Você está na página 1de 7

E ducação e experiência estética: “valor” social ou sentido público?

Público, privado e social

E ducação e experiência estética:


“valor” social ou sentido público?
Público, privado e social

J osé Sérgio F. de Carvalho

N
uma passagem dedicada à justificativa da conseqüências da diluição da fronteira entre as
presença da arte no currículo escolar, os esferas pública e privada – e a conseqüente as-
Parâmetros Curriculares Nacionais afir- censão da “esfera social” – na significação da arte
mam, em tom conclusivo, que “as práti- na formação educacional. Comecemos, pois,
cas artísticas e estéticas em música, artes pelo exame das noções de “público” e “privado”.
visuais, dança, teatro, [...] podem favorecer a Tornou-se lugar comum apontar a existência do
formação da identidade e de uma nova cidada- que parece ser uma crescente tensão entre esses
nia do jovem que se educa na escola de Ensino dois âmbitos, suas fronteiras e características.
Médio, fecundando a consciência de uma socie- Há discursos que, em tom apreensivo, denun-
dade multicultural, onde ele confronte seus va- ciam um declínio ou mesmo o eventual desa-
lores, crenças e competências culturais no mun- parecimento da esfera pública como resultado
do no qual está inserido.”1 Se tomarmos essas do que seria uma crescente “privatização” de
diretrizes não como um mero exercício retóri- todas as esferas da vida em nossa sociedade.
co, mas como uma definição programática do Noutro viés ideológico, alega-se uma incontor-
papel da arte na formação escolar, torna-se ne- nável ineficiência do “setor público” quando
cessário o desenvolvimento de novos campos de comparado à “agilidade da iniciativa privada”.
reflexão e investigação na área. Paralelamente Esses dois exemplos recorrentes dos quais lan-
aos estudos sobre metodologias e procedimen- çamos mão já bastam para sugerir que a dicoto-
tos didáticos, há que se pensar e pesquisar as mia público/privado há tempos não se resume a
complexas relações entre arte, formação, cultu- contendas acadêmicas. Ao contrário, ela parece
ra escolar e vida pública. Uma tarefa que exige habitar nosso universo conceitual cotidiano.
esforço institucional e amadurecimento intelec- É provável que, nesse uso habitual, nos-
tual, mas cuja urgência nos chama, ainda que sas referências sejam suficientemente claras para
de forma breve e preliminar, a propor elemen- seus propósitos de comunicação, persuasão ou
tos para o debate. emissão de opinião. Contudo, não é difícil dar-
Nestas reflexões, e a partir da preocupa- se conta de que os termos da dicotomia são po-
ção acima exposta, almejo examinar algumas das lissêmicos, tanto isoladamente como em sua

José Sérgio F. de Carvalho é professor da Faculdade de Educação da USP.


1 Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília:
MEC, 2002, p. 173.

83

R2-A5-José_Carvalho.PMD 83 31/3/2008, 16:50


s ala p reta

relação. Basta apresentarmos questões mais pre- – voltar, nem por culto à nostalgia. Mas pela
cisas que a aparente clareza com que os utiliza- convicção de que certos conceitos trazem con-
mos parece progressivamente se esvair. Não é sigo a significação fundamental das experiências
raro, por exemplo, que o adjetivo público seja políticas que os geraram. E seu desvelamento
direta e exclusivamente identificado com o que poderá ensejar, na medida em que revelar as sig-
é instituído ou mantido pelo Estado, como uma nificações de que são portadores, a busca pela
“escola pública”, um “hospital público”. Mas a reflexão acerca do sentido de certos problemas
criação e o financiamento estatal garantem o contemporâneos que a eles fazem referência.
“caráter público” de uma instituição? Um banco Iniciemos, pois, com uma breve explana-
criado e mantido pelo Estado deve necessaria- ção acerca da gênese da noção de esfera pública,
mente ser considerado como uma “instituição tal como ela se constitui pela primeira vez na
pública”? Ou seria simplesmente uma empresa antigüidade clássica. Arendt destaca que a vida
ou organização que funciona no padrão daqui- na Polis denotava uma forma de organização
lo que é privado, ainda que a partir de recursos política muito especial e livremente escolhida,
públicos? Em caso afirmativo, poderia, então, não podendo ser tomada como o simples pro-
haver uma instituição que, do ponto de vista de longamento da vida familiar e privada ou como
sua propriedade, seja “patrimônio público”, mas uma estratégia de sobrevivência de um ser gregá-
da perspectiva de seu funcionamento, produto rio: “A capacidade humana de organização polí-
ou acesso uma “organização privada”? O “esta- tica não apenas difere, mas é diretamente oposta
tal” sempre equivale ao “público” ou, ao con- a essa associação natural cujo centro é constitu-
trário, o interesse do Estado pode entrar em ído pela casa e pela família. O surgimento da
conflito com o “interesse público”? cidade-estado (polis) significava que o homem
Talvez essa vinculação imediata entre “pú- recebera, além de sua vida privada, uma espécie
blico” e “privado” com a propriedade estatal ou de segunda vida, o seu bios politikos. Agora cada
particular de um bem seja uma das formas mais cidadão pertence a duas ordens de existência; e
corriqueiras e simplificadas de se definir os ter- há uma grande diferença em sua vida entre aqui-
mos da dicotomia. Mas é bastante problemáti- lo que lhe é próprio (idion) e o que lhe é co-
ca, já que há bens comuns que não são proprie- mum (koinon)” (Arendt, 1989, p. 33).
dade – nem pública, nem privada – mas podem Assim, a esfera privada, ligada à casa e à
ser indiscutivelmente classificados como “bens família, caracterizava-se por ser um plano da
públicos”, como é o caso da língua de uma na- existência no qual se buscava prioritariamente
ção. A língua portuguesa – ou a tupi – não é atender às necessidades da vida, garantir a sobre-
uma propriedade, em sentido estrito, de nin- vivência individual e prover a continuidade da
guém, embora seja um bem simbólico comum e espécie. Era, pois, a esfera da necessidade e do
público. Essas questões e observações visam uni- ocultamento, da proteção e manutenção da vida,
camente chamar a atenção para o fato de que o da defesa dos interesses próprios – idion refe-
uso dos conceitos de “público” e “privado”, ain- re-se ao que é próprio a um indivíduo ou grupo
da que relativamente corriqueiro, pode ensejar particular, daí a origem da palavra idioma ou
imprecisões e ambigüidades, dada a pluralidade do termo idiotés, que para os gregos era aquele
de significações que a eles costumamos atribuir. que só cuida de si ou do exclusivamente seu.
Assim, mesmo sem ter a pretensão da Por isso, no pensamento clássico a existência
existência de uma significação essencial e a-his- nesse plano não era verdadeiramente “humana”,
tórica desses termos, sua adequada compreen- mas caracterizava-se por ser um esforço pela so-
são requer, a meu ver, uma referência ao senti- brevivência de mais um exemplar da espécie.
do primeiro da experiência política que os criou. Análogo, portanto, aos esforços das demais for-
Não porque a ela poderíamos – ou deveríamos mas de vida animal.

84

R2-A5-José_Carvalho.PMD 84 31/3/2008, 16:50


E ducação e experiência estética: “valor” social ou sentido público? Público, privado e social

Esse plano da existência – o dos esforços ra ou à Natureza como espaço limitado para o
pela manutenção da vida, característicos da es- movimento dos homens e a condição geral da
fera privada – é mantido pelo labor, ou seja, pelo vida orgânica. Antes tem a ver com o artefato
conjunto de atividades cujo produto é consu- humano, com o produto das mãos humanas,
mido no próprio ciclo vital.2 A atividade de co- com os negócios realizados entre os que, juntos,
zinhar, por exemplo, é característica do labor, já habitam o mundo feito pelo homem. Conviver
que a finalidade de seu produto – a refeição – é no mundo significa essencialmente ter um mun-
ser consumida no esforço de manutenção da do de coisas interposto entre os que nele habi-
vida, individual e da espécie. tam em comum” (Arendt, 1989, p. 63).
Já a esfera pública surge a partir da cons- Assim, a esfera pública é constituída pe-
tituição de um mundo comum, não no sentido las obras da fabricação humana, pelo trabalho
de um espaço coletivo vital e natural, mas no de (poiesis).3 Ora, se o labor se caracteriza pela pro-
um artifício propriamente humano, que nos re- dução de bens que serão consumidos imediata-
úne na companhia dos outros homens e de suas mente no próprio ciclo da subsistência, o tra-
obras. Não se trata simplesmente de um esforço balho visa produzir bens que permanecem para
gregário para prover formas de subsistência co- além de seu uso imediato. Se cozinhar é labor,
letiva (o que pode acontecer no âmbito privado fabricar uma panela é trabalho, já que seu pro-
da família, por exemplo), mas da possibilidade duto é uma “obra” que permanece no mundo e
de criação de um universo simbólico e material a este empresta durabilidade.
compartilhado e comum. Por isso não é mera Daí porque o mundo comum “transcende
continuidade ampliada da esfera privada. A bios- a duração de nossa vida tanto no passado como
politikós (o modo de vida da polis, da Cidade) é no futuro: preexistia à nossa chegada e sobrevi-
uma nova esfera de existência, que congrega os verá à nossa breve permanência. É isto o que
cidadãos-livres em torno daquilo que lhes é co- temos em comum não só com aqueles que vi-
mum e cria uma realidade compartilhada vem conosco, mas também com aqueles que
(koinon, por oposição ao idion). Se a esfera da aqui estiveram antes e virão depois de nós.
privacidade é a do ocultamento, a dos mistérios Mas esse mundo comum só pode sobreviver ao
da vida e do zelo por sua proteção, a esfera pú- advento e à partida das gerações na medida em
blica é esse mundo comum no qual todos podem que tem uma presença pública. É o caráter pú-
ser vistos e ouvidos na sua singularidade exis- blico da esfera pública que é capaz de absorver
tencial: “O termo público significa o próprio e dar brilho a tudo que os homens venham a
mundo, na medida em que é comum a todos preservar da ruína natural do tempo” (Arendt,
nós. Este mundo, contudo, não é idêntico à Ter- 1989, p. 65).

2 “O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano, cujos crescimento
espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver com as necessidades vitais produzidas e
introduzidas pelo labor no processo da vida” (Arendt, 1989, p. 15).
3 Vários autores, dentre eles André Duarte, comentam, com razão, a fragilidade da escolha dos termos
“labor” e “trabalho” para traduzir labor e work, sugerindo, respectivamente trabalho e fabricação. Prefe-
rimos manter a tradução que consta no livro A Condição Humana simplesmente a fim de facilitar a
leitura. O importante é ressaltar que Arendt utiliza o termo work como equivalente ao grego poiesis,
que indica a ação de fabricar, a confecção de um objeto artesanal, de natureza material ou intelectual,
como a poesia. Da mesma forma, “ação” (action) visa traduzir o termo grego práxis: agir, cumprir, reali-
zar até um fim, utilizada no campo ético e político. Assim, enquanto na poiesis o objeto criado e seu
artífice são distintos e separáveis, na práxis não: a ação revela quem o agente é.

85

R2-A5-José_Carvalho.PMD 85 31/3/2008, 16:50


s ala p reta

Se o labor perpetua o ciclo da vida, aten- um conceito teórico, mas um reflexo da expe-
dendo necessidades humanas, o trabalho busca riência da vida na Polis, essa organização pecu-
a permanência do mundo, revelando sua criati- liar da antiguidade que marca etimologicamen-
vidade. Mas a durabilidade desse artifício de- te nosso conceito de política. Nela, por exemplo,
pende não só da existência de obras, como do ser escravo designava menos uma condição eco-
reconhecimento público de seu pertencimento nômica do que um status político de privação.
a um mundo comum. Uma catedral, um mo- Ao escravo era interditada a participação na es-
numento ou uma mesa só pode vir a existir por- fera pública, logo, a possibilidade de, por seus
que a fabricação humana retira a pedra ou a atos e palavras, revelar quem é, de fundar e ge-
madeira do ciclo da natureza – que as gerou e rir, com outros cidadãos livres e iguais, corpos
as consumiria – e lhe empresta um novo uso e políticos autônomos. Ser escravo era, portanto,
um significado comum e compartilhado. Uma estar privado da liberdade como experiência de
mesa e uma catedral, se não forem reconheci- ação política.
das como obras desse mundo comum, voltam a Ora, é essa experiência existencial de uma
ser madeira e pedra, reintegrando-se ao ciclo de dicotomia que sustenta a necessidade de ambos
consumo da natureza e da vida. Daí porque se- os pólos – o privado e o público – bem como
rem as obras de arte, para Arendt, os mais mun- de sua separação em instâncias diferentes e com-
danos dos objetos: almejam a transcendência plementares, que parece gradativamente se obs-
que só existirá na medida em que forem publi- curecer no mundo moderno.4 Alguns aspectos
camente reconhecidas como tais. E só o serão dessa indistinção nos são bem familiares e ime-
na medida em que não se confundem com ob- diatamente identificáveis. Assuntos e experiên-
jetos do consumo ou de uso diário. cias que tradicionalmente eram preservadas no
Mas o mundo público é também o local âmbito privado – a dor, o amor, a morte que,
em que os homens, liberados da necessidade da por encerrarem os mistérios da existência, de-
luta pela vida (labor), podem se encontrar para veriam ser protegidos da luz pública – cada vez
em conjunto criar e gerir, por seus atos e pala- mais a ela são expostos. A mídia eletrônica e es-
vras, o bios-politikós, ou seja, a dimensão públi- crita faz da vida privada de celebridades assunto
ca e política de sua existência: a ação (práxis). comum e público. Por outro lado, aquilo que
É essa dimensão que possibilita a liberdade como deveria ser, por excelência, assunto comum e
fenômeno político. Se o espaço público fosse sim- público – como a política e a arte – passa pro-
plesmente a associação ampliada do privado, gressivamente a ser tomado como uma opção
permaneceríamos no âmbito da necessidade, sem individual, uma questão de gosto. E “gosto não
a experiência de criar e compartilhar um mun- se discute”.
do. Daí porque para Aristóteles o bem comum é Há, contudo, uma dimensão menos per-
o ideal regulador da ação do Estado, no qual se ceptível dessa diluição de fronteiras, mas cujas
deve agir em busca do interesse comum. conseqüências parecem ser ainda mais profun-
Ora, a distinção entre essas dimensões da das. Trata-se do fato de que a atividade por ex-
existência (a particular e privada e a comum e celência ligada ao âmbito do privado e da neces-
pública, a de suprimento das necessidades e as sidade, o labor – e o consumo que o caracteriza
da criação e gestão do mundo) não era fruto de na luta pelo ciclo vital – ganham progressiva-

4 O termo “mundo moderno” é aqui utilizado na acepção estrita que lhe dá Arendt, referindo-se ao
modo de vida que marca a experiência ocidental no século XX, já que a “era moderna”, relativa aos
séculos XVII e XVIII, também é marcada pela tentativa de re-estabelecimento de uma distinção entre
as esferas pública e privada.

86

R2-A5-José_Carvalho.PMD 86 31/3/2008, 16:50


E ducação e experiência estética: “valor” social ou sentido público? Público, privado e social

mente o espaço e a visibilidade do mundo pú- não para abrigar a igualdade dos cidadãos, mas
blico, engolfando as esferas do trabalho e da a diferenciação dos consumidores.
ação. Forma-se, assim, uma nova esfera, nem Claro que numa organização social dessa
propriamente pública nem privada. Trata-se do natureza – uma sociedade de consumo – a no-
que Arendt denominou a esfera social, caracteri- ção de um mundo comum que transcenda a exis-
zada pela organização pública do próprio pro- tência individual de cada um, tanto no passado
cesso vital: “a sociedade é a forma na qual o fato como no futuro, se esvai. O mundo deixa de
da dependência mútua em prol da subsistência ser algo a ser compartilhado para, também ele,
e de nada mais, adquire importância pública, e ser consumido: “A negação do mundo como fe-
na qual as atividades que dizem respeito à mera nômeno político só é possível à base da premis-
sobrevivência são admitidas em praça pública” sa de que o mundo não durará. Foi o que suce-
(Arendt, 1989, p. 57; grifos nossos). E, ao as- deu após a queda do Império Romano; e,
sim fazerem – poderíamos acrescentar – expul- embora por motivos bem diferentes e de forma
sam da esfera pública aquilo que lhe era o mais muito diversa – e talvez bem mais desalentado-
característico: ação política. Ela se torna, na me- ra –, parece estar ocorrendo novamente em nos-
lhor das hipóteses, mera coadjuvante para o êxi- so próprio tempo. A abstenção cristã das coisas
to da vida privada. terrenas não é, de modo algum, a única conclu-
Desse modo, as atividades que dizem res- são a se tirar da convicção de que o artifício hu-
peito ao labor, cuja meta é a busca pela sobrevi- mano, produto de mãos mortais, é tão mortal
vência e cujo produto é algo a ser consumido como seus artífices. Pelo contrário, esse fato
nesta busca, ganham importância crescente no pode também intensificar o gozo e o consumo
mundo moderno, transformando-o num espa- das coisas do mundo e de todas as formas de
ço das atividades de manutenção da vida e de intercâmbio nas quais o mundo não é concebi-
consumo. A própria expressão coloquial “ga- do como koinon, aquilo que é comum a todos.
nhar a vida”, ao ser usada como sinônimo de A existência de uma esfera pública e a subse-
trabalhar deixa patente que concebemos nossa qüente transformação do mundo em uma co-
atividade produtiva como um modo de perpe- munidade de coisas que reúne os homens e
tuar o ciclo da vida, uma luta pela sobrevivên- estabelece uma relação entre eles depende in-
cia – ou uma forma de gerar a opulência do con- teiramente da permanência. Se o mundo deve
sumo – e nada mais. Não se trata, pois, de criar conter um espaço público, não pode ser cons-
algo cuja permanência o integrará – e indireta- truído apenas para uma geração e planejado so-
mente nos integrará – à durabilidade do mun- mente para os que estão vivos: deve transcender
do comum. Trata-se, antes, de um modo de ga- a duração da vida de homens mortais.”
rantir a vida própria e bem estar da família, bens Desse modo, na esfera social o que ho-
supremos da ordem social. mens têm em comum não é um mundo de sig-
Pense-se, ainda como exemplo, na estru- nificações, práticas e valores compartilhados,
tura de nossas cidades. Cada vez menos são con- mas seus interesses particulares. Daí porque,
cebidas e utilizadas como um espaço comum de nessa ordem, o ideal regulador do Estado não é
reunião dos cidadãos, ou seja, da ação. Ao con- a noção da busca do bem comum – como em
trário, suas vias são projetadas para a circulação Aristóteles – mas a administração competente
de bens e mercadorias, para o deslocamento de dos interesses particulares ou privados em con-
um transeunte que vai da esfera íntima do lar flito. O que significa a submissão da ação polí-
para a esfera privada da produção ou distribui- tica ao labor.
ção de mercadorias, preferencialmente num ve- Algumas das conseqüências econômicas e
ículo próprio. E o ponto de encontro não é a políticas dessa transformação têm sido bastante
praça pública, mas o shopping-center; moldado exploradas e criticadas, como a noção de que a

87

R2-A5-José_Carvalho.PMD 87 31/3/2008, 16:50


s ala p reta

riqueza de uma nação deriva da busca indivi- mundo comum e público, constituído de arte-
dual ou particular pelo lucro; de que o bem es- fatos humanos que, embora criados por mãos
tar da comunidade só pode ser pensado como a mortais, transcendem a mortalidade daqueles
somatória do bem-estar de cada um de seus que o fabricaram, forjando um lar não-mortal
membros, etc. O que nos interessa aqui apre- dos seres mortais.
sentar são as profundas repercussões que esse É, pois, no pertencimento e na constitui-
modo de vida teve no que diz respeito à con- ção desse mundo público que a obra de arte se
cepção do sentido da arte no processo de for- realiza como esforço de imortalidade. Daí por-
mação educacional. que, “no encobrimento da vida privada e da
posse privada, objetos de arte não podem atin-
gir sua própria validez inerente; é forçoso, pelo
Arte e esfera pública contrário, que sejam protegidos da possessivi-
dades de indivíduos – por isso não importa que
Numa passagem de A Condição Humana, tal proteção assuma a forma de colocá-los em
Arendt procura sintetizar o significado da obra locais sagrados, em templos e igrejas, ou entre-
de arte na constituição de um mundo público gá-los ao cuidado de museus e de zeladores de
que, por transcender o escopo de existência de monumentos, posto que o lugar onde os colo-
cada um dos que nele habitam e das sucessivas camos seja característico de nossa “cultura”, isto
gerações que o formam, pode trazer uma di- é, nosso modo de comunicação com eles”
mensão de profundidade histórica à existência (Arendt, 1978, p. 272).
humana individual: “(...) nada como a obra de Há, pois, entre a durabilidade do mundo
arte demonstra com tamanha clareza e pureza a público e a permanência da obra de arte um vín-
simples durabilidade deste mundo de coisas; culo de mútua fecundação e retro-alimentação,
nada revela de forma tão espetacular que este de sorte que qualquer evento que ameace um
mundo feito de coisas é o lar não-mortal de se- desses pólos acabará por atingir o outro. Foi o
res mortais. É como se a estabilidade humana que sucedeu ao emergir um modo de vida no
transparecesse na permanência da arte, de sorte qual o mercado de consumo passou a ser o com-
que certo pressentimento de imortalidade – não ponente central da sociedade, de sorte que qua-
a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo se todas as outras dimensões da existência aca-
imortal feito por mãos mortais – adquire pre- baram por nele se pautar. Isso significa que se
sença tangível para fulgurar e ser visto, soar e criou uma ordem social na qual o sentido é subs-
ser escutado, escrever e ser lido” (Arendt, 1989, tituído pelo valor; e as coisas valoradas a partir
p. 181). de sua utilidade para a vida e sua eficácia para o
Esse pressentimento de imortalidade corres- labor (paradoxalmente é a publicidade de um
ponde antes a uma busca do que a uma posse. cartão de crédito que nos lembra que certas coi-
Difere do conceito de eternidade, da tradição sas “não têm preço”).
religiosa cristã, concebido como uma faculdade Em seu texto sobre a crise da cultura,
da alma e, portanto, irrealizável no plano mun- Arendt afirma que no início dessa nova ordem
dano. Tampouco se confunde com a idéia de social os objetos culturais eram simplesmente
uma continuidade biológica do ciclo vital, bus- desprezados porque inúteis, gerando um tipo de
ca que compartilhamos com todas as espécies mentalidade de caráter estritamente pragmáti-
que têm logrado se perpetuar por meio da re- co-utilitarista. Segundo essa mentalidade tudo
posição de indivíduos na luta pela imortalização deve ser julgado exclusivamente a partir de sua
de uma espécie. O caráter tangível dessa expe- utilidade imediata ou de seu impacto econômi-
riência de busca pela imortalidade resulta da co; portanto a partir de seu valor privado e não
possibilidade de permanência das obras num de seu significado público. Contudo, essa pro-

88

R2-A5-José_Carvalho.PMD 88 31/3/2008, 16:50


E ducação e experiência estética: “valor” social ou sentido público? Público, privado e social

gressiva apropriação operada pelo mercado de blica – como a dramaturgia ou a poesia – na


consumo sobre outras dimensões e atividades transmissão de um capital cultural privado, cujo
humanas atinge também, é claro, os objetos de valor pode ser aferido, ou pelo menos estima-
arte e o sentido da experiência estética. do, a partir de seu impacto noutras dimensões
Assim a arte – e diversos outros “objetos da existência, em geral ligadas à produção ou
culturais” materiais ou simbólicos – passam a consumo de novas mercadorias.
ter também eles um valor. Transformam-se num Assim concebida, a própria idéia de for-
“meio circulante mediante o qual se compra mação educacional acaba tendo sua dimensão
uma posição mais elevada na sociedade ou se ético-política esvaziada em favor de um vago
adquire uma ‘auto-estima’ mais elevada. Nesse “processo ensino/aprendizagem” que visaria de-
processo os valores culturais passaram a ser tra- senvolver “competências”, em geral definidas de
tados como outros valores quaisquer, a ser aqui- formas abstratas como “criatividade”, “auto-ex-
lo que os valores sempre foram, valores de tro- pressão” ou “comunicação”. O cerne da questão é
ca, e ao passar de mão em mão, se desgastaram que a arte não mais é concebida como um bem
como moedas velhas. Eles perderam a faculda- em si, cuja apropriação é parte da constituição
de que originariamente era peculiar a todos os do próprio sujeito e de sua identidade com o
objetos culturais [e aos objetos de arte em espe- mundo público, mas como algo que pode vir a
cial], a faculdade de prender a nossa atenção e lhe trazer benefícios secundários. Como, de res-
nos comover” (Arendt, 1978, p. 256). to, praticamente toda a ação educativa que, à
A redução do sentido da experiência esté- medida que ganha valor como capital humano,
tica formativa ao seu valor transforma aquilo perde sentido como experiência de compartilhar
que seria a iniciação numa herança cultural pú- um mundo comum e público.

Referências bibliográficas

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1978.


ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
BENJAMIN, W. Magia e técnica. arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1989.
CARVALHO, José S. Educação, cidadania e direitos humanos. Petrópolis: Vozes, 2004.
DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura. Política e filosofia no pensamento de Hannah
Arendt. São Paulo: Paz & Terra, 2000.
MORAES, E. & BIGNOTTO, N. (Org.). Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias. Belo Ho-
rizonte: Ed. da UFMG, 2003.
SILVA, Franklin L. “O Mundo vazio: sobre a ausência da política no mundo contemporâneo”. In:
ACCYOLI, Doris & Marrach, Sonia Alem. (Org). Maurício Tragtenberg: uma vida para as ciên-
cias humanas. São Paulo, UNESP, 2001.

89

R2-A5-José_Carvalho.PMD 89 31/3/2008, 16:50

Você também pode gostar