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Discurso Sobre a Origem

e os Fundamentos da
Desigualdade Entre
os Homens
J.-J. ou seau

Discurso sobre a o;igem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens

0000016950
11 11 11 11 11 11 '11 °
ISBN 85-336-1030 - 0

Martins Fontes
Quatro anos após a publicação do Dis-
curso Sobre as Ciências e as Artes (1750),
que o tornou famoso, Rousseau encon-
trou a oportunidade de desenvolver seus
princípios com o Discurso Sobre a Ori-
gem e os Fundamentos da Desigualdade
Entre os Homens. Aqui ele se revela o
porta-voz dos humilhados e ofendidos, o DISCURSO SOBRE
intérprete de todos aqueles condenados
pela ordem social a viver em situação de A ORIGEM E OS
banidos. Dirige~se a todos os homens e FUNDAMENTOS
oferece-lhes, por seus escritos, a imagem DA DESIGUALDADE
do homem integral. Designa o universal
indicando-o na ordem dos fatos e na
ENTRE OS HOMENS
ordem do dever.
O Discurso Sobre a Desigualdade é uma
obra-fonte a partir da qual se pode co-
meçar toda a reflexão moderna sobre a
natureza da sociedade.

CAPA
Imagem Rou.IJt'tlu i'ttt Bienne (xravum)
Detalhe

Projeto gráfico Katia llarurni Terasaka


DISCURSO SOBREA
ORIGEM E OS
FUNDAMENTOS
DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS
Precedido de
DISCURSO SOBRE
AS CIÊNCIAS EASARTES

]. -]. Rousseau

Cronologia e introdução
JACQUES ROGER
Tradução
MARIA ERMANTINA GALVÃO

Martins Fontes
São Paulo /999
indice
Títulos originois: DISCOURS Sü'fttES SCIENCES ET LES ARTS e
DISCOURS SUR L' ORIGINE ET LES FONDEMENTS DE
L'INÉGAUTÉ PARMI LES HOMMES.
Copyright © 1971, Garnier-Flammarion, Paris, para a cronologia
e a introdução de Jacques Roger.
Copyright ©Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, 1993, para a presente edição.

11 edição
setembro de 1993
21 edição
obri/ de 1999

Tradução
MARIA ERMANTINA GALVÁO

Revisão da tradução
Introdução................................................................. VII
Marina Appenzeller Cronologia ................................................................ XXIX
Revisão gráfica
Maria Jnês Monte negro de Azevedo
Márcia da Cruz Nóboa Leme
Produção gráfica
Geraldo Alves DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS E AS ARTES
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial (6957-7653)
Advertência ............................................................... . 5
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Prefácio ...................................................................... . 7
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Discurso ..................................................................... . 9
Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778.
Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre Carta de].-]. Rousseau sobre a refutação de seu
os homens I J.-J. Rousseau ~ tradução Maria Ermantina Galvão ~
cronologia e introdução Jacques Roger. - 2ª ed. - São Paulo :
Discurso pelo Sr. Gautier ..................................... . 41
Martins Fontes, 1999.- (Clássicos) Resposta ao rei da Polônia, duque de Lo rena ........ . 57
Título original: Discours sur les sciences et les arts ... Observações de].-]. Rousseau, de Genebra ........... . 59
Bibliografia.
ISBN 85-336-1030-0 Última resposta de].-]. Rousseau ............................ . 85
l. Filosofia francesa 2. Rousseau, Jean~Jacques, 1712-1778 Carta ao abade Raynal .............................................. . 115
I. Título. li. Série.
Carta de].-]. Rousseau, de Genebra, sobre uma
99·1134 CDD-194
nova refutação de seu Discurso por um acadê-
Índices para catálogo sistemático:
1. Fílosofia francesa 194 mico de Dijon ....................................................... . 119
2. Filósofos franceses 194
3. Ftançà: Filosofia 194
Prefácio de uma Segunda carta a Bordes ............... . 127
Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 3301340
01325-000 São Paulo SP Brasil
Te/. (011) 239-3677 Fax (011) 3105-6867
e-mail: info@martinsfontes.com
http://www.martinsfontes.com
DISCURSO SOBRE A ORIGEM E
OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
Introdução
ENTRE OS HOMENS

À República de Genebra ......................................... .. 135


Prefácio ...................................................................... . 149
Questão proposta pela Academia de Dijon ............ . 157
Advertência sobre as notas ...................................... . 158
Discurso sobre a origem e os fundamentos da de-
sigualdade entre os homens ................................ 159
Carta de Voltaire a].-]. Rousseau.............................. 245
Resposta [a Voltaire]................................................... 251 A celebridade de Rousseau data do Discurso sobre as
Carta de].-]. Rousseau ao Sr. Philopolis ....... ... ........ 257
ciências e as artes e, se foi preciso esperar o Discurso so-
Anotações de Voltaire sobre o Discurso sobre a de-
bre a origem da desigualdade para que o "Rousseau mú-
sigualdade das condições, de].-]. Rousseau........ 267
sico" se tornasse o Rousseau filósofo, foi porque a ence-
nação de Le devin du village (O adivinho da aldeia) e
Notas .......................................................................... 277
mais ainda a Lettre sur la musique jrançaise (Carta sobre
Bibliografia................................................................ 329
a música francesa) fizeram o público acreditar que a mú-
sica era mais importante em sua vida do que a filosofia 1 •
Retrospectivamente, como .sempre, foi mais fácil enten-
der o fato, e Rousseau pôde fazer desse "instante de des-
vario", que o revelava a si mesmo, a origem de sua glória
e de suas desditas.
"Essa obra, que me valeu um prêmio e me fez um
nome, é quando muito medíocre", escreverá ele mais tar-
de à guisa de Advertência, e especificará no livro VIII das
Confissões: "Essa obra, cheia de calor e de força, carece
completamente de lógica e de ordem; de todas as que
brotaram de minha pena, é a mais fraca de raciocínio e a
mais pobre de número e de harmonia." Esse juízo só pa-
recerá severo se introduzirmos nesse primeiro Discurso
tudo o que não está nele e que Rousseau dirá mais tarde.
A Academia de Dijon tentara rejuvenescer um velho de-

VII
Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Introdução ___ _

bate inserindo-lhe um elemento da mitologia do Iluminis- preferem o bonito ao sublime. Uma incerteza mais grave
mo, o "restabelecimento das ciências e das artes" após a esconde a origem de nossas desditas: deve-se crer que,
noite da Idade Média. Talvez esperasse um elogio de Fran- na "simplicidade dos primeiros tempos", os homens eram
cisco I, de Henrique IV ou de Luís, o Grande. Mas Rous- "inocentes e virtuosos" (p. 28) e que foram corrompidos
seau, que prefere Licurgo e Fabrício, deixa deliberada- pelas ciências e artes, ou deve-se admitir, ao contrário,
mente de lado o contexto histórico imposto pela questão que "os homens são perversos" (p. 21) e que "as ciências
e volta à oposição clássica entre a ciência e a virtude. Os e as artes devem (. .. ) seu nascimento aos nossos vícios"
padres da Igreja haviam debatido longamente sobre ela, a (p. 23)? A nostalgia dos primórdios acompanha em geral
propósito das letras pagãs e da virtude cristã; Santo Agos- o desprezo do mundo, e Rousseau sonha com o tempo
tinho, em particular, voltara a essa questão muitas vezes e das choupanas como Pascal com a Igreja primitiva; mas
consagrara ao tema os quatro livros de De doctrina chris- seu sistema ainda não está constituído. O que quer que
tiana. O século XVI prosseguira a discussão, exaltando a ele tenha dito mais tarde, em particular na carta a Ma-
piedade em detrimento das letras antigas ou da escolásti- lesherbes de 12 de janeiro de 1762 ou no segundo
ca medieval. Não era então um paradoxo preferir a sim- Diálogo, a iluminação de Vincennes não lhe revelou uma
plicidade evangélica aos prestígios de uma vã curiosida- interpretação completa da natureza do homem e da so-
de intelectual, lembrar, com Rabelais, que "ciência sem ciedade, assim como não lhe impôs tornar-se "autor qua-
consciência não é mais que ruína da alma", denunciar, se sem querer".
com Montaigne - que Rousseau utiliza largamente - e Entretanto, seu pensamento já tomou sua orienta-
Agrippa de Nettesheim- que logo ele descobrirá- a in- ção fundamental. Se condena as ciências e as artes, não
certeza, a vaidade e o perigo moral de conhecimentos é por elas afastarem de Deus - rigorosamente ausente
ilusórios. Porém a revolução cartesiana, o desenvolvi- desse texto - nem por prejudicarem a sabedoria indivi-
mento das técnicas, os progressos do luxo e do conforto dual, mas por destruírem a comunidade dos homens. A
deslumbraram bastante os espíritos para que a v~ha palavra "virtude" tem aqui apenas um sentido, e é o
desconfiança cristã e céptica parecesse daí em diante um inteiro devotamento do homem aos seus semelhantes,
paradoxo insustentável. do cidadão à pátria. As outras qualidades morais não
Quanto ao cerne do problema, Rousseau não se dis- passam de condições ou de conseqüências. Daí o sur-
tingue pelo rigor da análise e do raciocínio. As "provas" preendente elogio das virtudes guerreiras, que o filóso-
históricas são lançadas com mais vigor do que precisão e fo admira quando se trata do soldado cidadão. Daí so-
respeito aos fatos. As "artes" são intensamente condena- bretudo a condenação global de uma sociedade funda-
das, tanto mais porque a mesma palavra designa indis- da na concorrência, no luxo, no dinheiro: "E o que será
tintamente os artifícios da polidez mundana, as técnicas da virtude, quando for preciso enriquecer a qualquer
provedoras de luxo e de indolência, e as belas-artes que preço?" (p. 25). Dos primeiros homens, Rousseau diria

VIII IX
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ ·--------Introdução _ _ _ _ _ _._ _ __

de bom grado o que se dizia dos primeiros cristãos: vede ulga sê-lo. Incapaz de ser ele mesmo, incapaz de ser como
como eles se amam. JS outros, sempre vítima da "falsa vergonha" e maldizen-
Mas essa nostalgia não é nada cristã, nem sequer reli- io-se por sê-lo, viveu constrangido e ansioso. Conscien-
giosa. Rousseau fundamenta sua condenação, principal- :e de uma "singularidade", que não ousa porém exibir, já
mente, na imagem heróica da altivez republicana, que ele se sente sozinho e, por que não, ameaçado. Tudo isso
formou para si já em sua juventude. O primeiro Discurso irromperá mais tarde, no grande dia da ruptura com os
iptroduz os heróis de sua mitologia pessoal, os Homens "filósofos" e das análises das Confessions; mas tudo isso
ilustres de Plutarco, o Tácito que vira na bancada do seu já está contido no verso de Ovídio que serve de epígrafe
pai, a Esparta de Licurgo, que também citará em seu No- ao primeiro Discurso: "Para eles sou um bárbaro, porque
no passeio, alguns meses antes de morrer, a República de não me compreendem."
Genebra, que ele idealiza com prazer tanto maior por tê- E o Discurso inteiro é animado por essa inquietude e
la deixado há mais de vinte anos, e da qual se diz cida- por esse ressentimento. "Exasperado pelas injustiças que
dão, ao passo que perdeu esse direito por sua conversão experimentara", diz ainda a carta a Malesherbes, "pelas
ao catolicismo. Dessa altivez republicana, que o Mercure que testemunhara, mortificado freqüentemente pela
e as Mémoires de Trévoux assinalarão maliciosamente, desordem a que o exemplo e a força das coisas haviam
desse "gosto heróico e romântico", como ele o denomina arrastado a mim mesmo, comecei a desprezar meu sécu-
na carta a Malesherbes, Rousseau tentou desfazer-se, sob lo e meus contemporâneos." Trata-se de uma reconstitui-
a influência da sra. de Warens. A Epftre à Parízot, em ção a posteríorí, e o primeiro Discurso não demonstra
1742, havia solenemente "(abjurado) para sempre essas ainda esse "desprezo". Já demonstra porém um sofri-
máximas ferozes" e até mesmo celebrado "todos os pra- mento diante da opacidade alheia: "Como seria agradá-
zeres do gosto, os encantos das belas-artes". vel viver entre nós, se a continência exterior fosse sem-
Em vão. Nessa sociedade, à qual ele se esforçava pre a imagem das disposições do coração" (p. 12). Se
por se adaptar, Rousseau já sabia que não seria feliz. Os Rousseau odeia a polidez, é por ela destruir a transpa-
acontecimentos não podiam deixar de justificar-lhe os rência mútua e impedi-lo de ser ele mesmo: "Já não se
temores. ousa parecer o que se é ( ... ) Nunca se saberá com quem
As obras autobiográficas nos permitem compreen- se está lidando" (p. 13). Da incerteza para o temor, o
der por que esse fracasso era inevitável. A timidez, a len- passo já está dado. Por qual presciência, por qual mal-
tidão e a inabilidade de suas reações, que o tornam inap- estar irreprimível pôde Rousseau já escrever, tanto tem-
to para desempenhar seu papel numa sociedade brilhan- po antes do "complô": "Entre nós, é verdade, Sócrates
te e espirituosa, impõem uma tortura perpétua a Rousseau. não teria bebido a cicuta, mas teria bebido, numa taça
E, sobretudo, ele depende da atenção dos outros, quer ainda mais amarga, a zombaria insultante e o desprezo,
ser constantemente aprovado e compreendido, e nunca cem vezes pior que a morte" (p. 21)? Não estará pensan-

X
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ Introdução----~-----~--

do nele mesmo, bastante ingenuamente, ao condenar "a para a qual pareciam ter nascido", e denunciava as ciên-
funesta desigualdade introduzida entre os homens pela cias e as artes que "estendem guirlandas de flores nas cor-
distinção dos talentos e pelo aviltamento das virtudes" - rentes de ferro que eles carregam ( ... ), fazem-nos amar
única desigualdade mencionada na obra -, acrescentan- sua escravidão e formam o que chamamos de povos
do: "As recompensas são prodigalizadas à erudição amá- policiados" (p. 12). Já não se tratava de ampliar o comér-
vel e fica sem honrarias a virtude" (p. 31)? Mais seguro cio, mas de "conquistar o mundo e de nele fazer reinar a
de sua virtude do que de seus talentos, Rousseau sonha virtude" (p. 20). Mitologia contra mitologia, talvez; mas a
e~ ser distinguido: "O sábio não corre atrás da fortuna, mitologia de Rousseau é a da Revolução.
mas não é insensível à glória" (p. 31). O ideal seria que a
sociedade lhe desse em seu seio um lugar de honra, res- É o que fica cada vez mais claro na discussão bastan-
peitando sua singularidade, e o exaltasse por tê-la con- te confusa que se segue ao sucesso inesperado desse
denado. primeiro Discurso. Em todos os aspectos, esse sucesso
Ora, essa sociedade, em cujo rosto o pequeno livro foi para Rousseau uma libertação. A sociedade reconhe-
vinha bater, estava bem contente consigo mesma. De- cia o "bárbaro", e reconhecia-o como tal. No meio dela,
certo não era unicamente composta de fidalgos insolen- daí em diante, seu personagem está definido: seria o
tes e de aventureiros inescrupulosos, de ricos desonestos homem de seu livro. Empreendeu portanto sua "refor-
e de literatos invejosos. A burguesia trabalhadora, ávida ma", vendeu seu relógio de bolso, deixou os Francueil e
de conforto e de poder, podia julgar que havia muita começou a copiar música. Recusava o mundo permane-
declamação em tudo isso. Ela havia elaborado uma mito- cendo no meio dele; multidões iam à procura do solitá-
logia tranqüilizadora, baseada em liberalismo, tolerância, rio. Uma frase do livro VIII das Confessions mostra a que
justiça abstrata, progresso, cosmopolitismo, em nego- ponto tal ascese era uma facilidade perigosa: "Eu fingia
ciantes escrupulosos e ativos, em bem-estar geral e de- desprezar a polidez que não sabia praticar." Esse despre-
senvolvimento das luzes do saber. A insolência dos gran- zo da opinião pública pretende ainda ser aprovado pela
des, a arbitrariedade monárquica, o despotismo eclesiás- opinião pública: é o que atesta o prefácio de Narcisse,
tico já eram anacronismos, e o sol da felicidade burguesa que justifica longamente o autor do primeiro Discurso
raiava no horizonte. E chegava Rousseau, escoltado por por ter feito encenar uma comédia, antes de concluir
Licurgo e Fabrício, pelos citas e germanos, por aqueles que ele tinha de justificar-se apenas perante si mesmo.
que morrem pela pátria e queimam as bibliotecas. Exal- Uma vez que bárbaros há, Rousseau pode responder
tava os camponeses, esses últimos "cidadãos( ... ) disper- como bárbaro a seus contraditares; como bárbaro que,
sos pelos nossos campos abandonados (onde) perecem todavia, tem o sentido das conveniências: o tom para o
indigentes e menosprezados" (p. 31). Chamava os ho- rei Estanislau não é o mesmo que para o obscuro cõne-
mens de volta ao "sentimento dessa liberdade original go Gautier. Mas, afinal, a frase se torna mais curta, a sen-

XII XIII
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _____ ~~~Introdução _ _ __

tença mais aforística e mais estóica. Mais sombrio tam- das Letras", mas acentua o maniqueísmo revolucionário,
bém o quadro da sociedade contemporânea: com oposições de termos que merecem atenção:

Não acuso os homens deste século de terem todos os Sei de antemão com que grandiosas palavras me ata-
vícios; eles só têm aqueles das almas covardes; são ape- carão. Luzes, conhecimentos, leis, moral, razão, decoro,
nas velhacos e tratantes. Quanto aos vícios que pressu- consideração, doçura, amenidade, polidez, educação, etc.
põem coragem e firmeza, considero-os incapazes deles. A tudo isso só responderei com duas outras palavras, que
soam ainda mais fortemente em meus ouvidos. Virtude,
Esses homens que, ainda segundo a Última resposta, verdade! exclamarei sem cessar; verdade, virtude!
"convivem como os leões e os ursos, como os tigres e os
crocodilos", "não se deve conceber o quimérico projeto A resposta a Estanislau tem o interesse de mostrar
de transformá-los em pessoas de bem". A sociedade está que Rousseau conhece muito bem a tradição cristã que
tão totalmente pervertida, que não há a menor esperança exalta a simplicidade evangélica, condenando as ciências
profanas e as letras pagãs; acabara de ler De vanitate et
de corrigi-la, e Rousseau chega, no prefácio de Narcisse,
incertitudine scientiarum, de Agrippa de Nettesheim, e
a justificar assim o teatro:
sua conclusão seria digna de um representante do evan-
gelismo do século XVI: "A Ciência se expande e a Fé se
Já não se trata de levar os povos a praticar o bem, é
extingue (. .. ); tornamo-nos todos Doutores, e deixamos
preciso somente desviá-los de praticar o mal; é preciso
ocupá-los com bobagens para desviá-los das más ações
de ser Cristãos." Mas, embora tenha aceitado seguir Es-
(. .. )Julgar-me-ia muito feliz em ter todos os dias uma Pe- tanislau nesse terreno, Rousseau não pensa como cris-
ça para ser vaiada, se eu pudesse a esse preço conter du- tão; o importante é, ao contrário, que pela primeira vez
rante duas horas os maus desígnios de um só dos espec- ele especifica o mecanismo, puramente social, da per-
tadores, e salvar a honra da filha ou da mulher de seu versão do homem:
amigo, o segredo de seu confidente ou a fortuna de seu
credor. Eis como eu ordenaria essa genealogia. A primeira
fonte do mal é a desigualdade; da desigualdade vieram as
riquezas, pois as palavras pobre e rico são relativas e, em
Havia nisso certo exagero, como Grimm devia ob-
toda parte em que os homens forem iguais, não haverá
servar, e é compreensível que esse prefácio tenha preju- ricos nem pobres. Das riquezas nasceram o luxo e o ócio;
dicado Rousseau e tenha "estragado seu triunfo". do luxo vieram as belas-artes, e do ócio, as ciências.
Entretanto, à medida que a controvérsia vai-se de-
senrolando, o pensamento de Rousseau se completa. A Rousseau corrigirá e completará essa genealogia; mas,
Carta a Raynal assinala ainda o "primeiro grau da deca- daí em diante, a desigualdade desempenha nela um pa-
dência dos costumes no primeiro momento da cultura pel fundamental.

XIV XV
Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ ___ ______ -----~Introdução ___________

De passagem, Rousseau se desvencilhara um tanto realmente a sua, que nessa última obra, em que mais ne-
rapidamente de uma objeção apresentada por d'Alembert nhuma coerção acadêmica ou de decoro o retém, e que
no Discurso preliminar da Enciclopédia, que tendia a su- Grimm julgava "igual e até mesmo superior ao próprio
gerir outras causas geográficas, políticas, históricas, para discurso". Com a mesma violência, as mesmas afirma-
a moralidade ou para a imoralidade dos povos. Rousseau ções gerais e contundentes, que não admitem nem deli-
preferia ater-se à desigualdade, talvez porque tal explica- cadezas de expressão nem contradição, o prefácio de
ção o justificasse, por sua vez, pessoalmente. Ele acaba- Narcisse resume e define um pensamento que se torna
va de abandonar seu terceiro filho à roda dos expostos, cada vez mais claro:
não estava muito orgulhoso disso, mas agora podia res-
ponder às censuras da sra. de Francueil: "É a classe dos Estranha e funesta constituição em que as riquezas
ricos, é sua classe, que rouba da minha o pão de meus acumuladas sempre facilitam os meios de acumular outras
filhos" - explicação em que não pensara para os dois maiores, e em que é impossível a quem nada tem adquirir
primeiros. alguma coisa; em que o homem de bem não tem nenhum
meio de sair da miséria; em que os mais tratantes são os
A Última resposta vai mais longe ainda, ao repelir vi-
mais reverenciados, e em que é preciso necessariamente
vamente a idéia da corrupção natural do homem, bem renunciar à virtude para tornar-se um homem de socieda-
como a idéia cristã de um pecado original, e ao denun- de! Sei que os peroradores disseram isso cem vezes; mas
ciar a propriedade como origem da desigualdade e de o diziam perorando, e eu o digo baseado em razões; eles
todos os vícios. perceberam o mal, e eu descobri sua causa, e sobretudo
torno evidente algo muito consolador e muito útil ao
Antes que as horríveis palavras teu e meu fossem in- mostrar que todos os nossos vícios não pertencem tanto
ventadas, antes que houvesse essa espécie de homens ao homem quanto ao homem mal governado.
cruéis e brutais chamados senhores, e essa outra espécie
de homens velhacos e mentirosos chamados escravos; E Rousseau acrescenta em nota:
antes que houvesse homens assaz abomináveis para ou-
sar ter o supérfluo enquanto outros homens morrem de Entre os selvagens, o interesse pessoal fala tão alto
fome; antes que uma dependência mútua houvesse for- quanto entre nós, mas não diz as mesmas coisas: o amor à
çado todos a se tornarem hipócritas, invejosos e traido- sociedade e o cuidado com sua defesa comum são os úni-
res, eu gostaria muito que me explicassem em que con- cos laços que os unem; a palavra propriedade, que custa
sistiam esses vícios, esses crimes que lhes condenam com tantos crimes a nossos homens de sociedade, quase não
tanta ênfase. tem sentido entre eles; não têm entre si nenhuma discus-
são de interesse que os divida; nada os leva a enganar-se
jamais, aliás, Rousseau dera tão livre curso a uma um ao outro; a estima pública é o único bem ao qual cada
eloqüência violenta e apaixonada, à eloqüência que é um aspira e que todos eles merecem (. .. ) Digo-o com

XVI XVII
- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ Introdução ____ - - · · · - - - - - -

pesar; o homem de bem é aquele que não necessita enga- escravo. Mas não se sabe ainda o que é o estado de
nar ninguém, e o selvagem é esse homem. natureza: a idade das "choupanas", os selvagens, Lace-
demônia? De qualquer modo, ao que parece, é uma for-
Agora, Rousseau tomou consciência de seu pensa- ma primitiva de sociedade. Também não se sabe o que é
mento, mas também de sua originalidade e de sua mis- a bondade, nem sequer a virtude. Vínculo da sociedade
são. "Creio ter descoberto grandes coisas e as expus com primitiva, a virtude não exclui entre os selvagens o inte-
uma franqueza bastante perigosa", escreve ele no prefá- resse pessoal. Está do lado da verdade, mas opõe-se
~io de uma segunda carta a Bordes. Seu personagem curiosamente às leis, à moral, à razão. Parece estar liga-
está definido: "Um ser isolado que nada deseja e nada da mais à ausência de ocasião do que ao esforço da von-
teme de ninguém, que fala aos outros por eles, e não tade: "O homem de bem é aquele que não necessita
por si mesmo (. .. ), um homem que preza muito seus enganar ninguém"; e cabe ao "governo" afastar as oca-
irmãos para não odiar seus vícios." Possuidor "de um siões. Como, por outro lado, distinguir "o homem" do
sistema verdadeiro mas doloroso", "convencido de que é "homem (bem ou) mal governado"? Enfim, como os
o da verdade e da virtude e de que é por tê-lo abandona- homens degeneraram de "sua bondade primitiva"? A to-
do intempestivamente que a maioria dos homens (fica- das essas perguntas o segundo Discurso trará respostas.
r~m) degenerados de sua bondade primitiva", até supõe Mas Rousseau fez a mais importante de suas descober-
te-lo concebido por inteiro desde o primeiro instante e tas: encontrou a si mesmo.
só lhe ter dissimulado a coerência por método: "Foi para
poder dar a conhecer tudo que eu não quis dizer tudo. Quando, sem grande esperança de ganhar o prêmio,
Apenas sucessivamente e sempre para poucos leitores é Rousseau decidiu tratar do tema apresentado no concur-
que desenvolvi minhas idéias. Não foi a mim que pou- so pela Academia de Dijon para 1754: "Qual é a origem
pei, mas à verdade, a fim de transmiti-la com mais segu- da desigualdade entre os homens, e se ela foi autorizada
r:nça e de torná-la útil." A imagem do pedagogo do pela lei natural", ele deixou Paris e foi meditar durante
genero humano, do profeta da verdade, iluminado pela uma semana na floresta de Saint-Germain. De fato, uma
luz súbita da Revelação, está daí em diante constituída. imagem domina a primeira parte do segundo Discurso, a
Mais ainda que o primeiro Discurso, foi portanto a da solidão na floresta. Imagem antiga, terrível e misterio-
controvérsia que o seguiu que deu a Rousseau a oportu- sa, da hostilidade da natureza, a floresta é aqui, como
nidade de fixar as bases de seu pensamento. Vários pon- em Tácito ou no barão de La Hontan, o lugar da liberda-
tos, entretanto, permanecem obscuros. O homem é na- de, da virtude e da felicidade, o refúgio contra os ho-
turalmente bom; a sociedade, fundada na propriedade e mens, doravante mais temíveis que a natureza. Para
na desigualdade, é a causa de todos os seus vícios, que Rousseau , ela é o contrário da cidade e de sua promis-
nascem da dependência recíproca entre o senhor e 0 cuidade, o lugar onde ele encontra a saúde do corpo e a

XVIII XIX
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ Jntrodução ______ - - - - - - - -

liberdade do espírito, onde pode escutar as reações de mente, contra a história que a oprime. Ela não é memó-
seu eu profundo e natural. "De onde o pintor e o apolo- ria de um passado remoto e perdido, mas permanência
gista da natureza, hoje tão desfigurada e caluniada, pode do Paraíso no cerne da queda, presença no cerne da his-
ter tirado seu modelo, a não ser de seu próprio coração?" tória de um ser não histórico. O mal tem uma história, o
escreverá ele no Terceiro diálogo. Na floresta, Rousseau bem não. Ou melhor, o mal é a história e o bem é o que
pode sentir "seu próprio coração", em sua inocência ori- a recusa, o que a transpassa, o que ela pode ocultar, mas
ginal. não alterar ou destruir. Sobre o bem, ou seja, sobre a na-
' Essa própria inocência, tão pouco reconhecida e, o tureza, a história nada pode nos dizer:
que é pior, tão pouco ativa no seio da sociedade, suscita
o maior problema do segundo Discurso: o problema do Comecemos, pois, por descartar todos os fatos, pois
mal. O mal não pode vir de Deus, principalmente por- eles não se prendem à questão. Não se devem tomar as
que, aqui também, Deus não aparece. Sabemos que não pesquisas que se podem realizar sobre esse assunto por
verdades históricas, mas somente por raciocínios hipotéti-
vem do homem, e sim do homem "mal governado". O
cos e condicionais, mais apropriados para esclarecer a
fato de o mal ser um problema político apenas desloca a natureza das coisas do que para lhes mostrar a verdadeira
questão: qual a razão para que o homem inocente tenha origem, e semelhantes aos que fazem, todos os dias, os
chegado a ser "mal governado"? Obrigado a resolver o nossos físicos sobre a formação do mundo (p. 145).
problema das origens, Rousseau redescobre ao mesmo
tempo o esquema judaico-cristão do Paraíso e da queda, Mais do que a Buffon, em quem Rousseau parece
até que O contrato social nos traga os meios da reden- pensar, somos remetidos a Descartes, e a uma cosmogo-
ção. Mas nenhuma Revelação vem sustentar a hipótese. nia muito mais explicativa do que histórica. Trata-se de
Cumpre reconstruir o passado à luz do presente, como "bem conhecer um estado que já não existe, que talvez
Buffon acabou de fazer em sua Tbéorie de la Terre, pu- não tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e
blicada em 1749, e sobretudo na cosmogonia que a do qual é necessário, porém, ter noções exatas para bem
acompanha- método hipotético-dedutivo, em que o va- julgar nosso estado presente" (p. 135). Julgar, isto é,
lor da hipótese é demonstrado pela concordância de comparar, medir em toda a sua extensão a distância que
suas conseqüências com os fatos. separa "o homem do homem" do "homem da natureza",
Mas será possível operar assim, enquanto a inocên- mas também compreender, apreender as formas e as mo-
cia perdida está sempre presente no coração do homem, ralidades dessa degradação. A primeira parte do Discur-
por mais "mal governado" que ele seja? Essa inocência so, ao apresentar um quadro do "homem da natureza",
sufocada, mas sempre viva, e que Rousseau ouve gemer permitirá a comparação; a segunda, ao descrever a de-
no fundo de seu coração, contesta radicalmente tudo o gradação, explicará seu encadeamento fatal. Mas o esta-
que não é ela própria. Ela testemunha, imediata e pura- do de natureza não está na história: os séculos escoam-

XX XXI
~~---------Rousseau~--------~- ------~---Introdução~--------

se sem que se saia das "primeiras idades", e nenhum mo- de de subsistência impõe ao homem a engenhosidade;
numento subsistiu para testemunhar sobre elas diante de triunfando mais sutilmente sobre animais, ele sente "o
nós, afora sua permanência, precisamente não histórica, primeiro movimento de orgulho". Conhece su~ superio-
no fundo de nosso coração. ridade; coloca-se no primeiro escalão. A des1gualdade
Separando assim a natureza da história, Rousseau nasce, mas ainda inocente, pois não reina entre os ho-
pode solapar a noção de lei natural, mito ambíguo, a meio mens. Mas a engenhosidade faz nascer "várias espécies
caminho entre a lei da natureza e a lei positiva, e cuja de comodidades desconhecidas" até então, e que logo se
utilidade era sobretudo dar às leis positivas, ou seja, a tornam necessidades. As famílias se constituem, os caça-
uma ordem social e política, a caução de um absoluto dores se associam para acossar sua presa, os homens,
metafísico. A natureza conhece "dois princípios anterio- enfim, "aproximam-se lentamente, reúnem-se em diver-
res à razão", o amor a si mesmo e a piedade, mas não sos grupos". É a idade das choupanas, e o nascimento
conhece lei: toda lei positiva é social; ela só aparece na do amor. Idade feliz, pois cada qual trabalha sozinho e
história e o homem não pode eximir-se da responsabili- ninguém tem "necessidade do auxílio de um outro": os
dade por ela. Puramente humana, ela é plenamente su- homens podem "usufruir entre si as doçuras de um rela-
jeita à crítica, à reforma, ou à revolução. A natureza não cionamento independente".
avaliza a ordem burguesa. No entanto, e muito antes que se trate de proprieda-
Entretanto, se é verdade que o estado de natureza de, de subordinação, de dependência, o verme está no
está fora da história, como pôde o homem sair dele para fruto. É curioso, porém revelador, que, para Rousseau,
cair na história? Sua liberdade não está em questão: ne- sejam os divertimentos e as artes os responsáveis pelo
nhuma decisão foi tomada, nenhum raciocínio podia nascimento dos maus sentimentos:
ditar uma escolha. A "perfectibilidade", que por nada era
solicitada, permanecia muda. Para sair do círculo encan- Acostumam-se a reunir-se defronte das cabanas ou à
tado, Rousseau devia supor "concursos singulares e for- volta de uma grande árvore; o canto e a dança, verdadei-
tuitos de circunstâncias ( ... ) que poderiam muito bem ros filhos do amor e do lazer, tornaram-se a diversão, ou
nunca ocorrer", em suma, o acaso, o acidene demográfi- melhor, a ocupação dos homens e das mulheres ociosos e
co ou geológico. Nenhum outro caminho estava aberto, agrupados. Cada qual começou a olhar os outros e a que-
rer ser olhado por sua vez, e a estima pública teve um
afora a intervenção da divindade: Buffon, da mesma ma-
preço. Aquele que cantava ou dançava melhor; o mais
neira, fizera sua cosmogonia repousar num acidente for-
belo, o mais forte, o mais hábil ou o mais eloqüente pas-
tuito, mas verossímil. sou a ser o mais considerado, e foi esse o primeiro passo
"À medida que o gênero humano se expandiu, as la- para a desigualdade e para o vício ao mesmo tempo; des-
butas multiplicaram-se com os homens." A frase trai a sas primeiras preferências nasceram, de um lado a vaida-
saudade de uma solidão já ameaçada. A maior dificulda- de e o desprezo, do outro a vergonha e o desejo; e a fer-

XXII XXIII
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ ~ ____ _ _ _ _ ----~~ __ Introdução ---------

mentação causada por esses novos germes produziu por Eis ( ... ) a posição e a sorte de cada homem estabele-
fim compostos funestos à felicidade e à inocência (pp. cidas, não só quanto à quantidade de bens e ao poder de
187-8). servir ou de prejudicar, mas também quanto ao espírito, à
beleza, à força ou à habilidade, quanto ao mérito e aos
Desde então, de fato, cada qual exigirá consideração, talentos, e, sendo tais qualidades as únicas que podiam
e se vingará se lhe for recusada. E, "cada qual punindo o granjear a consideração, logo foi preciso tê-las ou afetar
desprezo que lhe haviam demonstrado de maneira pro- tê-las; para proveito próprio, foi preciso mostrar-se dife-
rente do que de fato se era. Ser e parecer tornaram-se
porcional à importância que atribuía a si mesmo, as vin-
duas coisas totalmente diferentes, e dessa distinção pro-
ganças se tornaram terríveis, e os homens sangüinários e
vieram o fausto imponente, a astúcia enganadora e todos
cruéis".
os vícios que formam seu cortejo (p. 193).
Mas o que isso quer dizer, senão que toda socieda-
de engendra a guerra, e que basta que os homens se reú-
É, pois, a sociedade em si mesma que engendra essa
nam, mesmo para cantar e dançar, para que nasça a de-
opacidade de que Rousseau se queixava no primeiro
sigualdade, para que o parecer fique mais importante
Discurso: 'já não se ousa parecer o que se é." Mas a agri-
que o ser, para que a vaidade e a inveja comecem a de-
cultura, a propriedade, a distribuição do trabalho criaram
vorar o coração do homem, em suma, para que o mal
entre esses homens desiguais e opacos uns aos outros os
apareça. Nenhuma organização social pode fazer com
vínculos de uma intolerável dependência mútua; a desi-
que todos os homens dancem igualmente bem: para im-
gualdade multiplicada pela propriedade engendrou um
pedir a comparação e suas conseqüências, seria preciso
estado de guerras contínuas, do qual só foi possível sair
dispersar os dançarinos pelas florestas desertas, destruir
imediatamente a sociedade nascente. Mas já é tarde criando a sociedade civil, que degenerou em opressão
demais. legal. "O estado de rico e de pobre" tornou-se "o de po-
Portanto, apesar do célebre ataque que abre a Se- deroso e de fraco" e, enfim, "o de senhor e de escravo,
gunda parte, e que se contenta em ilustrar com elo- que é o derradeiro grau da desigualdade". A degradação
qüência um tema perfeitamente clássico, não é a pro- moral fomentou a degradação política; acompanha-a, ali-
priedade que é responsável pela infelicidade da huma- menta-se dela; está hoje em seu auge: os ricos "deixariam
nidade. Se é verdade que "foram o ferro e o trigo que ci- de ser felizes, se o povo deixasse de ser miserável".
vilizaram os homens e perderam o gênero humano" (p.
190), não foram eles que introduziram a desigualdade. O segundo Discurso, sobretudo em sua segunda par-
A propriedade, a riqueza não passam de meios de "co- te, mostra uma forte cultura política e um esforço consi-
locar-se acima dos outros". São apenas um aspecto da derável de documentação. Rousseau conhece, cita e dis-
desigualdade: cute os grandes teóricos dos séculos XVII e XVIII, Gro-
tius, Hobbes, Pufendorf, Barbeyrac, Burlamaqui. Utiliza

XXIV XXV
- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __
Introdução--~--~-------

tudo o que se podia saber em seu tempo sobre as socie-


duzir um homem sábio e um punhado de gente regurgi-
dades selvagens, e descreve com uma singular felicidade
tar de superfluidades enquanto a multidão esfaimada ca-
etapas da humanidade que conhecemos hoje pela ar- rece do necessário". O mesmo dogmatismo maniqueísta
queologia pré-histórica: "A idade das choupanas", com anima os dois discursos, ainda que o segundo seja sus-
sua economia de colheita de comestíveis silvestres e de tentado por análises mais precisas e raciocínios mais
caça, corresponde bem ao nosso paleolítico, e a revolu- rigorosos.
ção introduzida pela agricultura é aproximadamente a Por sua exigência política ser principalmente uma
nossa revolução neolítica. Se o quadro do estado de na- exigência moral de comunhão e de felicidade, Rousseau
tureza, sem desprezar, aliás, as informações fornecidas foi levado a buscar fora da história e de qualquer socie-
pelos naturalistas, sobretudo por Buffon, atende a princí- dade um estado em que o homem fosse inocente e feliz.
pio às exigências de seu coração, Rousseau cuidou de Quanto mais radical é sua crítica, mais difícil será sua
não descartar todos os fatos assim que abordava a parte tarefa ao tentar reconciliar a história com a natureza e
histórica de sua exposição, e sua reconstituição nada tem devolver ao homem a felicidade conhecida naturalmente
de um romance. Seria preciso um longo exame para es- por esse ser primitivo, que não era ainda um homem.
gotar-lhe a riqueza. Mas não dependia dele não tentar essa síntese, pois não
Mas está bem claro que essa análise do passado, em- via outro meio de atingir ele próprio a felicidade. Sua
bora deva explicar o presente, não deve em absoluto violência atesta um envolvimento pessoal, sem o qual
justificá-lo. Pelo vigor do raciocínio, pela extensão da não seria mais que um teórico político entre os outros.
informação, pela colocação dos problemas, o segundo Como escreveu P. Burgelin, "ele continua sendo um pro-
Discurso é muito mais sólido que o primeiro; mas é ins- feta do mundo contemporâneo porque foi o único a fa-
pirado pelo mesmo sofrimento íntimo e pela mesma in- zer o problema da ordem social provir das exigências de
dignação revolucionária. À medida que se aproxima da autenticidade existencial, e a vincular sua própria salva-
situação presente, as frases tornam-se mais violentas: ção à salvação do Estado". Somente ao final de uma
"Não é a escravos que compete raciocinar sobre a liber- longa agonia, e quando se julgar abandonado por todos,
dade" (p. 202); "quanto mais indolentes se pudessem é que Rousseau tentará salvar-se sozinho.
contar numa família, mais ilustre ela se tornava" (p. 210);
"(os ricos) deixariam de ser felizes se o povo deixasse de ]ACQUES RoGER

ser miserável" (p. 211): "a mais cega obediência é a úni-


ca virtude que resta aos escravos" (p. 213); enfim, para
encerrar qualquer discussão inútil, "é claramente contra
a lei da natureza, seja qual for a maneira por que a defi-
namos, uma criança mandar num velho, um imbecil con-

XXVI
XXVII
Cronologia

I. A Preparação (1712-1742)

1712, 28 de junho. Nasce em Genebra]ean-Jacques Rous-


seau, segundo filho de lsaac Rousseau e Suzanne
Bernard. Esta morre em 7 de julho.
1712. Berkeley: Diálogos entre Hylas e Philonous.
1712-1722. Rousseau vive com seu pai, e sob sua influên-
cia lê romances, sobretudo Plutarco.
1713. Nascimento de Diderot.
1714. Leibniz: Monadologie.
1715. Morte de Luís XIV.
1721. Fundação da primeira loja maçônica na França.
Montesquieu: Lettres persanes.
1722-1724. Isaac Rousseau muda-se para Nyon em 1722.
Jean-Jacques e seu primo Abraham Bernard são
mandados para Bossey, onde são pensionistas do
pastor Lambercier.
1722. ].-S. Bach: Cravo bem temperado.
1724. Nascimento de Kant.
1725. Aprendizado com o gravador Ducommun.
1727. Morte de Newton.
1728, 14 de março. Rol]sseau abandona Genebra e torna-
- - - - - - - - - - R o u s s e a u ______ _________________ cronologia _____________

se católico. No dia 21 encontra a sra. de Warens em 1743-1744. Relações com os Dupin e com os Francueil.
Annecy. Em 21 de abril abjura em Turim. Trabalha Começa a escrever uma ópera: Les muses galantes.
como lacaio e secretário. Rousseau passa uma temporada em Veneza como
1729-1731. Após um ano de serviço na casa de parti- secretário do embaixador da França. Descobre a
culares na Itália, Rousseau vai viver em casa da importância da política.
sra. de Warens em Annecy, mais tarde em Cham- 1745. Amizade com Diderot. Primeira apresentação de
béty. Aprenderá diversos ofícios, especialmente mú- Les muses galantes. Início de sua ligação com Thé-
sica. Viagens à Suíça 0730-1731) e a Paris (junho- rese Levasseur. Deixará seus filhos no Enfants-Trou-
agosto de 1731). vés (asilo de crianças abandonadas).
1731, outubro-1732, junho. Rousseau trabalha no cadas- 1746. Secretário da sra. Dupin, Rousseau trabalha com
tro de Savóia. ela em um livro sobre as mulheres. Publicação Essai
1734. Montesquieu: Considérations. sur /'origine des conaissances humaines de Con-
Voltaire: Lettres anglaises. dillac.
1735 ou 1736 Primeira estada em Charmettes (Chambé- 1748. Montesquieu publica O espírito das leis.
ty), casa de campo da sra. de Warens, onde come- 1749. Rousseau escreve os artigos sobre música da En-
ça a escrever. cyclopédie. Em outubro, na estrada de Vincennes,
1738-1739. Em Charmettes, Rousseau prossegue sua indo visitar Diderot, que está preso, lê no Mercure
educação científica, literária, filosófica e compõe de France o tema do concurso da Academia de
seu magasin d'idées. Dijon: "Se o restabelecimento das ciências e das
1739. Hume: Traité de la nature humaine. artes contribuiu para purificar os costumes"; tem
Frédéric li: Anti-Macbiavel. uma inspiração repentina. Buffon começa a publi-
1740-1741. Estada em Lyon como preceptor dos filhos de car sua História natural.
Mably, função em que não se sai bem. Escreve 0 1749. Nascimento de Goethe.
Projet pour l'éducation de M. de Sainte-Marie. Entra 1750, 9 de julho. O Discours de Rousseau sobre as ciên-
em contato com o filósofo Bordes e com o cirur- cias e as artes é laureado. Esse ataque contra a ci-
gião Parisot. vilização parisiense terá grande repercussão e será
objeto de polêmicas de 1750 a 1752.
1751. Voltaire: Le siecle de Louis XIV
li. Os anos parisienses (1742-1756) Início da publicação da Encyclopédie.
1752, outubro. Le devin vil/age, letra e música de Rous-
1742. De?ois de sua chegada a Paris, Rousseau apresen- seau, é representada em presença de Luís XV. O
ta a Academia de Ciências seu Projet concernant autor se retira· sem querer ser apresentado. Em de-
de nouveaux signes pour la musique. zembro, no Théâtre-Français, representação de sua

XXX XXXI
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau - - - - - _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ cronologia _ _ _ _ _ _ _ _ __

peça Narcisse ou l 'amant de lui-même, para a qual 1758. Rousseau responde ao artigo de Alembert sobre
escreve um importante prefácio. Genebra, publicado no tomo VII da Encyclopé-
1753, novembro. Retiro em Saint-Germain para meditar die: a Lettre a M. d'Alembert sur les spectacles. Por-
sobre o tema proposto pela Academia de Dijon: que Rousseau não quer o teatro que Voltaire e
"Qual é a origem da desigualdade entre os homens seus amigos queriam ver estabelecido em Genebra.
e se é autorizada pela lei natural". Seu discurso Rousseau termina a redação de La nouvelle Hé-
sobre esse tema será o ponto de partida de sua obra loise e começa a preparar Émile. Abandona a idéia
política. Logo depois de sua Lettre sur la musique de escrever suas Institutions politiques. Trabalha
française, recusam-lhe o ingresso à Ópera (de- sobre os manuscritos do abade de Saint-Pierre
zembro). (1658-1743).
1754. Viagem a Genebra. Rousseau é integrado na Igreja 1758. Quesnay: Tableau économique.
Calvinista, recebe a comunhão e recupera seus di- 1759. Voltaire publica Candide, que Rousseau não lê.
reitos de cidadão. Amizade com o marechal e sra. de Luxembourg.
1755. Publicação do segundo Discours com uma dedi- 1759. Condenação da Encyclopédie.
catória à República de Genebra, um prefácio e no- 1760. Franklin: invenção do pára-raio.
ta?. O tomo V da Encyclopédie contém o artigo 1761, janeiro. Publicação e sucesso de La nouvelle Hé-
"Economie politique".
loise.
1755. Morte de Montesquieu.
1762, janeiro. Rousseau escreve as quatro cartas autobio-
gráficas a Malesherbes. O contrato social é publi-
cado em abril e Émile em maio.
III. A solidão de Montmorency (1756-1762)

1756, 9 de abril. Rousseau instala-se em Ermitage, casa


de campo da sra. D'Epinay. Começa a meditar so- IV. Os anos errantes (1762-1770)
bre os amores de Saint-Preux e ]ulie.
18 de agosto. Carta a Voltaire sobre o tremor de 1762, 9 de junho. Condenação de Émilee processos con-
terra em Lisboa e a Providência. tra o autor, que foge e se refugia em Yverdon (14
1756. Nascimento de Mozart. de junho), depois em Môtiers (lO de julho), no
Voltaire: Essay sur les moeurs. principado de Neuchâtel, que pertence ao rei Fre-
Marquês de Mirabeau: L 'ami des hommes. derico da Prússia. Em 19 de junho Émile e O con-
1757. Idílio com a sra. de Houdetot. Briga com Grimm, trato social são queimados em Genebra. Em 28 de
sra. D'Epinay e Diderot. Em dezembro instala-se agosto, pastora~ contra Émile de Christophe de
no Montlouis em Montmorency. Beaumont, arcebispo de Paris. Rousseau respon-

XXXII XXXIII
__________RousseaU---------- _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ cronowg~----------

de para se defender; é a Lettre à Christophe de V. Paris. Últimos anos 0770-1778)


Beaumont, que será publicada em março do ano
seguinte. 1770. Em abril, Rousseau deixa Monquin, onde tinha se
1763. Rousseau renuncia à burguesia de Genebra. Seu estabelecido no fim de janeiro de 1769. Em junho
compatriota Tronchin publica as Lettres écrits de la instala-se em Paris, na rua Plâtriere. Começa a fa-
campagne. zer leituras privadas das Confessions.
1764. Rousseau responde a Tronchin através das Lettres 1770. Nascimento de Hegel.
écrites de la montagne, onde ataca o processo uti- 1771. Começo de suas relações com Bernardin de Saint-
lizado contra ele e examina as instituições religio- Pierre. Leituras públicas das Confessions. Conclui
sas e civis de Genebra. São publicadas no fim de suas Considérations sur te gouvernement de Po-
outubro. Empenha-se em redigir um projeto de logne, escritas a pedido de Wielhorsky.
constituição para a Córsega. Trabalha em suas Con- 1772. Nascimento de Ricardo, de Fourier, de Novalis e
fessions. de Coleridge.
1764. Voltaire: Dictionnaire philosophique. Fim da publicação da Encyclopédie.
1765. Rousseau, que pratica sua religião, desentende- 1773. Rousseau escreve seus Dialogues começados no
se com o pastor e com os habitantes de Môtiers. ano anterior: Rousseau juge de jean-jacques, para
Estadas na ilha de Saint-Pierre. Em outubro é ex- defender sua obra e sua pessoa perante a posteri-
pulso pelo Pequeno Conselho de Berna. É feste- dade.
jado em Estrasburgo (novembro) e em Paris (de- 1774. Morte de Luís XV.
zembro). 1775. Representação de Pigmalião na Comédie Fran-
1766. Partida para a Inglaterra com Hume. çaise.
1767. Rousseau, que se desentendeu com Hume, volta à 1776, 24 de fevereiro. Rousseau não consegue depositar
França e se instala no fim de junho em Trye, em seu manuscrito dos Dialogues no altar-mor de
Beauvaisis, em casa do príncipe de Conti. Seu Dic- Notre-Dame. Em abril distribuí na rua sua circular
tionnaire de musique é posto à venda em Paris no "A tout françaís aimant encore la justice e la véri-
final de novembro. té". Composição dos dois primeiros Passeios de
1767. ]ames Watt constrói a máquina a vapor. Rêveries du promeneur solitaire.
1768. Deixa Trye em meados de junho, passa por Lyon, 1776. Declaração de independência das colônias ingle-
Grenoble, Chambéry e se instala em Bourgoin sas na América.
no Dauphiné em agosto. No dia 30 casa-se com Thomas Paine: Tbe Common Sense.
Thérese. Adam Smith: A riqueza das nações.
1777. Composição dos cinco Passeios seguintes.

XXXIV XXXV
__________ Rousseau------ _ _ _ _ _ _ _ _ Cronologia _ _ _ _ _ __

1778. Composição dos últimos Passeios. Rousseau diri- 1794, 7 de maio. Por decreto da Convenção, o povo fran-
ge-se no dia 20 de maio a Ermenonville à casa do cês reconhece a existência de Deus, as sanções da
sr. de Girardin. Thérese vai ter com ele no dia 26. vida futura e a imortalidade da alma.
Rousseau morre no dia 2 de julho e é enterrado 26 de dezembro. Thérese Levassem oferece à Con-
no dia 4 na ilha dos Peupliers, que logo se torna- venção um manuscrito das Corifessions.
rá um local de peregrinação. 9-11 de outubro. Transferência dos restos de Rous-
.
1778. Morte de Voltaire (lO de maio) .
Goethe: Iphigénie (primeira versão).
seau para o Panthéon. A cerimônia é seguida de
festas solenes em Lyon e em diversas cidades.
1795. Kant publica seu livro: Para a paz perpétua.
1801. Dia 12 de julho Thérese Levassem morre em Ples-
VI. A glória póstuma sis-Belleville, perto de Ermenonville.

1782. Publicação das obras de Rousseau em Genebra


pelos cuidados de um comitê. Entre os inéditos:
os textos sobre o abade de Saint-Pierre (apenas os
Extraits sur la paix perpétuelle haviam sido publi-
cados em 1761), a primeira parte das Confessions,
os Dialogues e as Rêveries.
1788. Mme. de Stael publica suas Lettres sur le caractere
et les écrits dej.-j. Rousseau.
1789-1791. Assembléia Constituinte.
1790, julho. O busto de Rousseau é carregado triunfal-
mente em Paris.
1791, junho. A rua Plâtriere ganha o nome de).-). Rous-
seau.
21 de dezembro. A Assembléia Constituinte apro-
va a realização de uma estátua de Rousseau e a
concessão de uma pensão para sua viúva.
1792. O Conselho Geral de Genebra anula o decreto lan-
çado contra Rousseau.
1792. Queda da monarquia.

XXXVI
DISCURSO SOBRE AS
CIÊNCIAS E AS ARTES
DISCURSO
QUE RECEBEU O PRÊMIO
DA ACADEMIA DE DI]ON
No ano de 1750

Sobre a seguinte Questão proposta


pela mesma Academia:

Se o restabelecimento das ciências e das artes


contribuiu para aperfeiçoar os costumes.

Barbarus bic ego sum quia non intelligor illis*.


Ovídio

• Citação extraída dos Tristes. "Eu é que sou o bárbaro aqui, porque es-
sas pessoas não me compreendem." (N. da T.)
Advertência

O que é a celebridade? Eis a obra insignificante a que


devo a minha. Certo é que esta peça, que me valeu um
prêmio e tomou conhecido meu nome, é quando muito
medíocre, e atrevo-me a acrescentar que é uma das me-
nores de toda esta coletânea. Que abismo de misérias não
teria evitado o autor, se este primeiro livro houvesse sido
recebido apenas como o merecia! Porém, era preciso que
um favor, antes de mais nada injusto, atraísse paulatina-
mente sobre mim um rigor que o é ainda mais.
Prefácio

Eis uma das maiores e mais belas questões jamais


ventiladas. Não se trata, neste Discurso, dessas sutilezas
metafísicas que invadiram todas as partes da literatura, e
das quais nem sempre estão isentos os programas acadê-
micos, mas de uma dessas verdades vinculadas à felici-
dade do gênero humano.
Prevejo que dificilmente me perdoarão a decisão que
ousei tomar. Contrariando tudo o que hoje provoca a
admiração dos homens, não posso esperar senão uma
censura universal; e não é por ter sido honrado com a
aprovação de alguns sábios que devo contar com a do
público; por isso já me decidi, não me preocupo em agra-
dar nem aos eruditos pedantes, nem às pessoas em mo-
da. Haverá em todos os tempos homens destinados a se-
rem .subjugados pelas opiniões de seu século, de seu
país, de sua sociedade: faz-se hoje de espírito forte e de
filósofo quem, pela mesma razão, não passaria de um
fanático no tempo da Liga. Não se deve escrever para tais
leitores, quando se quer viver mais além de seu século.
Mais uma palavra e terminarei. Pouco contando com
a honra que recebi, depois de enviar este Discurso, mo-
difiquei-o e aumentei-o a ponto de transformá-lo, de cer-

7
_____________________ Ro~u _____________________

to modo, noutra obra; hoje, senti-me obrigado a restabe- Discurso


lecê-lo no estado em que foi laureado. Acrescentei-lhe
somente algumas notas e deixei duas adições fáceis de
serem reconhecidas e que a Academia talvez não aprovas- Decipimur specie recti*.
se. Achei que a eqüidade, o respeito e o reconhecimen-
to exigiam de mim esta advertência.

O restabelecimento das ciências e das artes terá con-


tribuído para aperfeiçoar ou para corromper os costu-
mes? Eis o que se trata de examinar. Que partido devo
tomar nesta questão? Aquele, senhores, que convém a
um homem de bem que nada sabe e que nem por isso
deixa de estimar-se.
Sinto que será difícil adequar o que tenho para dizer
ao tribunal a que compareço. Como ousar censurar as
ciências perante uma das mais sábias sociedades da Eu-
ropa, louvar a ignorância numa célebre Academia e con-
ciliar o desprezo pelo estudo com o respeito pelos ver-
dadeiros sábios? Percebi essas contradições, e elas não
me demoveram. Não é a ciência que maltrato, disse co-
migo mesmo, é a virtude que defendo perante homens
virtuosos. A probidade é ainda mais cara às pessoas de
bem do que a erudição aos doutos. O que tenho então a
temer? As luzes da assembléia que me ouve? Confesso
que sim; mas é pela constituição do discurso, e não pela
opinião do orador. Os soberanos eqüitativos nunca hesi-

• "Somos enganados pela aparência do bem." Arle poética, Horácio.


(N. da T.)

8 9
_____________________ Ro~eau _____________________

taram em condenar a si mesmos em discussões duvido- Primeira Parte


sas; e a posição mais vantajosa ao justo direito é a de ter
de defender-se contra uma parte íntegra e esclarecida,
juiz em causa própria.
A esse motivo que me encoraja, junta-se outro que
me determina: é que, depois de ter sustentado, segundo
minha luz natural, o partido da verdade, seja qual for
meu sucesso, há um prêmio que não me há de faltar e
que encontrarei no fundo de meu coração.

É um espetáculo grande e belo ver o homem sair a


bem dizer do nada por seus próprios esforços; dissipar,
pelas luzes de sua razão, as trevas em que o envolvera a
natureza; elevar-se acima de si mesmo; alçar-se pelo es-
pírito até as regiões celestes; percorrer a passos de gi-
gante, assim como o Sol, a vasta extensão do universo;
e, o que é ainda maior e mais difícil, penetrar em si mes-
mo para aí estudar o homem e conhecer-lhe a natureza,
os deveres e o fim. Todas essas maravilhas se renovaram
há poucas gerações.
A Europa recaíra na barbárie dos primeiros tempos.
Os povos desta parte do mundo, hoje tão esclarecida,
viviam há alguns séculos num estado pior do que a igno-
rância. Não sei que jargão científico, ainda mais despre-
zível do que a ignorância, havia usurpado o nome do
saber e opunha à sua volta um obstáculo quase invencí-
vel. Era preciso uma revolução para reconduzir os ho-
mens ao senso comum; ela veio afinal de onde menos
seria esperada. Foi o estúpido muçulmano, foi o eterno
flagelo das letras que as fez renascer entre nós. A queda
do trono de Constantino trouxe à Itália os escombros da
Grécia antiga. A França, por sua vez, enriqueceu-se com

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esses preciosos despojos. Logo as ciências seguiram as le- distanciadas da rusticidade tedesca e da pantomima ui-
tras; à arte de escrever juntou-se a arte de pensar; progres- tramontana: eis os frutos do gosto adquirido mediante
são que parece estranha e que talvez não seja mais que bons estudos e aperfeiçoado no trato com o mundo.
muitíssimo natural; e começou-se a sentir a principal van- Como seria agradável viver entre nós, se a continên-
tagem do trato com as musas, a de tomar os homens mais cia exterior fosse sempre a imagem das disposições do
sociáveis ao inspirar-lhes o desejo de se deleitarem uns coração, se a decência fosse a virtude, se nossas máximas
aos outros com obras dignas de sua aprovação mútua. nos servissem de regras, se a verdadeira filosofia fosse
O espírito, como o corpo, tem suas necessidades. inseparável do título de filósofo! Mas tantas qualidades
Estas são os fundamentos da sociedade, as demais são raramente caminham juntas, e a virtude não é muito com-
seu ornamento. Enquanto o governo e as leis suprem à patível com tão grande· pompa. A riqueza dos adereços
segurança e ao bem-estar dos homens reunidos, as ciên- pode anunciar um homem opulento, e sua elegância,
cias, as letras e as artes, menos despóticas e talvez mais um homem de gosto; o homem sadio e robusto é reco-
poderosas, estendem guirlandas de flores nas correntes nhecido por outros sinais; é sob a roupa rústica de. um
de ferro que eles carregam, sufocam-lhes o sentimento lavrador e não sob os enfeites dourados de um cortesão
dessa liberdade original para a qual pareciam ter nasci- que se encontrarão a força e o vigor do corpo. Os ade-
do, fazem-nos amar sua escravidão e formam o que cha- reços não são menos estranhos à virtude, que é a força e
mamos de povos policiados. A necessidade ergueu os o vigor da alma. O homem de bem é um atleta que_ se
tronos, as ciências e as artes os consolidaram. Poderosos compraz em combater nu: despreza todos esses vis orna-
da terra, amai os talentos, e protegei aqueles que os cul- mentos que atrapalhariam o uso de suas forças, a maio-
tivam1. Povos policiados, cultivai-os; felizes escravos, vós ria dos quais só foi inventada para ocultar alguma defor-
lhes deveis esse gosto delicado e fino de que vos vanglo- midade.
riais, essa mansidão de caráter e essa urbanidade de cos- Antes que a arte houvesse moldado nossas maneiras
tumes que tornam tão ameno e tão fácil o trato entre vós; e ensinado nossas paixões a falar uma linguagem rebus-
em suma, as aparências de todas as virtudes, sem possuir cada, nossos costumes eram rústicos, mas naturais; e a
nenhuma delas. diferança dos procedimentos anunciava, ao primeiro lan-
Foi por essa espécie de polidez, tanto mais amável ce de olhos, a dos caracteres. No fundo, a natureza hu-
quanto menos afeta mostrar-se, que se distinguiram ou- mana não era melhor, mas os homens encontravam se-
trora Atenas e Roma nos dias tão exaltados de sua mag- gurança na facilidade de penetrar-se reciprocamente, e
nificência e de seu esplendor; é por ela, decerto, que tal vantagem, cujo valor já não percebemos, poupava-
nosso século e nossa nação sobrepujarão todos os tem- lhes muitos vícios.
pos e todos os povos. Um tom filosófico sem pedantis- Hoje, quando pesquisas mais sutis e um gosto mais
mo, maneiras naturais e contudo atenciosas, igualmente refinado reduziram a princípios a arte de agradar, reina

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em nossos costumes uma vil e enganosa uniformidade, e sábios de hoje, quanto a mim, não vejo nisso mais que
todos os espíritos parecem ter sido lançados numa mes- um refinamento de intemperança tão indigno de meu
ma fôrma: incessantemente a polidez exige, o decoro elogio quanto a artificiosa simplicidade deles 2 •
ordena; incessantemente seguem-se os hábitos tradicio- Tal é a pureza que nossos costumes adquiriram. Foi
nais, jamais a própria índole. Já não se ousa parecer o assim que nos tornamos pessoas de bem. Compete às
que se é; e, nessa coerção perpétua, os homens, que for- letras, às ciências e às artes reivindicar o que lhes perten-
mam esse rebanho a que se chama sociedade, postos nas ce numa obra tão salutar. Acrescentarei somente uma
mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas, se reflexão: se um habitante de alguma terra distante, que
motivos mais fortes não os desviarem. Portanto, nunca procurasse formar para si uma idéia dos costumes euro-
se saberá com quem se está lidando: será preciso, pois, peus baseando-se no estado das ciências entre nós, na
para conhecer o amigo, esperar as grandes ocasiões, ou perfeição de nossas artes, na decência de nossos espetá-
seja, esperar que já não haja tempo para tanto, uma vez culos, na polidez de nossas maneiras, na afabilidade de
que é para essas mesmas ocasiões que seria essencial co- nossos discursos, nas nossas perpétuas demonstrações
de benevolência e nesse tumultuoso concurso de ho-
nhecê-lo.
mens de todas as idades e de todos os estados que pare-
Que cortejo de vícios não acompanhará essa incer-
cem pressurosos, desde o raiar da aurora até o cair da
teza! Acabaram-se as amizades sinceras; acabou-se a esti-
tarde, em obsequiar-se reciprocamente; esse estrangeiro,
ma real; acabou-se a confiança fundamentada. As sus-
digo eu, adivinharia em nossos costumes exatamente o
peitas, as desconfianças, os temores, a frieza, a reserva,
contrário do que eles são.
o ódio, a traição se ocultarão continuamente sob esse Onde não há nenhum efeito, não há causa que pro-
véu uniforme e pérfido da polidez, sob essa urbanidade curar; porém aqui o efeito é certo, a depravação real, e
tão louvada que devemos às luzes do nosso século. Não nossas almas foram se corrompendo à medida que nos-
mais profanarão com juramentos o nome do senhor do sas ciências e nossas artes avançaram para a perfeição.
universo, mas o insultarão com blasfêmias, sem que nos- Dir-se-á que é uma infelicidade peculiar à nossa época?
sos escrupulosos ouvidos se ofendam com isso. Não elo- Não, senhores; os males causados por nossa vã curiosi-
giarão o mérito próprio, mas rebaixarão o alheio. Não ul- dade· são tão velhos quanto o mundo. A elevação e o
trajarão grosseiramente o inimigo, mas o caluniarão com rebaixamento diários das águas do oceano não estiveram
habilidade. Extinguir-se-ão os ódios nacionais, mas o com mais regularidade sujeitos ao curso do astro que nos
mesmo acontecerá com o amor à pátria. A ignorância me- ilumina durante a noite do que a sorte dos costumes e da
nosprezada será substituída por um perigoso pirronismo. probidade ao progresso das ciências e das artes. Viu-se a
Haverá excessos proscritos, vícios desonrados, mas ou- virtude desaparecer à medida que a luz das duas ia se
tros serão ornados com o nome de virtudes; cumprirá tê- elevando em nosso horizonte, e observou-se o mesmo
los ou fingi-los. Elogiará quem quiser a sobriedade dos fenômeno em todos os tempos e em todos os lugares.

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____________ Discurso sobre as ctências e as artes--------

Vede o Egito, essa primeira escola do universo, esse barbárie? Tudo quanto a devassidão e a corrupção têm
clima tão fértil sob um céu implacável, essa terra célebre, de mais vergonhoso; as traições, os assassinatos e os ve-
de onde Sesóstris partiu outrora para conquistar o mun- nenos têm de mais negro; o concurso de todos os crimes
do. Torna-se ela a mãe da filosofta e das belas-artes e, tem de mais atroz: eis o que forma o tecido da história
logo depois, vem a conquista de Cambises, depois a dos de Constantinopla; eis a fonte pura de onde nos emana-
gregos, dos romanos, dos árabes, e por ftm a dos turcos. ram as luzes de que se ufana o nosso século.
Vede a Grécia, outrora povoada de heróis que duas Mas por que procurar nos tempos recuados provas
vezes venceram a Ásia, uma diante de Tróia e a outra em de uma verdade cujos testemunhos subsistentes temos
seus próprios lares. As letras nascentes ainda não haviam ante os olhos? Há na Ásia uma região imensa onde as
levado a corrupção aos corações de seus habitantes; po- veneradas letras conduzem às primeiras dignidades do
rêm o progresso das artes, a dissolução dos costumes e Estado. Se as ciências aprimorassem os costumes, se en-
o jugo do macedônio seguiram-se de perto; e a Grécia, sinassem os homens a derramar seu sangue pela pátria,
sempre sábia, sempre voluptuosa e sempre escrava, não se animassem a coragem, os povos da China deveriam
conheceu em suas revoluções senão uma mudança de ser sábios, livres e invencíveis. Porém, se não há um ví-
senhores. Toda a eloqüência de Demóstenes nunca con- cio que não os domine, um crime que não lhes seja fami-
seguiu reanimar um corpo que o luxo e as artes haviam liar, se nem as luzes dos ministros, nem a pretensa sabe-
desftbrado. doria das leis, nem a multidão dos habitantes desse vasto
É no tempo dos Ênios e dos Terêncios que Roma, império puderam resguardá-lo do jugo do tártaro igno-
fundada por um pastor e ilustrada por lavradores, come- rante e grosseiro, de que lhe serviram todos os seus sá-
ça a degenerar. Mas, depois dos Ovídios, dos Catulos, bios? Que fruto retirou das honras com que estes são
dos Marciais e dessa multidão de autores obscenos, cujos cumulados? Acaso o de ser povoada de escravos e de
meros nomes alarmam o pudor, Roma, outrora o templo malvados?
da virtude, torna-se o teatro do crime, o opróbrio das Oponhamos a esses quadros o dos costumes do pe-
nações e o joguete dos bárbaros. Essa capital do mundo queno número de povos que, preservados desse contá-
cai aftnal sob o jugo que impusera a tantos povos, e o gio dos vãos conhecimentos, através de suas virtudes
dia de sua queda foi a véspera daquele em que se con- construíram a própria felicidade e tornaram-se exemplo
cedeu a um de seus cidadãos o título de árbitro do bom das outras nações. Assim foram os primeiros persas, na-
gosto. ção singular na qual se aprendia a virtude como entre
O que direi eu dessa metrópole do império do Orien- nós se aprende a ciência; que subjugou a Ásia com tanta
te que, por sua posição, parecia dever ser a do mundo facilidade e que foi a única a ter a glória de a história de
inteiro, desse asilo das ciências e das artes proscritas do suas instituições ser considerada um romance de filoso-
resto da Europa, talvez mais por sabedoria do que por fia. Assim foram os citas, de quem nos foram deixados

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ __

tão magníficos elogios. Assim foram os germanos, dos respondia à da linguagem. Lá se viam em toda a parte o
quais uma pena, cansada de traçar os crimes e as perver- mármore e a tela animados pelas mãos dos mestres mais
sidades de um povo instruído, opulento e voluptuoso, hábeis. Foi de Atenas que saíram essas obras surpreen-
aliviava-se ao descrever-lhes a simplicidade, a inocência dentes que servirão de modelos em todas as épocas cor-
e as virtudes. Assim fora a própria Roma nos tempos de rompidas. O quadro de Lacedemônia é menos brilhante.
sua pobreza e de sua ignorância. Enfim, assim se mos- Lá, diziam os outros povos, os homens nascem virtuosos,
trou até nossos dias essa nação rústica, tão enaltecida por e o próprio ar do país parece inspirar a virtude. De seus
sua coragem, que a adversidade não pôde abater, e por habitanteS' ficou-nos apenas a memória de suas ações
sua fidelidade, que o exemplo não pôde corromper3• heróicas. Tais monumentos valeriam menos para nós do
Não foi por estupidez que estes preferiram outros que os mármores curiosos que Atenas nos deixou?
exercícios aos do espírito. Não ignoravam que em outras Alguns sábios, é verdade, resistiram à torrente geral
terras homens ociosos passavam a vida discutindo sobre e se resguardaram do vício na morada das Musas. Ou-
o bem soberano, sobre o vício e sobre a virtude, e que, çamos, porém, o juízo que o primeiro e o mais infeliz
orgulhosos argumentadores, creditando a si mesmos os dentre eles fazia dos sábios e dos artistas de seu tempo.
maiores elogios, confundiam os outros povos, denomi- "Examinei", disse ele, "os poetas e vejo-os como
nando-os com desprezo bárbaros; mas eles considera- pessoas cujo talento ilude a eles mesmos e aos outros,
ram seus costumes e aprenderam a desdenhar sua dou- que se arvoram de sábios, que por tal são tornados e de
trina4. modo algum o são."
Poderia eu esquecer-me de que foi no próprio seio "Dos poetas", continua Sócrates, "passei aos artistas.
da Grécia que se viu erguer-se essa cidade célebre tanto Ninguém ignorava mais as artes do que eu, ninguém
por sua feliz ignorância quanto pela sabedoria de suas estava mais convencido de que os artistas possuíam be-
leis, essa República antes de semideuses do que de ho- líssimos segredos. Entretanto, percebi que a· condição
mens, tanto suas virtudes pareciam superiores à humani- deles não era melhor que a dos poetas e que uns e ou-
dade? Oh, Esparta! opróbrio eterno de uma doutrina vã! tros têm a mesma opinião infundada. Porque os mais há-
Enquanto os vícios conduzidos pelas belas-artes se intro- beis dentre eles sobressaem em sua especialidade, vêem-
duziam juntos em Atenas, enquanto um tirano ali reunia se como os mais sábios dos homens. Essa presunção
com tanto cuidado as obras do príncipe dos poetas, tu empanou completamente seu saber aos meus olhos. De
expulsavas de teus muros as artes e os artistas, as ciên- modo que, colocando-me no lugar do oráculo e pergun-
cias e os sábios. tando-me o que preferiria ser, o que sou ou o que eles
O acontecimento marcou essa diferença. Atenas tor- são, saber o que eles aprenderam ou saber que nada sei,
nou-se a morada da polidez e do bom gosto, o país dos respondi a mim mesmo e ao deus: quero continuar a ser
oradores e dos filósofos. A elegância dos edifícios cor- o que sou.

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-----------Discurso sobre as ctênctas e as a r t e s - - - - - -

Não sabemos, nem os sofistas, nem os poetas, nem filósofos, eclipsaram-se as pessoas de bem. Até então os
os oradores, nem os artistas, nem eu, o que é a verdade, romanos haviam se contentado em praticar a virtude; tudo
o bom, o belo. Mas há entre nós uma diferença: é que, se perdeu quando começaram a estudá-la.
conquanto essas pessoas nada saibam, todas elas acredi- Oh, Fabrício*! que pensaria vossa grande alma, se,
tam saber algo. Ao passo que eu, se nada sei, não tenho para vossa infelicidade de volta à vida, vísseis a face
dúvida disso. De modo que toda essa superioridade de pomposa dessa Roma salva por vossos braços e que vos-
sabedoria, que me é concedida pelo oráculo, reduz-se so nome respeitável ilustrara mais do que todas as suas
somente a estar bem convencido de que ignoro o que conquistas? "Deuses!", diríeis, "em que se transformaram
não sei." aquelas choupanas e aqueles lares rústicos em que ou-
Aí está, portanto, o mais sábio dos homens no juízo trora moravam a moderação e a virtude? Que funesto es-
dos deuses e o mais sábio dos atenienses na opinião da plendor sucedeu à simplicidade romana? Que linguagem
Grécia inteira, Sócrates, fazendo o elogio da ignorância! estranha é essa? Que costumes efeminados são esses? O
Seria de se supor que, se ele ressuscitasse entre nós, nos- que significam essas estátuas, esses quadros, esses edifí-
sos sábios e nossos artistas o fariam mudar de opinião? cios? Insensatos, o que fizestes? Vós, os senhores das
Não, senhores, esse homem justo continuaria a menos- nações, vós vos tornastes os escravos dos homens frívo-
prezar nossas ciências vãs; não ajudaria a engrossar essa los que vencestes? São os retóricos que vos governam?
profusão de livros com que nos inundam de todas as Foi para enriquecer arquitetos, pintores, escultores e his-
partes, e só deixaria, como o fez, como único preceito triões que regastes com vosso sangue a Grécia e a Ásia?
aos seus discípulos e aos nossos descendentes, apenas o Os despojos de Cartago são a presa de um tocador de
exemplo e a memória da sua virtude. É assim que é belo flauta? Romanos, apressai-vos em derrubar esses anfitea-
instruir os homens! tros; quebrai esses mármores; queimai esses quadros;
Sócrates começara em Atenas; o velho Catão conti- expulsai esses escravos que vos subjugam e cujas funes-
nuou em Roma a exprobrar aqueles gregos artificiosos e tas artes vos corrompem. Que outras mãos se ilustrem
sutis que seduziam a virtude e entibiavam a coragem de com vãos talentos; o único talento digno de Roma é o de
seus concidadãos. Mas as ciências, as artes e a dialética conquistar o mundo e de nele fazer reinar a virtude.
continuaram a prevalecer; Roma encheu-se de filósofos Quando Cíneas•• tomou nosso Senado por uma assem-
e de oradores; negligenciou-se a disciplina militar, me-
nosprezou-se a agricultura, abraçaram-se seitas e esque-
• Fabricio Luscino, cônsul romano do século III a.C., era um paradigma
ceu-se a pátria. As sagradas palavras liberdade, desinte- de honestidade e de austeridade da Roma republicana. (N. da T.)
resse, obediência às leis, foram sucedidas pelos nomes •• C'meas (século III ·a.C.), ministro de Pirro, foi enviado por este a Roma
de Epicuro, de Zenão, de Arcesilau. Desde que os sábios depois da batalha de Heracléia para propor a paz ao senado romano. Segundo
Plutarco (Vida de Pirro), impressionou-se com a imponente majestade do se-
começaram a aparecer entre nós, diziam seus próprios nado. (N. da T.)

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ ------Discurso sobre as ciências e as a r t e s - - - - - -

bléia de reis, não ficou deslumbrado por uma pompa vã, resguarda e que a dificuldade que encontrais em vos ins-
nem por uma elegância rebuscada. Ali não ouviu essa truir não é o menor de seus benefícios. Os homens são
eloqüência frívola, o estudo e o encanto dos homens fú- perversos; seriam piores ainda se tivessem tido a infelici-
teis. O que viu então Cíneas de tão majestoso? Oh, cida- dade de nascer sábios.
dãos! Viu um espetáculo que nunca hão de oferecer vos- Quão humilhantes são tais reflexões para a humani-
sas riquezas ou todas as vossas artes; o mais belo espe- dade! Como nosso orgulho deve mortificar-se com elas!
táculo que jamais surgira sob o céu, a assembléia de du- Como? A probidade seria filha da ignorância? Seriam in-
zentos homens virtuosos, dignos de comandar em Roma compatíveis a ciência e a virtude? Que conseqüências
e de governar a terra." nãó se tirariam desses preconceitos? Mas, para conciliar
Transponhamos, porém, a distância dos lugares e essas aparentes contradições, basta examinar de perto a
dos tempos, e vejamos o que se passou em nossas terras vaidade e o nada desses títulos orgulhosos que nos des-
e ante os nossos olhos, ou melhor, afastemos as pinturas lumbram e que tão gratuitamente conferimos aos conhe-
odiosas que feririam nossa delicadeza e poupemo-nos o cimentos humanos. Consideremos, portanto, as ciências
e as artes em si mesmas. Vejamos o que deve resultar de
trabalho de repetir as mesmas coisas sob outros nomes.
seu progresso e não mais hesitemos em concordar em
Não foi em vão que evoquei os manes de Fabrício; e o
todos os pontos em que nossos raciocínios estiverem de
que fiz esse grande homem dizer que não pudesse pôr
acordo com as induções históricas.
na boca de Luís XII ou de Henrique IV? Entre nós, é ver-
dade, Sócrates não teria bebido a cicuta, mas teria bebi-
do, numa taça ainda mais amarga, a zombaria insultante
e o desprezo, cem vezes pior que a morte.
Eis como o luxo, a dissolução e a escravidão foram
em todos os tempos o castigo dos orgulhosos esforços
que fizemos para sair da feliz ignorância em que nos pu-
sera a sabedoria eterna. O véu espesso com que ela co-
briu todas as suas operações parecia advertir-nos o sufi-
ciente de que não nos destinou a buscas vãs. Mas have-
rá, entre suas lições, alguma que tenhamos sabido apro-
veitar, ou que tenhamos negligenciado impunemente?
Povos, sabei pois, de uma vez por todas, que a natureza
quis preservar-vos da ciência, como a mãe arranca uma
arma perigosa das mãos do filho; que todos os segredos
que ela vos oculta são outros tantos males de que vos

22 23
Segunda Parte

· Era uma antiga tradição, transmitida do Egito para a


Grécia, que um deus inimigo do repouso do homem era
o inventor das ciências 5 • Que opinião deveriam, pois, ter
delas os próprios egípcios, entre os quais elas nasceram?
É que eles viam de perto as fontes que as haviam produ-
zido. Com efeito, seja folheando os anais do mundo, seja
suprindo crônicas incertas com investigaçôes filosóficas,
não se encontrará uma origem para os conhecimentos
humanos que corresponda à idéia que se gosta de for-
mar a esse respeito. A astronomia nasceu da superstição;
a eloqüência, da ambição, do ódio, da lisonja, da menti-
ra; a geometria, da avareza; a física, de uma vã curiosida-
de; todas, até mesmo a moral, do orgulho humano. As
ciências e as artes devem, pois, seu nascimento a nossos
vícios: teríamos menos dúvidas sobre as suas vantagens
se o devessem a nossas virtudes.
O defeito de sua origem se nos patenteia nitidamen-
te em seus objetivos. O que faríamos nós das artes sem
o luxo que as nutre? Sem as injustiças dos homens, para
que serviria a jurisprudência? O que seria da história se
não houvesse tiranos, nem guerras, nem conspiradores?
Quem, em suma, desejaria passar a vida em estéreis con-

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __
_ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes

templações, se cada qual, consultando apenas os deve- como o homem vê tudo em Deus; como a alma e o cor-
res do homem e as necessidades da natureza, só tivesse po se correspondem sem comunicação, assim como fa-
tempo para a pátria, para os infelizes e para os amigos? riam dois relógios; quais astros podem ser habitados;
Então fomos feitos para morrer atados às bordas do poço quais insetos se reproduzem de uma maneira extraordi-
para onde se retirou a verdade? Essa simples reflexão de- nária? Respondei-me, repito, vós, de quem recebemos
veria demover, já nos primeiros passos, qualquer homem tantos sublimes conhecimentos; ainda que nunca nos
que procurasse instruir-se seriamente pelo estudo da houvésseis ensinado nada dessas coisas, seríamos com
filosofia. isso menos numerosos, menos bem governados, menos
Quantos perigos! Quantas estradas erradas na inves- temíveis, menos florescentes ou mais perversos? Recon-
tigação das ciências! Por quantos erros, mil vezes mais siderai, pois, a importância de vossas produções; e, se os
perigosos do que é útil a verdade, não é preciso passar trab-alhos dos mais esclarecidos de nossos sábios e de
para chegar a ela! A desvantagem é visível, pois o falso nossos melhores cidadãos nos propiciam tão parca utili-
é suscetível de uma infinidade de combinações; mas a dade, dizei-nos o que devemos pensar dessa multidão
verdade tem apenas uma maneira de ser. Quem, aliás, a de escritores obscuros e de letrados ociosos, que em pura
procura com toda a sinceridade? Mesmo com a melhor perda devoram a substância do Estado.
boa vontade, por que sinais fica-se certo de reconhecê- O que estou dizendo? Ociosos? Quisera Deus que o
la? Nessa profusão de sentimentos diferentes, qual será o fossem realmente! Os costumes então seriam mais sadios
nosso critério para bem julgá-los6? E, o que é mais difícil, e a sociedade mais tranqüila. Mas esses declamadores
se por felicidade finalmente o encontramos, quem de vãos e fúteis andam por toda a parte, armados com seus
nós saberá dar-lhe um uso adequado? funestos paradoxos; solapam os fundamentos da lei e
Se nossas ciências são vãs no objetivo a que se pro- aniquilam a virtude. Sorriem com desdém das antigas pa-
põem, são mais perigosas ainda pelos efeitos que produ- lavras pátria e religião e consagram seus talentos e sua
zem. Nascidas na ociosidade, elas por sua vez a nutrem; filosofia a destruir e aviltar tudo quanto há de sagrado
e a perda irreparável do tempo é o primeiro prejuízo que entre os homens. Não que no fundo odeiem a virtude e
causam fatalmente à sociedade. Na política, como na nossos dogmas; é da opinião pública que são inimigos;
moral, é um grande mal não se fazer o bem, e todo cida- e, para trazê-los de volta ao pé dos altares, bastaria rele-
dão inútil pode ser olhado como um homem pernicioso. gá-los para o meio dos ateus. Oh, gana de distinguir-se,
Respondei-me, pois, filósofos ilustres, vós, por quem sa- de que não sois capaz?
bemos em que proporções os corpos se atraem no vá- É um grande mal o abuso do tempo. Outros males,
cuo; quais são, nas revoluções dos planetas, as relações ainda piores, acompanham as letras e as artes. Assim é o
das áreas percorridas em tempos iguais; quais curvas têm luxo como elas nascido da ociosidade e da vaidade dos
pontos conjugados, pontos de inflexão e de reversão; '
homens. O luxo raramente vive sem as ciências e as

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ __
____ Discurso sobre as ciências e as artes~---------

artes, e estas jamais vivem sem ele. Sei que a nossa filo- por sua vez, depois de haver tragado todas as riquezas
sofia, sempre fecunda em máximas singulares, pretende, do universo, tornou-se a presa de homens que nem
contra a experiência de todos os séculos, que o luxo sequer sabiam o que era a riqueza. Os francos conquis-
ocasiona o esplendor dos Estados; mas, após haver es- taram a Gália, os saxões a Inglaterra, sem outros tesou-
quecido a necessidade das leis suntuárias, ousará ela ne- ros além de sua bravura e de sua pobreza. Um bando de
gar também que os bons costumes sejam essenciais para pobres montanheses, cuja avidez toda se limitava a algu-
a duração dos impérios e que o luxo seja diametralmen- mas peles de carneiros, depois de haver domado a arro-
te oposto aos bons costumes? O luxo pode ser um sinal gância austríaca, esmagou a opulenta e temível Casa de
certo de riquezas, pode até mesmo servir, caso se quei- Borgonha, que fazia tremer os potentados da Europa.
ra, para multiplicá-las; mas que se deverá concluir desse Enfim, todo o poderio e toda a sabedoria do herdeiro de
paradoxo tão digno de haver nascido em nossos dias? E Carlos V, sustentados por todos os tesouros das Índias,
o que será da virtude, quando for preciso enriquecer a vieram despedaçar-se contra um punhado de pescadores
qualquer preço? Os antigos políticos falavam incessante- de arenque. Que nossos políticos se dignem suspender
mente de costumes e de virtude; os nossos só falam de seus cálculos para refletir nesses exemplos e que apren-
comércio e de dinheiro. Um vos dirá que em tal região dam de uma vez por todas que com o dinheiro se tem
um homem vale a soma pela qual o venderiam em Argel; tudo, exceto costumes e cidadãos.
outro, seguindo esse cálculo, encontrará países em que De que se trata então, precisamente, nessa questão
um homem nada vale e outros em que ele vale menos do luxo? De saber o que mais importa aos impérios, se-
do que nada. Avaliam os homens como rebanhos de ga- rem brilhantes e momentâneos, ou virtuosos e duradou-
do. Segundo eles, um homem vale para o Estado apenas ros. Digo brilhantes, mas com que esplendor? O gosto
o consumo que nele efetua. Assim, um sibarita valeria do fausto não se associa muito nas mesmas almas ao da
bem trinta lacedemônios. Adivinhe-se, portanto, qual des- honestidade. Não, não é possível que espíritos degrada-
sas duas repúblicas, a de Esparta ou a de Síbaris, foi sub- dos por uma profusão de cuidados fúteis elevem-se ja-
jugada por um punhado de camponeses e qual fez tre- mais a algo grandioso; e, ainda que tivessem força para
mer a Ásia. tanto', faltar-lhes-ia coragem.
A monarquia de Ciro foi conquistada com trinta mil
homens por um príncipe mais pobre do que o menor
r Todo artista quer ser aplaudido. Os elogios de seus
contemporâneos são a parte mais preciosa de sua recom-
dos sátrapas da Pérsia; e os citas, o mais miserável de to- pensa. O que não fará ele então para obtê-los, se teve a
dos os povos, resistiram aos mais poderosos monarcas infelicidade de ter nascido entre um povo e numa época
do universo. Duas famosas repúblicas disputaram entre em que os sábios da moda prepararam uma juventude frí-
si o império do mundo; uma era muito rica, a outra nada vola para dar o tom; em que os homens sacrificaram seu
tinha, e foi esta que destruiu a outra. O império romano, gosto aos tiranos de sua liberdade; em que, não ousando
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Rousseau - - - - - - -~- Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ _ __

um dos sexos aprovar o que é proporcional à pusilanimi- mão se resolverá a desbastar o ventre de um boneco, ou
dade do outro, não se faz caso de obras-primas de poesia terá de ficar ociosa.
dramática e se rejeitam prodígios de harmonia? O que fará Não se pode refletir sobre os costumes sem se com-
ele, senhores? Rebaixará seu gênio ao nível de seu século, prazer em recordar a imagem da simplicidade dos pri-
e preferirá compor obras comuns, que serão admiradas ~u­ meiros tempos. É uma bela praia, ornamentada apenas
rante sua vida, a maravilhas que só seriam admiradas mmto pelas mãos da natureza, para a qual se voltam incessan-
tempo depois de sua morte. Dizei-nos, célebre Arouet*, temente os olhos e da qual todos sentem afastar-se com
quantas belezas másculas e fortes sacrificastes à nossa falsa tristeza. Quando os homens inocentes e virtuosos gosta-
delicadeza e quanto o espírito de galanteria, tão fértil em vam de ter os deuses como testemunhas de suas ações,
pequenas coisas, vos custou em grandes. .. A eles moravam juntos nas mesmas cabanas; mas, logo
É assim que a dissolução dos costumes, consequen- que se tornaram maus, cansaram-se desses incômodos
cia inevitável do luxo, acarreta por sua vez a corrupção espectadores e relegaram-nos a seus templos magníficos.
do gosto. Se porventura houver, entre os homen~ ex- Expulsaram-nos afinal para neles se estabelecerem eles
traordinários por seus talentos, algum que tenha firme- mesmos, ou, pelo menos, os templos dos deuses já não
za de alma e se recuse a acomodar-se à índole de seu mais se distinguiram das casas dos cidadãos. Atingiu-se
século e a aviltar-se com produções pueris, ai dele! então o auge da depravação, e os vícios nunca foram le-
Morrerá na indigência e no esquecimento. Não se trata vados mais longe do que quando foram vistos, por assim
de um prognóstico que faço, mas de uma experiência dizer, mantidos à entrada dos palácios dos grandes em
que relato! Carle, Pierre**, chegou o momento em que colunas de mármore e gravados sobre capitéis coríntios.
esse 'pincel, destinado a aumentar a majestade de nos- Enquanto se multiplicam as comodidades da vida,
sos templos com imagens sublimes e santas, cairá de
aperfeiçoam-se as artes e alastra-se o luxo, a verdadeira
vossas mãos, ou será prostituído em ornar de pinturas
coragem se debilita, as virtudes militares se esvaem; e é
lascivas os painéis de uma carruagem. E tu, rival de Pra-
ainda a obra das ciências e de todas essas artes exercidas
xíteles e dos Fídias, tu, cujo cinzel os antigos teriam em-
na sombra dos gabinetes. Quando os godos devastaram
pregado para fazer deuses capazes de desculpar aos
nossos olhos a sua idolatria; inimitável Pigalle***, tua a Grécia, todas as bibliotecas só foram salvas do fogo
por causa da opinião, espalhada por um deles, de que se
devia deixar aos inimigos móveis tão apropriados para
• Até 1750, muitas obras de Voltaire eram publicadas com o nome de desviá-los do exercício militar e para distraí-los com ocu-
"Monsieur Arouet de Voltaire". (N. da T.)
•• Trata-se de Charles-André, ou Charle, Van Loo (1705-1765), pintor, e pações ociosas e sedentárias. Carlos VIII viu-se senhor
de Jean-Baptiste-Marie Pierre (1813-1789), pintor e gravador. Ambos, célebres da Toscana e do reino de Nápoles quase sem ter desem-
na época, pintaram várias obras sacras. (N. da T.) bainhado a espada, e toda a sua corte atribuiu essa faci-
"' Jean-Baptiste Pigalle (1714-1785), escultor francês, distinguiu-se tanto
por obras monumentais como por bustos, entre eles o de Diderot. (N. da T.) lidade inesperada ao fato de que os príncipes e a nobre-

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau -----~Discurso sobre as ciências e as a r t e s - - - - - - -

za da Itália se divertiam mais em se tornar engenhosos e eles suportam o excesso do trabalho, como resistem ao
sábios do que em se exercitar para se tornarem vigoro- rigor das estações e às intempéries do clima. Basta ape-
sos e guerreiros. Com efeito, diz o homem de senso que nas um pouco de sol ou de neve, basta apenas a priva-
relata esses dois fatos, todos os exemplos nos ensinam ção de algumas superfluidades para abater e destruir em
que, nessa polícia marcial e em todas as que lhe são se- poucos dias o melhor dos nossos exércitos. Intrépidos
melhantes o estudo das ciências é muito mais apropria- guerreiros, aceitai uma vez a verdade que vos é tão raro
do para e~tibiar e efeminar as coragens do que para for- ouvir. Sois bravos, eu o sei; teríeis triunfado com Aníbal
talecê-las e animá-las. em Canas e em Trasimeno; César convosco teria atraves-
Os romanos confessaram que a virtude militar se ex- sado o Rubicão e subjugado seu país; mas não seria con-
tinguira entre eles à medida que começaram a entender vosco que o primeiro teria atravessado os Alpes e o
de quadros, de gravuras, de vasos de ourivesaria, e a cul- outro teria vencido vossos ancestrais.
tivar as belas-artes; e, como se essa terra famosa fosse Os combates nem sempre ocasionam o sucesso da
destinada a servir continuamente de exemplo aos outros guerra e há para os generais uma arte superior àquela de
povos, a elevação dos Médicis e o restabelecimento das ganhar batalhas. O que corre para o fogo com intrepidez
letras fizeram cair outra vez, e talvez para sempre, a re- não deixa de ser um péssimo oficial; no próprio soldado,
putação guerreira que a Itália parecia haver recobrado um pouco mais de força e de vigor talvez fosse mais
há alguns séculos. necessário do que tanta bravura, que não o resguarda da
As antigas repúblicas da Grécia, com aquela sabedo- morte. E que importa ao Estado que suas tropas pereçam
ria que brilhava na maioria de suas instituições, haviam de febre e de frio, ou pela espada do inimigo?
proibido aos seus cidadãos todos esses ofícios tranqüilos Se a cultura das ciências é nociva às qualidades guer-
e sedentários que, enfraquecendo e corrompendo o cor- reiras, ainda o é mais às qualidades morais. É logo nos
po, logo debilitam o vigor da alma. De fato, com que primeiros anos que uma educação insensata nos orna o
olhos se pensa que poderão encarar a fome, a sede, as espírito e nos corrompe o juízo. Vejo em todos os luga-
fadigas, os perigos e a morte, homens que a menor ne- res estabelecimentos imensos nos quais, com grandes
cessidade abate e que a menor dificuldade desalenta? despesas, se educa a juventude, para ensinar-lhe todas
Com que coragem suportarão os soldados trabalhos ex- as coisas, exceto os seus deveres. Vossos filhos ignorarão
cessivos a que não estão habituados? Com que ardor fa- a própria língua, mas falarão outras que não são usadas
rão marchas forçadas, comandados por oficiais que não em parte alguma; saberão compor versos que mal con-
têm força sequer de viajar a cavalo? Que não me objetem seguirão compreender; sem saber distinguir o erro da
com o celebrado valor de todos esses modernos guerrei- verdade, possuirão a arte de torná-los, mediante argu-
ros tào habilmente disciplinados. Elogiam-me realmente mentos especiosos, irreconhecíveis aos outros; mas aspa-
sua bravura num dia de batalha, mas não me dizem como lavras magnanimidade, eqüidade, temperança, humani-

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ __

dade, coragem, eles não saberão o que são; a doce pala- cursos que serão laureados nesta Academia é comparável
vra pátria nunca lhes atingirá os ouvidos; e se ouvirem ao mérito de haver instituído o prêmio.
falar de Deus será menos para reverenciá-lo do que para O sábio não corre atrás da fortuna, mas não é insen-
temê-lo8 • Gostaria tanto, dizia um sábio, que meu aluno sível à glória; e quando a vê tão mal distribuída sua vir-
tivesse passado o tempo num jogo de péla, pelo menos tude, que um pouco de emulação teria animado e torna-
seu corpo estaria mais disposto. Sei que é preciso dar do proveitosa para a sociedade, cai no langor e se extin-
ocupação às crianças e que a ociosidade é o perigo que gue na miséria e no esquecimento. Eis o que, com o
mais se deve recear para elas. O que então deverão apren- tempo, deve produzir em toda a parte a preferência dos
der? Aí está por certo uma bela pergunta! Que aprendam talentos agradáveis aos talentos úteis e o que a expe-
o que devem fazer quando homens9 , e não o que devem riência vem confirmando largamente desde o renasci-
esquecer. mento das ciências e das artes. Temos físicos , geômetras ,
Nossos jardins são ornados de estátuas e nossas ga- químicos, astrônomos, poetas, músicos, pintores; não
lerias de quadros. Em vossa opinião, o que representam temos mais cidadãos, ou, se ainda nos restam alguns,
essas obras-primas da arte expostas à admiração pública? dispersos pelos nossos campos abandonados, lá pere-
Os defensores da pátria? Ou esses homens maiores ainda cem indigentes e menosprezados. Este é o estado a que
que a enriqueceram com suas virtudes? Não. São ima- estão reduzidos, estes são os sentimentos que obtêm de
gens de todos os desvarios do coração e da razão, tira- nós aqueles que nos dão o pão e que dão o leite aos
das cuidadosamente da mitologia antiga e apresentadas nossos filhos.
prematuramente à curiosidade dos nossos filhos, decer- Confesso, entretanto, o mal não é tão grande quan-
to para que tenham diante dos olhos modelos de más to poderia ter-se tornado. A previdência eterna, colocan-
ações, antes mesmo de saberem ler. do plantas medicinais salutares ao lado de diversas plan-
De onde nascem todos esses abusos senão da funes- tas nocivas e na substância de vários animais daninhos o
ta desigualdade, introduzida entre os homens pela distin- remédio para seus ferimentos, ensinou aos soberanos,
ção dos talentos e pelo aviltamento das virtudes? Eis o que são seus ministros, a imitar-lhe a sabedoria. Foi se-
efeito mais evidente de todos os nossos estudos e a mais guindo seu exemplo que, do próprio seio das ciências e
perigosa de todas as suas conseqüências. Já não se per- das artes, fontes de mil desregramentos, esse grande mo-
gunta sobre um homem se ele tem probidade, mas se tem narca, cuja glória não cessará de adquirir esplendor maior
talentos; nem sobre um livro se é útil, mas se é bem escri- com o passar das épocas, tirou essas sociedades célebres
to. As recompensas são prodigalizadas à erudição amável encarregadas a um só tempo da perigosa custódia dos
e fica sem honrarias a virtude. Há milhares de prêmios conhecimentos humanos e da custódia sagrada dos cos-
para os belos discursos, nenhum para as belas ações. Que tumes, pelo zelo que elas têm em manter em si toda a
me digam, porém, se a glória atribuída ao melhor dos dis- pureza deles e em exigi-la nos membros que recebem.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ ------- Discurso sobre as ciências e as artes

Essas sábias instituições, consolidadas por seu au- corpo e que tudo é uma representação dele. O outro,
gusto sucessor e imitadas por todos os reis da Europa, que não há outra substância além da matéria, nem outro
servirão pelo menos de freio para os homens de letras deus além do mundo. Este afirma que não há virtudes
que, aspirando todos à honra de serem admitidos nas nem vícios e que o bem e o mal moral são quimeras.
academias, velarão por si mesmos e tratarão de tornar-se Aquele, que os homens são lobos e podem devorar-se
dignos delas mediante obras úteis e costumes irrepreen- entre si com a consciência tranqüila. Oh, grandes filóso-
síveis. Aquelas dentre essas companhias que, para os fos! Por que não reservais para vossos amigos e filhos
prêmios com que homenageiam o mérito literário, fize- essas lições proveitosas? Receberíeis logo a recompensa
rem uma escolha de temas apropriados para reanimar o delas, e não temeríamos encontrar entre os nossos al-
amor à virtude nos corações dos cidadãos mostrarão que gum de vossos sectários.
esse amor reina entre elas e darão aos povos o prazer Eis, portanto, os homens maravilhosos a quem foi
tão raro e doce de ver sociedades eruditas devotarem-se prodigalizada a estima de seus contemporâneos durante
a verter sobre o gênero humano não só luzes agradáveis, a sua vida e reservada a imortalidade depois de seu tres-
mas também instruções salutares. passe! Eis as sábias máximas que deles recebemos e
Que não me oponham, portanto, uma objeção que transmitimos de geração em geração aos nossos descen-
para mim não passa de uma nova prova. Tantos cuida- dentes. O paganismo, entregue a todos os desvarios da
dos só deixam mais do que clara a necessidade de tomá- razão humana, deixou à posteridade algo que possamos
los, e não se procuram remédios para males que não exis- comparar com os vergonhosos monumentos que lhe
tem. Por que terão estes de trazer ainda, pela sua insufi- preparou a imprensa sob o reinado do Evangelho? Os
ciência , o caráter de remédios comuns? Tantas demons- escritos ímpios dos Leucipos e dos Diágoras pereceram
trações feitas em favor dos sábios só servem para iludir com eles. Ainda não se havia inventado a arte de eterni-
a respeito dos objetos das ciências e para orientar os es- zar as extravagâncias do espírito humano. Mas, graças
píritos para a sua cultura. Parece, pelas precauções que aos caracteres tipográficos 10 e ao uso que fazemos deles,
se tomam, haver lavradores de sobejo e temer-se a falta os perigoso~ devaneios dos Hobbes e dos Spinozas per-
de filósofos. Não quero arriscar aqui uma comparação manecerão para sempre. Ide, célebres escritos, dos quais
entre a agricultura e a filosofia: não a tolerariam. Per- a ignorância e a rusticidade de nossos pais não teriam
guntarei apenas: o que é a filosofia? O que contêm os es- sido capazes; acompanhai entre nossos descendentes es-
critos dos filósofos mais conhecidos? Quais são as lições sas obras mais perigosas ainda das quais exala a corrup-
desses amigos da sabedoria? Ouvindo-os, não os toma- ção dos costumes do nosso século e levai junto aos sécu-
ríamos por um bando de charlatões apregoando, cada los vindouros uma história fiel do progresso e das vanta-
qual de seu lado, numa praça pública: "Vinde a mim, sou gens das nossas ciências e das nossas artes. Se eles vos
o único que não engano"? Um pretende que não há lerem, não lhes deixareis nenhuma incerteza sobre a

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-----Discurso sobre as ciências e as at1es _ _ _ _ _ __

questão que hoje ventilamos; e, a menos que sejam mais se exercitaram para transpor o espaço imenso que trilha-
insensatos do que nós, eles erguerão as mãos ao céu e ram. Se é preciso permitir a alguns homens dedicarem-
dirão com o coração amargurado: "Deus todo-poderoso, se ao estudo das ciências e das artes, isso só será conce-
tu, que tens nas mãos os espíritos, livra-nos das luzes e dido àqueles que sentirem a força de caminhar sozinhos
das funestas artes de nossos pais e devolve-nos a igno- por seus próprios passos e de ultrapassá-los. A esse pe-
rância, a inocência e a pobreza, os únicos bens que po- queno número é que compete erguer monumentos à
dem fazer nossa felicidade e são preciosos perante ti." glória do espírito humano. Mas, se quisermos que nada
Porém, se o progresso das ciências e das artes nada esteja acima de seu gênio, cumpre que nada esteja acima
acrescentou à nossa verdadeira felicidade, se corrompeu de suas esperanças. Eis o único encorajamento de que
nossos costumes e se a corrupção dos costumes trouxe necessitam. A alma se proporciona insensivelmente com
prejuízos à pureza do gosto, o que pensaremos nós des- os objetos que a ocupam, e são as grandes ocasiões que
sa multidão de autores elementares que afastou do tem- fazem os grandes homens. O príncipe da eloqüência* foi
plo das Musas as dificuldades que lhe barravam o aces- cônsul de Roma, e o maior, talvez, dos filósofos**, chan-
so, e que a natureza aí espalhara como uma prova das celer da Inglaterra. Acreditar-se-ia que se um não tivesse
forças de quem ficasse tentado a saber? O que pensare- ocupado senão uma cátedra em alguma universidade, e
mos nós desses compiladores de obras que indiscreta- que o outro não tivesse obtido senão uma módica pen-
mente rebentaram a porta das ciências e introduziram são acadêmica, acreditar-se-ia, pergunto eu, que suas
em seu santuário um populacho indigno de aproximar- obras não se ressentiriam de sua condição? Que os reis
se delas? Ao contrário, seria de desejar que todos aque- não desdenhem, portanto, de admitir em seus conselhos
les que não pudessem ir muito longe na carreira das as pessoas mais capazes de bem aconselhá-los; que re-
letras fossem repelidos logo à entrada e se lançassem nas nunciem a esse velho preconceito inventado pelo orgu-
artes úteis à sociedade. Alguém que será a vida toda um lho dos grandes, segundo o qual a arte de conduzir os
mau versificador, um geômetra subalterno, talvez viesse povos é mais difícil do que a de os esclarecer, como se
a ser um grande fabricante de tecidos. Não precisaram fosse mais fácil motivar os homens a agir com acerto por
de mestres aqueles que a natureza destinava a fazer dis- sua pFópria vontade do que coagi-los a tanto pela força.
cípulos. Os Bacons, os Descartes e bs Newtons, esses Que os sábios de primeira ordem encontrem em suas
preceptores do gênero humano, não tiveram outros mes- cortes honrados asilos. Que nelas obtenham a única re-
tres além de si mesmos, e que guias os teriam conduzi- compensa digna deles: a de contribuir com sua reputa-
do até onde os levou seu imenso gênio? Mestres comuns ção para a felicidade dos povos a quem terão ensinado
só poderiam ter encolhido seu entendimento compri-
mindo-o na estreita capacidade do deles. Foi com seus
• Cícero. (N. da T.)
primeiros obstáculos que aprenderam a fazer esforços e •• Francis Bacon. (N. da T.)

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_____________________ Rom~au ________________

a sabedoria. Somente então é que se verá quanto podem


a virtude, a ciência e a autoridade animadas de uma no-
Carta de J. -J. Rousseau
bre emulação e trabalhando em comum para a felicida-
de do gênero humano. Mas, enquanto o poder estiver
sobre a refutação de seu Discurso pelo Sr. Gautier.
sozinho de um lado, as luzes e a sabedoria sozinhas do
professor de Matemática e de História e membro da '
outro, os sábios raramente pensarão grandes coisas, os
Academia Real de Letras de Nancy
príncipes mais raramente farão coisas belas, e os povos
continuarão a ser vis, corruptos e infelizes.
Quanto a nós, homens comuns, que o céu não aqui-
nhoou com talentos tão grandes e que não destina a tan-
ta glória, fiquemos em nossa obscuridade. Não corramos . Devolvo-vos, senhor*, o Mercun!''* de outubro que
atrás de uma reputação que nos escaparia e que, no esta- tivestes a bondade de emprestar-me. Nele li, com muito
do atual das coisas, jamais nos renderia o que nos terá prazer, a refutação de meu Discurso 11 que 0 Sr. Gautier
custado, mesmo que tivéssemos todos os títulos para ob- se de~ ao trabalho de fazer, mas não creio ter, como pre-
tê-la. Para que procurar nossa felicidade na ·opinião alheia, ~en~ets, a obrigação de responder-lhe. Eis as minhas ob-
se podemos encontrá-la em nós mesmos? Deixemos a Jeçoes:
outros o cuidado de instruir os povos sobre os seus deve- . 1. ~ão. consigo persuadir-me de que, por ter razão,
res e limitemo-nos a bem cumprir os nossos; não temos seja-se mdtspensavelmente obrigado a ser 0 último a
necessidade de saber mais nada. falar.
Oh, virtude! Ciência sublime das almas simples, serão . 2. Quanto mais releio a refutação, mais convencido
necessários tantas labutas e tanto aparato para conhecer- ftco de que. não tenho necessidade de dar ao Sr. Gautier
te? Teus princípios não estão gravados em todos os cora- outra réplica além do próprio Discurso a que ele respon-
ções? E não basta, para aprender tuas leis, voltar-se para deu. Lede, peço-vos, num e noutro escrito, os artigos so-
si mesmo e escutar a voz da consciência no silêncio das bre o ~~~o, a gu~rra, as academias, a educação; Iede a pro-
paixões? Eis a verdadeira filosofia, saibamos contentar- sopopeta de Luts, o Grande, e a de Fabrício· enfim Iede
nos com ela; e, sem invejar a glória desses homens céle- a conclusão do Sr. Gautier e a minha, e co~preendereis
bres que se imortalizam na república das letras, tratemos o que estou querendo dizer.
de instituir entre eles e nós essa gloriosa distinção que ~· Penso em tudo de um modo tão diferente do Sr.
outrora se observava entre dois grandes povos: um sabia Gautler que, se eu precisasse assinalar todos os lugares
dizer bem, e o outro, bem fazer.
. • Esta carta dirige-se ao escritor e crítico alemão Frederico Melchior
Gnm~ 0723-1807) e foi publicada em novembro de 1851. (N. da T.)
O Mercure de France, jornal semanal fundado em 1672. (N. da T.)

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - D i s c u r s o sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ __

em que não temos a mesma opinião, ver-me-ia obrigado que nossos soldados não são Réaumurs nem Fontenelles*,
a combatê-lo, mesmo nas coisas que teria dito como ele, o que é pior para eles, para nós, e sobretudo para os ini-
e isso me daria um ar contraditar que gostaria muito de migos. Sei que eles nada sabem, são brutais e grosseiros,
poder evitar. Por exemplo, ao falar da polidez, ele dá a e todavia disse, e repito-o ainda, que são debilitados
entender muito claramente que, para tomar-se homem pelas ciências que menosprezam e pelas belas-artes que
de bem, é bom começar por ser hipócrita e que a falsida-
ignoram. Um dos grandes inconvenientes da cultura das
de é um caminho seguro para chegar à virtude. Diz ain-
letras é que, para alguns homens que esclarecem, cor-
da que os vícios ornados com a polidez não são conta-
rompem em pura perda uma nação inteira. Ora, bem
giosos como o seriam caso se apresentassem abertamen-
vedes, senhor, que isso não passaria de outro paradoxo
te com rusticidade; que a arte de penetrar os homens fez
inexplicável para o Sr. Gautier; para esse Sr. Gautier que
o mesmo progresso que a de dissimular-se; que estamos
convencidos de que não devemos contar com eles, a não me pergunta com arrogância o que as tropas têm em
ser que lhes agrademos ou lhes sejamos úteis; que sabe- comum com as academias; se os soldados terão mais
mos avaliar os oferecimentos especiosos da polidez, ou bravura por estarem mal vestidos e mal nutridos; o que
seja, decerto, que quando dois homens se elogiam, e um quero dizer ao afirmar, que à força de reverenciar os
diz ao outro no fundo do coração: Trato-vos como um talentos, negligenciam-se as virtudes, e outras perguntas
tolo, e zombo de vós, o outro lhe responde do fundo do semelhantes, que demonstram todas que é impossível
seu: Sei que mentis descaradamente, mas faço o possível responder-lhes de modo inteligível na opinião de quem
para vos dar o troco. Se acaso eu quisesse empregar a as faz. Creio que concordaríeis que não vale a pena ex-
mais amarga ironia, poderia dizer quase o mesmo. plicar-me uma segunda vez para não ser mais bem en-
4. Vê-se a cada página da refutação que o autor não tendido do que na primeira.
entende, ou não quer entender, a obra que refuta, o que 5. Se eu qui:5esse responder à primeira parte da refu-
lhe é certamente muito cômodo, porque, respondendo tação, essa seria a maneira de jamais terminar. O Sr. Gau-
continuamente ao seu pensamento e jamais ao meu, tier julga oportuno prescrever-me os autores que posso
tem a melhor oportunidade do mundo para dizer tudo o citar, e os que devo rejeitar. Sua seleção é inteiramente
que lhe apraz. Por outro lado, se com isso minha répli- natural, recusa a autoridade dos que depõem em meu fa-
ca se toma mais difícil, toma-se também menos necessá- vor e quer que me refira aos que ele crê serem-me con-
ria, pois nunca se ouviu dizer que um pintor, que expõe
um quadro ao público, é obrigado a visitar os olhos dos • René-Antoine Ferchault de Réaumur, físico e naturalista francês (1683-
espectadores e a fornecer óculos a todos os que deles 1757), além de vários trabalhos em diferentes áreas deptíficas, inventou o ter-
necessitam. mômetro que tem seu nome. Bernard le Bovier de Fontenelle (1657-1757),
escritor francês, é célebre por sua obra Colóquios sobre a pluralidade dos
Aliás, não é muito certo que me faça entender mes-
mundos, em que explica o sistema de Copérnico numa linguagem acessível.
mo ao replicar; por exemplo, sei, diria eu ao Sr. Gautier, (N. da T.)

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trários. Debalde gostaria de fazer-lhe entender que um da refutação sem estender-me demasiado e sem me ex-
único testemunho em meu favor é decisivo, ao passo que plicar bem: ora, gostaria muito de não fazer uma coisa
cem testemunhos nada provam contra minha opinião, nem outra.
porque as testemunhas são partes no processo; debalde 6. Poderia seguir outro método, e examinar separa-
pedir-lhe-ia que distinguisse entre os exemplos que damente os raciocínios do Sr. Gautier e o estilo da refu-
alega; debalde observar-lhe-ia que ser bárbaro ou crimi- tação.
noso são duas coisas totalmente diferentes, e que os po- Se examinasse seus raciocínios, ser-me-ia fácil mos-
vos verdadeiramente corrompidos não são tanto aqueles trar que todos eles não tinham fundamento, que o autor
que têm más leis quanto aqueles que menosprezam as não entendeu o espírito da questão e não me com-
leis. Sua réplica é fácil de prever: "Como é possível dar preendeu.
crédito a escritores escandalosos, que se atrevem a elo- Por exemplo, o Sr. Gautier se dá ao trabalho de infor-
giar bárbaros que não sabem ler nem escrever! Como mar-me que há povos viciosos que não são eruditos, e eu
será possível supor-se pudor em homens que vivem bem que já imaginava que os calmucos, os beduínos, os
inteiramente nus e virtude nos que comem carne crua?" cafres não eram prodígios de virtude nem de erudição. Se
Logo, cumprirá discutir. Eis portanto Heródoto, Estrabão, o Sr. Gautier houvesse tido os mesmos cuidados para
Pompônio Meia às voltas com Xenofonte, Justino, Quin- mostrar-me algum povo erudito que não fosse vicioso,
to Cúrcio, Tácito. Eis-nos envolvidos nas pesquisas de ter-me-ia surpreendido mais. Em toda parte faz-me racio-
críticos, nos textos antigos, na erudição. As brochuras se cinar como se eu houvesse dito que a ciência é a única
transformam em volumes, os livros se multiplicam, e a fonte de corrupção entre os homens. Se julgou isso de
questão é esquecida: o forte das discussões de literatura boa-fé, admiro a bondade que teve de responder-me.
é que, depois dos infólios de esclarecimentos, acaba-se Diz que basta o trato com o mundo para adquirir es-
sempre por já não se saber em que ponto se está. Não sa polidez de que se vangloria um homem distinto; daí
vale a pena começar. conclui que não há razão para imputar isso às ciências.
Se eu quisesse replicar à segunda parte, num instan- Mas ao que então nos permitirá ele imputar tal fato? Des-
te o faria, mas não ensinaria nada a ninguém. O Sr. Gau- de q.ue os homens vivem em sociedade, houve povos
tier nela se contenta, para me refutar, em dizer sim em polidos, e outros que não o eram. O Sr. Gautier esque-
todo lugar em que eu disse não, e não em todo lugar em ceu de explicar-nos o motivo dessa diferença.
que eu disse sim; logo, eu só teria de continuar a dizer O Sr. Gautier admira em toda a parte a pureza de
não em todo lugar em que dissera não, sim em todo lu- nossos costumes atuais. Essa boa ~inião que tem deles
gar em que dissera sim e suprimir as provas, teria res- assegura muita honra aos seus, mas 'não denota grande
pondido com toda a exatidão. Portanto, segundo o mé- experiência. Dir-se-ia pelo tom em que fala que estudou
todo do Sr. Gautier, não posso responder às duas partes os homens como os peripatéticos estudavam a física,

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sem sair de seu gabinete. Quanto a mim, fechei os livros E de outro: oh, bom homem! Não será preciso desviar os
e, depois de ouvir os homens falarem, olhei-os agir. Não olhos e o respeito dele para o primeiro. Seria preciso uma
é de espantar que, tendo seguido métodos tão diferen- terceira exclamação: Oh, cabeças estúpidas!"
tes, tenhamos tão pouca semelhança em nossos juízos. Disse eu que a natureza quis proteger-nos da ciên-
Vejo que não se poderia empregar uma linguagem mais cia, como a mãe arranca uma arma perigosa das mãos do
correta do que a do nosso século, sendo isso que im- filho, e que a dificuldade que encontramos em nos ins-
pressiona o Sr. Gautier. Mas vejo também que não se po- truir não é o menor de seus benefícios. O Sr. Gautier pre-
deriam ter costumes mais corrompidos, sendo isso que feriria que eu houvesse dito: "Povos, sabei pois, de uma
me escandaliza. Pensamos então ter-nos tornado pessoas vez por todas, que a natureza não quer que vos alimen-
de bem, porque, à força de dar nomes decentes aos nos- teis com as produções da terra; a dificuldade que ela as-
sos vícios, aprendemos a não mais nos envergonhar sociou à sua cultura é uma advertência para a deixardes
deles? inculta." O Sr. Gautier não pensou que, com um pouco
Diz ainda que, mesmo que se pudesse provar com de trabalho, está-se certo de fazer o pão, mas que, com
fatos que a dissolução dos costumes sempre reinou com muito estudo, é muito duvidoso que se consiga fazer um
as ciências, daí não se seguiria que a sorte da probida- homem sensato. Não pensou também que isso não pas-
de dependesse dos progressos delas. Depois de ter em- sa, precisamente, de mais uma observação em meu fa-
pregado a primeira parte de meu Discurso para provar vor; pois, por que a natureza nos impôs trabalhos neces-
que essas coisas sempre andaram juntas, destinei a se- sários senão para nos afastar das ocupações inúteis?
gunda a mostrar que, de fato, uma dependia da outra. A Porém, no desprezo que ele mostra pela agricultura, vê-
quem então posso imaginar que o Sr. Gautier quer res- se facilmente que, se dependesse apenas dele, todos os
ponder aqui? lavradores desertariam logo dos campos para irem argu-
Ele me parece sobretudo muito escandalizado com o mentar nas escolas, ocupação essa, segundo o Sr. Gau-
modo com que falei da educação dos colégios. Informa- tier, e, creio eu, segundo muitos professores, muito im-
me que neles ensinam aos jovens sei lá quantas coisas portante para a felicidade do Estado.
belas que podem ser de muita utilidade para seu diverti- Raciocinando sobre uma passagem de Platão, eu pre-
mento quando forem grandes, mas confesso que não sumira que talvez os antigos egípcios não dessem às
vejo qual a relação delas com os deveres dos cidadãos, ciências toda a importância que poderíamos acreditar. O
pelos quais deve começar sua instrução. "Costumamos autor da refutação me pergunta como é possível conci-
nos indagar, saberá ele grego e latim? Escreverá em verso liar essa opinião com a inscrição que Osimandias* puse-
ou em prosa? Tornou-se ele, porém, melhor ou mais in- ~
formado, era o principal, e é isso que fica para trás. Ex-
• Forma corrompida do prenome de Ramsés Il, em torno da qual se
clamai de um passante ao nosso povo: oh, homem douto! agrupou um ciclo de lendas recolhidas no tempo dos Ptolomeus por Hecateu

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ra em sua Biblioteca. Essa dificuldade poderia ser válida Eu disse que Sócrates era o mais sábio dos atenien-
enquanto esse príncipe era vivo. Agora que está morto, ses, sendo daí que tiro a autoridade de seu testemunho.
pergunto por minha vez qual é a necessidade de conci- Tudo isso não impede o Sr. Gautier de ensinar-me que
liar a opinião do rei Osimandias com a dos sábios do Sócrates era sábio.
Egito. Se ele tivesse contado, e sobretudo pesado os vo- Critica-me por haver afirmado que Catão menospre-
tos, quem me responderá se a palavra venenos não teria zava os filósofos gregos, fundamentando-se no fato de
substituído a palavra remédios? Deixemos de lado, po- Carnéades sentir prazer em estabelecer e derrubar as
rém, essa faustosa inscrição. Tais remédios são excelen- mesmas proposições; o que predispõe infundadamente
tes, concordo, e já o repeti muitas vezes. Mas será esta Catão contra a literatura dos gregos. O Sr. Gautier bem
uma razão para administrá-los levianamente, e sem levar deveria dizer-nos qual era o país e a profissão desse
em conta os temperamentos dos doentes? Há alimentos Carnéades.
muito bons em si, que num estômago enfermo só provo- Decerto Carnéades é o único filósofo, ou o único
cam indigestões e humores nefastos. O que se diria de sábio, que se empenhou em sustentar o pró e o contra,
um médico que, depois de elogiar algumas carnes sucu- senão tudo quanto disse aqui o Sr. Gautier não significa-
lentas, concluísse que todos os doentes deveriam fartar-se ria absolutamente nada. Confio, nesse ponto, em sua
delas? erudição.
Demonstrei que as ciências e as artes debilitam a co- Se a refutação não é abundante em bons raciocínios,
ragem. O Sr. Gautier chama a isso uma maneira singular em compensação o é muito em belas declamações. O
de raciocinar e não vê a ligação existente entre a cora- autor substitui em toda parte a solidez das provas, que
gem e a virtude. Isso não é, porém, ao que me parece, prometia ao começar, pelos ornamentos da arte; e é pro-
algo tão difícil de compreender. Aquele que se acostu- digalizando a pompa oratória numa refutação que cen-
mou, de uma vez por todas, a preferir sua vida ao seu sura a mim tê-la empregado num Discurso acadêmico.
dever não tardará muito a preferir também as coisas que Ao que tendem então, diz o Sr. Gautier, as eloqüen-
tornam a vida fácil e agradável. tes declamações do Sr. Rousseau? A abolir, se possível
Eu disse que a ciência convém a alguns grandes gê- fosse, .as vãs declamações dos colégios. Quem não fica-
nios, mas que é sempre nociva aos povos que a culti- ria indignado ao ouvi-lo assegurar que temos as aparên-
vam. O Sr. Gautier diz que Sócrates e Catão, que clama- cias de todas as virtudes sem ter nenhuma delas. Confes-
vam contra a ciência, eram entretanto, por sua vez, ho- so que há uma certa lisonja em dizer que temos as apa-
mens muito sábios; e chama isso ter-me refutado. rências de todas as virtudes, mas o Sr. Gautier deveria,
mais que ninguém, perdoar-me isso. Ah! Por que não te-
de Abdera, do qual passaram para Diodoro de Sicília. A inscrição era: "Te- mos mais virtudes? É porque cultivamos as belas-letras,
souro dos remédios da alma." (N. da T.) as ciências e as arte~recisamente por isso. Se fôssemos

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_ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as a r t e s - - - -

descorteses, rnsticos, ignorantes, gados, hunos ou vânda- moral, a .física, as matemáticas elementares. Se já o sou-
los, seríamos dignos dos elogios do Sr. Rousseau. Por que be, havia esquecido, como fazemos todos ao tornarmo-
não? Haverá algum desses termos que exclua a virtude? nos sensatos. Tratam-se pois, segundo vós, de estéreis
Não se cansará de invectivar os homens? Não se cansa- especulações! Estéreis segundo a opinião comum, mas,
rão eles de serem maldosos? Crer-se-á sempre torná-los na minha, muito férteis em coisas más. As universidades
mais virtuosos, dizendo-lhes que não têm virtude? Crer- vos devem uma grande obrigação por lhes terdes ensina-
se-á torná-los melhores, persuadindo-os de que são bons do que a verdade das ciências retirou-se ao fundo de um
o bastante? Com o pretexto de aprimorar os costumes, será poço. Não creio ter ensinado isso a ninguém. Tal senten-
permitido derrubar-lhes os apoios? Com o pretexto de es- ça não é de minha lavra, é tão antiga quanto a filosofia.
clarecer os espíritos, será preciso perverter as almas? Oh, De resto, sei que as universidades não me devem ser
doces laços da sociedade! Encanto dos verdadeiros filóso- reconhecidas e não ignorava, tomando da pena, que não
fos, amáveis virtudes! É por vossos próprios atrativos que podia fazer a corte aos homens e prestar homenagem à
reinais nos corações; não deveis vosso império nem à verdade a um só tempo. Os grandes filósofos que as pos-
aspereza estóica nem aos clamores bárbaros, nem aos suem num grau eminente sem dúvida estão muito sur-
conselhos de uma orgulhosa rusticidade. presos de saber que nada sabem. Com efeito, creio que
Observarei em primeiro lugar um fato bastante di- esses grandes filósofos que possuem todas essas grandes
vertido: é que de todas as seitas dos antigos filósofos que ciências num grau eminente ficariam muito surpresos de
ataquei como inúteis à virtude, os estóicos são os únicos saber que nada sabem. Mas eu mesmo ficaria muito mais
que o Sr. Gautier me lega, e que parece mesmo querer surpreso se esses homens que sabem tantas coisas sou-
pôr de meu lado. Tem razão, não ficarei muito mais or- bessem porventura esta.
gulhoso por isso. Noto que o Sr. Gautier, que me trata sempre com a
Vejamos um pouco, porém, se eu poderia expressar maior polidez, não perde nenhuma oportunidade de
exatamente em outros termos o sentido desta exclama- suscitar-me inimigos; desdobra seus cuidados a esse res-
ção: Oh, amáveis virtudes! É por vossos próprios atrativos peito desde os professores de colégio até o poder sobe-
que reinais nas almas. Não tendes necessidade de todo rano. O Sr. Gautier faz muito bem de justificar os hábitos
esse grande aparato de ignorância e de rusticidade. Sa- da sociedade; vê-se que estes não lhe são estranhos. Mas
beis alcançar o coração por caminhos mais simples e voltemos à refutação.
mais naturais. Basta saber a retórica, a lógica, a física, a Todas essas maneiras de escrever e de raciocinar, que
metafísica e as matemáticas para adquirir o direito de não combinam com um homem de tanto espírito como o
vos possuir. Sr. Gautier parece ter, me levaram a fazer uma conjetura
Outro exemplo do estilo do Sr. Gautier. que achareis ousada, e que creio sensata. Acusa-me ele,
Sabeis que as ciências que ministramos aos jovens fi- com toda a certeza sem acreditar nisso, de não estar per-
lósofos nas universidades são a lógica, a metafísica, a suadido da opinião que suste~. Quanto a mim, descon-

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fio, com mais fundamentos, que secretamente ele é de pelo prazer sufoca-lhes a bravura, as mais dignas fun-
minha opinião. Os cargos que ocupa, as circunstâncias em ções são aviltadas, a impunidade multiplica os maus ci-
que se encontra o terão deixado numa espécie de neces- dadãos, os fundos destinados à guerra são destinados a
sidade de tomar partido contra mim. O decoro de nosso alimentar a indolência e a ociosidade; que relação terão
século é bom para muitas coisas; logo, ele me terá refuta- todas essas causas de corrupção com as ciências?
do por decoro, mas terá tomado todos os tipos de precau- O que faz aqui o Sr. Gautier, senão lembrar toda a
ções e empregado todo o engenho possível para fazê-lo segunda parte de meu Discurso onde mostrei essa rela-
de modo que não persuadisse ninguém. ção? Observai o engenho com que ele nos apresenta
É com essa finalidade que começa por declarar, como causas os efeitos da corrupção, a fim de motivar
muito fora de propósito, que a causa que defende inte- qualquer homem de bom senso a remontar por si só à
ressa à felicidade do público perante o qual fala e à gló- primeira causa dessas pretensas causas. Observai tam-
ria do grande príncipe sob cujas leis tem a satisfação de bém como, para deixar o leitor fazer a reflexão, finge
viver. É precisamente como se dissesse: "Não podeis, ignorar o que não se pode supor que ignore de fato, e o
senhores, sem ingratidão para com o vosso respeitável que todos os historiadores dizem unanimemente, que a
protetor, eximir-vos de dar-me razão; e, ademais, é vossa depravação dos costumes e do governo dos atenienses
própria causa que advogo hoje perante vós; assim, de foram obra dos oradores. Não há dúvida, pois, que ata-
qualquer ângulo que considereis minhas provas, tenho o car-me dessa maneira é indicar-me com toda a clareza as
direito de contar com que não vos tornareis exigentes respostas que devo dar.
quanto à solidez delas." Digo que todo homem que fala Isso, porém, não é mais que uma conjetura que não
assim está mais atento em fechar a boca das pessoas do pretendo garantir. O Sr. Gautier não aprovaria talvez que
que deseja convencê-las. eu quisesse justificar seu saber à custa de sua boa-fé; mas,
Se lerdes atentamente a refutação, nela não encon- se ele realmente falou com sinceridade ao refutar meu
trareis quase uma linha que pareça estar lá para esperar Discurso, como o Sr. Gautier, professor de História, pro-
e indicar sua resposta. Um único exemplo bastará para fessor de Matemática, membro da Academia de Nancy,
explicar-me. não teve certa desconfiança de todos os títulos que tem?
As vitórias que os atenienses obtiveram sobre os per- Portanto, não replicarei ao Sr. Gautier, é um ponto
sas e mesmo sobre os lacedemônios nos mostram que as resolvido. Jamais poderia responder seriamente e acom-
artes podem associar-se à virtude militar. Pergunto se aí panhar a refutação passo a passo; entendeis a razão dis-
não se trata de uma artimanha para lembrar o que eu so; e seria reconhecer mal os elogios com que o Sr. Gau-
disse da derrota de Xerxes e para fazer-me pensar no tier me honra empregar o ridículum acri, a ironia e o
desfecho da guerra do Peloponeso. Seu governo, que se gracejo acerbo. Já receio que ele tenha muito do que se
tornou venal sob Péricles, assume novo aspecto; o amor queixar do tom desta carta; ao menos ele não ignorava,

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ao escrever sua refutação, que atacava um homem que que, sem as injustiças dos homens, a jurisprudência seria
não dá tanta importância à polidez para querer aprendê- inútil. Um autor tão erudito confundiria a jurisprudência
la a fim de disfarçar seu sentimento. e as leis?
Ainda assim, estou pronto para fazer ao Sr. Gautier Eu poderia ainda deixar de lado as provas de racio-
toda a justiça que lhe é devida. Sua obra me pareceu a cínio e, para colocar o Sr. Gautier em seu terreno, citar-
de um homem culto que tem muitos conhecimentos. Ou- lhe fatos.
tros talvez encontrem nela a filosofia. Quanto a mim, Os lacedemônios não tinham jurisconsultos nem
encontro muita erudição. advogados, suas leis nem sequer eram escritas, contudo
Sou de todo o meu coração, senhor, etc. tinham leis. Confio na erudição do Sr. Gautier para saber
se as leis eram menos observadas na Lacedemônia do
P.S. Acabo de ler na Gazette d'Utrechtde 22 de outu- que nos países onde pululam os jurisconsultos.
bro uma pomposa explanação sobre a obra do Sr. Gau- Não me deterei em todas as minúcias que servem de
tier, e essa explanação parece feita de propósito para texto ao Sr. Gautier e que ele exibe na Gazette; mas ter-
confirmar minhas suspeitas. Um autor que tem certa con- minarei com a seguinte observação, que submeto ao
fiança em sua obra deixa aos outros o cuidado de elogiá- vosso exame.
la e atém-se a fazer-lhe um bom resumo. O da refutação Podemos dar razão em tudo ao Sr. Gautier e cortar
foi composto com tanta habilidade que, embora critique de meu Discurso todas as coisas que ataca, miphas pro-
vas quase nada terão perdido de sua força. Eliminemos
somente ninharias que eu só utilizara para servir de tran-
do texto do Sr. Gautier tudo o que não toca o fundo da
sição, não há uma única sobre a qual um leitor judicioso
questão, dele não restará absolutamente nada.
possa ser da mesma opinião do Sr. Gautier.
Continuo a concluir que não cumpre responder ao
Não é verdade, segundo ele, que seja dos vícios dos
Sr. Gautier.
homens que a História obtém seu principal interesse.
Eu poderia deixar de lado as provas de raciocínio e,
Paris, 1º de novembro de 1751.
para colocar o Sr. Gautier em seu terreno, citar-lhe auto-
ridades.
Felizes os povos cujos reis deram pouco o que falar
na História.
Se um dia os homens se tornarem sensatos, sua his-
tória não será muito interessante.
O Sr. Gautier diz com razão que uma sociedade, ain-
da que composta inteiramente de homens justos, não po-
deria subsistir sem leis; e daí conclui que não é verdade

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RESPOSTA
AO REI DA POLÔNIA,
DUQUE DE LORENA
Observações de J.-J. Rousseau,
de Genebra,

sobre a respostd' que foi dada ao seu Discurso

Eu deveria antes um agradecimento do que uma ré-


plica ao autor anônimo' 2 que acaba de honrar meu Dis-
curso com uma resposta. Mas o que devo ao reconheci-
mento não me fará esquecer o que devo à verdade; tam-
pouco esquecerei que, todas as vezes que se trata da ra-
zão, os homens voltam ao direito da natureza e reco-
bram sua primitiva igualdade.
O Discurso a que devo replicar está repleto de coi-
sas muito verazes e muito bem provadas, para as quais
não vejo nenhuma resposta, pois, conquanto nele eu
seja qualificado de doutor, ficaria muito aborrecido de
ser incluído entre aqueles que têm resposta para tudo.
Nem por isso minha defesa deixará de ser fácil. Li-
mitar-se-á a comparar com minha opinião as verdades

• A Resposta ao Discurso que recebeu o prêmio da Academia de Dijon foi


publicada no Mercure de France de setembro de 1751. O rei Estanislau I
Leszczynski (1677-1766), autor da resposta, foi eleito rei da Polônia em 1704
e deposto poucos anos depois. Em 17,25 casou a filha Maria com Luís XV e,
apoiado pela França, recebeu pelo ~tado de Viena (1735) o ducado de
Lorena e de Bar em troca de seu reino. Muito culto, governou sabiamente a
Lorena durante 28 anos, onde fundou a Academia de Nancy e inúmeros colé-
gios, hospitais e entidades filantrópicas. (N. da T.)

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que me objetam, pois, se eu provar que estas não a deni- de alguma maneira da inteligência suprema. Nesse senti-
grem, já será, creio eu, tê-la muito bem defendido. do louvei o saber, e nesse sentido é que louvo meu ad-
Posso reduzir a dois pontos principais todas as pro- versário. Ele estende-se ainda sobre os diversos gêneros
posições estabelecidas por meu adversário: um encerra de utilidade que o homem pode retirar das artes e das
0 elogio das ciências, o outro trata de seus abusos. Exa-
ciências, e de bom grado eu teria dito o mesmo, se isso
miná-tos-ei separadamente. pertencesse a meu assunto. Assim estamos perfeitamen-
Parece, pelo tom da resposta, que ficariam muito sa- te de acordo nesse ponto.
tisfeitos se eu tivesse dito das ciências muito mais mal do Mas como pode ser possível que as ciências, cuja
que de fato disse. Supõe-se que seu elogio, que se en- fonte é tão pura e a finalidade tão louvável, engendrem
contra no início do meu Discurso, deva ter-me custado tantas impiedades, tantas heresias, tantos erros, tantos
muito; é, segundo o autor, uma confissão arrancada ã sistemas absurdos, tantas contradições, tantas inépcias,
verdade e que não tardei em retratar. tantas sátiras amargas, tantos romances insignificantes, tan-
Se tal confissão é um elogio arrancado pela verdade, tos versos licenciosos, tantos livros obscenos; e, naque-
cumpre portanto crer que eu pensava das ciências o bem les que as cultivam, tanto orgulho, tanta avareza, tanta
que delas disse; o bem que o próprio autor da resposta maldade, tantas cabalas, tantas invejas, tantas mentiras,
diz delas não é, pois, contrário à minha opinião. Essa tantas perfídias, tantas calúnias, tantas adulações covar-
confissão, dizem, é arrancada à força; tanto melhor para des e vergonhosas? Eu dizia que é porque a ciência, por
a minha causa, pois isso mostra que em mim a verdade mais bela e sublime que seja, não é feita para o homem;
é mais forte do que a predisposição. Mas com que base que ele tem o espírito tacanho demais para fazer grandes
pode-se julgar que esse elogio é forçado? Seria por estar progressos nela, e paixões demais no coração para dei-
mal feito? Seria intentar um processo bem terrível à sin- xar de fazer mau uso dela; que lhe basta estudar bem
ceridade dos autores julgá-los com base nesse novo prin- seus deveres, e que cada qual recebeu todas as luzes ne-
cípio. Seria por ser demasiado curto? Parece-me que eu cessárias para esse estudo. Meu adversário confessa, por
poderia facilmente ter dito menos coisas em mais pági- sua vez, que as ciências se tornam prejudiciais quando
nas. É, dizem, porque me retratei. Ignoro em que lugar delas .se abusa, e que muitos realmente abusam delas.
cometi esse erro, e tudo quanto posso responder é que Nisso, creio que não dizemos coisas muito diferentes;
essa não foi a minha intenção. · acrescento, é verdade, que delas se abusa muito, e que
A ciência é muito boa em si, isso é evidente, e seria delas se abusa sempre, e não me parece que se sustente
preciso renunciar ao bom senso para dizer o contrário. o contrário na resposta.
O autor de todas as coisas é a fonte da verdade; tudo co- Portanto, posso ~ssegurar que nossos princípios, e
nhecer é um dos seus atributos divinos. Logo, adquirir por conseguinte todas as proposições que deles se po-
conhecimentos e estender as luzes próprias é participar dem deduzir, nada têm de opostos, sendo isso o que eu

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ ------Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ __

tinha de provar. Entretanto, quando concluímos, as nos- doutrina; censuram-me ter eu próprio cultivado os estu-
sas duas conclusões mostram-se contrárias. A minha era dos que condeno15 • Uma vez que a ciência e a virtude são
que, já que as ciências fazem mais mal aos costumes do incompatíveis, como pretendem que eu me esforço por
que bem à sociedade, seria desejável que os homens se prová-lo, perguntam-me num tom assaz imperativo como
dedicassem a elas com menos ardor. A de meu adversá- ouso empregar uma declarando-me em favor da outra.
rio é que, conquanto as ciências produzam muito mal, Há muita habilidade em envolverem-me assim pes-
não se deve deixar de cultivá-las por causa do bem que soalmente na questão; essa mordacidade não pode dei-
trazem. Confio, não no público, mas no pequeno núme- xar de causar embaraço em minha resposta, ou melhor,
ro dos verdadeiros filósofos, para saber qual das duas em minhas respostas, pois infelizmente tenho de dar
conclusões deve ser preferida. mais de uma. Tentemos pelo menos que nelas a exatidão
Resta-me fazer algumas breves observações sobre al- remedie a falta de atrativo.
guns trechos dessa resposta, que me pareceram um tan- 1. Que o cultivo das ciências corrompe os costumes
to falhos na justeza que admiro de bom grado nos ou- de uma nação é o que ousei sustentar, é o que ouso
tros, e que por isso puderam contribuir para o erro da acreditar haver provado. Mas como poderia eu ter dito
conseqüência que o autor lhes tira. que em cada homem em particular a ciência e a virtude
A obra começa com algumas mordacidades que só são incompatíveis, eu que exortei os príncipes a chama-
salientarei na medida em que contribuírem para resolver rem para sua corte os verdadeiros sábios e a conceder-
a questão. O autor me honra com vários elogios e, sem lhes sua confiança, a fim de que se veja de uma vez por
dúvida, isso é abrir-me uma bela carreira. Mas há muito todas o que podem a ciência e a virtude reunidas fazer
pouca proporção entre essas coisas; um silêncio respei- para a felicidade do gênero humano? Esses verdadeiros
toso sobre os objetos de nossa admiração é, em geral, sábios são poucos, confesso, pois para fazer bom uso da
mais conveniente do que louvores indiscretos 13 • ciência cumpre reunir grandes talentos e grandes virtu-
Meu Discurso, dizem, tem com que surpreender14 • Pa- des. Ora, isso é o que podemos esperar apenas de algu-
rece-me que isso exigiria um esclarecimento. Ainda estão mas almas privilegiadas, mas que não devemos esperar
surpresos de vê-lo laureado; porém não é um prodígio de um povo inteiro. Portanto, não se poderia concluir de
ver laurear-se obras medíocres. Num sentido totalmente meus princípios que um homem não possa ser sábio e
diferente, essa surpresa seria tão honrosa para a Aca- virtuoso ao mesmo tempo.
demia de Dijon quanto injuriosa para a integridade das 2. Ainda que essa pretensa contradição realmente
academias em geral, sendo fácil perceber quanto provei- existisse, menos ainda poderiam pressionar-me pessoal-
to eu tiraria disso para a minha causa. mente por sua causa. Adoro a virtude, meu coração mo
Acusam-me, com frases bem agradavelmente dispos- testemunha; dizem-m'e___também claramente quão grande
tas, de contradição entre meu procedimento e minha é a distância entre esse amor e a prática que torna o ho-

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~~~~~~~~-~-Rousseau _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes _ _ __

mem virtuoso. Aliás, estou bem longe de possuir a ciên- tão fácil praticar não o é para o meu adversário, e esta é
cia, e mais ainda de afetar possuí-la. Acreditava que a uma diferença que não beneficia a minha réplica.
confissão ingênua que fiz no começo de meu Discurso O autor, observando que ataco as ciências e as artes
me resguardaria dessa imputação, temia bem mai~ que em razão de seus efeitos sobre os costumes, utiliza, para
me acusassem de julgar coisas que não conhecia. E fácil me responder, a enumeração das utilidades que se lhes
perceber como me era impossível evitar a um só tempo retiram em todos os Estados. É como se, para justificar
essas duas censuras. Quem sabe se não chegariam até a um acusado, se contentassem em provar que ele está
reuni-las, se eu me apressasse em dar a mão à palmató- bem de saúde, tem muita habilidade ou é muito rico.
ria nesse ponto, por pouco merecido que tal possa ser? Contanto que convenham comigo que as artes e as ciên-
3. Poderia contar, a esse respeito, o que diziam os cias nos tornam pessoas indignas, não discordarei que
Padres da Igreja sobre as ciências mundanas que despre- estas nos sejam aliás muito cômodas; é uma conformida-
zavam e às quais todavia recorriam para combater os de a mais que terão com a maioria dos vícios.
filósofos pagãos. Poderia citar a comparação que faziam O autor vai mais longe, e pretende ainda que o estu-
delas com os vasos dos egípcios roubados pelos israeli- do nos é necessário para admirar as belezas do universo,
tas. Mas irei me contentar, como derradeira resposta, em e que o próprio espetáculo da natureza, exposto, ao que
formular esta pergunta: se alguém viesse para matar-me parece, aos olhos de todos para a instrução dos simples,
e eu tivesse a felicidade de apoderar-me da sua arma, requer muita instrução nos observadores para ser perce-
ser-me-ia proibido, antes de jogá-la fora, utilizá-la para bido. Confesso que tal proposição me surpreende. Será
escorraçá-lo de minha casa? que se ordenou a todos os homens serem filósofos, ou
Se a contradição que me reprovam não existe, é des- ordenou-se apenas aos filósofos crerem em Deus? Em
necessário supor que quis apenas divertir-me com um frí- milhares de passagens, a Escritura nos exorta a adorar a
volo paradoxo, e isso me parece ainda mais desnecessá- grandeza e a bondade de Deus nas maravilhas de suas
rio porque o tom que usei, por pior que possa ser, pelo obras; não penso que em nenhum passo nos tenha pres-
menos não é aquele empregado nos ditos espirituosos. crevido estudar a física, nem que o autor da natureza
Está na hora de terminar de falar sobre o que me diz não seja tão adorado por mim que nada sei como por
respeito; jamais se ganha nada falando de si mesmo, aquele que conhece o cedro e o hissopo, a tromba da
sendo essa uma indiscrição que o público dificilmente mosca e a do elefante. Non enim nos Deus ista scire, sed
perdoa, mesmo quando se é forçado a tanto. A verdade tantum modo uti voluit.
é tão independente daqueles que a atacam e daqueles Acredita-se sempre dizer o que as ciências fazem
que a defendem, que os autores que discutem a seu res- quando se diz o~ deveriam fazer. No entanto, isso me
peito bem deveriam esquecer-se reciprocamente; isso parece bem diferente. O estudo do universo deveria ele-
pouparia muito papel e tinta. Mas essa regra que me é var o homem ao seu criador, bem o sei, mas só eleva a

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vaidade humana. O filósofo, que se vangloria de pene- de sua ignorância se desenvolve ao aprender, e somente
trar nos segredos de Deus, ousa associar sua pretensa sa- para eles é que o estudo pode ser bom. Os espíritos ta-
bedoria à sabedoria eterna: aprova, censura, corrige, pres- canhos, mal aprendem alguma coisa, crêem tudo saber,
creve leis à natureza e limites à divindade; e, enquanto, não havendo espécie de tolice que essa persuasão não
ocupado com seus vãos sistemas, tem um trabalho imen- os faça dizer e fazer. Quanto mais conhecimentos adqui-
so para arranjar a máquina do mundo, o lavrador que vê re o homem, mais facilidade tem para proceder bem. Vê-
a chuva e o sol fertilizarem alternadamente seu campo, se que, falando assim, o autor consultou bem mais seu
admira, louva e bendiz a mão que lhe propicia essas gra- coração do que observou os homens.
ças, sem se preocupar com a maneira pela qual estas lhe Ele afirma ainda que é bom conhecer o mal para
chegam. Não procura justificar sua ignorância ou seus aprender a fugir dele, e dá a entender que só se pode ter
vícios por sua incredulidade. Não censura as obras de certeza da virtude própria depois de tê-la posto à prova.
Deus e não se declara contra seu senhor para fazer bri- Essas máximas são pelo menos duvidosas e sujeitas a
lhar sua presunção. Jamais o dito ímpio de Alfonso X irá muitas discussões. Não é certo que, para aprender a pro-
parar no espírito de um homem comum; era a uma boca ceder com acerto, seja-se obrigado a saber de quantas
erudita que tal blasfêmia estava reservada. maneiras se pode fazer o mal. Temos um guia interior
A curiosidade natural ao homem, continuam, inspi- bem mais infalível do que todos os livros e que nunca
ra-lhe a vontade de aprender. Ele deveria então trabalhar nos abandona no momento de necessidade. Bastaria ele
para contê-la, como a todas as suas inclinações naturais. para nos conduzir inocentemente, se quiséssemos sem-
Suas carências jazem-no sentir a sua necessidade. Em pre escutá-lo. E como seríamos obrigados a experimen-
muitos aspectos os conhecimentos são úteis, no entanto tar nossas forças para nos assegurar de nossa virtude se
os selvagens são homens e não sentem essa necessida- um dos exercícios da virtude é fugir das ocasiões do
de. Suas utilizações impõem-lhe essa obrigação. Impõem- vício?
lhe, com muito mais freqüência, a de renunciar ao estudo O homem sábio está continuamente alerta e sempre
para aplicar-se aos seus deveres 16 . Seus progressos fazem- desconfia das próprias forças, reserva toda a sua cora-
no sentir o prazer deles. É por isso mesmo que deveria gem para quando for necessário e nunca se expõe inde-
desconfiar deles. Suas primeiras descobertas aumen- vidamente. O fanfarrão é aquele que se vangloria inces-
tam a avidez que tem de saber. Com efeito, isso aconte- santemente de mais do que pode fazer e que, depois de
ce aos que têm talento. Quanto mais ele conhece, mais ter ameaçado e insultado todo o mundo, apanha na pri-
sente que tem conhecimentos por adquirir. Ou seja, a meira refrega. Pergunto qual dos dois retratos se parece
única serventia de todo o tempo que perde é estimulá-lo mais com um filósofo às voltas com suas paixões.
a perder mais ainda; mas não há muito mais que um pe- Criticam-me de ter pretendido tomar os meus exem-
queno número de homens de talento em quem a noção plos de virtude aos antigos. É bem provável que teria
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-----~-- Discurso sobre as ciências e as artes

encontrado ainda mais se pudesse ter remontado a mais


mos, pois é importante apresentá-la fielmente aos ólhos
longe no tempo. Citei também um povo moderno, e não do leitor.
tenho culpa de ter encontrado apenas um. Criticam-me
Quanto mais o cristão examina a autenticidade de
ainda, numa máxima geral, de paralelos odiosos, nos
seus títulos, mais se tranqüiliza na posse de sua crença;
quais entram, dizem, menos zelo e eqüidade do que in-
veja de meus compatriotas e irritação contra meus con- quanto mais estuda a revelação, mais se fonalece na fé.
É nas divinas Escrituras que descobre sua origem e ex-
temporâneos. Contudo, ninguém, talvez, ame tanto quan-
to eu seu país e seus compatriotas. Além do mais, só celência; é nas doutas obras dos Padres da Igreja que
tenho uma palavra de resposta. Expus minhas razões e segue, de século em século, seu desenvolvimento; é nos
são elas que se devem pesar. Quanto às minhas inten- livros de moral e nos anais santos que encontra seus
ções, deve-se deixar o seu julgamento somente a quem exemplos e tira sua aplicação.
ele compete. Como? A ignorância arrebatará da religião e da vir-
Aqui não posso deixar passar em silêncio uma obje- tude apoios tão poderosos? E ensinará abenamente um
ção considerável que já me foi feita por um filósof0 17 : doutor de Genebra que é a ela que se deve a irregularida-
Não será, dizem-me a esse respeito, ao temperamento, à de dos costumes? Ficaríamos mais espantados ainda de
falta de ocasião, à míngua de objeto, à economia do ouvir tão estranho paradoxo se não soubéssemos que a
governo, aos costumes, às leis, a qualquer outra causa singularidade de um sistema, por mais perigoso que seja,
que não às ciências que se deve atribuir essa diferen- é apenas uma razão a mais para quem só tem como
ça que por vezes se observa nos costumes em diferentes regra o espírito parlicular.
países e em diferentes épocas? Atrevo-me a perguntar ao autor: Como pôde dar se-
Essa questão encerra grandes concepções e exigiria melhante interpretação aos princípios que estabeleci?
esclarecimentos extensos demais para convirem a este Como pôde acusar-me de censurar o estudo da religião,
escrito. Aliás, tratar-se-ia de examinar as relações muito eu que censuro sobretudo o estudo de nossas vãs ciên-
ocultas, mas muito reais, que se encontram entre a natu- cias, porque ele nos desvia do estudo de nossos deveres?
reza do governo e a índole, os costumes e os conheci- E o que é o estudo dos deveres do cristão, senão o de
mentos dos cidadãos, e isso me lançaria em discussões sua própria religião?
delicadas, que poderiam levar-me longe demais. Ade- Decerto eu deveria ter censurado expressamente to-
mais, ser-me-ia bem difícil falar de governo sem dar óti- das essas sutilidades pueris da escolástica, com as quais,
mos trunfos ao meu adversário, e, tudo bem pesado, es- com o pretexto de esclarecer os princípios da religião,
tas são pesquisas adequadas para se fazer em Genebra e aniquila-se-lhe o espírito ao substituir a humildade cristã
em outras circunstâncias. pelo orgulho científico. Deveria ter me levantado com
Passo a uma acusação muito mais grave do que a
mais força contra esses ministros indiscretos que foram
objeção anterior. Vou transcrevê-la em seus próprios ter-
os primeiros a ousar levar as mãos à arca, para apoiar
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com seu fraco saber um edifício sustentado pela mão de bém com imenso cuidado todas as práticas da religião,
Deus. Deveria ter-me indignado contra esses homens frí- mas o Evangelho nos ensina o espírito dessa exatidão, e
volos que, com suas míseras questiúnculas, aviltaram a a importância que se lhe deve dar. Em suma, tinham to-
sublime simplicidade do Evangelho e reduziram a silo- dos eles muito pouca ciência e muito orgulho, não sen-
gismos a doutrina de Jesus Cristo. Mas trata-se, hoje, de do nisso que mais diferiam de nossos doutores de hoje.
defender-me e não de atacar. No estabelecimento da nova fé, não foi a sábios que
Vejo que é pela história e pelos fatos que deverá ter- Jesus Cristo quis confiar sua doutrina e seu ministério.
minar esta discussão. Se eu soubesse expor com poucas Seguiu em sua escolha a predileção que demonstrou em
palavras o que as ciências e a religião têm em comum todas as ocasiões pelos pequenos e simples. E nas instru-
desde o começo, talvez isso servisse para decidir a ques- ções que dava aos seus discípulos não se vê uma pala-
tão sobre esse ponto. vra de estudo nem de ciência, a não ser para assinalar o
O povo que Deus escolhera para si nunca cultivou desprezo que tinha por tudo isso.
as ciências e nunca lhe foi aconselhado seu estudo; en- Depois da morte de Jesus Cristo, doze pobres pesca-
tretanto, se esse estudo fosse útil para alguma coisa, teria dores e artesãos empreenderam instruir e converter o
sido mais necessário para ele do que qualquer outro. Ao mundo. Seu método era simples; pregavam sem arte,
contrário, seus chefes sempre fizeram esforços para man- mas com o coração convicto, e, de todos os milagres
tê-lo, tanto quanto possível, separado das nações idóla- com que Deus honrava sua fé, o mais impressionante era
tras e sábias que o circundavam. Precaução menos ne- a santidade da vida deles; seus discípulos seguiram esse
cessária no que diz respeito a um vizinho do que ao ou- exemplo e o sucesso foi prodigioso. Os sacerdotes pa-
tro, pois esse povo fraco e grosseiro era bem mais fácil gãos, alarmados, deram a entender aos príncipes que o
de seduzir pelos embustes dos sacerdotes de Baal do Estado estava perdido porque diminuíam as oferendas.
que pelos sofismas dos filósofos. Surgiram as perseguições, e os perseguidores limitaram-
Depois das dispersões freqüentes entre os egípcios e se a acelerar os progressos dessa religião que queriam
os gregos, a ciência teve ainda mil dificuldades para ger- sufocar. Todos os cristãos corriam para o martírio, todos
minar nas cabeças dos hebreus. Josefo e Filão, que em os pevos corriam para o batismo; a história desses pri-
qualquer outro lugar não teriam passado de dois homens meiros tempos é um prodígio contínuo.
medíocres, foram prodígios entre eles. Os saduceus, re- Os sacerdotes dos ídolos, porém, não contentes em
conhecíveis por sua irreligião, foram os filósofos de Jeru- perseguir os cristãos, puseram-se a caluniá-los; os filóso-
salém; os fariseus, grandes hipócritas, foram seus douto- fos, que não levavam proveito numa religião que prega
res18. Estes, conquanto restringissem quase que toda a sua a humildade, juntaram-se aos sacerdotes. Os simples se
ciência ao estudo da Lei, faziam tal estudo com todo o tornavam cristãos, é verdade, mas os sábios zombavam
fausto e toda a suficiência dogmática. Observavam tam- deles, e sabe-se com que desprezo o próprio São Paulo

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foi recebido pelos atenienses. Choviam de todos os la- A Igreja, mais de uma vez, ergueu-se contra tais abu-
dos os motejos e as injúrias sobre a nova seita. Foi pre- sos. Seus mais ilustres defensores os deploraram com fre-
ciso tomar da pena para se defender. São Justino, o Már- qüência em termos cheios de força e de energia; com
tir19, escreveu a primeira apologia da sua fé. Atacaram-se freqüência tentaram banir dela toda essa ciência munda-
os pagãos por sua vez; atacá-los era vencê-los. Os pri- na, que lhe maculava a pureza. Um dos papas mais ilus-
meiros sucessos encorajaram outros escritores; com o pre- tres chegou mesmo ao excesso de zelo de sustentar que
texto de expor a torpeza do paganismo, lançaram-se na era algo vergonhoso sujeitar a palavra de Deus às regras
mitologia e na erudição 20 ; quiseram mostrar ciência e cul- da gramática.
tura, os livros apareceram em profusão, e os costumes Clamaram, porém, em vão; arrastados pela torrente,
começaram a relaxar-se. foram eles mesmos obrigados a conformar-se com a prá-
Logo não mais se contentaram com a simplicidade do tica que condenavam, sendo de uma maneira muito eru-
Evangelho e da fé dos apóstolos; impunha-se ter cada vez dita que a maior parte deles invectivou contra o progres-
mais espírito do que seus antecessores. Discorreram com so das ciências.
sutileza sobre todos os dogmas; cada qual quis sustentar Depois de longas agitações, as coisas adquiriram uma
sua opinião, ninguém quis ceder. Surgiu a ambição de ser situação mais estável. Por volta do século X, a chama das
chefe de seita, em toda parte pulularam as heresias. ciências deixou de iluminar a terra; o clero permaneceu
A exaltação e a violência não tardaram a juntar-se à imerso numa ignorância que não quero justificar, já que
disputa. Aqueles cristãos tão doces, que só sabiam es- esta abrangia tanto as coisas que ele deve saber quanto
tender a garganta aos cutelos, tornaram-se entre si per- aquelas que lhe são inúteis, mas na qual a Igreja ganhou
seguidores furiosos, piores do que os idólatras; todos pelo menos um pouco mais de tranqüilidade do que até
mergulharam nos mesmos excessos, e o partido da ver- então experimentara.
dade não foi sustentado com mais moderação do que o Depois do renascimento das letras, não tardaram a
do erro. recomeçar as divisões, mais terríveis do que nunca. Ho-
Outro mal, ainda mais perigoso, nasceu da mesma mens sábios desencadearam a discussão, homens sábios
fonte. Foi a introdução da antiga filosofia na doutrina a sustentaram, e os mais capazes mostraram-se sempre
cristã. À força de estudar os filósofos gregos, acreditaram os mais obstinados. Foi em vão que se organizaram con-
ver neles relações com o cristianismo. Ousaram acreditar ferências entre os doutores dos diferentes partidos; ne-
que assim a religião ficaria mais respeitável, revestida da nhum deles lhes levava o amor da reconciliação, nem
autoridade da filosofia. Houve um tempo em que cum- talvez o da verdade; todos eles lhes levavam apenas o
pria ser platônico para ser ortodoxo, e pouco faltou para desejo de brilhar à custa do adversário, cada qual queria
que, primeiro Platão, e depois Aristóteles, fossem colo- vencer, ninguém queria instruir-se, o mais forte impunha
cados no altar ao lado de Jesus Cristo. silêncio ao mais fraco; a discussão terminava sempre por

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injúrias e a perseguição sempre foi o seu fruto. Só Deus me. Não tendes necessidade de conhecê-la, nem de en-
sabe quando findarão todos esses males. siná-la a mim, e vosso ministério está concluído. Em tudo
As ciências estão florescentes hoje, a literatura e as isso não se trata de literatura, nem de filosofia. É assim
artes brilham entre nós. Que proveito tirou disso a reli- que convém seguir e pregar o Evangelho, e foi assim
gião? Perguntemo-lo a essa multidão de filósofos que se que seus primeiros defensores o fizeram triunfar sobre
vangloriam de não a ter. Nossas bibliotecas regurgitam de todas as nações, non aristotelico more, diziam os Padres
livros de teologia, e os casuístas formigam entre nós. Ou- da Igreja, sed piscatorio 21 •
trora tínhamos santos e não casuístas. A ciência se ex- Percebo que estou sendo interminável, mas acreditei
pande e a fé se extingue. Todo o mundo quer ensinar a não poder dispensar-me de estender-me um pouco so-
bem proceder, e ninguém quer aprendê-lo; tornamo-nos bre um ponto da importância deste. Ademais, os leitores
todos doutores, e deixamos de ser cristãos. impacientes devem refletir quão cômoda é a crítica, pois,
Não, não foi com tanta arte e aparato que o Evange- onde se ataca com uma palavra, são necessárias páginas
lho se espraiou por todo o universo e que sua beleza para se defender.
arrebatadora penetrou nos corações. Esse livro divino, o Passo à segunda parte da resposta, na qual me em-
único necessário a um cristão, e o mais útil de todos, mes- penharei em ser mais breve, conquanto nela não encon-
mo para quem não o for, só precisa ser meditado para tre muito menos observações para fazer.
levar à alma o amor de seu autor e a vontade de cumprir Não é das ciências, dizem-me, é do seio das riquezas
os seus preceitos. Jamais a virtude falou tão doce lingua- que em todos os tempos nasceram a indolência e o luxo.
gem; jamais a mais profunda sabedoria se expressou com Eu não disse tampouco que o luxo tinha nascido das
tanta energia e simplicidade. Não se larga sua leitura sem ciências, mas que nasceram junto e quase nunca um vive
se sentir melhor do que antes. Oh! vós, ministros da Lei sem o outro. Eis como ordenaria essa genealogia. A pri-
que nele me é anunciada, empenhai-vos menos em ins- meira fonte do mal é a desigualdade; da desigualdade
truir-me em tantas coisas inúteis. Deixai de lado todos vieram as riquezas, pois as palavras pobre e rico são re-
esses livros eruditos, que não podem convencer-me, nem lativas e, em toda parte em que os homens forem iguais,
me tocar. Prosternai-vos aos pés desse Deus de miseri- não haverá ricos nem pobres. Das riquezas nasceram o
córdia que vos encarregastes de fazer-me conhecer e luxo e a ociosidade; do luxo vieram as belas-artes e, da
amar; pedi-lhe para vós essa humildade profunda que ociosidade, as ciências. Em tempo algum as riquezas fo-
deveis pregar-me. Não ostentai aos meus olhos essa ciên- ram o apanágio dos sábios. É nisso mesmo que reside o
cia orgulhosa, nem esse fausto indecente que vos deson- mal maior; os ricos e os sábios só servem para corrom-
ram e me revoltam; sede vós mesmos tocados se quiser- per-se mutuamente. Se os ricos fossem mais sábios, ou
des que eu o seja, e, sobretudo, mostrai-me em vossa se os sábios fossem mais ricos, uns não seriam tão covar-
conduta a prática dessa lei em que pretendeis instruir- des aduladores, os outros não gostariam tanto da abjeta

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adulação, e com isso todos valeriam mais. É isso que se te, muito lucrativas, têm mais condições de conseguir
pode ver pelo pequeno número dos que têm a felicida- tudo quanto desejam. Trabalham apenas para os ricos.
de de ser sábios e ricos ao mesmo tempo. Para um Pla- No rumo que tomam as coisas, não ficaria espantado de
tão na opulência, para um Aristipo com crédito na corte, ver um dia os ricos trabalharem para eles. E são os ricos
quantos filósofos reduzidos ao manto e ao alforje, envol- ociosos que se aproveitam e abusam dos frutos de seu
vidos em sua própria virtude e ignorados em sua solidão? engenho. Mais uma vez, não creio que nossos artistas
Não discordo de que haja grande número de filósofos sejam pessoas tão simples e tão modestas. O luxo não
muito pobres e certamente muito aborrecidos de o se- poderia reinar numa classe de cidadãos sem logo intro-
rem; não duvido tampouco que seja somente ã sua po- duzir-se em todas as outras, com diferentes modificações,
breza que a maioria deles deve sua filosofia; porém, e em todas elas faz a mesma devastação.
mesmo que eu admitisse supô-los virtuosos, seria basea- O luxo tudo corrompe, tanto o rico que o desfruta
do em seus costumes, que o povo não vê, que este apren- como o miserável que o cobiça. Não se poderia dizer
deria a reformar os seus? Os sábios não têm nem o gosto, que seja um mal em si usar punhos de renda, um traje
nem o tempo de amealhar grandes bens. Consinto em crer bordado e uma caixa de rapé esmaltada. Mas é um gran-
que não têm tempo para tanto. Amam o estudo. Aquele de mal dar importância a essas ninharias, julgar feliz o
que não amasse o seu ofício seria um homem muito povo que as usa e consagrar o tempo e os cuidados, que
louco, ou então muito miserável. Vivem na mediocrida- todo homem deve a objetivos mais nobres, a preparar-se
de. Cumpre estar extremamente inclinado em favor deles para adquirir semelhantes. Não tenho necessidade de
para conceder-lhes mérito por isso. Uma vida laboriosa saber qual é o ofício de quem se ocupa com tais idéias
e moderada, passada no silêncio da solidão, ocupada para saber o juízo que devo fazer dele.
pela leitura e pelo trabalho, certamente não é uma vida Apresentei o belo retrato que nos fazem aqui dos sá-
voluptuosa e criminosa. Não, pelo menos aos olhos dos bios e creio poder converter em mérito meu essa com-
homens; tudo depende do íntimo. Um homem pode ser placência. Meu adversário é menos indulgente, não só
obrigado a levar uma vida assim e ter, no entanto, a alma não me concede nada que possa me recusar, mas em vez
muito corrompida. Aliás, o que importa que ele próprio de dar a mão ã palmatória no que toca ao mal que penso
seja virtuoso e modesto, se os trabalhos com que se de nossa vã e falsa polidez prefere desculpar a hipocri-
ocupa alimentam a ociosidade e degeneram o espírito de sia. Pergunta-me se eu gostaria que o vício se mostrasse
seus concidadãos? As comodidades da vida, ainda que a descoberto. Claro que eu gostaria. A confiança e a esti-
amiúde sejam o fruto das artes, nem por isso são o qui- ma renasceriam entre os bons, aprenderíamos a descon-
nhão dos artistas. Não me parece muito que eles sejam fiar dos maus e com isso a sociedade ficaria mais segura.
pessoas que as rejeitem, mormente aqueles que, ocu- Prefiro que meu inimigo me ataque de armas na mão a
pando-se com artes totalmente inúteis e, por conseguin- que venha traiçoeiramente ferir-me por trás. Como! Cum-

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pnna juntar o escândalo ao crime? Não sei, mas bem guém jamais viu foi um hipócrita tornar-se homem de
gostaria que não lhe juntassem a falsidade. São muito cô- bem. Poder-se-ia, sensatamente, ter-se tentado a conver-
modas para os corruptos todas essas máximas que nos são de Cartouche*, jamais um homem prudente teria
impingem há muito tempo sobre o escândalo; se as qui- empreendido a de Cromwell.
séssemos seguir rigorosamente, seria preciso deixar-se Atribuí ao estabelecimento das letras e das artes a
pilhar, trair, matar impunemente e jamais punir ninguém, elegância e a polidez que reinam em nossas maneiras. O
pois é um objeto muito escandaloso um celerado sofren- autor da resposta mo contradiz, o que me espanta, pois,
do o suplício da roda. Mas será a hipocrisia uma home- uma vez que ele dá tanta importância à polidez e dá
nagem que o vício presta à virtude? Sim, como aquela tanta importância às ciências, não percebo em que van-
dos assassinos de César, que se prosternavam aos seus tagem reverterá privar uma dessas coisas da honra de
pés para degolá-lo com mais precisão. Por mais brilhan- haver produzido a outra. Mas examinemos as suas pro-
te que seja esse pensamento, por mais autoridade que vas, que se reduzem ao seguinte: Não se nota que os sá-
lhe dê o nome de seu autor22 , nem por isso é mais justo. bios sejam mais polidos do que os outros homens; ao con-
Acaso dir-se-á de um larápio, que veste a libré de uma trário, amiúde o são muito menos; logo, nossa polidez
casa para dar seu golpe com mais comodidade, que pres- não é obra das ciências.
ta homenagem ao dono da casa que rouba? Não, cobrir Observarei, primeiramente, que nesse caso se trata
sua maldade com o perigoso manto da hipocrisia não é menos de ciências do que de literatura, de belas-artes e
honrar a virtude, é ultrajá-la profanando-lhe as insígnias; de obras de gosto; e nossos letrados, por menos sábios
é acrescentar a covardia e a trapaça a todos os outros que sejam, mas tão polidos, tão conhecidos, tão brilhan-
vícios, é impedir em definitivo a si próprio qualquer vol- tes, tão pernósticos, dificilmente se reconhecerão no ar
ta à probidade. Há temperamentos elevados que man-
rabugento e pedantesco que o autor da resposta quer
têm até no crime algo de altivo e de generoso, que ainda
atribuir-lhes. Concedamos-lhe, porém, esse antecedente,
deixa ver no íntimo uma centelha desse fogo celeste fei-
concordemos, se preciso for, que os eruditos, os poetas
to para animar as belas almas. Mas a alma vil e rastejan-
e os letrados são todos igualmente ridículos; que os se-
te do hipócrita é semelhante a um cadáver, em que já
nhores da Academia de Belas-Letras, os senhores da
não se encontra nem fogo, nem calor, nem possibilidade
Academia de Ciências, os senhores da Academia France-
de vida. Recorro à experiência. Viram-se grandes celera-
sa são homens grosseiros, que não conhecem as boas
dos recolher-se em si mesmos, terminar santamente* sua
maneiras nem os costumes da sociedade, e são excluí-
carreira e morrer como predestinados. Mas o que nin-

• Louis-Dominique Bourguignon, célebre bandido francês (1693-1721), a


• Algumas edições trazem "saudavelmente" em vez de santamente. quem se atribuíam aventuras de toda espécie. Morreu no suplício da roda.
(N. da T.) (N. da T.)

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dos por sua profissão da sociedade de escol. O autor multiplica os vícios, que degrada a razão, avilta a alma e
pouco ganhará com esse fato, e nem por isso terá mais torna os homens semelhantes aos animais: é essa a igno-
direito de negar que a polidez e a urbanidade reinantes rância que o autor ataca e da qual pinta um retrato muito
entre nós sejam a conseqüência do bom gosto, a princí- odioso e muito parecido. Há outra espécie de ignorância
pio extraído dos antigos e difundido entre os povos da razoável, que consiste em limitar sua curiosidade à ex-
Europa pelos livros agradáveis que se publicam em toda tensão das faculdades que se recebeu; uma ignorância
a parte 23 • Como os melhores professores de dança nem modesta, que nasce de um vivo amor pela virtude e só
sempre são as pessoas que melhor se apresentam, é pos- inspira indiferença por todas as coisas que não são dig-
sível dar ótimas lições de polidez sem querer ou poder nas de encher o coração do homem e não contribuem
ser em pessoa muito polido. Esses enfadonhos comenta- para torná-lo melhor; uma doce e preciosa ignorância,
dores que, dizem-nos, conheciam tudo dos antigos, afo- tesouro de uma alma pura e contente consigo mesma,
ra a graça e a delicadeza, não deixaram, com suas obras que põe toda a sua felicidade em ensimesmar-se, em tes-
úteis, embora menosprezadas, de nos ensinar a perceber temunhar sua inocência e que não tem necessidade de
essas belezas que não percebiam. Ocorre o mesmo com buscar uma falsa e vã felicidade na opinião que os ou-
esse encanto do trato e com essa elegância dos costumes tros poderiam ter de suas luzes. Eis a ignorância que elo-
que se substituem à sua pureza e que se fizeram notar giei e a que peço ao céu como punição do escândalo
em todos os povos entre os quais as letras eram admira- que causei aos doutos com meu desprezo declarado pe-
das; em Atenas, em Roma, na China, em todos os luga- las ciências humanas.
res viu-se a polidez, da linguagem e das maneiras, acom- Que se comparem, diz o autor, com aqueles tempos
panhar sempre, não os sábios e os artistas, mas as ciên- de ignorância e de barbárie estes séculos felizes em que
cias e as belas-artes. as ciências difundiram por toda a parte o espírito de or-
O autor ataca em seguida os elogios que fiz à igno- dem e de justiça. Estes séculos felizes serão difíceis de
rância e, censurando-me por ter falado mais como ora- encontrar; porém encontraremos com mais facilidade
dor do que como filósofo, descreve por sua vez a igno- outros em que, graças às ciências, ordem e justiça não
rância; e bem se pode desconfiar que não lhe atribui be- serão mais do que palavras vãs, feitas para ludibriar o
las cores. povo, e em que a aparência delas terá sido conservada
Não nego que tenha razão, mas não creio estar erra- com cuidado para destruí-las de fato mais impunemente.
do. Basta uma distinção muito justa e verdadeira para que Vemos em nossos dias guerras menos freqüentes, porém
entremos em acordo. mais justas. Em qualquer tempo que seja, como poderá
Há uma ignorância feroz 24 e brutal que nasce de um a guerra ser mais justa num dos partidos, sem ser injusta
mau coração e de um espírito falso; uma ignorância cri- no outro? Eu não poderia conceber isso! Ações menos
minosa que se estende aos deveres da humanidade, que surpreendentes, porém mais heróicas. Decerto ninguém

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negará ao meu adversário o direito de julgar o heroísmo, Detenhamo-nos um instante nesta última conse-
mas pensará ele que o que não é surpreendente para ele qüência, e evitemos a concluir daí que hoje seja preciso
o seja para nós? Vitórias menos sangrentas, porém mais queimar todas as bibliotecas e destruir as universidades
gloriosas; conquistas menos rápidas, porém mais segu- e as academias. Apenas tornaríamos a mergulhar a Euro-
ras; guerreiros menos violentos, porém mais temíveis, que pa na barbárie e os costumes nada ganhariam com isso25 •
sabem vencer com moderação, tratar os vencidos com É com pesar que vou pronunciar uma grande e fatal ver-
humanidade; a honra é seu guia, a glória sua recompen- dade. Não há mais do que um passo do saber à ignorân-
sa. Não nego ao autor que haja grandes homens entre cia, e a alternância de um para a outra é freqüente entre
nós, ser-lhe-ia muito fácil fornecer a prova; o que não as naçôes; mas nunca se viu um povo, uma vez corrom-
impede que os povos sejam muito corrompidos. De mais pido, voltar à virtude. Em vão pretendereis destruir as
a mais, essas coisas são tão vagas que se poderiam dizer fontes do mal; em vão suprimiríeis os alimentos da vai-
de quase todas as épocas, sendo impossível responder a dade, da ociosidade e do luxo; em vão, também, traríeis
elas, porque seria preciso folhear bibliotecas e fazer infó- os homens de volta a essa primeira igualdade, conserva-
lios para estabelecer provas pró ou contra. dora da inocência e fonte de todas as virtudes: seus cora-
Quando Sócrates criticou as ciências, não poderia, ções, uma vez estragados, assim permanecerão; não há
ao que me parece, ter em vista nem o orgulho dos estói- mais remédio, a não ser uma grande revolução quase tão
cos, nem a indolência dos epicuristas, nem o absurdo temível como o mal que poderia curar, e que é condená-
jargão dos pirrônicos, porque nenhuma dessas pessoas vel desejar e impossível prever.
existia em seu tempo. Mas esse leve anacronismo não é Deixemos, portanto, as ciências e as artes ameniza-
desdouro para meu adversário; ele encontrou melhor rem de algum modo a ferocidade dos homens que elas
emprego para a sua vida do que verificar datas, e não é corromperam; tentemos fazer delas um derivativo sen-
mais obrigado a saber de cor seu Diógenes Laércio do sato, empenhemo-nos em mudar o objeto de suas pai-
que eu a ter visto de perto o que sucede nos combates. xões. Ofereçamos alguns alimentos a esses tigres, a fim
Convenho, pois, que Sócrates só pensou em enfati- de que não devorem nossos filhos. As luzes do mau são
zar os vícios dos filósofos de seu tempo; mas não sei o tamb€m menos temíveis do que a sua brutal estupidez;
que concluir daí, senão que desde aquele tempo os vícios pelo menos elas o tornam mais cauteloso quanto ao mal
pululavam com os filósofos. Respondem-me que isso que poderia fazer por conhecer aquele que ele próprio
provém do abuso da filosofia, e não penso ter dito o con- receberia.
trário. Como! Cumprirá então suprimir todas as coisas de Elogiei as academias e seus ilustres fundadores, e de
que se abusa? Sim, sem dúvida, responderei eu sem hesi- bom grado repetirei o elogio. Quando o mal é incurável,
tar; todas aquelas que são inúteis; todas aquelas cujo abu- o médico aplica paliativos e proporciona os remédios me-
so traz mais mal do que o bem que traz o seu uso. nos conforme as necessidades do que conforme o tem-

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ ~_ __ ~

peramento do doente. Cabe aos sábios legisladores lhe


imitarem a prudência e, não mais podendo adaptar aos
povos doentes a melhor das polícias, dar-lhes ao menos,
como Sólon, a melhor que possam suportar.
Há na Europa um grande príncipe e, o que importa
muito mais, um virtuoso cidadão que, na pátria que ado-
tou e faz feliz, acaba de fundar várias instituições em
prol das letras. Fez com isso algo muito digno de sua sa-
bedoria e de sua virtude. Quando se trata de estabeleci-
mentos políticos, são o tempo e o lugar que tudo deci-
dem. Urge, em seus próprios interesses, que os príncipes ÚLTIMA RESPOSTA DE J.-J. ROUSSEAU
sempre favoreçam as ciências e as artes; já disse a razão
Ne, dum tacemus, non verecundiae
disso e, no estado atual de coisas, urge também que hoje
sed diflidentiae causa tacere videamur*
as favoreçam para o próprio interesse dos povos. Se hou-
vesse atualmente entre nós algum monarca tacanho o Cypriano, contra Demet.
bastante para pensar e agir de outro modo, seus súditos
permaneceriam pobres e ignorantes, e nem por isso se-
riam menos corruptos. Meu adversário descuidou de ti-
rar vantagem de um exemplo tão convincente e, aparen-
temente, tão favorável à sua causa; talvez seja o único
que o ignora, ou que nele não tenha pensado. Que per-
mita, pois, que lho lembre; que não recuse às grandes
coisas os elogios que lhes são devidos; que as admire,
assim como nós, e não se obstine mais contra as verda-
des que ataca.

• "Para que não se pense que a causa de nosso silêncio seja o temor, mas
a desconfiança." São Cipriano, um dos mais ilustres padres da Igreja latina, foi
bispo de Cartago no século III d.C. (N. da T.)

84
Última resposta* deJ.-J. Rousseau,
de Genebra 26

É com extrema repugnância que entretenho com


meus debates leitores ociosos que se preocupam muito
pouco com a verdade; porém, a maneira pela qual aca-
bam de atacá-la força-me a tomar sua defesa mais uma
vez, a fim de que meu silêncio não seja considerado pelo
vulgo como uma confissão, nem pelos filósofos como um
desdém.
Cumpre repetir-me, bem o reconheço, e o público
não mo perdoará. Os sábios, porém, dirão: Este homem
não carece de procurar incessantemente novas razões, é
uma prova da solidez das suas 27 •
Como aqueles que me atacam nunca deixam de des-
viar-se da questão e de suprimir as distinções essenciais
que nela coloquei, cumpre sempre começar por trazê-los
de volta a ela. Eis portanto um sumário das proposições
que sustentei e sustentarei por todo o tempo em que não
consultar outro interesse senão o da verdade.

• Publicada em abril de 1752, esta resposta se refere ao Discurso sobre


\ as vantagens das ciências e das artes, pronunciado em 22 de junho de 1751
por Charles Borde (e não Bordes, como escreviaRousseau) diante da Acade-
mia de Lyon. Poeta e literato, Charles Borde 0711-1781), antigo amigo de
Rousseau, passa a combatê-lo de um modo irreverente e sarcástico. (N. da T.)

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ __ _ Discurso sobre as ciências e as a r t e s - - - - - - -

As ciências são a obra-prima do gênio e da razão. O bons costumes, desde que se é dispensado de ser ho-
espírito de imitação produziu as belas-artes, e a expe- mem de bem contanto que se seja um homem agradável.
riência as aperfeiçoou. Devemos às artes mecânicas gran- Quanto mais o interior se corrompe, mais compostu-
de número de invenções úteis que contribuíram para os ra adquire o exterior30 ; é assim que a cultura das letras en-
encantos e as comodidades da vida. Estas são verdades gendra insensivelmente a polidez. O gosto também nas-
com as quais concordo seguramente de bom grado. Mas ce da mesma fonte. Sendo a aprovação pública o primei-
consideremos agora todos esses conhecimentos com re- ro prêmio dos trabalhos literários, é natural que os que
deles se ocupam reflitam sobre os meios de agradar; e são
lação aos costumes28 .
essas reflexões que com o tempo formam o estilo, apri-
Se inteligências celestiais cultivassem as ciências, dis-
moram o gosto e espalham por toda parte a gentileza e
so só resultaria o bem; digo o mesmo dos grandes ho-
a urbanidade. Todas essas coisas serão, se preferirem, o
mens, que são feitos para guiar os demais. Sócrates, sá-
suplemento da virtude, mas jamais se poderá dizer que
bio e virtuoso, foi uma honra para a humanidade, mas os
sejam a virtude, e raramente se associarão a ela. Haverá
vícios dos homens comuns envenenam os conhecimen-
sempre esta diferença: aquele que se torna útil trabalha
tos mais sublimes e os tornam perniciosos às nações; os para os outros, e aquele que só pensa em tornar-se agra-
maus tiram deles muitas coisas nocivas; os bons pouco dável trabalha apenas para si. O adulador, por exemplo,
proveito tiram. Se ninguém mais além de Sócrates tives- não poupa nenhum cuidado para agradar e, no entanto,
se pretensões filosóficas em Atenas, o sangue de um jus- só faz o mal.
to não teria clamado vingança contra a pátria das ciên- A vaidade e a ociosidade, que engendraram nossas
cias e das artes 29 • ciências, também engendraram o luxo. O gosto do luxo
É uma questão para ser examinada, se seria provei- sempre acompanha o das letras, e o gosto das letras
toso aos homens possuírem a ciência, supondo-se que acompanha amiúde o do luxo31 • Todas essas coisas fazem
aquilo que chamam por esse nome o merecesse de fato; assaz fiel companhia umas às outras, porque são obra dos
mas é uma loucura pretender que as quimeras da filoso- mesmos vícios.
fia, os erros e as mentiras dos filósofos possam um dia ter Se a experiência não se adaptasse a essas proposi-
alguma serventia. Seremos nós sempre logrados pelas ções demonstradas, seria preciso procurar as causas par-
palavras? E compreenderemos um dia que estudos, co- ticulares dessa contradição. Mas a primeira idéia dessas
nhecimentos, saber e filosofia não passam de vãos simu- proposições nasceu, ela mesma, de uma longa meditação
lacros erguidos pelo orgulho humano, e muito indignos sobre a experiência, e, para se ver a que ponto as con-
dos pomposos nomes que ele lhes dá? firma, basta abrir os anais do mundo.
À medida que o gosto dessas parvoíces se difunde ) Os primeiros homens foram muito ignorantes. Como
numa nação, esta perde o gosto das virtudes sólidas, pois se ousaria dizer que eram corrompidos nos tempos em
custa menos distinguir-se pela tagarelice do que pelos que as fontes da corrupção ainda não estavam abertas?

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_____________________ Ro~eau ______________________ Discurso sobre as ciências e as artes-----------.

Através da obscuridade dos antigos tempos e da rus- prezá-la. É quando uma nação atingiu por fim este ponto
ticidade dos antigos povos, percebem-se em vários deles que se pode dizer que a corrupção está no auge e já não
imensas virtudes, sobretudo uma severidade de costu- se devem esperar remédios.
mes que é um sinal infalível de sua pureza, a boa-fé, a Tal é o sumário das coisas que afirmei e cujas pro-
hospitalidade, a justiça e, o que é muito importante, um vas creio ter apresentado. Vejamos agora o da doutrina
grande horror pela devassidão 32 , mãe fecunda de todos que me opõem.
os outros vícios. Logo, a virtude não é incompatível com "Os homens são naturalmente maus; assim o foram
a ignorância. antes da formação das sociedades e, em todos os lugares
Tampouco é sempre sua companheira, pois vários aos quais as ciências não levaram sua chama, os povos,
povos muito ignorantes eram muito depravados. A igno- abandonados apenas às faculdades do instinto, reduzi-
rância não é um obstáculo nem para o bem nem para o dos, com os leões e os ursos, a uma vida puramente ani-
mal, é somente o estado natural do homem33 • mal, ficaram mergulhados na barbárie e na miséria.
Não se poderá dizer o mesmo da ciência. Todos os Apenas a Grécia, nos tempos antigos, pensou e ele-
povos sábios foram corrompidos, o que já é um terrível vou-se pelo espírito a tudo quanto pode tornar um povo
juízo antecipado contra ela. Mas, como são difíceis as recomendável. Filósofos formaram seus costumes e de-
comparações de um povo com outro povo, como nelas ram-lhe leis.
é preciso incluir um número muito grande de objetos, e Esparta, é verdade, foi pobre e ignorante por insti-
como sempre lhes falta exatidão em todos os aspectos, tuição e por escolha, mas suas leis tinham grandes defei-
fica-se muito mais seguro do que se faz seguindo a his- tos, seus cidadãos uma grande propensão para se deixar
tória de um mesmo povo e comparando os progressos corromper; sua glória foi pouco sólida, e logo ela perdeu
de seus conhecimentos com as revoluções de seus cos- suas instituições, suas leis e seus costumes.
tumes. Ora, o resultado desse exame é que a grande épo- Atenas e Roma também degeneraram. Uma cedeu à
ca, a época da virtude de cada povo, foi a de sua igno- fortuna da Macedônia, a outra sucumbiu à sua própria
rância e que, à medida que se foi tornando sábio, artista grandeza, porque as leis de uma pequena cidade não
e filósofo, perdeu seus costumes e sua probidade; tornou eram ~propriadas para governar o mundo. Se algumas
a descer, a esse respeito, à categoria das nações ignoran- vezes a glória dos grandes impérios não perdurou tanto
tes e corruptas que são a vergonha da humanidade. Se tempo junto com a das letras, tal aconteceu por ela estar
quiserem teimar em procurar diferenças, posso reconhe- no auge quando as letras neles foram cultivadas e por
cer uma: é que todos os povos bárbaros, mesmo aqueles ser o forte das coisas humanas não perdurar muito tem-
que não têm virtude, sempre reverenciam entretanto a po no mesmo estado. Admitindo-se, pois, que a alteração
virtude, ao passo que, à força de progredirem, os povos das leis e dos costumes tenha influído sobre esses gran-
sábios e filósofos chegam enfim a ridicularizá-la e a des- ) des acontecimentos, não se será forçado a convir que as

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~~------~--Rousseau ___________ - ~---Discurso sobre as ciências e as artes-~----

ciências e as artes tenham contribuído para isso; e pode- com uma declaração adequada para prevenir muito pa-
se observar, pelo contrário, que o progresso e a deca- lavreado, afirmo de uma vez por todas que, se algo pode
dência das letras são sempre proporcionais à fortuna e compensar a ruína dos costumes, estou pronto para con-
ao declínio dos impérios. vir que as ciências trazem mais bem do que mal. Volte-
Essa verdade é confirmada pela experiência dos últi- mos agora ao restante.
mos tempos, nos quais se vêem, numa monarquia vasta Eu poderia sem muito risco supor tudo isso prova-
e poderosa, a prosperidade do Estado, a cultura das ciên- do, uma vez que, de tantas asserções tão afoitamente
cias e das artes e a virtude guerreira concorrerem con- aventadas, há muito poucas que atinjam o âmago da
juntamente para a glória e a grandeza do império. questão, menos ainda outras das quais se possa tirar al-
Nossos costumes são os melhores que se possam ter; guma conclusão válida contra a minha opinião, e que a
vários vícios foram proscritos de nosso meio; aqueles maioria delas, se minha causa disso necessitasse, até for-
que nos restam pertencem à humanidade, e as ciências neceriam novos argumentos em meu favor.
para nada disso contribuem. De fato: 1. Se os homens são maus por natureza, po-
Também o luxo nada tem em comum com elas; as- de acontecer, caso se queira, que as ciências produzam
sim, as desordens que ele pode causar não lhes devem algum bem em suas mãos; mas é muito certo que causa-
ser atribuídas. Aliás, o luxo é necessário nos grandes Es- rão muito mais mal, pois não se devem dar armas a
tados, aos quais traz mais bem do que mal; é útil para furiosos.
ocupar os cidadãos ociosos e para dar pão aos pobres. 2. Se as ciências raramente atingem seu objetivo,
A polidez deve ser incluída antes no número das vir- sempre haverá mais tempo perdido do que tempo bem
tudes do que no número dos vícios, pois impede os ho- empregado. E, ainda que fosse verdade que tivéssemos
mens de mostrarem-se tais como são; precaução muito encontrado os melhores métodos, a maioria dos nossos
necessária para torná-los suportáveis uns aos outros. trabalhos ainda seriam tão ridículos como os de um
As ciências raramente atingiram o objetivo que se homem que, muito certo de seguir exatamente o fio de
propõem, mas pelo menos visam a ele. Avança-se com prumo, quisesse levar um poço até o centro da terra.
passos lentos no conhecimento da verdade, o que não 3. Não devemos ter tanto medo da vida puramente
impede que se faça algum progresso nessa direção. animal, nem a considerar como o pior estado em que
Enfim, mesmo que fosse verdade que as ciências e pudéssemos cair, pois ainda seria melhor parecer com
as artes enfraquecem a coragem, ainda não seriam pre- uma ovelha do que com um anjo mau.
feríveis os bens infinitos que nos proporcionam a essa 4. A Grécia deveu seus costumes e suas leis a filóso-
virtude bárbara e selvagem que faz estremecer a huma- fos e legisladores. Concordo. Já disse cem vezes que é
nidade?" Deixo de lado o inútil e pomposo exame des- bom haver filósofos, contanto que o povo não se meta a
ses bens e, para começar, a respeito desse último ponto, sê-lo.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ ------Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ __

5. Não ousando afirmar que Esparta não tinha boas rém, para falar com franqueza, não as acho suficiente-
leis, condenam as leis de Esparta por ter tido grandes de- mente provadas para ter a coragem de prevalecer-me
feitos, de sorte que, para retorquir às censuras que faço delas.
aos povos sábios de sempre terem sido corrompidos, Afirmam que os primeiros homens foram maus, daí
censuram aos povos ignorantes não terem atingido a se segue que o homem é naturalmente mau 35 • Esta não é
perfeição. uma asserção de pouca importância; parece-me que me-
6. O progresso das letras é sempre proporcional à recia ter sido provada. Os anais de todos os povos que
grandeza dos impérios. Seja. Vejo que sempre me falam ousam citar-me como prova são muito mais favoráveis à
de fortuna e de grandeza. Quanto a mim, falava de cos- suposição contrária e seriam necessários muitos testemu-
tumes e de virtude. nhos para obrigar-me a crer num absurdo. Antes que as
7. Nossos costumes são os melhores que homens horríveis palavras teu e meu fossem inventadas, antes
maus, como nós, podem ter. Pode ser. Proscrevemos vá- que houvesse essa espécie de homens cruéis e brutais
rios vícios, não discordo. Não acuso os homens deste sé-
chamados senhores e essa outra espécie de homens ve-
culo de terem todos os vícios; eles só têm aqueles das
lhacos e mentirosos chamados escravos, antes que hou-
almas covardes, são apenas velhacos e tratantes. Quanto
vesse homens bastante abomináveis para ousar ter o su-
aos vícios que pressupõem coragem e firmeza, conside-
pérfluo enquanto outros homens morrem de fome, antes
ro-os incapazes deles.
que uma dependência mútua os houvesse forçado a to-
8. O luxo pode ser necessário para dar pão aos po-
bres, mas, se não houvesse luxo, não haveria pobres34 • dos tornarem-se hipócritas, invejosos e traidores, eu gos-
Ele ocupa os cidadãos ociosos. E por que há cidadãos taria muito que me explicassem em que podiam consistir
ociosos? Quando a agricultura era admirada, não havia esses vícios, esses crimes que lhes condenam com tanta
miséria nem ociosidade e havia muito menos vícios. ênfase. Asseguram-me que há muito tempo se desiludi-
9. Vejo que se empenham muito pela causa do luxo, ram da quimera da idade de ouro. Por que não acrescen-
a qual fingem, porém, querer separar da causa das ciên- tam também que há muito tempo se desiludiram da qui-
cias e das artes. Concordarei, portanto, já que o querem mera da virtude?
tanto, que o luxo serve para a sustentação dos Estados, Eu disse que os primeiros gregos foram virtuosos an-
como as cariátides servem para sustentar os palácios que tes que a ciência os houvesse corrompido e não quero
decoram; ou melhor, como as vigas com as quais se es- retratar-me acerca desse ponto, conquanto, examinan-
coram construções deterioradas e que amiúde acabam do-os mais de perto, não deixo de desconfiar da solidez
por derrubá-las. Homens sábios e prudentes, saí de qual- das virtudes de um povo tão tagarela, nem da justiça dos
quer casa que esteja escorada. elogios que tanto gostava de se prodigalizar e que não
Isso pode mostrar quão fácil me seria virar em meu vejo confirmados por nenhum outro depoimento. O que
favor a maioria das coisas que pretendem opor-me. Po- me opõem a isso? Que os primeiros gregos, cuja virtude
\
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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ ----~ -----Discurso sobre as ciências e as artes-"~ ____

louvei, eram esclarecidos e sábios, porquanto foram filó- leis e aos costumes. Peço perdão aos meus adversários,
sofos que lhes formaram os costumes e lhes deram leis. mas não há meio de admitir esses seus sofismas.
Mas, com essa maneira de raciocinar, quem me impedi- Examinemos ainda um momento essa preferência
rá de dizer o mesmo de todas as outras nações? Os per- que se pretende dar à Grécia sobre todos os outros po-
sas não tiveram seus magos, os assírios seus caldeus, os vos e da qual parece que se fez um ponto capital. Ad-
hindus seus ginosofistas, os celtas seus druidas? Oco* não mirarei, se quiserem, povos que passam a vida na guerra
brilhou entre os fenícios, Atlas entre os líbios, Zoroastro ou nos bosques, que dormem deitados na terra e vivem
entre os persas, Zámolxis** entre os trácios? E muitos até de legumes. Tal admiração é, de fato, muito digna de um
não pretenderam que a filosofia havia nascido entre os verdadeiro filósofo; só a um povo cego e estúpido cabe
bárbaros? Será que todos esses povos seriam sábios por admirar pessoas que passam a vida, não defendendo sua
esse motivo? Ao lado dos Milcíades e dos Temístocles, liberdade, mas roubando-se e traindo-se mutuamente
encontravam-se, dizem-me, os Aristides e os Sócrates. Ao para satisfazer sua indolência ou sua ambição e que ou-
lado, se preferirem, pois o que importa? Entretanto, Mil- sam alimentar sua ociosidade com o suor, o sangue e os
cíades, Aristides, Temístocles, que eram heróis, viveram trabalhos de um milhão de infelizes. Mas será entre esses
numa época, Sócrates e Platão, que eram filósofos, vive- homens grosseiros que se irá procurar a felicidade? Com
ram noutra; e quando se começaram a abrir escolas pú- muito mais razão seria ela procurada entre eles do que a
blicas de filosofia a Grécia, aviltada e degenerada, já ha- virtude entre os outros. Que espetáculo nos apresentaria
via renunciado à sua virtude e vendido a sua liberdade. o gênero humano, composto unicamente de lavradores,
A soberba Ásia viu suas forças inumeráveis quebran- de soldados, de caçadores e de pastores? Um espetáculo
tadas por um punhado de homens que a filosofia condu- infinitamente mais bonito do que o do gênero humano
zia à glória. É verdade, a filosofia da alma conduz à ver- composto de cozinheiros, de poetas, de impressores, de
dadeira glória, mas ela não se aprende nos livros. Tal é o ourives, de pintores e de músicos. Do primeiro quadro
efeito infalível dos conhecimentos do espírito. Peço ao lei- só se deve excluir a palavra soldado. A guerra por vezes
tor ficar atento a esta conclusão. Os costumes e as leis são é um dever, não sendo feita para ser um ofício. Todo
a única fonte do verdadeiro heroísmo. As ciências não homem deve ser soldado para a defesa de sua liberdade,
têm, portanto, o que fazer aí. Em suma, a Grécia deveu nenhum deve sê-lo para invadir a liberdade alheia, e
tudo às ciências, e o resto do mundo deveu tudo à Gré- morrer servindo à pátria é um encargo belo demais para
cia. Assim, nem a Grécia nem o mundo deveram nada às ser confiado a mercenários. Será preciso então, para ser
digno do nome de homem, viver como os leões e os ursos?
Se acaso tenho a felicidade de encontrar um único leitor
• Cognome de Artaxerxes III e Dario Il, reis da Pérsia. (N. da T.)
•• Legislador mítico das tribos géticas da Trácia às quais, segundo Heró- imparcial e amigo da verdade, peço-lhe que lance um
doto, eie teria ensinado o dogma da imortalidade da alma. (N. da T.) olhar à sociedade atual, e observe quem são os que con-

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Discurso sobre as ciências e as a r t e s - - - - - -

vivem como os leões e os ursos, como os tigres e os cro- riam eles para que essa fatal Esparta nunca houvesse
codilos. Erigir-se-á em virtude as faculdades do instinto existido! E eles, que pretendem que as grandes ações
para alimentar-se, perpetuar-se e defender-se? São virtu- servem apenas para ser celebradas, a que preço não gos-
des disso não tenhamos dúvidas, quando guiadas pela tariam que as dela nunca o tivessem sido! É algo terrível
raz~o e sabiamente dirigidas; e são, sobretudo, virtudes que, no meio da famosa Grécia que não devia, dizem,
quando empregadas na assistência aos nossos semelhan- sua virtude senão à filosofia, o Estado onde a virtude foi
tes. Não vejo nisso senão virtudes animais, pouco confor- mais pura e perdurou mais tempo tenha sido precisa-
mes à dignidade do nosso ser. O corpo é exercitado, mas mente aquele onde não havia filósofos. Os costumes de
a alma escrava apenas rasteja e fenece. Diria de bom Esparta sempre foram propostos como exemplo a toda a
grado, ao percorrer as pomposas investigações de todas Grécia; a Grécia inteira estava corrompida, e ainda havia
as nossas academias: "Não vejo aí senão engenhosas virtude em Esparta; a Grécia inteira era escrava, somen-
sutilezas, pouco conformes à dignidade do nosso ser. O te Esparta ainda era livre; é desolador. Mas, por fim, a
espírito é exercitado, mas a alma escrava só rasteja e altiva Esparta perdeu seus costumes e sua liberdade,
fenece." Retirai as artes do mundo, dizem-nos noutro como os havia perdido a sábia Atenas; Esparta acabou.
trecho, o que restará? Os exercícios do corpo e as paixões. O que posso responder a isso?
Vede, peço-vos, como a razão e a virtude sempre são Ainda duas observações sobre Esparta e passo para
esquecidas! As artes deram origem aos prazeres da al- outro assunto. Eis a primeira: Depois de ter estado várias
ma, os únicos que são dignos de nós. Quer dizer que vezes a ponto de vencer, Atenas foi vencida, é verdade e é
puseram outros no lugar daquele de bem proceder, surpreendente que não o tenha sido mais cedo, pois a
muito mais digno ainda de nós. Acompanhando-se o Ática era um país totalmente aberto e só podia defender-
espírito de tudo isso, ver-se-á, como nos raciocínios da se pela superioridade ocasional. Atenas deveria ter ven-
maioria dos meus adversários, um entusiasmo tão acen- cido por todas as espécies de razão. Era maior e muito
tuado pelas maravilhas do entendimento que aquela mais povoada do que a Lacedemônia; tinha grandes ren-
outra faculdade, infinitamente mais sublime e mais capaz das e vários povos eram seus tributários. Esparta nada
de elevar e enobrecer a alma, nunca é levada em conta. tinha· de tudo isso. Atenas, sobretudo por sua posição, ti-
Eis 0 efeito sempre certo da cultura das letras. Tenho nha uma vantagem, de que Esparta carecia, que a deixa-
certeza de que atualmente não há um sábio que não esti- va em condições de devastar várias vezes o Peloponeso
me muito mais a eloqüência de Cícero do que seu zelo e que sozinha lhe deveria assegurar o império da Grécia.
e que não preferisse ter composto as Catilinárias a ter Era um porto vasto e cômodo, era uma marinha formidá-
salvado seu país. vel que ela devia à previdência do rústico Temístocles,
Fica visível o embaraço de meus adversários todas que não sabia tocar flauta. Logo, poder-se-ia ficar surpre-
as vezes que é preciso falar de Esparta. O que não da- so de que Atenas, com tantas vantagens, tenha afinal

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sucumbido. Mas, se bem que a guerra do Peloponeso, lembrança confusa de sua existência; o mundo teria
que arruinou a Grécia, não tenha trazido honra a nenhu- envelhecido e os homens teriam permanecido numa in-
ma das duas repúblicas, e tenha sido, sobretudo por par- fância eterna.
te dos lacedemônios, uma infração das máximas de seu Suponhamos, por nossa vez, que um lacedemônio,
sábio legislador, não é de espantar que com o tempo a impregnado da força dessas razões, quisesse expô-las aos
verdadeira coragem tenha prevalecido sobre os recursos, seus compatriotas; e tentemos imaginar o discurso que
nem sequer que a reputação de Esparta lhe tenha dado poderia fazer na praça pública de Esparta.
vários que lhe facilitaram a vitória. Na verdade, envergo- "Cidadãos, abri os olhos e saí de vossa cegueira. Vejo
nho-me de saber essas coisas e de ser forçado a dizê-las. com dor que só trabalhais para adquirir virtude, para
A outra observação não será menos importante. Eis exercitar vossa coragem e manter vossa liberdade e, en-
o texto, que creio dever apresentar ao leitor. tretanto, esqueceis o dever mais importante de divertir
Supondo-se que todos os Estados que compunham a os ociosos das raças futuras. Dizei-me: para que serve a
Grécia houvessem seguido as mesmas leis de Esparta, o virtude, senão para dar o que falar no mundo? O que vos
que nos restaria dessa terra tão célebre? Apenas seu nome terá valido serdes pessoas de bem, quando ninguém
teria chegado até nós. Ela teria desdenhado formar histo- falará de vós? O que importará aos séculos vindouros que
riadores para transmitir sua glória à posteridade; o espe- vos tenhais devotado à morte nas Termópilas* para a sal-
táculo de suas exacerbadas virtudes estaria perdido para vação dos atenienses, se não deixais, como eles, nem
nós; por conseguinte, ser-nos-ia indiferente que houves- sistemas de filosofia, nem versos, nem comédias, nem
sem existido ou não. Os numerosos sistemas de filosofia estátuas36? Apressai-vos, pois, em abandonar leis que só
que esgotaram todas as combinações possíveis de nossas servem para vos tornar felizes; pensai apenas em fazer
idéias e que, se nào ampliaram muito os limites de nosso falar muito de vós quando não mais existirdes; e jamais
espírito, pelo menos nos ensinaram onde eles estavam fi- esqueçais que, se não se celebrassem os grandes ho-
xados; essas obras-primas de eloqüência e de poesia que mens, inútil seria sê-lo."
nos ensinaram todos os caminhos do coração; as artes Aí está, penso eu, aproximadamente o que poderia
úteis ou agradáveis que conservam ou embelezam a vi- ter dito esse homem, se os éforos o houvessem deixado
da; enfim, a inestimável tradição dos pensamentos e das terminar.
ações de todos os grandes homens, que fizeram a glória Não é somente nesse trecho que nos advertem que
ou a felicidade de seus semelhantes: todas essas preciosas a virtude só serve para fazer falar de si mesmo. Noutra
riquezas do espírito estariam perdidas para sempre. Os
séculos se teriam acumulado, as gerações dos homens se • Alusão à batalha das Termópilas, desfiladeiro da Tessália, quando o rei
teriam sucedido como as dos animais, sem fruto algum Leônidas (século V a.C.), com mais trezentos espartanos, morreu heroicamen-
para a posteridade, e só teriam deixado atrás de si uma te para tentar impedir a invasão dos persas. (N. da T.)

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passagem elogiam-nos ainda os pensamentos do filóso- grandes Estados voltarem às pequenas virtudes das pe-
fo, por serem eles imortais e consagrados à admiração quenas repúblicas. Esta é uma frase que não deve ser
de todos os séculos; enquanto os outros vêem desapare- nova nas cortes. Teria sido muito digna de Tibério ou de
cer suas idéias junto com o dia, com a circunstância e o Catarina de Médicis, e não duvido que ambos tenham
momento que as viu nascer. Para três quartos dos ho- amiúde empregado semelhantes.
mens, o dia seguinte apaga a véspera, sem que dela fique Seria difícil imaginar a necessidade de medir a moral
o menor vestígio. Ah! fica-lhe ao menos um vestígio no com um instrumento de agrimensor. No entanto, não se
testemunho de uma boa consciência, nos infelizes que poderia dizer que a extensão dos Estados seja totalmen-
se consolaram, nas boas ações que se praticaram, e na te indiferente aos costumes dos cidadãos. Há, sem dúvi-
memória desse Deus benfazejo que se terá servido em da, certa proporção entre essas coisas, mas não sei se
silêncio. Morto ou vivo, dizia o bom Sócrates, o homem essa proporção não seria inversa39 • Eis uma questão im-
de bem nunca é esquecido pelos deuses. Responder-me- portante para ser meditada; e creio que pode ser olhada
ão, talvez, que não foi dessas espécies de pensamento como ainda indecisa, apesar do tom mais desdenhoso
que quiseram falar, e digo eu que não vale a pena falar do que filosófico com que aqui é resolvida em poucas
palavras.
de todas as outras.
É fácil perceber que, fazendo tão pouco caso de Era esta, continuam, a loucura de Catão: com o hu-
Esparta, não mostram muito maior estima pelos antigos mor e os preconceitos hereditários em sua família, dis-
romanos. Admite-se acreditar que eram grandes homens, cursou a vida inteira, combateu e morreu sem nada de
útil ter feito para a sua pátria. Não sei se nada fez para
conquanto fizessem apenas pequenas coisas. Assim sen-
a sua pátria, mas sei que muito fez para o gênero huma-
do, confesso que há muito tempo já não se fazem senão
no, oferecendo-lhe o espetáculo e o modelo da virtude
grandes coisas. Censuram sua temperança e sua cora-
mais pura que jamais existiu. Ensinou aos que amam sin-
gem de não terem sido verdadeiras virtudes, mas sim
ceramente a verdadeira honra a saber resistir aos vícios
qualidades forçadas 37 • Contudo, algumas páginas depois,
de seu século e a detestar a horrível máxima das pessoas
confessam que Fabrício desprezava o ouro de Pirro, e é
da moda de que é preciso proceder como os outros; máxi-
impossível ignorar que a história romana está repleta de ma com a qual decerto iriam longe, se tivessem a infeli-
exemplos da facilidade de enriquecer que tinham esses cidade de cair em algum bando de salteadores. Nossos
magistrados, esses guerreiros veneráveis que faziam tan- descendentes ficarão sabendo um dia que, neste século
to caso de sua pobreza38 • Quanto à coragem, não se sabe de sábios e de filósofos, o mais virtuoso dos homens foi
que a covardia não poderia ser razoável? E que um pol- ridicularizado e tratado de louco por não ter querido ma-
trão não deixa de fugir, embora certo de ser morto ao fu- cular sua alma com crimes de seus contemporâneos, por
gir? Querer obrigar um homem forte e robusto a balbu- não ter querido ser um celerado como César e os outros
ciar num berço é, dizem, o mesmo que querer fazer os bandidos de sua época.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ Discurso sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ _ _

Acabamos de ver como os nossos filósofos falam de teria salvado todos os outros cúmplices, e a república
Catão. Vamos ver como falavam dele os antigos filósofos. estaria perdida. O que importa? dir-me-ão. Uma vez que
Ecce spectaculum dígnum ad quod respícíat, íntentus isso é tão indiferente, suponhamos então que ela hou-
operí suo, Deus. Ecce par Deo dígnum, vir fortís cum vesse subsistido e que, tendo Bruto condenado à morte
mala fortuna composítus. Non vídeo, ínquam, quid ha- algum malfeitor, o culpado lhe falasse assim: "Cônsul,
beat in terrís jupiter pulchríus, si convertere animum por que me fazes morrer? Fiz algo pior do que trair mi-
velit, quam ut spectet Catonem, jam partibus non semel nha pátria? E não sou também teu filho?" Gostaria muito
Jractís, nihilominus inter ruínas publicas erectum. [Sê- que tivessem a bondade de dizer-me o que Bruto teria
neca, Da Providência.] respondido.
Eis o que nos dizem, noutra passagem, dos primei- Bruto, dir-me-ão ainda, devia antes abdicar do con-
ros romanos. Admiro os Brutos, os Décios, as Lucrécias, os sulado do que fazer os filhos perecerem. Quanto a mim,
Virgínios e os Cévolas. Já é alguma coisa, no século em digo que todo magistrado que, numa circunstância tão
que estamos. Mas admirarei ainda mais um Estado po- periclitante, abandona o cuidado da pátria e abdica da
deroso e bem governado. Um Estado poderoso e bem magistratura, é um traidor que merece a morte.
governado! Eu também, realmente. Em que os cidadãos Não há meio-termo; impunha-se que Bruto fosse um
não estarão condenados a virtudes tão cruéis. Entendo; é infame ou que as cabeças de Tito e de Tiberiano tombas-
mais cômodo viver numa constituição de coisas em que sem por sua ordem sob o machado dos lictores. Nem
cada qual esteja dispensado de ser homem de bem. por isso digo que muita gente teria feito a mesma esco-
Porém, se os cidadãos desse Estado que se admira se vis- lha que ele.
sem obrigados por qualquer infelicidade a renunciar à Embora não se decidam abertamente pelos últimos
virtude, ou a praticar essas virtudes cruéis, e tivessem a tempos de Roma, dão a entender claramente que os pre-
força de cumprir seu dever, seria esta uma razão para ad- ferem aos primeiros e têm tanta dificuldade para distin-
mirá-los menos? guir os grandes homens através da simplicidade destes
Tomemos o exemplo que mais revolta o nosso sécu- quanto eu mesmo o tenho para distinguir pessoas de
lo e examinemos a conduta de Bruto*, magistrado sobe- berri através da pompa dos outros. Opôem Tito a Fabrí-
ra~o, ao mandar matar seus filhos que haviam conspira- cio, mas omitem a diferença de que no tempo de Pirro
do contra o Estado num momento crítico, em que não todos os romanos eram Fabrícios, ao passo que, sob o
faltava quase nada para derrubá-lo. É certo que, se lhes reinado de Tito, ele era o único homem de bem40 • Esque-
houvesse concedido o perdão, seu colega infalivelmente cerei, se quiserem, os atos heróicos dos primeiros roma-
nos e os crimes do últimos, mas o que não poderia es-
• Segundo a tradição, Lúcio Júnio Bruto, um dos primeiros cônsules ro- quecer é que a virtude era reverenciada por uns e des-
manos, executou os próprios filhos por traição. (N. da T.) prezada ~s outros, e que, quando havia coroas para

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os vencedores do circo, já não as havia para aquele que os olhos ao imenso continente da A/rica, no qual ne-
salvava a vida de um cidadão. Não se julgue, todavia, nhum mortal é bastante ousado para penetrar, ou bas-
que essa atitude seja peculiar a Roma. Houve um tempo tante feliz para tê-lo tentado impunemente. Assim, por
em que a república de Atenas era rica o suficiente para não termos podido penetrar no continente da África, por
gastar somas imensas com seus espetáculos e para pagar ignorarmos o que lá se passa, fazem-nos concluir que
muitíssimo bem os autores, os comediantes e até os es- seus povos são cheios de vícios; se houvéssemos encon-
pectadores; foi nesse mesmo tempo que não se encon- trado o meio de levar os nossos para lá é que devería-
trou dinheiro para defender o Estado contra os ataques mos tirar tal conclusão. Se eu fosse chefe de algum dos
povos da Nigrícia, declaro que mandaria levantar na
de Filipe.
Chegam afinal aos povos modernos e não tenciono fronteira do país um patíbulo onde mandaria enforcar
seguir os raciocínios que julgam cabível fazer a esse res- sem perdão o primeiro europeu que se atrevesse a pene-
peito. Observarei somente que é pouco honrosa a vanta- trar nele e o primeiro cidadão que dele tentasse sair42 • A
gem que se obtém não refutando as razões do adversá- América não nos oferece espetáculos menos vergonhosos
rio, mas impedindo-o de expressá-las. para a espécie humana. Sobretudo depois que os euro-
Também não seguirei todas as reflexões que se dão peus lá estão. Encontraremos cem povos bárbaros ou sel-
ao trabalho de fazer sobre o luxo, sobre a polidez, sobre vagens para um único virtuoso. Está certo; encontrare-
a admirável educação de nossas crianças41 , sobre os me- mos pelo menos um, mas povo virtuoso e cultor das
lhores métodos para ampliar nossos conhecimentos, so- ciências nunca se viu. A terra deixada inculta não é ocio-
bre a utilidade das ciências e o deleite das belas-artes e sa; produz peixes, alimenta monstros. Eis o que ela co-
sobre outros pontos, dos quais vários não me dizem res- meça a fazer nos lugares em que o gosto das artes frívo-
peito, alguns se refutam por si sós e outros já foram refu- las fez abandonar o gosto da agricultura. Nossa alma,
tados. Contentar-me-ei em citar ainda alguns trechos to- pode-se dizer também, não fica ociosa quando a virtude
mados ao acaso e que me pareceram necessitar de escla- a abandona. Produz ficções, romances, sátiras e versos;
recimento. Tenho de limitar-me a frases, na impossibilida- alimenta vícios.
de de seguir raciocínios cujo fio não consegui apreender. 'Se alguns bárbaros fizeram conquistas, é porque eram
Pretendem que as nações ignorantes que tiveram muito injustos. O que éramos nós então, ora essa, quan-
idéias da glória e da virtude são exceções singulares que do fizemos essa conquista da América que tanto se admi-
não podem produzir nenhum preconceito contra as ciên- ra? Mas quantos meios para que pessoas que têm ca-
cias. Muito bem; mas todas as nações sábias, com suas nhões, cartas marítimas e bússolas, possam cometer in-
belas idéias de glória e de virtude, sempre perderam o justiças! Dir-me-ão que o acontecimento indica o valor
amor por elas e a prática delas. Isso não tem exceções; dos conquistadores? Indica somente sua astúcia e habili-
passemos à prova. Para nos convencer disso, lancemos d(de; indica que um homem esperto e sutil pode dever

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._ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ __ _ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes---···· - - - -

à sua engenhosidade os sucessos que um homem de A morte ruge sobre nossas cabeças, está oculta na relva
bem só espera de seu valor. Falemos sem parcialidade. que pisamos. Quando se teme tudo e se tem necessidade
Quem julgaríamos mais corajoso, o odioso Cortés subju- de tudo, que disposição mais sensata do que a de querer
gando o México à força de pólvora, de perfídia e de trai- tudo conhecer? Basta considerar as contínuas inquieta-
ções, ou o desafortunado Guatimozín, deitado sobre car- ções dos médicos e dos anatomistas com a vida e a saú-
vões ardentes por honestos europeus que queriam seus de deles, para saber se os conhecimentos servem para
tesouros, repreendendo um de seus oficiais de quem o nos tranqüilizar acerca de nossos perigos. Como eles nos
mesmo tratamento arrancava algumas queixas, e dizen- revelam muito mais perigos do que meios para nos res-
do-lhe altivamente: "E eu, estou sobre rosas?" guardar deles, não é de admirar que apenas aumentem
Dizer que as ciências nasceram da ociosidade é abu- nossos alarmas e nos tornem pusilânimes. Nesse ponto,
sar visivelmente dos termos; elas nascem do lazer, mas os animais vivem numa profunda segurança e não se
resguardam da ociosidade. Assim, um homem que, à bei- sentem pior por isso. Uma novilha não precisa estudar
ra de uma estrada, se divertisse em atirar nos passantes
botânica para aprender a selecionar seu feno, e o lobo
poderia dizer que emprega seu lazer resguardando-se da
devora a presa sem pensar em indigestão. Para respon-
ociosidade? Não entendo essa distinção entre ociosidade
der a isso, ousarão tomar o partido do instinto contra a
e lazer. Mas sei com toda a certeza que nenhum homem
razão? É precisamente isso que pergunto.
de bem jamais pode vangloriar-se de ter lazer enquanto
Parece, dizem-nos, que temos muitos lavradores e que
houver algum bem para praticar, uma pátria para servir,
infelizes para confortar; e desafio que me mostrem em tememos carecer de filósofos. Perguntarei, por minha
meus princípios algum sentido honesto que possa ser vez, se temem que as profissões lucrativas careçam de
aplicado à palavra lazer. O cidadão preso ao arado por indivíduos para exercê-las. Pensar assim é conhecer mal
suas necessidades não está mais ocupado do que o geô- o império da cupidez. Tudo, desde a nossa infância, nos
metra ou o anatomista. Tampouco do que a criança que impele a condições úteis. E que preconceitos não se há de
constrói um castelo de cartas, porém mais utilmente. A vencer, que coragem não se há de ter, para ousar não ser
pretexto de ser o pão necessário, cumprirá que todos se mais que um Descartes, um Newton, um Locke?
ponham a lavrar a terra? Por que não? Que comecem Leibniz e Newton morreram bafejados de bens e de
até, se preciso for. Prefiro ver os homens pastarem a rel- honras e mereceriam muitos mais ainda. Diremos que é
va a se entredevorarem nas cidades. É verdade que, tais por moderação que não se elevaram até o arado? Co-
como os quero, se pareceriam muito com os animais e, nheço bastante o império da cupidez para saber que tudo
tais como são, se parecem muito com os homens. nos leva às profissões lucrativas, sendo por isso que digo
O estado de ignorância é um estado de temor e de que tudo nos afasta das profissões úteis. Um Hebert, um
necessidade. Tudo é então perigo para nossa fragilidade. Lafrenaye, um Dulac, um Martin ganham mais dinheiro

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~~~~~~~~~-Rousseau~~~~~~~~~- ~~~~~- Discurso sobre as ciências e as artes

num dia do que todos os lavradores de uma província ções. A primeira: quem quer educar uma criança não co-
poderiam ganhar em um mês. Poderia propor um pro- meça por lhe dizer que se deve praticar a virtude, pois
blema bastante singular sobre a passagem de que agora não seria ouvido; mas ensina-a primeiramente a ser ver-
me ocupo. Seria o caso, eliminando-se as duas primeiras dadeira, depois a ser moderada, depois corajosa, etc. e,
linhas e lendo-a isolada, de adivinhar se foi tirada de meus por fim, ensina-lhe que o conjunto de todas essas coisas
escritos ou dos de meus adversários. chama-se virtude. A segunda: somos nós que nos con-
Os bons livros são a única defesa dos espíritos fracos, tentamos em demonstrar a teoria, mas os persas ensina-
ou seja, de três quartos dos homens, contra o contágio do vam a prática. Vede meu Discurso [p. 246, nota 9].
exemplo. Em primeiro lugar, os sábios jamais escreverão Todas as críticas que se fazem à filosofia atacam o
tantos bons livros quantos maus exemplos dão. Em se- espírito humano. Concordo. Ou melhor, o autor da natu-
gundo, haverá sempre mais livros ruins do que bons. Em reza, que nos fez tais como somos. Se ele nos fez filóso-
terceiro lugar, os melhores guias que as pessoas hones- fos, para que tanto trabalho para tornarmo-nos tal? Os fi-
tas podem ter são a razão e a consciência: Paucis est lósofos eram homens, enganaram-se; devemos espantar-
opus litteris ad mentem banam. Quanto àqueles que têm nos com isso? Quando não se enganarem é que devemos
o espírito ambíguo ou a consciência empedernida, a lei- espantar-nos. Deploremo-los, aproveitemos seus erros e
tura nunca lhes pode servir para nada. Enfim, para qual- corrijamo-nos. Sim, corrijamo-nos, e não filosofemos
quer homem que seja, não há livros necessários além mais ... Mil caminhos conduzem ao erro, apenas um leva
dos da religião, os únicos que jamais condenei. à verdade! Era precisamente isso que eu dizia. É de sur-
Pretendem fazer-nos ter saudades da educação dos preender que se tenham enganado tão amiúde a respeito
persas. Notai que é Platão que pretende isso. Acreditei dela e que ela tenha sido descoberta tão tarde? Ah! então
salvaguardar-me com a autoridade desse filósofo, mas finalmente a encontramos!
vejo que nada pode proteger-me da animosidade de meus Opõem-nos um juízo de Sócrates que versa, não
adversários: Tros Rutulusve fuat. Eles preferem ferir-se sobre os sábios, mas sobre os sofistas, não sobre as ciên-
uns aos outros a dar-me a menor trégua, e prejudicam cias, mas sobre o abuso que se pode fazer dela. O que mais
mais a si mesmos do que a mim43 • Essa educação era, pode pedir aquele que sustenta que todas as nossas
dizem, fundamentada em princípios bárbaros; porque se ciências não passam de abusos e todos os nossos sábios
dava um professor para o exercício de cada virtude, em- de verdadeiros sofistas? Sócrates era chefe de uma seita
bora a virtude seja indivisível; porque se trata de inspirá- que ensinava a duvidar. Diminuiria bem minha venera-
la, e não de a ensinar, de fazer amar-lhe a prática, e não ção por Sócrates se eu acreditasse que teve a tola vaida-
de lhe demonstrar a teoria. Quantas coisas não teria eu de de querer ser chefe de seita. E ele censurava com jus-
para responder! Porém não se deve fazer ao leitor a injú- tiça o orgulho daqueles que pretendiam tudo saber. Ou
ria de tudo lhe dizer. Contentar-me-ei com duas observa- seja, o orgulho de todos os sábios. A verdadeira ciência

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ " "--- ________ Discurso sobre as ciências e as artes___ _ _ _

está bem distante dessa pretensão. É verdade. Mas é da se precisa nem um pouco dele. Tudo que ultrapassa a ne-
nossa que falo. Sócrates nesse ponto testemunha contra si cessidade física é fonte do mal. A natureza já nos dá
mesmo. Isso parece-me difícil de entender. O mais sábio necessidades demais, sendo, no mínimo, uma imensa im-
dos gregos não se ruborizava de sua ignorância. O mais prudência multiplicá-las sem precisão, colocando assim
sábio dos gregos nada sabia, como o confessa; tirai a a alma numa maior dependência. Não é sem razão que
conclusão acerca dos outros. As ciências não têm, por- Sócrates, olhando as mercadorias de uma loja, felicitava-
tanto, origem em nossos vícios. Portanto, nossas ciências se de não ter nada que fazer com tudo aquilo. Pode-se
têm origem em nossos vícios. Nem todas elas nasceram apostar cem contra um que o primeiro a usar tamancos
do orgulho humano. Já dei minha opinião a esse respei- era um homem merecedor de punição, a menos que
to. Declamação vã, que só pode iludir espíritos predispos- sentisse dor nos pés. Quanto a nós, somos mais do que
tos. Não sei responder a isso. obrigados a usar sapatos para não sermos dispensados
Ao falar dos limites do luxo, pretendem que não se de ter virtude.
deve raciocinar sobre esse assunto vindo do passado ao
Já disse em outra parte que não me propunha a sub-
presente. Quando os homens andavam completamente
verter a sociedade atual, a queimar bibliotecas e todos os
nus, aquele que primeiro atinou em calçar tamancos pas-
livros, a destruir os colégios e as academias; e devo acres-
sou por voluptuoso; de século a século, não se cessou de
centar aqui que tampouco me proponho a forçar os
bradar contra a corrupção, sem compreender o que se
homens a contentarem-se com o meramente necessário.
queria dizer.
Bem sei que não se deve conceber o quimérico projeto
É verdade que até esta época o luxo, embora fre-
qüentemente em voga, foi ao menos considerado em de transformá-los em pessoas de bem, mas julguei-me
todos os tempos como a funesta fonte de uma infinida- obrigado a dizer francamente a verdade que me pedi-
de de males. Estava reservado ao Sr. Melon* publicar pela ram. Vi o mal e tratei de encontrar as suas causas. Ou-
primeira vez essa doutrina envenenada, cuja novidade, tros, mais ousados ou mais insensatos, poderão procurar
mais do que a solidez de suas razões, lhe granjeou sec- o remédio.
tários. Não temo ser o único de meu século a combater Estou cansado e largo a pena para não mais a reto-
essas máximas odiosas que só tendem a destruir e aviltar mar nessa discussão demasiado longa. Soube que um
a virtude e a fazer ricos e miseráveis, isto é, sempre pes- número muito grande de autores 44 se aplicaram a refutar-
soas más. me. Estou muito aborrecido por não poder responder a
Crêem embaraçar-me muito perguntando-me até que todos, mas creio ter mostrado, por aqueles que escolhi45
ponto deve-se limitar o luxo. Minha opinião é que não para tanto, que não é o receio que me detém com rela-
ção aos outros.
• Jean-François Melon, economista francês, autor de Ensaio político sobre Empenhei-me em erguer um monumento que não
o comércio. (N. da T.) devesse à arte sua força e sua solidez; apenas a verdade,

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~~~~~~~~~~-Rousseau~~~~~~~~~~-

a quem o consagrei, tem o direito de torná-lo inabalável. Carta ao abade Raynal~


E se rebato mais uma vez os golpes que lhe desferem é
mais para honrar a mim mesmo ao defendê-la do que
para prestar-lhe um socorro de que ela não precisa. autor do Mercure de France
Que me seja permitido, ao terminar, protestar que
apenas o amor pela humanidade e pela virtude fez-me
romper o silêncio; e que o amargor de minhas invectivas
contra os vícios dos quais sou testemunha só nasce da
dor que eles me inspiram e do ardente desejo que tenho
de ver os homens mais felizes e, sobretudo, mais dignos
de sê-lo. Devo, senhor, agradecer àqueles que vos passaram
as observações que tivestes a bondade de me comunicar,
e que me empenharei em aproveitar. Confessar-vos-ei,
porém, que acho meus censores um tanto severos com
minha lógica e desconfio que se teriam mostrado menos
escrupulosos se eu tivesse a opinião deles. Parece-me,
pelo menos, que se eles mesmos tivessem um pouco
dessa rigorosa exatidão que exigem de mim eu não teria
nenhuma necessidade dos esclarecimentos que lhes vou
pedir.
O autor parece, dizem eles, preferir a situação em
que estava a Europa antes do renascimento das ciências;
estado pior do que a ignorância, dado o falso saber ou o
jargão que estava em voga. O autor dessa observação
parec~ fazer-me dizer que o falso saber, ou o jargão esco-
lástico, seja preferível à ciência, quando eu mesmo disse

• Esta resposta de Rousseau foi publicada no Mercure de France de


junho de 1751, juntamente com as Observações sobre o Discurso laureado em
Dijon, provavelmente uma síntese, escrita por Raynal, das críticas enviadas
por leitores. O abade Raynal (1713-1796), historiador e filósofo, era redator do
Mercure de France e já escrevera um resumo do Discurso no número de
novembro de 1750. (N. da T.)

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau __ _ _____ Discurso sobre as ciências e as artes _ __

que era pior do que a ignorância. Mas que entende ele das. Não terei, ainda aqui, motivo para me queixar? Es-
pela palavra situação? Aplica-a às luzes ou aos costumes, sas razões são as que me esforcei por_responder. Bem ou
ou confunde essas coisas que tanto cuidado tive para dis- mal, respondi. Ora, é quase impossível dar a um autor
tinguir? De mais a mais, como esse ponto é o âmago da um maior sinal de desprezo do que lhe replicando com
questão, confesso que é muita inabilidade minha limitar- os mesmos argumentos que ele refutou. Mas será preci-
me a parecer que tomava partido a esse respeito. so indicar-lhes a dificuldade que têm para resolver? Ei-la:
Acrescentam que o autor prefere a rusticidade à po- o que será da virtude quando for preciso enriquecer a
lidez. qualquerpreçd'6?Eis o que lhes perguntei e que lhes per-
É verdade que o autor prefere a rusticidade à orgu- gunto ainda.
lhosa e falsa polidez do nosso século, e disse a razão Quanto às duas seguintes observações, das quais a
disso. E que arrasa todos os sábios e artistas. Está certo, primeira começa com estas palavras: Enfim, eis o que se
já que querem assim, consinto em suprimir todas as dis- objeta, e a outra com estas: mas o que toca de mais perto;
tinções que havia colocado. suplico ao leitor poupar-me o trabalho de transcrevê-las.
Ele deveria, dizem ainda, ter assinalado o ponto de A academia havia me perguntado se o restabelecimento
que parte para designar a época da decadência. Fiz mais, das ciências e das artes havia contribuído para aprimorar
tornei minha proposição geral; situei esse primeiro grau os costumes. Tal era a questão que eu tinha de resolver;
da decadência dos costumes no primeiro momento da no entanto, eis que me acusam de não haver resolvido
cultura das letras em todos os países do mundo, e verifi- outra. Certamente essa crítica é no mínimo muito singu-
quei que o progresso desses dois fatos sempre é propor- lar. Entretanto, tenho quase de pedir perdão ao leitor por
cional. E, remontando a essa primeira época, comparar tê-la previsto, pois é o que poderia acreditar ao ler as
os costumes daquele tempo com os nossos. É o que teria cinco ou seis últimas páginas de meu discurso.
feito com mais vagar ao longo de um volume in-quarto. Ademais, se meus censores se obstinam em desejar
Sem isso não vemos a que época seria preciso remon- também conclusões práticas, prometo-lhes algumas cla-
tar, a menos que seja ao tempo dos apóstolos. Quanto a ramente enunciadas em minha primeira resposta.
mim, não vejo que inconveniente haveria nisso, se o fato Sobre a inutilidade das leis suntuárias para desenrai-
fosse verdadeiro. Mas peço justiça ao censor: gostaria ele zar o luxo já estabelecido, dizem que o autor não igno-
que eu dissesse que o tempo da mais profunda ignorân- ra o que há para dizer a esse respeito. Realmente, não.
cia era o dos apóstolos? Não ignoro que, quando um homem está morto, não é
Dizem também, acerca do luxo, que, em boa políti- preciso chamar médicos.
ca, sabe-se que ele deve ser proibido nos pequenos Esta- Não se deveria expor com demasiada clareza verda-
dos, mas que o caso de um reino como a França, por exem- des que contrariam tanto o gosto geral, e importa elimi-
plo, é totalmente diferente. As razões disso são conheci- nar qualquer ocasião da chicana. Não é bem essa a

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______________________ Rom~au ______________________

minha opinião e creio que se devem deixar alguns brin- Carta de]. -:f. Rousseau,
quedos para as crianças. de Genebra,
Há também muitos leitores que as apreciarão mais
num estilo bem simples do que com esse traje de cerimô-
nia que exigem os discursos acadêmicos. Tenho o mes- sobre uma nova refutação de seu Discurso
mo gosto desses leitores. Logo, este é um ponto em que por um acadêmico de Dijort
posso conformar-me à opinião de meus censores, como
faço desde já.
Ignoro quem é o adversário com que me ameaçam
no post scriptum. Seja ele quem for, eu não poderia re-
solver-me a responder a uma obra antes de tê-la lido, Acabo de ver, senhor, uma brochura intitulada Dis-
nem a me considerar vencido antes de ter sido atacado. curso que ganhou o prêmio da Academia de Dijon em
Quanto ao mais, quer eu responda às críticas que me 1750, acompanhado da refutação desse Discurso, escrita
são anunciadas, quer me contente em publicar a obra por um acadêmico de Dijon que lhe recusou seu voto, e
aumentada que me pedem, aviso meus censores que é pensava, percorrendo esse escrito, que, em vez de rebai-
bem possível que nela não encontrem as modificações xar-se a ser o editor de meu Discurso, o acadêmico que
que esperam. Prevejo que, quando se tratar de defender- lhe recusou seu voto bem que deveria ter publicado a
me, seguirei sem escrúpulos todas as conseqüências de obra à qual o havia concedido; seria uma ótima maneira
meus princípios.
de refutar o meu.
Sei de antemão com que grandiosas palavras me ata-
Eis, portanto, um de meus juízes que não desdenha
carão. Luzes, conhecimentos, leis, moral, razão, decoro,
tornar-se um de meus adversários, e acha muito ruim
consideração, doçura, amenidade, polidez, educação,
que seus colegas me tenham honrado com o prêmio.
etc. A tudo isso só responderei com duas outras palavras,
Confesso que eu mesmo fiquei muito espantado de rece-
que soam ainda mais forte em meus ouvidos. Virtude,
verdade! exclamarei sem cessar; verdade, virtude! Se bê-lo; esforcei-me por merecê-lo, mas nada fizera para
alguém não perceber aí senão palavras, nada mais tenho obtê-lo. Aliás, conquanto soubesse que as academias não
a lhe dizer. adotam as opiniões dos autores que laureiam e que o
prêmio é concedido não àquele que se acredita ter sus-
tentado a melhor causa, mas àquele que melhor se ex-

• Trata-se de Claude-Nicolas Le Cat (1700-1768), cirurgião célebre, fun-


dador e secretário perpétuo da Academia de Ciências de Rouen, que se fazia
passar, em sua refutação, por um acadêmico de Dijon. (N. da T.)

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__. _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes--
Rousseau _ __

Ouso dizer que, em fazendo muito pela minha gló-


pressou, mesmo supondo-me nesse caso, estava bem lon-
ria, a Academia de Dijon muito fez pela sua; um dia virá
ge de esperar de uma academia essa imparcialidade, que
em que os adversários de minha causa tirarão proveito
os sábios absolutamente não professam todas as vezes
desse julgamento para provar que a cultura das letras
em que se trata de seus interesses.
pode associar-se à eqüidade e ao desinteresse. Então os
Mas, se fiquei surpreso com a eqüidade de meus
partidários da verdade lhes responderão: eis um exem-
juízes, confesso que não o fico menos com a indiscri- plo peculiar que parece depor contra vós; mas lembrai-
ção de meus adversários. Como ousam eles manifestar vos do escândalo que esse julgamento causou na época
tão de público seu mau humor para com a honra que entre a multidão dos letrados e da maneira pela qual o
recebi? Como não percebem o prejuízo irreparável que deploraram, e tirai daí uma conseqüência exata de suas
com isso fazem à sua própria causa? Que não se iludam máximas.
que alguém se deixe enganar sobre o motivo de sua Não é, em minha opinião, pequena imprudência de-
mágoa; não é por meu Discurso ser mal feito que estão plorar que a Academia tenha proposto seu tema como
aborrecidos de vê-lo laureado, pois todos os dias lau- problema; deixo de lado a pouca probabilidade que ha-
reiam-se outros tão maus quanto ele, e eles não dizem via de que, no entusiasmo universal hoje reinante, al-
uma palavra; é por outra razão que atinge mais de per- guém tivesse a coragem de renunciar voluntariamente ao
to a profissão deles, e que não é difícil de perceber. prêmio, declarando-se pela negativa; mas não sei como
Bem sabia que as ciências corrompiam os costumes, alguns filósofos ousam achar ruim que se lhes ofereçam
tornavam os homens injustos e invejosos e faziam-nos vias de discussão: belo amor à verdade, que estremece
sacrificar tudo ao seu interesse e à sua glória vã; acre- ao se examinarem o pró e o contra! Nas investigações de
ditei, porém, perceber que isso se fazia com um pouco filosofia, o melhor meio de tornar uma opinião suspeita
mais de decência e habilidade; via que os letrados fala- é excluir a opinião contrária: qualquer um que assim pro-
vam sem cessar de eqüidade, de moderação, de virtu- cede dá a impressão de um homem de má-fé, que des-
de, e que era sob a salvaguarda sagrada dessas belas confia da excelência de sua causa. A França inteira está
palavras que se entregavam impunemente às suas pai- na expectativa da peça que receberá este ano o prêmio
xões e aos seus vícios. Mas jamais teria acreditado que da Ac.ademia Francesa; não só ela certamente fará esque-
tivessem o atrevimento de censurar publicamente a cer meu Discurso, o que não será muito difícil, mas não
imparcialidade de seus confrades. Em todos os outros se poderia mesmo duvidar de que será uma obra-prima.
lugares, a glória dos juízes está em se pronunciarem de Entretanto, o que contribuirá isso para a solução da
acordo com a eqüidade, contra seu próprio interesse; questão? Absolutamente nada, pois cada qual dirá, de-
pois de lê-la: Este discurso é belíssimo, mas se o autor ti-
cabe apenas às ciências converter, naqueles que as cul-
vesse tomado a liberdade de seguir a opinião contrária
tivam, a integridade em um crime: este é realmente um
belo privilégio que elas têm.
talvez tivesse feito um mais belo ainda.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __
- - - - - - D i s c u r s o sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ __

Percorri a nova refutação, pois trata-se de mais uma, cerrar-me no assunto de que trato, sem nele introduzir
e não sei por que fatalidade os escritos de meus adver- nada de pessoal: o verdadeiro respeito que se deve ao
sários, que trazem esse título tão decisivo, são sempre público está em poupar-lhe, não tristes verdades que lhe
aqueles em que sou mais mal refutado. Percorri portan- podem ser úteis, mas sim todas as mesquinhas penden-
to essa refutação, sem ter o menor arrependimento da gas entre autores48 , com as quais se enchem os escritos
resolução que tomei de não responder a mais ninguém; polêmicos e que só servem para satisfazer uma vergo-
contentar-me-ei em citar uma única passagem, pela qual nhosa animosidade. Querem que eu tenha tomado a Clé-
o leitor poderá julgar se tenho ou não razão. Aqui está: nard49 um dito de Cícero, seja; que tenha cometido sole-
Convirei que se pode ser homem de bem sem talentos, cismos, muito bem; que cultivo as belas-letras e a músi-
mas será nosso compromisso com a sociedade ser apenas ca, apesar do mal que penso delas; concordarei com isso
um homem de bem? E o que será um homem de bem igno- caso queiram, devo suportar numa idade mais sensata o
rante e sem talentos? Um fardo inútil, uma carga mesmo castigo dos divertimentos de minha juventude. Mas, afi-
para a terra, etc. Não responderei, por certo, a um autor nal, que importa tudo isso, tanto ao público como à
capaz de escrever dessa maneira, mas creio que ele pode causa das ciências? Rousseau pode falar mal o francês e
agradecer-me por isso. nem por isso a gramática será mais útil à virtude. Jean-
Tampouco haveria muitos meios, a menos que se Jacques pode ter má conduta, e a dos sábios não será
quisesse ser tão difuso como o autor, de responder à nu- melhor. Eis toda a resposta que darei e, creio, toda a que
merosa coleção de passagens latinas, dos versos de La devo dar a essa nova refutação.
Fontaine, de Boileau, de Moliere, de Voiture, de Regnard, Terminarei esta carta, e o que tenho a dizer sobre um
de Gresset, nem à história de Nemrod, nem àquela dos assunto debatido por tanto tempo, com um conselho aos
meus adversários, que sem dúvida o desprezarão, o qual
camponeses picardos, pois o que se poderá dizer a um
seria porém mais vantajoso do que pensam ao partido
filósofo que nos assegura querer mal aos ignorantes por-
que querem defender: é de não escutar tanto seu zelo a
que seu meeiro da Picardia, que não é um doutor, paga-o
ponto de esquecer de consultar suas forças e quid va-
na verdade exatamente, mas não lhe dá dinheiro suficien-
leant humeri. Dir-me-ão decerto que eu deveria ter ado-
te por sua terra? O autor está tão ocupado com suas ter-
tado esse conselho para mim mesmo, e isso pode ser
ras, que até me fala da minha. Uma terra minha! A terra verdade; mas, pelo menos, há a diferença de que eu era
de Jean-Jacques Rousseau! Realmente, aconselho-o a ca- o único de meu partido, ao passo que, sendo o deles o
luniar-me47 com mais habilidade. da multidão, os recém-chegados pareciam dispensados
Se eu tivesse de responder a alguma parte da refuta- de entrar em suas fileiras, ou obrigados a fazer melhor
ção, seria às mordacidades que abundam nessa crítica; que os outros.
mas, como elas nada têm a ver com a questão, não me Temendo que essa opinião pareça temerária ou pre-
afastarei da máxima constante que sempre segui, de en- sunçosa, junto aqui uma amostra dos raciocínios de meus

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau
- - - - - - D i s c u r s o sobre as ciências e as artes _ _ _ _ __

adversários, pela qual se poderá julgar a exatidão e a estudo; que o Prometeu, que grita e os adverte do peri-
força de suas críticas. Os povos da Europa, disse eu, vi- go, é o cidadão de Genebra. Tal alegoria é justa, bela,
viam há alguns séculos num estado pior do que a igno- ouso achá-la sublime. O que se deve pensar de um escri-
rância; não sei que jargão científico, ainda mais despre- tor que a meditou e não conseguiu entendê-la? Pode-se
zível do que ela, havia usurpado o nome do saber e opu- crer que esse homem não teria sido um grande doutor
nha à sua volta um obstáculo quase invencível. Era pre- entre os seus amigos egípcios.
ciso uma revolução para trazer os homens de volta ao Tomo, pois, a liberdade de propor aos meus adver-
senso comum. Os povos haviam perdido o senso comum sários, sobretudo ao último, esta sábia lição de um filó-
não por serem ignorantes, mas por fazerem a tolice de sofo sobre outro assunto: sabei que não há objeções que
acreditar saber algo com os grandes ditos de Aristóteles possam ser tão prejudiciais ao vosso partido como as
e a impertinente doutrina de Raimundo Lúlio; era preci- más respostas; sabei que, se não tiverdes dito nada que
so uma revolução para lhes ensinar que nada sabiam, e valha, aviltarão vossa causa ao dar-vos a honra de crer
teríamos grande necessidade de outra para nos ensinar a que não havia nada de melhor para dizer.
mesma verdade. Eis o argumento de meus adversários a Sou, etc.
esse respeito: Essa revolução deve-se às letras; elas trou-
xeram de volta o senso comum, conforme a declaração
do autor; mas também, segundo ele, corromperam os cos-
tumes; logo, o povo deve renunciar ao senso comum para
ter bons costumes. Três escritores, um atrás do outro, re-
petiram esse belo raciocínio; pergunto-lhes agora o que
preferem que eu acuse, seu espírito, por não ter conse-
guido penetrar o sentido claríssimo desta passagem, ou
sua má-fé, por ter fingido não a entender? São letrados,
assim sua escolha não será duvidosa. O que diremos
nós, porém, das divertidas interpretações que este último
adversário se compraz em dar à figura do frontispício de
meu livro? Acreditaria ofender meus leitores, e tratá-los
como crianças, ao interpretar-lhes uma alegoria tão clara,
ao dizer-lhes que o archote de Prometeu é o das ciên-
cias, feito para animar os grandes gênios; que o sátiro
que, vendo o fogo pela primeira vez, corre a ele e quer
abraçá-lo representa os homens vulgares que, seduzidos
pelo brilho das letras, entregam-se sem discernimento ao

124 125
Prefácio de uma
Segunda carta a Bordes*

Forçado por novos ataques a romper o silêncio que


me impusera nesta longa discussão, retomo sem escrú-
pulo a pena que largara. Se posso, na opinião dos sábios,
lançar novas luzes sobre as importantes máximas que
estabeleci, pouco me importa que o público se entedie
em ver debater tanto tempo a mesma questão, pois, ain-
da que a culpa não coubesse aos agressores, não estou
disposto a sacrificar meu zelo pela verdade ao cuidado
de minha reputação, e não vejo por que temeria tanto
entediar leitores a quem tão pouco temo desagradar.
Creio ter descoberto grandes coisas e as expus com
uma franqueza bastante perigosa, sem que haja muito
mérito nisso, pois minha independência causou toda a
minha coragem e longas meditações me serviram de gê-
nio .. Um solitário que se compraz em viver ensimesmado
adquire naturalmente o gosto da reflexão, e um homem
que se interessa vivamente pela felicidade dos outros,
sem necessitar deles para fazer a sua, está dispensado de

• Em setembro de 1753, é publicada uma resposta de Bordes à resposta


de Rousseau, que tenciona uma Segunda carta a Bordes, da qual só escreveu
o prefácio. (N. da T.)

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~----------Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - D i s c u r s o sobre as ciências e as artes _ _ _ _ _ __

poupar-lhes a falsa delicadeza no que tem de útil para di- é dizer-lhes a verdade ou o que tomo por verdade; com-
zer-lhes. Sendo essa uma situação tão rara, e tendo a feli- pete a uma voz mais possante fazer com que a amem.
cidade de nela me encontrar, creio-me obrigado a apro- Suportei pacientemente as invectivas de uma multi-
veitá-la em prol da verdade e a expressá-la sem escrúpu- dão de autores a quem não fiz outro mal senão exortá-
lo todas as vezes que ela me parecer interessar à inocên- los a tornarem-se gente de bem. Divertiram-se muito à
cia ou à felicidade dos homens. Se cometi um erro ao as- vontade à minha custa; tornaram-me tão ridículo quanto
sumir inoportunamente o compromisso de silenciar-me, quiseram; depreciaram publicamente os meus escritos e
não devo cometer outro maior ao pretender manter mi- mesmo a minha pessoa, sem que jamais eu tenha tenta-
nha palavra contra o meu dever, sendo para permanecer do repelir seus ultrajes a não ser com minha conduta. Se
constante em meus princípios que quero estar pronto a eu os mereci, só poderia ter-me vingado procurando
abandonar meus erros assim que os percebo. lhos devolver e, muito longe de comprazer-me nessa
Vou portanto retomar o fio de minhas idéias e conti- odiosa guerra, quanto mais verdades tivesse encontrado
nuar a escrever do mesmo modo que sempre fiz, como para dizer-lhes, mais meu coração se teria entristecido.
um ser isolado que não deseja e não teme nada de nin- Se não mereço suas injúrias, foi só a eles que as disse-
guém, que fala para os outros e não para si mesmo, ram; talvez até a sua animosidade dificilmente tenha no
como um homem que preza muito seus irmãos para não público o efeito que eles esperavam, com o qual não me
odiar seus vícios, e que gostaria que aprendessem de preocupo muito. A paixão extremada em geral é inábil e
uma vez por todas a verem-se tão maus quanto são, para aconselha a dela desconfiar-se. Talvez, com base em
desejarem ao menos tornarem-se tão bons quanto pode- seus próprios escritos, irão avaliar-me melhor do que o
riam ser. sou realmente, quando virem que, com tanta vontade de
Sei muito bem que o trabalho a que me dou é inútil me difamar, o maior crime que encontraram para censu-
e não tenho, em minhas exortações, o quimérico prazer rar-me foi ter admitido que um artista ilustre fizesse meu
de esperar a reforma dos homens. Sei que zombarão de retrato.
mim, porque os amo, e de minhas máximas, porque são Falta muito para que eu seja capaz do mesmo san-
proveitosas. Sei que não deixarão de ser menos ávidos gue-frio para com aqueles que, deixando minha pessoa
de glória e de dinheiro quando eu os tiver convencido de lado, atacam com certa habilidade as verdades que
que essas duas paixões são a origem de todos os seus estabeleci. Esse triste e grande sistema, fruto de um exa-
males, e que são maus por uma e infelizes pela outra. me sincero da natureza do homem, de suas faculdades e
Tenho toda a certeza de que considerarão extravagância de sua destinação, é-me caro, embora me humilhe, pois
meu desdém por esses objetos de sua admiração e de sinto quanto nos importa que o orgulho não nos faça ilu-
seus trabalhos, mas prefiro suportar suas zombarias a par- dirmo-nos a respeito do que produz nossa verdadeira
tilhar seus defeitos, e, seja qual for o dever deles, o meu grandeza, e quanto se deve temer que à força de querer-

128 129
_____________________ Rom~au _____________________ _ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre as ciências e as artes __________

mos elevar-nos acima de nossa natureza não decaiamos nha para lhes dizer. Se apenas o Discurso de Dijon exci-
abaixo dela. De qualquer modo, é útil aos homens, se não tou tantos murmúrios e causou escândalo, o que teria
conhecerem a verdade, pelo menos não ficarem no erro, acontecido se eu houvesse desenvolvido desde o primei-
e um dos mais perigosos de todos é temer menos o erro ro momento toda a extensão de um sistema verdadeiro
do que a ignorância e preferir, numa alternativa forçada, mas doloroso, do qual a questão tratada nesse Discurso
ser depravados e miseráveis a pobres e grosseiros. não passa de um corolário? Inimigo declarado da violên-
Minha opinião foi combatida com ardor, como eu cia dos maldosos, eu seria no mínimo considerado inimi-
previra, por uma multidão de escritores. Respondi até go da tranqüilidade pública, e se os zelosos seguidores
agora a todos os que me pareceram valer a pena e estou do partido contrário não se houvessem empenhado cari-
bem determinado a proceder do mesmo modo no futu- dosamente em perder-me, para a grande glória da filoso-
ro, não para a minha própria glória, pois não é a J.-J. fia, não se pode duvidar pelo menos que, tendo à frente
Rousseau que quero defender, pois ele deve ter-se enga- um homem desconhecido, houvessem conseguido facil-
nado muitas vezes; todas as vezes que ele me parecer mente ridicularizar a obra e o autor e que, começando
nessa situação, vou abandoná-lo sem escrúpulo e sem por zombar de meu sistema, esse meio, posto em voga
pena, mesmo quando tiver razão, contanto que se trate por tantas experiências, tê-los-ia dispensado do incômo-
apenas dele. Assim, enquanto se ativerem a censurar-me do cuidado de examinar minhas provas.
por ter publicado obras ruins, ou por saber raciocinar Assim, foram-me necessárias algumas precauções ini-
mal ou cometer erros de linguagem, ou erros de história, ciais, e foi para poder dar a conhecer tudo que não quis
ou de escrever mal ou ter mau humor, pouco me irrita- dizer tudo. Apenas sucessivamente e sempre para pou-
rei com todas essas censuras, não me surpreenderei e cos leitores é que desenvolvi minhas idéias. Não foi a
nunca lhes responderei. Mas, quanto ao sistema que sus- mim que poupei, mas à verdade, a fim de transmiti-la com
tentei, vou denfendê-lo com toda a minha força por todo mais segurança e de torná-la útil. Muitas vezes tive muito
o tempo em que estiver convencido de que é o da ver- trabalho para procurar encerrar numa frase, numa linha,
dade e da virtude e que é por tê-lo abandonado intem- numa palavra lançada como que ao acaso, o resultado
pestivamente que a maioria dos homens, degenerados de uma longa seqüência de reflexões. Freqüentemente a
de sua bondade primitiva, caíram em todos os erros que maioria de meus leitores deve ter achado meus discursos
os cegam e em todas as misérias que os acabrunham. mal coordenados e quase inteiramente desconexos, por
Tendo tantos interesses para combater, tantos pre- não perceber o tronco do qual só lhe mostrava os ramos.
conceitos para vencer e tantas coisas duras para anun- Mas era o bastante para os que sabem entender e nunca
ciar, acreditei dever, para o próprio interesse de meus quis falar aos outros.
leitores, poupar de certo modo sua pusilanimidade e não Esse método obrigou-me a ter de replicar muitas ve-
lhes deixar perceber senão sucessivamente o que eu ti- zes aos meus adversários, quer para resolver objeções,

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~~~~~~~~~-Rousseau~---------

quer para ampliar e esclarecer idéias que de tal necessi-


tavam, quer para acabar de desenvolver todas as partes
de meu sistema à medida que os votos dos sábios me as-
seguravam a atenção pública. Acreditava, é verdade, ter
provido a todas essas coisas com minhas respostas ante- DISCURSO SOBRE A ORIGEM
riores, ao menos para os leitores que eu tinha em vista. E OS FUNDAMENTOS
Porém, ao ver no segundo Discurso do acadêmico de DA DESIGUALDADE ENTRE
Lyon que ele ainda não me havia entendido, prefiro acu- OS HOMENS
sar a mim de inabilidade do que a ele de má vontade.
Portanto, vou tratar de explicar-me melhor e, já que é
hora de falar claramente, vou vencer afinal minha aver-
são e escrever de uma vez para o povo.
A obra que me proponho a examinar está repleta de
sofismas agradáveis que têm ainda mais brilho do que
sutileza e que, seduzindo por certo colorido de estilo e
pelas astúcias de uma Íógica hábil, são duplamente peri-
gosas para o vulgo. Vou adotar meios inteiramente con-
trários nesta análise e, seguindo passo a passo os racio-
cínios do autor com toda a exatidão que me for possível,
nesta discussão empregarei unicamente a simplicidade e
o zelo de um amigo da verdade e da humanidade, que
considera toda a sua glória prestar homenagem a uma e
toda a sua felicidade ser útil à outra.

132
À República de Genebra
Magnificos, honradíssimos
e soberanos senhores,

Convencido de que só ao cidadão virtuoso compete


prestar à sua pátria as honras que ela possa aceitar, faz
trinta anos que trabalho para merecer oferecer-vos uma
homenagem pública. E, tendo esta feliz oportunidade
substituído em parte o que meus esforços não puderam
fazer, acreditei que me seria permitido aqui consultar
mais o zelo que me anima do que o direito que deveria
autorizar-me. Tendo a felicidade de haver nascido entre
vós, como poderia eu meditar sobre a igualdade que a
natureza instalou entre os homens e sobre a desigualda-
de que eles instituíram sem pensar na profunda sabedo-
ria com que uma e outra, combinadas com acerto neste
Estado, concorrem, da maneira mais próxima da lei natu-
ral e mais favorável à sociedade, para a manutenção da
ordem pública e para a felicidade dos particulares? Bus-
cando as melhores máximas que o bom senso pode ditar
sobre a constituição de um governo, fiquei tão impres-
sionado de vê-las todas em execução no vosso que, mes-
mo sem haver nascido dentro de vossos muros, teria acre-
ditado não poder dispensar-me de oferecer esse quadro
da sociedade humana ao povo que, dentre todos os ou-
tros, me parece possuir as suas maiores vantagens e me-
lhor ter prevenido seus abusos.

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- - - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ - - - - - - - D i s c u r s o sobre a desigualdade _ _ _ _ _ __

Se eu tivesse de escolher o lugar de meu nascimen- fazer, é impossível que ambos sejam obedecidos e 0 Es-
to, teria escolhido uma sociedade de um tamanho limita- tado seja bem governado.
do pela extensão das faculdades humanas, ou seja, pela Não teria desejado morar numa República de insti-
possibilidade de ser bem governada e na qual, bastando tuição nova, por melhores leis que pudesse ter, recean-
cada qual ao seu cargo, ninguém fosse forçado a incum- do que o governo, talvez constituído de modo diferente
bir outros das funções de que estava encarregado; um daquele necessário para o momento, não conviesse aos
Estado em que todos os particulares se conhecessem en- novos cidadãos, ou os cidadãos ao novo governo, e fi-
tre si, em que as manobras obscuras do vício e a modés- casse o Estado sujeito a ser abalado e destruído quase
tia da virtude não pudessem furtar-se aos olhos e ao jul- em seu nascimento. Porque ocorre à liberdade o mesmo
gamento do público e em que o doce hábito de ver-se e que aos alimentos sólidos e suculentos, ou aos vinhos
conhecer-se transformasse o amor da pátria antes em generosos, apropriados para nutrir e fortificar os tempe-
amor dos cidadãos do que em amor da terra. ramentos robustos a eles habituados, mas que prostram,
Teria desejado nascer num país em que o soberano arruínam e embriagam os fracos e delicados que não lhes
e o povo só pudessem ter um único e mesmo interesse, são afeitos. Os povos, uma vez acostumados a senhores
a fim de que todos os movimentos da máquina sempre já não têm condições de dispensá-los. Se tentam sacudi;
tendessem apenas para a felicidade comum; como isso é o jugo, afastam-se ainda mais da liberdade pois toman-
do-a por uma liberdade desenfreada que lhes ' é' oposta,
impossível, a menos que o povo e o soberano sejam uma
mesma pessoa, conclui-se que eu desejaria haver nasci- suas revoluções quase sempre os entregam a sedutores
que apenas agravam seus grilhões. O próprio povo ro-
do sob um governo democrático, sabiamente moderado.
mano, esse modelo de todos os povos livres, não foi
Teria desejado viver e morrer livre, ou seja, tão sub-
apto para governar-se ao sair da opressão dos Tarquí-
metido às leis que nem eu nem ninguém pudesse sacu-
nios. Aviltado pela escravidão e pelos trabalhos ignomi-
dir-lhes o honroso jugo; esse jugo salutar e suave, que as
niosos que lhe eram impostos, no início não passava de
mais altivas cabeças suportam tanto mais docilmente
um estúpido populacho que foi preciso dirigir e gover-
quanto não são afeitas a suportar nenhum outro.
nar com a maior sabedoria, a fim de que, acostumando-
Teria desejado que ninguém no Estado pudesse di- se pouco a pouco a respirar o ar salutar da liberdade,
zer-se acima da lei, e que ninguém de fora pudesse im- essas almas desfibradas, ou melhor, embrutecidas sob a
por-lhe outra que o Estado fosse obrigado a reconhecer, tirania, adquirissem paulatinamente a severidade de cos-
pois, seja qual for a constituição de um governo, se nele tumes e a altivez de coragem que finalmente o tornaram
se encontra um único homem que não esteja submetido o mais respeitado de todos os povos. Portanto, teria pro-
à lei, todos os outros estão necessariamente à mercê de- curado para minha pátria uma república feliz e tranqüi-
le1; e, se houver um chefe nacional e outro chefe estran- la, cuja ancianidade de certo modo se perdesse na noite
geiro, seja qual for a divisão de autoridade que possam dos tempos, que só houvesse sofrido golpes próprios

136 137
----------Rousseau---------~ _ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade _ _ _ _ _ __

para manifestar e fortalecer em seus habitantes a cora- que por fim causaram a perda dos atenienses, que cada
gem e o amor à pátria, e onde os cidadãos, de há muito qual não tivesse o poder de propor novas leis de acordo
acostumados a uma sábia independência, fossem não só com seu capricho; que esse direito pertencesse apenas
livres, mas também dignos de sê-lo. aos magistrados; que eles mesmos o usassem com tanta
Teria desejado escolher para mim uma pátria isenta, circunspeção, que o povo, por sua vez, fosse tão reser-
por uma feliz impotência, do feroz amor pelas conquis- vado em dar seu consentimento a essas leis, e a promul-
tas e garantida, por uma posição ainda mais feliz, do te- gação só pudesse efetuar-se com tanta solenidade que,
mor de tornar-se ela própria a conquista de outro Esta- antes que a constituição fosse abalada, tivessem tempo
do; uma cidade livre, situada entre vários povos, dos de convencer-se de que é sobretudo a grande antiguida-
quais nenhum tivesse interesse de invadi-la e cada qual de das leis que as torna santas e veneráveis, de que o
tivesse interesse de impedir os demais de invadi-la; nu- povo logo despreza aquelas que vê mudar todos os dias
ma palavra, uma república que não tentasse a ambição e de que, acostumando-se a menosprezar os usos anti-
de seus vizinhos e pudesse contar suficientemente com gos a pretexto de melhorá-los, em geral introduzem-se
seu socorro na necessidade. Conclui-se que, numa posi- grandes males para corrigir males menores.
ção tão feliz, ela nada teria de temer senão dela mesma Teria sobretudo fugido, como necessariamente mal
e que, se seus cidadãos fossem exercitados em armas, governada, de uma república em que o povo, acreditan-
seria mais para manter entre eles o ardor guerreiro e a do poder dispensar seus magistrados ou só lhes deixar
altivez de coragem que se quadram tão bem com a liber- uma autoridade precária, houvesse imprudentemente fi-
dade e alimentam o seu gosto do que pela necessidade cado com a administração dos negócios civis e com a
de garantir a própria defesa. execução de suas próprias leis; tal deve ter sido a gros-
Teria procurado um país onde o direito de legislação seira constituição dos primeiros governos logo ao saírem
fosse comum a todos os cidadãos, pois quem melhor do do estado de natureza, e tal foi também um dos vícios
que eles pode saber em que condições lhes convém vi- que perderam a república de Atenas.
ver juntos numa mesma sociedade? Mas não teria apro- Mas teria escolhido aquela em que os particulares,
vado plebiscitos iguais aos dos romanos, nos quais os contentando-se em dar sanção às leis e em decidir, con-
chefes de Estado e os mais interessados em sua conser- juntamente e segundo o parecer dos chefes, os mais im-
vação eram excluídos das deliberações de que em geral portantes negócios públicos, estabelecessem tribunais res-
dependia sua salvação, e nos quais, por uma absurda in- peitados, distinguissem com cuidado os diversos depar-
conseqüência, os magistrados eram privados dos direitos tamentos; elegessem a cada ano os mais capazes e íntegros
usufruídos pelos simples cidadãos. de seus concidadãos para administrar a justiça e gover-
Ao contrário, teria desejado, para deter os projetos nar o Estado; e na qual, sendo a virtude dos magistrados
interesseiros e mal concebidos e as inovações perigosas uma prova da sabedoria do povo, uns e outros se hon-

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---------~Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ ------~Discurso sobre a desigualdade _ _ _ _ _ __

rassem mutuamente. De forma que, se um dia funestos desfrutais e cujo valor talvez nenhum de vós perceba
mal-entendidos viessem perturbar a concórdia pública, melhor do que eu, que os perdi. Quanto mais reflito so-
mesmo esses tempos de cegueira e de erros se assinala- bre vossa situação política e civil, menos posso imaginar
riam por provas de moderação, de estima recíproca e de que a natureza das coisas humanas possa comportar
um comum respeito pelas leis; prenúncios e penhores de outra melhor. Em todos os outros governos, quando se
uma reconciliação sincera e perpétua. trata de assegurar o maior bem do Estado, tudo sempre
Tais são, MAGNÍFICOS, HONRADÍSSIMOS E SOBE- se limita a projetos em idéias e, quando muito, a simples
RANOS SENHORES, as vantagens que teria procurado na possibilidades. Quanto a vós, vossa felicidade é comple-
pátria que escolheria para mim. Se a providência, além ta, basta apenas desfrutá-la, e para tornar-vos perfeita-
disso, lhe houvesse acrescentado uma localização encan- mente felizes só tendes de saber contentar-vos em sê-lo.
tadora, um clima temperado, uma terra fértil e o aspecto Vossa soberania adquirida ou recobrada ã ponta da espa-
mais delicioso existente sob o céu, eu só desejaria, para da e conservada dois séculos a fio à força de valor e de
rematar minha felicidade, usufruir todos esses bens no '
sabedoria, é por fim plena e universalmente reconheci-
seio dessa feliz pátria, vivendo tranqüilamente numa da. Tratados honrosos fixam vossos limites, asseguram
sociedade amena com meus concidadãos, exercendo en- vossos direitos e fortalecem vosso sossego. Vossa consti-
tre eles, e a exemplo deles, a humanidade, a amizade e tuição é excelente, ditada pela mais sublime razão e ga-
todas as virtudes, e deixando atrás de mim a honrada me- rantida por potências amigas e respeitáveis; vosso Estado
mória de um homem de bem e de um honesto e virtuo- é tranqüilo, não tendes nem guerras nem conquistadores
so patriota. para temer; não tendes outros senhores além das sábias
Se, menos feliz ou tarde demais sensato, me visse re- leis que fizestes, administradas por magistrados íntegros
duzido a terminar em outros climas uma carreira fraca e escolhidos por vós; não sois assaz ricos para debilitar-
vacilante, sentindo uma inútil saudade do repouso e da vos na indolência e para perder em vãs delícias o gosto
paz de que me privara uma juventude imprudente, pelo da verdadeira felicidade e das sólidas virtudes, nem as-
menos acalentaria em minha alma os mesmos sentimen- saz pobres para necessitar de mais socorros estrangeiros
tos que não poderia ter empregado em meu país e, im- do que o proporcionado por vosso engenho; e essa li-
pregnado de uma terna e desinteressada afeição pelos berdade preciosa, que só se mantém nas grandes nações
meus concidadãos distantes, dirigir-lhes-ia do fundo do com impostos exorbitantes, quase nada vos custa para
meu coração aproximadamente o seguinte discurso. conservar.
Meus caros concidadãos, ou melhor, meus irmãos, já Possa perdurar para sempre, para a felicidade de
que tanto os laços de sangue quanto as leis nos unem seus cidadãos e para o exemplo dos povos, uma repúbli-
quase que a todos, é-me agradável não poder pensar em ca tão sábia e acertadamente constituída! Eis o único voto
vós sem pensar ao mesmo tempo em todos os bens que que vos resta fazer e o único cuidado que vos resta

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---------------------Ro~eau _____________________ _______________ Discurso sobre a desigualdade-------

tomar. Caberá somente a vós, doravante, não fazer vossa meza, continuem a reger todos os vossos procedimentos
felicidade, pois vossos antepassados vos pouparam esse e a mostrar em vós, para todo o universo, o exemplo de
trabalho, mas torná-la duradoura pela sabedoria de bem um povo altivo e modesto, tão cioso de sua glória quan-
empregá-la. É de vossa união perpétua, de vossa obe- to de sua liberdade. Resguardai-vos, sobretudo, e este
diência às leis, de vosso respeito por seus ministros que será o meu último conselho, de jamais ouvir interpreta-
depende vossa conservação. Se porventura permanece ções sinistras e discursos venenosos, cujos motivos se-
entre vós o menor germe de amargor ou de desconfian- cretos são amiúde mais perigosos do que as ações que
ça, apressai-vos em destruí-lo como um fermento funes- são seu objeto. Uma casa inteira se desperta e fica alerta
to do qual resultariam, cedo ou tarde, vossas infelicida- aos primeiros gritos de um bom e fiel guardião que ja-
des e a ruína do Estado. Conjuro-vos todos a penetrardes mais late senão à aproximação de ladrões; mas odeia-se
no fundo de vosso coração e a consultardes a voz secre- a importunidade desses animais ruidosos que perturbam
ta de vossa consciência. Alguém dentre vós conhecerá incessantemente o repouso público e cujas advertências
no universo um corpo mais íntegro, mais esclarecido, contínuas e extemporâneas não se fazem sequer ouvir
mais respeitável do que o de vossos magistrados? Todos no momento em que são necessárias.
os seus membros não vos dão o exemplo da moderação, E vós, MAGNÍFICOS E HONRADÍSSIMOS SENHO-
da simplicidade dos costumes, do respeito pelas leis e da RES, vós, dignos e respeitáveis magistrados de um povo
mais sincera reconciliação? Concedei pois, sem reservas, livre, permiti-me oferecer-vos em particular minhas ho-
a tão sábios chefes essa salutar confiança que a razão menagens e meus respeitos. Se há no mundo uma posi-
deve à virtude; pensai que são de vossa escolha, que a ção apropriada para ilustrar aqueles que a ocupam, é de-
justificam e que as honras devidas àqueles que consti- certo aquela concedida pelos talentos e pela virtude,
tuístes em dignitários refletem necessariamente sobre vós aquela de que vos tornastes dignos e à qual vossos con-
mesmos. Nenhum de vós é tão pouco esclarecido para cidadãos vos elevaram. O próprio mérito deles ainda
ignorar que, onde cessam o vigor das leis e a autoridade acresce ao vosso um novo brilho e, escolhidos por ho-
de seus defensores, não pode haver nem segurança nem mens capazes de governar outros, para a eles mesmos go-
liberdade para ninguém. O que vos importa, pois, senão vernar, creio-vos tão acima dos outros magistrados quan-
fazer de boa vontade e com uma confiança judiciosa o to um povo livre, sobretudo aquele que tendes a honra
que sempre seríeis obrigados a fazer por um verdadeiro de conduzir, está, por suas luzes e por sua razão, acima
interesse, por dever e pela razão? Que uma condenável do populacho dos outros Estados.
e funesta indiferença pela manutenção da constituição Que me seja permitido citar um exemplo do qual
nunca vos faça desprezar, quando necessário, os sábios deveriam subsistir maiores lembranças e que sempre es-
pareceres dos mais esclarecidos e zelosos dentre vós. tará presente em meu coração. Não me recordo sem a
Mas que a eqüidade, a moderação, a mais respeitosa fir- mais doce emoção da memória do virtuoso cidadão que

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me trouxe ao mundo e que freqüentemente alimentou retribuís em estima e em atenções o que eles vos devem
minha infância com o respeito que vos era devido. Vejo-o em obediência e em respeito; procedimento pleno de
ainda vivendo do trabalho de suas mãos, e alimentando justiça e de sabedoria, apropriado para distanciar cada
sua alma com as mais sublimes verdades. Vejo Tácito, vez mais a memória dos infelizes acontecimentos que
Plutarco e Grotius misturados diante dele com os instru- cumpre esquecer para jamais os rever; procedimento ain-
mentos de seu ofício. Vejo ao seu lado um filho querido da mais judicioso porque esse povo eqüitativo e genero-
que recebia, com poucos frutos, as ternas instruções do so faz de seu dever um prazer, gosta naturalmente de
melhor dos pais. Mas, se os desvarios de uma louca ju- vos venerar e porque os mais ardentes em sustentar seus
ventude me fizeram esquecer durante uns tempos tão sá- direitos são os mais inclinados a respeitar os vossos.
bias lições, tenho a felicidade de provar afinal que, seja Não é de admirar que os chefes de uma sociedade
qual for a inclinação que se tenha para o vício, é difícil civil lhe amem a glória e a felicidade, mas é inquietante
ficar perdida para sempre uma educação em que inter- para os homens que aqueles que se olham como magis-
vém o coração. trados, ou melhor, como os senhores de uma pátria mais
Tais são, MAGNÍFICOS E HONRADÍSSIMOS SENHO- santa e sublime, demonstrem algum amor pela pátria ter-
RES, os cidadãos e mesmo os simples habitantes nasci- restre que os nutre. Como me é agradável poder fazer
dos no Estado que governais; tais são esses homens ins- em nosso favor uma exceção tão rara e incluir entre nos-
truídos e sensatos dos quais, sob o nome de operários e sos melhores cidadãos esses zelosos depositários dos
de povo, se têm nas outras nações idéias tão baixas e fal- dogmas sagrados autorizados pelas leis, esses veneráveis
sas. Meu pai, confesso-o com alegria, não se distinguia pastores de almas, cuja vigorosa e doce eloqüência leva
entre seus concidadãos, era apenas o que todos são e, tal com mais eficácia aos corações as máximas do Evange-
como era, não havia região onde seu convívio não fosse lho, pois sempre começam por praticá-las pessoalmente!
procurado, cultivado, mesmo com frutos, pelas pessoas Todos sabem com que sucesso a arte da prédica é culti-
mais honestas. Não me compete e, graças ao céu, não é vada em Genebra; porém, muito acostumados a ver di-
necessário falar-vos da consideração que podem esperar zer de uma maneira e agir de outra, poucas pessoas sa-
de vós homens dessa têmpera, vossos iguais pela educa- bem até que ponto o espírito do cristianismo, a santida-
ção, assim como pelos direitos da natureza e do nasci- de dos costumes, a severidade consigo mesmo e a bran-
mento; vossos inferiores por vontade própria, pela pre- dura para com o próximo reinam entre nossos ministros.
ferência que deviam ao vosso mérito, que a concederam, Talvez caiba apenas à cidade de Genebra mostrar o
e pela qual vós lhes deveis, por vossa vez, um certo re- exemplo edificante de uma tão perfeita união entre uma
conhecimento. Sei, com imensa satisfação, com quanta sociedade de teólogos e de letrados. É, em grande parte,
doçura e condescendência moderais, para eles, a gravi- em sua sabedoria e em sua moderação reconhecidas, é
dade adequada aos ministros das leis, quanto vós lhes nesse seu zelo pela prosperidade do Estado que funda-

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mento a esperança de sua tranqüilidade eterna; e noto, compensações da servidão, que jamais valerão a augus-
com um prazer mesclado de espanto e de respeito, como ta liberdade. Sede, pois, sempre o que sois, as castas guar-
eles têm horror das detestáveis máximas desses homens diãs dos costumes e os doces liames da paz, e continuai
sagrados e bárbaros de quem a História fornece mais de a valorizar em todas as ocasiões os direitos do coração e
um exemplo e que, para sustentar os pretensos direitos da natureza em proveito do dever e da virtude.
de Deus, ou seja, seus interesses, não eram nada avaros Orgulho-me de não ser desmentido pelos aconteci-
do sangue humano, pois se gabavam que o deles sem- mentos, fundamentando em tais penhores a esperança
pre seria respeitado. da felicidade comum dos cidadãos e da glória da repú-
Poderia eu esquecer essa preciosa metade da repú- blica. Confesso que, com todas essas vantagens, ela não
blica que faz a felicidade da outra e cuja brandura e sa- brilhará com esse esplendor que ofusca a maioria dos
bedoria lhe mantêm a paz e os bons costumes? Amáveis olhos e cujo gosto pueril e funesto é o inimigo mais mor-
e virtuosas cidadãs, o destino de vosso sexo será sempre tal da felicidade e da liberdade. Que uma juventude dis-
governar o nosso. Que felicidade quando vosso casto soluta vá buscar em outras plagas prazeres fáceis e lon-
poder, exercido somente na união conjugal, só se faz gos arrependimentos. Que as pretensas pessoas de bom
sentir para a glória do Estado e para a felicidade pública! gosto admirem em outros lugares a grandeza dos palá-
Era assim que as mulheres mandavam em Esparta e é cios, a beleza das carruagens, os magníficos mobiliários,
assim que mereceis mandar em Genebra. Que homem a pompa dos espetáculos e todos os refinamentos da
bárbaro poderia resistir à voz da honra e da razão na indolência e do luxo. Em Genebra, só encontrarão ho-
boca de uma terna esposa? E quem não desprezaria um mens, entretanto tal espetáculo tem mesmo seu valor, e
luxo vão ao ver vossos trajes simples e modestos, que aqueles que o procurarem valerão bem os admiradores
pelo brilho que recebem de vós parecem ser os mais fa- do resto.
voráveis à beleza? Cabe a vós manter sempre, com vosso Dignai-vos, MAGNÍFICOS, HONRADÍSSIMOS E SO-
amável e inocente império e com vosso espírito insi- BERANOS SENHORES, receber, todos com a mesma bon-
nuante, o amor às leis no Estado e a concórdia entre os dade, os respeitosos testemunhos do interesse que tenho
cidadãos; reunir, mediante casamentos felizes, as famílias pela vossa prosperidade comum. Se fui bastante desajei-
divididas; e sobretudo corrigir, com a doçura persuasiva tado para ser culpado de algum arrebatamento indiscre-
de vossas lições e com as graças modestas de vossa con- to nesta viva efusão de meu coração, suplico-vos o per-
versa, os defeitos que nossos homens vão adquirir em dão, dada a terna afeição de um verdadeiro patriota e o
outros países, de onde, em vez de tantas coisas úteis que zelo ardente e legítimo de um homem que não pretende
poderiam aproveitar, só trazem, com um tom pueril, e maior felicidade para si mesmo do que a de ver-vos a
ares ridículos adquiridos entre mulheres perdidas, a ad- todos felizes.
miração por não sei que pretensas grandezas, frívolas Sou, com o mais profundo respeito,

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---------~Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __

MAGNÍFICOS, HONRADÍSSIMOS E SOBERANOS SE- Prefácio


NHORES,
Vosso humílimo e obedientíssimo servidor e conci-
dadão.
Cbambéry, 12 de junho de 1754.

]EAN-]ACQUES ROUSSEAU

O mais útil e menos avançado de todos os conheci-


mentos humanos parece-me ser o do homem2 , e ouso
dizer que a simples inscrição do templo de Delfos* con-
tinha um preceito mais importante e mais difícil do que
todos os grossos livros dos moralistas. Por isso conside-
ro o tema deste Discurso como uma das questões mais
interessantes que a filosofia pode propor e, infelizmente
para nós, como uma das mais espinhosas para os filóso-
fos resolverem, pois como se conhecer a fonte da desi-
gualdade entre os homens se não se começar por conhe-
cer a eles mesmos? E como o homem conseguiria ver-se
tal como o formou a natureza através de todas as mu-
danças provocadas em sua constituição original pela su-
cessão dos tempos e das coisas e distinguir o que perten-
ce ~ sua própria natureza daquilo que as circunstâncias
e seus progressos acrescentaram ao seu estado primitivo
ou nele mudaram? Tal como a estátua de Glauco que o
tempo, o mar e as tempestades haviam desfigurado tanto
que se parecia menos com um deus do que com um ani-
mal feroz, a alma humana, alterada no seio da sociedade

• "Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses." (N. da T.)

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Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __
_ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a destgualdade-------

P_?r mil causas incessantemente renascentes, pela aquisi-


çao de um grande número de conhecimentos e de erros sim, em geral, do que lhe apontar com precisão as ver-
pelas mudanças ocorridas à constituição dos corpos ~ dadeiras causas.
p~lo choque ~on~ínuo das paixões, mudou, por assim Que meus leitores não pensem que ouso gabar-m~
dtzer, de aparencta a ponto de ficar quase irreconhecí- de ter visto o que me parece tão difícil de ver. Comece1
vel; e, em vez de um ser que age sempre por princípios alguns raciocínios, arrisquei algumas conjeturas, não tan-
certos e invariáveis, em vez dessa celeste e majestosa to com a esperança de resolver a questão quanto co~ a
simplicidade com que seu autor a marcara, não se en- intenção de esclarecê-la e reduzi-la ao seu verdade1ro
coAntra .m~is do que o disforme contraste da paixão que estado. Outros poderão facilmente ir mais longe na mes-
cre ractocmar e o entendimento delirante. ma estrada sem que a ninguém seja fácil chegar ao tér-
mino. Pois 'não é de pouca monta o empreendimento de
O que há de mais cruel ainda é que, como todos os
progressos da espécie humana a distanciam incessante- distinguir o que há de original e de artificial na nature~~
mente de seu estado primitivo, quanto mais acumulamos atual do homem e de bem conhecer um estado que Ja
novos conhecimentos, mais suprimimos os meios de não existe, que talvez não tenha existido, que provavel-
adquirir o mais importante de todos; e que num sentido mente jamais existirá, e do qual é necessário, porém, ter
é à força de estudar o homem que nos tor~amos incapa~ noções exatas para bem julgar nosso estado presente.
zes de conhecê-lo. Careceria mesmo de mais filosofia do que se pensa aque-
É fácil ver que é nessas sucessivas mudanças da le que empreendesse determinar exatamente as prec~u­
constituição humana que se deve procurar a primeira ori- ções que se devem tomar para fazer sóli~s ?bs.ervaçoes
gem d~s. ~iferenças que distinguem os homens, os quais, sobre esse assunto; e não me parecena md1gna dos
na optmao geral, são naturalmente tão iguais entre si Aristóteles e dos Plínios de nosso século uma boa solu-
quanto o eram os animais de cada espécie, antes que di- ção do seguinte problema: Quais experiências seriam
versas causas físicas houvessem introduzido em algumas necessárias para chegar a conhecer o homem natural e
as variedades que nelas observamos. De fato não é con- quais são os meios de jazer essas experiênc!as no seio da
ce~ível que essas primeiras mudanças, seja' qual for sociedade? Longe de empreender a soluçao desse pro-
0 blema creio haver bastante meditado sobre o assunto
meto por que tenham ocorrido, tenham alterado a um só
t~mpo e da mesma maneira todos os indivíduos da espé- para a~rever-me a responder de antemão que os. ~~ior~s
cte; mas, tendo-se uns aperfeiçoado ou deteriorado e ad- filósofos não serão suficientemente bons para dmgtr ta1s
~uirido di:'ersas qualidades boas ou más que não eram experiências, nem os mais poderosos soberanos para fa-
merentes a sua natureza, os outros permaneceram mais zê-las, não sendo muito razoável contar com esse con-
tempo em seu estado original, sendo essa a primeira fon- curso sobretudo com a perseverança, ou melhor, com a
te da desigualdade, que é mais fácil de demonstrar as- suces~ão de luzes e de boa vontade necessária de ambas
as partes para alcançar o sucesso.

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---------------Discurso sobre a desigualdade-------------

Essas pesquisas tão difíceis de se fazerem, e nas quais ção comum. Os modernos, por só reconhecerem sob o
se pensou tão pouco até agora, são contudo os únicos nome de lei uma regra prescrita a um ser moral, ou seja,
meios que nos restam de remover um grande número de inteligente, livre e considerado em suas relações com
dificuldades que nos ocultam o conhecimento dos fun- outros seres, limitam conseqüentemente ao único animal
damentos reais da sociedade humana. É essa ignorância dotado de razão, ou seja, o homem, a competência da lei
da natureza do homem que lança tanta incerteza e obs- natural; porém, em definindo essa lei cada qual à sua
curidade na verdadeira definição do direito natural, pois moda, todos eles estabeleceram sobre princípios tão
a idéia do direito, diz Burlamaqui*, e mais ainda a do metafísicos que há, mesmo entre nós, bem poucas pes-
direito natural, são claramente idéias relativas à natureza soas capazes de compreenderem tais princípios e longe
do homem. Assim, é dessa mesma natureza do homem de poderem encontrá-los por si mesmos. De sorte que
continua ele, de sua constituição e de seu estado que s~ todas as definições desses homens sábios, definições,
devem deduzir os princípios dessa ciência. aliás, em perpétua contradição entre si, concordam so-
Não é sem surpresa e sem escândalo que se nota a mente em que é impossível entender a lei da natureza e,
pouca concordância que reina sobre essa importante ma- por conseguinte, obedecer-lhe sem ser um grande pen-
téria entre os diversos autores que dela trataram. Entre sador e um profundo metafísico. O que significa precisa-.
os mais sérios escritores, mal se encontram dois que te- mente que os homens tiveram de empregar, para o esta-
nham o mesmo parecer sobre esse ponto. Sem falar dos belecimento da sociedade, luzes que só se desenvolvem
antigos filósofos, que parecem ter-se empenhado em com muita dificuldade e para muito poucas pessoas no
contradizer-se entre si sobre os princípios mais funda- seio da própria sociedade.
mentais, os jurisconsultos romanos sujeitam, indiferente- Conhecendo tão mal a natureza e concordando tão
mente, o homem e todos os outros animais à mesma lei pouco no sentido da palavra lei, seria bem difícil convir
natural, porque atribuem esse nome mais à lei que a numa boa definição da lei natural. Por isso todas as que
natureza impõe a si mesma do que àquela que ela pres- se encontram nos livros, além do defeito de não serem
creve; ou melhor, por causa da acepção particular segun- uniformes, têm também o de serem tiradas de vários co-
do a qual esses jurisconsultos entendem a palavra lei, nhecimentos que os homens não possuem naturalmente,
que parecem ter empregado nessa ocasião apenas para e vantagens cuja idéia eles só podem conceber depois
a expressão das relações gerais estabelecidas pela natu- de sair do estado de natureza. Começa-se por buscar as
reza entre todos os seres animados, para sua conserva- regras em que, para a utilidade comum, seria oportuno
que os homens conviessem entre si; ademais, dá-se o
• Jean-jacques Burlamaqui (1694-1748), jurisconsulto genebriano, autor
nome de lei natural à coleção dessas regras, sem outra
de Princípios do direito natural, Princípios do direito político e Elementos do prova além do bem que, segundo supõem, resultaria de
direito natural. (N. da T.) sua prática universal. Esta é, por certo, uma maneira

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muito cômoda de compor definições e de explicar a na- exceto no caso legítimo em que, estando em jogo sua
tureza das coisas por conveniências quase arbitrárias. conservação, é obrigado a dar preferência a si mesmo.
Porém, enquanto não conhecermos o homem natu- Por esse meio, terminam-se também as antigas discus-
ral, em vão desejaremos determinar a lei que ele recebeu sões sobre a participação dos animais na lei natural, pois
ou a que convém melhor à sua constituição. Tudo quan- está claro que, desprovidos de luzes e de liberdade, não
to podemos ver com muita clareza a respeito dessa lei é podem reconhecer essa lei. Mas, relacionados de certo
que não só é preciso, para ela ser lei, que a vontade de modo com nossa natureza pela sensibilidade de que
quem ela obriga possa submeter-se a ela com conheci- são dotados, julgar-se-á que também devem participar do
mento, mas também é preciso, para ela ser natural, que direito natural e que o homem está sujeito a uma certa
se expresse imediatamente pela voz da natureza. espécie de deveres para com eles. Parece de fato que, se
Deixando, pois, todos os livros científicos que só sou obrigado a não fazer nenhum mal ao meu semelhan-
nos ensinam a ver os homens tais como eles se fizeram, te, não é tanto porque ele é um ser racional quanto por-
e meditando sobre as primeiras e mais simples opera- que é um ser sensível; qualidade que, sendo comum ao
ções da alma humana, creio nela perceber dois princí- animal e ao homem, deve ao menos dar a um o direito
pios anteriores à razão, dos quais um nos interessa ar- de não ser maltratado inutilmente pelo outro.
dentemente ao nosso bem-estar e à conservação de nós Esse mesmo estudo do homem original, de suas ver-
mesmos e o outro nos inspira uma repugnância natural dadeiras necessidades e dos princípios fundamentais de
a ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível, principal- seus deveres ainda é o único meio válido que se pode
mente os nossos semelhantes. É do concurso e da com- empregar para remover esse grande número de dificul-
binação que nosso espírito é capaz de fazer desses dois dades que se apresentam sobre a origem da desigualda-
princípios, sem que seja necessário incluir-lhes o da so- de moral, sobre os verdadeiros fundamentos do corpo
ciabilidade, que me parecem decorrer todas as regras do político, sobre os direitos recíprocos de seus membros e
direito natural; regras que a razão depois vê-se forçada a sobre milhares de outras questões semelhantes, tão im-
restabelecer sobre outros fundamentos, quando, por portantes quanto mal esclarecidas .
seus desenvolvimentos sucessivos, conseguiu sufocar a . Considerando-se a sociedade humana com um olhar
natureza. tranqüilo e desinteressado, de início ela parece mostrar
Dessa maneira, não se é obrigado a fazer do homem apenas a violência dos homens poderosos e a opressão
um filósofo antes de fazer dele um homem; seus deveres dos fracos; o espírito se revolta contra a dureza de uns;
para com o próximo não lhe são unicamente ditados pe- somos levados a deplorar a cegueira dos outros; e como
las tardias lições da sabedoria e, enquanto ele não resis- nada é menos estável entre os homens do que essas rela-
tir ao impulso interior da comiseração, jamais há de fazer ções exteriores, produzidas com mais freqüência pelo
mal a outro homem nem sequer a nenhum ser sensível, acaso do que pela sabedoria, e as quais chamamos fra-

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- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __

queza ou poder, riqueza ou pobreza, os estabelecimen-


tos humanos parecem, à primeira vista, fundamentados
em montes de areia movediça. Apenas examinando-os
de mais perto, apenas depois de haver afastado a poeira QUESTÃO
e a areia que circundam o edifício, avista-se a base ina- proposta pela Academia de Dijon
balável sobre a qual está construído e aprende-se a res-
peitar-lhe os fundamentos. Ora, sem o estudo sério do Qual é a origem da desigualdade
homem, de suas faculdades naturais e de seus desenvol- entre os homens e se é
vimentos sucessivos, jamais se conseguirá fazer essas dis- autorizada pela lei natural.
tinções e separar, na atual constituição das coisas, o que
fez a vontade divina daquilo que a arte humana preten-
deu fazer. As pesquisas políticas e morais implicadas na
importante questão que examino são, portanto, úteis de
todas as maneiras, e a história hipotética dos governos é,
a todos os respeitos, uma lição instrutiva para o homem.
Considerando em que nos teríamos transformado entre-
gues a nós mesmos, devemos aprender a glorificar aque-
le cuja mão benfazeja, ao corrigir nossas instituições e ao
dar-lhes uma base inabalável, preveniu as desordens que
delas deveriam resultar e fez nascer nossa felicidade dos
meios que pareciam dever sobrecarregar nossa miséria.
Quem te Deus esse
jussit, et humana qua parte locatus es in re,
Disce.

[Pérsio, Sátiras 111, v. 71.l

156
Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade
entre os homens
ADVERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

Acrescentei algumas notas a esta obra, conforme meu preguiço-


so costume de trabalhar com muitas interrupções. Essas notas às vezes
afastam-se muito do assunto para serem boas de se ler com o texto.
Portanto, eu as transferi para o fim do Discurso, no qual tratei de
seguir, o melhor que pude, o caminho mais reto. Aqueles que tiverem
a coragem de relê-lo, poderão divertir-se da segunda vez em dar uma
busca, e tentar percorrer as notas; não terá importância que os outros É do homem que devo falar, e a questão que exami-
não as leiam. no me indica que vou falar a homens, pois não se pro-
põem questões semelhantes quando se teme honrar a
verdade. Defenderei, pois, com confiança a causa da hu-
manidade perante os sábios que a isso me convidam e
não ficarei descontente comigo mesmo se me tomar
digno de meu assunto e de meus juízes.
Concebo, na espécie humana, duas espécies de de-
sigualdade: uma a que chamo natural ou física, por ser
estabelecida pela natureza, e que consiste na diferença
das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualida-
des do espírito ou da alma; a outra, a que se pode cha-
mar desigualdade moral ou política, por depender de
uma espécie de convenção e ser estabelecida, ou pelo
menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Esta
consiste nos diferentes privilégios que alguns usufruem
em prejuízo dos outros, como serem mais ricos, mais re-
verenciados e mais poderosos do que eles, ou mesmo
em se fazerem obedecer por eles.
Não se pode perguntar qual é a fonte da desigualda-
de natural, porque a resposta estaria enunciada na sim-
ples definição da palavra. Ainda menos pode-se procu-

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- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ -------Discurso sobre a desigualdade _ _ _ _ _ __

rar se haveria alguma ligação essencial entre as duas de- de: falavam do homem selvagem e descreviam o homem
sigualdades, pois, em outros termos, seria perguntar se civil. Nem sequer acudiu ao espírito da maioria dos nos-
aqueles que mandam valem necessariamente mais do sos duvidar que o estado natural houvesse existido, con-
que aqueles que obedecem, e se a força do corpo ou do quanto seja evidente, pela leitura dos livros sagrados,
espírito, a sabedoria ou a virtude, encontram-se sempre que o primeiro homem, tendo recebido imediatamente
nos mesmos indivíduos, em proporção ao poder ou à de Deus luzes e preceitos, não estava ele mesmo nesse
riqueza; boa questão talvez para ser discutida entre es- estado, e que, acrescentando aos escritos de Moisés a fé
cravos conhecedores de seus amos, mas que não con- que lhes deve qualquer filósofo cristão, cumpre negar
vém a homens sensatos e livres, que buscam a verdade. que, mesmo antes do dilúvio, os homens jamais se te-
De que se trata, então, precisamente neste Discurso? nham encontrado no estado puro de natureza, a menos
De apontar, no progresso das coisas, o momento em que nele tenham recaído em virtude de algum aconteci-
que, sucedendo o direito à violência, a natureza foi sub- mento extraordinário. Paradoxo muito embaraçoso de
metida à lei; de explicar por qual encadeamento de pro- defender e totalmente impossível de provar.
dígios o forte pôde resolver-se a servir o fraco, e o povo Comecemos, pois, por descartar todos os fatos, pois
a comprar uma tranqüilidade imaginária pelo preço de eles não se prendem à questão. Não se devem tomar as
uma felicidade real. pesquisas que se podem realizar sobre esse assunto por
Os filósofos que examinaram os fundamentos da verdades históricas, mas somente por raciocínios hipoté-
sociedade sentiram todos a necessidade de remontar ao ticos e condicionais, mais apropriados para esclarecer a
estado de natureza, mas nenhum deles o atingiu. Uns não natureza das coisas do que para lhes mostrar a verdadei-
hesitaram em supor no homem nesse estado a noção do ra origem, e semelhantes aos que fazem, todos os dias,
justo e do injusto, sem se preocupar em mostrar que ele os nossos físicos sobre a formação do mundo. A religião
deveria ter essa noção, nem sequer que esta lhe fosse nos ordena crer que, tendo o próprio Deus tirado os
útil. Outros falaram do direito natural que cada qual tem homens do estado de natureza logo depois da criação,
de conservar o que lhe pertence, sem explicar o que en- eles são desiguais porque Deus quis que o fossem; mas
tendiam por pertencer. Outros, conferindo de início ao ela não nos proíbe formar conjeturas, tiradas exclusiva-
mais forte a autoridade sobre o mais fraco, logo fizeram mente da natureza do homem e dos seres que o cercam,
nascer o governo, sem pensar no tempo que deve ter sobre o que poderia ter-se tornado o gênero humano se
passado antes que o sentido das palavras autoridade e houvesse ficado abandonado a si mesmo. Eis o que me
governo pudesse existir entre os homens. Enfim, todos, perguntam e o que me proponho a examinar neste Dis-
falando incessantemente de necessidade, de avidez, de curso. Interessando meu assunto ao homem em geral,
opressão, de desejos e de orgulho, transportaram para o tratarei de usar uma linguagem conveniente a todas as
estado de natureza idéias que haviam tirado da socieda- nações, ou melhor, esquecendo os tempos e os lugares,

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para pensar apenas nos homens a quem falo, imaginar- Primeira Parte
me-ei no Liceu de Atenas, repetindo as lições de meus
mestres, tendo os Platões e os Xenócrates como juízes e
o gênero humano como auditório.
Oh, homem, de qualquer terra que sejas, quaisquer
que sejam tuas opiniões, escuta: eis tua história, tal como
acreditei lê-la, não nos livros de teus semelhantes, que
são mentirosos, mas na natureza que jamais mente. Tudo
o que vier dela será verdade; só haverá erro no que eu,
sem querer, houver introduzido de meu. Os tempos de
que vou falar são bem distantes; como mudaste daquilo Por mais importante que seja, para bem julgar do es-
que eras! É, por assim dizer, a vida de tua espécie que tado natural do homem, considerá-lo desde a sua origem
vou descrever-te de acordo com as qualidades que rece- e examiná-lo, por assim dizer, no primeiro embrião da
beste, que tua educação e teus hábitos puderam depra-
espécie, não lhe seguirei a organização através de seus
var, mas que não puderam destruir. Há, sinto-o, uma
desenvolvimentos sucessivos; não me deterei em pes-
idade em que o homem individual gostaria de deter-se;
quisar no sistema animal o que pôde ter sido no come-
procurarás a idade em que desejarias que tua espécie se
ço para tornar-se afinal o que é. Não examinarei se, como
houvesse detido. Descontente com teu estado presente,
pensa Aristóteles, suas unhas alongadas não foram a
por razões que anunciam à tua infeliz posteridade maio-
princípio garras recurvas, se não era peludo como um
res descontentamentos ainda, talvez desejasses poder
retroceder. E esse sentimento deve constituir o elogio de urso e se, andando sobre quatro patas•, seus olhares diri-
teus primeiros ancestrais, a crítica de teus contemporâ- gidos para a terra e limitados a um horizonte de alguns
neos e o medo daqueles que tiverem a infelicidade de vi- passos, não assinalavam a um só tempo o caráter e os
ver depois de ti. limites de suas idéias. Não poderia formar sobre esse as-
sunto senão conjeturas vagas e quase imaginárias. A ana-
tomia comparada progrediu ainda muito pouco, as ob-
servações dos naturalistas são ainda muito incertas para
que se possa estabelecer sobre tais fundamentos a base
de um raciocínio sólido; assim, sem recorrer aos conhe-
cimentos sobrenaturais que temos sobre esse ponto, e
sem levar em consideração as mudanças que devem ter
sobrevindo à conformação, tanto interior como exterior,
do homem, à medida que ele aplicava seus membros a

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novos usos e se nutria com novos alimentos, supo-lo-ei dos outros animais ferozes, ou a escapar-lhes correndo,
desde sempre com a mesma conformação com que o vejo os homens formam um temperamento robusto e quase
hoje, andando sobre dois pés, servindo-se das mãos como inalterável. As crianças, trazendo ao mundo a excelente
fazemos com as nossas, levando o olhar a toda a nature- constituição dos pais, e fortalecendo-a pelos mesmos
za e medindo com os olhos a vasta extensão do céu. exercícios que a produziram, adquirem assim todo o vi-
Despojando esse ser assim constituído de todos os gor de que é capaz a espécie humana. A natureza trata-
dons sobrenaturais que pôde receber e de todas as facul- as precisamente como a lei de Esparta tratava os filhos
dades artificiais que só pôde adquirir mediante longos dos cidadãos; torna fortes e robustas as que são bem
progressos, considerando-o, em suma, tal como deve ter constituídas e faz perecer todas as outras, sendo nisso di-
saído das mãos da natureza, vejo um animal menos forte ferente de nossas sociedades, nas quais o Estado, tornan-
do que alguns, menos ágil do que outros, mas, afinal de do os filhos onerosos para os pais, mata-os indistinta-
contas, organizado mais vantajosamente do que todos. mente antes do nascimento.
Vejo-o saciando-se sob um carvalho, matando a sede no Sendo o corpo o único instrumento conhecido pelo
primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma homem selvagem, ele o empn:;ga em diversos usos, dos
árvore que lhe forneceu a refeição e assim satisfeitas suas quais, por falta de exercícios, os nossos são incapazes, e
necessidades. é nossa indústria que nos tira a força e a agilidade que a
A terra, abandonada à sua fertilidade naturalb e reco- necessidade o obriga a adquirir. Se ele tivesse um ma-
berta de florestas imensas jamais mutiladas pelo macha- chado, seu punho romperia galhos tão fortes? Se tivesse
do, oferece a cada passo reservas de provisões e refúgios uma funda, lançaria com a mão uma pedra com tanta fir-
aos animais de qualquer espécie. Os homens, dispersos meza? Se tivesse uma escada, treparia numa árvore com
entre eles, observam, imitam-lhes o engenho e elevam- tanta ligeireza? Se tivesse um cavalo, seria tão veloz na
se assim ao instinto dos animais, com a vantagem de que, corrida? Dai ao homem civilizado o tempo de reunir to-
enquanto cada espécie tem apenas seu próprio instinto, das essas máquinas à sua volta, não se pode duvidar que
o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença, supere facilmente o homem selvagem; mas, se quiserdes
apropria-se de todos, alimenta-se igualmente com a maio- ver um combate mais desigual ainda, colocai-os nus e
ria dos diversos alimentos< que os outros animais divi- desarmados um defronte do outro, e logo reconhecereis
dem entre si e, por conseguinte, encontra sua subsistên- qual é a vantagem de ter sempre todas as suas forças à
cia com mais facilidade do que pode conseguir qualquer sua disposição, de estar sempre pronto para qualquer
um deles. acontecimento e de estar, por assim dizer, sempre intei-
Acostumados desde a infância às intempéries do cli- ro consigo mesmod.
ma e ao rigor das estações, exercitados na fadiga e for- Hobbes pretende que o homem é naturalmente in-
çados a defender, nus e sem armas, sua vida e sua presa trépido e só procura atacar e combater. Um filósofo ilus-

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tre pensa, ao contrário, e Cumberland e Pufendorf tam- tomá-lo ou deixá-lo na refrega e de escolher a fuga ou o
bém o asseguram, que nada é tão tímido quanto o ho- combate. Acrescentemos que, ao que parece, nenhum
mem no estado de natureza, e que ele está sempre trê- animal combate naturalmente com o homem, salvo no
mulo e pronto para fugir ao menor ruído que o impres- caso de sua própria defesa ou de uma fome extrema,
sione, ao menor movimento que perceba. Isso pode nem demonstra contra ele essas violentas antipatias que
ocorrer também em relação aos objetos que não conhe- parecem prenunciar que uma espécie está destinada
ce, e não duvido que se amedronte com todos os novos pela natureza a servir de pasto à outra.
espetáculos que se lhe oferecem, todas as vezes que não [Aí está, sem dúvida, a razão por que os negros e os
pode distinguir o bem e o mal físicos que deles deve es- selvagens se preocupam tão pouco com os animais fero-
perar, nem comparar suas forças com os perigos que tem zes que podem encontrar nos bosques. Os caraíbas da
de correr; circunstâncias essas raras no estado de nature- Venezuela, entre outros, vivem, a esse respeito, na mais
za, em que todas as coisas progridem de uma maneira profunda segurança e sem o menor inconveniente. Em-
tão uniforme e em que a face da terra não é sujeita a mu- bora andem quase nus, diz Francisco Coreal, não deixam
danças bruscas e contínuas, causadas pelas paixões e de expor-se afoitamente nos l?osques, armados somente
pela inconstância dos povos reunidos. Mas, vivendo o de flecha e arco. Jamais se ouviu dizer, entretanto, que
homem selvagem disperso entre os animais, e encon- algum deles tenha sido devorado por animais.]•
trando-se desde cedo na eventualidade de medir-se com Outros inimigos mais temíveis, e contra os quais o
eles, logo faz a comparação e, percebendo que os sobre- homem não tem os mesmos meios de defender-se, são
puja mais em destreza do que eles o sobrepujam em as enfermidades naturais, a infância, a velhice e as doen-
força, aprende a não mais temê-los. Colocai um urso ou ças de toda espécie; tristes sinais de nossa fraqueza, os
um lobo em luta com um selvagem robusto, ágil, corajo- dois primeiros são comuns a todos os animais e o último
so como são todos eles, armado de pedras e de um bom pertence principalmente ao homem que vive em socie-
bastão, e vereis que o perigo será no mínimo recíproco, dade. Observo mesmo, no tocante à infância, que a mãe,
e que, depois de várias experiências semelhantes, os ani- carregando por toda a parte o filho consigo, tem muito
mais ferozes, que não gostam de atacar-se um ao outro, mais facilidade de alimentá-lo do que as fêmeas de vá-
atacarão de mau grado o homem, que terão achado tão rios animais, que são forçadas a ir e vir continuamente
feroz quanto eles. Em relação aos animais que têm real- com muita fadiga, de um lado, para procurar sua comi-
mente mais força do que ele tem destreza, o homem está da e, do outro, para amamentar ou alimentar seus filho-
no caso das outras espécies mais fracas, que não deixam
de subsistir; mas o homem tem a vantagem de, não me-
• Este parágrafo foi acrescentado por Rousseau depois da leitura de
nos disposto do que elas para a corrida e encontrando Viagens de Francisco Coreal às Índias ocidentais 0722) e publicado na edição
em cima das árvores um refúgio quase seguro, poder de 1782. (N. da T.)

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tes. É verdade que, se a mulher vem a morrer, o filho carregar avidamente o estômago quando possível, as
corre grande risco de morrer com ela; mas esse perigo é vigílias, os excessos de toda espécie, os arrebatamentos
comum a centenas de outras espécies, cujos filhotes le- imoderados de todas as paixões, as fadigas e o esgota-
vam muito tempo para ser capazes de procurar sozinhos mento do espírito, os desgostos e os inúmeros pesares
a alimentação. E, se a infância é mais longa entre nós, que se experimentam em todos os estados e pelos quais
sendo a vida mais longa também, tudo é quase igual nes- as almas são perpetuamente corroídas: eis a prova de que
se pontoe conquanto haja sobre a duração da primeira a maioria de nossos males é obra nossa e de que os te-
idade e sobre o número dos filhotesr outras regras, que ríamos evitado quase todos conservando a maneira de
não pertencem ao meu assunto. Entre os velhos, que viver simples, uniforme e solitária que nos era prescrita
agem e transpiram pouco, a necessidade de alimentos pela natureza. Se ela nos destinou a sermos sãos, quase
diminui com a faculdade de prover a ela; e, como a vida ouso assegurar que o estado de reflexão é um estado
selvagem afasta deles a gota e os reumatismos, e a velhi- contrário à natureza e que o homem que medita é um
ce é, de todos os males, o que os auxílios humanos me- animal depravado. Quando pensamos na boa constitui-
nos podem mitigar, extinguem-se por fim, sem que se ção dos selvagens, pelo menos daqueles que não perde-
perceba que deixam de viver, e quase sem eles mesmos mos com nossos licores fortes, quando sabemos que
o perceberem. quase não conheciam outras doenças além das feridas e
A respeito das doenças, não repetirei as vãs e falsas da velhice, somos levados a crer que traçaríamos facil-
críticas que faz contra a medicina a maioria das pessoas mente a história das doenças humanas seguindo a das
com saúde, mas perguntarei se há alguma observação sociedades civis. Pelo menos essa é a opinião de Platão,
sólida da qual se possa concluir que, nos países onde que julga, acerca de certos remédios empregados ou
essa arte é mais descuidada, a vida média do homem seja aprovados por Podalírio e Macáon no cerco de Tróia
mais curta do que naqueles onde é cultivada com o que diversas doenças, que esses remédios deveriam esti~
maior esmero. E como poderia isso ocorrer, se nos cau- mular, ainda não eram então conhecidas entre os ho-
samos um número maior de males do que o dos remé- mens. [E Celso conta que a dieta, hoje tão necessária, só
dios que a medicina nos pode fornecer? A extrema desi- foi inventada por Hipócrates.]*
gualdade na maneira de viver, o excesso de ociosidade Com tão poucas fontes de males, o homem no esta-
em uns, o excesso de trabalho em outros, a facilidade de do de natureza não tem, pois, muita necessidade de re-
exacerbar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensua- médios e, menos ainda, de médicos; a espécie humana
lidade, os alimentos muito requintados dos ricos, que os tampouco está, a esse respeito, em pior condição do que
nutrem com sucos constipativos e os deixam prostrados todas as outras, sendo fácil saber dos caçadores se em
de indigestões, a má alimentação dos pobres, da qual ca-
recem até no mais das vezes e cuja falta os leva a sobre- • Acréscimo da edição de 1782. (N. da T.)

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suas excursões encontram muitos animais enfermos. Vá- mem e o animal tratados igualmente pela natureza, todas
rios encontram animais que receberam ferimentos consi- as comodidades que o homem se concede a mais do que
deráveis muito bem cicatrizados, que tiveram ossos e aos animais que domestica são outras tantas causas par-
mesmo membros quebrados e consolidados sem outro ticulares que o fazem degenerar mais sensivelmente.
cirurgião além do tempo, sem outro regime além da sua Assim, não constituem tão grande infelicidade para
vida comum e que não deixam de estar perfeitamente esses primeiros homens nem, sobretudo, tão grande obs-
curados por não terem sido atormentados por incisões, táculo à sua conservação, a nudez, a falta de habitação e
envenenados por drogas nem extenuados por jejuns. En- a privação de todas essas inutilidades que acreditamos
fim, por mais útil que possa ser entre nós a medicina tão necessárias. Se não têm a pele peluda, dela não têm
bem administrada, é sempre certo que, se o selvagem nenhuma necessidade nos países quentes, e logo sabem,
doente, abandonado a si mesmo, nada tem por esperar nos países frios, apropriar-se da pele dos animais que
senão da natureza, em compensação, nada tem por te- venceram; se têm apenas dois pés para correr, têm dois
mer além de seu mal, o que amiúde torna sua situação braços para prover sua defesa e suas necessidades; seus
preferível à nossa. filhos talvez andem tarde e com dificuldade, mas as mães
Evitemos, portanto, confundir o homem selvagem os carregam com facilidade, vantagem que falta às outras
com os homens que temos diante dos olhos. A natureza espécies, em que a mãe, sendo perseguida, vê-se obriga-
trata todos os animais abandonados a seus cuidados com da a abandonar os filhotes, ou regular seus passos pelos
uma predileção que parece mostrar quão ciosa é desse deles. Enfim, a menos que se suponham esses concursos
direito. O cavalo, o gato, o touro e até o asno têm em singulares e fortuitos de circunstâncias de que falarei em
sua maioria uma estatura mais alta, todos uma constitui- seguida e que poderiam muito bem nunca ocorrer, fica
ção mais robusta, mais vigor, força e coragem quando claro, seja como for, que o primeiro que fez roupas ou
nas florestas do que em nossas casas; perdem a metade habitação deu a si mesmo coisas pouco necessárias, já
dessas vantagens ao se tornarem domésticos, e dir-se-ia que até então passara sem elas, e não se vê por que não
que todos os nossos cuidados para tratar bem e alimen- poderia suportar, homem feito, um gênero de vida que
tar esses animais só resultam em abastardá-los. Dá-se o suportava desde a infância.
mesmo com o próprio homem: ao tornar-se sociável e Sozinho, ocioso, e sempre próximo do perigo, o ho-
escravo, torna-se fraco, temeroso, rastejante, e sua ma- mem selvagem deve gostar de dormir e ter o sono leve
neira de viver, indolente e efeminada, acaba por debili- como o dos animais que, pensando pouco, dormem, por
tar-lhe ao mesmo tempo a força e a coragem. Acrescen- assim dizer, todo o tempo em que não estão pensando.
temos que, entre as condições selvagem e doméstica, a Sendo a própria conservação quase o seu único cuidado,
diferença de homem para homem deve ser ainda maior suas faculdades mais exercitadas devem ser aquelas cujo
do que a de animal para animal, pois, tendo sido o ho- objetivo principal é o ataque e a defesa, seja para subju-

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gar sua presa, seja para evitar ser a de outro animal; pelo cheia das melhores carnes e um gato sobre pilhas de fru-
contrário, os órgãos que só se aperfeiçoam pela indolên- tas ou de grãos, conquanto ambos pudessem muito bem
cia e pela sensualidade devem permanecer num estado nutrir-se com os alimentos que desdenham se tivessem a
de grosseria, que exclui nele qualquer espécie de delica- idéia de prová-los. Assim é que os homens dissolutos se
deza; e, estando seus sentidos divididos nesse ponto, ele entregam a excessos que lhes causam a febre e a morte,
terá o tato e o paladar de uma rudeza extrema e a visão, porque o espírito deprava os sentidos e a vontade ainda
a audição e o olfato da maior sutileza. Tal é o estado ani- fala quando a natureza se cala.
mal em geral e é também, segundo o relato dos viajan- Todo animal tem idéias, uma vez que tem sentidos;
tes, o da maioria dos povos selvagens. Assim, não é de chega a combinar suas idéias até certo ponto, e o homem,
espantar que os hotentotes do cabo da Boa Esperança a esse respeito, só difere do animal na intensidade; al-
descubram, a olho nu, navios em alto-mar, da mesma dis- guns filósofos afirmaram até que há mais diferença entre
tância que os holandeses com lunetas, nem que os sel- um homem e outro do que entre um homem e um ani-
vagens da América sintam o cheiro dos espanhóis no seu mal. Portanto, não é tanto o entendimento quanto a sua
encalço, como poderiam fazer os melhores cães, nem qualidade de agente livre que confere ao homem sua dis-
que todas essas nações bárbaras suportem sem dificulda- tinção específica entre os animais. A natureza manda em
de sua nudez, agucem seu paladar à força de pimenta e todos os animais, e o bicho obedece. O homem sente a
bebam licores europeus como água. mesma impressão, mas se reconhece livre para aquiescer
Considerei até aqui apenas o homem físico; tratemos ou para resistir, sendo sobretudo na consciência dessa
de olhá-lo agora pelo lado metafísico e moral. liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma,
Vejo em todo animal somente uma máquina enge- pois a física explica de certa maneira o mecanismo dos
nhosa, a quem a natureza deu sentidos para funcionar sentidos e a formação das idéias; mas, na faculdade de
sozinha e para garantir-se, até certo ponto, contra tudo querer, ou melhor, de escolher, e no sentimento dessa fa-
quanto tende a destruí-la ou a desarranjá-la. Percebo pre- culdade só se encontram atos puramente espirituais, dos
cisamente as mesmas coisas na máquina humana, com a quais nada se explica pelas leis da mecânica.
diferença de que a natureza faz tudo sozinha nas opera- Mas, ainda ql.le as dificuldades que envolvem todas
ções do animal, ao passo que o homem concorre para as essas questões deixassem algum ponto controverso so-
suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita bre essa diferença entre o homem e o animal, há outra
por instinto e o outro, por um ato de liberdade; é por qualidade muito específica que os distingue, e sobre a
isso que o animal não pode afastar-se da regra que lhe é qual não pode haver contestação: a faculdade de aper-
prescrita, mesmo quando lhe for vantajoso fazê-lo, e o feiçoar-se; faculdade essa que, com a ajuda das circuns-
homem afasta-se dela amiúde para seu prejuízo. Assim é tâncias desenvolve sucessivamente todas as outras, e
que uma pomba morreria de fome perto de uma bacia reside, 'entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo;

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ao passo que um animal é, ao cabo de alguns meses, o Digam o que disserem os moralistas, o entendimen-
que será por toda a sua vida, e sua espécie, ao cabo de to humano deve muito às paixões, que, segundo uma
mil anos, o que era no primeiro ano desses mil anos. Por opinião geral, lhe devem muito também: é pela sua ati-
que somente o homem é sujeito a tornar-se imbecil? Não vidade que nossa razão se aperfeiçoa; só buscamos co-
será porque volta assim ao seu estado primitivo e - en- nhecer por desejarmos usufruir, não sendo possível con-
quanto o bicho, que nada adquiriu e tampouco tem algo ceber por que aquele que não tivesse desejos nem temo-
a perder, continua com seu instinto - o homem, tornan- res se daria ao trabalho de raciocinar. As paixões, por
do a perder pela velhice ou por outros acidentes tudo o sua vez, originam-se de nossas necessidades, e seu pro-
que sua perfectibilidade o fizera adquirir, recai assim gresso em nossos conhecimentos, pois só se pode dese-
mais baixo do que o próprio bicho? Seria triste para nós jar ou temer as coisas conforme as idéias que se pode ter
sermos forçados a convir que essa faculdade distintiva, e delas, ou pelo mero impulso da natureza; e o homem
quase ilimitada, é a fonte de todas as infelicidades do selvagem, privado de qualquer tipo de luzes, só experi-
homem; que é ela que o tira, por força do tempo, dessa menta as paixões dessa última espécie; seus desejos não
condição originária em que ele passaria dias tranqüilos e
ultrapassam suas necessidades físicasi. Os únicos bens
inocentes; que é ela que, fazendo desabrochar com os
que conhece no universo são a alimentação, uma fêmea
séculos suas luzes e seus erros, seus vícios e suas virtu-
e o descanso; os únicos males que teme são a dor e a
des, torna-o com o tempo o tirano de si mesmo e da na-
fome; digo a dor, e não a morte, pois nunca o animal sa-
tureza8. Seria horrível sermos obrigados a louvar como
um ser benfazejo o primeiro a sugerir ao habitante das berá o que é morrer, e o conhecimento da morte e de
margens do Orinoco o uso daquelas tabuazinhas que ele seus terrores é uma das primeiras aquisições que o ho-
aplica nas têmporas dos filhos e que lhes asseguram mem fez ao distanciar-se da condição animal.
pelo menos uma parte de sua imbecilidade e de sua feli- Ser-me-ia fácil, se tal me fosse necessário, apoiar es-
cidade original. sa opinião nos fatos e mostrar que, em todas as nações
O homem selvagem, entregue pela natureza unica- do mundo, os progressos do espírito foram precisamente
mente ao instinto, ou melhor, compensado daquele que proporcionais às necessidades que os povos haviam
talvez lhe falte, por faculdades capazes primeiro de o reçebido na natureza, ou às quais as circunstâncias os ha-
substituírem e depois de elevá-lo muito acima do que viam sujeitado e, por conseguinte, às paixões, que os
era, começará, pois, pelas funções puramente animaish: levavam a prover tais necessidades. Mostraria no Egito as
perceber e sentir será seu primeiro estado, que lhe será artes nascendo e estendendo-se com os transbordamen-
comum com todos os animais. Querer e não querer, de- tos do Nilo; acompanharia seu progresso entre os gregos,
sejar e temer, serão as primeiras e quase as únicas ope- entre os quais as vemos germinar, crescer e elevar-se até
rações de sua alma até que novas circunstâncias nele o céu entre as areias e os rochedos da Ática, sem pode-
provoquem novos desenvolvimentos. rem lançar raízes nas margens férteis do Eurotas; obser-

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varia que em geral os povos do Norte são mais industrio- culos se terão talvez escoado antes que os homens esti-
sos do que os do Sul por terem menos condições de viver vessem aptos para ver outro fogo que não o do céu?
sem o ser, como se a natureza quisesse igualar as coisas, Quantos diferentes acasos não lhes foram necessários
dando aos espíritos a fertilidade que recusa à terra. para aprender os usos mais comuns desse elemento?
Mas, sem recorrer aos incertos testemunhos da his- Quantas vezes não o deixaram apagar antes de ter ad-
tória, quem não verá que tudo parece afastar do homem quirido a arte de reproduzi-lo? E quantas vezes talvez
selvagem a tentação e os meios de deixar de sê-lo? Sua cada um desses segredos não terá morrido com quem o
imaginação nada lhe descreve, seu coração nada lhe pe- descobrira? O que diremos nós da agricultura, arte que
de. Suas módicas necessidades encontram-se tão facil- requer tanto trabalho e previdência, que depende de
mente ao alcance da mão e ele está tão longe do grau de outras artes, que com toda evidência só é praticável nu-
conhecimentos necessários para desejar adquirir outros ma sociedade pelo menos iniciada e que não nos serve
maiores, que não pode ter nem previdência, nem curio- tanto para extrair da terra alimentos que ela forneceria
sidade. O espetáculo da natureza, à força de se lhe tor- bem sem isso como para forçá-la às preferências que são
nar familiar, torna-se-lhe indiferente. É sempre a mesma mais de nosso gosto? Suponhamos, porém, que os ho-
ordem, são sempre as mesmas revoluções; não tem o mens se houvessem multiplicado tanto que as produções
espírito de espantar-se com as maiores maravilhas, e não naturais já não bastassem para alimentá-los; suposição
é nele que se deve procurar a filosofia de que o homem que, diga-se de passagem, mostraria para a espécie hu-
necessita para saber observar uma vez o que tem visto mana uma grande vantagem nessa maneira de viver; su-
todos os dias. Sua alma, que nada agita, entrega-se ape- ponhamos que, sem forjas e sem oficinas, os instrumen-
nas ao sentimento de sua existência atual, sem nenhuma tos agrícolas houvessem caído do céu nas mãos dos sel-
idéia do futuro, por mais próximo que possa ser, e seus vagens; que esses homens houvessem vencido o ódio
projetos, limitados como as suas vistas, mal se estendem mortal que todos eles sentem por um trabalho contínuo;
ao fim do dia. Tal é ainda hoje o grau de previdência do que houvessem aprendido a prever de tão longe suas
caraíba: de manhã, vende seu colchão de algodão e, à necessidades, que houvessem adivinhado como se deve
noite, vem chorar para recomprá-lo, por não haver pre- cultivar a terra, semear as sementes e plantar as árvores;
visto que careceria dele para a noite seguinte. que houvessem descoberto a arte de moer o trigo e de
Quanto mais se medita sobre esse assunto, mais au- fermentar a uva; todas as coisas que lhes foi preciso
menta aos nossos olhos a distância das puras sensações aprender com os deuses por não se poder conceber como
aos conhecimentos simples; e é impossível conceber as teriam aprendido sozinhos; qual seria, depois disso, o
como um homem poderia ter, somente por suas forças, homem insensato o suficiente para atormentar-se na cul-
sem o auxílio da comunicação e sem o aguilhão da ne- tura de um campo que será despojado pelo primeiro a
cessidade, transposto tão grande intervalo. Quantos sé- chegar, homem ou bicho, indiferentemente, a quem con-

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vier tal colheita? E como cada qual poderá resolver-se a res, avaliaremos quantos milhares de séculos foram ne-
passar a vida num trabalho penoso, cujo prêmio está cessários para desenvolver sucessivamente no espírito
tanto mais certo de não recolher quanto mais necessário humano as operações de que era capaz.
este lhe será? Em suma, como tal situação poderá levar Que me seja permitido considerar por um instante
os homens a cultivar a terra, enquanto esta não for divi- os empecilhos para a origem das línguas. Poderia con-
dida entre eles, ou seja, enquanto o estado de natureza tentar-me em citar ou repetir aqui as pesquisas que o
não for suprimido? abade de Condillac* fez sobre esse assunto, as quais con-
Ainda que quiséssemos supor um homem selvagem firmam todas, plenamente, a minha opinião e talvez te-
tão hábil na arte de pensar como nos fazem supor os nham me dado a primeira idéia a esse respeito. Mas,
nossos filósofos; ainda que fizéssemos dele mesmo, a como a maneira pela qual esse filósofo resolve as dificul-
exemplo dos nossos, um filósofo, que descobrisse por si dades, que apresenta a si mesmo, sobre a origem dos si-
só as mais sublimes verdades, elaborasse, mediante se- nais instituídos mostram ter ele suposto o que eu coloco
qüências de raciocínios muito abstratos, máximas de jus- em discussão - a saber, uma espécie de sociedade já es-
tiça e de razão tiradas do amor à ordem em geral, ou da tabelecida entre os inventores da linguagem -, creio, vol-
vontade conhecida de seu Criador; em suma, ainda que tando às suas reflexões, dever juntar-lhes as minhas para
lhe supuséssemos no espírito o tanto de inteligência e de expor as mesmas dificuldades à luz que convém ao meu
luzes que deveria ter e que, na verdade, nele encontra- assunto. A primeira que se apresenta é imaginar como
mos de lentidão e de estupidez, que utilidade retiraria a elas puderam tornar-se necessárias, pois, não tendo os
espécie humana de toda essa metafísica, que não pode- homens nenhuma correspondência entre si, nem neces-
ria ser comunicada e pereceria com o indivíduo que a sidade alguma de tê-la, não se concebe a necessidade
houvesse inventado? Que progressos poderia fazer o dessa invenção, nem a sua possibilidade, se não foi in-
gênero humano disperso nos bosques entre os animais? dispensável. Poderia eu dizer, como muitos outros, que
E até que ponto poderiam aperfeiçoar-se e esclarecer-se as línguas nasceram no relacionamento doméstico dos
mutuamente homens que, não tendo domicílio fixo nem pais, das mães e dos filhos; porém, além de tal fato não
a menor necessidade um do outro, talvez se encontras- resolver as objeções, seria cometer o erro daqueles que,
sem apenas duas vezes na vida, sem se conhecer e sem raciocinando sobre o estado de natureza, transportam
se falar? para ele as idéias adquiridas na sociedade, vêem sempre
Se pensarmos quantas idéias devemos ao uso da pa- a família reunida numa mesma habitação, e seus mem-
lavra, como a gramática exercita e facilita as operações
do espírito; e se pensarmos nos esforços inconcebíveis e • Étienne de Condillac (1715-1780), amigo de Rousseau e de Diderot e
no tempo infinito que deve ter custado a primeira inven- chefe da escola sensualista, elaborou uma teoria sobre a origem das línguas.
ção das línguas; se juntarmos essas reflexões às anterio- (N. da T.)

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------------Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ _~ -------Discurso sobre a desigualdade _ _ _ _ _ __

bros conservando entre si uma união tão íntima e perma- puderam começar a estabelecer-se. Nova dificuldade,
nente como entre nós, em que tantos interesses comuns pior ainda do que a anterior, pois, se os homens precisa-
os reúnem; ao passo que, nesse estado primitivo, não ten- ram da palavra para aprender a pensar, precisaram muito
do nem casa, nem cabanas, nem propriedade de nenhu- mais ainda saber pensar para descobrir a arte da palavra;
ma espécie, cada qual se abrigava a esmo e em geral por e, mesmo que se compreendesse como os sons da voz
uma única noite; os machos e as fêmeas uniam-se fortui- foram tomados por intérpretes convencionais de nossas
tamente conforme o acaso, a ocasião e o desejo, sem idéias, ainda assim restaria saber quais puderam ser os
que a palavra fosse um intérprete muito necessário das próprios intérpretes dessa convenção para as idéias que,
coisas que tinham para se dizer, e separavam-se com a não tendo um objeto sensível, não podiam ser indicadas
mesma facilidadei. A mãe de início amamentava os filhos nem pelo gesto, nem pela voz. Assim, apenas se podem
por sua própria necessidade, depois, tendo o hábito lhos formar conjeturas passáveis sobre o nascimento dessa
tornado queridos, alimentava-os pela necessidade deles. arte de comunicar os pensamentos e de estabelecer uma
Logo que tinham forças para procurar seu alimento, eles relação entre os espíritos, arte sublime, que já está tão
não tardavam em deixar a própria mãe e, como quase longe de sua origem, mas que o filósofo ainda vê a uma
não havia outro meio de encontrar-se senão o de não se distância tão prodigiosa de sua perfeição que não há um
perder de vista, logo chegavam ao ponto de nem sequer homem bastante ousado para assegurar que um dia ele
se reconhecerem uns aos outros. Notai ainda que, tendo a atingiria, ainda que as revoluções que o tempo inevita-
o filho todas as suas necessidades para explicar e, por velmente traz fossem suspensas em seu favor, os precon-
conseguinte, mais coisas para dizer à mãe do que a mãe ceitos saíssem das academias ou se calassem diante de-
ao filho, ele é que deve contribuir mais para a invenção, las, e estas pudessem ocupar-se desse espinhoso assun-
e a língua que emprega deve ser em grande parte obra to durante séculos inteiros sem interrupção.
sua; isso multiplica a língua em tantas quantos indiví- A primeira linguagem do homem, a linguagem mais
duos houver para falá-las, ao que contribui também a universal, a mais enérgica e a única de que precisou
vida errante e vagabunda que não dá a nenhum idioma antes de ter de persuadir homens reunidos, é o grito da
o tempo de ganhar consistência; porque dizer que a mãe natureza. Como tal grito só era arrancado por uma espé-
dita ao filho as palavras que ele deverá utilizar para pe- cie de instinto nas ocasiões prementes, para implorar
dir-lhe isto ou aquilo mostra bem como se ensinam lín- socorro nos grandes perigos, ou consolo nos males vio-
guas já formadas, mas não explica como elas se formam. lentos, não era muito usado no curso comum da vida, no
Suponhamos essa primeira dificuldade vencida; trans- qual reinam sentimentos mais moderados. Quando as
ponhamos por um momento o imenso espaço que devia idéias dos homens começaram a estender-se e a multipli-
haver entre o puro estado de natureza e a necessidade car-se, e estabeleceu-se entre eles uma comunicação mais
das línguas, e procuremos, supondo-as necessárias1, como estreita, procuraram sinais mais numerosos e uma lin-

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guagem mais extensa; multiplicaram as inflexões da voz se desenvolvido com muita dificuldade, porque todo ad-
e lhe acrescentaram os gestos que, por sua natureza, são jetivo é uma palavra abstrata, e as abstrações são opera-
mais expressivos, e cujo sentido depende menos de uma ções penosas e pouco naturais.
determinação anterior. Expressavam portanto os objetos Cada objeto recebeu de início um nome particular,
visíveis e móveis mediante gestos, e os que feriam os ou- sem levar em consideração os gêneros e as espécies, que
vidos, mediante sons imitativos; mas, como o gesto qua- esses primeiros instituidores não estavam em condições
se que só indica os objetos presentes, ou fáceis de serem de distinguir; e todos os indivíduos se apresentaram iso-
descritos, e as ações visíveis, como não é de uso univer- lados a seu espírito, como estão no quadro da natureza.
sal, porquanto a obscuridade ou a interposição de um Se um carvalho se chamava A, outro carvalho se chama-
corpo o tornam inútil e, como ele mais exige a atenção va B, de modo que, quanto mais limitados eram os co-
do que a estimula, tiveram por fim a idéia de substituí-lo nhecimentos, mais extenso tornava-se o dicionário. A
pelas articulações da voz que, sem terem a mesma rela- confusão de toda essa nomenclatura não pôde ser resol-
ção com certas idéias, são mais apropriadas para repre- vida facilmente, pois para classificar os seres em deno-
sentar todas elas como sinais instituídos; substituição que minações comuns e genéricas, cumpria conhecer-lhes as
só pôde ocorrer com um consentimento comum e de propriedades e as diferenças; impunham-se observações
uma maneira bastante difícil de ser praticada por ho- e definições, ou seja, noções de história natural e de
mens cujos órgãos grosseiros ainda não tinham nenhum metafísica, muito mais do que os homens daquele tempo
exercício, e mais difícil ainda de ser concebida em si podiam ter.
mesma, já que esse acordo unânime teve de ser motiva- Aliás, as idéias gerais só podem introduzir-se no es-
do, e a palavra parece ter sido muito necessária para pírito com o auxílio das palavras, e o entendimento só as
estabelecer o uso da palavra. apreende por meio das proposições. Esta é uma das ra-
Deve-se julgar que as primeiras palavras utilizadas zões por que os animais não poderiam formar tais idéias
pelos homens tiveram em seu espírito um significado nem jamais adquirir a perfectibilidade que dependem
muito mais amplo do que têm aquelas empregadas nas delas. Quando um macaco vai sem hesitar de uma noz
línguas já formadas, e que, ignorando a divisão do dis- para outra, pensar-se-á que tenha a idéia geral dessa es-
curso em suas partes constitutivas, deram inicialmente a pécie de fruto e que compare seu arquétipo com esses
cada palavra o sentido de uma proposição inteira. Quan- dois indivíduos? Provavelmente não; mas a visão de uma
do começaram a distinguir o sujeito do atributo, e o ver- dessas nozes traz à sua memória as sensações que rece-
bo do substantivo, o que foi um grande esforço do espí- beu da outra, e seus olhos, de certa maneira modifica-
rito, os substantivos a princípio foram apenas outros tan- dos, anunciam ao seu paladar a modificação que vai re-
tos nomes próprios, o infinitivo foi o único tempo dos ceber. Qualquer idéia geral é puramente intelectual; por
verbos e, no tocante aos adjetivos, a noção só deve ter- pouco que a imaginação nela interfira, a idéia torna-se

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imediatamente particular. Tentai traçar a imagem de uma ter-se furtado a homens que só julgavam as coisas pelo
árvore em geral e jamais conseguireis; mesmo sem que- seu primeiro aspecto! Quanto às classes primitivas e às
rer, tereis de vê-la pequena ou grande, rala ou frondosa, noções mais gerais, é supérfluo acrescentar que também
clara ou escura e, se dependesse de vós só ver nela o elas devem ter-lhes escapado. Como, por exemplo, te-
que se encontra em todas as árvores, essa imagem já não riam eles imaginado ou entendido as palavras matéria,
se pareceria com uma árvore. Os seres puramente abs- espírito, substância, modo, figura, movimento, uma vez
tratos são vistos do mesmo modo, ou concebidos apenas que mesmo os nossos filósofos, que as utilizam há tanto
pelo discurso. Somente a definição do triângulo vos dá a tempo, têm grande dificuldade para entendê-las, e, sen-
do puramente metafísicas as idéias relacionadas com tais
verdadeira idéia dele: assim que figurardes um em vosso
palavras, não encontravam eles nenhum modelo delas
espírito, será um determinado triângulo e não outro, e
não podeis evitar deixar-lhe as linhas sensíveis ou o pla- na natureza?
Detenho-me nesses primeiros passos e suplico aos
no colorido. Logo, é mister enunciar proposições, é mis-
meus juízes que suspendam aqui sua leitura para consi-
ter falar para ter idéias gerais, pois, assim que a imagina- derar, baseando-se na invenção dos simples substantivos
ção se detém, o espírito só se desenvolve com o auxílio físicos, ou seja, na parte da língua mais fácil de descobrir,
do discurso. Portanto, se os primeiros inventores não pu- o caminho que lhe resta fazer para expressar todos os
deram dar nomes senão às idéias que já tinham, conclui- pensamentos dos homens, para adquirir uma forma
se que os primeiros substantivos jamais puderam ser se- constante, poder ser falada em público e influir na socie-
não nomes próprios. dade. Suplico-lhes que reflitam no tempo e nos conheci-
Mas quando, por meios que não concebo, nossos mentos que foram necessários para encontrar os núme-
novos gramáticos começaram a ampliar suas idéias e a rosm, as palavras abstratas, os aoristos e todos os tempos
generalizar suas palavras a ignorância dos inventores teve dos verbos, as partículas, a sintaxe, ligar as proposições,
de sujeitar esse método a limites muito estreitos; e, como os raciocínios e formar toda a lógica do discurso. Quanto
a princípio haviam multiplicado demais os nomes dos a mim assustado com dificuldades que se multiplicam e
indivíduos por não conhecerem os gêneros e as espé- conve~cido da impossibilidade quase demonstrada de
cies, estabeleceram depois muito poucas espécies e gê- que as línguas possam ter nascido e se estabelecido por
neros por não terem considerado os seres em todas as meios puramente humanos, deixo a quem quiser em-
suas diferenças. Para levar as divisões longe o suficiente, preendê-la a discussão do difícil problema de saber o
impor-se-iam mais experiência e luzes do que podiam que foi o mais necessário: a sociedade já constituída para
ter e mais investigações e trabalho do que queriam rea- a instituição das línguas, ou as línguas já inventadas para o
lizar. Ora, se mesmo hoje descobrem-se todos os dias estabelecimento da sociedade.
novas espécies que haviam escapado até agora a todas Sejam quais forem essas origens, vê-se pelo menos,
as nossas observações, pode-se imaginar quantas devem no pouco cuidado que teve a natureza em aproximar os

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homens por necessidades mútuas e em lhes facilitar o pelas paixões, e raciocinando sobre um estado diferente
uso da palavra, quão mal ela preparou a sociabilidade do seu. Foi por uma providência muito sábia que as fa-
deles e quão pouco de si mesma colocou em tudo quan- culdades potenciais do homem só puderam desenvol-
to eles fizeram para lhes estabelecer os vínculos. Com ver-se nas ocasiões de serem exercidas, a fim de que não
efeito, é impossível imaginar por que, nesse estado pri- lhe fossem supérfluas e onerosas antes do tempo nem
mitivo, um homem teria mais necessidade de outro ho- tardias e inúteis no momento de necessidade. Tinha ele
mem do que um macaco ou um lobo de seu semelhan- no mero instinto tudo quanto lhe era preciso para viver
te, ou, pressuposta tal necessidade, que motivo poderia no estado de natureza, numa razão cultivada, não tem
levar o outro a supri-la, ou mesmo, neste último caso, senão o que lhe é preciso para viver em sociedade.
como poderiam eles combinar as condições entre si. Sei Parece, a princípio, que os homens nesse estado,
que nos repetem sem cessar que nada teria sido tão mi- não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral,
serável como o homem nesse estado· e se for verdade nem deveres conhecidos, não poderiam ser bons nem
como creio tê-lo provado, que só depois' ' de muitos sécu-'
maus, e não tinham vícios nem virtudes, a menos que,
los ele poderia ter o desejo e a oportunidade de sair des- tomando essas palavras num sentido físico, chamemos
se estado, seria o caso de inculpar a natureza, e não vícios do indivíduo às qualidades que podem prejudi-
aquele que ela teria assim constituído. Mas, se bem en- car-lhe a própria conservação, e virtudes àquelas que po-
tendo o termo miserável, trata-se de uma palavra sem o
dem contribuir para ela; nesse caso, deveríamos chamar
menor sentido, ou que significa apenas uma privação
de mais virtuoso aquele que resistisse menos aos sim-
dolorosa e o sofrimento do corpo ou da alma. Ora, gos-
ples impulsos da natureza. Porém, sem nos afastarmos
taria muito que me explicassem qual pode ser o gênero
do sentido comum, é oportuno suspender o juízo que
de miséria de um ser livre cujo coração está em paz e o
poderíamos fazer de tal situação e desconfiarmos de
corpo com saúde. Pergunto qual delas, a vida civil ou
natural, é mais sujeita a tornar-se insuportável àqueles nossos juízos antecipados até que, com a balança na
que a usufruem. A nossa volta, quase que só vemos pes- mão, tenhamos examinado se há mais virtudes do que
soas que se queixam de sua existência, várias até que vícios entre os homens civilizados, ou se suas virtudes
dela se privam quando lhes é possível, e o conjunto das são mais proveitosas do que são funestos seus vícios, ou
leis divinas e humanas mal basta para deter tal desor- se o progresso de seus conhecimentos é uma compen-
dem. Pergunto se um dia ouviu-se dizer que um selva- sação suficiente dos males que se fazem mutuamente, à
gem em liberdade tenha somente pensado em queixar- medida que se vão instruindo sobre o bem que deve-
se da vida e em provocar a própria morte. Que se julgue, riam fazer uns aos outros, ou se não estariam, afinal de
pois, com menos orgulho de que lado está a verdadeira contas, numa situação mais feliz, de não ter nem mal
miséria. Nada, pelo contrário, seria tão miserável quanto por temer nem bem por esperar de ninguém, do que a
o homem selvagem ofuscado pelas luzes, atormentado de estarem submetidos a uma dependência universal e

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a de se obrigarem a receber tudo daqueles que não se to e dependente são duas suposições contraditórias no
obrigam a nada lhes dar. estado de natureza; o homem é fraco quando é depen-
Não vamos, sobretudo, concluir com Hobbes que, dente e é emancipado antes de ser robusto. Hobbes não
por não ter a menor idéia da bondade, o homem seja na- viu que a mesma causa que impede os selvagens de usar
turalmente mau; que seja vicioso por não conhecer a vir- da razão, como pretendem nossos jurisconsultos, impe-
tude; que sempre recuse aos seus semelhantes favores de-os ao mesmo tempo de abusar de suas faculdades,
que não crê dever-lhes; nem que, em virtude do direito, como ele mesmo pretende; de sorte que se poderia dizer
que se atribui com razão, às coisas de que necessita, que os selvagens não são maus justamente por não sabe-
imagine loucamente ser o único proprietário de todo o rem o que é serem bons, pois não é nem o desenvolvi-
universo. Hobbes viu muito bem o defeito de todas as mento das luzes, nem o freio da lei, mas sim a calma das
definições modernas do direito natural, mas as conse- paixões e a ignorância dos vícios que os impedem de
qüências que tira da sua mostram que a toma num sen- proceder mal: Tanto plus in illis proficit vitiorum ignora-
tido que não é menos falso. Raciocinando sobre os prin- tio, quam in bis cognitio virtutis*. Há, aliás, outro princí-
cípios que estabeleceu, esse autor deveria dizer que, sen- pio que Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado
do o estado de natureza aquele em que o cuidado com ao homem para amenizar, em certas circunstâncias, a fe-
a nossa conservação é menos prejudicial à conservação rocidade de seu amor-próprio ou o desejo de se conser-
alheia, esse estado era, conseqüentemente, o mais apro- var antes do nascimento desse amorn, tempera o ardor
priado para a paz e o mais conveniente ao gênero huma- que ele tem por seu bem-estar com uma repugnância ina-
no. Ele diz justamente o contrário, por ter introduzido ta em ver sofrer seu semelhante. Não creio ter de temer
impropriamente no cuidado com a conservação do ho- nenhuma contradição ao conceder ao homem a única
mem selvagem a necessidade de satisfazer uma imensa virtude natural que o detrator mais exaltado das virtudes
quantidade de paixões que são obra da sociedade e tor- humanas seria forçado a reconhecer. Falo da piedade,
naram necessárias as leis. O mau, diz ele, é uma criança disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a
robusta; resta saber se o homem selvagem é uma crian- tantos males quanto o somos; virtude tanto mais univer-
ça robusta. Mesmo que se concordasse com isso, o que sal e tanto mais útil ao homem por preceder nele o uso
concluiria ele? Que se esse homem, quando é robusto, de qualquer reflexão, e tão natural que os próprios bi-
fosse tão dependente dos outros como quando é fraco chos às vezes dão sinais perceptíveis dela. Sem falar da
não haveria um tipo de excessos que não praticasse; ba- ternura das mães por seus filhotes, e dos perigos que
teria na mãe quando ela demorasse muito para dar-lhe o enfrentam para protegê-los, observa-se todos os dias a
seio; estrangularia um de seus irmãos mais jovens quan- repugnância que sentem os cavalos em calcar aos pés
do este o incomodasse; morderia a perna do outro quando
este o contrariasse ou perturbasse. Entretanto, ser robus- • Citação de Justino, Histórias Il, 2. (N. da T.)

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um corpo vivo; um animal não passa sem inquietação ao nhuma tragédia, temendo que o vissem gemer com An-
lado de um animal morto de sua espécie; há até alguns drômeda e Príamo, enquanto ouvia sem emoção os gri-
que lhes dão uma espécie de sepultura, e os tristes mugi- tos de tantos cidadãos que, todos os dias, eram degola-
dos do gado ao entrar num matadouro anunciam a dos por sua ordem.
impressão que recebe do horrível espetáculo que o im-
pressiona. Vê-se com prazer o autor da Fábula das abe- Mollissima corda
lhas*, forçado a reconhecer o homem como um ser com- Humane generi dare se natura fatetur,
passivo e sensível, sair, no exemplo que dá, de seu esti- Quae lacrymas dedit.]*
lo frio e sutil para nos oferecer a patética imagem de um
homem aprisionado que avista do lado de fora um ani- Mandeville percebeu bem que, com toda a sua mo-
mal feroz arrancando uma criança do seio da mãe, par- ral, os homens nunca teriam passado de monstros se a
tindo-lhe com os dentes assassinos os fracos membros e natureza não lhes houvesse concedido a piedade para o
estraçalhando com as unhas as entranhas palpitantes da apoio da razão; não viu, porém, que somente dessa qua-
criança. Que tremenda agitação não sente essa testemu- lidade decorrem todas as virtudes sociais que quer con-
nha de um acontecimento pelo qual não tem nenhum testar nos homens. Com efeito, o que são a generosida-
interesse pessoal? Que angústias não sofre ao ver aquilo, de, a clemência, a humanidade, senão a piedade aplica-
por não poder prestar nenhum socorro à mãe desfaleci- da aos fracos, aos culpados, ou à espécie humana em
da nem à criança agonizante? geral? Mesmo a benevolência e a amizade são, em suma,
Tal é o movimento puro da natureza, anterior a produções de uma piedade constante, fixada num obje-
qualquer reflexão; tal é a força da piedade natural, que to particular, pois desejar que alguém não sofra será dife-
os costumes mais depravados ainda têm dificuldade de rente de desejar que seja feliz? Ainda que fosse verdade
destruir, pois que vemos todos os dias, em nossos espe- que a comiseração não passa de um sentimento que nos
táculos, enternecer-se e chorar-se pelas desventuras de coloca no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e
um desafortunado, aquele mesmo que, se estivesse no vivo no homem selvagem, desenvolvido, mas fraco no
lugar do tirano, agravaria ainda mais os tormentos de homem civil, o que importaria essa idéia para a verdade
seu inimigo. [Como o sanguinário Sila, tão sensível aos do que digo, senão para dar-lhe mais força? Com efeito,
males que não havia causado, ou aquele Alexandre de a comiseração será tanto mais enérgica quanto mais inti-
Feras, que não ousava assistir à representação de ne- mamente o animal espectador se identificar com o ani-
mal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação deve
• Bernard de Mandeville, escritor e médico inglês nascido na Holanda ter sido infinitamente mais estreita no estado de nature-
em 1670 e morto em 1733 na Inglaterra, é o autor da Fábula das abelhas, na
qual sustenta que os vícios individuais são mais proveitosos do que as virtu-
des para a sociedade. (N. da T.) • Juvenal, Sátira XV, v. 131. Acréscimo da edição de 1782. (N. da T.)

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za do que no estado de raciocínio. É a razão que engen- ze ao próximo o que queres que te façam, inspira a todos
dra o amor-próprio e é a reflexão que o fortalece; é ela os homens esta outra máxima de bondade natural, bem
que faz o homem ensimesmar-se; é ela que o separa de menos perfeita, porém talvez mais útil do que a prece-
tudo quanto o incomoda e o aflige. É a filosofia que o dente: Alcança teu bem com o menor mal possível para o
isola; é por sua causa que ele diz em segredo, ao ver um próximo. É, em suma, nesse sentimento natural, mais do
homem que sofre: "Perece, se quiseres, que eu estou em que nos argumentos sutis, que se deve procurar a causa
segurança." Somente os perigos que abarcam a socieda- da repugnância que todo homem experimentaria ao
de inteira perturbam o sono tranqüilo do filósofo e o fazer o mal, mesmo independentemente das máximas da
arrancam do leito. Pode-se impunemente degolar seu se- educação. Conquanto possa pertencer a Sócrates e aos
melhante embaixo da sua janela, basta-lhe pôr as mãos espíritos de sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há
sobre os ouvidos e argumentar um pouco consigo mes- muito tempo o gênero humano já não existiria, se sua
mo para impedir a natureza, que nele se revolta, de iden- conservação só dependesse dos raciocínios daqueles
tificar-se com aquele que assassinam. O homem selva- que o compõem.
gem não tem esse admirável talento e, por falta de sabe- Com paixões tão pouco ativas e um freio tão salutar,
doria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se estouvada- os homens, antes selvagens do que maus e mais preocu-
mente ao primeiro sentimento de humanidade. Nas pados em proteger-se do mal que podiam receber do
rebeliões, nas brigas das ruas, o populacho se reúne, o que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam sujeitos a
homem prudente se afasta; é a canalha, são as mulheres rixas muito perigosas; como não tinham entre si nenhum
dos mercados que separam os combatentes e impedem tipo de relações e não conheciam, conseqüentemente,
as pessoas de bem de degolarem-se reciprocamente. nem a vaidade, nem a consideração, nem a estima, nem
Portanto, é certo que a piedade é um sentimento o desprezo; como não tinham a menor noção do teu e
natural que, moderando em cada indivíduo a atividade do meu, nem nenhuma verdadeira idéia da justiça e
do amor de si mesmo, concorre para a conservação mú- olhavam as violências que podiam sofrer como um mal
tua de toda a espécie. É ela que nos leva a socorrer, sem fácil de reparar, e não como uma injúria que se deve pu-
refletir, aqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado nir, e nem sequer pensavam em vingança a não ser ma-
de natureza, substitui leis, costumes e virtude, com a quinalmente e no momento, do mesmo modo que o cão
vantagem de ninguém ficar tentado a desobedecer-lhe a morde a pedra que lhe atiram - suas disputas raramente
doce voz; é ela que tolherá qualquer selvagem robusto teriam conseqüências sangrentas, se não tivessem moti-
de tirar de uma criança fraca, ou de um velho enfermo, vo mais palpável do que o alimento. Vejo porém um
sua subsistência adquirida a duras penas, se ele mesmo mais perigoso, de que me falta falar.
espera poder encontrar a sua em outro lugar; é ela que, Entre as paixões que agitam o coração do homem,
em vez desta máxima sublime da justiça ponderada: Fa- existe uma ardente, impetuosa, que torna um sexo ne-

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cessário ao outro, paixão terrível que enfrenta todos os mentos de admiração e de amor que, mesmo sem que o
perigos, derruba todos os obstáculos e que, em seus fu- percebamos, nascem da aplicação dessas idéias. Ele ou-
rores, parece própria para destruir o gênero humano que ve unicamente o temperamento que recebeu da nature-
é destinada a conservar. O que se tornarão os homens, za, e não o gosto que não pôde adquirir, e qualquer mu-
às voltas com essa gana desenfreada e brutal, sem pudor, lher lhe serve.
sem comedimento e todos os dias disputando entre si Limitados somente ao aspecto físico do amor, e bas-
seus amores à custa de seu sangue? tante felizes para ignorar essas preferências que lhes
Cumpre convir, primeiramente, que, quanto mais exacerbam o sentimento e lhes aumentam as dificulda-
violentas são as paixões, mais necessárias são as leis para des os homens devem sentir com menos freqüência e
contê-las; porém, não só as desordens e os crimes que '
menos intensidade os ardores do temperamento e, por
estas causam todos os dias entre nós mostram bem a in- conseguinte, ter entre si disputas mais raras e menos
suficiência das leis a esse respeito, mas também seria cruéis. A imaginação, que provoca tantos estragos entre
bom examinar se essas desordens não nasceram com as nós, não fala a corações selvagens; cada qual aguarda
próprias leis, porque então, ainda que estas fossem ca- calmamente o impulso da natureza, entrega-se a ele sem
pazes de reprimi-las, o menos que se deveria exigir é que escolha, com mais prazer do que furor, e, satisfeita a
detivessem um mal que não existiria sem elas. necessidade, extingue-se todo o desejo.
Comecemos por distinguir o moral do físico no sen- É portanto incontestável que o próprio amor, assim
timento amoroso. O físico é esse desejo geral que leva como todas as outras paixões, só na sociedade adquiriu
um sexo a unir-se ao outro; o moral é o que determina esse ardor impetuoso que tantas vezes o torna funesto
tal desejo e o fixa exclusivamente num único objeto, ou aos homens, e que é ainda mais ridículo representar os
que, pelo menos, lhe propicia um maior grau de energia selvagens como que se degolando mutuamente sem tré-
para esse objeto preferido. Ora, é fácil ver que a moral guas para saciar sua brutalidade por tal opinião ser dire-
do amor é um sentimento factício, nascido do convívio tamente contrária à experiência, e por serem os caraíbas,
na sociedade, e celebrado pelas mulheres com muita ha- dentre todos os povos existentes, o que até agora menos
bilidade e cuidado a fim de estabelecerem seu império e se distánciou do estado de natureza, justamente os mais
tornar dominante o sexo que deveria obedecer. Sendo tranqüilos em seus amores e os menos sujeitos ao ciúme,
esse sentimento fundamentado em certas noções do mé- conquanto vivam num clima abrasador que sempre pa-
rito ou da beleza que um selvagem é incapaz de ter, e rece imprimir maior atividade a essas paixões.
em comparações que ele é incapaz de fazer, deve ser No tocante às induções que se poderiam tirar, nas
quase nulo para ele. Porque, como seu espírito não várias espécies de animais, dos combates dos machos que
pôde formar idéias abstratas de regularidade e de pro- sempre ensangüentam nossos quintais ou que, na prima-
porção, seu coração também não é suscetível dos senti- vera, fazem ressoar nossas florestas com seus gritos ao

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disputarem as fêmeas, cumpre começar por excluir todas duelos, assassínios e coisas piores, em que o dever de
as espécies em que a natureza estabeleceu claramente, uma fidelidade eterna só serve para provocar adultérios
no poder relativo dos sexos, relações diferentes das nos- e mesmo as leis da continência e da honra aumentam
sas; assim, as brigas dos galos não constituem uma indu- necessariamente a devassidão e multiplicam os abortos.
ção para a espécie humana. Nas espécies em que a pro- Concluamos que, errando pelas florestas, sem enge-
porção é mais bem observada, esses combates só podem nho, sem a palavra, sem domicílio, sem guerra e sem
ter como causas a raridade das fêmeas em comparação vínculos, sem a menor necessidade de seus semelhantes
'
ao número dos machos, ou os intervalos exclusivos du- assim como sem nenhum desejo de prejudicá-los, talvez
rante os quais a fêmea recusa constantemente a aproxi- até sem jamais reconhecer algum deles individualmente,
mação do macho, o que equivale à primeira causa, pois, o homem selvagem, sujeito a poucas paixões e bastan-
se cada fêmea tolera o macho só durante dois meses por do-se a si mesmo, tinha apenas os sentimentos e as luzes
ano, é como se o número de fêmeas fosse menor do que próprias desse estado, sentia apenas suas verdadeiras
cinco sextos. Ora, nenhum desses dois casos é aplicável necessidades, só olhava o que acreditava ter interesse de
à espécie humana, na qual o número das fêmeas ultra- ver e sua inteligência não fazia mais progressos do que
passa geralmente o dos machos e na qual nunca se ob- sua vaidade. Se porventura fazia alguma descoberta, não
servou, mesmo entre os selvagens, terem as fêmeas, podia comunicá-la, pois nem sequer os filhos reconhe-
como as de outras espécies, períodos de cio e de exclu- cia. A arte perecia com o inventor; não havia educação
são. Ademais, entre vários desses animais, como toda a nem progresso, as gerações se multiplicavam inutilmen-
espécie entra ao mesmo tempo em efervescência, chega te e, partindo cada uma sempre do mesmo ponto, os
um terrível momento de ardor geral, de tumulto, de séculos escoavam-se em toda a grosseria das primeiras
desordem e de combate, momento que não ocorre entre épocas, a espécie já estava velha e o homem continuava
a espécie humana, em que o amor jamais é periódico. a ser sempre criança.
Logo, não se pode concluir dos combates de certos ani- Se me estendi tanto sobre a suposição dessa condi-
mais pela posse das fêmeas que o mesmo sucederia ao ção primitiva, foi porque, tendo de destruir antigos erros
homem no estado de natureza; e ainda que se pudesse e preconceitos inveterados, achei que devia escavar até
tirar essa conclusão, como essas dissensões não des- a raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de na-
troem as outras espécies, deve-se pensar ao menos que tureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe
não seriam mais funestas à nossa, e é muito evidente que de ter nesse estado tanta realidade e influência como
lhe causariam ainda menos estrago do que causam na pretendem nossos escritores.
sociedade, sobretudo nos países em que, sendo os cos- Com efeito, é fácil ver que, entre as diferenças que
tumes ainda levados em certa conta, o ciúme dos aman- distinguem os homens, passam por naturais muitas que
tes e a vingança dos maridos provocam todos os dias são unicamente obra do hábito e dos diversos gêneros

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- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade _ _ _ _ _ __

de vida que os homens adotam na sociedade. Assim, um dos os caprichos deles. Aí está, precisamente, o que ob-
temperamento robusto ou delicado, a força e a fraqueza servo entre nós, mas não vejo como se poderia dizer isso
que daí decorrem, provêm amiúde mais da maneira rude dos homens selvagens, a quem seria mesmo muito difí-
ou efeminada pela qual se foi educado do que da cons- cil explicar o que é servidão e dominação. Um homem
tituição primitiva do corpo. Dá-se o mesmo com as for- bem poderá apoderar-se dos frutos que outro colheu, da
ças do espírito; e a educação não só introduz diferença caça que matou, do antro que lhe servia de refúgio; mas
entre os espíritos cultos e aqueles que não o são, mas como conseguirá ele fazer-se obedecer, e quais poderão
também aumenta a que existe entre os primeiros em pro- ser as cadeias da dependência entre homens que nada
porção da cultura, pois, quando um gigante e um anão possuem? Se me expulsam de uma árvore, o único in-
caminham na mesma estrada, cada passo que um e outro conveniente será ir para outra; se me atormentam num
derem propiciará uma nova vantagem ao gigante. Ora, lugar, o que me impedirá de ir para outro? E se surgir um
se compararmos a prodigiosa diversidade de educações homem com uma força bastante superior à minha e,
e de gêneros de vida que reina nas diferentes ordens do além do mais, bastante depravado, preguiçoso e feroz
estado civil com a simplicidade e a uniformidade da vida para forçar-me a prover a sua subsistência enquanto per-
animal e selvagem, em que todos se nutrem com os mes- manece ocioso? Ele terá de resolver-se a não me perder
mos alimentos, vivem da mesma maneira e fazem exata- de vista um só instante, a manter-me amarrado com mui-
mente as mesmas coisas, compreenderemos quanto deve tíssimo cuidado durante seu sono, temendo que eu esca-
ser menor a diferença de homem para homem no estado pe ou o mate, ou seja, será obrigado a expor-se volunta-
de natureza do que no de sociedade e quanto deve ser riamente a um trabalho muito maior do que aquele que
aumentada a desigualdade natural na espécie humana quer evitar e do que aquele que me impõe. Depois de
pela desigualdade de instituição. tudo isso, e se sua vigilância esmorecer um momento? Se
Porém, ainda que a natureza revelasse na distribui- um ruído imprevisto o fizer virar a cabeça? Dou vinte
ção de seus dons tantas preferências como pretendem, passos pela floresta, meus grilhões são rompidos, e ele
que vantagens delas tirariam os mais favorecidos em pre- não tornará a me ver nunca mais em sua vida.
juízo dos demais, num estado de coisas que não admiti- Sem prolongar inutilmente esses pormenores, cada
ria quase nenhum tipo de relação entre eles? Quando qual deve ver que, sendo os vínculos da servidão forma-
não há amor, de que servirá a beleza? De que servirá o dos somente da dependência mútua dos homens e das
espírito a pessoas que não falam, e a astúcia aos que não necessidades recíprocas que os unem, é impossível sub-
têm negócios? Ouço sempre repetir que os mais fortes jugar um homem sem colocá-lo antes na situação de não
oprimirão os fracos, mas é preciso que me expliquem o poder dispensar o outro, situação essa que, inexistente
que querem dizer com a palavra opressão. Uns domina- no estado de natureza, nele deixa cada qual livre do jugo
rão com violência, os outros gemerão subjugados a to- e torna vã a lei do mais forte.

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- - - - - -----Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade _ _ _ __

Depois de haver provado que a desigualdade é ape- sem interrupção; sobre a impossibilidade de, por um la-
nas perceptível no estado de natureza, e que nele sua do, destruirmos certas hipóteses se, pelo outro, não esti-
influência é quase nula, resta-me mostrar sua origem e vermos em condições de conferir-lhes o grau de certeza
seus progressos nos desenvolvimentos sucessivos do es- dos fatos; sobre a razão por que, sendo dois fatos consi-
pírito humano. Depois de haver mostrado que a perfec- derados reais e devendo ser ligados por uma seqüência
tibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades que de fatos intermediários, desconhecidos ou olhados como
o homem natural recebera potencialmente nunca pode- tais, cabe à história, quando a temos, fornecer os fatos
riam desenvolver-se por si sós, que para tanto necessita- que os ligam, em sua falta, cabe à filosofia determinar os
vam do concurso fortuito de várias causas estranhas, que fatos semelhantes que os podem ligar; enfim, sobre ara-
poderiam jamais nascer, e sem as quais ele teria perma- zão por que, em matéria de acontecimentos, a similitude
necido eternamente em sua condição primitiva, resta-me reduz os fatos a um número de classes diferentes muito
considerar e relacionar os diferentes acasos que pude- menor do que se imagina. Basta-me oferecer esses obje-
ram aperfeiçoar a razão humana ao deteriorar a espécie, tos à consideração de meus juízes; basta-me tê-lo feito
tornar mau um ser ao torná-lo sociável e, de uma época de um modo que os leitores comuns não tivessem neces-
tão recuada, trazer afinal o homem e o mundo ao ponto sidade de considerá-los.
em que os vemos.
Confesso que, como os acontecimentos que tenho
de descrever podem ter sucedido de várias maneiras, só
por conjeturas posso determinar-me pela escolha; mas,
além de essas conjeturas se tornarem razões quando são
as mais prováveis que se possam tirar da natureza das
coisas e os únicos meios com que se possam contar para
descobrir a verdade, as conseqüências que quero dedu-
zir das minhas nem por isso serão conjeturais, uma vez
que, sobre os princípios que acabo de estabelecer, seria
impossível formar qualquer outro sistema que não me
fornecesse os mesmos resultados e do qual eu não pu-
desse tirar as mesmas conclusões.
Isso me dispensará de estender minhas reflexões so-
bre a maneira pela qual o lapso de tempo compensa a
pouca verossimilhança dos acontecimentos; sobre o sur-
preendente poder das causas insignificantes quando agem

200 201
Segunda Parte

O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-


se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o su-
ficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios,
quantas misérias e horrores não teria poupado ao gêne-
ro humano aquele que, arrancando as estacas ou en-
chendo o fosso, houvesse gritado aos seus semelhantes:
"Evitai ouvir esse impostor. Estareis perdidos se esque-
cerdes que os frutos são de todos e que a terra não é de
ninguém!" Porém, ao que tudo indica, então as coisas já
haviam chegado ao ponto de não mais poder permane-
cer como eram, pois essa idéia de propriedade, depen-
dente de muitas idéias anteriores que só puderam nascer
sucessivamente, não se formou de uma só vez no espíri-
to humano. Foi necessário fazer-se muitos progressos, ad-
quirir-se muito engenho e luzes, transmiti-los e aumentá-
los de século em século, antes de se chegar a esse der-
radeiro limite do estado de natureza. Retomemos, pois,
as coisas de mais longe e tratemos de reunir, num único
ponto de vista, essa lenta sucessão de acontecimentos e
de conhecimentos em sua ordem mais natural.

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·---------Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ ----~Discurso sobre a desigualdade

O primeiro sentimento do homem foi o de sua exis- suas maneiras de viver. Anos estéreis, invernos longos e
tência, seu primeiro cuidado, o de sua conservação. As rudes, verões escaldantes, que tudo consomem, exigiram
produções da terra lhe forneciam todos os socorros deles um novo engenho. Ao longo do mar e dos rios,
necessários, o instinto levou-o a utilizá-los. Como a fome inventaram a linha e o anzol e tornaram-se pescadores e
e outros apetites o faziam experimentar sucessivamente ictiófagos. Nas florestas, construíram arcos e flechas e
diversas maneiras de existir, houve uma que o convidou tornaram-se caçadores e guerreiros. Nos países frios, co-
a perpetuar sua espécie; e essa inclinação cega, despro- briram-se de peles dos animais que haviam matado. O
vida de qualquer sentimento do coração, não produzia trovão, um vulcão, ou algum feliz acaso, fez que conhe-
mais que um ato puramente animal. Satisfeita a necessi- cessem o fogo, novo recurso contra o rigor do inverno:
dade, os dois sexos já não se reconheciam e o próprio aprenderam a conservar esse elemento, depois a repro-
filho, assim que conseguia viver sem a mãe, nada mais duzi-lo e, enfim, a preparar nele as carnes que antes de-
representava para ela. voravam cruas.
Tal foi a condição do homem nascente; tal foi a vida Essa comparação reiterada dos diversos seres com
de um animal limitado inicialmente às puras sensações e ele mesmo e de uns com os outros gerou naturalmente
que, aproveitando apenas os dons que lhe oferecia a na- no espírito do homem as percepções de certas relações.
tureza, estava longe de pensar em extrair-lhe alguma As relações que expressamos pelas palavras grande,
coisa. Mas logo se apresentaram dificuldades e foi preci- pequeno, forte, fraco, rápido, lento, temeroso, ousado e
so aprender a vencê-las: a altura das árvores que o impe- outras idéias parecidas, comparadas quando necessário
dia de alcançar-lhe os frutos, a concorrência dos animais e quase sem pensar, acabaram por produzir-lhe uma
que procuravam alimentar-se deles, a ferocidade daque- certa espécie de reflexão, ou melhor, uma prudência ma-
les que lhe atacavam a própria vida, tudo o obrigou a quinal que lhe indicava as precauções mais necessárias à
aplicar-se aos exercícios do corpo; teve de ficar ágil, sua segurança.
veloz na corrida e vigoroso no combate. As armas natu- As novas luzes, que resultaram desse desenvolvi-
rais, que são os galhos de árvore e as pedras, logo se en- mento, aumentaram-lhe a superioridade sobre os outros
contraram em sua mão. Aprendeu a superar os obstácu- animais ao torná-lo ciente dela. Exercitou-se em prepa-
los da natureza, a combater quando necessário os outros rar-lhes armadilhas, ludibriou-os de mil maneiras e, em-
animais, a disputar sua subsistência com os próprios ho- bora muitos o superassem em força no combate, ou em
mens, ou a compensar-se do que tinha de ceder ao mais velocidade na corrida, daqueles que podiam servir-lhe
forte. ou prejudicá-lo, tornou-se com o tempo o senhor de
À medida que aumentou o gênero humano, as labu- alguns e o flagelo dos outros. Foi assim que o primeiro
tas multiplicaram-se com os homens. A diferença dos ter- olhar que dirigiu a si mesmo produziu-lhe o primeiro mo-
renos, dos climas, das estações forçou-os a incluí-la em vimento de orgulho; foi assim que, mal sabendo ainda

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distinguir as categorias, e contemplando-se como o pri- da vantagem de cumpri-los, mas somente o quanto o
meiro de sua espécie, preparava-se de longe para pre- poderia exigir o interesse presente e palpável, pois a
tender-se o primeiro como indivíduo. previdência nada representava para eles e, longe de
Embora seus semelhantes não fossem para ele o que ocupar-se de um futuro distante, não pensavam sequer
são para nós, e não tivesse muito mais trato com eles do no dia seguinte. Quando se tratava de pegar um cervo,
que com os outros animais, não foram esquecidos em cada qual bem percebia que para tanto deveria perma-
suas observações. As conformidades que o tempo veio a necer fielmente em seu posto; porém, se uma lebre vies-
fazê-lo perceber entre eles, sua fêmea e ele próprio, fize- se a passar ao alcance de um deles, não há dúvida de
ram-no conjeturar as que não percebia e, vendo que que ele a perseguiria sem escrúpulos e que, tendo atin-
todos se comportavam como teria ele feito em iguais cir- gido a sua presa, muito pouco se lhe dava faltar a dos
cunstâncias, concluiu que a maneira de pensar e de sen- companheiros.
tir deles era inteiramente conforme à sua; e essa impor- É fácil compreender que tal relacionamento não exi-
tante verdade, bem estabelecida em seu espírito, fê-lo gia uma linguagem muito mais refinada do que a das
seguir, por um pressentimento mais seguro e mais rápi- gralhas ou dos macacos, que se agrupam quase do mes-
do do que a dialética, as melhores regras de conduta que, mo modo. Gritos inarticulados, muitos gestos e alguns
para seu proveito e segurança, lhe convinha manter para ruídos imitativos devem ter composto por muito tempo
com eles. a língua universal; juntando-se-lhes, em cada região,
Instruído pela experiência que o amor do bem-estar alguns sons articulados e convencionais cuja instituição,
é o único móbil das ações humanas, encontrou-se em como já disse, não é muito fácil de explicar, obtiveram-
condições de distinguir as raras ocasiões em que o inte- se línguas particulares, mas grosseiras, imperfeitas e
resse comum devia fazer com que contasse com a assis- quase iguais às que ainda hoje possuem diversas nações
tência de seus semelhantes, e aquelas, mais raras ainda, selvagens. Percorro como uma flecha multidões de sécu-
em que a concorrência devia fazer com que desconfias- los, forçado pelo tempo que escoa, pela abundância das
se deles. No primeiro caso, unia-se com eles em bando, coisas que tenho que dizer e pelo progresso quase im-
ou quando muito em alguma espécie de associação livre perceptível desses primórdios, pois, quanto mais lentos
que não obrigava ninguém e não durava mais que a em se suceder eram os acontecimentos, mais depressa
necessidade passageira que a formara. No segundo, cada são descritos.
qual procurava obter suas vantagens, quer abertamente Esses primeiros progressos habilitaram afinal o ho-
à força, se acreditasse possuí-la, quer por habilidade e mem a obter outros mais rápidos. Quanto mais se escla-
sutileza, caso se sentisse mais fraco. recia o espírito, mais se aperfeiçoava o engenho. Logo,
Eis como puderam os homens adquirir insensivel- deixando de adormecer embaixo da primeira árvore, ou
mente certa idéia grosseira dos compromissos mútuos e de recolher-se a cavernas, descobriram alguns tipos de

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- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade------~

machados de pedras duras e cortantes, que serviram para apto para combater os animais selvagens, em ~o~pensa­
cortar madeira, escavar a terra e fazer choupanas de ra- ção foi mais fácil reunirem-se para lhes res1st1rem em
magens, que depois tiveram a idéia de revestir de argila comum.
e lama. Essa foi a época de uma primeira revolução que Nesse novo estado, tendo uma vida simples e solitá-
formou o estabelecimento e a distinção das famílias e que ria necessidades muito limitadas e os instrumentos que
introduziu uma espécie de propriedade, da qual nasce- ha~iam inventado para satisfazê-las, os homens, desfru-
ram talvez muitas brigas e combates. No entanto, como tando um grande lazer, empregaram-no para obter vários
os mais fortes foram provavelmente os primeiros a fazer tipos de comodidades desconhecidas de seus pais; e foi
habitações que se sentiam capazes de defender, é de se esse o primeiro jugo que impensadamente se impuseram
crer que os fracos julgaram mais rápido e mais seguro e a primeira fonte de males que prepararam para seus
imitá-los do que tentar desalojá-los; e, quanto àqueles descendentes, pois, além de continuarem assim a enfra-
que já possuíam cabanas, nenhum deles deve ter procu- quecer 0 corpo e o espírito, ao se habituarem com essas
rado apropriar-se daquela do vizinho, não tanto por ela comodidades, estas perderam quase todo o atrativo e ao
não lhe pertencer, mas por lhe ser inútil e por não poder mesmo tempo degeneraram em verdadeiras necessida-
apoderar-se dela sem expor-se a um combate violento des. Assim, a privação delas tornou-se mais cruel do que
com a família que a ocupava. doce era a sua posse, e sentiam-se infelizes por perdê-
Os primeiros desenvolvimentos do coração decorre- las, sem serem felizes por possuí-las.
ram de uma situação nova que reunia numa habitação Entrevemos aqui um pouco melhor como o uso da
comum os maridos e as mulheres, os pais e os filhos. O palavra se estabelece ou se aperfeiçoa impercept~vel­
hábito de viver junto fez nascer os mais doces sentimen- mente no seio de cada família e podemos ainda conJetu-
tos porventura conhecidos pelos homens, o amor conju- rar como diversas causas particulares puderam estender
gal e o amor paterno. Cada família tornou-se uma pe- a linguagem e acelerar-lhe o progresso, tornando-a mais
quena sociedade, ainda mais unida por serem o apego necessária. Grandes inundações ou tremores de terra cer-
recíproco e a liberdade os seus únicos vínculos; foi en- caram de águas ou de precipícios algumas terras habita-
tão que se estabeleceu a primeira diferença na maneira das; revoluções do globo separaram e cortaram em ilhas
de viver dos dois sexos, que até então tinham apenas porções do continente. Concebe-se que, entre homens
uma. As mulheres tornaram-se mais sedentárias e acostu- assim aproximados e forçados a viverem juntos, deve ter
maram-se a tomar conta da cabana e dos filhos, enquan- se formado um idioma comum, mais depressa do que
to o homem ia buscar a subsistência comum. Os dois entre aqueles que perambulavam livremente pelas fl~­
sexos começaram assim, com uma vida um pouco mais restas da terra firme. Assim, é muito possível que, depms
indolente, a perder um tanto de sua ferocidade e de seu de suas primeiras tentativas de navegações, alguns insu-
vigor; porém, se cada qual, em separado, ficou menos lares tenham trazido a nós o uso da palavra, sendo pelo

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menos muito verossímil que a sociedade e as línguas começou a olhar os outros e a querer ser olhado por sua
tenham nascido nas ilhas e nelas se aperfeiçoado antes vez, e a estima pública teve um preço. Aquele que can-
de serem conhecidas no continente. tava ou dançava melhor; o mais belo, o mais forte, o mais
Tudo começa a mudar de face. Os homens até en- hábil ou o mais eloqüente passou a ser o mais conside-
tão errantes pelos bosques, depois de adquirir~m uma rado, e foi esse o primeiro passo para a desigualdade e
situação mais fixa, aproximam-se lentamente, reúnem-se para o vício ao mesmo tempo; dessas primeiras prefe-
em diversos grupos e formam por fim, em cada região, rências nasceram, de um lado a vaidade e o desprezo,
uma nação particular, uniforme nos costumes e nos ca- do outro a vergonha e o desejo; e a fermentação causa-
racteres, não por regulamentos e leis, mas pelo mesmo da por esses novos germes produziu por fim compostos
gênero de vida e de alimentos e pela influência comum funestos à felicidade e à inocência.
do clima. Uma vizinhança permanente não pode deixar Assim que os homens começaram a apreciar-se mu-
de engendrar afinal alguma ligação entre diversas famí- tuamente e se lhes formou no espírito a idéia de consi-
lias. Jovens de diferentes sexos moram em cabanas vizi- deração, cada qual pretendeu ter direito a ela e não foi
nhas, o relacionamento passageiro, exigido pela nature- mais possível privar ninguém dela impunemente. Pro-
za, traz logo outro não menos doce e mais permanente, vieram daí os primeiros deveres da civilidade, mesmo
pelo convívio mútuo. Acostumam-se a considerar dife- entre os selvagens, e a partir daí qualquer agravo volun-
rentes objetos e a fazer comparações; adquirem insensi- tário tornou-se um ultraje porque, com o mal que resul-
velmente idéias de mérito e de beleza que produzem tava da injúria, o ofendido nela via o desprezo de sua
sentimentos de preferência. À força de se verem, já não pessoa, em geral mais insuportável do que o próprio
podem passar sem se ver novamente. Um sentimento ter- mal. Foi assim que, punindo cada qual o desprezo que
no e doce insinua-se na alma e, à menor oposição, tor- lhe haviam demonstrado de uma maneira proporcional à
na-se um furor impetuoso: o ciúme desperta com 0 amor· importância que atribuía a si mesmo, as vinganças se tor-
a discórdia triunfa, e a mais doce das paixões recebe sa~ naram terríveis e os homens, sanguinários e cruéis. Aí
crifícios de sangue humano. está precisamente o grau a que chegara a maioria dos po-
À medida que as idéias e os sentimentos se suce- vos selvagens que nos são conhecidos, e por não terem
dem, que o espírito e o coração se exercitam, o gênero distinguido suficientemente as idéias e observado quão
humano continua a domesticar-se, as ligações se esten- distantes tais povos já estavam do primeiro estado de na-
dem e os laços se apertam. Acostumam-se a reunir-se de- tureza é que vários estudiosos se precipitaram em con-
fronte das cabanas ou à volta de uma grande árvore; 0 cluir que o homem é naturalmente cruel e que é neces-
canto e a dança, verdadeiros filhos do amor e do lazer sária a polícia para amansá-lo, quando nada é tão manso
tornaram-se a diversão, ou melhor, a ocupação dos ho-' como ele em seu estado primitivo, quando, colocado
mens e das mulheres ociosos e agrupados. Cada qual pela natureza em igual distância da estupidez dos brutos

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----------~Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade-------

e das luzes funestas do homem civil e limitado tanto pelo do mundo e que todos os progressos posteriores foram,
instinto como pela razão a proteger-se do mal que o aparentemente, outros tantos passos rumo à perf~ição do
ameaça, é contido pela piedade natural de fazer ele pró- indivíduo e, efetivamente, dirigiam-se à decrep1tude da
prio mal a alguém, sem a isso ser levado por nada, mes- espécie.
mo depois de tê-lo recebido. Pois, segundo o axioma do Enquanto os homens se contentaram com suas caba-
sábio Locke, não poderia haver injúria onde não hou- nas rústicas, enquanto se limitaram a costurar suas rou-
vesse propriedade. pas de peles com espinhos de plantas ou espinhas de
Cumpre observar, porém, que a sociedade iniciada e peixes, a enfeitar-se com penas e conchas, a pintar o cor-
as relações já estabelecidas entre os homens exigiam po com diversas cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus
deles qualidades diferentes daquelas que deviam à sua arcos e flechas, a talhar com pedras cortantes algumas
constituição primitiva; que, começando a moralidade a canoas de pescadores ou alguns instrumentos grosseiros
introduzir-se nas ações humanas, e sendo cada qual, de música, em suma, enquanto se aplicaram apenas a
antes das leis, o único juiz e vingador das ofensas rece- obras que um homem podia fazer sozinho e a artes que
bidas, a bondade conveniente ao puro estado de nature- não precisavam do concurso de várias mãos, viveram tão
za já não era a que convinha à sociedade nascente; que livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por
as punições deviam tornar-se mais severas à medida que as sua natureza e continuaram a usufruir entre si as doçuras
ocasiões de ofender ficavam mais freqüentes e que com- de um relacionamento independente. Mas, a partir do
petia ao terror das vinganças ficar no lugar do freio das instante em que um homem necessitou do auxílio do
leis. Assim, embora os homens houvessem ficado menos outro, desde que percebeu que era útil a um só ter pro-
tolerantes e a piedade natural já houvesse sofrido certa visões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se
alteração, esse período do desenvolvimento das faculda- a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vas-
des humanas, mantendo-se no exato meio-termo entre a tas florestas se transformaram em campos risonhos que
indolência do estado primitivo e a petulante atividade de cumpria regar com o suor dos homens e nos quais logo
nosso amor-próprio, deve ter sido a época mais feliz e se viu a escravidão e a miséria germinarem e medrarem
duradoura. Quanto mais refletimos sobre isso, mais acha- com as· searas.
mos que esse estado era o menos sujeito às revoluções, A metalurgia e a agricultura foram as duas artes cuja
o melhor para o homemo, e que ele deve ter saído dele invenção produziu essa grande revolução. Para o poeta,
por algum funesto acaso que, para a utilidade comum, foram 0 ouro e a prata, mas, para o filósofo, foram o fer-
nunca deveria ter sucedido. O exemplo dos selvagens, ro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gê-
que foram quase todos encontrados nesse ponto, parece nero humano. Assim, ambos eram desconhecidos dos
confirmar que o gênero humano era feito para permane- selvagens da América, que por isso continuaram a ser sel-
cer sempre nele, que tal estado é a verdadeira juventude vagens; os outros povos parecem mesmo ter permaneci-

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- - - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade-------

do bárbaros enquanto praticaram uma dessas artes sem caça e a pesca lhes forneciam a alimentação, não preci-
a outra; e talvez uma das melhores razões por que a savam de seus cuidados, seja porque não conheciam o
Europa foi, senão mais cedo, pelo menos mais constan- uso do trigo, seja por falta de instrumentos para cultivá-
temente e mais bem policiada do que as outras partes do lo, seja por imprevidência da precisão futura, seja, enfim,
mundo, seja a de ser, a um só tempo, a mais abundante por falta de meios para impedir os outros de apropria-
em ferro e a mais fértil em trigo. rem-se do fruto de seu trabalho. Tornados mais indus-
É muito difícil conjeturar como os homens chegaram triosos, pode-se acreditar que, com pedras aguçadas e
a conhecer e a empregar o ferro, pois não é crível que paus pontudos, começaram por cultivar alguns legumes
tenham imaginado por si sós extrair a matéria da mina e ou raízes à volta de suas cabanas, muito tempo antes de
dar-lhe as preparações necessárias para deixá-la em fu- saberem preparar o trigo e de terem os instrumentos ne-
são, antes de saber o que resultaria disso. Por outro lado, cessários para a cultura de maior porte; sem contar que,
há menos motivos ainda para atribuir tal descoberta a para dedicar-se a essa ocupação e para semear as terras,
algum incêndio acidental, pois as minas só se formam impõe-se a resolução de primeiro perder alguma coisa
em lugares áridos e desprovidos de árvores e plantas, para ganhar muito depois; precaução muito distante do
podendo-se até dizer que a natureza tomara precauções feitio mental do homem selvagem que, como já disse,
para nos ocultar esse fatal segredo. Logo, resta apenas a tem muita dificuldade para pensar de manhã em suas
circunstância extraordinária de algum vulcão que, vomi- necessidades da noite.
tando matérias metálicas em fusão, terá dado aos obser- A invenção das outras artes foi, pois, necessária para
vadores a idéia de imitar essa operação da natureza; ain- forçar o gênero humano a aplicar-se à arte da agricultu-
da há que lhes supor muita coragem e previdência para ra. Desde que se precisou de homens para fundir e for-
empreender um trabalho tão penoso e atinar, com tanta jar o ferro, precisou-se de outros para alimentar a estes.
antecedência, as vantagens que dele poderiam tirar, o Quanto mais veio a multiplicar-se o número dos operá-
que só fariam espíritos já mais exercitados do que estes rios, menos mãos foram empregadas no fornecimento
deveriam ser. da subsistência comum, sem que houvesse menos bocas
Quanto à agricultura, seu princípio foi conhecido para C()nsumi-la; e como uns precisaram de alimentos
muito tempo antes de ser a sua prática estabelecida, e é em troca de seu ferro os outros descobriram afinal o
quase impossível que os homens, ocupados continua- segredo de empregar o ferro na multiplicação dos ali-
mente em tirar sua subsistência das árvores e das plan- mentos. Daí nasceram, de um lado, a lavoura e a agri-
tas, não concebessem rapidamente a idéia dos caminhos cultura e , do outro ' a arte de trabalhar os metais e mul-
que a natureza emprega para a geração dos vegetais; tiplicar-lhes os usos.
mas é provável que a indústria deles só se voltasse muito Da cultura das terras seguiu-se necessariamente sua
tarde para esse lado, seja porque as árvores, que com a partilha, e da propriedade, uma vez reconhecida, as pri-

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meiras regras de justiça; pois, para dar a cada qual 0 seu, sensivelmente com a desigualdade de combinação, e as
cumpre que cada qual possa ter alguma coisa; ademais, diferenças dos homens, desenvolvidas pelas das circuns-
começando os homens a dirigirem suas vistas ao futuro tâncias, ficam mais sensíveis, mais permanentes em seus
e percebendo todos que tinham bens passíveis de perda, efeitos, e começam a influir na mesma proporção sobre
n_ã~ havia um que não tivesse de temer para si a repre- a sorte dos particulares.
saha dos danos que poderia causar a outrem. Essa ori- Tendo as coisas chegado a esse ponto, é fácil imagi-
gem é tanto mais natural quanto é impossível conceber nar o resto. Não me deterei descrevendo a invenção su-
a idéia de que a propriedade nascesse de algo que não cessiva das outras artes, o progresso das línguas, a prova
a mão-de-obra, pois não se vê o que, para apropriar-se e o emprego dos talentos, a desigualdade das fortunas, o
das coisas que não fez, o homem pode introduzir-lhe uso ou o abuso das riquezas, nem todos os pormenores
além do seu trabalho. É o trabalho apenas que, dando ao que seguem estes e que cada qual pode sem esforço
la_;rador o direito sobre o produto da terra que lavrou, complementar. Limitar-me-ei somente a lançar uma vista-
da-lhe, conseqüentemente, o direito sobre o solo, pelo de-olhos sobre o gênero humano colocado nessa nova
menos até a colheita, e assim, de ano em ano, 0 que vi- ordem de coisas.
nha a ser uma posse contínua se transforma facilmente Eis , portanto ' todas as nossas faculdades desenvolvi-
em propriedade. Quando os antigos, diz Grotius, conce- das, a memória e a imaginação em jogo, o amor-próprio
deram a Ceres o epíteto de legisladora e às festas cele- interessado, a razão em atividade e o espírito quase atin-
bradas em sua honra o nome de Tesmofórias, com isso gindo o termo de perfeição de que é suscetível. Eis todas
deram a entender que a partilha das terras produziu uma as qualidades naturais postas em ação, a posição e a sor-
nova. espécie de direito, ou seja, o direito de proprieda- te de cada homem estabelecidas, não só quanto à quan-
de, diferente daquele que resulta da lei natural. tidade de bens e ao poder de servir ou de prejudicar,
As coisas nesse estado poderiam ter permanecido mas também quanto ao espírito, à beleza, à força ou à
iguais se os talentos fossem iguais e se, por exemplo, 0 habilidade, quanto ao mérito e aos talentos, e, sendo tais
emprego do ferro e o consumo dos alimentos estivessem qualidades as únicas que podiam granjear a considera-
sempre em perfeito equilíbrio. Porém a proporção que ção, logo foi preciso tê-las ou afetar tê-las; para o provei-
nada mantinha logo foi rompida; o mais forte realizava to próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que de
mais obras; o mais esperto tirava melhor partido da sua· fato se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas total-
o mais engenhoso encontrava meios de abreviar o traba~ mente diferentes, e dessa distinção provieram o fausto
lho; o lavrador tinha mais necessidade de ferro, ou o fer- imponente, a astúcia enganadora e todos os vícios que
reiro mais necessidade de trigo e, trabalhando igualmen- lhes formam o cortejo. Por outro lado o homem, de livre
te, UI_? ganhava muito enquanto o outro labutava para vi- e independente que era antes, passou a estar, em virtu-
ver. E assim que a desigualdade natural se desdobra in- de de uma profusão de novas necessidades, por assim

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dizer sujeito a toda a natureza, sobretudo aos seus seme- impedido de adquiri-las por sua vez, tornados pobres
lhantes, de quem num sentido se torna escravo, mesmo sem nada terem perdido, porque, mudando tudo ao seu
em se tornando seu senhor; rico, precisa de seus servi- redor, apenas eles não haviam mudado, foram obrigados
ços; pobre, precisa de seu auxílio, e a mediocridade não a receber ou a usurpar sua subsistência da mão dos ri-
o coloca em situação de viver sem eles. Logo, é necessá- cos; e daí começaram a nascer, conforme os diversos
rio que incessantemente procure interessá-los em sua temperamentos de uns e de outros, a dominação e a ser-
sorte e fazê-los encontrar, real ou aparentemente, pro- vidão, ou a violência e as rapinas. Os ricos, por sua vez,
veito em trabalhar para o seu próprio; isso torna-o dissi- mal conheceram o prazer de dominar e logo desdenha-
mulado e artificioso com uns, imperioso e duro para ram todos os outros e, servindo-se de seus antigos escra-
com outros e torna-lhe imprescindível lograr todos aque- vos para submeter outros novos, só pensaram em subju-
les de que necessita, quando não pode fazer-se temer gar e escravizar seus vizinhos; como esses lobos famin-
por eles e não acha de seu interesse servi-los utilmente. tos que, tendo provado uma vez carne humana, rejeitam
Enfim, a ambição devoradora, a gana de aumentar sua qualquer outro alimento e só querem devorar homens.
fortuna relativa, menos por verdadeira necessidade do Foi assim que, tendo os mais poderosos ou os mais
que para ficar acima dos outros, inspiram a todos os ho- miseráveis feito de suas forças ou de suas necessidades
mens uma nefanda inclinação para se prejudicarem uma espécie de direito ao bem alheio, equivalente, se-
mutuamente, uma inveja secreta tanto mais perigosa gundo eles, ao da propriedade, a igualdade rompida foi
quanto, para aplicar seu golpe com maior segurança, fre- seguida pelas mais terríveis desordens; foi assim que as
qüentemente assume a máscara da benevolência; em su- usurpações dos ricos, as pilhagens dos pobres, as pai-
ma, concorrência e rivalidade de um lado, oposição de xões desenfreadas de todos, ao abafarem a piedade na-
interesses do outro e sempre o desejo oculto de tirar pro- tural e a voz ainda fraca da justiça, tornaram os homens
veito à custa de outrem; todos esses males constituem o avaros, ambiciosos e maus. Levantava-se entre o direito
primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da do mais forte e o direito do primeiro ocupante um con-
desigualdade nascente. flito perpétuo que só terminava por combates e assassí-
Antes que se houvessem inventado os sinais repre- niosP. À sociedade nascente seguiu-se um terrível estado
sentativos das riquezas, elas quase que só podiam con- de gu~rra; o gênero humano, aviltado e desolado, já não
sistir em terras e em rebanhos, os únicos bens reais que podendo voltar atrás nem renunciar às infelizes aquisi-
os homens podiam possuir. Ora, quando as heranças ções que fizera e trabalhando apenas para a sua vergo-
cresceram em número e em extensão a ponto de cobri- nha, pelo abuso das faculdades que o dignificam, colo-
rem todo o solo e de tocarem-se umas nas outras, umas cou a si mesmo às portas de sua ruína.
só puderam então progredir a expensas das outras, e os
supranumerários, que a fraqueza ou a indolência haviam

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Attonitus novitate mali, divesque miserque, inimigos unidos pela esperança comum da pilhagem, o
E.ffugere optat opes, et quae modo voverat, odit. rico, premido pela necessidade, acabou por conceber o
[Ovídio, Metamorfoses, XI, v. 127.] projeto mais refletido que jamais passou pelo espírito
humano: empregar em seu favor as próprias forças da-
É impossível que os homens não tenham afinal refle- queles que o atacavam, transformar em defensores seus
tido sobre uma situação tão miserável e sobre as calami- adversários, inspirar-lhes outras máximas e dar-lhes ou-
dades que os acabrunhavam. Sobretudo os ricos devem tras instituições que lhe fossem tão favoráveis quanto lhe
ter logo percebido quão desvantajosa lhes era uma guer- era contrário o direito natural.
ra perpétua cujas despesas pagavam sozinhos e na qual Com esse intuito, depois de expor aos vizinhos o
o risco de vida era comum e o dos bens, particular a horror de uma situação que os armava todos uns contra
eles. Aliás, qualquer que fosse o pretexto que pudessem os outros, que lhes deixava as posses tão onerosas quan-
dar às suas usurpações, bem percebiam estarem elas as- to as necessidades deles e na qual ninguém encontrava
sentes apenas sobre um direito precário e abusivo, e segurança, nem na pobreza nem na riqueza, inventou
que, sendo adquiridas somente pela força, a força pode- facilmente razões especiosas para conduzi-los ao seu ob-
ria retirar-lhas sem que tivessem razão de lastimar-se. jetivo. "Unamo-nos", disse-lhes, "para resguardar os fra-
Mesmo aqueles enriquecidos apenas pelo próprio enge- cos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada
nho não tinham títulos muito melhores para fundamen- qual a posse do que lhe pertence. Instituamos regula-
tar sua propriedade. Por mais que dissessem: "Fui eu que mentos de justiça e de paz aos quais todos sejam obriga-
construí este muro; ganhei este terreno com meu traba- dos a adequar-se, que não abram exceção a ninguém e
lho." Outros poderiam retorquir-lhes: "Quem vos deu os reparem de certo modo os caprichos da fortuna, subme-
arruamentos, e a troco de que pretendeis ser pagos à tendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mú-
nossa custa de um trabalho que não vos impusemos? tuos. Em suma, em vez de voltarmos nossas forças con-
Ignorais que uma multidão de irmãos vossos perece ou tra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo
passa necessidades porque tendes em excesso e que vos que nos governe segundo leis sábias, que proteja e de-
seria preciso um consentimento expresso e unânime do fenda. todos os membros da associação, rechace os ini-
gênero humano para vos apropriardes, sobre a subsis- migos comuns e nos mantenha numa concórdia eterna."
tência comum, de tudo quanto ultrapassasse a vossa?" Foi preciso muito menos do que o equivalente a
Destituído de razões válidas para justificar-se e de forças esse discurso para empolgar homens grosseiros, fáceis
suficientes para defender-se; esmagando facilmente um de seduzir, que aliás tinham muitas questões para resol-
particular, mas esmagado ele próprio por magotes de ver entre si para poderem viver sem árbitros e muita ava-
bandidos; sozinho contra todos e não podendo, por cau- reza e ambição para poderem viver por muito tempo sem
sa das invejas recíprocas, unir-se com seus iguais contra senhores. Todos correram ao encontro de seus grilhões,

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acreditando assegurar a liberdade, pois, com razão sufi- para homem, só reside ainda em algumas grandes almas
ciente para perceber as vantagens de um estabelecimen- cosmopolitas que transpõem as barreiras imaginárias que
to político, não tinham experiência suficiente para pre- separam os povos e que, a exemplo do ser soberano que
ver-lhe os perigos; os mais capazes de pressentir os abu- as criou, envolvem todo o gênero humano em sua bene-
sos eram precisamente os que contavam aproveitar-se volência.
deles, e mesmo os sábios viram que era preciso decidir- Os corpos políticos, permanecendo assim entre si
se a sacrificar uma parte de sua liberdade para a conser- no estado de natureza, logo se ressentiram dos inconve-
vação da outra, como um ferido manda cortar o braço nientes que haviam forçado os particulares a sair dele, e
para salvar o resto do corpo. esse estado tornou-se ainda mais funesto entre esses gran-
Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das des corpos do que o fora anteriormente entre os indiví-
leis, que criaram novos entraves para o fraco e novas for- duos dos quais eram compostos. Daí provieram as guer-
ças para o ricoq, destruíram em definitivo a liberdade na- ras nacionais, as batalhas, os assassínios, as represálias
tural, fixaram para sempre a lei da propriedade e da de- que fazem estremecer a natureza e chocam a razão, e to-
sigualdade, de uma hábil usurpação fizeram um direito dos esses horríveis preconceitos que consideram uma
irrevogável e, para o lucro de alguns ambiciosos, sujeita- virtude a honra de derramar o sangue humano. As pes-
ram daí para frente todo o gênero humano ao trabalho, soas mais honestas aprenderam a incluir entre seus de-
à servidão e à miséria. Vê-se facilmente como o estabe- veres o de degolar seus semelhantes; viram-se por fim os
lecimento de uma única sociedade tornou indispensável homens massacrarem-se aos milhares sem saber por quê;
o de todas as outras e como, para fazer frente a forças e cometiam-se mais assassínios num só dia de combate
unidas, foi preciso unir-se por sua vez. As sociedades, e mais horrores na tomada de uma única cidade do que
multiplicando-se ou estendendo-se com rapidez, logo se haviam cometido no estado de natureza, durante
cobriram toda a superfície da terra, e já não foi possível séculos inteiros, em toda a superfície da Terra. Tais são
encontrar um único ponto no universo onde se pudesse os primeiros efeitos que se entrevêem na divisão do gê-
libertar-se do jugo e subtrair a cabeça à espada, amiúde nero humano em diferentes sociedades. Voltemos às suas
mal conduzida, que cada homem viu perpetuamente instituições.
suspensa sobre a sua. Tornando-se assim o direito civil a Sei que vários autores atribuíram outras origens às
regra comum dos cidadãos, a lei da natureza só foi se- sociedades políticas, como as conquistas do mais pode-
guida entre as diversas sociedades em que, com o nome roso ou a união dos fracos, e a escolha entre essas cau-
de direito das gentes, foi temperada por algumas con- sas é indiferente ao que quero estabelecer. Entretanto, a
venções tácitas para tornar possível o convívio e substi- que acabo de expor parece-me a mais natural pelas se-
tuir a comiseração natural que, perdendo de sociedade guintes razões: 1º Porque, no primeiro caso, não sendo
para sociedade quase toda a força que tinha de homem o direito de conquista um direito, não pôde fundamen-

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tar nenhum outro, ficando o conquistador e os povos gisladores, o estado político permaneceu sempre imper-
conquistados em permanente estado de guerra entre si, feito, porque era quase obra do acaso e porque, iniciado
a menos que a nação, reposta em plena liberdade, esco- de um modo errado, o tempo, descobrindo-lhe os defei-
lhesse voluntariamente seu vencedor como chefe. Até tos e sugerindo os remédios, nunca conseguiu reparar
então, se bem que se tenham feito algumas capitulações, os vícios da constituição. Remendava-se continuamente,
como só se fundamentaram na violência, e são por con- quando se deveria começar por limpar a área e descartar
seguinte por esse mesmo fato nulas, não pode haver todos os materiais velhos, como fez Licurgo em Esparta,
nessa hipótese nem verdadeira sociedade, nem corpo para depois erguer um bom edifício. A sociedade, a prin-
político, nem outra lei senão a do mais forte. 2º Porque cípio, consistiu apenas em algumas convenções gerais
as palavras forte e fraco são equívocas no segundo caso; que todos os particulares se comprometiam a observar e
porque, no intervalo existente entre o estabelecimento das quais a comunidade se tomava fiadora perante cada
do direito de propriedade, ou do primeiro ocupante, e o um deles. Foi preciso que a experiência mostrasse quão
dos governos políticos, as palavras pobre e rico expres- fraca era tal constituição e quão fácil era aos infratores
sam melhor o sentido desses termos, uma vez que, na evitar a acusação ou o castigo das faltas, das quais so-
verdade, um homem não tinha, antes das leis, outro meio mente o público devia ser testemunha e juiz; foi preciso
de subjugar seus iguais senão lhes atacando os bens, ou que a lei fosse iludida de mil maneiras; foi preciso que
lhes cedendo uma parte dos seus. 3º Porque, não tendo os inconvenientes e as desordens se multiplicassem con-
os pobres nada a perder senão a sua liberdade, teria sido tinuamente para que afinal se pensasse em confiar a par-
uma grande loucura da parte deles destituir-se volunta- ticulares a perigosa custódia da autoridade pública e se
riamente do único bem que lhes restava para nada ga- delegasse a magistrados o cuidado de impor o cumpri-
nhar em troca; porque sendo os ricos, ao contrário, por mento das deliberações do povo; porque dizer que os
assim dizer vulneráveis em todas as partes de seus bens, chefes foram escolhidos antes que a confederação fosse
era muito mais fácil lesá-los; porque tinham, conseqüen- feita e que os ministros das leis existiram antes das pró-
temente, de tomar mais precauções para se defenderem prias leis é uma suposição que não se pode combater
disso e, enfim, porque é mais razoável crer ter sido uma seriamente.
coisa inventada por aqueles a quem é útil do que por Também não seria razoável crer que os povos se
aqueles a quem prejudica. tenham lançado logo de início nos braços de um senhor
O governo nascente não teve uma forma constante absoluto, sem condições nem compensações, e que se
e regular. A falta de filosofia e de experiência só deixava precipitar na escravidão tenha sido o primeiro meio de
perceber os inconvenientes presentes e não se pensava prover a segurança comum que tenham imaginado ho-
em sanar os outros senão à medida que se iam apresen- mens altivos e indomados. Com efeito, por que aceita-
tando. Apesar de todos os trabalhos dos mais sábios le- ram ter superiores senão para que estes os defendessem

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contra a opressão e lhes protegessem os bens, as liber-


dades e as vidas, que são, por assim dizer, os elementos Como um corcel indômito eriça a crina, bate a pata
constitutivos do seu ser? Ora, como nas relações de ho- no chão e se debate impetuosamente à mera aproxima-
mem com homem o pior que pode acontecer a um é ção do freio, enquanto um cavalo adestrado agüenta pa-
ver-se à mercê do outro, não seria contrário ao bom sen- cientemente o chicote e a espora, o homem bárbaro não
so começar por despojar-se, nas mãos de um chefe, das curva a cabeça ao jugo que o homem civilizado carrega
únicas coisas para cuja conservação precisavam de seu sem um murmúrio e prefere a mais tempestuosa liberda-
auxílio? Qual equivalente poderia ele oferecer-lhes para de a uma sujeição tranqüila. Não é, pois, pelo aviltamen-
a concessão de tão belo direito? E, se tivesse ousado to dos povos escravizados que se deve julgar as disposi-
exigi-lo com o pretexto de defendê-los, não receberia de ções naturais do homem pró ou contra a servidão, mas
imediato a resposta do apólogo: "O que nos fará a mais pelos prodígios realizados por todos os povos livres para
o inimigo?" Logo, é incontestável, e constitui a máxima se defenderem contra a opressão. Sei que os primeiros
fundamental de todo o direito político, que os povos se atêm a enaltecer incessantemente a paz e o sossego
aceitaram ter chefes para que estes lhes defendessem a que desfrutam sob os seus grilhões, e que miserrímam
liberdade e não para que os escravizassem. Se temos um seroitutem pacem appellant; mas quando vejo os outros
príncipe, dizia Plínio a Trajano, é para que nos preseroe sacrificarem os prazeres, o sossego, a riqueza, o poder e
de ter um senhor. mesmo a vida à conservação desse único bem tão des-
Os políticos fazem sobre o amor à liberdade os mes- denhado por aqueles que o perderam; quando vejo ani-
mos sofismas que fizeram os filósofos sobre o estado de mais nascidos livres e abominando o cativeiro quebrar a
natureza: pelas coisas que vêem, julgam coisas muito di- cabeça contra as grades de sua prisão; quando vejo mul-
ferentes que não viram e atribuem aos homens uma in- tidões de selvagens inteiramente nus menosprezarem as
clinação natural para a servidão pela paciência com que voluptuosidades européias e afrontarem a fome, o fogo,
aqueles que têm diante dos olhos suportam a deles, sem o ferro e a morte para conservarem apenas sua indepen-
pensarem que com a liberdade acontece o mesmo que dência, percebo que não é a escravos que compete ra-
com a inocência e a virtude, cujo valor só é percebido na ciocinar sobre a liberdade.
medida em que a própria pessoa as usufrui e cujo gosto Quanto à autoridade paterna, da qual vários autores
se perde assim que foram perdidas. "Conheço as delícias fizeram derivar o governo absoluto e toda a sociedade,
de teu país", dizia Brásidas* a um sátrapa que compara- sem recorrer às provas contrárias de Locke e de Sidney*,
va a vida de Esparta com a de Persépolis, "mas não po-
des conhecer os prazeres do meu."
• Algernon Sidney, patriota inglês executado em 1683, sustentou, em
Discursos sobre o governo, que o rei, submetido à lei, pode ser deposto pelo
• Brásidas (século V a.C.), general espartano que, depois de obter mui- povo. Refutou Robert Filmer que, em Patriarca, identificava a autoridade da
tas vitórias sobre os atenienses, morreu na batalha de Antípolis. (N. da T.) monarquia com a paterna. Tese igualmente refutada por Locke em Dois trata-
dos sobre o governo. (N. da T.)

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basta observar que nada no mundo está mais distante do está bem longe de ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons
espírito feroz do despotismo do que a brandura dessa monarcas, sobretudo dos reis da França, como se pode
autoridade, que busca mais a vantagem de quem obede- ver em diversos trechos de seus editos e, em particular,
ce do que a utilidade de quem manda; que, pela lei da na seguinte passagem de um escrito célebre, publicado
natureza, o pai só é o senhor do filho enquanto seu auxí- em 1667, em nome e por ordem de Luís XIV: Que não
lio lhe é necessário, que, além desse prazo, ambos tor- me digam, pois, que o soberano não está sujeito ãs leis de
nam-se iguais e o filho então, inteiramente independente seu Estado, porquanto a proposição contrária é uma ver-
do pai, deve-lhe apenas respeito e não obediência, pois dade do direito das gentes, que a lisonja por vezes ata-
o reconhecimento é mesmo um dever que se deve cum- cou, mas que os bons princípes sempre defenderam como
prir, mas não um direito que se possa exigir. Em vez de uma divindade tutelar de seus Estados. Quão mais legíti-
dizer que a sociedade civil deriva do poder paterno, cum- mo é dizer, com o sábio Platão, que a perfeita felicidade
priria, ao contrário, dizer que é dela que esse poder tira de um reino consiste em ser um princípe obedecido por
sua principal força; um indivíduo só foi reconhecido como seus súditos, em o princípe obedecer à lei e em ser a lei
o pai de outros quando estes ficaram reunidos à sua vol- justa e sempre dirigida ao bem público. Não me deterei
ta. Os bens do pai, dos quais este é realmente o senhor, em investigar se, sendo a liberdade a mais nobre das
são os vínculos que retêm os filhos em sua dependência, faculdades do homem, não será degradar-lhe sua nature-
e ele só pode dar-lhes participação em sua sucessão na za colocar-se no nível dos animais escravos do instinto,
proporção que o tiverem merecido por uma contínua de- não será mesmo ofender o autor de seu ser renunciar
ferência a suas vontades. Ora, longe de poderem os súdi- sem reservas ao mais precioso de todos os seus dons,
tos esperar algum favor semelhante de seu déspota, como sujeitar-se a cometer todos os crimes que ele nos proíbe
propriedade dele que são, eles e tudo quanto possuem, para agradar a um senhor feroz ou insensato, e se esse
ou pelo menos assim pretende o déspota, ficam reduzi- operário sublime deve ficar mais irritado por ver destruir
dos a receber como um favor o que ele lhes deixa do do que por ver desonrar sua mais bela obra. [Não leva-
próprio bem deles; faz justiça quando os despoja, conce- rei em conta, caso queiram, a autoridade de Barbeyrac,
de-lhes uma mercê quando os deixa viver. que ·afirma claramente, seguindo Locke, que ninguém
Continuando a examinar os fatos assim por intermé- pode vender sua liberdade a ponto de sujeitar-se a um
dio do direito, não se encontraria mais solidez do que poder arbitrário que o trate conforme seu capricho. Pois,
verdade no estabelecimento voluntário da tirania, e seria acrescenta ele, isso seria vender a própria vida, da qual
difícil demonstrar a validade de um contrato que só obri- não se é o dono.]• Perguntarei somente com que direito
gasse uma das partes, no qual se colocasse tudo de um
lado e nada do outro e só revertesse no prejuízo daque- • Acréscimo da edição de 1782. Jean Barbeyrac (1674-1744), jurisconsul-
le que assume seu compromisso. Esse sistema odioso to francês, traduziu e anotou obras de Pufendorf e de Grotius. (N. da T.)

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aqueles que não receiam aviltar-se a si mesmos até esse para estabelecer a escravidão, foi preciso mudá-la para
ponto puderam submeter sua posteridade à mesma igno- perpetuar esse direito, e os jurisconsultos que sentencia-
mínia e renunciar em seu nome a bens que ela não deve ram gravemente que o filho de um escravo nasceria es-
à sua liberalidade e sem os quais a própria vida é onero- cravo decidiram, em outros termos, que um homem não
sa a todos os que são dignos dela. nasceria homem.
Diz Pufendorf que, assim como transferimos nossos Parece-me certo, portanto, que não só os governos
bens a outrem mediante convenções e contratos, pode- não começaram pelo poder arbitrário, que não passa de
mos também despojar-nos de nossa liberdade em favor sua corrupção, de seu termo extremo, e que acaba por
de alguém. Aí está, parece-me, um péssimo raciocínio, reduzi-los unicamente à lei do mais forte, da qual no iní-
pois, em primeiro lugar, os bens que alieno se me tor- cio foram o remédio, mas também que, mesmo que hou-
nam algo totalmente alheio cujo abuso me é indiferente; vessem assim começado, sendo esse poder ilegítimo por
importa-me, porém, que não abusem de minha liberda- sua natureza, não pôde servir de fundamento para os
de, e não posso, sem me tornar culpado do mal que me direitos da sociedade nem, por conseguinte, para a desi-
forçarão a praticar, expor-me a vir a ser o instrumento do gualdade de instituição.
crime. Ademais, uma vez que o direito de propriedade Sem entrar agora nas pesquisas que ainda estão por
não é mais que convenção e instituição humana, qual- fazer sobre a natureza do pacto fundamental de qualquer
quer homem pode dispor a seu bel-prazer daquilo que governo, atenho-me, seguindo a opinião geral, a consi-
possui; mas não se dá o mesmo com dons essenciais da derar aqui o estabelecimento do corpo político como um
natureza, tais como a vida e a liberdade, cujo gozo é per- verdadeiro contrato entre o povo e os chefes por ele
mitido a todos e das quais é pelo menos duvidoso que escolhidos; contrato pelo qual as duas partes se obrigam
se tenha o direito de despojar-se: privando-se de uma, à observância das leis nele estipuladas e que formam os
degrada-se o próprio ser, privando-se da outra, aniquila- vínculos de sua união. Havendo o povo reunido, a res-
se tudo quanto existe em si próprio; e, como nenhum peito das relações sociais, todas as suas vontades em
bem temporal pode compensar uma e outra, seria ofen- uma só, todos os artigos sobre os quais essa vontade se
der a um só tempo a natureza e a razão renunciar a elas explica tornam-se outras tantas leis fundamentais que
pelo preço que for. Mas, ainda que se pudesse alienar a obrigam todos os membros do Estado sem exceção, re-
liberdade como os bens, seria imensa a diferença para os gulamentando uma delas a escolha e o poder dos magis-
filhos, que só usufruem os bens do pai por transmissão trados encarregados de zelar pela execução das outras.
de seu direito, ao passo que, sendo a liberdade um dom Estende-se esse poder a tudo quanto possa manter a
que recebem da natureza na qualidade de homens, seus constituição, sem chegar a mudá-la. Juntam-se-lhe hon-
pais não têm o menor direito de despojá-los dela; de rarias que tornam respeitáveis as leis e seus ministros e,
modo que, assim como foi preciso violentar a natureza para estes, pessoalmente, prerrogativas que os compen-

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sam dos penosos trabalhos que custa uma boa adminis- vesse entretanto o direito de renunciar à autoridade, com
tração. O magistrado, por sua vez, obriga-se a só usar do maior razão deveria o povo, que paga por todos os erros
poder que lhe é confiado de acordo com a intenção dos dos chefes, ter o direito de renunciar à dependência. Mas
delegantes, a manter cada qual no tranqüilo gozo do que as terríveis dissensões, as infinitas desordens que acarre-
lhe pertence e a preferir, em todas as ocasiões, a utilida- taria inevitavelmente esse perigoso poder, mostram, mais
de pública ao seu próprio interesse. do que qualquer outra coisa, como os governos huma-
Antes que a experiência houvesse demonstrado, ou nos necessitavam de uma base mais sólida do que a sim-
que o conhecimento do coração humano houvesse feito ples razão e como era necessário à tranqüilidade pública
prever os inevitáveis abusos de tal constituição, esta deve que a vontade divina interviesse para dar à autoridade
ter parecido ainda melhor, porque os encarregados de soberana um caráter sagrado e inviolável que privasse os
zelarem por sua conservação eram eles próprios os mais súditos do funesto direito de dispor dela. Mesmo que a
interessados nisso, pois, estando a magistratura e seus religião só houvesse trazido esse bem aos homens, já
direitos assentes apenas sobre leis fundamentais, assim bastaria para que todos eles devessem prezá-la e adotá-
que elas fossem destruídas, os magistrados deixariam de la, mesmo com seus abusos, porquanto ela poupa ainda
ser legítimos, o povo já não seria obrigado a obedecer- mais sangue do que o que faz correr o fanatismo. Mas
lhes e, como não fora o magistrado, mas a lei, que cons- sigamos o fio de nossa hipótese.
tituíra a essência do Estado, cada qual voltaria de direito As diferentes formas de governos originam-se das
à sua liberdade natural. diferenças mais ou menos acentuadas que existiam entre
Por pouco que refletíssemos atentamente sobre esse os particulares no momento da instituição. Era um ho-
ponto, isso se confirmaria por novas razões e, pela natu- mem eminente em poder, em virtude, em riquezas ou
reza do contrato, veríamos que não poderia ser irrevogá- em crédito? Foi o único a ser eleito magistrado, e o Esta-
vel, pois, se não houvesse poder superior que pudesse do tornou-se monárquico. Se muitos homens, quase iguais
ser fiador da fidelidade dos contratantes, nem os forçar a entre si, superavam todos os outros, foram eleitos con-
cumprir seus compromissos recíprocos, as partes ficariam juntamente, e teve-se uma aristocracia. Aqueles cuja for-
os únicos juízes em sua própria causa, e cada uma delas tuna ou talentos eram menos desproporcionais e esta-
teria sempre o direito de renunciar ao contrato tão logo vam menos distanciados do estado de natureza conser-
achasse que a outra infringiu suas condições ou estas varam em comum a administração suprema e formaram
deixassem de convir-lhe. Parece-me que é nesse princí- uma democracia. O tempo comprovou qual dessas for-
pio que o direito de abdicar pode ser fundamentado. mas era a mais vantajosa para os homens. Uns ficaram
Ora, considerando-se apenas, como fazemos, a institui- submetidos unicamente às leis, os outros logo obedece-
ção humana, se o magistrado, que tem todo o poder na ram a senhores. Os cidadãos quiseram conservar sua li-
mão e se apropria de todas as vantagens do contrato, ti- berdade, os súditos só pensaram em extirpá-la de seus

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vizinhos, não podendo tolerar que outros usufruíssem Se seguirmos o progresso da desigualdade nessas di-
um bem que eles mesmos não usufruíam. Em suma, de ferentes revoluções, verificaremos que o estabelecimen-
um lado ficaram as riquezas e as conquistas e, do outro, to da lei e do direito de propriedade foi seu primeiro ter-
a felicidade e a virtude. mo; a instituição da magistratura, o segundo; e que o ter-
·Nesses diversos governos, todas as magistraturas a ceiro e último foi a mudança do poder legítimo para po-
princípio foram eletivas e, quando a riqueza não preva- der arbitrário. Assim, o estado do rico e do pobre foi au-
lecia, a preferência era concedida ao mérito, que confe- torizado pela primeira época; o do poderoso e do fraco,
re uma ascendência natural, e à idade, que proporciona pela segunda; e, pela terceira, o de senhor e de escravo,
a experiência nos negócios e o sangue-frio nas delibera- que é o derradeiro grau da desigualdade e o termo a que
ções. Os anciãos dos hebreus, os gerontes de Esparta, o chegam todos os outros, até que novas revoluções dis-
senado de Roma e a própria etimologia da palavra Senhor solvam totalmente o governo ou o aproximem da insti-
mostram como outrora a velhice era respeitada. Quanto tuição legítima.
mais as eleições recaíam sobre os homens de idade Para compreender a necessidade desse progresso,
avançada, mais se tornavam freqüentes, e mais suas difi- cumpre considerar menos os motivos do estabelecimen-
culdades se faziam sentir; nasceram as intrigas, forma- to do corpo político do que a forma que assume em sua
ram-se as facções, indispuseram-se os partidos, surgiram execução e os inconvenientes que traz consigo, pois os
as guerras civis, finalmente, sacrificou-se o sangue dos vícios, que tornam necessárias as instituições sociais, são
cidadãos à pretensa felicidade do Estado, e chegou-se ao os mesmos que tornam inevitável o seu abuso; e como,
ponto de recair na anarquia dos tempos anteriores. A excetuando-se apenas Esparta, onde a lei zelava princi-
ambição dos principais aproveitou-se dessas circunstân- palmente pela educação das crianças e onde Licurgo es-
cias para perpetuar seus cargos em suas famílias; o povo, tabeleceu costumes que quase o dispensavam de lhes
já acostumado com a dependência, com o sossego e com acrescentar leis, as leis, em geral menos fortes que as pai-
as comodidades da vida, e já sem condições de romper xões contêm os homens sem os modificar; seria fácil
' que todo governo que, sem se corromper nem se
provar
seus grilhões, consentiu em deixar aumentar sua servi-
dão para fortalecer sua tranqüilidade, e foi assim que os alterat, sempre procedesse exatamente em conformida-
chefes, tendo se tornado hereditários, acostumaram-se a de com a finalidade de sua instituição teria sido instituí-
olhar sua magistratura como um bem de família, a olhar do sem necessidade, e que um país onde ninguém ilu-
a si mesmos como os proprietários do Estado do qual de disse as leis nem abusasse da magistratura não teria ne-
início eram apenas os funcionários, a chamar os seus cessidade de magistrados nem de leis.
concidadãos de seus escravos, a incluí-los como gado no As distinções políticas levam necessariamente às dis-
número das coisas que lhes pertenciam e a chamar a si tinções civis. A desigualdade, ao crescer entre o povo e
mesmos de iguais aos deuses e reis dos reis. seus chefes, logo se faz sentir entre os particulares e aí

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se modifica de mil maneiras de acordo com as paixões, ma mesma sociedade, são forçados a comparar-se e_n~e
os talentos e as ocorrências. O magistrado não poderia · a levar em conta diferenças encontradas na prattea
s1 e · dif
usurpar um poder ilegítimo sem se cercar de criaturas às contínua que devem ter uns com os outros. Ta1s eren-
quais é forçado a ceder uma parte dele. Aliás, os cida- ças são de várias espécies. Mas, como a rique:a, a nobre-
dãos só se deixam oprimir na medida em que, arrastados za ou a posição, o poder e o mérito pessoal sao em geral
por uma cega ambição e olhando mais para baixo do as principais distinções pelas quais os homens se med~m
que para cima de si, passam a apreciar mais a domina- na sociedade, eu provaria que o acordo ou o confhto
ção que a independência e consentem em carregar gri- dessas forças diversas são a indicação mais segura de um
lhões para, por sua vez, poder distribuí-los. É muito difí- Estado bem ou mal constituído. Mostraria que, entr~
cil reduzir à obediência aquele que não procura coman- essas quatro espécies de desigualdade, embora as qual~­
dar, e nem o político mais esperto conseguiria sujeitar ho- dades pessoais sejam a origem de todas as outras, a n-
mens que desejassem apenas ser livres. Mas a desigual- queza é a última a que elas se reduzem no final, porqu~,
dade estende-se sem dificuldade entre almas ambiciosas sendo a mais imediatamente útil ao bem-estar e a ma1s
e covardes, sempre prontas a correrem os riscos da for- fácil de transmitir, é fácil servir-se dela para comprar
tuna e a, quase indiferentemente, dominarem ou servi- todo 0 resto. Observação esta que possibilita avaliar com
rem, conforme lhes seja favorável ou contrária a fortuna. bastante exatidão quanto cada povo se distanciou de sua
Foi assim que deve ter chegado um tempo em que os instituição primitiva e o caminho que percorreu rumo ao
olhos do povo foram fascinados a tal ponto que bastava termo extremo da corrupção. Assinalaria como esse ?e-
aos seus condutores dizer ao mais insignificante dos ho- sejo universal de reputação, de honrarias e de preferen-
mens: "Sê grande, tu e tua raça", para que de imediato cias, que nos devora a todos, exercita e com.p:ra os
ele parecesse grande aos olhos de todos e aos seus pró- talentos e as forças, excita e multiplica as pa1Xoes, e
prios, e seus descendentes se elevassem ainda mais à como tornando todos os homens concorrentes, rivais,
medida que dele se distanciassem; quanto mais recuada ou m~lhor, inimigos, causa todos os dias reveses, suces-
e incerta era a causa, mais aumentava o efeito; com quan- sos e catástrofes de toda espécie, ao fazer com que tan-
to mais indolentes se pudessem contar numa família, tos pretendentes corram na mesma liça. Mostra~ia. que. é
mais ilustre ela se tornava. a essa ânsia de fazer falar de si, a essa gana de dlstmgmr-
Se aqui coubesse entrar em pormenores, eu explica- se que nos mantém quase sempre fora de ~ós mesmos
ria facilmente como, [sem que o governo sequer interfi- que devemos o que há de melhor e de p1or e~~e .os
ra]•, a desigualdade de crédito e de autoridade torna-se homens nossas virtudes e nossos vícios, nossas e1enc1as
inevitável entre os particulares' assim que, reunidos nu- e nosso~ erros, nossos conquistadores e nossos filósofos,
ou seja, uma grande quantidade de coisas más contra um
• Acréscimo da edição de 1782. (N. da T.)
pequeno número de boas. Provaria enfim que, se vemos

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- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade-------

um punhado de poderosos e de ricos no topo das gran- ria um tempo em que os ouviríamos dizer ao opressor de
dezas e da fortuna, enquanto a multidão rasteja na obs- seu país:
curidade e na miséria, é porque os primeiros só estimam
as coisas que desfrutam na medida em que os outros Pectore si fratis gladium juguloque parentis
delas estão privados, e porque, sem mudar de estado, Condere me jubeas, gravidaeque in víscera partu
deixariam de ser felizes se o povo deixasse de ser mise- Conjugis, invita peragam tamen omnia dextra.
rável. [Lucano, I, v. 376.]
Mas esses pormenores sozinhos seriam material para
uma obra considerável na qual se pesariam as vantagens Da extrema desigualdade das condições e das fortu-
e os inconvenientes de todos os governos com relação nas, da diversidade das paixões e dos talentos, das artes
aos direitos do estado de natureza e na qual se desvela- inúteis, das artes perniciosas, das ciências frívolas, sairiam
riam todas as diferentes faces com as quais a desigualda- multidões de preconceitos, igualmente contrários à razão,
de se mostrou até nossos dias e poderá mostrar-se nos à felicidade e à virtude; ver-se-ia fomentado pelos chefes
séculos futuros, segundo a natureza desses governos e tudo quanto, desunindo-os, pudesse enfraquecer os ho-
as revoluções que o tempo necessariamente lhes trará. mens reunidos, tudo quanto pudesse dar à sociedade um
Ver-se-ia a multidão oprimida no interior por uma série ar de concórdia aparente e semear-lhe um germe de divi-
de precauções que ela mesma tomara contra o que a são real, tudo quanto pudesse inspirar às diferentes or-
ameaçava no exterior. Ver-se-ia a opressão crescer conti- dens uma desconfiança e um ódio mútuo mediante a opo-
nuamente sem que os oprimidos jamais pudessem saber sição de seus direitos e de seus interesses e, conseqüen-
qual termo ela teria, nem que meios legítimos lhes resta- temente, fortalecer o poder que os abarca a todos.
riam para detê-la. Ver-se-iam os direitos dos cidadãos e É do seio dessa desordem e dessas revoluções que o
as liberdades nacionais se extinguirem pouco a pouco, e despotismo, erguendo paulatinamente sua horrorosa ca-
as reclamações dos fracos serem consideradas murmú- beça e devorando tudo o que tivesse percebido de bom
rios sediciosos. Ver-se-ia a política restringir a uma por- e de sadio em todas as partes do Estado, conseguiria por
ção mercenária do povo a honra de defender a causa co- fim pisar" com os pés as leis e o povo e estabelecer-se so-
mum; ver-se-ia originar-se daí a necessidade dos impos- bre as ruínas da república. Os tempos que precederiam
tos, o lavrador desanimado abandonar seu campo, mes- essa derradeira mudança seriam tempos de distúrbios e
mo durante a paz, e deixar o arado para cingir a espada. de calamidades, porém, no fim, tudo seria engolido pelo
Ver-se-iam nascer as regras funestas e extravagantes do monstro, e os povos já não teriam chefes nem leis, mas
ponto de honra. Ver-se-iam os defensores da pátria se somente tiranos. A partir desse instante também deixa-
tornarem, cedo ou tarde, seus inimigos, manterem sem- riam de importar os costumes e a virtude, pois em toda
pre o punhal erguido contra seus concidadãos, e chega- parte onde reina o despotismo, cui ex honesto nulla est

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- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ -------Discurso sobre a desigualdade------~

spes, ele não tolera nenhum outro senhor; assim que fala, nação não me sugeriu, todo leitor atento não deixará de
não há probidade nem dever para consultar, e a mais impressionar-se com o espaço imenso que separa esses
cega obediência é a única virtude que resta aos escravos. dois estados. É nessa lenta sucessão das coisas que verá
É este o último termo da desigualdade, e o ponto a solução de uma infinidade de problemas morais e polí-
extremo que fecha o círculo e toca o ponto de que par- ticos que os filósofos não podem resolver. Perceberá
timos; é nele que todos os particulares voltam a ser que, não sendo o gênero humano de uma época o gêne-
iguais porque nada são, e que, já não tendo os súditos ro humano de outra época, é por essa razão que Dióge-
outra lei além da vontade do senhor, nem o senhor outra nes não encontrava um homem, porque procurava entre
regra além das suas paixões, se esvaem mais uma vez as seus contemporâneos o homem de um tempo que já não
noções do bem e os princípios da justiça. É nele que existia. Catão, dirá ele, pereceu com Roma e com a liber-
tudo se resume apenas à lei do mais forte e, por conse- dade porque estava deslocado em seu século, e o maior
guinte, a um novo estado de natureza diferente daquele dos homens apenas surpreendeu o mundo que teria
por que começamos, porque um era o estado de nature- governado quinhentos anos antes. Em suma, explicará
za em sua pureza, e este último é o fruto de um excesso como a alma e as paixões humanas, alterando-se insen-
de corrupção. Aliás, há tão pouca diferença entre esses sivelmente, mudam, por assim dizer, de natureza; por
dois estados, e o contrato de governo está tão dissolvido que nossas necessidades e nossos prazeres mudam de
pelo despotismo, que o déspota só é o senhor enquanto objetos com o passar do tempo; por que, esvaindo-se
é o mais forte e, tão logo o podem expulsar, ele não pode gradualmente o homem natural, a sociedade já não ofe-
reclamar contra a violência. A rebelião que acaba por rece aos olhos do sábio senão uma reunião de homens
estrangular ou destronar um sultão é um ato tão jurídico artificiais e de paixões factícias que são obra de todas
como aqueles pelos quais ele dispunha, na véspera, das essas novas relações e não têm nenhum fundamento real
vidas e dos bens de seus súditos. Apenas a força o man- na natureza. O que a reflexão nos ensina a esse respei-
tinha, apenas a força o derruba; todas as coisas se pas- to, a observação o confirma perfeitamente: o homem sel-
sam, assim, de acordo com a lei natural, e, seja qual for vagem e o homem policiado diferem tanto no fundo do
o desfecho dessas curtas e freqüentes revoluções, nin- coraçãu e das inclinações que o que faz a felicidade su-
guém pode queixar-se da injustiça alheia, mas somente prema de um reduziria o outro ao desespero. O primei-
de sua própria imprudência, ou de sua infelicidade. ro aspira só ao repouso e à liberdade, quer apenas viver
Descobrindo e acompanhando assim as trilhas es- e ficar ocioso, e mesmo a ataraxia do estóico não se apro-
quecidas e perdidas que devem ter levado o homem do xima de sua profunda indiferença por qualquer outro
estado natural ao estado civil, restabelecendo, com as objeto. O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se,
posições intermediárias que acabo de assinalar, aquelas agita-se, atormenta-se continuamente para encontrar ocu-
que o tempo premente me fez suprimir, ou que a imagi- pações ainda mais laboriosas; trabalha até a morte, até

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~-----Discurso sobre a desigualdade------~
- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __

de, razão sem sabedoria e prazer sem felicidad~ .. Basta-


corre ao seu encontro para se colocar em condição de me haver provado que não é esse o estado ongmal d?
viver, ou renuncia à vida para adquirir a imortalidade. homem, e que somente o espírito da sociedade e a desl-
Corteja os grandes que odeia e os ricos que despreza; ualdade que ela engendra é que mudam e alteram as-
nada poupa para obter a honra de servi-los; vangloria-se gsim todas as nossas incI'maçoes
- nat ura1s.
.
orgulhosamente de sua baixeza e da proteção deles e, or- Empenhei-me em expor a origem e o progress.o da
gulhoso de sua escravidão, fala com desdém daqueles desigualdade, o estabelecimento e o abuso das soCleda-
que não têm a honra de compartilhá-la. Que espetáculo des políticas, na medida em que essas coisas podem ser
para um caraíba os penosos e invejados trabalhos de um deduzidas da natureza do homem pelas simples luzes da
ministro europeu! Quantas mortes cruéis não preferiria razão e independentemente dos dogmas sag~a~os ~u~
esse selvagem indolente ao horror de uma vida assim, conferem à autoridade soberana a sanção do d1re1to dlVl-
que amiúde nem sequer é amenizada pelo prazer de no. Conclui-se desta exposição que a desigualdade, sen-
bem proceder! Mas, para ver o objetivo de tantos cuida- do quase nula no estado de natureza, extrai sua força e
dos, cumpriria que estas palavras, poder e reputação, seu crescimento do desenvolvimento de nossas faculda-
tivessem um sentido em seu espírito, que soubesse que des e dos progressos do espírito humano e torna-se ~n­
há uma espécie de homens que dão valor aos olhares do fim estável e legítima pelo estabelecimento da propne-
resto do universo, que sabem ser felizes e contentes con- dade e das leis. Conclui-se ainda que a desigualdade mo-
sigo mesmos mais pelo testemunho alheio do que pelo ral autorizada unicamente pelo direito positivo, é con-
próprio. Tal é, de fato, a verdadeira causa de todas essas trá~ia ao direito natural todas as vezes em que não coe-
diferenças: o selvagem vive em si mesmo; o homem so- xiste, na mesma proporção, com a desigualdade física;
ciável, sempre fora de si, só sabe viver na opinião dos distinção que determina suficientemente o que se deve
outros e é, por assim dizer, do juízo deles que lhe vem o pensar a esse respeito da espécie de desigualdade que
sentimento de sua própria existência. Não pertence ao reina entre todos os povos policiados, já que é claramen-
meu assunto mostrar como de tal disposição nasce tanta te contra a lei da natureza, seja qual for a maneira por
indiferença pelo bem e pelo mal, com tão belos discur- que a definamos, uma criança mandar num velho, um
sos sobre moral; como, reduzindo-se tudo às aparências, imbecil conduzir um homem sábio e um punhado de
tudo se torna factício e artificial: honra, amizade, virtude gente regurgitar de superfluidades enquanto a multidão
e amiúde os próprios vícios, dos quais por fim se encon- esfaimada carece do necessário.
tra o segredo de glorificar-se; como, em suma, sempre
perguntando aos outros o que somos e nunca ousando
interrogar-nos a nós mesmos sobre isso, em meio a tanta
filosofia, humanidade, polidez e máximas sublimes, só
temos um exterior enganador e frívolo, honra sem virtu-

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242
Carta de Voltaire
aJ.-J. Rousseau

Paris, 30 de agosto de 1755.

Recebi, senhor, vosso novo livro contra o gênero hu-


mano; eu vo-lo agradeço. Agradareis aos homens, a quem
dizeis suas verdades, mas não os corrigireis. É impossível
pintar com cores mais fortes os horrores da sociedade hu-
mana, da qual nossa ignorância e nossa fraqueza esperam
tantos consolos. Jamais se empregou tanto espírito em
querer tornar-nos animais; sente-se vontade de andar de
quatro patas, quando se lê vossa obra. Entretanto, como
faz mais de sessenta anos que perdi esse hábito, infeliz-
mente sinto que me é impossível retomá-lo, e deixo esse
andar natural aos que são mais dignos dele do que vós e
eu. Tampouco posso embarcar para ir encontrar-me com
os selvagens do Canadá: em primeiro lugar, porque as mo-
léstias que me achacam me retêm junto do maior médico
da Europa, e eu não encontraria os mesmos socorros en-
tre os missuris; em segundo, porque a guerra alastrou-se
naquelas regiões, e os exemplos de nossas nações toma-
ram os selvagens quase tão maus como nós. Limito-me a
ser um pacífico selvagem na solidão que escolhi perto de
vossa pátria, onde deveríeis estar.

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_ _ _ _ _ _ _ Discurso sobre a desigualdade-------
- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __
_J

ria queixar-me de que fragmentos de um chiste feito há


Convenho convosco em que as belas-letras e as ciên-
cias às vezes causaram muitos males. Os inimigos de cerca de trinta anos, sobre o mesmo assunto que Chape-
Tasso transformaram-lhe a vida numa trama de infelici- lain fez a tolice de tratar seriamente, hoje correm o
mundo devido à infidelidade e à avareza desses infelizes
dades; os de Galileu o fizeram padecer nas prisões, aos
setenta anos, por haver conhecido o movimento da Ter- que misturaram suas grosserias nessa brincadeira, que ;~e
ra e, o que há de mais vergonhoso, é que o obrigaram a preencheram as lacunas com tanta tolice quanta mahe1a
detratar-se. Assim que vossos amigos começaram o Di- e que, enfim, ao cabo de trinta anos, vendem em tod~ ~
cionário enciclopédico, aqueles que ousaram ser seus ri- parte, em manuscrito, o que só pertence a eles e so e
vais chamaram-nos de deístas, de ateus e mesmo de jan- digno deles. Acrescentaria, finalmente, que r~ubarar_n
uma parte dos materiais que eu reunira nos arqmvos pu-
senistas.
Caso eu ousasse incluir-me entre aqueles cujos tra- blicas para utilizar na História da guerra de 1741, quan-
balhos só tiveram a perseguição por recompensa, mos- do eu era historiógrafo da França; que venderam a um
trar-vos-ia pessoas empenhadíssimas em perder-me na livreiro de Paris esse fruto do meu trabalho; que se apo-
deram à porfia de meus bens, como se eu já estivesse
época que encenei a tragédia de Édipo; uma biblioteca
morto, e os desnaturam para os levarem a leilão. Descre-
de calúnias ridículas impressas contra mim; um padre,
ex-jesuíta, que eu salvara do pior suplício, paga-me com ver-vos-ia a ingratidão, a impostura e a rapinagem, que
libelos difamatórios o favor que eu lhe prestara; um ho- me perseguem há quarenta anos até o sopé ~o.s Alpes,
mem, mais condenável ainda, manda imprimir minha pró- até a beira de meu túmulo. Mas o que concluma eu de
pria obra, Século de Luís XIV; com notas em que a mais todas essas tribulações? Que não devo lastimar-me; que
crassa ignorância lança as mais infames imposturas; ou- Pope, Descartes, Bayle, Camõe3 e cem outros s~frer~m
tro, que vende a um livreiro alguns capítulos de uma as mesmas injustiças e ainJa m&iores; que tal desuno e o
pretensa História universal, com o meu nome; o livreiro de quase todos aqueles que o amor às letras seduziram
bastante ávido para imprimir essa trama informe de equí- em demasia.
Confessai, senhor, que estas são pequenas infelicida-
vocos, de datas erradas, de fatos e de nomes estropiados;
des particulares das quais a sociedade mal se apercebe.
e, por fim, homens bastante covardes e maldosos para
Que importa ao gênero humano que alguns zangões sur-
imputar-me a publicação dessa rapsódia. Eu vos mostra-
rupiem 0 mel de algumas abelhas? Os letrados fazem es-
ria a sociedade infecta desse gênero de homens desco-
nhecido em toda a antiguidade, que, não podendo abra- tardalhaço de todas essas pequenas desavenças, o resto
çar uma profissão honesta, seja de trabalhador braçal, do mundo as ignora ou ri delas.
De todos os amargores espalhados pela vida huma-
seja de criado, e infelizmente sabendo ler e escrever tor-
' na estes são os menos funestos. Os espinhos ligados à
nam-se agentes literários, vivem de nossas obras rou-
bam manuscritos, desfiguram-nos e vendem-nos. Pode-
' lit~ratura e a um _pouco de reputação não passam de fio-

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246
Discurso sobre a desigualdade-------
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Chappuis conta-me que vossa saúde .não está boa;


res em comparação com outros males que, desde sem-
pre, inundaram a terra. Confessai que nem Cícero, nem deveríeis vir restabelecê-la nos ares natats, desfrutar a
Varrão, nem Lucrécio, nem Virgílio, nem Horácio tiveram liberdade, beber comigo o leite de nossas vacas e pastar
a menor participação nas proscrições. Mário era um igno- nossas ervas. . .
rante; o bárbaro Sila, o crapuloso Antônio, o imbecil Lé- Sou, muito filosoficamente, e com a mats terna esti-
pido liam pouco Platão e Sófocles e, quanto a esse tira- ma, etc.
no sem coragem, Otávio Cépias, tão covardemente apeli-
dado de Augusto, não foi mais que um detestável assas-
sino na época em que ficou privado da companhia dos
letrados.
Confessai que Petrarca e Boccaccio não deram ori-
gem às agitações da Itália; confessai que os gracejos de
Marot não produziram a noite de São Bartolomeu e que
a tragédia do Cid não causou os tumultos da Fronda.
Quase todos os grande crimes só foram cometidos
por célebres ignorantes. O que fez e sempre fará deste
mundo um vale de lágrimas é a insaciável cupidez e o in-
domável orgulho dos homens, desde Thomas Kuli-Kan,
que não sabia ler, até um funcionário alfandegário, que
só sabia fazer contas. As letras alimentam a alma, corri-
gem-na, consolam-na; são úteis para vós, senhor, enquan-
to escreveis contra elas; sois como Aquiles, que se irrita
com a glória, e como o Padre Malebranche, cuja brilhan-
te imaginação escrevia contra a imaginação.
Se alguém deve queixar-se das letras, este alguém
sou eu, uma vez que, em todas as épocas e em todos os
lugares, elas serviram para perseguir-me; mas devemos
amá-las apesar do abuso que dela fazem, como deve-
mos amar a sociedade cujas amenidades são corrompidas
por tantos homens; como devemos amar nossa pátria,
por mais injustiças que nela soframos; como devemos
amar e servir o Ser supremo, apesar das superstições e
do fanatismo que tão amiúde lhe desonram o culto.

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Resposta [a Voltaire]

Paris, 10 de setembro de 1755.

Compete a mim, senhor, agradecer-vos a respeito de


tudo. Oferecendo-vos o esboço de meus tristes deva-
neios, não acreditei oferecer-vos um presente digno de
vós, e sim cumprir um dever e prestar-vos uma homena-
gem que todos nós vos devemos como a nosso chefe.
Grato, aliás, pela honra que concedeis à minha pátria,
compartilho o reconhecimento de meus concidadãos e
espero que ele aumente ainda mais quando eles tiverem
aproveitado os ensinamentos que lhes podeis dar. Embe-
lezai o asilo que escolhestes, esclarecei um povo digno
de vossas lições e vós, que sabeis tão bem descrever as
virtudes e a liberdade, ensinai-os a amá-las dentro de
nossos.muros como em vossos escritos. Todos que de
vós se aproximam devem aprender convosco o caminho
da glória.
Vedes que não aspiro a restabelecermo-nos em nos-
sa estupidez, embora, de minha parte, sinta muitas sau-
dades do pouco que perdi. Quanto a vós, senhor, essa
volta seria um milagre, a um só tempo tão grande e tão
prejudicial, que só a Deus caberia fazê-lo e só ao Diabo

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---------------Discurso sobre a desigualdade-----------

desejá-lo. Não tentai, pois, tornar a ficar de quatro patas,


ceando que o ferido expire ao arrancá-lo. Quanto a mim,
ninguém no mundo teria menos êxito do que vós. Vós se houvesse seguido minha primeira vocação e não hou-
nos reergueis muito bem sobre nossos dois pés para dei- vesse lido nem escrito, decerto seria mais feliz. Contudo,
xar de vos manter sobre os vossos. se as letras fossem agora aniquiladas, eu ficaria privado
Estou de acordo no tocante a todas as desgraças que do único prazer que me resta. É em seu seio que me
perseguem os homens célebres nas letras; estou de acor- consolo de todos os meus males; é entre aqueles que as
do até no tocante aos males ligados à humanidade e que cultivam que experimento as doçuras da amizade e apren-
parecem independentes de nossos vãos conhecimentos. do a usufruir a vida sem temer a morte. Devo-lhes o
Os homens abriram sobre si mesmos tantas fontes de mi- pouco que sou; devo-lhes até a honra de ser conhecido
sérias que, quando o acaso desvia alguma delas, não são por vós; mas consultemos o interesse em nossos negó-
muito menos inundados por elas. Aliás, há na progres- cios e a verdade em nossos escritos. Conquanto sejam
são das coisas ligações ocultas que o vulgo não percebe, necessários filósofos, historiadores e sábios para esclare-
mas que não escaparão aos olhos do sábio quando este cer o mundo e conduzir seus cegos habitantes, se me
quiser refletir sobre elas. Não foi nem Terêncio, nem Cí- disse a verdade o sábio Mêmnon, não conheço nada tão
cero, nem Virgílio, nem Sêneca, nem Tácito; não são os louco como um povo de sábios.
sábios nem os poetas que produziram as desditas de Ro- Convinde, senhor, se é bom que grandes gênios ins-
ma e os crimes dos romanos; porém, sem o veneno lento truam os homens, é preciso que o vulgo receba deles as
e secreto que pouco a pouco corrompia o mais vigoroso instruções; se qualquer um se meter a dá-las, quem há
governo que a História já mencionou, nem Cícero, nem de querer recebê-las? Os mancos, diz Montaigne, são
Lucrécio, nem Salústio teriam existido ou teriam escrito. inaptos para os exercícios do corpo e, aos exercícios do
O agradável século de Lélio e de Terêncio trazia, de lon- espírito, as almas mancas.
ge, o século brilhante de Augusto e de HoráCio e, por Porém, neste século sábio, só se vêem mancos que-
fim, os séculos horríveis de Sêneca e de Nero, de Domi- rendo ensinar os outros a andar. O povo recebe os escri-
ciano e de Marcial. O gosto das letras e das artes nasce tos dos sábios para julgá-los e não para instruir-se. Nun-
entre um povo de um vício interior que ele aumenta e, ca se ':iram tantos papalvos. Eles pululam no teatro, suas
se é verdade que todos os progressos humanos são per- sentenças ecoam noo; cafés; divulgam-nas nos jornais, as
niciosos à espécie, os do espírito e dos conhecimentos, calçadas estão cobertas de seus escritos, e ouço O órfãcf
que aumentam nosso orgulho e multiplicam nossos des- ser criticado, porque é aplaudido por um escrevinhador
varios, aceleram logo nossas desditas. Chega um tempo, qualquer, tão pouco capaz de ver-lhe os defeitos, que
porém, em que o mal é tamanho que as próprias causas mal lhe percebe as belezas.
que o fizeram nascer são necessárias para impedir-lhe o
crescimento; é o ferro que se deve deixar na ferida, re-
• Tragédia de Voltaire que era encenada naquele tempo.

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---------------------Ro~au _____________________ -------------Discurso sobre a desigualdade-------------

Busquemos a primeira fonte das desordens da socie- quanto às ervas de vosso pomar, receio não encontrar
dade, descobriremos que todos os males dos homens nele outras além do lótus, que não é o alimento dos ani-
lhes vêm muito mais do erro do que da ignorância e que mais, e o móli, que impede os homens de se tornarem
aquilo que não sabemos nos prejudica muito menos do animais.
que aquilo que acreditamos saber. Ora, qual o meio mais Sou, de todo o meu coração e com respeito, etc.
seguro de correr de erros em erros do que a gana de tudo
saber? Se não houvessem pretendido saber que a Terra
não girava, não teriam punido Galileu por ter dito que
ela girava. Se apenas os filósofos houvessem reclamado
esse título, a Enciclopédia não teria tido perseguidores.
Se cem pigmeus não aspirassem à glória, desfrutaríeis
em paz a vossa ou, pelo menos, só teríeis rivais dignos
de vós.
Não fiqueis, pois, surpreso de sentir alguns espinhos
inseparáveis das flores que coroam os grandes talentos.
As injúrias de vossos inimigos são as aclamações satíricas
que seguem o cortejo dos triunfadores; é a solicitude do
público por todos os vossos escritos que produz os rou-
bos de que vos queixais; mas as falsificações deles não
são fáceis, pois nem o ferro, nem o chumbo ligam-se ao
ouro. Permite-me dizer-vos isso pelo interesse que tenho
por vossa tranqüilidade e por nossa instrução. Desprezai
os vãos clamores com os quais procuram menos vos pre-
judicar do que vos desviar de bem proceder. Quanto
mais vos criticarem, mais deveis fazer-vos admirar. Um
bom livro é uma terrível resposta a injúrias impressas; e
quem ousaria atribuir-vos escritos que não tivésseis feito
enquanto só os fizerdes inimitáveis?
Fico grato pelo vosso convite e, se este inverno dei-
xar-me em condições de ir na primavera morar em mi-
nha pátria, aproveitarei vossa bondade. Mas preferiria be-
ber a água de vossa fonte ao leite de vossas vacas e,

254
Carta de].-]. Rousseau
ao Sr. Pbilopolis*

Desejais, senhor, que eu vos responda, uma vez que


me fazeis perguntas. Trata-se, aliás, de uma obra dedica-
da aos meus concidadãos; devo, ao defendê-la, justificar
a honra que me fizeram de aceitá-la. Deixo de lado, em
vossa carta, o que me diz respeito, tanto de bem quanto
de mal, porque um quase compensa o outro e tenho
pouco interesse nisso, e o público menos ainda, e por-
que tudo isso em nada contribui para a busca da verda-
de. Portanto, começo pelo raciocínio que me propondes
como essencial à questão que tentei resolver.
O estado de sociedade, dizeis, resulta imediatamen-
te das faculdades do homem e, conseqüentemente, da
sua natureza. Querer que o homem não se tomasse so-
ciável seria, pois, desejar que ele não fosse homem, e
levantar-se contra a sociedade humana é atacar a obra
de Deus. Permite-me, senhor, propor-vos por minha vez
uma dificuldade antes de resolver a vossa. Poupar-vos-ia
este rodeio, se conhecesse um caminho mais seguro
para ir direto ao fim.

• Resposta à Carta de Pbilopolis, cidadão de Genebra, publicada, sem o


nome do autor, no Mercureem outubro de 1755. Foi escrita pelo naturalista e
filósofo genebrino Charles Bonnet. (N. da T.)

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- - - - - - - - - - R o u s s e a u _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ _ _ _ _ _ _ IJiscurso sobre a desigualdade-------

Suponhamos que alguns sábios encontrassem um culos e, se vossas dores aumentam a cada dia, vossa filo-
dia o segredo de acelerar a velhice e a arte de incentivar sofia aumenta com elas. Lastimais essa juventude impe-
os homens a usarem essa rara descoberta. Persuasão essa tuosa, cuja saúde brutal a priva dos bens vinculados à
que talvez não fosse tão difícil de realizar como parece à vossa fraqueza. Ditosas enfermidades, que reúnem a vos-
primeira vista, pois a razão, esse grande veículo de todas sa volta tantos hábeis farmacêuticos abastecidos de mais
as nossas tolices, estaria muito longe de nos faltar para essa. drogas do que os males que tendes, tantos sábios médi-
Os ftlósofos, sobretudo, e as pessoas sensatas, para sacudir cos que conhecem a fundo vosso pulso, que sabem em
o jugo das paixões e experimentar a preciosa tranqüili- grego os nomes de todos os vossos reumatismos, tantos
dade da alma, ganhariam a passos largos a idade de Nes- zelosos consoladores e herdeiros fiéis que vos condu-
tor e renunciariam de bom grado aos desejos que se po- zem agradavelmente à vossa hora derradeira. Quantos
dem satisfazer, a fim de se protegerem daqueles que é socorros estariam perdidos para vós, se não tivésseis sa-
preciso sufocar. Não haveria senão alguns estouvados que, bido proporcionar-vos os males que os tornaram neces-
ruborizando por sua fraqueza, desejariam loucamente sários."
permanecer jovens e felizes ao invés de envelhecer para Não podemos imaginar que, repreendendo depois
se tornarem sábios. nosso imprudente conselheiro, lhe falariam aproximada-
Suponhamos que um espírito singular, extravagante, mente assim:
em suma, um homem de paradoxos, inventasse então "Cessai, declamador temerário, de fazer esses discur-
censurar os outros pelo absurdo de suas máximas, pro- sos ímpios. Ousais desaprovar assim a vontade daquele
var-lhes que correm para a morte ao procurar a tranqüi- que fez o gênero humano? O estado de velhice não de-
lidade, que disparatam de tanto serem razoáveis e que, corre da constituição do homem? Envelhecer não é natu-
se é preciso que sejam velhos um dia, deveriam pelo ral ao homem? O que fazeis, pois, em vossos discursos
menos esforçar-se para ficá-lo o mais tarde possível. sediciosos senão atacar uma lei da natureza e, por con-
Não será preciso perguntar se nossos sofistas, recean- seguinte, a vontade de seu Criador? Uma vez que o ho-
do o descrédito de seu arcano, se apressariam em inter- mem envelhece, Deus quer a velhice. Serão os fatos ou-
romper este discurso importuno: "Sábios velhos", diriam tra cotsa que não a sua vontade? Sabei que o homem
eles ao seus sectários, "agradecei ao Céu as graças que jovem não é aquele que Deus quis fazer e que, para des-
ele vos concede e felicitai-vos incessantemente de ter- velar-se em obedecer às suas ordens, cumpre apressar-se
lhe seguido tão bem as vontades. Estais decrépitos, é ver- em envelhecer."
dade, combalidos, caquéticos, pois tal é a sina inevitável Tudo isso pressuposto, pergunto-vos, senhor, se o
do homem, mas vosso entendimento está sadio; tendes homem dos paradoxos deve calar-se ou responder e, nes-
todos os membros paralíticos, mas por isso vossa cabeça te último caso, peço-vos que me indiqueis o que deve
está mais livre; não poderíeis agir, mas falais como orá- dizer; tentarei então resolver vossa objeção.

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---------------------Ro~eau _____________________ -------------Discurso sobre a desigualdade ___________

Uma vez que pretendeis atacar-me por meu próprio gar que o mal existe é um meio muito cômodo de escu-
sistema, não esqueçais, por favor, que, conforme penso, sar o autor do mal. Os estóicos outrora caíram no ridí-
a sociedade é tão natural à espécie humana como a de- culo por muito menos.
crepitude ao indivíduo, e que aos povos são necessárias Segundo Leibniz e Pope, tudo o que existe está
as artes, as leis e os governos, como as muletas são ne- bom. Se há sociedades, é porque o bem geral exige que
cessárias aos velhos. Toda a diferença está em que o es- haja; se não existem, o bem geral assim o exige, e, se al-
tado de velhice decorre apenas da natureza do homem e guém persuadisse os homens a voltarem a viver nas flo-
o da sociedade decorre da natureza do gênero humano, restas, seria bom que voltassem a viver lá. Não se deve
não imediatamente como o dizeis, mas apenas, como o aplicar à natureza das coisas uma idéia de bem ou de
provei, em virtude de certas circunstâncias exteriores que mal que só seja inferida de suas relações, pois elas po-
poderiam existir ou não, ou pelo menos acontecer mais dem ser boas com relação ao todo, embora más em si
cedo ou mais tarde e, por conseguinte, acelerar ou desa- mesmas. O que concorre para o bem geral pode ser um
celerar o progresso. Diversas dessas circunstâncias de- mal particular do qual é permitido livrar-se quando pos-
pendem até da vontade dos homens; fui obrigado, para sível for. Pois se esse mal, enquanto suportado, é útil ao
estabelecer uma paridade perfeita, a supor no indivíduo todo o bem contrário que se esforçam em pôr em seu
o poder de acelerar sua velhice como a espécie tem o de lugar não lhe será menos útil assim que se realizar. Pela
retardar a sua. Tendo, pois, o estado de sociedade um mesma razão de tudo estar bem como está, se alguém se
termo extremo ao qual os homens têm a liberdade de esforça em mudar o estado de coisas, é bom que se es-
chegar mais cedo ou mais tarde, não é inútil mostrar-lhes force em mudá-las e, se é bom ou mau que o consiga,
o perigo de ir tão depressa e as misérias de uma condi- isso se pode saber apenas pelo acontecimento e não
ção que eles tomam pela perfeição da espécie. pela razão. Nem por isso nada impede que o mal parti-
No tocante à enumeração dos males que acabru- cular seja um mal real para aquele que o sofre. Seria
nham os homens e que sustento serem sua própria obra, bom para o todo que fôssemos civilizados já que o so-
vós me assegurais, Leibniz e vós, que tudo está bem e mos, mas certamente teria sido melhor para nós não o
que assim a providência está justificada. Eu estava lon- sermos, Leibniz jamais teria tirado nada de seu sistema
ge de acreditar que ela necessitasse, para sua justifica- que pudesse combater essa proposição, e está claro que
ção, do auxílio da filosofia leibniziana ou de qualquer o otimismo bem compreendido não faz nada a meu
outra. Pensais seriamente, vós mesmo, que um sistema favor ou contra mim.
de filosofia, seja ele qual for, possa ser mais irrepreen- Desse modo, não é nem a Leibniz nem a Pope que
sível do que o universo e que, para desculpar a provi- tenho de responder, mas apenas a vós que, sem distin-
dência, os argumentos de um filósofo sejam mais con- guir o mal universal, que eles negam, do mal particular,
vincentes do que as obras de Deus? Além do mais, ne- que não negam, pretendeis que basta uma coisa existir

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para que não seja permitido desejar que existisse de ca assim, estaríamos sujeitos a tirar, partindo do particu-
outra maneira. Mas, meu senhor, se tudo está bem como lar para o universal, conseqüências muito contraditórias
está, tudo estava bem como estava, antes que houvesse e muito pouco concludentes. Basta um erro de geografia
governos e leis; logo, foi pelo menos supérfluo estabele- para abalar toda essa pretensa doutrina que deduz o que
cê-los, e então Jean-Jacques, com o vosso sistema, leva- deve ser daquilo que se vê. Procede como os castores,
ria a melhor contra Philopolis. Se tudo está bem como dirá o índio, quem se enfurna em tocas, o homem deve
está, da maneira que entendeis, para que corrigir nossos dormir ao ar livre numa rede pendurada nas árvores.
vícios, curar nossos males, reparar nossos erros? Para Não, não, dirá o tártaro, o homem é feito para dormir nu-
que servem nossas cátedras, nossos tribunais, nossas ma carroça. Pobre gente, exclamarão nossos Philopolis
academias? Por que chamar um médico quando tiverdes com um ar de piedade, não vedes que o homem é feito
febre? Como sabereis se o bem do todo maior, que não para construir cidades? Quando se trata de raciocinar
conheceis, não exige que tenhais o tresvario e se a saúde sobre a natureza humana, o verdadeiro filósofo não é
dos habitantes de Saturno ou de Sírius não sofreria com nem índio, nem tártaro, nem de Genebra, nem de Paris,
o restabelecimento da vossa? mas é homem.
Deixai tudo correr como for possível, para que tudo Que o macaco seja um bicho, eu o creio, e disse a
sempre corra bem. Se tudo é o melhor que pode ser, razão disso; que o orangotango também o seja, eis o que
deveis censurar qualquer ação que seja, pois toda ação tendes a bondade de ensinar-me, e confesso que, de
produz necessariamente alguma mudança no estado em acordo com os fatos que citei, parecia-me difícil a prova
que estão as coisas no momento em que se efetua; logo, disso. Filosofais muitíssimo bem para pronunciar-vos so-
não se pode tocar em nada sem fazer o mal, e o quietis- bre esse assunto tão levianamente como os nossos via-
mo mais perfeito é a única virtude que resta ao homem. jantes que às vezes se expõem, sem muito cuidado, a co-
Enfim, se tudo está bem como está, é bom que haja la- locar seus semelhantes na classe dos animais. Assim, cer-
pões, esquimós, algonquinos, chicacas•, caraíbas, que vi- tamente faríeis um favor ao público, e instruiríeis até os
vem sem a nossa polícia, hotentotes que zombam dela e naturalistas, ensinando-nos os meios que empregastes
um genebrino que as aprova. O próprio Leibniz concor- para resolver esta questão.
daria com isso. Em minha epístola dedicatória, felicitei minha pátria
O homem, dizeis, é tal como o exigia o lugar que por ter um dos melhores governos que possam existir;
deveria ocupar no universo. Mas os homens diferem tan- achei, no Discurso, que deveriam haver pouquíssimos
to conforme os tempos e os lugares que, com uma lógi- bons governos; não vejo onde está a contradição que
notais nisso. Mas como sabeis, meu senhor, que eu iria
• Provavelmente, os muíscas, também chamados de chibchas, povo indí-
viver nos bosques se minha saúde mo permitisse, ao invés
gena encontrado pelos espanhóis em Nova Granada. (N. da T.) de morar entre meus concidadãos, pelos quais conheceis

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meu afeto? Longe de dizer algo semelhante em minha vesse confundido a saúde com a santidade, e se fosse
obra, nela deveríeis ter visto razões muito fortes para não verdadeira a proposição, acreditar-me-ia muito apto para
escolher esse gênero de vida. No meu íntimo, percebo tornar-me eu mesmo um grande santo no outro mundo
muito bem como me seria difícil privar-me de viver com ou, pelo menos, para ter sempre boa saúde neste.
homens tão corrompidos quanto eu, e mesmo o sábio, Termino, senhor, respondendo a vossas três últimas
se é que existe algum, hoje não há de procurar a felici- perguntas. Não abusarei do tempo que me dais para refle-
dade no fundo de um deserto. Cumpre ftxar, quando se tir sobre elas; este é um cuidado que tomara de antemão.
pode, seu domicílio na pátria para amá-la e servi-la. Feliz Um homem ou qualquer outro ser sensível que ja-
daquele que, privado dessa vantagem, pode ao menos mais houvesse conhecido a dor teria piedade e ficaria
viver no seio da amizade, na pátria comum do gênero comovido ao ver uma criança sendo degolada? Respon-
humano, nesse asilo imenso aberto a todos os homens, do que não.
onde se comprazem igualmente a austera sabedoria e a Por que o populacho, a quem o Sr. Rousseau concede
juventude galhofeira; onde reinam a humanidade, a hos- tão grande dose de piedade, deleita-se com tanta avidez
pitalidade, a doçura e todos os encantos de uma socie- no espetáculo de um infeliz que expira no suplício da
roda? Pela mesma razão que ides chorar no teatro e ver
dade fácil; onde o pobre ainda encontra amigos, a virtu-
Said* degolar o pai ou Tiestes•• beber o sangue do filho.
de dos exemplos que o incentivam e a razão dos guias
A piedade é um sentimento tão delicioso que não é de
que o esclarecem. É nesse grande teatro da fortuna, do
espantar que se procure experimentá-lo. Aliás, cada qual
vício e às vezes das virtudes que se pode observar fruti-
tem uma curiosidade secreta de estudar os movimentos
feramente o espetáculo da vida; mas é em seu país que da natureza nas imediações desse temível momento que
cada qual deveria terminar em paz a sua. ninguém consegue evitar. Acrescentai a isso o prazer de
Parece-me, senhor, que me censurais muito seria- ser, durante dois meses, o orador do bairro e de contar
mente acerca de uma reflexão que me parece muito justa pateticamente aos vizinhos a bela morte do último supli-
e que, justa ou não, não tem em meu escrito o sentido ciado na roda.
que vos apraz dar-lhe com a adição de uma única letra. -1 afeição que asf'emeas dos animais demonstram por
Se a natureza nos destinou a sermos santos, fazeis-me di- seus filhotes tem por objeto esses filhotes ou a mãe? Pri-
zer, ouso quase assegurar que o estado de reflexão é um
estado contrário à natureza e que o homem que medita • Said, escravo de Maomé, foi, com Ali, o primeiro a reconhecer a mis-
é um animal depravadcl. Confesso-vos que se eu hou- são divina do profeta. Foi personagem da tragédia de Voltaire, Maomé ou o
fanatismo, e desde então séide, grafia dada ao nome por Voltaire, tornou-se
sinônimo da cegueira fanática. (N. da T.)
• Rousseau escreveu (p. 152) saín (sadio) e, na carta de Philopolis, pu- •• Tiestes, da mitologia grega, seduziu a cunhada. Como vingança, seu
blicada no Mercure, está impresso saínt(santo). Ao que parece, trata-se de um irmão Atreu matou-lhe os filhos e serviu-os a Tiestes num festim. A tragédia
erro tipográfico, e não de uma deturpação de Philopolis. (N. da T.) de Crébillon (1674-1762), Atreu e Tiestes, versa sobre esse tema. (N. da T.)

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meiro a mãe, por sua necessidade, depois os filhotes, Anotações de Voltaire sobre
pelo hábito. Já o dissera no Discurso. Se porventura fosse o Discurso sobre a desigualdade
esta, o bem-estar dos filhotes estaria ainda mais assegu-
rado. Também pensaria assim. Entretanto, essa máxima
das condições, deJ.:f. Rousseau 1
requer mais ser restringida do que ampliada, pois, assim
que os pintainhos saem do ovo, não se verifica que a
galinha tenha alguma necessidade deles, e sua ternura
maternal não é inferior a nenhuma outra.
Eis, meu senhor, as minhas respostas. Notai, afinal
de contas, que neste caso como no do primeiro discurso
continuo a ser o monstro que sustenta que o homem é Página 165. "... A natureza trata-as precisamente
naturalmente bom e que meus adversários continuam a como a lei de Esparta tratava os filhos dos cidadãos; tor-
ser as pessoas de bem que, para a edificação pública, se na fortes e robustas as que são bem constituídas e faz
esforçam em provar que a natureza não criou senão ce- perecer todas as outras, sendo nisso diferente de nossas
lerados. sociedades, nas quais o Estado, tornando os filhos one-
Sou, o quanto se possa ser de alguém que não se co- rosos para os pais, mata-os indistintamente antes do
nhece, senhor, etc.
nascimento."
Na margem e ao lado dessas três palavras sublinha-
das por ele, Voltaire escreve: "Obscuro e mal colocado."
Página 169. "... Se ela nos destinou a sermos sãos,
quase ouso assegurar que o estado de reflexão é um
estado contrário à natureza e que o homem que medita
é um animal depravado."
As quatro palavras sublinhadas e o traço feito ao
lado aessas três linhas indicam que Voltaire queria colo-
car ali uma nota, que está faltando.
Página 173. "... A natureza manda em todos os ani-
mais, e o bicho obedece. O homem sente a mesma im-
pressão, mas se reconhece livre para aquiescer ou para
resistir, sendo sobretudo na consciência dessa liberdade
que se mostra a espiritualidade de sua alma, pois a física
explica de certa maneira o mecanismo dos sentidos e a

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---------------------Ro~eau _____________________ --------------Discurso sobre a desigualdade---------

formação das idéias; mas, na faculdade de querer, ou Página 185. "... Quanto a mim, assustado com difi-
melhor, de escolher, e no sentimento dessa faculdade só culdades que se multiplicam e convencido da impossibi-
se encontram atos puramente espirituais, dos quais nada lidade quase demonstrada de que as línguas possam ter
se explica pelas leis da mecânica." nascido e se estabelecido por meios puramente huma-
Aí está uma péssima metafísica. nos, deixo a quem quiser empreendê-la a discussão do
Página 174. "... Seria horrível sermos obrigados a difícil problema ... "
louvar como um ser benfazejo o primeiro a sugerir ao Lamentável.
habitante das margens do Orinoco o uso daquelas tabua- Página 186. "... Com efeito, é impossível imaginar
zinhas que ele aplica nas têmporas dos filhos e que lhes por que, nesse estado primitivo, um homem teria mais
asseguram pelo menos uma parte de sua imbecilidade e necessidade de outro homem do que um macaco ou um
de sua felicidade original." lobo de seu semelhante ... "
Os selvagens achatam a testa dos filhos a fim de que Porque há no homem um instinto e uma aptidão
estes se pareçam com os pássaros que passam por cima que não existe no macaco.
de suas cabeças. Página 188. "... Ele diz justamente o contrário, por
Páginas 175-6. "... observaria que em geral os povos ter introduzido impropriamente no cuidado com a con-
do Norte são mais industriosos do que os do Sul por servação do homem selvagem a necessidade de satisfa-
terem menos condições de viver sem o ser... " zer uma imensa quantidade de paixões que são obra da
Isso não é verdade: todas as artes vêm dos países sociedade e tornaram necessárias as leis ... "
quentes. O selvagem só é mau como um lobo que está com
fome.
Página 177. "... todas as coisas que lhes foi preciso
Página 192. "... É a razão que engendra o amor-pró-
aprender com os deuses por não se poder conceber como
prio e é a reflexão que o fortalece ... "
as teriam aprendido sozinhos ... "
Que idéia! Então são necessários raciocínios para se
Não. Transformaram em deuses seus benfeitores. querer o bem-estar pessoal?
Página 180. "... ao passo que, nesse estado primitivo, Página 193. "... Com paixões tão pouco ativas e um
não tendo casas, nem cabanas ... " freio tão salutar, os homens, antes selvagens do que maus
Suposição ridícula. e mais preocupados em proteger-se do mal que podiam
Página 183. "... Se um carvalho se chamava A outro receber do que tentados a fazê-lo a outrem, não estavam
carvalho se chamava B, de modo que, quanto mais ' limi-
sujeitos a rixas muito perigosas ... "
tados eram os conhecimentos, mais extenso tornava-se o Como és louco, não sabes que os americanos seten-
dicionário ... " trionais exterminaram-se uns aos outros com a guerra?
Chamava-se pelo menos AB, já que se parecia Página 194. "... Ora, é fácil ver que a moral do amor
comA. é um sentimento factício, nascido do convívio na socie-

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dade, e celebrado pelas mulheres com muita habilidade poderiam desenvolver-se por si sós, que para tanto ne-
e cuidado a fim de estabelecerem seu império e tornar cessitavam do concurso fortuito de várias causas estra-
dominante o sexo que deveria obedecer." nhas, que poderiam jamais nascer, e sem as quais ele
Por quê? teria permanecido eternamente em sua condição primiti-
Página 195. "... A imaginação, que provoca tantos va resta-me considerar e relacionar os diferentes acasos
estragos entre nós, não fala a corações selvagens ... " que ' puderam aperfeiçoar a razão humana ao deteriorar
O que sabes disso? Já viste selvagens fazerem o a espécie, tornar mau um ser ao torná-lo sociável e, de
amor? uma época tão recuada, trazer afinal o homem e o
Página 196. "... Ora, nenhum desses dois casos é mundo ao ponto em que os vemos ... "
aplicável à espécie humana, na qual o número das fê- Como! Não vês que as necessidades mútuas fizeram
meas ultrapassa geralmente o dos machos ... " tudo.
Nascem mais machos, mas ao cabo de vinte anos é Página 203 (segunda parte). "... O primeiro que, ten-
maior o número das fêmeas. do cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e
Página 197. "... Concluamos que, errando pelas flo- encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar ne-
restas, sem engenho, sem a palavra, sem domicílio, sem le foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos
guerra e sem vínculos, sem a menor necessidade de seus '
crimes, guerras, assassínios, quantas misérias e horrores
semelhantes, assim como sem nenhum desejo de preju- não teria poupado ao gênero humano aquele que, arran-
dicá-los, talvez até sem jamais reconhecer algum deles cando as estacas ou enchendo o fosso, houvesse gritado
individualmente, o homem selvagem, sujeito a poucas aos seus semelhantes: 'Evitai ouvir esse impostor. Esta-
paixões e bastando-se a si mesmo, tinha apenas os sen- reis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos
timentos e as luzes próprias desse estado, sentia apenas e que a terra não é de ninguém!'"
suas verdadeiras necessidades, só olhava o que acredita- Como! Quem plantou, semeou e cercou não tem
va ter interesse de ver e sua inteligência não fazia mais direito aos frutos de seus trabalhos ... Como! Um homem
progressos do que sua vaidade." injusto e ladrão teria sido o benfeitor do gênero huma-
É concluir um péssimo romance. no! Esta é a filosofia de um tratante!
Página 198. "... Quando não há amor, de que servirá Página 207. "... pois, quanto mais lentos em se su-
a beleza?... " ceder eram os acontecimentos, mais depressa são des-
A beleza estimulará o amor, e o espírito produzirá as critos ... "
belas-artes. Ridículo.
Página 200. "... Depois de haver mostrado que a per- Página 210. " e a mais doce das paixões recebe
fectibilidade, as virtudes sociais e as outras faculdades sacrifícios de sangue humano ... "
que o homem natural recebera potencialmente nunca Uma paixão que recebe sacrifícios!. ..

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Página 211. "... quando nada é tão manso como ele contratos, podemos também despojar-nos de nossa li-
em seu estado primitivo..." berdade em favor de alguém. Aí está, parece-me, um pés-
E quando era preciso disputar a natureza ... simo raciocínio, pois, em primeiro lugar, os bens que
Página 212. "... Assim, embora os homens houves- alieno se me tornam algo totalmente alheio cujo abuso
sem ficado menos tolerantes e a piedade natural já hou- me é indiferente; importa-me, porém, que não abusem
vesse sofrido certa alteração, esse período do desenvol- de minha liberdade, e não posso, sem me tornar culpa-
vimento das faculdades humanas, mantendo-se no exato do do mal que me forçarão a praticar, expor-me a vir a
meio-termo entre a indolência do estado primitivo e a ser o instrumento do crime ... "
petulante atividade de nosso amor-próprio, deve ter sido Belíssimo.
a época mais feliz e duradoura." Página 234. "... Em suma, de um lado ficaram as
Que quimera esse exato meio-termo! riquezas e as conquistas e, do outro, a felicidade e a vir-
Página 213. "... Para o poeta, foram o ouro e a prata, tude."
mas, para o filósofo, foram o ferro e o trigo que civiliza- Essa não.
ram os homens e perderam o gênero humano. Assim, Página 237. "... Mostraria que é a essa ânsia de fazer
ambos eram desconhecidos dos selvagens da América, falar de si, etc., etc ... "
que por isso continuaram a ser selvagens ... " Macaco de Diógenes, como te condenas a ti mesmo!
Os mexicanos e os peruanos, subjugados pelos sel- Página 238. "... deixariam de ser felizes se o povo
vagens espanhóis, eram muito civilizados. O México era deixasse de ser miserável, etc ... "
tão bonito quanto Amsterdã. Como exageras tudo! Como falseias tudo!
Página 214. "... [É porque ela (a Europa) é], ao mes- Página 239. "... Ver-se-ia ... tudo quanto pudesse ins-
mo tempo, a mais abundante em ferro e a mais fértil em pirar às diferentes ordens uma desconfiança e um ódio
trigo." mútuo mediante a oposição de seus direitos e de seus
Errado. interesses e, conseqüentemente, fortalecer o poder que
Página 214. " Por outro lado, há menos motivos os abarca a todos ... "
ainda para atribuir tal descoberta a algum incêndio aci- Se o poder régio abarca e reprime todas as facções,
dental, pois as minas só se formam em lugares áridos e fazes o maior elogio da realeza contra a qual esbravejas ...
desprovidos de árvores e plantas, podendo-se até dizer Página 300, nota "e". "... e, como os cavalos corpu-
que a natureza tomara precauções para os ocultar esse lentos efetuam seu crescimento em menos tempo do que
fatal segredo ... " os cavalos miúdos, vivem também menos tempo e já
O ferro é produzido em massa nos Pireneus. estão velhos aos quinze anos ... "
Página 230. "... Diz Pufendorf que, assim como trans- Errado. Tive dois cavalos de tiro que viveram trinta
ferimos nossos bens a outrem mediante convenções e e cinco anos.

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Página 303, nota "g". "... Tal é o resumo do quadro Errado.


moral, se não da vida humana, pelo menos das preten- Página 309, nota "h". "... Pretendem até que há po-
sões secretas do coração de todo homem civilizado ... " vos inteiros que têm caudas como os quadrúpedes ... "
(Nota sobre uma passagem da página 34.) Errado.
E mais ainda de todo selvagem, se ele puder. Página 321, nota "j", alínea "d". "... Enfim, Locke pro-
Página 304, nota "g". "... gostos que nem os selva- va, quando muito, que bem poderia haver no homem
gens nem os animais jamais conheceram, e que nasce- um motivo para permanecer ligado à mulher quando ela
ram nos países policiados apenas de uma imaginação tem um filho, mas não prova, em absoluto, que deveria
corrompida ... " estar ligado a ela ... "
Tudo isso é abominável e indica um péssimo conhe-
Encontrou-se essa torpeza estabelecida na América;
e, nos livros judeus que nos fazem ler, haverá um povo cimento da natureza.
mais bárbaro do que os sodomitas?
Página 305, nota "g". "... O que aconteceria se eu
empreendesse mostrar a espécie humana atacada em sua
própria fonte, etc ... "
Infeliz Jean-Jacques, cujas excrescências carnosas
são bem conhecidas, pobre sobrevivente da sífilis, igno-
ras que ela provém dos selvagens?
Página 308, nota "g". "... Quanto aos homens seme-
lhantes a mim, cujas paixões destruíram para sempre a
simplicidade original, que já não podem nutrir-se com
ervas e com frutas silvestres, nem viver sem leis e chefes·
aqueles que foram honrados na pessoa de seu primeir~
pai com lições sobrenaturais; aqueles que verão, na in-
tenção de dar primeiramente às ações humanas uma mo-
ralidade que não teriam adquirido há muito tempo, a
razão de um preceito indiferente por si só e inexplicável
em qualquer outro sistema, etc ... "
Galimatias.
Página 309, nota "h". "... sabe-se que os lapões, e
sobretudo os groenlandeses, estão muito abaixo da esta-
tura média do homem ... "

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NOTAS
1. Encontrar-se-ão na Cronologia as informações históricas so-
bre as duas obras.

Discurso sobre as cihldas e as artes

Discurso

1. Os príncipes vêem sempre com prazer o gosto das artes agra-


dáveis e das superfluidades, das quais não resulta exportação do
dinheiro, espraiar-se entre seus súditos, pois, além de nutri-los assim
nessa pequenez de alma tão própria para a servidão, sabem muito
bem que todas as necessidades que o povo se atribui são outras tan-
tas correntes que ele carrega. Querendo manter os ictiófagos em sua
dependência, Alexandre forçou-os a renunciar à pesca e a nutrir-se
de alim~ntos comuns aos outros povos; e os selvagens da América,
que andam totalmente nus e vivem apenas do produto de sua caça,
jamais puderam ser subjugados. De fato, que jugo se poderia impor
a homens que de nada precisam?
2. Gosto, diz Montaigne, de contestar e de conversar, mas com
poucos homens e para meu proveito. Porque seroir de espetáculo aos
grandes e exibir à por:fta seu espírito e sua loquacidade parece-me um
oficio muito indecoroso para um homem honrado. É este o ofício de
todos os nossos letrados, menos um.

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3. Não me atrevo a falar dessas nações felizes que não conhe- tão, muito mereceriam ser mais bem desenvolvidas por uma pena
cem sequer de nome os vícios que tanto nos custa reprimir, daqueles digna de escrever como esse mestre e de defender tão grande causa.
selvagens da América cuja simples e natural polícia Montaigne não 8. Pensées pbilosopbiques [Diderot].
hesita em preferir, não só ãs leis de Platão, mas até mesmo a tudo 0 9. Era essa a educação dos espartanos, segundo o maior de seus
que a filosofia poderá jamais imaginar de mais perfeito para o gover- reis. "É", diz Montaigne, "algo digno de imensa consideração que
no dos povos. Cita uma quantidade de exemplos deles impressionan- nessa excelente polícia de Licurgo, na verdade monstruosa por sua
tes para quem os soubesse admirar. "Mas como!" diz ele, "eles não perfeição, porém tão ciosa da criação das crianças como se fosse seu
usam calções!" principal encargo, e na própria morada das musas, se mencione tão
4. Que me digam, de boa-fé, que opinião os próprios atenienses pouco a doutrina: como se a essa generosa juventude, desdenhando
deviam ter da eloqüência, quando a afastaram com tanto cuidado qualquer outro jugo, se tivesse de fornecer, em vez de nossos mestres
desse íntegro tribunal de cujas sentenças os próprios deuses não ape- de ciência, somente mestres de valentia, de prudência e de justiça."
lavam? O que pensavam os romanos da medicina, quando a baniram Vejamos agora como o mesmo autor fala dos antigos persas.
de sua República? E quando um resto de humanidade levou os espa- "Platão", diz ele, "conta que o primogênito da sucessão real deles era
nhóis a proibir a seus jurisconsultos a entrada na América, que idéia assim criado. Depois de seu nascimento, entregavam-no não a mu-
deviam ter da jurisprudência? Não se poderia dizer que acreditaram lheres, mas a eunucos com muito prestígio junto ao rei, por causa de
estar reparando, com esse único ato, todos os males que haviam feito sua virtude. Estes se encarregavam de tomar-lhe o corpo belo e sadio
àqueles índios infelizes? e, depois dos sete anos, ensinavam-lhe montar a cavalo e caçar.
5. Vê-se facilmente a alegoria da fábula de Prometeu; e não pa- Quando chegava aos catorze anos, confiavam-no ãs mãos de quatro:
rece que os gregos, que o prenderam ao Cáucaso, o julgassem mais o mais sábio, o mais justo, o mais moderado e o mais valente da
favoravelmente do que os egípcios julgavam seu deus Teutus. "O sáti- nação. O primeiro ensinava-lhe religião; o segundo, a ser sempre ve-
ro", diz uma antiga fábula, "quis beijar e abraçar o fogo, ao vê-lo pela raz; o terceiro, a vencer a cupidez; o quarto, a nada temer." Todos,
primeira vez; mas Prometeu gritou-lhe: "Sátiro, tu chorarás a barba do acrescentarei eu, a tornarem-no bom, nenhum a torná-lo sábio.
teu queixo, pois ele queima quando se toca nele."' Astíages, em Xenofonte, pede a Ciro que lhe preste contas da
6. Quanto menos se sabe, mais se acredita saber. Os peripatéti- sua última aula: "É que em nossa escola", disse ele, "um menino gran-
cos duvidavam de alguma coisa? Descartes não construiu o universo de que tinha um saio pequeno deu-o a um de seus colegas de menor
com cubos e torvelinhos? E, hoje mesmo na Europa, haverá um físi- tamanho e tirou-lhe o saio que era maior. Tendo o nosso preceptor
co medíocre que não explique ousadamente esse profundo mistério feito de mim o juiz dessa contenda, julguei que devia deixar as coi-
da eletricidade, que causará, talvez para sempre, o desespero dos sas como estavam e que ambos pareciam mais bem acomodados
verdadeiros filósofos? nesse ponto. Diante disso, ele me fez ver que eu agira mal, pois ati-
7. Longe ~e mim pensar que essa ascendência das mulheres seja vera-me a considerar a conveniência; e, em primeiro lugar, era preci-
um mal em si. E um presente que a natureza lhes deu para a felicida- so assegurar a justiça, que exigia que ninguém fosse violentado no
de do gênero humano; mais bem dirigida, poderia produzir tanto que lhe pertencia." E diz que por isso foi punido, como nos punem
bem quanto hoje causa mal. Não se percebe bem quais vantagens em nossas aldeias por esquecer o primeiro aoristo de 't"Ú7ttro. Meu
proporcionaria ã sociedade uma melhor educação dada a essa meta- professor me faria uma bela arenga, in genere demonstrativo, antes
de do gênero humano que governa a outra. Os homens sempre farão de me persuadir de que sua escola vale essa.
o que agradar ãs mulheres; logo, se quiserdes que eles se tomem 10. Considerando-se as tremendas desordens que a imprensa já
grandes e virtuosos, ensinai ãs mulheres o que é grandeza de alma e causou na Europa, julgando-se o futuro pelo progresso que o mal fez
virtude. As reflexões que tal assunto fornece, feitas outrora por Pia- de um dia para o outro, pode-se facilmente prever que os soberanos

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não tardarão a ter tanto desvelo para banir essa arte terrível de seus fingia parecer, não teria pensado em seu retrato nem em sua estátua;
Estados quanto tiveram para introduzi-la. O sultão Achmet, cedendo porém, quanto ao seu panegírico, só teria permitido que um lacede-
às importunações de algumas pessoas de pretenso bom gosto, con- mônio o fizesse, arriscando-se a não o ter. O único elogio digno de
sentira em estabelecer um prelo em Constantinopla. Porém, mal o um rei é o que se faz ouvir, não pela boca mercenária de um orador,
prelo começou a funcionar, foram obrigados a destruí-lo e lançar seus mas pela voz de um povo livre. Para que eu sentisse prazer com vos-
instrumentos num poço. Dizem que o califa Ornar, consultado sobre sos elogios, dizia o imperador Juliano a cortesãos que lhe gabavam a
o que se devia fazer com a biblioteca de Alexandria, respondeu nes- justiça, cumpriria que ousásseis dizer o contrário, se verdade fosse·.
tes termos: "Se os livros dessa biblioteca contêm coisas opostas ao 14. É da própria questão que se poderia surpreender-se; a ma1or
Alcorão, são nocivos e devem ser queimados. Se contêm apenas a e mais bela questão que já existiu, e que talvez não seja tão cedo re-
doutrina do Alcorão, queimai-os também: são supérfluos." Nossos sá- petida. A Academia Francesa acaba de propor para o prêmio de elo-
bios citaram esse raciocínio como o cúmulo do absurdo. Entretanto, qüência do ano de 1752 um tema muito semelhante a este. Trata-se
suponde Gregório, o Grande, no lugar de Ornar e o Evangelho no de sustentar que o amor às letras inspira o amor à virtude. A Aca-
lugar do Alcorão; a biblioteca também teria sido queimada, e esse tal- demia não julgou oportuno deixar tal assunto sem solução; e, nessa
vez fosse o mais belo feito da vida desse ilustre pontífice. oportunidade, a douta sociedade dobrou o tempo que antes conce-
dia aos autores, mesmo para os temas mais difíceis.
15. Não poderia justificar-me, como muitos outros, no fato de
Carta de].-]. Rousseau que nossa educação não depende de nós e que não nos c?nsultam
para nos envenenar. Foi de muito bom grado que mergulhe1 no estu-
11. Esta refutação de Gautier será impressa no primeiro volume do, e foi com maior prazer ainda que o abandonei ao perceber a per-
do Suplemento. turbação que ele lançava em minha alma sem nenhum proveito para
a minha razão. Não quero mais uma ocupação enganadora, na qual
se acredita fazer muito pela sabedoria, fazendo tudo pela vaidade.
16. É um mau sinal para uma sociedade ser preciso tanta ciên-
Obseroações de].-]. Rousseau, de Genebra
cia naqueles que a conduzem; se os homens fossem o que devem ser,
quase não precisariam estudar para aprender as coisas que têm de
12. Como a obra do rei da Polônia a princípio era anônima e
não reconhecida pelo autor, via-me obrigado a acatar o incógnito que fazer.
17. Prefácio da Enciclopédia.
adotara; porém, tendo depois esse príncipe reconhecido publicamen- 18. Viam-se reinar, entre esses dois partidos, esse ódio e esse
te essa mesma obra, senti-me dispensado de silenciar por mais tempo desdém recíproco que em todos os tempos reinaram entre os douto-
sobre a honra que me concedeu. res e os filósofos, ou seja, entre aqueles que fazem de sua cabeça um
A obra do rei da Polônia será impressa na primeira coletânea do repertório da ciência alheia e aqueles que se vangloriam de ter uma
Suplemento da coletânea dos escritos do Sr. Rousseau. própria. Jogai um contra o outro, o professor de música e o professor
13. Todos os príncipes, bons e maus, sempre serão baixa e indi- de dança do Burguês gentil-homem, tereis o historiador da Antiguida-
ferentemente louvados enquanto houver cortesãos e letrados. Quan- de e o cultor das letras, o químico e o literato, o jurisconsulto e o
to aos príncipes que são grandes homens, para eles é preciso elogios médico, o geômetra e o versificador, o teólogo e o filósofo. Para bem
mais moderados e mais bem escolhidos. A lisonja ofende-lhes a vir- julgar de todas essas pessoas, basta remeter a elas mesmas e ouvir o
tude, e o próprio louvor pode prejudicar-lhes a glória. Estou certo, que cada uma nos diz, não de si, mas das outras.
pelo menos, de que Trajano seria maior aos meus olhos se Plínio 19. Esses primeiros escritores que selavam com o próprio san-
nunca houvesse escrito. Se Alexandre tivesse sido realmente o que gue 0 testemunho de sua pena seriam hoje autores bem escandalo-

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sos, pois sustentavam precisamente a mesma opinião que eu. São sempre desafiará a razão, a verdade e o próprio tempo, porque se
]ustino, em seu diálogo com Trifão, passa em revista as diversas sei- origina no orgulho humano, mais forte do que todas essas coisas.
tas de fllosofia que outrora havia experimentado e toma-as tão ridí- 20. Fizeram-se censuras justas a Clemente de Alexandria por ter
culas que se acreditaria estar lendo um diálogo de Luciano; vê-se tam- adotado em seus escritos uma erudição profana, pouco conveniente
bém na apologia de Tertuliano como os primeiros cristãos ficavam a um cristão. No entanto, parece que então era desculpável instruir-
ofendidos de serem tomados por filósofos. se sobre a doutrina contra a qual se tinha de defender-se. Mas quem
De fato, seria um detalhe muito desairoso para a filosofia a ex- poderia ver, sem rir, todos os trabalhos a que se dão hoje os nossos
posição das máximas perniciosas e dos dogmas ímpios dessas diver- sábios para esclarecer os devaneios da mitologia?
sas seitas. Os epicuristas negavam qualquer providência, os acadêmi- 21. "Nossa fé", diz Montaigne, "não é aquisição nossa, é um
cos duvidavam da existência da divindade e os estóicos, da imortali- puro presente da liberalidade de outrem. Não foi por nosso discurso
dade da alma. As seitas menos célebres não tinham melhores senti- ou por nosso entendimento que recebemos nossa religião, foi por
mentos. Eis uma amostra disso em Teodoro, chefe de um dos dois ra- autoridade e injunção alheia. Nesse caso, a fraqueza de nosso juízo
mos dos cirenaicos, relatada por Diógenes Laércio: Sustulít amicitiam nos ajuda mais do que a força, e nossa cegueira, mais do que nossa
quod ea neque insipientibus neque sapientibus adsit... Probabile dice- clarividência. É por intermédio de nossa ignorância que somos sá-
bat prudentem virum non seipsum pro patria periculis exponere, bios. Não é de admirar que nossos meios naturais e terrestres não
neque enim pro insipientium commodis amittendam esse pruden- possam conceber esse conhecimento sobrenatural e celeste. Leve-
tiam. Furto quoque et adulterio et sacrilegio cum tempestivum erit mos-lhes somente o que possuímos, a obediência e a sujeição, pois,
daturum operam sapientem. Nibil quippe borum turpe natura esse. como está escrito: 'Eu destruirei a sapiência dos sábios e abaterei a
Sed auferatur de bisce vulgaris opinio, quae e stultorum imperitorum- prudência dos prudentes.'"
que plebecula conjlata est... sapientem publice absque ullo pudore ac 22. O duque de Rochefoucauld.
suspicione scortis congressurum. 23. Quando se trata de objetos tão gerais como os costumes e as
Essas opiniões são particulares, eu sei; mas haverá uma só entre maneiras de um povo, deve-se tomar cuidado para não se restringir a
todas as seitas que não tenha caído em algum erro perigoso? E o que visão sempre aos exemplos particulares. Seria um meio de nunca per-
diremos da distinção das duas doutrinas, recebidas com tanta avidez ceber as fontes das coisas. Para saber se tenho razão de atribuir a po-
por todos os filósofos, e pela qual eles professavam em segredo sen- lidez à cultura das letras, não é preciso investigar se este ou aquele
timentos contrários aos que ensinavam publicamente? Pitágoras foi o erudito são pessoas polidas; mas é preciso examinar as relações que
primeiro a fazer uso da doutrina interior; só a revelava aos seus dis- podem existir entre a literatura e a polidez e depois ver quais são os
cípulos depois de longas provas e com o maior mistério; dava-lhes povos entre os quais tais coisas estavam reunidas ou separadas. Digo
secretamente lições de ateísmo e oferecia solenemente hecatombes a o mesmo do luxo, da liberdade e de todas as outras coisas que in-
Júpiter. Os filósofos deram-se tão bem com esse método que este se fluenciâm os costumes de uma nação e sobre as quais ouço, todos os
alastrou rapidamente pela Grécia, e daí passou para Roma, como se dias, tantos raciocínios deploráveis. Examinar tudo isso em detalhes
vê pelas obras de Cícero, que zombava com seus amigos dos deuses e acerca de alguns indivíduos não é filosofar, é perda de tempo e de
imortais, os quais tomava por testemunhas na tribuna e nas arengas. reflexões, pois pode-se conhecer a fundo Pierre ou Jacques e ter-se
A doutrina interior não foi levada da Europa para a China, mas feito muito pouco progresso no conhecimento dos homens.
lá também nasceu com a filosofia, sendo a ela que os chineses devem 24. Ficarei muito espantado se um de meus críticos basear-se no
essa multidão de ateus ou de filósofos que têm entre si. A história elogio que fiz de vários povos ignorantes e virtuosos para opor-me a
dessa fatal doutrina, feita por um homem instruído e sincero, seria lista de todos os bandos de salteadores que infestaram a terra e que,
um golpe terrível dado à filosofia antiga e moderna. Mas a filosofia em geral, não eram homens muito sábios. Exorto-os de antemão a

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não se esfalfarem nessa pesquisa, a não ser que a considerem neces- os homens afáveis. Mas a afabilidade, que é a mais amável das virtu-
sária para mostrar erudição. Se eu tivesse dito que basta ser ignoran- des, é também às vezes uma fraqueza da alma. A virtude nem sem-
te para ser virtuoso, não valeria a pena responder-me e, pela mesma pre é afável, sabe armar-se no momento oportuno de severidade con-
razão, eu me julgarei inteiramente dispensado de responder eu mes- tra o vício, inflama-se de indignação contra o crime.
mo aos que perderem seu tempo sustentando-me o contrário. Vede o
E o justo ao mau não sabe perdoar.
Timão de Voltaire.
25. Restariam-nos os vícios, diz o filósofo que já citei, e teríamos, Foi muito sábia esta resposta de um rei da Lacedemônia aos que
além disso, a ignorância. Nas poucas linhas que este autor escreveu louvavam em sua presença a extrema bondade de seu colega Carilo.
sobre esse grande tema, vê-se que voltou os olhos para esse lado e E como seria ele bom, disse-lhes ele, se não sabe ser terrível com os
enxergou longe. maus?- Quod maios boni oderint, bonos oportet esse. Bruto não era
um homem afável; quem teria coragem de dizer que não era virtuo-
so? Ao contrário, há almas covardes e pusilânimes que não têm ardor
Última resposta de].-]. Rousseau nem calor e que são afáveis apenas por indiferença pelo bem e pelo
mal. Assim é a afabilidade que o gosto das letras inspira aos povos.
26. Rousseau responde aqui ao discurso do Sr. Bordes, acadêmi- 29. Sócrates perdeu a vida por dizer precisamente as mesmas
co de Lyon, que será impresso no primeiro volume do suplemento. coisas que eu. No processo que lhe foi intentado, um dos seus acu-
27. Há verdades muito evidentes que à primeira vista parecem sadores advogava pelos artistas, o outro pelos oradores, o terceiro
absurdos, e que sempre passarão por tais para a maioria das pessoas. pelos poetas, todos pela pretensa causa dos deuses. Os poetas, os
Ide dizer a um homem do povo que o Sol está mais perto de nós no artistas, os fanáticos, os retóricos triunfaram, e Sócrates pereceu.
inverno do que no verão, ou que já se pôs antes que deixemos de vê- Temo muito ter dignificado demais meu século ao afirmar que nele
lo, e ele zombarã de vós. O mesmo sucede com a opinião que sus- Sócrates não teria bebido a cicuta. Deve-se observar que eu dizia isso
tento. Os homens mais superficiais sempre foram os mais prontos a já no ano de 1752.
tomar partido contra mim; os verdadeiros filósofos são menos preci- 30. Não há uma vez que eu assista à representação de uma
pitados e, se tenho a glória de ter feito alguns prosélitos, foi apenas comédia de Moliere que não admire a delicadeza dos espectadores.
entre estes últimos. Antes de me explicar, meditei longa e profunda- Uma palavra um tanto livre, uma expressão antes grosseira do que
mente sobre meu assunto e empenhei-me em considerá-lo sob todos obscena, tudo lhes fere os castos ouvidos; e de modo algum duvido
os seus ângulos. Duvido que algum dos meus adversários possa dizer que os mais corrompidos sejam sempre os mais escandalizados.
o mesmo. Pelo menos não observo em seus escritos essas verdades Entretanto, se comparássemos os costumes do século de Moliere com
luminosas que impressionam tanto por sua evidência como por sua os do nosso, alguém acreditaria que o resultado seria vantajoso para
novidade e que sempre são o fruto e a prova de urna meditação sufi- este? Quando a imaginação é maculada uma vez, tudo se lhe toma
ciente. Ouso dizer que nunca me fizeram uma objeção razoável que um motivo de escândalo. Quando não se tem mais nada de bom
eu não houvesse previsto e à qual não tenha respondido de antemão. além do exterior, redobram-se todos os cuidados para conservá-lo.
É por isso que sou obrigado a repetir sempre as mesmas coisas. 31. Opuseram-me em certo trecho o luxo dos asiáticos, com
28. Os conhecimentos tornam os homens afáveis, diz esse filóso- essa mesma maneira de raciocinar que faz com que me oponham os
fo ilustre cuja obra sempre profunda e por vezes sublime exala em vícios dos povos ignorantes. Mas, por uma infelicidade que persegue
todas as passagens o amor à humanidade. Escreve nessas poucas meus adversários, eles se enganam até nos fatos, que nada provam
palavras, e, o que é raro, sem ênfase, o que jamais se escreveu de tão contra mim. Bem sei que os povos do Oriente não são menos igno-
sólido em proveito das letras. É verdade, os conhecimentos tomam rantes do que nós; mas isso não impede que também sejam vãos e

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escrevam quase o mesmo tanto de livros. Os turcos, de todos eles os vícios de uma multidão de povos ignorantes, como se isso tivesse
que menos cultivam as letras, contavam entre eles quinhentos e alguma importância para a questão. Por a ciência engendrar necessa-
oitenta poetas clássicos por volta do século passado. riamente o vício, conclui-se que a ignorância engendra necessaria-
32. Não tenho nenhum propósito de fazer a corte às mulheres; mente a virtude? Essas formas de argumentar podem ser boas para
consinto que elas me honrem com o epíteto de pedante, tão temido retóricos, ou para as crianças pelas quais me fizeram refutar em meu
por todos os nossos galantes filósofos. Sou grosseiro, rabugento, país. Os filósofos, porém, devem raciocinar de outro modo.
indelicado por princípios, e não quero aduladores. Assim, vou dizer 34. O luxo alimenta cem pobres em nossas cidades e faz pere-
a verdade totalmente à vontade. cer cem mil em nossos campos; o dinheiro que circula entre as mãos
O homem e a mulher são feitos para amar-se e unir-se; mas, dos ricos e dos artistas para atender às suas superfluidades está per-
afora essa união legítima, toda relação de amor entre eles é uma ter- dido para a subsistência do lavrador; e este não tem roupa precisa-
rível fonte de desordens na sociedade e nos costumes. Claro que ape- mente porque os outros precisam de galões. Só o desperdício dos
nas as mulheres poderiam trazer de volta a honra e a probidade à materiais que servem para a alimentação dos homens basta para tor-
nossa sociedade; mas rejeitam das mãos da virtude um domínio que nar o luxo odioso à humanidade. Meus adversários são muito felizes
só querem dever aos seus encantos. Assim elas só fazem o mal e, por a culpável delicadeza da nossa língua impedir-me de entrar,
com freqüência, recebem elas mesmas a punição de tal preferência. nesse ponto, em detalhes que os fariam envergonhar-se da causa que
É difícil conceber como, numa religião tão pura, a castidade pôde tor- ousam defender. São necessários sucos em nossa cozinha, e por isso
nar-se uma virtude baixa e monacal capaz de tornar ridículo qualquer tantos doentes carecem de caldo. São necessários licores em nossas
homem e, diria eu, quase toda mulher que se atrevesse a exibi-la, ao mesas, e por isso o camponês só bebe água. É necessário pó para as
passo que, entre os pagãos, essa mesma virtude era universalmente nossas perucas, e por isso tantos pobres não têm pão.
reverenciada, considerada como própria dos grandes homens e ad- 35. Esta nota é para os filósofos, aconselho aos outros a deixa-
mirada em seus mais ilustres heróis. Posso citar três que não ficarão rem de lado.
atrás de nenhum outro e que, sem a intromissão da religião, deram Se o homem é mau por natureza, é claro que as ciências apenas
todos exemplos memoráveis de continência: Ciro, Alexandre e o o tornarão pior; assim, só por essa suposição, eis a causa deles per-
jovem Cipião. De todas as raridades contidas no gabinete do rei, gos- dida. Mas é preciso prestar muita atenção porque, conquanto o ho-
taria de ver apenas o escudo de prata que lhe foi dado pelos povos mem seja naturalmente bom, como creio e como tenho a felicidade
da Espanha e no qual estava gravado o triunfo da virtude. Foi assim
de o sentir, daí não se segue que as ciências lhe sejam salutares, pois
que coube aos romanos submeter os povos, tanto pela veneração
qualquer conjuntura que põe um povo em situação de cultivá-las pre-
devida aos seus costumes quanto pelo esforço de suas armas. Foi
nuncia necessariamente um começo de corrupção que elas depressa
assim que a cidade dos faliscos foi subjugada e Pirro, vencedor, ex-
aceleram. Então o vício da constituição faz todo o mal que poderia
pulso da Itália.
fazer d da natureza, e os maus preconceitos substituem as más incli-
Lembro-me de ter lido em algum lugar uma boa resposta do
poeta Dryden a um jovem senhor inglês que lhe censurava porque, nações.
numa de suas tragédias, Cleômenes se divertia conversando na inti- 36. Péricles tinha grandes talentos, muita eloqüência, magnifi-
midade com sua amante ao invés de empreender algo digno de seu cência e gosto; embelezou Atenas com excelentes obras de escultura,
amor. "Quando estou junto de uma beldade", dizia-lhe o jovem lorde, com edifícios suntuosos e com obras-primas em todas as artes. Assim,
"sei aproveitar melhor o tempo." "Acredito", replicou-lhe Dryden, sabe Deus como foi gabado pela multidão dos escritores! Entretanto,
"mas também devereis confessar-me que não sois um herói." resta ainda saber se Péricles foi um bom magistrado, pois na condu-
33. Não posso deixar de rir ao ver nào sei quantos homens mui- ção dos Estados não se trata de erigir estátuas, mas de bem governar
to sábios, que me honram com suas críticas, oporem-me sempre os os homens. Não perderei meu tempo desenvolvendo os motivos

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secretos da guerra do Peloponeso, que foi a ruína da República; não 40. Se Tito não tivesse sido imperador, jamais teríamos ouvido
investigarei se o conselho de Alcibíades era bem ou mal fundado, se falar dele, pois teria continuado a viver como os outros; e só se tor-
Péricles foi justa ou injustamente acusado de malversação; indagarei nou homem de bem quando, deixando de receber o exemplo de seu
somente se os atenienses se tornaram melhores ou piores sob o seu século, foi-lhe possível dar outro melhor. Privatus atque etíam sub
governo; pedirei que me nomeiem alguém entre os cidadãos, entre patre príncipe, ne odio quidem, nedum vituperatione publica caruit.
os escravos, mesmo entre seus próprios filhos, que seus cuidados te- At illi ea fama pro bono cessit, conversaque est in maximas laudes.
nham feito um homem de bem. Esta é, porém, parece-me, a primei- [Suetônio, Vida de Tito.]
ra função do magistrado e do soberano, pois o meio mais rápido e 41. Não é preciso perguntar se os pais e os professores estarão
seguro de tornar os homens felizes não é ornar suas cidades nem atentos em afastar meus perigosos escritos dos olhos dos filhos e dos
sequer enriquecê-los, mas sim torná-los bons. alunos. Com efeito, que horrível desordem, que indecência não seria
37. Vejo a maioria dos espíritos do meu tempo aplicarem todo se essas crianças tão bem educadas viessem a desdenhar tantas coi-
seu engenho para obscurecer a glória das belas e generosas ações sas tão bonitas e a preferir de fato a virtude ao saber? Isso lembra-me
antigas, dando-lhes alguma interpretação aviltante e inventando cir- a resposta de um preceptor lacedemônio, a quem perguntavam por
cunstâncias e causas vãs para as explicar. Grande sutileza! Dêem-me mofa o que ensinaria ao seu aluno. Eu lhe ensinarei, disse ele, a
a ação mais bela e pura, provavelmente posso atribuir-lhe cinqüenta amar as coisas honestas. Se eu encontrasse um homem assim entre
intenções viciosas. Deus sabe quanto a nossa vontade íntima pode nós, dir-lhe-ia ao ouvido: "Tornai muito cuidado para não falar assim,
ser diversamente interpretada por quem quiser ampliá-la. Os enge- pois nunca tereis discípulos; mas dizei que lhes ensinareis a tagarelar
nhosos, com sua maledicência, não são tão maliciosos quanto estúpi- agradavelmente e responsabilizo-me por vossa fortuna."
dos e grosseiros. O mesmo trabalho que têm em detratar esses gran- 42. Perguntar-me-ão, talvez, que mal pode fazer ao Estado um
des nomes, e a mesma licença, eu o teria de bom grado para dar-lhes cidadão que sai para não mais voltar. Faz mal aos outros pelo mau
um empurrão para engrandecê-los. Não hesitaria em engrandecer exemplo que dá, o faz a si mesmo pelos vícios que vai procurar. De
ainda mais, o quanto pudesse minha imaginação, essas raras figuras, qualquer modo, cabe à lei prevenir isso, sendo preferível que seja
selecionadas pelos sábios para servirem de exemplo ao mundo. E enforcado a ser mau.
cumpre crer que os esforços de nossa imaginação ficam bem abaixo 43. Passa-me pela cabeça um novo projeto de defesa, e não ga-
do seu mérito. É dever dos homens de bem pintar a virtude a mais ranto que ainda não tenha a fraqueza de um dia executá-lo. Essa de-
bela possível. E não haveria inconveniente se a paixão nos induzisse fesa será composta apenas de razões tiradas dos filósofos; daí se
a exagerar os elogios a tão santas formas. Não é Rousseau que diz seguirá que, se acharem más suas razões, todos eles foram falastrões
tudo isso, é Montaigne. como pretendo, ou, se as acharem boas, tenho causa ganha.
38. Cúrio, ao recusar os presentes dos sarnnitas, dizia que prefe- 44. Há até pequenos resumos críticos feitos para o entreteni-
ria mandar naqueles que possuíam ouro do que o possuir pessoal- mento' dos jovens, em que me dão a honra de lembrar-se de mim. Não
mente. Cúrio tinha razão. Aqueles que amam as riquezas são feitos os li e com toda certeza não os lerei, mas nada me impede de dar-
para servir e aqueles que as desprezam, para mandar. Não é a força lhes a atenção que merecem, e não duvido que tudo isso seja muito
do ouro que sujeita os pobres aos ricos, mas é porque eles querem divertido.
enriquecer por sua vez; sem isso, seriam infalivelmente os senhores. 45. Garantem-me que o Sr. Gautier deu-me a honra de replicar-
39. Se eu continuasse a discutir com meus adversários, sua arro- me, embora eu não lhe houvesse respondido e houvesse mesmo
gância acabaria me levando à indiscrição. Acreditam impressionar-me exposto minhas razões para não o fazer. Parece que o Sr. Gautier não
com seu desprezo pelos pequenos Estados. Não temerão que alguma acha boas essas razões, já que se dá ao trabalho de refutá-las. Bem
vez eu lhes pergunte se é bom que haja grandes? vejo que devo ceder ao Sr. Gautier e concordo de todo o coração que

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errei em não lhe responder; assim, estamos de pleno acordo. Sinto é Ego cur, acquirere pauca
não poder reparar a minha falha. Pois, infelizmente, já passou da Si possum, invideor; cum língua Catonis et Enni
hora, e ninguém saberia do que quero falar. Sermonem Patrium ditaverit?
[Horácio, Arte poética)

Carta ao abade Raynal Quis, sobretudo, transmitir exatamente a minha idéia; sei, é ver-
dade, que a primeira regra de todos os nossos escritores é a de escre-
ver corretamente e, como dizem, falar em francês; é porque eles têm
46. Discurso, p. 49.
pretensões e querem mostrar ter correção e elegância. Minha primei-
ra regra, para mim que não me preocupo de modo algum com o que
pensarão de meu estilo, é a de fazer-me entender; todas as vezes que,
Carta de].-]. Rousseau, de Genebra
com a ajuda de dez solecismos, puder expressar-me com mais força
e clareza, jamais hesitarei. Desde que seja bem compreendido pelos
47. Se o autor me der a honra de refutar esta carta, não há que
ftlósofos, de bom grado deixo os puristas correrem atrás das palavras.
se duvidar que me provará numa bela e douta demonstração, apoia-
da em autoridades muito sérias, que não é um crime possuir terras;
com efeito, é possível que não o seja para outros, mas seria um para
Discurso sobre a origem e os fundamentos
mim.
da desigualdade entre os homens
48. Pode-se ver no Discurso de Lyon um belíssimo modelo da
maneira pela qual convém aos filósofos atacar e combater sem alu- À República de Genebra
sões ofensivas e sem invectivas. Orgulho-me de que também encon-
trarão em minha resposta, que está no prelo, um exemplo de como 1. Heródoto conta que, depois do assassínio do falso Esmérdis,
se pode defender o que se crê verdadeiro, com a força de que se é estando reunidos os sete libertadores da Pérsia para deliberar sobre a
capaz, sem aspereza contra aqueles que atacam. forma do governo que dariam ao Estado, Otanes opinou vigorosa-
49. Se eu dissesse que uma citação tão extravagante vem sem mente a favor da república; parecer tanto mais extraordinário na boca
dúvida alguma de alguém a quem o método grego de Clénard é mais de um sátrapa quanto, além da pretensão que ele poderia ter ao
familiar do que os Oficios de Cícero e que, por conseguinte, parece império, os grandes temem mais do que a morte um tipo de governo
portar-se bem gratuitamente como defensor das boas letras; se acres- que os force a respeitar os homens. Otanes, como bem se pode ima-
centasse que há profissões como, por exemplo, a cirurgia, em que se ginar, não foi ouvido e, vendo que iam proceder à eleição de um
empregam tantos termos derivados do grego, que isso impõe aos monarca, ele, que não queria obedecer nem comandar, cedeu volun-
que as exercem a necessidade de ter algumas noções elementares tariamente aos outros concorrentes seu direito à coroa, pedindo
dessa língua; isso seria adotar o tom do novo adversário, e respon- como única compensação serem, ele e sua posteridade, livres e inde-
der como ele teria feito em meu lugar. Quanto a mim, posso responder pendentes, o que lhe foi concedido. Mesmo que Heródoto não nos
que, quando arrisquei a palavra Investigação, quis prestar um ser- informasse a restrição que foi imposta a esse privilégio, cumpriria
viço à língua, tentando introduzir-lhe um termo suave, harmonio- necessariamente pressupô-la; de outro modo Otanes, não reconhe-
so, cujo sentido já é conhecido, e não tem sinônimo em francês. cendo nenhuma espécie de lei e não tendo de prestar contas a nin-
Estas são, creio, todas as condições exigidas para autorizar essa guém, teria sido todo-poderoso no Estado e mais poderoso do que o
liberdade salutar: próprio rei. Porém não havia muita possibilidade de que um homem,
capaz de contentar-se num caso assim com tal privilégio, fosse capaz

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de abusar dele. Com efeito, não se sabe que esse direito tenha cau- a andar sobre quatro pés e precisam de nosso exemplo e de nossas
sado jamais a menor perturbação no reino, nem pelo sábio Otanes, lições para aprender a manter-se de pé. Há mesmo algumas nações
nem por nenhum de seus descendentes. selvagens, tais como a dos hotentotes, os quais, muito descuidados
das crianças, deixam-nas andar sobre as mãos tanto tempo que
depois têm muito trabalho para reerguê-las; o mesmo acontece com
Prefácio as crianças dos caraíbas das Antilhas. Há vários exemplos de homens
quadrúpedes e eu poderia citar, entre outros, o do menino que foi
2. Desde meu primeiro passo, apóio-me com confiança numa encontrado, em 1344, perto de Hesse, onde fora criado por lobos e
dessas autoridades respeitáveis para os filósofos, porque provêm de que depois dizia, na côrte do príncipe Henrique, que, se dependesse
uma razão sólida e sublime que apenas eles sabem encontrar e en- apenas dele, preferiria voltar para eles a viver entre os homens. Tanto
tender. se habituara a andar como esses animais que foi preciso amarrarem-
"Por mais interesse que tenhamos em conhecer a nós mesmos, lhe pedaços de pau que o forçavam a ficar em pé equilibrado sobre
não sei se não conhecemos melhor tudo quanto não está em nós. os dois pés. Dava-se o mesmo com a criança encontrada em 1694 nas
Providos pela natureza de órgãos destinados unicamente à nossa florestas da Lituânia e que vivia entre os ursos. Não apresentava, diz
conservação, só os empregamos para receber as impressões alheias, Condillac, nenhuma mostra de razão, andava sobre os pés e as mãos,
só procuramos expandir-nos para fora e existir fora de nós; ocupados não tinha linguagem nenhuma e formava sons que em nada se pare-
demais em multiplicar as funções de nossos sentidos e em aumentar ciam com os de um homem. O pequeno selvagem de Hanôver, que
a extensão exterior de nosso ser, raramente usamos esse sentido inte- há vários anos foi levado à côrte da Inglaterra, tinha todas as dificul-
rior que nos reduz a nossas verdadeiras dimensões e separa de nós dades do mundo para aceitar andar sobre os dois pés e, em 1719,
tudo quanto não nos pertence. Entretanto, é desse sentido que temos encontraram-se dois outros selvagens nos Pireneus que corriam pelas
de nos servir, se quisermos nos conhecer, somente por ele podere- montanhas da mesma maneira que os quadrúpedes. Se nos objeta-
mos nos julgar. Mas como dar a esse sentido a sua atividade e toda a rem que, nesse caso, ficaremos privados do uso das mãos, do qual
sua extensão? Como libertar nossa alma, na qual ele reside, de todas tiramos tantas vantagens, responderemos que, além de o exemplo
as ilusões de nosso espírito? Perdemos o hábito de empregá-la, ela dos macacos mostrar que a mão pode muito bem ser empregada das
ficou sem atividade em meio ao tumulto de nossas sensações corpo- duas maneiras, isso provaria somente que o homem pode dar aos
rais, definhou pelo fogo de nossas paixões; o coração, o espírito, o seus membros uma destinação mais cômoda do que a da natureza, e
sentido, tudo trabalhou contra ela." História natural, T. 4, p. 151, Da não que a natureza destinou o homem a andar de um modo diferen-
natureza do homem [BuffonJ. te do que ela lhe ensina.
Parece-me, porém, que se podem apresentar razões muito me-
lhores para sustentar que o homem é um bípede. Primeiramente,
Discurso sobre origem e os fundamentos ainda que se fizesse ver que no princípio ele poderia ter conforma-
da desigualdade entre os homens ção diferente da que conhecemos e entretanto se tomar por fim o
que é, isso não bastaria para concluir que tenha sido assim, pois, de-
a) As mudanças que pôde produzir na conformação do homem pois de ter mostrado a possibilidade dessas mudanças, cumpriria
o antigo hábito de andar sobre dois pés, as relações que ainda se ainda, antes de admiti-las, mostrar ao menos sua verossimilhança.
observam entre seus braços e as patas anteriores dos quadrúpedes e Ademais, se os braços do homem parecem poder ter-lhe servido de
a indução tirada de seu modo de andar fizeram nascer dúvidas sobre pernas quando necessário, esta é a única observação favorável a tal
o modo que nos deveria ser mais natural. Todas as crianças começam sistema contra um grande número de outras que lhe são contrárias.

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As principais são: que o modo como a cabeça do homem é presa ao "Como os vegetais extraem para se nutrir muito mais substãncia
corpo, ao invés de dirigir sua vista horizontalmente, como a têm to- do ar e da água do que da terra, acontece que, ao apodrecer, devol-
dos os outros animais, e como tem ele próprio ao andar ereto, ter- vem à terra mais do que dela extraíram; aliás, uma floresta determina
lhe-ia mantido, andando de quatro pés, os olhos diretamente fixados as águas da chuva ao reter os vapores. Assim, num bosque que se
no chão, situação muito pouco favorável à conservação do indivíduo; conservasse muito tempo intocado, aumentaria consideravelmente a
que a cauda que lhe falta, e com a qual não teria o que fazer andan- camada de terra que serve para a vegetação; mas, como os animais
do de dois pés, é útil aos quadrúpedes, e que nenhum deles deixa de devolvem menos à terra do que dela extraem, e os homens conso-
tê-la; que o seio da mulher, muito bem situado para um bípede que mem enormes quantidades de madeira e de plantas para o fogo e
carrega o ftlho nos braços, o é tão mal para um quadrúpede que ne- para outros usos, conclui-se que a camada de terra vegetal de uma
nhum o tem colocado dessa maneira; que, sendo o quarto traseiro de região habitada deve diminuir sempre e ftcar, por ftm, como o terre-
uma altura excessiva em proporção às pernas dianteiras, o que faz no da Arábia Pétrea, e como o de tantas outras províncias do Oriente,
com que, andando de quatro, arrastemo-nos sobre os joelhos, o todo que são, de fato, as terras há mais tempo habitadas, onde só se en-
teria formado um animal mal proporcionado e que andaria pouco contram sal e areia, pois o sal ftxo das plantas e dos animais perma-
comodamente; que se ele colocasse o pé espalmado como a mão, nece, enquanto todas as outras partes se volatilizam." Buffon, Histó-
teria na perna posterior uma articulação a menos que os outros ani- ria natural.
mais, a saber, aquela que une o canon à tíbia, e que, apoiando ape-
Pode-se acrescentar a isso a prova de fato pela quantidade de
nas a ponta do pé, como decerto se veria obrigado a fazer, o tarso,
árvores e de plantas de toda a espécie que recobriam quase todas as
sem falar da pluralidade dos ossos que o compõem, parece muito
ilhas desertas que foram descobertas nestes últimos séculos e pelo
grande para substituir o canon e suas articulações, sendo o metatar-
que a História nos ensina acerca das imensas florestas que foi preci-
so e a tíbia muito próximos para dar à perna humana, nessa situação,
so abater por toda a terra à medida que esta foi povoada ou policia-
a mesma flexibilidade que têm as dos quadrúpedes. O exemplo das
crianças, sendo tomado numa idade em que as forças naturais ainda da. Sobre isso farei ainda as três seguintes observações: a primeira é
não se desenvolveram nem os membros se fortaleceram, não conclui que, se há uma espécie de vegetais que pode compensar o desperdí-
absolutamente nada; podendo-se do mesmo modo dizer que os cães cio de matéria vegetal feito pelos animais, segundo o raciocínio de
não são destinados a andar, porque se limitam a rastejar até algumas Buffon, são sobretudo os bosques, cujas frondes e folhas acumulam
semanas depois de seu nascimento. Os fatos particulares têm também e retêm mais água e vapores do que fazem as outras plantas; a segun-
pouca força contra a prática universal de todos os homens, mesmo da é que a destruição do solo, ou seja, a perda da substãncia apro-
das nações que, não tendo tido nenhuma comunicação com as ou- priada à vegetação, deve acelerar-se à proporção que a terra for mais
tras, nada puderam imitar delas. Uma criança abandonada numa flo- cultivada e os habitantes mais industriosos consumirem uma quanti-
resta antes de poder andar, e criada por algum bicho, terá seguido o dade maior de suas produções de toda a espécie. Minha terceira e
exemplo daquele que a cria, exercitando-se em andar como ele; o mais inlportante observação é que os frutos das árvores fornecem ao
hábito poderá ter-lhe dado facilidades que não lhe vinham da natu- animal uma alimentação mais farta do que podem fornecer os outros
reza e, como os manetas conseguem, à força de exercício, fazer com vegetais, experiência que ftz pessoalmente, comparando os produtos
os pés tudo o que fazemos com as mãos, a criança terá conseguido de dois terrenos iguais em tamanho e em qualidade, um coberto de
afinal empregar as mãos no uso dos pés. castanheiras e o outro semeado de trigo.
b) Caso se encontre entre meus leitores algum estudioso das leis c) Entre os quadrúpedes, as duas distinções mais universais das
da natureza bastante fraco para me levantar dificuldades sobre a su- espécies vorazes se baseiam, uma na forma dos dentes e a outra na
posição dessa fertilidade natural da terra, vou responder-lhe com a conformação dos intestinos. Os animais que vivem só de vegetais têm
seguinte passagem: todos os dentes chatos, como o cavalo, o boi, o carneiro e a lebre,

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mas os vorazes os têm pontiagudos, como o gato, o cachorro, o lobo Os relatos dos viajantes estão repletos de exemplos da força e
do vigor dos homens nas nações bárbaras e selvagens; elogiam quase
e a raposa. E, quanto aos intestinos, os frugívoros têm alguns, como
da mesma forma sua destreza e ligeireza e, como os olhos bastam
o cólon, que não existem nos animais vorazes. Parece portanto que
para observar tais coisas, nada impede que acreditemos no que cer-
o homem, tendo os dentes e os intestinos iguais aos dos animais fru-
tificam testemunhas oculares a esse respeito. Tiro ao acaso alguns
gívoros, deveria naturalmente ser incluído nessa classe: não só as
exemplos dos primeiros livros que me caem na mão.
observações anatômicas conflilllam essa opinião, mas também os
"Os hotentotes", diz Kolben•, "entendem melhor de pesca do
monumentos da Antiguidade lhe são muito favoráveis. "Dicearco",
que os europeus do Cabo. Sua habilidade é igual na rede, no anzol e
diz São Jerônimo, "conta em seus Livros das antiguidades gregas que,
no dardo, tanto nas enseadas como nos rios. Com a mesma habilida-
sob o reinado de Saturno, quando a terra ainda era fértil por si só, ne- de pegam o peixe com a mão. Têm uma destreza incomparável para
nhum homem comia carne, mas todos viviam dos frutos e dos legu- nadar. Seu modo de nadar tem algo de surpreendente e que lhes é
mes que cresciam naturalmente." (Liv. II, Adv. ]ovinian.) [Essa opi- inteiramente peculiar. Nadam com o corpo reto e as mãos estendidas
nião pode também apoiar-se nos relatos de vários viajantes moder- fora da água, de sorte que parecem andar sobre a terra. Quando o
nos. Francisco Coreal, entre outros, declara que a maioria dos habitan- mar está agitadíssimo e as ondas formam montanhas, parecem dan-
tes das Lucaias que os espanhóis transportaram para as ilhas de Cuba, çar sobre o dorso das ondas, subindo e descendo como um pedaço
de São Domingos e para outros lugares, morreram por ter comido de cortiça."
carne.]• Pode-se ver, com isso, que omito muitas vantagens que "Os hotentotes", diz ainda o mesmo autor, "têm uma destreza
poderia ressaltar. Porque, sendo a presa quase que o único motivo de surpreendente na caça, e a ligeireza de sua corrida ultrapassa a ima-
combate entre os animais carnívoros, e vivendo os frugívoros entre si ginação." Espanta-se ele que não empreguem com mais freqüência
numa paz contínua, se a espécie humana fosse deste último gênero, sua agilidade para o mal, o que entretanto lhes acontece algumas
está claro que teria tido muito mais facilidade para subsistir no esta- vezes, como se pode julgar pelo exemplo que dá: "Um marinheiro
do de natureza, muito menos necessidade e ocasiões para dele sair. holandês encarregou, ao desembarcar no Cabo, um hotentote de
d) Todos os conhecimentos que requerem reflexão, todos aque- acompanhá-lo à cidade com um rolo de tabaco de cerca de vinte
les que só se adquirem pelo encadeamento das idéias e só se aper- libras. Quando estavam ambos a certa distância do grupo, o hotento-
feiçoam sucessivamente, parecem estar completamente fora do alcan- te perguntou ao marinheiro se sabia correr. - Correr! respondeu o
ce do homem selvagem por falta de comunicação com seus seme- holandês. - Sim, muito bem. - Vejamos, replicou o africano e, fugin-
lhantes, ou seja, por falta do instrumento que propicia essa comuni- do com o tabaco, desapareceu quase imediatamente. O marinheiro,
cação e das necessidades que a tomam indispensável. Seu saber e confuso com aquela fantástica velocidade, não pensou em persegui-
seu engenho limitam-se a saltar, correr, lutar, lançar uma pedra, tre- lo e nunca mais reviu seu tabaco nem o seu carregador.
par numa árvore. Porém, se sabe apenas essas coisas, em compensa- Eles têm a vista tão pronta e a mão tão certeira que os europeus
ção as sabe muito melhor do que nós, que delas não temos a mesma nem chegam perto deles. A cem passos, acertarão com uma pedrada
necessidade que eles; e, como elas dependem unicamente do exercí- uma marca do tamanho de uma moeda de meio soldo, e o mais im-
cio do corpo e não são suscetíveis de nenhuma comunicação nem de pressionante é que, ao invés de fixar como nós os olhos no alvo, fa-
progresso algum de um indivíduo para o outro, o primeiro homem zem movimentos e contorções contínuas. Parece que a pedra deles é
pôde ser tão hábil nelas como seus últimos descendentes. levada por uma mão invisível."

• Pedro Kolben (1675-1726), viajante e naturalista alemão, autor de Via-


• Edição de 1782. Viajante espanhol (cerca de 1648-1708), a quem se
atribui a autoria de Viagens de Francisco Coreal às Índias ocidentais (1722). gem ao cabo da Boa Esperança (1719), cujo resumo foi publicado na França,
em 1741, com o título Descrição do cabo da Boa Esperança. (N. da T.)
(N. da T.)

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o Padre du Tertre• escreve sobre os selvagens das Antilhas qua- filhotes, que jamais excede dois em cada ninhada para as espécies
se as mesmas coisas que acabamos de ler sobre os hotentotes do que vivem só de vegetais e que comumente ultrapassa esse número
cabo da Boa Esperança. Elogia-lhes sobretudo a precisão para acer- para os animais vorazes. É fácil conhecer, a esse respeito, a destina-
tar com as flechas os pássaros voando e os peixes nadando, que de- ção da natureza pelo número de mamas, que não passa de duas em
pois pegam num mergulho. Os selvagens da América ~etentrional cada fêmea da primeira espécie, como a égua, a vaca, a cabra, a cor-
não são menos célebres por sua força e destreza, e daret um exem- ça, a ovelha, etc., e é sempre de seis ou de oito nas outras fêmeas,
plo que permitirã avaliar as dos índios da Am~rica meridi~nal: como a cadela, a gata, a loba, a tigresa, etc. A galinha, a gansa, a pata,
No ano de 1746, um índio de Buenos Aires, tendo stdo conde- que são todas aves vorazes, assim como a águia, o gavião fêmea, a
nado ãs galés de Cádiz, propôs ao governador resgatar sua.liber~de coruja, também botam e chocam um grande número de ovos, o que
arriscando a vida numa festa pública. Prometeu que atacana sozmho jamais acontece à pomba, à rola, nem aos passarinhos, que comem
o touro mais furioso sem outra arma na mão além de uma corda, que exclusivamente grãos e quase que só botam e chocam dois ovos de
0 derrubaria, o prenderia com sua corda pela parte que indic~ssen:, cada vez. A razão que se pode dar para tal diferença é a de que os
que 0 selaria, arrearia, montaria e, assim montado, combatena dms animais que vivem só de ervas e de plantas permanecem quase o dia
outros touros dos mais furiosos que fizessem sair do touril e os mata- todo procurando comida e, sendo forçados a gastar muito tempo
ria a todos um após o outro, no instante que lhe ordenassem e sem para alimentar-se, não poderiam dar conta de criar vários filhotes, ao
0 auxílio de ninguém, o que lhe foi concedido. O índio cumpriu com passo que os vorazes, fazendo sua refeição quase num instante, po-
a palavra e foi bem-sucedido em tudo quanto prometera. Sobre o dem, com mais facilidade e freqüência, voltar aos filhotes e à caça e
modo como procedeu e sobre os pormenores do combat:, pode-se reparar assim o gasto de tão grande quantidade de leite. Haveria,
consultar 0 primeiro tomo in-12, página 262, das Obseroaçoes sobre a acerca de tudo isso, muitas observações particulares e reflexões para
História natural de Gautier, donde esse fato é extraído. serem feitas; mas tal não cabe aqui, e basta-me haver mostrado nesta
e) "A duração da vida dos cavalos", diz Buffon, "é, como em to- parte o sistema mais geral da natureza, sistema que fornece uma nova
das as outras espécies de animais, proporcional à duração do tempo razão para excluir o homem da classe dos animais carnívoros e para
de seu crescimento. O homem, que leva catorze anos para crescer, incluí-lo entre as espécies frugívoras.
pode viver seis ou sete vezes esse tempo, isto é, noventa ou ce.m ano~; g) Um autor célebre, calculando os bens e os males da vida hu-
0 cavalo, cujo crescimento se efetua em quatro anos, pode .vtver sets mana, e comparando as duas somas, concluiu que a última superava
ou sete vezes mais do que isso, isto é, vinte e cinco ou trmta anos. em muito a outra e que, pensando bem, a vida era um péssimo pre-
São tão raros os exemplos que poderiam ser contrários a essa regra sente para o homem. Não estou surpreso com sua conclusão; ele ti-
que nem sequer devemos olhá-los como uma exceção da qual se rou todos os seus raciocínios da constituição do homem civil; se hou-
possam tirar conseqüências; e, como os cavalos corpulentos efetuam vesse remontado ao homem natural, pode-se achar que teria encon-
seu crescimento em menos tempo do que os cavalos miúdos, vivem trado' resultados muito diferentes, que teria percebido que quase
também menos tempo e já estão velhos aos quinze anos." todos os males do homem foram impostos por ele mesmo, e que a
f) Creio ver entre os animais carnívoros e os frugívoros outra
natureza estaria justificada. Não foi sem dificuldade que conseguimos
diferença ainda mais geral do que a assinalada na nota c, porquanto nos tornar tão infelizes. Quando, de um lado, consideramos os imen-
esta abarca até os pássaros. Tal diferença consiste no número dos sos trabalhos dos homens, tantas ciências aprofundadas, tantas artes
inventadas; tantas forças empregadas; abismos cobertos, montanhas
• Jean-Baptiste du Tertre (1610-1671), missionário dominicano nas Anti- arrasadas, rochas partidas, rios deixados navegáveis, terras arrotea-
lhas, escreveu História geral das Antilhas habitadas pelos franceses (1667- das, lagos escavados, pântanos secados, enormes construções ergui-
1671). (N. da T.) das sobre a terra, o mar coberto de navios e de marinheiros; e quan-

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do do outro buscamos com um pouco de meditação as verdadeiras mundo, é evidente que confirma as minhas. Penetremos, pois, por
va~tagens q~e resultaram de tudo isso para a felicidade da espécie entre nossas frívolas demonstrações de benevolência, no que se pas-
humana, não podemos deixar de ficar impressionados com a espan- sa no fundo dos corações, e reflitamos no que deve ser um estado de
tosa desproporção reinante entre essas coisas, e deplorar a cegueira coisas em que todos os homens são forçados a se agradarem e a se
do homem que, para nutrir seu louco orgulho e não sei que admira- destruírem mutuamente e em que nascem inimigos por dever e pér-
ção vã de si mesmo, o faz correr com ardor atrás de todas as misérias fidos por interesse. Se me responderem que a sociedade é constituí-
de que é suscetível e que a benfazeja natureza tomara cuidado de da de um modo tal que cada homem ganha em servir aos outros,
afastar dele. replicarei que isso seria muito bom se não se ganhasse ainda mais em
Os homens são maus, uma triste e contínua experiência dispen- prejudicá-los. Não há lucro legítimo que não seja superado por aque-
sa a prova; contudo o homem é naturalmente bom, creio tê-lo de- le que se pode fazer ilegitimamente, e o dano feito ao próximo é
monstrado; o que então pode tê-lo depravado a esse ponto senão as sempre mais lucrativo do que os serviços. Já não se trata, pois, senão
mudanças ocorridas em sua constituição, os progressos que fez e os de encontrar os meios de assegurar a si próprio a impunidade, sendo
conhecimentos que adquiriu? Que admirem quanto quiserem a socie- nisso que os poderosos empregam todas as suas forças, e os fracos
dade humana, nem por isso deixará de ser verdade que ela leva ne- todas as suas artimanhas.
cessariamente os homens a odiarem-se entre si à proporção que seus O homem selvagem, quando jantou, fica em paz com toda a
interesses se cruzam, a se prestarem mutuamente aparentes favores e natureza e amigo de todos os seus semelhantes. E se por vezes tiver
a se causarem, na verdade, todos os males imagináveis. O que se de disputar sua refeição? Nunca chega às vias de fato sem ter compa-
poderá pensar de uma relação em que a razão de cada particular lhe rado antes a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar
dita máximas diretamente contrárias àquelas que a razão pública pre- sua subsistência; e, como o orgulho não interfere no combate, este
ga ao corpo da sociedade, e em que cada qual encontra proveito na termina com alguns socos; o vencedor come, o vencido vai tentar a
infelicidade alheia? Não há talvez um homem abonado a quem her- sorte e tudo fica em paz. Porém, com o homem em sociedade, tudo
deiros ávidos, amiúde os próprios filhos, não desejem secretamente a é muito diferente: trata-se primeiro de prover ao necessário e depois
morte; não há um navio no mar cujo naufrágio não seria uma boa ao supérfluo; em seguida vêm as delícias e depois as imensas rique-
notícia para algum negociante; não há uma casa que um credor de zas; mais tarde os súditos e depois os escravos; não há um momento
má-fé não desejaria ver queimada com todos os papéis que ela con- de descanso; o que há de mais singular é que quanto menos naturais
tém; não há um povo que não se regozije com os desastres de seus e prementes são as necessidades, mais aumentam as paixões e, o que
vizinhos. É assim que tiramos vantagem no prejuízo de nossos seme- é pior, o poder de satisfazê-las; de modo que, depois de longas pros-
lhantes e que a perda de um quase sempre faz a prosperidade do ou- peridades, depois de haver devorado muitos tesouros e arruinado
tro; porém, o que há de mais perigoso ainda é que as calamidades muitos homens, meu herói acabará por devastar tudo até que seja ele
públicas constituem a expectativa e a esperança de uma multidão de o único senhor do universo. Tal é o resumo do quadro moral, se não
particulares. Uns querem doenças, outros a mortandade, outros a da vida humana, pelo menos das pretensões secretas do coração de
guerra, outros a fome. Vi homens odiosos chorarem de dor ante os todo homem civilizado.
indícios de um ano fértil; e o grande e funesto incêndio de Londres, Comparai, sem preconceitos, o estado do homem civil com o do
que custou a vida ou os bens a tantos infelizes, trouxe talvez a fortu- homem selvagem, e tentai descobrir, se puderdes, como, além de sua
na a mais de dez mil pessoas. Sei que Montaigne censura o atenien- maldade, de suas necessidades e de suas misérias, o primeiro abriu
se Demades por ter mandado punir um operário que, vendendo novas portas à dor e à morte. Se considerardes as aflições do espírito
muito caro ataúdes, ganhava muito com a morte dos cidadãos; mas, que nos consomem, as paixões violentas que nos esgotam e nos ar-
como a razão que Montaigne alega é de que cumpriria punir todo o ruínam, os trabalhos excessivos com que se sobrecarregam os po-

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bres, a indolência ainda mais perigosa a que os ricos se entregam, e pida; seja por esses abortos secretos, dignos frutos da devassidão e da
que fazem uns morrerem de suas necessidades e os outros, de seus honra viciosa; seja pelo abandono ou assassinato de uma multidão de
excessos. Se pensardes nas monstruosas misturas dos alimentos, em crianças, vítimas da miséria dos pais ou da vergonha bárbara das
seus condimentos perniciosos, nos víy~res apodrecidos, nas drogas mães; seja, enfim, pela mutilação desses infelizes dos quais uma parte
falsificadas, nas trapaças dos que as vendem, nos erros dos que as da existência e toda a posteridade são sacrificadas a vãs canções ou,
administram, no veneno das vasilhas em que as preparam; se prestar- o que é ainda pior, à brutal inveja de alguns homens, mutilação essa
des atenção às doenças epidêmicas provocadas pelo ar infecto entre que neste último caso ultraja duplamente a natureza, tanto pelo trata-
as multidões de homens reunidos, àquelas ocasionadas pela delica- mento que recebem aqueles que a sofrem quanto pelo uso habitual
deza de nossa maneira de viver, as passagens alternadas do interior a que são destinados.
de nossas casas para o ar livre, o uso das roupas postas ou tiradas [Mas não haverá milhares de casos mais freqüentes e mais peri-
com pouquíssima precaução e todos os cuidados que nossa sensua- gosos ainda? Quantos talentos não aproveitados e inclinações força-
lidade excessiva transformou em hábitos necessários e cuja negligên- das pela imprudente coerção dos pais! Quantos homens, que se
cia ou privação nos custa depois a vida ou a saúde; se levardes em teriam distinguido numa profissão apropriada, morrem infelizes e
conta os incêndios e os terremotos que, consumindo ou arrasando ci- desonrados em outra situação pela qual não tinham o menor gosto!
dades inteiras, lhes fazem perecer os habitantes aos milhares; em Quantos casamentos felizes, mas desiguais, foram rompidos ou per-
suma, se reunirdes os perigos que todas essas causas agrupam conti- turbados e quantas castas esposas desonradas por essa ordem das
nuamente sobre nossas cabeças, percebereis quão caro a natureza condições sempre em contradição com a ordem da natureza! Quantas
nos faz pagar o desprezo que tivemos por suas lições. outras uniões esquisitas formadas pelo interesse e reprovadas pelo
Não repetirei aqui acerca da guerra o que já disse em outra par- amor e pela razão! Quantos, até, esposos honestos e virtuosos fazem
te, mas gostaria que as pessoas instruídas quisessem ou ousassem mutuamente seu suplício por terem sido mal combinados! Quantas
dar, de uma vez por todas, ao público os pormenores dos horrores jovens e inocentes vítimas da avareza dos pais mergulham no vício
que são cometidos nos exércitos pelos fornecedores dos víveres e ou passam seus tristes dias entre lágrimas e gemem nos laços indis-
dos hospitais; ver-se-ia que suas manobras, não muito secretas, pelas solúveis que o coração repele e que apenas o ouro formou! Felizes
quais os mais brilhantes exércitos se desfazem em menos de nada, aquelas que, às vezes, a coragem e a própria virtude arrancam à vida,
matam mais soldados do que ceifa o ferro inimigo. É ainda um cálcu- antes que uma violência bárbara as force a se bandearem para o cri-
lo não menos impressionante o dos homens que o mar traga todos os me ou para o desespero. Perdoai-mo, pai e mãe para sempre deplo-
anos, seja pela fome, seja pelo escorbuto, seja pelos piratas, seja pelo ráveis; agravei com pesar as vossas dores; mas possam elas servir de
fogo, seja pelos naufrágios. Fica claro que também se deve lançar na exemplo eterno e terrível a quem quer que ouse, em nome da pró-
conta da propriedade estabelecida e, por conseguinte, da sociedade, pria natureza, violar o mais sagrado de seus direitos!
os assassinatos, os envenenamentos, os roubos das estradas e as pró- Rmbora só tenha falado desses laços mal formados que são obra
prias punições desses crimes, punições necessárias para prevenir de nossa polícia, pode-se pensar que aqueles presididos pelo amor e
maiores males, mas que, como a morte de um homem custa a vida de pela simpatia estejam, por sua vez, isentos de inconvenientes?]*
O que aconteceria se eu empreendesse mostrar a espécie huma-
dois ou mais, não deixam de duplicar realmente a perda da espécie
na atacada em sua própria fonte, e até no mais santo de todos os la-
humana. Quantos serão os meios vergonhosos de impedir o nasci-
ços, no qual já não se ousa escutar a natureza senão após haver con-
mento dos homens e de enganar a natureza? Seja por esses gostos
sultado a fortuna e no qual, a desordem civil confundindo as virtudes
brutais e depravados que lhe insultam a mais encantadora obra, gos-
tos que nem os selvagens nem os animais jamais conheceram, e que
nasceram nos países policiados apenas de uma imaginação corram- • Edição de 1782. (N. da T.)

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e os vícios, a continência se torna uma precaução criminosa, e a recu- Tais são as causas perceptíveis de todas as misérias nas quais a
sa de dar a vida ao semelhante, um ato de humanidade? Mas, sem ras- opulência precipita por fim as nações mais admiradas. À medida que
gar o véu que cobre tantos horrores, contentemo-nos em indicar o mal a indústria e as artes vão se estendendo e florescendo, o cultivador
a que outros devem trazer o remédio. desprezado, sobrecarregado de impostos necessários para a manu-
Acrescentemos a tudo isso a grande quantidade de ofícios insa- tenção do luxo e condenado a passar a vida entre o trabalho e a fo-
lubres que abreviam os dias ou destroem o caráter, tais como os tra- me, abandona seus campos para ir buscar nas cidades o pão que ele
balhos das minas, as diversas preparações dos metais, dos minerais,
lhe deveria levar. Quanto mais as capitais enchem de admiração os
sobretudo do chumbo, do cobre, do mercúrio, do cobalto, do arsêni-
olhos estúpidos do povo, mais se deveria gemer ao ver os campos
co, do rosalgar; esses outros ofícios arriscados que todos os dias cus-
abandonados, as terras incultas e as grandes estradas inundadas de
tam a vida a grande número de operários, uns telhadores, outros car-
infelizes cidadãos transformados em mendigos ou ladrões e fadados
pinteiros, outros pedreiros e outros que trabalham nas pedreiras; reu-
a terminar um dia sua miséria no suplício da roda ou num monturo.
namos, digo eu, todos esses objetos, e poderemos ver, no estabeleci-
Assim é que o Estado, enriquecendo-se de um lado, enfraquece-se e
mento e na perfeição das sociedades, as razões da diminuição da
espécie, observada por mais de um filósofo. despovoa-se do outro, e que as mais poderosas monarquias, depois
O luxo, impossível de ser evitado entre homens ávidos de suas de muito trabalho para se tornarem opulentas e desertas, acabam por
comodidades pessoais e da consideração dos outros, logo conclui o se tornar a presa das nações pobres que sucumbem à funesta tenta-
mal que as sociedades começaram, e a pretexto de fazer que os ção de invadi-las e se enriquecem e se enfraquecem por sua vez, até
pobres vivam, o que não precisaria fazer, empobrece todo o resto e, que sejam elas próprias invadidas e destruídas por outras.
cedo ou tarde, despovoa o Estado. Que se dignem explicar-nos, de uma vez por todas: o que pôde
O luxo é um remédio muito pior do que o mal que pretende produzir aqueles enxames de bárbaros que durante tantos séculos
curar; ou melhor, ele mesmo é o pior de todos os males, em qualquer inundaram a Europa, a Ásia e a África? Seria ao engenho de suas ar-
Estado grande ou pequeno que possa ser, e que, para alimentar mul- tes, à sabedoria de suas leis, à excelência de sua polícia que deviam
tidões de criados e de miseráveis que criou, sobrecarrega e arruína o aquela prodigiosa população? Que nossos sábios façam o favor de nos
lavrador e o cidadão. Semelhante a esses ventos abrasadores do Sul dizer por que, ao invés de se multiplicarem a esse ponto, aqueles
que, cobrindo a relva e a vegetação de insetos devoradores, privam homens ferozes e brutais, sem luzes, sem peias, sem educação, não se
os animais úteis de sua subsistência e levam a miséria e a morte a to- degolavam uns aos outros a todo instante para disputar seu pasto e
dos os lugares onde se fazem sentir. sua caça. Que nos expliquem como aqueles miseráveis tiveram sim-
Da sociedade e do luxo gerado por ela, nascem as artes liberais plesmente a ousadia de encarar pessoas tão hábeis como éramos, com
e mecânicas, o comércio, as letras e todas essas inutilidades que fa- tão bela instrução militar, tão belos códigos e tão sábias leis. Finalmen-
zem a indústria florescer, enriquecem e perdem os Estados. A razão te, pqr que, desde que a sociedade se aperfeiçoou nos países do Norte
dessa decadência é muito simples. É fácil ver que a agricultura, por e se teve tanto trabalho para ensinar aos homens seus deveres mútuos
sua natureza, deve ser a menos lucrativa de todas as artes porque, e a arte de viver agradável e pacificamente juntos, já não se vê provir
sendo o uso de seu produto o mais indispensável para todos os ho- dela nada de semelhante àquelas multidões de homens que outrora lá
mens, seu preço deve ser proporcional aos recursos dos mais pobres. se produziam? Tenho muito medo de que alguém se lembre por fim
Do mesmo princípio pode-se tirar esta regra: em geral as artes são de me responder que todas essas grandes coisas, a saber, as artes, as
lucrativas na razão inversa de sua utilidade e as mais necessárias de- ciências e as leis, foram muito sabiamente inventadas pelos homens,
vem afinal tornar-se as mais descuidadas. Por aí se vê o que se deve como uma peste salutar para prevenir a multiplicação excessiva da
pensar das verdadeiras vantagens do engenho e do efeito real que espécie, temendo que este mundo, que nos é destinado, se tornasse
resulta de seus progressos. afinal pequeno demais para seus habitantes.

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Como? Então será preciso destruir as sociedades, aniquilar o teu outros só têm lã carapinha; uns são quase todos peludos, os outros
e o meu e voltar a viver nas florestas com os ursos? Conseqüência à nem sequer têm barba. Houve, e talvez haja ainda, nações de homens
moda dos meus adversários, que prefiro evitar a deixar-lhes a vergo- de uma estatura gigantesca e, deixando de lado a fábula dos pigmeus
nha de tirá-las. Oh, vós, a quem a voz celeste não se fez ouvir e que que pode muito bem não passar de um exagero, sabe-se que os
não reconheceis para vossa espécie outro destino senão terminar em lapões, e sobretudo os groenlandeses, estão muito abaixo da estatu-
paz esta curta vida; vós, que podeis deixar no meio das cidades vos- ra média do homem. Pretendem até que há povos inteiros que têm
sas funestas aquisições, vossos espíritos inquietos, vossos corações caudas como os quadrúpedes e, sem dar um crédito irrestrito aos
corrompidos e vossos desejos desenfreados, retornai, jã que depende relatos de Heródoto e de Ctésias•, pode-se pelo menos retirar deles a
de vós, vossa antiga e primeira inocência; ide aos bosques perder a opinião muito verossímil de que, se fora possível fazer boas observa-
visão e a memória dos crimes de vossos contemporâneos e não re- ções naqueles tempos antigos, em que os diversos povos seguiam
ceeis aviltar vossa espécie ao renunciar às suas luzes para renunciar maneiras de viver mais diferentes entre si do que as que seguem
aos seus vícios. Quanto aos homens semelhantes a mim, cujas pai- hoje, se teriam também notado, no aspecto e na compleição do cor-
xões destruíram para sempre a simplicidade original, que já não po- po, variedades muito mais marcantes. Todos esses fatos, cujas provas
dem nutrir-se com ervas e com frutas silvestres, nem viver sem leis e incontestáveis é fácil fornecer, podem surpreender só aqueles que
chefes; aqueles que foram honrados na pessoa de seu primeiro pai estão acostumados a olhar apenas os objetos que os cercam e igno-
com lições sobrenaturais; aqueles que verâo, na intenção de dar pri- ram os poderosos efeitos da diversidade dos climas, do ar, dos ali-
meiramente às ações humanas uma moralidade que não teriam ad- mentos, da maneira de viver, dos hábitos em geral e, sobretudo, a
quirido há muito tempo, a razão de um preceito indiferente por si só espantosa força das mesmas causas, quando atuam continuamente
e inexplicável em qualquer outro sistema; aqueles, em suma, que sobre muitas gerações em seguida. Hoje, que o comércio, as viagens
estão convencidos de que a voz divina chamou todo o gênero huma- e as conquistas reúnem ainda mais os diversos povos e suas manei-
no às luzes e à felicidade das inteligências celestes; todos esses se ras de viver se aproximam incessantemente pela comunicação fre-
empenharão, pelo exercício das virtudes que se obrigam a praticar ao qüente, percebe-se que diminuíram certas diferenças nacionais, e
aprender a conhecê-las, em merecer o prêmio eterno que delas de- c:da ;tua!, por exemplo, pode observar que os franceses de hoje já
vem esperar; respeitarão os sagrados laços das sociedades de que são nao tem aqueles grandes corpos brancos e louros descritos pelos his-
membros; amarão seus semelhantes e os servirão no que lhes for toriadores latinos, conquanto o tempo, juntamente com o caldeamen-
possível; obedecerão escrupulosamente às leis e aos homens que são to dos franceses com os normandos, também estes brancos e louros,
seus autores e ministros; honrarão sobretudo os bons e sábios prínci- deveria ter restabelecido o que o convívio com os romanos pudera
pes que saberão prevenir, sanar ou paliar essa profusão de abusos e excluir da influência do clima na constituição e na tez dos habitantes.
de males sempre prontos a nos oprimir; animarâo o zelo desses dig- Todas essas observações sobre as variedades que mil causas podem
nos chefes, mostrando-lhes, sem temor e sem lisonja, a grandeza de produzir, e de fato produziram, na espécie humana fazem-me des-
sua tarefa e o rigor de seu dever; mas nem por isso desprezarão uma confiar que vários animais semelhantes aos homens - tornados pelos
constituição que só pode manter-se com a ajuda de tanta gente res- viajantes, sem um exame acurado, por bichos, ou por causa de algu-
peitável, que é mais freqüente desejar-se do que obter-se, e da qual, mas diferenças que notavam na conformação exterior, ou somente
apesar de todos os seus cuidados, sempre nascem mais calamidades porque esses animais não falavam - seriam de fato verdadeiros ho-
reais do que vantagens aparentes.
h) Entre os homens que conhecemos, ou pessoalmente, ou por • Ctésias de Cnido (início do século IV a.C.), historiador grego e médico
intermédio dos historiadores ou dos viajantes, uns são negros, os ou- da corte de Artaxerxes 11, escreveu uma história da Pérsia em 23 volumes.
tros brancos e os outros vermelhos; uns têm cabelos compridos, os (N. da T.)

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mens selvagens, cuja raça dispersa antigamente nos bosques não jovens depois de matar a mãe, a cujo corpo o filhote se agarra com
tivera oportunidade de desenvolver nenhuma de suas faculdades vir- muita força; quando morre um desses animais, os outros cobrem-lhe
tuais, não adquirira nenhum grau de perfeição e se encontrava ainda o corpo com uma pilha de galhos ou de folhagens. Purchas• acres-
no estado primitivo da natureza. Vamos dar um exemplo do que que- centa que, nas conversas que teve com Battel, soubera por ele mes-
ro dizer: mo que um pongo lhe arrebatou um negrinho que passou um mês
"Encontra-se", diz o tradutor da História das viagens", "no reino inteiro na companhia desses animais, pois eles não fazem mal algum
do Congo, grande quantidade desses grandes animais a que chamam aos homens que surpreendem, pelo menos quando estes não os
orangotangos nas Índias Orientais, que ficam como que no meio olham, como os observara o negrinho. Battel não descreveu a segun-
entre a espécie humana e os babuínos. Battel** conta que, nas flores- da espécie de monstro.
tas de Maiombe, no reino de Loango, vêem-se duas espécies de Dapper** confirma que o reino do Congo está cheio desses ani-
monstros dos quais os maiores se chamam pongos e os outros, enjo- mais que têm nas Índias o nome de orangotango, ou seja, moradores
kos: Os primeiros têm uma semelhança exata com o homem, mas são dos bosques, e que os africanos chamam de quojas-morros. Esse ani-
muito mais gordos e de altíssima estatura. Com uma fisionomia hu- mal, diz ele, é tão semelhante ao homem que alguns viajantes chega-
mana, têm os olhos muito fundos. As mãos, as faces e as orelhas não ram a imaginar que ele podia ser proveniente de uma mulher e de
têm pêlos, com exceção das pestanas, que são muito longas. Embora um macaco, quimera que os próprios negros rejeitam. Um desses ani-
tenham o resto do corpo bem peludo, o pêlo não é muito espesso e mais foi transportado do Congo para a Holanda e apresentado ao
sua cor é castanho-escuro. Enfim, a única parte que os distingue dos príncipe de Orange, Frederico Henrique. Era da altura de uma crian-
homens é a perna, que não tem panturrilha. Andam eretos, seguran- ça de três anos e não muito gordo, mas forte e bem proporcionado,
do com a mão o pêlo do pescoço; refugiam-se nos bosques e dor- muito ágil e vivo; tinha as pernas carnudas e robustas, toda a parte da
mem sobre as árvores, onde fazem uma espécie de teto que os abri- frente do corpo nua, mas as costas cobertas de pêlos negros. À pri-
ga da chuva. Alimentam-se de frutos ou de nozes silvestres. Nunca meira vista, seu rosto parecia com o de um homem, mas tinha o nariz
comem carne. Os negros que atravessam as florestas costumam acen- chato e recurvado; suas orelhas eram também as da espécie humana;
der fogueiras durante a noite. Notam que de manhã, à sua partida, os seu seio, pois era uma fêmea, era rechonchudo, o umbigo encovado,
pongos tomam o seu lugar ao redor do fogo e só se retiram depois ombros muito juntos, mãos divididas em dedos e polegares, pantur-
que este se apaga, pois, embora tenham muita habilidade, não têm rilhas e calcanhares gordos e carnudos. Costumava andar ereto sobre
senso suficiente para mantê-lo colocando-lhe lenha. as pernas, era capaz de levantar e carregar fardos bem pesados.
Por vezes andam em bandos e matam os negros que atravessam Quando queria beber, pegava com uma mão a tampa da bilha e com
as florestas. Chegam a atacar os elefantes que vêm pastar nos lugares a outra segurava o fundo. Em seguida, enxugava graciosamente os
em que habitam e os incomodam tanto com socos ou com pauladas lábios. Deitava-se para dormir com a cabeça sobre uma almofada
que os forçam a fugir soltando gritos. Jamais se pegam pongos vivos, cobriildo-se com tanta habilidade que se poderia tomá-lo por u~
porque são tão robustos que dez homens não seriam suficientes para homem na cama. Os negros relatam fatos estranhos sobre esse ani-
prendê-los. Mas os negros pegam grande quantidade de pongos mal. Asseguram que não só força as mulheres e as moças, mas tam-
bém ousa atacar homens armados. Em suma, é muito possível que se

• L'histoire des voyages, publicação periódica sobre relatos de viagens.


(N. da T.) • Samuel Purchas 0577-1626), compilador e editor inglês de curiosas
•• André Battel (cerca de 1565-1640), marinheiro inglês, aprisionado na narrativas de viagens. (N. da T.)
América pelos portugueses e levado a Luanda. Descreveu suas aventuras em •• Olfert Dapper (morto em 1690), médico e geógrafo holandês, autor de
Tbe strange adventures ofA. Battel, prisoner in Angola. (N. da T.) inúmeras obras geográficas. (N. da T.)

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trate do sátiro dos antigos. Merolla• talvez se refira a esses animais e se vão para seu pasto, que exige mais tempo do que se comessem
quando conta que os negros às vezes prendem em suas caças ho- carne. Aliás, sabe-se que a maioria dos animais, sem excetuar o ho-
mens e mulheres selvagens." mem, é naturalmente preguiçosa e se recusa a todos os tipos de cui-
Fala-se ainda dessas espécies de animais antropoformes no ter- dados que não sejam de absoluta necessidade. Enfim parece muito
ceiro tomo da mesma História das viagens sob o nome de beggos e estranho que os pongos, cuja habilidade e força são elogiadas, os
de mandris, mas, atendo-nos aos relatos anteriores, encontramos na pongos que sabem enterrar seus mortos e construir para si tetos de
descrição desses pretensos monstros conformidades impressionantes ramagens, não saibam empurrar tições no fogo. Lembro-me de ter
com a espécie humana, e diferenças menores do que as que podería- visto um macaco fazer essa mesma manobra que não querem que os
mos assinalar de homem para homem. Não encontramos nessas pas- pongos possam fazer; é verdade que, não estando então minhas
sagens as razões nas quais os autores se fundamentam para recusar idéias voltadas para esse lado, eu mesmo cometi o erro de que cen-
aos animais em questão o nome de homens selvagens, mas é fácil suro nossos viajantes e descuidei de examinar se a intenção do maca-
conjeturar que é por causa da sua estupidez e, também, porque não co era realmente manter o fogo ou, simplesmente, como creio, imitar
falam; razões fracas para aqueles que sabem que, embora o órgão da a ação de um homem. Seja como for, está bem demonstrado que o
palavra seja natural ao homem, a palavra em si não lhe é, porém, na- macaco não é uma variedade do homem, não só porque ele carece
tural e que sabem até que ponto sua perfectibilidade pode ter eleva- da faculdade de falar, mas sobretudo porque temos certeza de que
do o homem acima de seu estado original. O pequeno número de li- sua espécie não tem a faculdade de aperfeiçoar-se, que é a caracte-
nhas que contêm tais descrições permite-nos imaginar como esses rística específica da espécie humana. Experiências essas que parece
animais foram mal observados e com que preconceitos foram vistos. não terem sido feitas com o pongo e o orangotango com suficiente
Por exemplo, são qualificados de monstros e, entretanto, reconhecem cuidado para poder se chegar à mesma conclusão. Haveria, porém,
que eles geram. Num trecho, Battel diz que os pongos matam os um meio pelo qual, se o orangotango ou outros fossem da espécie
negros que atravessam as florestas; noutro, Purchas acrescenta que humana, os observadores mais toscos poderiam assegurar-se disso,
não lhes fazem mal algum, mesmo quando os surpreendem, pelo me- até mesmo demonstrando; mas, além de uma única geração não ser
nos quando os negros não os olham com insistência. Os pongos se suficiente para essa experiência, ela deve ser considerada impraticá-
reúnem ao redor das fogueiras acesas pelos negros quando estes se vel, porque seria preciso que se demonstrasse ser verdadeiro o que
retiram e retiram-se por sua vez quando o fogo se apaga. Aí está o não é mais que uma suposição, antes que a prova que deveria cons-
fato; aqui está, agora, o comentário do observador: Pois, embora tatar o fato pudesse ser tentada inocentemente.
tenham muita habilidade, não têm senso suficiente para mantê-lo Os juízos precipitados, e que não são fruto de uma razão escla-
colocando-lhe lenha. Gostaria de ser informado como Battel ou Pur- recida, estão sujeitos a descambar no excesso. Nossos viajantes, sem
chas, seu compilador, conseguiu saber que a retirada dos pongos era a menor cerimônia, transformam em animais, com os nomes de pon-
um resultado antes da estupidez do que da vontade deles. Num clima gos, mandris, orangotangos, os mesmos seres que, com o nome de
como o de Loango, o fogo não é algo muito necessário para os ani- sátiros, faunos, silvanos, eram transformados em divindades pelos
mais, e, se os negros os acendem, não é tanto contra o frio quanto antigos. Talvez, depois de pesquisas mais exatas, descobrir-se-á que
para assustar as feras; assim, é muito compreensível que, depois de são homens. Enquanto isso, parece-me haver muito mais razões para,
se terem divertido certo tempo com a labareda ou de estarem bem neste assunto, confiar em Merolla, religioso culto, testemunha ocular
aquecidos, os pongos se aborreçam de ficar sempre no mesmo lugar e que, com toda a sua ingenuidade, não deixava de ser um homem
inteligente, do que no mercador Battel, em Dapper, em Purchas e nos
outros compiladores.
• Jerônimo Merolla, capuchinho e missionário italiano, nascido em 1650, Que juízo cremos que poderiam fazer tais observadores acerca
autor de Viagem ao Gongo. (N. da T.) da criança encontrada em 1694, de quem já falei acima, que não dava

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nenhuma mostra de razão, andava sobre os pés e as mãos, não tinha sua rua, e que os verdadeiros traços que distinguem as nações e
linguagem alguma e formava sons que em nada se assemelhavam aos atraem os olhos feitos para ver quase sempre escaparam aos seus.
do homem? "Levou muito tempo", continua o mesmo filósofo que me Daí veio esse belo adágio de moral, tão repisado pela turba filosofan-
forneceu esse fato, "antes de conseguir proferir algumas palavras, e te, que os homens são os mesmos em toda parte e que, tendo em
mesmo assim o fez de uma maneira bárbara. Assim que conseguiu fa- toda parte as mesmas paixões e os mesmos vícios, é bem inútil pro-
lar, interrogaram-na sobre sua primeira condição, mas ela não se lem- curar caracterizar os diferentes povos; o que é quase tão bem ponde-
brou mais dela do que nós nos lembramos do que nos aconteceu no rado quanto se disséssemos que não se poderia distinguir Pedro de
berço." Se, para sua infelicidade, essa criança houvesse caído nas João porque ambos têm um nariz, uma boca e dois olhos.
mãos dos nossos viajantes, não se pode duvidar que, depois de ter- Será que um dia veremos renascer aqueles tempos felizes em
lhe notado o silêncio e a estupidez, teriam tomado a resolução de que os povos não se metiam a filosofar, mas em que os Platões, os
mandá-la de volta para os bosques ou de fechá-la num zoológico; em Tales e os Pitágoras, animados por um desejo ardente de saber,
seguida, falariam dela com erudição em belos relatos, como de um empreendiam as maiores viagens unicamente para instruir-se e iam
bicho curiosíssimo que se parecia bastante com o homem. longe sacudir o jugo dos preconceitos nacionais, aprender a conhecer
Depois de trezentos ou quatrocentos anos que os habitantes da os homens por suas conformidades e por suas diferenças, e adquirir
Europa inundam as outras partes do mundo e publicam incessante- esses conhecimentos universais que não são exclusivamente os de um
mente novas narrativas de viagens e relatos, estou persuadido de que século ou de um país, mas que, sendo de todos os tempos e de todos
os únicos homens que conhecemos são os europeus; até parece, pe- os lugares, são, por assim dizer, a ciência comum dos sábios?
los ridículos preconceitos que não estão extintos, mesmo entre os le- Admira-se a magnificência de alguns curiosos que, com grandes
trados, que cada qual, sob o pomposo nome de estudo do homem,
despesas, fizeram ou custearam viagens ao Oriente com sábios e pin-
faz apenas o dos homens de seu país. Por mais que os particulares
tores, para lá desenhar pardieiros e decifrar ou copiar inscrições; mas
vão e venham, parece que a filosofia não viaja, por isso a de cada
custa-me conceber como, num século em que se vangloriam de belos
povo é tão pouco apropriada para outro. A causa disso é manifesta,
conhecimentos, não haja dois homens bem unidos, ricos, um de
pelo menos para as regiões distantes: não há muito mais que quatro
dinheiro, o outro de gênio, ambos amando a glória e aspirando ã
espécies de homens que façam viagens de longo curso, os marinhei-
imortalidade, dos quais um sacrifique vinte mil escudos de seus bens
ros, os mercadores, os soldados e os missionários. Ora, não se deve
e o outro dez anos de sua vida a uma célebre viagem ao redor do
esperar muito que as três primeiras classes forneçam bons observa-
mundo, para estudar, não sempre pedras e plantas, mas pelo menos
dores e, quanto aos da quarta, ocupados com a vocação sublime que
uma vez os homens e os costumes e que, depois de tantos séculos
os chama, ainda que não estivessem sujeitos a preconceitos próprios
empregados em medir e considerar a casa, atentem em, por fim, que-
de seu estado como todos os outros, deve-se crer que não se entre-
rer conhecer-lhe os habitantes.
gariam de bom grado a pesquisas que parecem mera curiosidade e
que os desviariam dos trabalhos mais importantes a que se destinam. bs acadêmicos que percorreram as partes setentrionais da
Aliás, para pregar utilmente o Evangelho, basta o zelo, e Deus dá o Europa e meridionais da América tencionavam visitá-las mais como
resto; mas, para estudar os homens, são necessários talentos que geômetras do que como filósofos. Entretanto, como eram ambos ao
Deus não promete dar a ninguém e que nem sempre os santos pos- mesmo tempo, não se pode considerar totalmente desconhecidas as
suem. Não abrimos um livro de viagens em que não encontremos regiões que foram vistas e descritas pelos La Condamines• e pelos
descrições dos temperamentos e dos costumes, mas ficamos admira-
dos de ver que essas pessoas, que descreveram tantas coisas, só dis- • Charles-Marie de la Condamine (1701-1774), rnatemãtico e literato fran-
seram o que todos já sabiam, só souberam perceber, no outro extre- cês, fez várias viagens à África e à América, nas quais obteve muitas informações
mo do mundo, o que nada teria impedido de observar sem sair de científicas. Escreveu muitas obras científicas e narrativas de viagens. (N. da T.)

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Maupertuis". O joalheiro Chardin••, que viajou como Platão, não dei- xico, o Peru, o Chile, as Terras magelânicas•, sem esquecer os pata-
xou nada por dizer sobre a Pérsia; a China parece ter sido bem obser- gões verdadeiros ou falsos, o Tucurnã*", o Paraguai, se possível fosse,
vada pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia passável do pouco que viu o Brasil e, por fim, as Caraíbas, a Flórida e todas as regiões selvagens,
no Japão. Afora esses relatos, não conhecemos os povos das Índias a viagem mais importante de todas e que se deveria fazer com o
Orientais, freqüentadas unicamente por europeus mais ciosos de en- maior cuidado. Suponhamos que esses novos Hércules, de volta de
cher suas bolsas do que suas cabeças. A África inteira e seus nume- suas memoráveis excursões, fizessem depois com vagar a história
rosos habitantes, tão singulares pelo caráter como pela cor, ainda natural, moral e política do que tivessem visto; veríamos nós mesmos
estão por examinar; a terra toda está coberta de nações das quais só brotar um mundo novo de sua pena e aprenderíamos assim a conhe-
conhecemos os nomes, e nós nos metemos a julgar o gênero huma- cer o nosso. Digo que, quando observadores dessa ordem afirmarem,
no! Suponhamos um Montesquieu, um Buffon, um Diderot, um de um determinado animal, que é um homem e, de outro, que é um
?uclos, um d'Alembert, um Condillac, ou homens dessa têmpera, via- animal, cumprirá acreditar neles; porém seria uma grande simplicida-
Jando para instruir seus compatriotas, observando e descrevendo, de confiar, a esse respeito, em viajantes grosseiros, sobre os quais às
como sabem fazer, a Turquia, o Egito, a Barbária•••, o império do vezes ficaríamos tentados a fazer a mesma pergunta que eles se me-
Marrocos, o Guiné, o País dos Cafres••••, o interior da África e suas tem a resolver acerca dos outros animais.
costas orientais, os Malabares•••••, o Mogol••••••, as margens do Gan- i) Isto me parece mais do que evidente, e não poderia conceber
ges, os reinos de Sião, do Pegu••••••• e de Ava••••••••, a China, a Tar- de onde os nossos fllósofos podem fazer nascer as paixões que atri-
tária••••••••• e, sobretudo, o Japão; depois, no outro hemisfério, o Mé- buem ao homem natural. Excetuando-se, unicamente, o necessário
ao físico, que a própria natureza exige, todas as nossas outras neces-
sidades apenas são tais em virtude do hábito, e antes dele não eram
• Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (1698-1759), geômetra francês, necessidades, ou de nossos desejos, e não se deseja o que não se tem
chefiou uma expedição científica ao pólo Norte. (N. da T.) condições de conhecer. Segue-se daí que, como o homem selvagem
•• Jea~ Chardin 0643-1713), viajante francês que fez comércio de dia- só deseja as coisas que conhece e não conhece senão aquelas cuja
mantes na India e na Pérsia. Escreveu Relato da coroação do rei da Pérsia posse está em seu poder ou é fácil de adquirir, nada deve ser tão tran-
So/imão I/ e Viagem à Pérsia e às Índi~ Orientais. (N. da T.)
qüilo como sua alma e nada tão tacanho como seu espírito.
••• Barbária, ou Estados Barbarescos, era a denominação dada à região
j) Encontro no Governo civil, de Locke, uma objeção que me
noroeste africana, que abrange o Marrocos, a Argélia e a Tunísia. o nome vem
de Berberia, ou país dos berberes. (N. da T.) parece por demais especiosa para que eu possa ocultá-la. Escreve o
, •••• A Cafraria, denominação que outrora era aplicada a toda a parte da filósofo: "Não sendo o fim da sociedade entre o macho e a fêmea
Africa ao sul do Equador. Cafres era o nome dado pelos árabes aos não mu- simplesmente procriar, e sim continuar a espécie, tal sociedade deve
çulmanos. Com o tempo, o nome Cafraria foi restringido à região habitada perdurar até mesmo depois da procriação, pelo menos por todo o
pelos bantos. (N. da T.) tempoo necessário para a alimentação e para a conservação dos pro-
, ••••• Os habitantes da costa de Malabar, situada no sudoeste do Decã, na criados, ou seja, até que sejam capazes de prover sozinhos às suas
India. (N. da T.)
necessidades. Vemos que essa regra, estabelecida pela sabedoria infi-
•••••• Ou seja, o império dos Mongóís, ou do Grão-Mogol, que atingiu ~ nita do Criador para as obras de suas mãos, é observada com cons-
apogeu com Aurangzeb, imperador de 1657 a 1706. (N. da T.)
tância e exatidão pelas criaturas inferiores ao homem. Entre os ani-
••••••• O antigo reino do Pegu, situado na atual Birmânia, foi visitado
desde 1508 pelos portugueses. (N. da T.) mais que vivem de vegetais, a sociedade entre o macho e a fêmea
•••••••• Cidade da Birmânia, antiga capital do império birmanês. (N. da T.)
••••••••• Antigo nome de grande parte da Ásia, maís tarde limitou-se ao
Turquestão. (N. da T.) • Terras próximas do estreito de Magalhães. (N. da T.)
•• Província da Argentina. (N. da T.)

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não dura mais do que o tempo de cada copulação, porque, sendo entre as outras criaturas, a fim de que assim o engenho do homem e
as mamas da mãe suficientes para alimentar os filhotes até que da mulher fosse mais estimulado e seus interesses fossem mais uni-
sejam capazes de pastar a erva, o macho se contenta em gerar e, formes, no intuito de fazer provisões para os filhos e deixar-lhes
depois disso, não mais se ocupa com a fêmea nem com os filhotes, bens, pois nada pode ser mais prejudicial aos filhos do que uma con-
para cuja subsistência com nada pode contribuir. Porém, no tocan- junção incerta e vaga ou uma dissolução fácil e freqüente da socieda-
te aos animais carnívoros, a sociedade dura mais tempo, pois, não de conjugal."
podendo a mãe prover bem a própria subsistência e alimentar ao O mesmo amor à verdade, que me fez expor sinceramente essa
mesmo tempo os filhotes apenas com sua caça, que é um meio de objeção, impele-me a acompanhá-la com algumas observações, se
alimentar-se mais laborioso e perigoso do que o de alimentar-se não para resolvê-la, pelo menos para esclarecê-la.
com vegetais, a assistência do macho é inteiramente necessária a. Observarei, em primeiro lugar, que as provas morais não têm
para a manutenção de sua família comum - se é que se pode usar muita força em matéria do físico e servem antes para explicar a razão
esse termo -, a qual, até poder caçar alguma presa, só poderia sub- dos fatos existentes do que para constatar a existência real de tais
sistir pelos cuidados do macho e da fêmea. Observa-se o mesmo fatos. Ora, é esse o gênero de prova que Locke emprega na passagem
entre todos os pássaros, excetuando-se alguns pássaros domésticos que acabo de transcrever, pois, embora possa ser vantajoso para a
que se encontram em locais onde a contínua fartura de alimento espécie humana que a união entre o homem e a mulher seja perma-
isenta o macho do cuidado de alimentar os filhotes; vê-se que, nente, não se conclui que isso tenha sido estabelecido assim pela
enquanto estão no ninho e precisam de alimentos, o macho e a natureza, senão cumpriria dizer que ela também instituiu a sociedade
fêmea lhos levam, até que os filhotes possam voar e prover à sua civil, as artes, o comércio e tudo quanto se pretende ser útil aos
subsistência. homens.
E, em minha opinião, nisso consiste a principal, se não a única b. Ignoro onde Locke encontrou que entre os animais caçadores
razão por que o macho e a fêmea no gênero humano são obrigados a sociedade entre o macho e a fêmea é mais duradoura do que entre
a uma sociedade mais longa do que a mantida pelas outras criaturas. aqueles que vivem de vegetais e que um ajuda o outro a alimentar os
Isso porque a fêmea é capaz de conceber, engravidar mais uma vez filhotes, pois não se vê que o cachorro, o gato, o urso, nem o lobo
e parir um novo filho muito tempo antes que o precedente esteja em reconheçam melhor sua fêmea do que o cavalo, o carneiro, o touro,
condições de dispensar o auxílio dos pais e possa prover sozinho às o veado, nem todos os outros carnívoros reconheçam a deles. Pelo
suas necessidades. Assim, sendo um pai obrigado a cuidar daqueles contrário, parece que, se o auxílio do macho fosse necessário à fê-
que gerou e a ocupar-se disso por muito tempo, vê-se também na mea para a conservação dos ftlhotes, seria sobretudo nas espécies
obrigação de continuar a viver na sociedade conjugal com a mesma que vivem apenas de vegetais, porque a mãe gasta muito tempo pas-
mulher que os teve e de permanecer nessa sociedade muito mais tando.e, durante esse intervalo, é forçada a descuidar de sua ninha-
tempo que as outras criaturas entre as quais, como os filhotes podem da, ao passo que a presa de uma ursa ou de uma loba é devorada
subsistir sozinhos antes que chegue o tempo de uma nova procria- num instante e ela tem, sem passar fome, mais tempo para amamen-
ção, o vínculo entre o macho e a fêmea se rompe por si só e ambos tar os filhotes. Esse raciocínio é confirmado por uma observação
ficam em ·plena liberdade, até que a estação que costuma solicitar os sobre o número relativo das mamas e dos filhotes que distingue as
animais a se unirem os obrigue a escolherem novas companhias. E, espécies carnívoras das frugívoras, de que falei na nota f. Caso essa
nesse ponto, não se poderia admirar o suficiente a sabedoria do Cria- observação seja exata e geral, a mulher, tendo só duas mamas e rara-
dor que, tendo dado ao homem qualidades apropriadas para suprir mente gerando mais de um filho por vez, esta é mais uma forte razão
tanto ao futuro quanto ao presente, quis e fez de modo que a socie- para duvidar que a espécie humana seja naturalmente carnívora, pa-
dade do homem durasse muito mais do que a do macho com a fêmea recendo assim que, para tirar a conclusão de Locke, cumpriria inver-

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ter totalmente seu raciocínio. Não há maior solidez na mesma distin- uma considerável alteração no seu crescimento; de modo que, se, ao
ção aplicada às aves, pois quem poderá persuadir-se de que a união invés de sobrecarregarmos e, sobretudo, fatigarmos suas mentes de
do macho com a fêmea seja mais duradoura entre os abutres e os cor- mil maneiras, deixássemos que seus corpos se exercitassem nos mo-
vos do que entre as rolas? Temos duas espécies de aves domésticas, vimentos contínuos que a natureza parece solicitar-lhes, é de se a~re­
o pato e o pombo, que nos fornecem exemplos diretamente contrá- ditar que muito mais cedo estariam em condições de andar, de agtr e
rios ao sistema desse autor. O pombo, que só vive de grão, fica unido de prover sozinhas às suas necessidades. .
à sua fêmea e juntos eles alimentam os filhotes. O pato, cuja voraci- d. Enfim, Locke prova, quando muito, que bem podena haver
dade é conhecida, não reconhece a •fêmea nem os filhotes e em nada no homem um motivo para permanecer ligado à mulher quando ela
ajuda à subsistência deles; e entre as galinhas, espécie não muito me- tem um ftlho, mas não prova, em absoluto, que deveria estar ligado
nos carnívora, não se vê que o galo tenha algum trabalho com a ni- a ela antes do parto e durante os nove meses da gravidez. Se tal mu-
nhada. Se nas outras espécies o macho compartilha com a fêmea o lher é indiferente ao homem durante esses nove meses, se até se lhe
cuidado de alimentar os ftlhotes, é porque os pássaros, que de início torna desconhecida, por que ele a socorrerá depois do parto? Por que
não podem voar e a mãe não pode amamentar, têm muito menos a ajudará a criar uma criança que nem sequer sabe que lhe p:rtence
condições de dispensar a assistência do pai do que os quadrúpedes e de quem não resolveu nem previu o nascimento? Locke evtdente-
aos quais, pelo menos durante certo tempo, basta o leite da mãe. mente pressupõe o que está em questão, pois não se trata de saber
c. Paira muita incerteza a respeito do fato principal que baseia por que o homem permanecerá ligado à mulher depois do parto, ~as
todo o raciocínio de Locke, pois para saber se, como pretende ele, no por que estará ligado a ela depois da concepção. Satisfeito o apettte,
estado de natureza puro a mulher geralmente engravida e procria um 0 homem já não necessita de tal mulher, nem a mulher de tal homem.
novo filho antes que o precedente possa prover sozinho às suas ne- Este não tem o menor cuidado, nem talvez a menor idéia das conse-
cessidades, impor-se-iam experiências que certamente Locke não fez qüências de seu ato. Um vai para um lado, o outro para outro, e não
e ninguém está em condições de fazer. A coabitação contínua do há possibilidade de que, ao cabo de nove meses, tenham a le~bran­
marido com a mulher é uma ocasião tão próxima de expor-se a uma ça de se ter conhecido, pois essa espécie de lembrança, medtante a
nova gravidez que é bem difícil acreditar que o encontro fortuito, ou qual um indivíduo dá preferência a um indivíduo para o ato da_ gera-
o mero impulso do temperamento, produzisse efeitos tão freqüentes ção, exige, como provo no texto, mais progresso ou corrupçao n?
no estado de natureza puro como no da sociedade conjugal; lentidão entendimento humano do que se lhe pode supor no estado de am-
essa que talvez contribuísse para tornar as crianças mais robustas e malidade de que se trata aqui. Outra mulher pode, portanto, conte~~
que, aliás, poderia ser compensada pela faculdade de conceber, pro- tar os novos desejos do homem tão comodamente como a que ele Ja
longada até uma idade mais avançada nas mulheres que abusassem conheceu, e outro homem pode também contentar a mulher, supon-
menos dela em sua juventude. No tocante às crianças, há muitas ra- do-se que ela seja assaltada pelo mesmo apetite durante o estado de
zões para acreditar que suas forças e seus órgãos se desenvolvam gravidez, do que há bons motivos de se duvidar. Se no ~stado de
mais tarde entre nós do que se desenvolviam no estado primitivo de natureza a mulher não sente mais a paixão do amor depms da con-
que falo. A fraqueza original que herdam da constituição dos pais, os cepção do filho, o obstáculo para a sociedade com o homem se torna
cuidados que se tomam de envolver e imobilizar todos os seus mem- maior ainda, porquanto então ela já não necessita nem do homem
b~os, a indolência em que são criadas, talvez o uso de outro leite que que a fecundou nem de nenhum outro. Logo, não há no homem ra-
não o da mãe, tudo contraria e retarda nelas os primeiros progressos zão alguma para procurar a mesma mulher, nem na mulher razão
da natureza. A aplicação que se lhes obriga a dar a mil coisas nas alguma de procurar o mesmo homem. Assim, o raciocínio de Locke
quais se fixa continuamente sua atenção, enquanto não se proporcio- desmorona, e toda a dialética desse ftlósofo não o protegeu do erro
na nenhum exercício às suas forças corporais, pode ainda provocar que Hobbes e outros cometeram. Tinham de explicar um fato do

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estado de natureza, ou seja, de um estado em que os homens viviam te de qualquer outra percepção; abstração essa muito penosa, muito
isolados e em que tal homem não tinha motivo algum para permane- metafísica, muito pouco natural e sem a qual, entretanto, essas idéias
cer ao lado de tal homem, nem talvez os homens de permanecerem jamais se poderiam ter transportado de uma espécie ou de um gêne-
ao lado uns dos outros, o que é bem pior; e não pensaram em trans- ro para outro, nem os números se tornarem universais. Um selvagem
portar-se para além dos séculos de sociedade, isto é, desses tempos poderia considerar separadamente sua perna direita e sua perna es-
em que os homens sempre tiveram uma razão para permanecer perto querda, ou olhá-las juntas sob a idéia indivisível de um par, sem ja-
uns dos outros, e em que tal homem amiúde tem uma razão para per- mais pensar que tinha duas, pois uma coisa é a idéia representativa
manecer ao lado de tal homem ou de tal mulher. que nos descreve um objeto, e outra coisa a idéia numérica que o
. 1) Evitarei aventurar-me nas reflexões filosóficas que se pode- determina. Menos ainda poderia calcular até cinco e, embora pudes-
nam fazer sobre as vantagens e os inconvenientes dessa instituição se notar, ao aplicar suas mãos uma sobre a outra, que os dedos se
das línguas; não será a mim que permitirão atacar os erros vulgares, correspondiam exatamente, estava bem longe de pensar na igualda-
e o povo letrado respeita por demais seus preconceitos para tolerar de numérica deles. Não sabia melhor o total de seus dedos do que o
pacientemente meus pretensos paradoxos. Passemos, pois, a palavra de seus cabelos e se, depois de lhe fazer entender o que são os
a pessoas a quem não se imputou um crime ousar tomar às vezes 0 números, alguém lhe dissesse que ele tinha o mesmo número de de-
partido da razão contra a opinião da multidão. dos nos pés e nas mãos, talvez ficasse muito surpreendido, ao com-
Nec quidquam felicitati bumani generis decederet, pulsa tot lin- pará-los, de descobrir que isso era verdade.
guarum peste et confusione, unam artem callerent mortales et signis n) Não se deve confundir o amor-próprio e o amor de si mesmo,
motibus, gestibusque licitum foret quidvis explicare. Nun~ vero it~ duas paixões muito diferentes por sua natureza e por seus efeitos. O
comparatum est, ut animalium quae vulgo bruta creduntur, melior amor de si mesmo é um sentimento natural que leva todo animal a
longe quam nostra bac in parte videatur conditio, ut pote quae promp- zelar pela própria conservação e que, dirigido no homem pela razão
tius et forsan felicius, sensus et cogitationes suas sine interprete signifi- e modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude. O amor-
cent, quam ulli queant mortales, praesertim si peregrino utantur ser- próprio não passa de um sentimento relativo, factício e nascido na
mone. (Jsaac Vossius, De Poemat. Cant. et Viribus Rythmi, p. 66.) sociedade, que leva cada indivíduo a dar mais importância a si do
m) Platão, mostrando como as idéias da quantidade discreta e que a qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se
de suas relações são necessárias nas menores artes, zomba com razão fazem mutuamente e é a verdadeira fonte da honra.
dos autores de seu tempo, que pretendiam que Palamedes inventara Ficando isso claro, digo que, no nosso estado primitivo, no ver-
os números no cerco de Tróia, como se, diz o filósofo, Agamenon dadeiro estado de natureza, o amor-próprio não existe, pois, como
pudesse ignorar até então quantas pernas tinha. Com efeito, percebe- cada homem em particular olha-se a si mesmo como o único espec-
se que seria impossível que a sociedade e as artes houvessem chega- tador que o observa, como o único ser no universo que tenha inte-
do ao ponto que já estavam no tempo do cerco de Tróia, sem que os resse por si, como o único juiz de seu próprio mérito, não é possível
homens tivessem o uso dos números e do cálculo. Mas a necessidade que um sentimento que se origina em comparações que ele não é
de conhecer os números antes de adquirir outros conhecimentos não capaz de fazer possa germinar em sua alma. Pela mesma razão, esse
torna mais fácil imaginar-lhes a invenção; uma vez conhecidos os homem não poderia ter nem ódio nem desejo de vingança, paixões
nomes dos números, é fácil explicar-lhes o sentido e estimular as que só podem nascer da opinião de alguma ofensa recebida e, como
idéias que tais nomes representam, porém, para inventá-los, impôs- é o desprezo ou a intenção de prejudicar, e não o mal, que constitui
se, antes de conceber essas próprias idéias, estar-se, por assim dizer a ofensa, homens que não sabem nem se apreciar nem se comparar
familiarizado com as meditações filosóficas, estar-se exercitado n~ podem fazer-se muitas violências mútuas quando delas lhes advém
consideração dos seres apenas por sua essência e independentemen- alguma vantagem, sem nunca se ofenderem reciprocamente. Em su-

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ma, cada homem, vendo seus semelhantes quase que só como veria e todas as nossas artes mais úteis e mais curiosas; tudo isso sempre
animais de outra espécie, pode arrebatar a presa do mais fraco ou despertou neles apenas uma admiração estúpida, sem o menor movi-
ceder a sua ao mais forte, encarando essas rapinagens apenas como mento de cobiça. Lembro-me, entre outras, da história de um chefe
acontecimentos naturais, sem o menor movimento de insolência ou de alguns americanos setentrionais que levaram à corte da Inglaterra
de despeito, e sem outra paixão além da dor ou da alegria de um há uns trinta anos. Passaram-lhe mil coisas diante dos olhos, procu-
bom ou mau sucesso. rando dar-lhe algum presente que pudesse agradar-lhe, sem que en-
o) É algo extremamente notável que, depois de tantos anos que contrassem algo com que ele parecesse importar-se. Nossas armas
os europeus se atormentam para trazer os selvagens de diversas pareciam-lhe pesadas e incômodas, nossos sapatos ~a~hucavam-lhe
regiões do mundo à sua maneira de viver, ainda não tenham conse- os pés, nossas roupas o incomodavam, a tudo ele reJettava; p~r fim,
guido conquistar um único, nem sequer com a ajuda do cristianismo, perceberam que, ao pegar um cobertor de lã, ele pareceu senttr p~­
pois nossos missionários às vezes os transformam em cristãos, mas zer em envolver os ombros com ele. "Concordais, pelo menos", dts-
jamais em homens civilizados. Nada pode superar a invencível repug- seram-lhe na mesma hora, "com a utilidade desse objeto?" "Sim", res-
nância que têm em adotar nossos costumes e em viver à nossa ma- pondeu ele, "parece tão bom quanto a pele de um animal." Contudo
neira. Se esses pobres selvagens são tão infelizes como se pretende, não teria dito isso se tivesse usado uma e outra na chuva.
por que inconcebível depravação de juízo recusam constantemente Talvez me digam que é o hábito que, prendendo cada qual à
policiar-se ao nosso modo ou aprender a viver felizes entre nós, ao sua maneira de viver, impede os selvagens de sentirem o que há de
passo que se lê em incontáveis obras que franceses e outros euro- bom na nossa; e, sendo assim, deve parecer pelo menos muito ex-
peus se refugiaram voluntariamente entre essas nações, lá passaram traordinário que o hábito tenha mais força para manter os selvagens
a vida inteira sem mais poder deixar uma maneira tão estranha de no gosto de sua miséria do que os europeus no gozo ~e sua f~lici~­
viver, e vê-se até missionários sensatos sentirem temas saudades dos de. Mas, para dar a essa última objeção uma resposta a qual nao haJa
dias calmos e inocentes que passaram entre esses povos tão despre- uma palavra para replicar, sem alegar todos os jovens selvagens que
zados? Caso se responda que eles não têm luzes suficientes para jul- inutilmente se esforçaram em civilizar, sem falar dos groenlandeses e
gar sadiamente o seu e o nosso estado, replicarei que a avaliação da dos habitantes da Islândia, que tentaram criar e educar na Dinamarca,
felicidade é uma questão menos da razão do que do sentimento. e que a tristeza e o desespero fizeram com que morressem, seja_ de
Aliás, essa resposta pode voltar-se contra nós com mais força ainda, langor, seja no mar por onde haviam tentado voltar ao seu pats a
pois há maior distância de nossas idéias à disposição de espírito em nado contentar-me-ei em citar um único exemplo bem atestado, e
que se teria de estar para conceber o gosto que os selvagens têm por que ~presento para o exame dos admiradores da polícia européia.
sua maneira de viver do que das idéias dos selvagens àquelas que "Todos os esforços dos missionários holandeses do cabo da Boa
podem fazê-los conceber a nossa. De fato, depois de algumas obser- Esperança nunca conseguiram converter um único hotentote .. V~n d.er
vações, é-lhes fácil ver que todos os nossos trabalhos se dirigem ape- Stel, governador do Cabo, tendo pegado um deles desde a tnfaneta,
nas para dois objetos, a saber, conseguir para si as comodidades da fê-lo educar nos princípios da religião cristã e na prática dos costu-
vida e a consideração entre os demais. Mas qual o meio que temos mes da Europa. Vestiram-no ricamente, ensinaram-lhe várias línguas,
para imaginar a espécie de prazer que um selvagem sente em passar e seus progressos corresponderam muito bem aos cuidados tomados
sua vida sozinho, no meio dos bosques ou na pesca, ou em soprar com sua educação. O governador, esperando muito de seu espírito,
numa flauta ruim, sem jamais saber tirar-lhe uma única escala e sem enviou-o às índias com um comissário geral que o empregou util-
se preocupar em aprendê-la? mente nos negócios da companhia. Ele voltou ao Cabo depoi~ ~
Várias vezes levaram-se selvagens a Paris, a Londres e a outras morte do comissário. Poucos dias depois de sua volta, numa vtstta
cidades; empenharam-se em exibir-lhes nosso luxo, nossas riquezas que fez a alguns hotentotes parentes seus, tomou a decisão de des-

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------------Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ __ _ __________________ Notas _______________________

pojar-se dos trajes europeus para vestir-se com uma pele de ovelha. nais aos seus talentos e às suas forças, os cidadãos, por sua vez,
Retomou ao forte com essa nova indumentária, carregando um paco- devem ser distinguidos e favorecidos na proporção de seus serviços.
te que continha suas roupas antigas e, apresentando-as ao governa- É nesse sentido que se deve entender uma passagem de lsócrates na
dor, fez-lhe o seguinte discurso: Tende a bondade, senhor, de saber qual ele elogia os primeiros atenienses por terem sabido distinguir
que :enuncio para sempre a este aparato. Renuncio também, por toda bem qual era a mais vantajosa das duas espécies de igualdade, uma
a mmha vida, à religião cristã; minha decisão é viver e morrer na re- das quais consiste em distribuir as mesmas vantagens a todos os cida-
ligião, nas maneiras e costumes de meus ancestrais. A única graça dãos indiferentemente e a outra em distribuí-las conforme o mérito
que vos peço é deixar-me o colar e o cutelo que uso. Vou guardá-los de cada um. Esses hábeis políticos, acrescenta o orador, ao banirem
pelo amor de vós. Imediatamente, sem esperar a resposta de Van der essa injusta igualdade que não estabelece nenhuma diferença entre
Stel, escapuliu e nunca mais foi visto no Cabo." História das viagens, os maus e as pessoas de bem, aplicaram-se fielmente àquela que
tomo V, p. 175. recompensa e pune cada qual conforme seu mérito. Mas, primeira-
p) Poderiam objetar-me que em tal desordem os homens ao mente, nunca existiu sociedade, em qualquer grau de corrupção que
invés de se degolarem persistentemente uns aos outros, se teriam,dis- possa ter atingido, na qual não se fizesse diferença alguma entre maus
persado se não houvesse limites à sua dispersão. Mas, em primeiro e pessoas de bem; e, em matéria de costumes em que a lei não pode
lugar, esses limite~ teriam sido pelo menos os do mundo, e, se pen- fixar medida bastante exata para servir de regra ao magistrado, é
sarmos na excessiva população que resulta do estado de natureza muito sabiamente que, para não deixar a sorte ou a posição dos cida-
concluiremos que nesse estado a Terra não teria tardado a ficar c;_ dãos à sua mercê, ela lhe proíbe o julgamento das pessoas para dei-
berta de homens assim forçados a se manterem reunidos. Aliás ter- xar-lhe apenas o das ações. Só costumes tão puros como os dos anti-
se-ia~ dispersa~o, se o mal fosse rápido e houvesse uma mud~nça gos romanos podem suportar censores, e tribunais semelhantes logo
do dta para a notte; mas eles nasciam sob o jugo; quando sentiam seu teriam desordenado tudo entre nós. Compete à estima pública esta-
peso, :stavam hab.ituados a carregá-lo e contentavam-se em esperar belecer a diferença entre os maus e as pessoas de bem. O magistra-
a ocastao de sacudt-lo. Enfim, já acostumados a mil comodidades que do não é juiz senão do direito rigoroso; mas o povo é o verdadeiro
os forçavam a manter-se reunidos, a dispersão já não era tão fácil juiz dos costumes, juiz íntegro e até esclarecido sobre esse ponto, de
como n~s primeiros tempos quando, todos tendo necessidade ape- quem por vezes se abusa, mas a quem jamais se corrompe. As posi-
nas de SI mesmos, cada qual tomava sua decisão sem esperar 0 con- ções dos cidadãos devem pois ser reguladas, não segundo seu méri-
sentimento alheio. to pessoal, o que seria deixar ao magistrado o meio de fazer uma
q) O marechal de V. .. contava que, numa de suas campanhas, aplicação quase arbitrária da lei, mas segundo os serviços reais que
tendo as excessivas trapaças de um fornecedor de víveres causado prestam ao Estado e que são suscetíveis de uma avaliação mais exata.
danos ao exército e provocado boatos, ele o admoestou energica-
mente e o ameaçou de enforcá-lo. "Essa ameaça não me diz respei-
t~", respondeu-lhe atrevidamente o trapaceiro, "e folgo muito em Anotações de Voltaire sobre o Discurso
dtzer-vos que não se enforca um homem que dispõe de cem mil sobre a desigualdade das condições
escudos." Não sei o que aconteceu, acrescentou ingenuamente 0
~rechal, mas realmente ele não foi enforcado, embora merecesse 1. Todas essas notas muito legíveis de Voltaire são escritas à pe-
se-lo cem vezes. na. (Nota de M. Gardet.)
r) A justiça distributiva até se oporia a essa igualdade rigorosa
do estado de natureza, ainda que fosse praticável na sociedade civil·
e, como todos os membros do Estado lhe devem serviços proporcio~

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Bibliografia

Para as obras de Rousseau, reportar-se às Oeuvres completes (Pa-


ris, NRF-Gallimard, Biblioteque de la Pléiade). Nelas se encontrarão,
especialmente:
no tomo I 0959), as Confessions (cujo livro VIII corresponde ao
período em que Rousseau escreveu os dois Discursos), Rousseau juge
de jean-jacques e as Quatre lettres à M. le Président de Malesberbes,
no tomo 11 (1964), o Prefácio da comédia Narcisse e a Epftre à
Parizot;
no tomo III (1964), os dois Discursos e todas as respostas de
Rousseau às críticas por eles suscitadas, notavelmente apresentados e
anotados por F. Bouchardy e ]. Starobinski.
Reportar-se igualmente à edição das Confessions elaborada por
]. Voisine nos Clássicos Garnier (com introdução e índice).
Ter-se-á uma idéia bastante exata da reação dos filósofos con-
temporâneos consultando a Correspondance littéraire (ed. elaborada
por M. Tourneux; Paris, Garnier, 1877-1882, 16 vol., in 82). Nela en-
contrar-se-ão um artigo de Raynal, de 18 de outubro de 1751 (11, 105-
106), e dois artigos de Grimm, de 15 de fevereiro de 1754 (II, 318-
322) e de 15 de julho de 1755 (III, 53-58).
Da imensa literatura consagrada à obra política ou à personali-
dade de Rousseau, reteremos apenas os seguintes títulos:
L'impensé de Jean-Jacques Rousseau. Cahiers pour l'Analyse, n2
8, Paris, Ed. du Seuil, 1969 (reimp.). In 42 , 133 pp.
jean-jacques Rousseau, Neuchâtel, Ed. de la Baconniere, 1962.
In 82 , 263 pp.
Rousseau et la pbilosopbie politique, Paris, Presses Universitaires
de France, 1965. In 12º, 256 pp.

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_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ Rousseau _ _ _ _ _ _ _ _ _ __

Burgelin (Pierre), La pbilosopbie de l'existence de j.J. Rousseau,


Paris, Presses Universitaires de France, 1952. In 82 , 597 pp.
· Crocker (Lester G.), jeanjacques Rousseau. Tomo I: Tbe Quest
(1712-1758), Nova York e Londres, Macmillan, 1968. In 82 , X-372 pp.
Derathé (Robert), jeanjacques Rousseau et la science politique
de son temps, Paris, Presses Universitaires de France, 1950. In 8º, n·-
464 pp.
Derrida (Jacques), De la grammatologie, Paris, Ed. de Minuit, ~­
d. (1967). In 82, 445 pp.
Fabre (Jean), Deux freres ennemis: Diderot et Jean-Jacques. In:
Diderot studies III, pp. 155-213, Genebra, Droz, 1961. In 8º.
Gouhier (Henri), Nature et histoire chez Rousseau. In: Annales
jeanjacques Rousseau, tomo XXXIII 0953-1955), pp. 7-48.
Havens (George R.), Diderot, Rousseau and the Discours sur
l'Inégalité. In: Diderot studies 1/l, pp. 219-62, Genebra, Droz, 1961. In
82.
Hubert (René), Rousseau et l'Encyclopédie, Paris, ]. Gamber,
1928. In 82, 137 pp.
Launay (Michel), Rousseau, Paris, Presses Universitaires de Fran-
ce, 1968. Pt. in 82, 126 pp.
Starobinski (Jean), jeanjacques Rousseau. La transparence et
l'obstacle, Paris, Plon, 1958. In 82, 11-340 pp.
Weil (Eric), Jean-Jacques Rousseau et sa politique, Critique, ja-
neiro de 1952, pp. 3-28.

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