da vida, uma verdade secreta. “A visão instantânea que nos faz descobrir o desconhecido, não
numa longínqua terra incógnita, mas no próprio coração do imediato”, dizia Rimbaud.
Essa iluminação profana se transformou na forma do conto.

Atividades
1. Procure lembrar de um conto infantil que você tenha ouvido na infância. Escreva-o ou copie
o texto de um livro ou da internet. Aplique as características do conto tradicional e comente
o resultado.

2. Escreva um resumo de seu dia. Escolha um fato que lhe tenha chamado a atenção. Conte
esse fato com personagens, em terceira pessoa, em um texto de, no máximo, 30 linhas. Ana-
lise o texto tendo por base as qualidades de um conto.

3. Leia as principais as notícias do dia. Descubra nelas um assunto que possa ser tratado em
forma literária. Primeiro, faça um resumo do assunto escolhido e, depois, escreva essa histó-
ria respeitando as normas do conto.
12
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio

A análise da crônica e do ensaio sob a perspectiva da teoria da literatura produz algumas


questões relevantes para a compreensão de novos subgêneros, nascidos de anseios e necessidades
da contemporaneidade. Em especial, a literatura que se realiza na fronteira com outros gêneros
textuais, frutos do discurso jornalístico e do discurso científico. Para esclarecer melhor essas
fronteiras e apresentar no que elas se aproximam do texto literário, vamos dividir este capítulo
em três partes:
• crônica, tempo e realidade;
• a importância literária da crônica; e
• o ensaio como literatura.

12.1 Crônica, tempo e realidade


A etimologia do termo crônica está em Cronos, o deus grego que simbolizava o tempo e que
os romanos denominaram Saturno. Até o momento, essa relação continua válida, porque a crônica
esteve e está efetivamente relacionada com uma perspectiva temporal, seja de escolha do assunto,
seja no tratamento formal desse mesmo assunto.
A história informa sobre as primeiras crônicas, nascidas na Inglaterra e denominadas Anglo-
Saxon chronicle, iniciadas em 891 e escritas até 1154, em um conjunto de nove manuscritos que
mostram a história do estabelecimento do povo anglo-saxão nas Ilhas Britânicas. O último des-
ses manuscritos se intitula Manuscrito de Peterborough. A mesma intenção de registro da história
de um povo ocorreu em Portugal: em 1418, a mando do rei D. Duarte, Fernão Lopes iniciou as
Crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Nesses escritos, “a matéria não ficcional transfor-
ma-se em ficção, se aceite o princípio de que a História – pela interpretação, pelo subjetivismo, pela
comunicação, pela ideologia – é também uma ficcionalização do real” (SILVEIRA, 1992, p. 27).
A Fernão Lopes sucedem-se outros cronistas, de que Pero Vaz de Caminha, no final do sécu-
lo XV, é mais um exemplo ao registrar a viagem marítima até a Índia, passando pelo Brasil. Durante
os séculos XVI e XVII, tivemos como cronistas vários viajantes que, ao passarem pelo Brasil, histo-
riaram de um modo simultaneamente descritivo e opinativo, muitas vezes de intensa subjetividade,
o que foram encontrando em termos de regiões, flora, fauna, tipos humanos, costumes, rituais
religiosos e muito mais. A França e a Espanha também tiveram seus cronistas históricos. É impor-
tante salientar que no Renascimento (século XVI) “o termo crônica começou a ser substituído por
história” (MOISÉS, 1997, p. 132).
Nesses primeiros momentos da crônica, é possível verificar a característica de apego ao tem-
po (seja o presente, seja o passado), mas esse ainda não é o período que interessa para o conceito e a
prática de crônica que incorpora mais intensamente modos literários de escrita e de função textual.
170 Teoria da literatura II

É somente em 1800 que o escritor francês Jean Louis Geoffroy começa a publicar, no Journal
des Débats, textos em feuilletons (os folhetins) que em nada se assemelhavam aos registros histó-
ricos medievais. “Seus imitadores entre nós [no Brasil], aparecidos depois de 1836, traduziam o
termo para folhetim, mas já para a derradeira quadra do século a palavra crônica principiou seu
curso normal” (MOISÉS, 1997, p. 132). Antonio Candido (1992, p. 15), em estudo clássico sobre o
assunto, intitulado A vida ao rés do chão, acrescenta:
No Brasil ela tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários as-
pectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a
originalidade com que aqui se desenvolveu. Antes de ser crônica propriamente
dita foi folhetim, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia – polí-
ticas, sociais, artísticas, literárias. Assim eram os da seção “Ao correr da pena”,
título significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para
o Correio Mercantil, de 1854 a 1855. Aos poucos o folhetim foi encurtando e
ganhando certa gratuidade, certo ar de quem está escrevendo à toa, sem dar
muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom ligeiro e encolheu de
tamanho, até chegar ao que é hoje.

Nessa rápida passagem por uma história de pouco mais de dois séculos dessa forma literá-
ria, é importante salientar o fato de que, no Brasil, a evolução e a difusão da crônica constituíram
fator distintivo dentro da história da literatura. Em 1971, Gerald Moser escrevia um estudo para
uma publicação feita na Carolina do Sul, nos Estados Unidos, intitulado The cronica: a new genre
in Brazilian Literature? (A crônica: um novo gênero na literatura brasileira?) Até hoje, os dicionários
de termos literários em língua inglesa não incluem o verbete crônica, mas ao longo de todos esses
anos cresceu uma vasta produção de crônicas e um grande número de estudos sobre essa forma li-
terária. Arrigucci (1987, p. 53) também deu destaque ao desenvolvimento dessa forma de literatura
no Brasil: “Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar.”
Não são poucos e nem insignificantes do ponto de vista literário os autores de crônicas no
Brasil: José de Alencar, Machado de Assis, Francisco Otaviano, Olavo Bilac, João do Rio, Humberto
de Campos, Rachel de Queiroz, Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino, Carlos
Drummond de Andrade, Henrique Pongetti, Nelson Rodrigues, Alcione Araújo, Otto Lara
Rezende, Carlos Heitor Cony, Affonso Romano de Sant’Anna, Luis Fernando Verissimo, Arnaldo
Jabor, Ferreira Gullar, Marcelo Coelho e muitos mais.
Antonio Candido (1992, p. 16) considera, acerca da crônica, que “o seu grande prestígio
atual é um bom sintoma do processo da busca de oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício
e aproximação com o que há de mais natural no modo de ser do nosso tempo”. Assim, a partir do
século XIX ela se distanciou das raízes históricas e se aproximou do jornalismo.
Agora se trata simplesmente de um relato ou comentário de fatos corriqueiros
do dia a dia, dos fait divers, fatos da atualidade que alimentam o noticiário dos
jornais desde que estes se tornaram instrumentos de informação de grande tira-
gem, no século [XIX]. A crônica virou uma seção do jornal ou da revista. Para
que se possa compreendê-la adequadamente, em seu modo de ser e significação,
deve ser pensada, sem dúvida, em relação com a imprensa, a que sempre esteve
vinculada sua produção. Mas seria injusto reduzi-la a um apêndice do jornal,
pelo menos no Brasil, onde dependeu na origem da influência europeia, alcan-
çando logo, porém, um desenvolvimento próprio extremamente significativo.
(ARRIGUCCI, 1987, p. 53)
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 171

Em um primeiro momento, ela tomou assuntos emprestados dos jornalistas e assim os cro-
nistas se transformaram em comentaristas responsáveis pela crônica policial, a social, a de teatro,
a de economia e outras. Mas a dose de subjetividade, de humor e – posteriormente – a busca da
expressão literária foram direcionando cada vez mais o gênero para um caminho próprio: “foi
largando cada vez mais a intenção de informar e comentar (deixada a outros tipos de jornalismo)
para ficar, sobretudo, com a de divertir. A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissa-
da e (fato decisivo) se afastou da lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia
adentro” (CANDIDO, 1992, p. 15). Esse comentário nos leva a indagar quais seriam as caracterís-
ticas das narrativas literárias que permeiam a crônica, e que ultrapassam os modos de escrita do
texto jornalístico.

12.2 A importância literária da crônica


De modo claro e incisivo, Davi Arrigucci posiciona a crônica entre os textos literários por
suas qualidades estéticas e pela aproximação com outras formas de escrita literária:
Teve aqui um florescimento de fato surpreendente como forma peculiar,
com dimensão estética e relativa autonomia a ponto de constituir um gênero
propriamente literário, muito próximo de certas modalidades da épica e às ve-
zes também da lírica, mas com uma história específica e bastante expressiva no
conjunto da produção literária brasileira. (ARRIGUCCI, 1987, p. 53)

Em estudo fundamental intitulado A crônica (1987), Jorge de Sá realça entre os componen-


tes literários desse subgênero a aparente simplicidade, sem perda de qualidade textual, o caráter
sintético e urgente de sua escrita, o coloquialismo elaborado, o dialogismo, o “toque de lirismo
reflexivo” e a complexidade das dores e alegrias humanas (SÁ, 1987, p. 10-11).
A simplicidade da crônica é exigida pela definição do seu destinatário – o leitor de jornal –,
pelo ambiente de escrita em que se inseriu na origem (a imprensa periódica) e pela exiguidade de
espaço para seu desenvolvimento (obrigando a síntese), mas não dispensa nem ignora os recursos
de toda a linguagem literária: a escrita figurativa, o ritmo adequado e significativo das frases, a cap-
tação do instante e de sua densidade, a construção de personagens que, mesmo sem espaço para
aprofundamento, são delineadas com exatidão para de imediato dizerem de sua natureza ao leitor.
O vizinho mandou pintar de cor-de-rosa sua casa, e de azul-claro o beiral e os
marcos e folhas das janelas. Esta providência dá margem a algumas divagações
que aqui se transmitem ao leitor, nosso companheiro.
O ato do vizinho é muito mais importante do que lhe aparece a ele. Afirma um
sentimento de confiança na civilização mediterrânea, e o propósito de contri-
buir para que todos nós, residentes ou transeuntes, recuperemos um pouco da
beatitude perdida. (ANDRADE, 1970. p. 32)

Ao cronista-poeta Carlos Drummond de Andrade, o ato de pintar a casa, descrito de manei-


ra sucinta, serve de motivo para dissertar sobre urbanismo, urbanidade e civilização.
O caráter de urgência e de síntese da crônica tem função paradoxal. A urgência se relacio-
na com a duração do jornal ou revista – muitas vezes válido por 24 horas – e no cronista a per-
cepção imediata da importância do assunto, retirado da vida cotidiana, confere à crônica maior
172 Teoria da literatura II

transitoriedade temporal do que há no conto por exemplo. Mas a síntese traz aproximação maior
com a poesia, que também é um gênero breve, e obriga o escritor a concentrar os recursos estéticos
expressivos em uma ambiência textual reduzida.
Em janeiro de 1958, Rubem Braga escreveu no mesmo pequeno espaço que ocupava na
página do jornal, um romance policial carioca em capítulos brevíssimos, compostos mais pela enu-
meração de frases, sem conetivos e nem coesão sintática, mas que, em forma de flashes e imagens
concentradas, permitem ao leitor seguir a ordem dos acontecimentos e as divergências surgidas do
caso narrado:
Crime ou suicídio? – A polícia acredita em latrocínio – Muller teria sido major
das Tropas de Assalto Nazistas – Impressões digitais apontarão o criminoso –
Dentro de 24 horas a Polícia deve ter em mãos o assassino do alemão, declara o
Delegado do 2.º Distrito – Moços da juventude transviada frequentavam o apar-
tamento da 5 de Julho – Teria prometido uma lambreta para o Natal – Mulher
ruiva, a chave do mistério! – Ainda envolto em mistério o crime do Edifício
Tudinha – Procura-se: moço louro de bigode curto – Avolumam-se as suspeitas
sobre Aristóbulo – Incomunicável a doméstica Severina – “Batida” no Morro da
Catacumba. (BRAGA, 1999, p. 76-77)

As frases que dão andamento sincopado à narrativa assemelham-se a manchetes de jornal.


Em um primeiro momento sem saber de que crime se trata, por meio da leitura dessas frases agru-
padas o leitor pode ir reconstruindo partes do crime ocorrido. A narrativa se organiza, portanto,
no jornal e dele acolhe a linguagem das manchetes, e também reproduz da imprensa a linguagem
sensacionalista, além da síntese, da abreviação do tempo narrativo.
O coloquialismo elaborado tem a ver com o caráter da dicção aparentemente desestruturada,
que se assemelha a uma conversa cúmplice entre narrador e leitor, sem transformar a linguagem
em simples reprodução da fala. A leveza e a imediata compreensão do texto passam pelo exercí-
cio de pesquisa de uma expressão jocosa, ambígua, poética e reflexiva que aproxima a crônica da
qualidade dos outros gêneros literários. Vejamos exemplo em uma crônica de Fernando Sabino,
intitulada Ocasiões de ficar calado:

– Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo?
– Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?
Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda:
– Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...
E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha:
– Terrível, não acha?
Mas ele não pensa assim:
– Não acho não: sou o atual marido dela.
(SABINO, 1983, p. 57)
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 173

Como se pode observar, o diálogo mantém a estrutura linguística da oralidade (“não sabia?”,
“me desculpe”, “não acha?”), mas também apresenta vocabulário e expressões mais comuns à escri-
ta, como “impávido”, “e não tendo mais o que dizer”, “sou o atual marido”.
E segundo Jorge de Sá, o dialogismo1 reside no equilíbrio entre
o coloquial e o literário, permitindo que o lado espontâneo e sensível perma-
neça como o elemento provocador de outras visões do tema e subtemas que
estão sendo tratados numa determinada crônica, tal como acontece em nossas
conversas diárias e em nossas reflexões, quando também conversamos com um
interlocutor que nada mais é do que o nosso outro lado, nossa outra metade,
sempre numa determinada circunstância. (SÁ, 1987, p. 11)

É frequente o narrador da crônica dirigir-se diretamente ao leitor, enunciando-o no próprio


corpo do texto literário, e com ele mantendo um diálogo aberto:
Ainda agora recebo duas cartas de leitores que se viram estimulados a também
escrever crônicas. A crônica aprece o gênero mais fácil, e realmente é, para os
que não ousam ou não merecem tentar uma experiência literária mais duradou-
ra. (O verdadeiro escritor em geral busca nela apenas um meio de vida que se
oferece, mas consciente muitas vezes de estar trocando em miúdos as exigências
de sua vocação.) Um dos missivistas chegou mesmo a dizer que interrompeu o
curso de medicina para “tentar as letras”. Pelo que escreveu, estou certo de que
daria um excelente médico.
Não direi isto a ele, em verdade não lhe direi nada: se for mesmo um escritor,
continuará escrevendo, a despeito do que eu lhe disser ou deixar de dizer. Se não
for, não há de ser conselho meu que o salvará do equívoco.
E é uma pena, porque o Brasil anda precisando tanto de médicos. (SABINO,
1983, p. 140)

Alter ego de Fernando Sabino (o autor do trecho acima), o narrador mistura a voz das cartas
recebidas (que chega a citar como em tentar as letras) com a avaliação crítica realizada pelo escritor,
que se põe a confissões a respeito de conceitos de literatura e vocação literária. A ironia de seus
comentários dirige-se a dois destinatários: o leitor que lhe escreveu a carta (que é uma segunda voz
no texto) e qualquer leitor, inclusive nós, que não temos presença física no texto, em termos de pa-
lavras que nos incluam, mas estamos presentes o tempo todo e com quem mais continuadamente
o texto dialoga.
Ainda segundo Jorge de Sá, o toque de lirismo reflexivo diz respeito à extensão poética e de
pensamento que o narrador faz, motivado pela observação da realidade externa. Qualquer imagem,
acontecimento ou percepção dá origem a elaborada reflexão sobre a condição humana. Vejamos
mais um trecho de Drummond:
Esse dia que ainda se reserva aos Finados é quase desnecessário em seu simbo-
lismo, porque os moços não reparam nele, e os maduros e os velhos têm já for-
mado o seu sentimento da morte e dos mortos. Esta é uma conquista do tempo,
e prescinde de comemorações para se consolidar. Basta o exercício de viver, para

1 Dialogismo é termo cunhado pelo linguista e teórico Mikhail Bakhtin na obra A poética de Dostoievski e se refere à
presença de várias vozes dentro da narrativa, criando uma pluralidade de perspectivas, de ideias, de discursos. Opõe-se
ao discurso monológico, em que a voz do narrador abafa e subordina todas as outras possíveis manifestações de per-
sonagens com a imposição do ponto de vista exclusivo do narrador.
174 Teoria da literatura II

nos desprender capciosamente da vida, ou, pelo menos, para entrelaçá-la de tal
jeito com a morte, que passamos a sentir essa última como forma daquela, e for-
ma talvez mais apurada, à maneira de uma gravura que só se completa depois de
provas sucessivas. [...] Posso informar pessoalmente que a imbricação da ideia
de morte na ideia de vida não é arrasadora para o homem, senão que constitui
uma das sínteses morais a que o tempo nos conduz, com parte da experiência
individual. (ANDRADE, 1970, p. 76)

Assim como Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de Andrade reali-
zava perfeitamente essa simbiose entre narração e poesia, observação e filosofia de vida, matéria e
simbologia. Talvez seja essa característica que autoriza e justifica a inclusão da crônica como sub-
gênero entre as demais narrativas literárias.
A complexidade das dores e alegrias humanas é apresentada ao leitor de modo sintético,
mas nem por isso menos significativo, emocionante e verdadeiro. Por essa qualidade, a crônica se
confirma como um texto de densidade, escapando da vala comum dos escritos pseudoliterários,
tal como Fernando Sabino caracterizou os escritos do quase-escritor-ex-estudante-de-medicina.
Ao comentar uma conversa com amiga de tempos remotos, ocorrida em uma casa em que
habitualmente os amigos se encontravam em dia de domingo, Rubem Braga assim conclui, de for-
ma magistral, sua crônica:
Penso em tudo que vivi nestes anos – tanta coisa tão intensa que veio e foi –
e penso na casa, no dono da casa, na família, na gente que passou por aqui.
A casa não é mais a mesma, a casa não é mais casa, é um grande navio que vai
singrando o tempo, que vai embarcando e desembarcando gente no porto de
cada domingo: dentro em pouco outra menina de seis anos, filha dessa menina,
estará sentada na mesma sala, sob a mesma lâmpada. E com seus dois olhinhos
pretos verá o mesmo senhor calado, de cara triste – o mesmo senhor que numa
noite de domingo, sem o saber, se despedirá para sempre e irá para o remoto
país onde encontrará outras sombras queridas ou indiferentes que aqui viveram
também suas noites de domingo – e não voltaram mais. (BRAGA, 1998, p. 268)

O desenvolvimento e a expansão da crônica permitem que hoje possamos encontrar diferen-


tes textos e incluí-los em categorias, sempre instáveis, mas que visualizam melhor a riqueza desse
subgênero. Vamos propor uma classificação delas.

12.2.1 Quanto ao tipo de discurso


Este item aborda a crônica do ponto de vista textual e em sua elaboração escrita, atendendo
aos quatro tipos textuais: a descrição, a narração, o diálogo e a dissertação. Convém advertir que nem
sempre encontramos crônicas em sua forma puramente descritiva, narrativa, dialogada ou dissertati-
va: o que existe é um predomínio bastante intenso de algum desses tipos textuais.

12.2.1.1 Crônica descritiva


Ao tomar um determinado objeto, acontecimento ou pessoa como assunto da crônica, o nar-
rador se detém a caracterizá-los em detalhes, evitando moralizar ou filosofar a partir deles. É um
tipo raro, porque impede a manifestação da subjetividade e da perspectiva pessoal, tão importante
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 175

para a crônica. Um dos exemplos para essa categoria pode ser a crônica Quarto de moça, de Rubem
Braga (1999, p. 145-146).

12.2.1.2 Crônica narrativa


O texto organiza-se como uma narrativa, isto é, com começo, meio e fim, personagens,
diálogos e ação. Pode narrar fatos verídicos ou ficcionais. Neste segundo caso, aproxima-se do
conto. Não apresenta foco narrativo exclusivo: pode ser narrada tanto em primeira como em
terceira. Exemplificando este tipo, podemos citar a crônica A vinda do filho, de Fernando Sabino
(1983, p. 129-131).

12.2.1.3 Crônica dissertativa


Desenvolve ideias e pontos de vista do cronista por meio de argumentos lógicos e racionais.
Por expor e defender valores axiológicos do escritor-cronista, pode estar redigida em primeira pes-
soa, tanto do singular como do plural. Raramente admite um ponto de vista neutro, como o de ter-
ceira pessoa do singular. Aproxima-se do ensaio, dele diferenciando-se por ser sintética e pessoal.
Pode adotar um tratamento sério, como também paródico ou irônico. Tem como assunto
tanto questões de foro íntimo quanto questões sociais ou políticas.
Como exemplo, tem-se a crônica Feriados, de Carlos Drummond de Andrade (ANDRADE,
1970, p. 65).

12.2.1.4 Crônica dialogada


Exemplo mais raro de crônica, mas existente: é aquela crônica em que o narrador desaparece
do tecido textual e deixa apenas o diálogo entre personagens contar a história. Ou então fica redu-
zido a intervenções mínimas de distribuição das falas, sem expressar sua posição avaliadora ou crí-
tica. Luis Fernando Verissimo é um cronista hábil na construção desse tipo de texto e dele podemos
citar a crônica Lixo, que se encontra em O Melhor das Comédias da Vida Privada (VERISSIMO,
2004, p. 87-90).

12.2.1.5 Crônicas mistas


Trata-se de um tipo híbrido de texto, em que estão presentes características tanto da
crônica narrativa quanto da descritiva, da dissertativa e da dialogada. É o tipo mais frequente.
Uma das mais belas crônicas de Rubem Braga, Recado ao senhor 903, é um bom exemplo deste
tipo (BRAGA, 1998, p. 178-179).

12.2.2 Quanto ao tratamento do assunto


Qualquer dos tipos textuais (narração, descrição, diálogo e dissertação) pode receber dife-
rentes tratamentos de estilo e concepção de texto.

12.2.2.1 Crônica humorística


Quando relata o cotidiano da vida particular ou da sociedade, a crônica não per-
de a oportunidade de mostrá-lo também sob o ângulo da comicidade e do humor. Por vezes,
176 Teoria da literatura II

a crítica social (seja dos caracteres, seja dos costumes) aparece no tom irônico da representação e
da análise, ou na paródia a discursos sociais estabelecidos. De grande importância e numerosas,
as crônicas humorísticas brasileiras obtêm bastante sucesso junto ao público leitor. As crônicas do
livro O Melhor das Comédias da Vida Privada (2004), de Luis Fernando Verissimo, enquadram-se
nessa classificação.

12.2.2.2 Crônica lírica ou poética


O posicionamento subjetivo do narrador e, por vezes, do próprio escritor é a marca mais
distintiva da crônica. Essa subjetividade se manifesta no modo como a escrita revela os seus sen-
timentos, valores e modo de interpretar a vida. Muito frequentemente, a crônica lírica se constrói
com uma linguagem figurada, em que a metáfora e a exploração da sonoridade da frase são cons-
tantes. Há também um tom e uma atmosfera nostálgicos e sentimentais que tornam as narrativas
sensibilizadoras para o leitor.
Os motivos para esse tipo de crônica estão na natureza, no ser humano (seja homem, mu-
lher, velho ou criança), na presença da vida e da morte, do amor e da literatura. E o seu texto pode
ser em prosa ou em verso.
Entre muitos exemplos, citamos Sobre o amor, desamor..., de Rubem Braga (1998, p. 211).

12.2.2.3 Crônica reflexiva


Este tipo particular de crônica apresenta exclusivamente, sob formato dissertativo, reflexões
de ordem filosófica sobre a natureza e a constituição da vida humana. Pode ter origem em algum
fato particular, mas logo sobrepõe a ele as ideias e conjecturas a respeito de assuntos que podem
chegar a um enfoque metafísico. Carlos Drummond de Andrade escreveu muitas crônicas com
esse tratamento – por exemplo, Diante do carnaval, do livro Fala, Amendoeira (ANDRADE, 1970,
p. 68-70).

12.2.2.4 Crônica jornalística


Atualmente, há uma tendência literária no texto jornalístico. Sem perder de vista assuntos
e funções do texto tipicamente jornalísticas (informação, opinião, relato), o estilo das reportagens
e comentários ganha uma linguagem figurada, jogos de palavras e recursos narrativos típicos do
texto literário. A crônica pode ganhar essa roupagem literária mesmo tratando de assuntos como
a política, o esporte, a cultura (teatro, cinema, literatura, artes plásticas, folclore etc.), os crimes,
a vida social. É o chamado jornalismo literário (cf. LIMA, 2004).

12.3 O ensaio como literatura


O ensaio é um subgênero polêmico em sua posição dentro da literatura. Em princípio, trata-
-se de um texto científico por sua organização lógico-argumentativa, voltada para a comprovação
de uma ideia, princípio ou concepção. Apresenta, porém, a possibilidade de um posicionamento
particular, subjetivo – portanto, parcial –, que deixa suficiente abertura para o desenvolvimen-
to de um estilo de escrita particular que, algumas vezes, tangencia à literariedade. Quando, por
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 177

acréscimo, o ensaio se debruça sobre o texto literário, há uma contaminação intertextual. Na crítica
literária contemporânea, há uma forte e nítida tendência a construir ensaios com objetivos que
escapam à ciência e tocam na literatura. Massaud Moisés afirma (1997, p. 177): “o ensaísta é por
definição o bom escritor”. Ressalte-se que “bom escritor” não significa necessariamente um litera-
to, mas aproximam-se muito as duas ideias – a de ensaio e a de literatura.
Em 1931, apareceu a primeira edição de um dos mais importantes livros de ensaios li-
terários do século XX: O Castelo de Axel, do crítico norte-americano Edmund Wilson. Nesse
volume, ele trata de autores do simbolismo e da literatura de sua contemporaneidade (1870 a
1930), como Gertrud Stein, W. B. T. Yeats, Marcel Proust, T. S. Eliot e James Joyce, e também da
grande discussão entre Rimbaud e a Villiers d’Isle-Adam. Entre as numerosas informações sobre
o assunto e a argumentação cerrada em prol da modernidade, há momentos em que Edmund
Wilson (2004, p. 157) apresenta clara aderência ao escritor estudado e se posiciona pessoalmente
em um estilo forte e narrativo:
Proust destruiu ferozmente a hierarquia social que acabara de expor. Seus va-
lores, diz-nos ele, são uma impostura: afetando pretender honras e distinções,
aceita tudo quanto seja vulgar e mesquinho; seu orgulho não é em nada mais
nobre que o instinto, que compartilha com a encarregada da toilette e a irmã do
ascensorista, de cuspir nas pessoas que por acaso estejam em posição desfavorá-
vel. E diga o que quiser, em contrário, o mundo social, ele ou ignora ou procura
aniquilar os raros impulsos em prol da justiça e da beleza que tornam os homens
admiráveis. Parece estranho que tantos críticos tenham considerado o romance
de Proust “amoral”: a verdade é que ele estava preocupado com a moralidade, a
ponto de chegar a recorrer ao melodrama. O próprio Proust (por parte da mãe)
era meio judeu, e a despeito de todo o seu refinamento parisiense, ainda subsis-
tia nele muita capacidade de apocalíptica indignação moral do clássico profeta
judeu. Aquele tom de lamentação e queixa, que ressoa por todo o livro e que, na
verdade o autor quase nunca abandona, salvo para trocá-lo pelo humor vívido
das cenas sociais, estas mesmas acrimoniosas em suas implicações, é, realmen-
te, muito pouco francês, aparentando-se antes à literatura judaica. (WILSON,
2004, p. 157)

No exemplo, é possível perceber a profundidade do trabalho crítico-ensaístico do autor pela


estreita relação estabelecida entre os vários componentes formais e ideológicos de Proust, ao que se
soma a defesa do espírito moralista de sua literatura. A clareza do estilo e a força da argumentação
permitem ao leitor inferir a adesão do crítico às ideias do romancista.
Outro ensaísta que apresenta uma diferente percepção do fenômeno estético-literário e se-
manifesta em primeira pessoa, reforçando o caráter subjetivo de seu ensaio intitulado A Arte da
Poesia (1912-1918), é Ezra Pound. Continuamente, ele usa os verbos em primeira pessoa, expres-
sando com veemência seus pontos de vista, além de usar os ensaios como forma de defesa ante
seus adversários nas diversas polêmicas que viveu ao longo da vida. E também recorre a narrativas
e suposições para argumentar a respeito das épocas e escritores que analisa. Vejamos um exemplo
de seu estilo ensaístico:
Quando um homem de nosso tempo é extravagante a ponto de desejar fami-
liarizar-se, tanto emocional como intelectualmente, com uma época tão fora
de moda como o século XII, poderá tentar consegui-lo de diversas maneiras.
178 Teoria da literatura II

Poderá ler as próprias canções nos livros antigos – em pergaminhos cobertos de


iluminuras – e ficará sabendo o que significavam os trovadores para a gente do
século imediatamente posterior. Aprenderá alguma coisa sobre seus costumes
observando as iluminuras das maiúsculas. Ou poderá tentar ouvir as palavras
acompanhadas da música porque, graças a Jean Beck e outros, hoje é possível
ouvir as velhas melodias. Elas talvez tenham um sabor algo oriental, e é pro-
vável que o espírito do sufismo não esteja de todo ausente de seu conteúdo.
Ou então um homem pode percorrer as estradas das colinas e dos rios, de
Limoges a Charente até a Dordogne e Narbonne, e aprender alguma coisa, ou
um pouco mais que isso, a respeito do que [o campo] significou para os cantores
ambulantes. (POUND, 1976, p. 104)

É possível verificar no fragmento acima o quanto a crônica sobre os trovadores medievais é


trazida para o presente, como ela abre possibilidades de interpretação, como o escritor se apresenta
no texto de forma irônica e avaliadora. Como a sua principal argumentação não é sobre uma rea-
lidade, mas sobre uma suposição, uma ficção.
Ao estudar a linguagem em ensaio homônimo de 1956, Octavio Paz manifesta uma tendência
para construir aforismos, comparações e imagens para tratar dos assuntos de seus ensaios em geral:
Todos sabemos até que ponto é difícil roçar as margens da distração. Essa expe-
riência se confronta com as tendências de nossa civilização, que propõe como
arquétipos humanos o abstraído, o retraído e até o contraído. Um homem que
se distrai nega o mundo moderno. Ao fazê-lo, joga o todo pelo todo. [...] O dis-
traído se pergunta: o que há do outro lado da vigília e da razão? A distração quer
dizer: atração pelo reverso deste mundo. A vontade não desaparece; simples-
mente muda de direção – em lugar de servir aos poderes analíticos, os impede
de que confisquem, para seus próprios fins a energia psíquica. A pobreza de
nosso vocabulário psicológico e filosófico nesta matéria contrasta com a riqueza
das expressões e imagens poéticas. Recordemos a “música calada” de San Juan
ou o “vazio é plenitude” de Lao-tsé. Os estados passivos não são nada mais que
experiências do silêncio e o vazio nada mais é que momentos positivos e plenos:
do núcleo do ser jorra uma profusão de imagens. (PAZ, 1982, p. 46)

Nesse fragmento, percebe-se como o ensaio não trata apenas da definição do que seja um
homem distraído ou a distração, pois une questões de ordem filosófica (“a atração pelo reverso
deste mundo”), axiomas (“um homem que se distrai nega o mundo moderno”), jogos de palavras e
sonoridades (“abstraído, retraído, contraído” e “joga o todo pelo todo”). Assim, o discurso teórico
se ornamenta com recursos da linguagem literária.
Ao comentar os desafios da tecnologia no início do século XX e escolher para representá-los
a máquina de escrever, a crítica brasileira Flora Süssekind constrói em seu ensaio Cinematógrafo
das Letras, de 1987, alguns momentos de ludismo verbal, sem perda da precisão de conceitos e
exemplos, muito próximos da literatura:
Convite temerário à desautomatização que explica, em parte, o fato de, por um
lado, as melhores realizações no campo da prosa de ficção de 1920 (o Miramar,
Pathé Baby, o Serafim e Macunaíma) não terem propriamente constituído siste-
ma na literatura brasileira posterior, e, por outro, de se terem glosado, da poesia,
à diluição, apenas o tom coloquial e os cacoetes humorísticos, e não os seus
irônicos assassinatos de artefatos puros e subjetividades tirânicas. O proble-
ma difícil mesmo para restauradores mutantes e capazes de assumir trajes ora
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 179

memorialistas, ora neonaturalistas, ora espiritualistas: “After the first death, there
is no other.” (Dylan Thomas.) O que parece lançar grande parte da produção lite-
rária pós-1920 num projeto de ocultamento sistemático dessa morte. Uma espécie
de projeto em abismo: “Depois da primeira morte”, multiplicam-se as tentativas
de ressurreição. Ou melhor: de esconder cadáveres, fingir que jamais houve morte
alguma. E desaparecer com os muitos registros de óbito espalhados habilmente na
ficção e na poesia do século XX. (SÜSSEKIND, 1987, p. 150-151)

A metáfora criada sobre a morte como similar ao desaparecimento de autores, obras e con-
quistas importantes obtidas nos momentos heroicos do Modernismo de 1922 é mantida em sua
rede semântica (cadáveres, óbito, primeira morte). Além do mais, a citação de verso da composição
poética de Dylan Thomas enfatiza melhor a posição contemporânea da crítica e reforça, em outra
linguagem, a idéia central desse fragmento.
Vimos, assim, como o ensaio de crítica literária pode obter efeitos de significação e de beleza
que transcendem a linguagem puramente científica desse subgênero da prosa. No entanto, se com-
parado à crônica, o ensaio se situa em posição menos confortável no âmbito da literatura, porque a
maior parte da produção ensaística, mesmo em crítica literária, mantém um tratamento linguístico
mais semelhante ao de textos não literários.

Ampliando seus conhecimentos

A literatura na poltrona
(CASTELO, 2007, p. 48-52)

Ao crítico cabe não só o papel de marcador – daquele que gruda com firmeza a seu objeto e
dele não se afasta, como um zagueiro – mas também o de investigador, isto é, daquele que des-
venda os elementos que, ocultos ou disfarçados, sustentam a estrutura de uma ficção, ou de um
poema. O escritor argentino Ricardo Piglia já mostrou que a função do crítico se assemelha
à do agente de polícia, do investigador profissional que, partindo de pistas muito esmaecidas,
e só aos poucos, tenta (em vão, porque isso nunca se consegue) reconstruir as bases de um
relato, detendo-se não nas luzes emitidas em sua superfície, mas nas vigas obscuras que o
sustentam. [...]
Não existem duas maneiras iguais de observar uma mesma obra de arte, ou de ler um mesmo
livro. Um livro puro, fechado, intocável, não existe. Livros só ganham prestígio e popularidade,
ou sofrem o peso do desprezo e do esquecimento quando atravessados por leituras. É na mente
de cada leitor – depois de passar pelo filtro da interpretação pessoal, que é sempre única – que
um livro passa a existir. Todo leitor, mesmo o mais discreto e ingênuo dos leitores, é, a seu
modo, um crítico. Uma vez que toda leitura, mesmo a mais comovida e apaixonada, mesmo a
mais amadora, é sempre crítica também.
Além disso, todo crítico, mesmo o mais científico, isto é, o mais rigoroso, o que mais se atém a
princípios, perspectivas teóricas e dogmas, qualquer crítico trabalha sempre, e também, com a
imaginação. Ela é uma espécie de cola que jamais se desgruda das palavras e que, na verdade,
as constitui. Emoções, memórias pessoais, associações inconscientes, impulsos, as forças do
gosto agem, em segredo, mesmo na mais grave das críticas literárias. Quando lê um livro, um
180 Teoria da literatura II

crítico traça em sua mente, ainda que de modo sutil e inconsciente, e mesmo contra a sua
vontade, um retrato do autor e de sua obra. Ele, para usar a palavra correta, os imagina. Uma
torrente de fantasias a respeito da obra e de seu autor age na mente de qualquer leitor, mesmo
o mais distraído, ou despreparado, ou, ao contrário, o mais prudente deles. E estas fantasias
são tão poderosas quanto a formação teórica, o arsenal de leituras, ou o preparo intelectual.
Por isso, e esta constatação causa repugnância a alguns praticantes da crítica, a crítica literária
é, ela também, e sempre, um gênero literário – um gênero criativo, por mais neutra que seja
a estratégia de um crítico, por mais científica que ela pretenda ser. Quando lê um livro, o crí-
tico lê, um pouco, a si mesmo, como se estivesse a se mirar em um espelho de papel. Como
já observou outro escritor argentino, Juan José Saer, se nos emocionamos com um escritor, é
porque nele encontramos algo de nós mesmos. É porque nos vemos nele. Além disso, mesmo
em um crítico frio e cerebral, a leitura de um livro deve provocar determinada perturbação ou,
como diz Saer, “uma espécie de terremoto”. “Se lemos Homero e gostamos de Homero, e nos
emocionamos com Homero, é porque ele nos faz encontrar em nós mesmos os sentimentos e
emoções que evoca”, diz. Não existe leitura neutra: críticos não são máquinas.
Há, em consequência, algo de pessoal e inalienável na leitura que um crítico (que qualquer lei-
tor) faz de um livro. Positiva ou negativa, não importa, essa leitura pessoal enriquece, sempre,
a obra, emprestando-lhe novas perspectivas e alargando, assim, suas zonas de interferência.
Vem expandir seus horizontes e, mesmo, o raio de interpretações que aquele livro (qualquer
livro) lança sobre o mundo. O crítico literário, como Maria Bethânia ou Elis Regina, é um
intérprete que, ao ler um livro e escrever sobre ele, lhe dá, em certa medida, sua própria feição.
Em outras palavras, é um sujeito que o lê como se fosse seu. E é nesse como se que está o cora-
ção da leitura. Mas é também ali que se guarda todo o perigo. Quando a ética é descartada, no
vazio que deixa se instalam os interesses de grupo, as pequenas vinganças, ou as provocações
que, atuando como se lhe alargassem a perspectiva, na verdade a encurtam. A ausência de ética
age, justamente, ali onde a ética devia estar. [...]
Em consequência, porque guarda aspectos vizinhos aos da criação literária, a crítica deve ser
exercida com a máxima delicadeza, o que não significa dizer falta de contundência ou vaci-
lação intelectual. Não quer dizer condescendência, ou ausência de rigor. Rigor e delicadeza
não se excluem; ao contrário, se alimentam. Toda crítica é subjetiva – ela ergue um certo
olhar, uma contemplação particular, que envolve a obra como um manto, tanto para realçá-la
(como fazem as saias das bailarinas). Como para ocultá-la (como fazem os véus das devotas).
Se é um olhar pessoal, ela não é, não pode ser, científica, ainda que exercida dentro de certos
rigores e a partir de certos aparatos críticos e certas tradições. Se não é científica, ela é, pode-
-se dizer, artística – uma vez que a inventividade, ainda que em registro diverso do que ocorre
na criação literária, nela atua com tanta força quanto em uma obra de ficção. A crítica literária
é uma obra literária de caráter nobre; obra que se desdobra sobre outra obra. Justaposição
que alarga seus horizontes, mas também os deixa mais vulneráveis e, em consequência, mais
vulneráveis à manipulação.
A estrutura da narrativa: crônica e ensaio 181

Atividades
1. Compare os fragmentos de crônica reproduzidos a seguir. Classifique-os dentro dos tipos
estu­dados e explique os efeitos semânticos e literários que eles podem conter.

Meninas
Primeiro dia de aula. A menina escreveu seu nome completo na primeira página
do caderno escolar, depois seu endereço, depois o nome da cidade, depois o
nome do estado, depois “Brasil”, “América do Sul”, “Terra”, “Sistema Solar”, “Via
Láctea” e “Universo”. A Rute, sentada ao seu lado, olhou, viu o que ela tinha
escrito e disse: “Faltou o CEP.”
Quase brigaram.
Ela era apaixonada pelo Marcos, o Marcos não lhe dava bola. Um dia, no
recreio, uma bola chutada pelo Marcos bateu na sua coxa.
Ele abanou de longe, gritou “Desculpa”, depois foi difícil tomar banho de chu-
veiro sem molhar a coxa e apagar a marca da bola. Ela teve que ficar com a perna
dobrada para fora do boxe, a mãe não entendeu o chão todo molhado, mas o
que é que mãe entende de paixão?
(VERISSIMO, Luis Fernando. O Melhor das Comédias da Vida Privada. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2004, p. 91.)

A viajante
Com franqueza, não me animo a dizer que você não vá.
Eu, que sempre andei no rumo de minhas venetas, e tantas vezes troquei o sos-
sego de uma casa pelo assanhamento triste dos ventos da vagabundagem, eu não
direi que fique.
Em minhas andanças, eu quase nunca soube se estava fugindo de alguma coisa
ou caçando outra. Você talvez esteja fugindo de si mesma, e a si mesma caçando;
nesta brincadeira boba passamos todos, os inquietos, a maior parte da vida –
e às vezes reparamos que é ela que se vai, está sempre indo, e nós (às vezes)
estamos apenas quietos, vazios, parados, ficando. Assim estou eu. E não é sem
melancolia que me preparo para ver você sumir na curva do rio – você que não
chegou a entrar na minha vida, que não pisou na minha barranca, mas, por um
instante, deu um movimento mais alegre à corrente, mais brilho às espumas, e
mais doçura ao murmúrio das águas. Foi um belo momento, que resultou triste,
mas passou.
(BRAGA, Rubem. 200 Crônicas Escolhidas as Melhores de Rubem Braga. 13. ed.
Rio de Janeiro: Record, 1998, p. 159.)
2. Pesquise, em revistas, jornais ou periódicos diversos, exemplos de crônicas diferentes.
Estude nelas os elementos que têm valor literário. Depois, escreva um comentário sobre
os resultados encontrados.

3. Pesquise na internet um ensaio científico sobre crônica e verifique se nele existem carac-
terísticas literárias. Aponte quais são e que efeitos provocam na leitura e na argumentação
do texto.
Gabarito

1 Natureza do fenômeno ­literário


1.

• Há necessidade de reconhecer as características do discurso literário, tratadas na teoria.


• Essa discussão propicia a avaliação de diferentes interpretações, além de exigir, para a
consolidação dos dados, a reflexão, a síntese, a argumentação.
• A escrita com as conclusões renova a importância do conhecimento da linguagem e da
fidelidade à análise realizada.

2.

• Há necessidade de discutir os conceitos do discurso literário, tratadas na teoria, após


a comparação.
• A pesquisa propicia a avaliação de diferentes interpretações do termo, além de exigir,
para a consolidação dos dados, a reflexão e a síntese.
• A representação em gráfico ou quadro desenvolve mais a habilidade de síntese.
• A escrita com as conclusões renova a importância do conhecimento da linguagem e da
atenção às nuances da conceituação.

3.

• A pesquisa implica a interação e a oportunidade de conhecer outros modos de entender


o assunto.
• A pesquisa propicia a avaliação de diferentes interpretações do termo, além de exigir para
a consolidação dos dados, a reflexão e a síntese.
• A comparação exigirá o reforço dos conceitos descobertos.
• A escrita com as conclusões renova a importância do conhecimento da linguagem e da
atenção às nuances da conceituação.

2 Gêneros literários: conceituação histórica


1.

• Os filmes são organizados por categorias: drama, comédia, terror ou suspense, documen-
tários, desenho animado ou infantil, arte, clássicos. Essa classificação obedece a determi-
nados critérios, que podem ser: provocam o riso (comédia); filmes antigos (clássicos);
falam de amor ou de conflitos diversos (dramas).
184 Teoria da literatura II

• A escolha, por exemplo, da categoria drama pode levar à constatação de que diferen-
tes subtipos estão nela contidos: sentimentais, de guerra, de suspense, policiais, conflitos
sociais.

2.

• A escolha, por exemplo, pode ser de gibis do Mauricio de Sousa (Mônica, Cascão etc.),
pois muitos adultos conhecem esse tipo de revista. Caso não haja condições de adquirir
ou ter essas revistas, você pode fazer o mesmo trabalho com tiras de jornal. Tiras são his-
torietas de dois ou mais quadrinhos.
• Trabalhar com mais de duas histórias.
• Aplicar a elas os critérios de gênero lírico, narrativo ou dramático. Por exemplo, verificar
se há personagens que falam; se há narrador; se há linguagem com ornamentos (metáfo-
ras, muitos adjetivos, jogos sonoros); se há história com começo, meio e fim; se há conflito
de ideias, de sentimentos, de posições ideológicas; se há desenvolvimento temporal (em
dias, semanas, meses, anos).
• O objetivo é, nessa etapa, apenas localizar, descrever essas descobertas.
• Trabalhar com histórias ilustradas facilita o entendimento pelo auxílio dado pela imagem.
3.

• A comparação é um exercício complexo. Precisa, em primeiro lugar, averiguar os textos


separadamente.
• O riso na canção pode surgir na ambiguidade de uma palavra, numa frase, numa imagem
visual engraçada.
• O riso na narrativa (filme ou romance) pode estar numa cena completa, com persona-
gens, acontecimentos, palavras, cenário. Pode vir no formato de uma piada ou anedota.
• No filme, o riso é mais imediato por causa da interpretação dos atores e das imagens. No
romance, descobre-se o riso mais lentamente.
• Por vezes, o reconhecimento da cena ou da imagem ou da palavra engraçada depende da
interpretação do leitor: uns podem achar engraçada, outros não.

3 Gêneros literários: o lírico


1.

• Selecione três letras de canções populares brasileiras. Pode ser canções antigas, pagode,
sertanejo, rock etc.
• Transcreva as letras das canções em folhas separadas.
• Aplique nos textos das canções as características da poesia lírica vistas no texto teórico.
• Aponte a subjetividade, o ritmo, a sonoridade, as imagens, o trabalho com a criação de
efeitos semânticos na linguagem, a cosmovisão individual.
Gabarito 185

• É possível escolher canções em que há presença do narrativo (personagens, acontecimen-


tos, tempo passado), e nesse caso o texto será mais épico do que lírico.
• Por exemplo:

Ivete Sangalo – Quando a chuva passar

Pra que falar,


Se você não quer me ouvir,
Fugir agora não resolve nada.

Mais não vou chorar,


Se você quis é partir,
Às vezes a distância ajuda,
E essa tempestade um dia vai acabar!

Só quero te lembrar de quando a gente andava nas estrelas,


Nas horas lindas que passamos juntos,
A gente só queria amar e amar,
E hoje eu tenho certeza: a nossa história não termina agora!
Pois essa tempestade um dia vai acabar!

Quando a chuva passar,


Quando o tempo abrir,
Abra a janela e veja: eu sou o sol.
Eu sou céu e mar,
Sou céu e fim,
E o meu amor é imensidão.

Compositor: Ramon Cruz

É possível observar, nessa letra, a perspectiva da primeira pessoa (eu lírico); o conflito é um
caso de amor e abandono; as comparações são feitas com elementos da natureza que sem-
pre julgamos belos (estrelas, céu, sol, mar); o exagero da perspectiva amorosa (“meu amor
é imensidão), as lembranças idealizadas do passado (“a gente andava nas estrelas”, “horas
lindas” etc.) são alguns dos elementos líricos da canção.

2.

• Você deverá observar: a forma fixa do soneto (12 versos: duas quadras + dois tercetos), o
tema amoroso, o texto em primeira pessoa (eu lírico), as imagens (amigo, amante, bicho),
a sensualidade (corpo, desejo, amante), a visão idealizada daquele que ama (amar “mais
do que pude”, “e te amo além), a súplica amorosa e outros elementos.
• Com base nesses elementos e na teoria, verifique o que de lírico existe. Não é um texto
dramático ou narrativo (é um diálogo com interlocutor ausente, não tem personagens que
falem, somente o eu lírico).
186 Teoria da literatura II

3.

• Verifique nos sonetos não apenas o aspecto formal (14 versos), mas, sobretudo, o tema
do amor e da passagem do tempo, comum aos dois poetas. O tema do amor é tratado de
forma mais filosófica em Shakespeare; no poeta brasileiro, toma uma tonalidade mais
sensual.
• O soneto de Shakespeare está num bloco só (12 versos), finalizando numa estrofe de dois
versos (dístico). Em Vinicius de Moraes, o soneto tem a forma italiana (14 versos em
quatro estrofes: 4,4).

4 Gêneros literários: o épico ou narrativo


1.

• Após assistir ao filme, selecione cenas em que é possível identificar características épicas
no comportamento do personagem Aquiles. Por exemplo, suas atitudes guerreiras, sua
compaixão pelo pai do troiano morto, Heitor.
• Para confirmar essas características heroicas, você pode pesquisar sobre a Guerra de Troia
na internet e ler partes da Ilíada, de Homero. Consulte o site: <www.greciantiga.org>. Acesso
em: 11 jul. 2018.
• Compare os relatos desses três textos. O resultado apontará maior idealização no filme,
mais poesia na narrativa de Homero (figuras de linguagem, jogos sonoros, mais detalhes
na construção do herói) e, no texto histórico, maior precisão e visão contraditória a res-
peito da participação de Aquiles.

2.

• Selecione, por exemplo, um personagem como Peri, do romance O Guarani, de José de


Alencar; ou Policarpo Quaresma, do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima
Barreto; ou Ulisses, da Odisseia, de Homero; ou Macunaíma, da obra homônima de Mário
de Andrade.
• Compare as semelhanças e diferenças entre eles e verifique quais são os feitos consi-
derados heroicos. Verá se são heróis estereotipados ou se fogem aos modelos clássicos
das narrativas e poderá comparar o universo ideológico em que vivem: o século XIX, a
Antiguidade, a sociedade rural brasileira etc.
• Você poderá criar uma tabela com o resultado de sua análise. Os itens dessa tabela podem
ser: características físicas, intelectuais, de personalidade, ações heroicas, ações não heroicas,
relação com a sociedade, relações amorosas, como termina ao final da narrativa etc.

3.

• Você deve comparar as estrofes e obter , entre outros, os seguintes resultados:


• a edificação da cidade;
• em um predomina o homem individual, no outro o povo;
Gabarito 187

• a referência ao surgimento (origem) da cidade e do Novo Reino;


• trata do poeta: o cantor, o engenho e a arte;
• valores elevados: a pátria, a fé, o poder;
• os heróis superam todos os obstáculos;
• a presença da guerra;
• Escreva um texto com as conclusões obtidas.

5 Gêneros literários: o dramático


1. Nessa questão, você deve:

• ver na afirmação as funções que podem estar no escrito – experiências, estados e proces-
sos psíquicos;
• relacionar essas funções com a necessidade de representação no palco – entoação, gestos,
tempos de fala, movimentos no palco;
• concluir pela necessidade de unir o texto escrito e o texto encenado.
2. Como resultado da pesquisa, você:

• verá que a catarse tem função de ensinamento e de moralização;


• vai encontrar em Bertolt Brecht a mesma função de ensinamento e de objetivo social do
teatro, que é o de conscientizar os espectadores;
• vai verificar que as peças que tratam de problemas sociais e de denúncia de injustiças
sociais têm a mesma função;
• deve concluir que a catarse, em sua natureza mais profunda, permanece em todo o teatro
que tenha como finalidade instruir e conscientizar os espectadores.

3.

• Verifique que as rubricas direcionam bastante bem a ação dos atores e as expressões fa-
ciais e gestuais: declamando, guardando a carta, olha para a rua, pela janela.
• Há muitos provérbios antigos ou ainda presentes em nossa cultura. Esses provérbios justi-
ficam o título da peça: “Antes assim que amortalhado”, “como Deus é servido”, “quem não
deve não teme” e outros.
• O conflito se dá entre a rejeição de Inês e a insistência em casar da parte de Isaías.

6 Gêneros literários: o ensaístico


1. Selecione dois textos, tomando como critério o fato de ser um texto sobre literatura, de ana-
lisar uma obra e emitir um julgamento sobre ela.

Compare os textos, verificando repetições (estilo sucinto e direto, importância da obra, com-
prometimento ético/humano da obra) e diferenças (o regionalismo nordestino e a universa-
lização, a literatura e a vida, a defesa do artista).
188 Teoria da literatura II

Você pode encontrar tanto textos objetivos quanto textos subjetivos. O que vai ser importan-
te é a qualidade da linguagem, do ponto de vista da literatura, não da gramática.
Assim, por exemplo, é possível comparar os trechos encontrados com um trecho do primei-
ro capítulo de Vidas secas, romance de Graciliano Ramos, conforme abaixo.

Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.


Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.
Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante na
areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procura-
vam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos
pelados da catinga rala. Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o
filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano som-
brio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão,
a espingarda da pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia
iam atrás.

A descrição tem os elementos mínimos para a compreensão, não se demora em descrever,


apresenta retirantes, sua miséria, a vida difícil.

2. Análise: a comparação da literatura de compromisso com escritores brasileiros, a quem no-


mina, de quem cita obras, e analisa situações e personagens, as comparações que faz entre
crítica e literatura.

A subjetividade em frases e trechos como: “sem excluir a pornografia que devia ser aceita
como recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes seria impensável: os
comunistas daquela época e da nossa não riem nem sorriem.”, “Lembremos”, “A celebridade
traz nela mesma o vírus traiçoeiro da efemeridade”.
A qualidade do texto pode ser medida pela clareza da exposição das ideias, da justeza dos
conceitos, da avaliação que se faz dos escritores. Todas elas estão no texto citado.

3. O texto já apresenta a hesitação: a crítica que analisa o objeto, a crítica que se quer
igualmente arte.

Você pode tratar da mudança de paradigma da atualidade: três gêneros clássicos e mais as
mudanças históricas.
Também pode dizer que, para também ser arte, a crítica precisa ter o tratamento de lingua-
gem como a poesia e o romance, por exemplo.
Busque exemplos em livros e na internet para fundamentar sua resposta.

7 A linguagem poética: ­poema x poesia


1. Você pode obter os quadros citados no site: <https://commons.wikimedia.org/wiki/Leonardo_
da_Vinci>. Acesso em: 11 jul. 2018. Além das imagens, pode fazer uma pesquisa sobre a arte do
retrato e a pintura religiosa, frequentes na arte da época. Vai encontrar o simbolismo religioso e
Gabarito 189

a presença dos mecenas (homens ricos que sustentavam financeiramente os artistas e recebiam
em troca quadros com suas imagens ou de seus familiares).

Nos quadros, você pode observar os procedimentos de cores, linhas e formas que constroem
o sentido dos quadros (o claro e o escuro, a perspectiva central que valoriza a imagem,
a busca de realismo das figuras pintadas, a expressão enigmática do primeiro quadro e a
religiosidade do segundo quadro) e também os elementos pintados no plano de fundo dos
quadros – como eles são variados, com detalhes da natureza, têm um horizonte longínquo,
não são apenas decorativos, pois falam das paisagens italianas.

2. As fotos registram momentos, paisagens e pessoas que representaram algum valor afetivo,
interesse ou necessidade de registro do fotógrafo. Interprete essas fotos buscando a relação
entre elas, verificando as analogias entre as imagens.

Você dará a suas fotos uma interpretação baseada em seus conhecimentos pessoais, procu-
rando ver nelas algum valor simbólico, alguma interpretação mais profunda: as ideias de
amor, de fé, de amizade, de alegria etc.
É importante ir além do registro puramente histórico (“esta foi tirada quando...”) para enten-
dê-las, agora que o tempo passou, como estados de alma.

3. Expressões como a vida é um rio, o caminho do saber, minha princesa, ele é um palhaço apro-
ximam sentidos diferentes e produzem imagens ampliadas e simbólicas, graças à existência
das metáforas.

Você pode reunir os exemplos que tem na memória, pesquisar com pessoas ou buscar em
livros, sempre estabelecendo sentidos e procurando relações no terreno da metáfora.
O objetivo é descobrir que os recursos poéticos são parte integrante da vida humana.

8 A linguagem poética: o ritmo e a rima


1.

• A canção de Chico Buarque está apoiada na maioria de rimas esdrúxulas e oxítonas.


• As rimas esdrúxulas são intercambiáveis e é possível obter mais de uma letra com a
troca delas. Desse modo, você deve apontar e valorizar esse jogo de substituição como
traço inovador.
• A sonoridade dos versos é profundamente motivada. Há exemplos de assonância e alite-
ração. Você deve apontar e dizer que efeitos são obtidos.
• Também deve levantar os esquemas rítmicos ER dos versos e verificar a regularidade ou
não deles, explicando-os.

2.

• Pesquise em sua comunidade o repertório cultural, realizando um trabalho de integração


sociocultural e histórica.
190 Teoria da literatura II

• Levante o máximo de textos que puder e analise apenas uma parcela deles – digamos, 30
a 50% do material coletado.
• Analise os textos. Você irá descobrir a permanência dos mesmos procedimentos de ritmo
(versos de cinco e sete sílabas) e textos rimados em diferentes esquemas.
• Se puder, deve registrar inclusive o modo como são cantados ou declamados.
• Desse modo, concluirá pela absoluta convencionalidade dos textos e poderá comparar
com a cultura escrita, mais erudita.
• Depois, você pode organizar uma exposição ou trocar informações pela internet com
seus colegas.

3.

• Você deve tratar do tipo de rimas e de ritmos, verso a verso, dos efeitos sonoros de ali-
teração e assonância, do formato do soneto e concluir pelo atendimento às normas de
metrificação e de rima.
• Verá que o que se diz sobre a língua portuguesa (“esplendor e sepultura”) se pratica no texto.
• Pode comentar, expandindo a questão de ritmo e rima, o valor e o uso da língua nos
dias atuais.

9 A estrutura da narrativa: ­romance


1. Você pode dividir a questão em partes: a independência dos demais gêneros (lírico e dramá-
tico), a elasticidade (os vários tipos de romance) e a capacidade de renovação (“prodigiosa”).

Para cada uma dessas situações, deve argumentar e exemplificar por escrito.
• A independência: escrito em prosa, sem extensão fixa, sem personagens fixos, sem modo
de narrar preestabelecido. Mas pode incorporar cenas dialogadas (gênero dramático) e
poesia (reprodução de poemas e estilo poético).
• A elasticidade: deve comprovar com os exemplos dos 15 tipos descritos no texto teórico
deste capítulo.
• A capacidade de renovação: com base nos 15 tipos, é possível argumentar o quanto o
romance foi se transformando e também imaginar que ele não vai interromper sua vida
cultural tão cedo.

2. No fragmento 1, o relato é objetivo e contido. No fragmento 2, observa-se a presença do hu-


mor, dos sentimentos, da narração em primeira pessoa, das minúcias da viagem e da reação
dos demais personagens/passageiros. Além disso, a narração em primeira pessoa do singular
torna o relato mais pessoal e subjetivo.

Observe, no fragmento 1, as palavras “segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas”,
a data, a precisão dos nomes e fatos.
Gabarito 191

Observe, no fragmento 2, “aconteceu algo de que me orgulho”, “não se importando com


hierarquia ou odores”, “o capitão Cabral” “com toda força gritei” e outros.

3. Observe na telenovela as personagens atuando em função de sentimentos (ódio, amor, vin-


gança, ambição), a constância de vários pares de amantes/namorados/esposos, as mensa-
gens moralistas, os encontros e desencontros numerosos e inesperados, a tensão dos confli-
tos sempre tendo a sua solução adiada.

Verifique no capítulo como o telespectador é atendido pelo dramaturgo e pelos atores: a


linguagem primária dos diálogos, as expressões visuais óbvias, a rapidez das cenas, a inten-
sidade das emoções e outros aspectos.

10 A estrutura da narrativa: elementos do romance


1. O cenário no primeiro exemplo é predominantemente social. O segundo também trata ao
final de sociedade, mas a predominância está na descrição do rio e das consequências da
enchente.

No primeiro exemplo, há a construção mais intensa da ambientação: personagens descritas,


movimento, costumes. No segundo exemplo, há referências geográficas mais numerosas:
nomes, fatos naturais, flora e termos regionais.
O tempo é importante nos dois exemplos: determina, no primeiro exemplo, a proximidade
do inverno; no segundo, o pleno inverno. São dados importantes para a narrativa global.
Os tipos humanos são mais intensos e mais bem descritos no primeiro fragmento de texto.
A descrição tem mais característica de abertura para a ação que virá. Dá para comparar a
forma diferente de tratar as pessoas que buscam água nos pequenos poços e reservatórios.

2. Nesse caso, você deve observar a descrição que une o físico ao moral.

Deve verificar como a personagem se qualifica pela relação de inveja e desgosto com os outros.
É possível denominar esse personagem de personagem-tipo.
Você também pode associar as características físicas (“seco e nervoso”) com as condições
psíquicas da personagem.
Observe também a crítica social: os medíocres é que vencem na vida.

4. A citação pede que você relacione a ação (enredo) à personagem como agente do fazer. Isto
é, tem validade pelo que faz e não por qualidades morais, por exemplo.

Você deve pensar o quadro das funções e o papel da personagem (Souriau, Propp, Hamon).
Atente-se ao fato de que o narrador é também uma personagem, isto é, está representada por
um fazer que é a escrita.
Você pode exemplificar com base no repertório de leituras de romances e narrativas que traz
de sua experiência pessoal de leitor.
192 Teoria da literatura II

11 A estrutura da narrativa: conto e novela


1. Você deverá observar a unidade de ação, as personagens imaginárias, o tom moralista da
história, a importância do protagonista, o esquema actancial, as esferas de ação.

Em Branca de Neve e os Sete Anões, por exemplo, deve verificar:


• unidade de ação – é a mesma intriga, não há intrigas paralelas ou secundárias;
• personagens imaginárias – a madrasta bruxa, os anões na mina, a menina que ressuscita;
• tom moralista da história – a maldade e a inveja não compensam;
• importância do protagonista – toda a história é contada acompanhando Branca de Neve,
ela é a heroína porque sofre e se salva;
• esquema actancial com esferas de ação: adjuvantes (os anões), oponentes (a madrasta, o
pai da princesa); objeto desejado (a felicidade, representada pelo Príncipe).

2. Você deverá escrever em poucas linhas, portanto, um texto sintético.

Não pode perder tempo com descrições, reflexões, comparações longas.


O texto não pode ser em primeira pessoa, para não ficar confessional: você deverá olhar por
outro ângulo o fato ocorrido.
Busque o efeito de conquistar a atenção dos leitores.
Relacione as partes do texto entre si.
Você pode escolher qualquer tipo de narrativa: suspense, sentimental, de humor etc.

3. De início, você precisa relatar a notícia escolhida em linguagem não literária.

Depois, deve transformá-la em texto literário: acentuar o conflito, apresentar as persona-


gens, construir diálogos, escolher o narrador em primeira ou terceira pessoa, ser sintético e
manter a unidade da ação.

12 A estrutura da narrativa: crônica e ensaio


1. A primeira é uma crônica narrativa e humorística; a segunda, narrativa, poética e reflexiva.

A primeira tem efeitos de humor que nascem da gradação de lugares até chegar ao uni-
verso, contraposta à fala de Rute, que descobre uma falha pequena ante a imensidão do
endereço. Depois o trocadilho dar bola e levar uma bolada. Mais o efeito de humor do
banho pela metade.
A segunda é evocativa (o passado interpretado pelo viés da explicação filosófica) e tem a
alegoria do rio (várias metáforas: “barranca”, “águas”, “espumas”, “corrente”). Tem também,
como característica do cronista, a presença da vida e da morte como reflexão.
Gabarito 193

2. Jornais e revistas trazem crônicas sempre. Seja em formato de crônicas políticas ou sociais,
seja econômicas ou culturais. Alguns têm até crônicas literárias.

Você deve reconhecer os diferentes tipos e argumentar a respeito da classificação encontra-


da. Por exemplo, em uma crônica sobre um acontecimento recente: observe os argumentos,
a lógica do texto, a opinião do cronista etc.

3. Por exemplo, o estudo sobre “A crônica na ordem do dia: relações entre realidade, história,
atualidade e ficção em O quase de Luis Fernando Veríssimo”, de Elaine Aparecida Lima, dis-
ponível em: <www.urutagua.uem.br//007/07lima.htm>. Acesso em: 3 jul. 2018.

Nele é possível observar a adesão da crítica literária ao seu objeto de estudo: os adjetivos
com que se refere às crônicas de Machado de Assis, a beleza literária que vê em seus textos, a
importância histórica destes, levam à a avaliação positiva do final do texto.
O resultado que pode surgir em outros ensaios pesquisados pode ser a comprovação de que
são mais científicos e menos poéticos.
Você deve comprovar com citações do texto tudo o que afirmar a respeito dele.
Referências

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Andrade. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1971.
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O estudo teórico da literatura implica conhecer os modelos que orientaram,
explicita ou implicitamente, a criação de textos literários ao longo da história.
Tendo isso em vista, este livro investiga os gêneros literários esclarecendo a
origem de termos e conceitos, os textos mais importantes de cada um deles e

TEORIA DA LITERATURA II
de seus subgêneros, bem como a classificação e as diferenças e semelhanças
estabelecidas à medida que eles foram se espelhando na sociedade e nas di-
ferentes culturas.
São apresentadas as características relativas aos conteúdos, à identidade e à
contextualização histórica dos três gêneros literários clássicos: o lírico, o épico
e o dramático, mostrando que tal categorização não é definitiva e permanen-
te. Nesse sentido, esta obra também expande o sentido da leitura para outras
expressões artísticas, criando relações entre a literatura e as diferentes artes
humanas, como a música, o teatro, as artes plásticas e o cinema.
As informações aqui trazidas favorecem a reflexão e o desejo de conhecer
melhor as obras que constituem uma biblioteca mínima para o entendimento
desse universo, indo além dos limites da orientação do profissional docente,
capacitando o leitor a se comunicar com qualidade com os textos literários e
também com o mundo que eles representam e presentificam. Afinal, a teoria
aliada à prática cotidiana constitui o fundamento da aprendizagem, do conhe-
cimento e do refinamento da sensibilidade e do senso estético.

Marta Morais da Costa


Fundação Biblioteca Nacional
Código Logístico
ISBN 978-85-387-6461-8

9 788538 764618 57922

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