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Marcos Bagno

56ª edição
revista e ampliada
Direção: Andréia Custódio
Capa e diagramação: Telma Custódio
Revisão: Karina Mota
Fotos da capa: Arquivo público do Distrito Federal

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

B134p
Bagno, Marcos, 1961-
Preconceito linguístico / Marcos Bagno. - 56ª ed. revista e ampliada
- São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
352 p. ; 17 cm. (Parábola breve ; 6)

Inclui bibliografia e índice


ISBN 978-85-7934-098-7

1. Sociolinguística. 2. Língua portuguesa - Aspectos sociais - Brasil.


I. Título. II. Série.
14-16953 CDD: 469.798
CDU: 811.134.3’36

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ISBN: 978-85-7934-098-7
© do texto: Marcos Bagno, janeiro de 2015.
© da edição: Parábola Editorial, São Paulo, janeiro de 2015.
Sedule curavi humanas actiones non ridere,
non lugere, neque detestare,
sed intellegere.
Spinoza

[Tenho-me esforçado por não rir das ações humanas,


por não deplorá-las nem odiá-las,
mas por entendê-las.]
Sumário

Importante saber.................................................................. 9
1 A mitologia do preconceito linguístico.............. 21
Mito nº 1: “O português do Brasil apresenta uma
unidade surpreendente”................................... 25
Mito nº 2: “Brasileiro não sabe português/
Só em Portugal se fala bem português”........... 37 7
Mito nº 3: “Português é muito difícil”................................ 57
Mito nº 4: “As pessoas sem instrução falam tudo
errado”................................................................ 64
Mito nº 5: “O lugar onde melhor se fala português
no Brasil é o Maranhão”..................................... 71
Mito nº 6: “O certo é falar assim porque se escreve
assim”.................................................................. 79
Mito nº 7: “É preciso saber gramática para falar e
escrever bem”......................................................91
Mito nº 8: “O domínio da norma-padrão é um
instrumento de ascensão social”.................... 104
2 O círculo vicioso do preconceito
linguístico.................................................................. 109
Os três elementos que são quatro.................................... 109
Sob o império de Napoleão............................................... 118
Um festival de asneiras...................................................... 123
A falta de estilo de Josué................................................... 136
Beethoven não é dançado!................................................ 139
3 A desconstrução do preconceito linguístico.............151
Reconhecimento da crise................................................................ 151
Mudança de atitude......................................................................... 165
O que é ensinar português?............................................................. 170
O que é erro?......................................................................................174
Então vale tudo?............................................................................... 183
A paranoia ortográfica..................................................................... 186
Subvertendo o preconceito linguístico.......................................... 196
4 Linguagem, metalinguagem ou EPIlinguagem?...............203
Metalinguagem: a linguagem para falar da linguagem................. 203
Sala de aula ou necrotério?............................................................. 208
O que é epilinguagem?..................................................................... 212
Atividades epilinguísticas exemplares........................................... 217
A metalinguagem tem seu lugar..................................................... 224
E quem nos salva da matalinguagem?............................................ 228
Em suma…........................................................................................ 231
5 O preconceito contra a linguística e os linguistas...235
Uma “religião” mais velha que o cristianismo...............................235
8
Português ortodoxo? Que língua é essa?....................................... 243
Devaneios de idiotas e ociosos....................................................... 246
A quem interessa calar os linguistas?............................................. 252
Preconceito linguístico

6 Casos exemplares..................................................................259
A mídia, o ENEM e a concordância.................................................. 259
Ensino de português: por que nada mudou?................................. 267
O sotaque e seu papel cultural........................................................ 275
Oba, vamos estudar gramática?..................................................... 282
Nova classe média (?), nova língua urbana?................................... 292
Presidenta, sim!................................................................................ 297
Racismo linguístico..........................................................................304
Vamos largar as muletas e andar livremente pela escrita?............. 311
Vamos jogar no lixo esse maldito “coloquial”!............................... 318
Mas afinal, o que é “a sociedade”?.................................................. 325
Isso é grego pra mim!....................................................................... 330
Que língua de Camões que nada!.................................................... 337
Referências bibliográficas.........................................................345
Índice de nomes...............................................................................347
Importante saber

Esta é uma edição radicalmente revis-


ta, ampliada e atualizada do livro publica-
do inicialmente em 1999. Por isso, pode se
dizer que se trata de um “novo” livro, na
medida em que procurei incorporar nes- 9
ta nova versão os frutos mais recentes de
minha reflexão teórica, prática docente e
participação em projetos educacionais im-
portantes e também de minhas pesquisas
pessoais e discussões com outros colegas
linguistas e educadores. Me vali igualmen-
te de tudo o que venho colhendo em minha
permanente militância contra o preconcei-
to linguístico e em favor de uma educação
em língua materna mais democrática e
coe­rente com o estado atual das ciências
da linguagem e da educação.
Quando, no início de 1999, sob insis-
tente convite de meu querido amigo e editor
Marcos Marcionilo, recolhi num pequeno volume algu-
mas das ideias que tinha divulgado em palestras mi-
nistradas no ano anterior, jamais imaginei que essa ini-
ciativa teria tamanha repercussão e aceitação. De fato,
parece que existia uma lacuna importante na biblio-
grafia brasileira sobre questões de linguagem: livros
escritos de forma acessível aos não especialistas (e a fu-
turos especialistas) que explicitassem, com a máxima
franqueza, opiniões divergentes da ideologia linguística
dominante em nossa cultura — uma ideologia antibra-
sileira, repressora e autoritária, assumida e divulgada
por gente que vê “erros” por todo lado e que acredita
no mito da existência, num passado longínquo, de uma
“época de ouro” da língua, quando todos falavam “certo”
10
e ninguém “corrompia” a mística “língua de Camões”.
Tão logo o livro foi publicado, comecei a receber,
Preconceito linguístico

em grande quantidade, mensagens de agradecimen-


to da parte de incontáveis pessoas que, como me con-
fessavam, “sempre tinham pensado daquele jeito”,
mas jamais tinham encontrado, no meio acadêmico,
alguém que se solidarizasse com tais convicções e
lhes provasse que havia boas razões para analisar
os fatos numa perspectiva diferente da tradicional.
Também foram (e continuam sendo) incontáveis as
manifestações daqueles que, após a leitura do livro,
se conscientizaram de seus próprios preconceitos e
tomaram a decisão de mudar de atitude diante dos
fatos de linguagem em sua vida diária.
É claro que também chegaram (e continuam che-
gando) reações grosseiras e furiosas da parte de gen-
te que não esconde seu ideário político conservador,
elitista e autoritário. A grande maioria jamais se deu
ao trabalho de ler o livro, reagindo ao que ouviram
dizer que alguém ouviu dizer. O fascismo ignorante
e arrogante sempre encontra quem se preste a levar
adiante seu projeto lúgubre contra a democratização
da sociedade. Felizmente, essas reações têm sido em

Importante saber
número infinitamente menor. É claro que o livro po-
dia e continua podendo ser criticado, mas a crítica
perde todo o seu efeito saudável quando se transfor-
ma em ataque pessoal e deixa explícito o sentimento
da intolerância, a maior inimiga da humanidade em
11
todos os tempos, hoje mais do que nunca!
Para os que já leram e apreciaram o livro, esta
nova edição vai revelar inúmeras surpresas (espero
que todas agradáveis). Tentei esclarecer alguns pon-
tos, aprofundando discussões que, parece, foram fei-
tas de modo superficial na versão anterior, deixan-
do margem a interpretações ambíguas, quando não
distorcidas, das propostas teóricas e políticas dos
educadores brasileiros engajados numa transforma-
ção (para o bem) das relações entre língua, escola e
sociedade. Também acrescentei material novo, com
discussões bem recentes em torno de alguns temas
que suscitaram algum debate público em torno de
questões de linguagem.
A principal modificação se encontra no plano da
terminologia. Abandonei definitivamente a expres-
são “norma culta” por causa das muitas ambiguida-
des que ela implica. Como se sabe, esse mesmo rótulo
é empregado, sem critérios claros, tanto para se refe-
rir ao modelo idealizado de língua “certa” prescrito
pelas gramáticas normativas e por seus divulgadores
quanto para designar o modo como realmente falam
(e escrevem) os brasileiros urbanos, letrados e de
status socioeconômico elevado. Ora, essas duas enti-
dades são profundamente diferentes. Quarenta anos
de pesquisa sociolinguística no Brasil têm demons-
trado que existe uma distância muito grande entre
o “português” que as gramáticas normativas tentam
12
impor como uso único e exclusivo da língua e os va-
riados modos de falar que encontramos na atividade
Preconceito linguístico

linguística real dos cidadãos que gozam de prestígio


social. Por isso, desde que publiquei, em 2003, o livro
A norma oculta: língua & poder na sociedade brasi-
leira, venho insistindo no uso de outros termos para
designar essas duas coisas.
Cada vez mais se torna evidente que é preciso
analisar a nossa realidade sociolinguística sob três
focos: de um lado, (1) a norma-padrão, isto é, o mo-
delo idealizado de língua “certa” descrito e prescrito
pela tradição gramatical normativa — e que de fato
não corresponde a nenhuma variedade falada autên-
tica e, em grande medida, tampouco à escrita mais
monitorada —, e, do outro lado, como extremos de
um amplo continuum, (2) o conjunto das variedades
prestigiadas, faladas pelos cidadãos de maior poder
aquisitivo, de maior nível de escolarização e de maior
prestígio sociocultural, e (3) o conjunto das varieda-
des estigmatizadas, faladas pela imensa maioria da
nossa população, seja nas zonas rurais, seja nas pe-
riferias e zonas degradadas das nossas cidades, onde
vivem os brasileiros mais pobres, com menor acesso

Importante saber
à escolarização de qualidade, desprovidos de muitos
de seus direitos mais elementares.
Com isso, quero deixar claro que a norma-padrão
não faz parte da língua, isto é, não é um modo de
falar autêntico, não é uma variedade do português
13
brasileiro contemporâneo. Ela só aparece, e ainda
assim nunca integralmente obedecida, em textos es-
critos com alto monitoramento estilístico, nos quais,
porém, já é bastante significativa a presença das
inovações linguísticas próprias da verdadeira língua
dos brasileiros, uma língua que procurei descrever o
mais exaustivamente possível nas mais de mil pági-
nas da minha Gramática pedagógica do português
brasileiro, lançada em 2012.
Um mínimo exemplo pode esclarecer essa neces-
sidade de distinguir a norma-padrão ideal das varie-
dades urbanas de prestígio. Em qualquer gramática
ou livro didático, encontramos a formação do modo
imperativo sempre apresentada da mesma maneira.
Quando se trata do imperativo negativo na segunda
pessoa do singular (tu), a única forma descrita é do
tipo “não fales”, “não comas”, “não peças” etc. Ora,
em nenhum lugar do Brasil, em nenhuma classe so-
cial, se usa essa forma do imperativo negativo. Mes-
mo em lugares (como o Pará e o Maranhão) onde o
pronome tu é empregado com a morfologia clássica
em outros tempos e modos ( falas, falaste, falasses),
o imperativo negativo se faz ou como “não fala”, “não
come”, “não pede”, ou como “não fale”, “não coma”,
“não peça”. Ninguém, portanto, na fala normal e es-
pontânea (e mesmo na escrita monitorada), usa a for-
ma prevista pela norma-padrão. Por isso, é possível
dizer que a norma-padrão não faz parte da língua, se
14
por língua entendermos a atividade linguística real
dos falantes em suas interações sociais.
Preconceito linguístico

Como mencionei, algumas das ideias apresenta-


das neste livro foram interpretadas numa direção um
tanto diferente daquela que presidiu a minha inten-
ção no momento em que as registrei por escrito. Para
tentar esclarecer pelo menos alguns dos pontos mais
críticos dessa situação é que faço a seguinte síntese,
baseada na reflexão mais recente de inúmeros pes-
quisadores e agentes de política educacional:
◊ a prioridade absoluta, no ensino de língua, deve
ser dada às práticas de letramento, isto é, às prá-
ticas que possibilitem ao aprendiz uma plena in-
serção na cultura letrada, de modo que ele seja
capaz de ler e de escrever textos dos mais dife-
rentes gêneros que circulam na sociedade. Para
ler e escrever, por mais óbvio que pareça, é pre-
ciso ler e escrever, e não, como sempre se acredi-
tou, decorar toda uma nomenclatura gramatical
numerosa, confusa e frequentemente contradi-
tória, nem fazer análise sintática e morfológica
de frases soltas, artificiais, irrelevantes, muitas
vezes ridículas, práticas que não contribuem

Importante saber
em nada para a verdadeira educação linguística
dos cidadãos — com isso, o ensino explícito da
gramática, como objeto de reflexão e teorização,
deve ser abandonado nas primeiras etapas da
escolarização em favor de uma real inserção dos
15
aprendizes na cultura letrada em que vivem;
◊ todos os aprendizes devem ter acesso às varie-
dades linguísticas urbanas de prestígio, não
porque sejam as únicas formas “certas” de fa-
lar e de escrever, mas porque constituem, junto
com outros bens sociais, um direito do cidadão,
de modo que ele possa se inserir plenamente na
vida urbana contemporânea, ter acesso aos bens
culturais mais valorizados e dispor dos mesmos
recursos de expressão verbal (oral e escrita) dos
membros das elites socioculturais e socioeconô-
micas; o acesso e a incorporação dessas varieda-
des urbanas de prestígio se fazem pelas práticas
de letramento mencionadas acima, por meio do
convívio intenso, sobretudo no ambiente escolar,
com os gêneros textuais discursivos mais rele-
vantes para a interação social nos modos de vida
contemporâneos;
◊ é imprescindível reconhecer que essas varieda-
des urbanas de prestígio não correspondem inte-
gralmente às formas prescritas pelas gramáticas
normativas, isto é, não correspondem à norma-
-padrão tradicional: uma grande quantidade de
regras prescritas pela norma-padrão tradicional
já caíram na obsolescência, já deixaram de ser
seguidas até mesmo pelos escritores mais con-
sagrados nos últimos cem anos (se não mais),
assim como muitos usos não normativos já se in-
16
corporaram plenamente à língua falada das ca-
madas sociais privilegiadas e à língua escrita nos
Preconceito linguístico

gêneros textuais mais prestigiados — com isso,


embora o acesso do estudante à norma-padrão
tradicional também faça parte da sua educação
linguística (sobretudo pela e para a leitura dos
clássicos), este acesso deve ser feito numa pers-
pectiva crítica, para que não se caia na velha prá-
tica (anti)pedagógica de condenar todas as ino-
vações linguísticas (resultantes dos inevitáveis
processos de mudança da língua) como se fossem
indícios da “ruína” e da “decadência” do idioma;
◊ a prática da reflexão linguística é importan-
te para a formação intelectual do cidadão; com
isso, ainda existe lugar, em sala de aula, para o
estudo explícito da gramática, desde que ele não
seja visto como um fim em si mesmo nem como o
aprendizado de um conjunto de dogmas, de ver-
dades absolutas e imutáveis: a reflexão sobre a
língua deve ser feita por meio da investigação de
fatos linguísticos reais, em manifestações fala-
das e escritas autênticas, e por meio do confronto
crítico entre as abordagens tradicionais e as teo­

Importante saber
rias científicas mais recentes — se a prática da
pesquisa, da reflexão sobre a constituição histó-
rica dos campos de conhecimento, da contesta-
ção e revisão dos postulados científicos ocorre
em todas as demais disciplinas do currículo es-
17
colar, não existe justificativa alguma para que
ela não ocorra também nas aulas de língua: se os
professores de ciências não podem mais ensinar
que Plutão é um “planeta”, por que os professo-
res de português devem continuar a ensinar que
você é mero “pronome de tratamento”, que existe
uma “flexão de grau” ou que o verbo preferir não
admite construções comparativas do tipo “prefi-
ro mil vezes cinema do que teatro”?
◊ a variação linguística tem que ser objeto e obje-
tivo do ensino de língua: uma educação linguísti-
ca voltada para a construção da cidadania numa
sociedade verdadeiramente democrática não
pode desconsiderar que os modos de falar dos
diferentes grupos sociais constituem elementos
fundamentais da identidade cultural da comuni-
dade e dos indivíduos particulares e que denegrir
ou condenar uma variedade linguística equivale
a denegrir e a condenar os seres humanos que a
falam, como se fossem incapazes, deficientes ou
menos inteligentes — é preciso mostrar, em sala
de aula e fora dela, que a língua varia tanto quanto
a sociedade varia, que existem muitas maneiras
de dizer a mesma coisa e que todas correspon-
dem a usos diferenciados e eficazes dos recursos
que o idioma oferece a seus falantes; também é
preciso evitar a prática distorcida de apresentar
a variação como se ela existisse apenas nos meios
18
rurais ou menos escolarizados, como se também
não houvesse variação (e mudança) linguística
Preconceito linguístico

entre os falantes urbanos, socialmente prestigia-


dos e altamente escolarizados, inclusive nos gê-
neros escritos mais monitorados.
Espero que esses pontos estejam suficientemen-
te claros para evitar que os linguistas e educadores
continuem sendo acusados de pregar ideias que nun-
ca passaram por suas cabeças! Ninguém jamais dis-
se que é preciso deixar os alunos provenientes das
camadas desfavorecidas da população encerrados
em sua própria variedade linguística, sem permitir
que tenham acesso a outros modos de falar e de es-
crever. Infelizmente, essa calúnia (fruto de leitura
apressada, quando não mal-intencionada) continua
sendo estampada com lamentável frequência nos jor-
nais e revistas brasileiros.
Como é fácil ver, a luta está apenas começando. E
agradeço profundamente às muitas pessoas que já se
juntaram a ela e às que venham a unir suas forças no
nosso difícil trabalho de construção de uma socieda-
de de fato linguisticamente democrática.

Importante saber
Brasília, 1o de janeiro de 2015.
Marcos Bagno
www.marcosbagno.org

19
1 A mitologia
do preconceito linguístico

Podemos apreciar cada vez mais, nos


dias de hoje, uma forte militância contra
as mais variadas formas de preconceito,
21
de maneira a mostrar que eles não têm ne-
nhum fundamento racional, nenhuma jus-
tificativa, e que são apenas o resultado da
ignorância, da intolerância ou da manipu-
lação ideológica.
Infelizmente, porém, esse combate tão
necessário não tem atingido um tipo de
preconceito muito comum na sociedade
brasileira: o preconceito linguístico. Muito
pelo contrário, o que vemos é esse precon-
ceito ser alimentado diariamente em pro-
gramas de televisão e de rádio, em colunas
de jornal e revista, em livros e manuais que
pretendem ensinar o que é “certo” e o que é
“errado”, sem falar, é claro, dos instrumentos tradi-
cionais de ensino da língua: as gramáticas normativas
e parte dos livros didáticos disponíveis no mercado.
O preconceito linguístico é tanto mais poderoso
porque, em grande medida, ele é “invisível”, no sen-
tido de que quase ninguém se apercebe dele, quase
ninguém fala dele, com exceção dos raros cientistas
sociais que se dedicam a estudá-lo. Pouquíssimas
pessoas reconhecem a existência do preconceito lin-
guístico, que dirá a sua gravidade, como um sério
problema social. E quando não se reconhece sequer a
existência de um problema, nada se faz para resolvê-
-lo. Nem mesmo na atuação de pessoas engajadas em
importantes causas sociais, com posições politica-
22
mente progressistas, a gente encontra referências a
ele, a não ser muito esparsamente.
Preconceito linguístico

No âmbito do Estado brasileiro, por exemplo, ve-


mos com grande satisfação o surgimento de institui-
ções oficiais de combate ao racismo (como a Secreta-
ria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial, criada em 2003), ao sexismo (como a Secreta-
ria Especial de Políticas para as Mulheres, criada em
2002), entre outras iniciativas semelhantes voltadas
para a inclusão social de segmentos historicamente
marginalizados e oprimidos. Não existe, porém, ab-
solutamente nada que se pareça com uma política
linguística oficial, planejada, explícita, teoricamente
bem fundamentada, que se ocupe, por exemplo, dos
direitos linguísticos dos falantes de línguas minori-
tárias (mais de duzentas no Brasil inteiro!), que de-
fenda e valorize a diversidade linguística do portu-
guês brasileiro, que lute pelo reconhecimento e pela

A mitologia do preconceito linguístico


legitimação (inclusive no âmbito educacional) das
características especificamente brasileiras de falar a
língua majoritária, características presentes no nosso
modo de falar o português há séculos, mas até hoje
veementemente combatidas pelos defensores de um
ideal de “língua pura” antiquado, conservador e as-
sumidamente reacionário. No entanto, desde 1996,
circula pelo mundo, sob patrocínio da Unesco, a De-
claração Universal dos Direitos Linguísticos, procla-
mada naquele ano na cidade de Barcelona (Espanha)1.
23
Todo país que se pretenda genuinamente democrático
tem que estabelecer uma política linguística racio-
nal e transparente, voltada para o bem de todos os
cidadãos. Não por acaso a Declaração Universal dos
Direitos Linguísticos foi assinada na Espanha: tão
logo esse país se libertou da ditadura franquista (um
pesadelo fascista que aterrorizou os espanhóis por
quarenta anos), uma das primeiras ações do novo go-

1
  Ver a respeito o livro Declaração universal dos direitos linguísti-
cos, organizado por Gilvan Müller de Oliveira e publicado em 2003
pela editora Mercado de Letras em coedição com o IPOL (Instituto de
Desenvolvimento e Investigação em Política Linguística). O IPOL é
uma organização não governamental, sediada em Florianópolis, que
desenvolve projetos muito importantes na área da política linguísti-
ca. Vale a pena conhecer: <www.ipol.org.br>; acesso em 05/12/2014.
verno democrático foi precisamente democratizar as
relações linguísticas no território espanhol, oficiali-
zando o catalão, o basco e o galego, ao lado do caste-
lhano, nas regiões em que essas línguas são faladas.
O espaço social deixado vago pela inexistência de
uma política linguística oficial, de âmbito nacional,
acaba sendo ocupado, infelizmente, por uma política
linguística difusa, confusa e retrógrada, justamente
aquela praticada de modo repressor, persecutório e
cientificamente desinformado pelas diversas instân-
cias da sociedade que, de um modo ou de outro, se in-
teressam pela questão da(s) língua(s): a pedagogia tra-
dicional, as editoras de revistas e livros, as academias
de Letras, os meios de comunicação de massa, poderes
24 executivos e/ou legislativos estaduais e municipais etc.
É a falta de uma política linguística bem traçada que
Preconceito linguístico

permite o surgimento e a reprodução dos “comandos


paragramaticais”, que vamos examinar na segunda
parte deste livro. Essa atuação equivocada a respeito
das questões linguísticas foi exemplificada pela ridí-
cula proibição, em 2007, pelo governador do Distrito
Federal (José Roberto Arruda, já antes envolvido em
situações igualmente patéticas e que acabou sendo
destituído e preso por corrupção), do uso do gerúndio
nos documentos oficiais… Onde não existe uma políti-
ca linguística bem informada e esclarecida, a ignorân-
cia (ou a má-fé) se instala com a maior tranquilidade.
O preconceito linguístico fica bastante cla-
ro numa série de afirmações que já fazem parte da
imagem (negativa) que o brasileiro tem de si mesmo e
da língua falada por aqui. Outras afirmações são até
bem-intencionadas, mas, mesmo assim, compõem
uma espécie de “preconceito positivo”, que também
se afasta da realidade. Vamos examinar algumas

A mitologia do preconceito linguístico


dessas afirmações falaciosas e ver em que medida
elas são, na verdade, mitos e fantasias que qualquer
análise mais rigorosa não demora a derrubar.
Estou convidando você, a partir de agora, a fa-
zer junto comigo um pequeno passeio pela mitologia
do preconceito linguístico. Quando o passeio acabar,
isto é, quando tivermos terminado de examinar os
principais mitos, vamos tentar refletir juntos para
encontrar os meios mais adequados de combater
esse preconceito no nosso dia a dia, na nossa ativi- 25
dade pedagógica de professores em geral e, parti-
cularmente, de professores de língua portuguesa, e
também na nossa atuação como cidadãos desejosos
de viver num ambiente social (e linguístico) verda-
deiramente democrático.

Mito nº 1
“O português do Brasil apresenta
uma unidade surpreendente”

Esse é um dos mitos mais graves dos que compõem


a mitologia do preconceito linguístico no Brasil. Ele
“A contundência e a radicalidade com que Bagno costuma
expor suas críticas (frequentemente em meios de ampla
estáfizeram
difusão) tão arraigado em nossa
dele uma cultura queextremamente
personalidade até mesmo
intelectuais de renome, pessoas de visão crítica e ge-
polêmica, que conquista adesões entusiastas e ódios incondi-
ralmente boas observadoras dos fenômenos sociais
cionais. Trata-se de um linguista combativo, de todo afastado
brasileiros se deixam enganar por ele. É o caso, por
do modelo do acadêmico supostamente neutro. Bagno toma
exemplo, de Darcy Ribeiro, que em seu último gran-
partidodeabertamente,
estudo sobre oconvencido de que
povo brasileiro esta é a única ma-
escreveu:
neira honesta de contribuir para o conhecimento.”
É de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de matri-
Pere Comellas Casanova
zes tão diferenciadas, os brasileiros são, hoje, um dos
Universidade de Barcelona
povos mais homogêneos linguística e culturalmente e
também um dos mais integrados socialmente da Terra.
Falam uma mesma língua, sem dialetos. (Folha de S.Paulo,
5 de fevereiro de 1995; grifo meu)

Existe também toda uma longa tradição de estu-


26
dos filológicos e gramaticais que se baseou, durante
muito tempo, nesse (pre)conceito irreal da “unidade
Preconceito linguístico

linguística do Brasil”.
Esse mito é muito prejudicial à educação por-
que, ao não reconhecer a verdadeira diversidade do
português falado no Brasil, a escola tenta impor sua
norma linguística como se ela fosse, de fato, a língua
comum a todos os mais de 200 milhões de brasilei-
ros, independentemente de sua idade, de sua origem
geográfica, de sua situação socioeconômica, de seu
grau de escolarização etc. Com isso também se nega
o caráter multilíngue do nosso país, onde são fala-
das mais de duzentas línguas diferentes, entre lín-
guas indígenas, línguas trazidas pelos imigrantes

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