Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Na época imperial, a parusia do César podia inclusive dar lugar a uma nova era, comportando uma virada determinante da
história. O imperador era aclamado em sua parusia como senhor e portador da salvação. O povo aguardava com expectativa a
sua vinda, porque da mesma se esperava conseguir benefícios excepcionais.
2
Sobre o significado da Parusia ver: A . OEPKE, Parousia, in TWNT V, 857ss.; A . FEUILLET, Parousie, in SDB VI, 1331
ss.; L. CERFAUX, Jesucristo en San Pablo, Bilbao, 1960, 34s.;J.L. RUIZ DE LA PEÑA, La outra dimensión, Escatologia
cristiana, Madrid, 1975, 159ss; IDEM La Pascua de la creación, Madrid, 1996, 124ss.; S. ZEDDA, L´escatologia biblica II,
Brescia, 1975, 171s.; M. BORDONI, Gesù di Nazaret Signore e Cristo, v.2 e 3, Roma, 1982-1986; IDEM. Gesù nostra
speranza, Bologna, 1991.
possibilitará aos Santos Padres falarem de uma dupla vinda do Salvador. E a continuidade entre parusia e
epifania é percebida em 2 Tes 2,8, que menciona a “epifania” da sua parusia, isto é, a manifestação do
advento de Cristo em poder e glória.
Epifania pode ter como variantes o substantivo apocalipse ( revelação) e o verbo manifestar-se (
phaneroûn), na voz passiva ( Col 3,4, 1 Jo 2,8). O vocábulo apocalipse aparece em 1 Cor 1,7 como
objeto de esperança cristã. O verbo phaneroó aparece em Col 3,4 e indica a manifestação de Cristo que
implicará também na manifestação gloriosa dos cristãos ( 1 Jo 2,28).
Manifestação, revelação, visita e vinda são vocábulos que expressam a riqueza terminológica do
conceito parusia. A utilização, entretanto, caracteriza-se sempre pela acentuação alegre do evento
significado.
2. Fundamentação Bíblica
Não existe no Antigo Testamento um termo hebraico que possa equiparar-se ao que se denomina no
grego do Novo Testamento como “parousia”3 . O vocábulo é mencionado 24 vezes no Novo
Testamento, designando o mesmo sentido que os gregos davam à palavra. Refere-se ao advento glorioso
de Cristo no final dos tempos, citado nos sinóticos, no corpus paulino, no joanino e nas cartas pastorais 4.
Geralmente a expressão parusia está ligada à idéia de fim do mundo e ao juízo final. O texto da primeira
Carta aos Tessalonicenses ( 4,13-18), por exemplo, utiliza traços apocalípticos judaicos para descrever o
evento: a voz do arcanjo, o toque da trombeta, as nuvens, a ressurreição dos mortos. Conclui-se, então,
que os textos neotestamentários integram inseparavelmente a parusia e os outros elementos do
éschaton5: a vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos, o juízo final e a nova criação.
O advento de Cristo conclui e consuma a história enquanto evento salvífico. Trata-se de uma
chegada em poder e glória, que derrotará as potestades do inimigo e glorificará os que agora pertencem a
Cristo. Será uma manifestação gloriosa de Jesus, distinta da Encarnação, quando Ele se revelou na
humildade do presépio. É por isso que os documentos, em sua totalidade, nunca se referem a uma
segunda vinda, mas apenas como “vinda” . O Novo Testamento não entende a encarnação como uma
primeira parusia de Cristo. O termo é utilizado somente para a chegada do Filho do Homem no juízo
universal6. Há, contudo, elementos que justificam a aplicação tardia do termo também para a
encarnação. Isto ocorre quando compreende-se o aparecimento de Cristo como um “devir” de Deus que
faz de Jesus a “ parusia de Deus” (Cf. Mt 1,23). Encontra-se, ainda, uma outra utilização do vocábulo ao
identificar-se Jesus com as figuras veterotestamentárias do “ Filho do Homem” e do “ Servo de Javé”.
Entende-se, assim, que a obra da salvação deve ser realizada numa única pessoa que se manifesta em
seus adventos. No mesmo sentido está a idéia de que o cumprimento ( o já ) e a consumação ( o ainda-
não) se realizam na mesma pessoa com suas duas parusias: na carne e na glória.
Biblicamente entende-se que a parusia de Jesus Cristo só pode ser descrita através de imagens. As
visões neotestamentárias referem-se ao Antigo Testamento, principalmente na transposição cristológica
do “Dia de Javé”; revelando uma continuidade do conceito de parusia do Novo Testamento com a
esperança escatológica do Antigo Testamento. Os evangelhos sinóticos falam da vinda do Filho do
Homem evocando o capítulo 7 do livro de Daniel. No texto aparece a imagem do juízo e ressalta-se a
vinda majestosa em poder e glória com anjos e nuvens. O mesmo cenário pode ser lido em 1 Tes 4.
3
Quando no Antigo Testamento aparece o termo em Jt 10,18 e 2 Mc 8,12; 15,21, há um significado puramente profano,
totalmente desvinculado do sentido religioso. No entanto, o conceito de parusia está associado ao “ Dia de Javé”, que será
aplicado a Jesus Cristo. Seu correspondente é o “ Dia de Deus” do Antigo Testamento ( Cf. Am 5,18; Sl 96,13;98,9).
4
Há, no entanto, uma exceção: em 2 Ts 2,9 a expressão parusia não significa o advento de Cristo, mas a “vinda do ímpio”
que é instrumento para a ação de Satanás.
5
Éschaton designa o futuro final da história e do cosmos, é o fim último e a meta de toda criação mo tempo e no espaço. Dele,
deriva a palavra éschata que são os acontecimentos finais, tais como a ressurreição dos mortos e o juízo final. Mais, eschatói
é quem se espera no final de tudo: o Deus que vem.
6
Cf. K. RAHNER, Parusia, in Sacramentum Mundi, V, 237.
2.1 Jesus e o anúncio da parusia
A questão que passamos a análise agora, refere-se à consciência e pregação de Jesus sobre a sua
parusia. As atitudes de Jesus nos Evangelhos em relação aos doentes, pecadores, excluídos e pobres
revelam sua preocupação em devolver a dignidade humana e anunciar uma Boa Nova de salvação a
todos, especialmente aos mais sofridos. Esses são sinais característicos de seu messianismo, exercido
nos traços do Servo Sofredor que assume as dores de seu povo. Ele anuncia a chegada do Reino de Deus
sobre a terra. Algumas vezes identifica a sua própria pessoa como a presença do Reino na terra. A vida e
atividade do Nazareno é marcada pelo anúncio da vinda do Filho do Homem que fará irromper,
definitivamente, o Reino de Deus. Quando Jesus ensina seus discípulos a rezar ao Pai, orienta-os a
suplicar pelo advento do Reino ( Lc 11,2; Mt 6,10).
O problema é saber se Jesus previa um tempo intermediário entre a sua morte e a sua parusia, ou se
esperava uma iminente manifestação do seu senhorio. Textos como “ Em verdade, eu vos digo que não
acabareis de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem” (Mt 10, 23) e “ Eu
garanto a vocês: alguns dos que estão aqui, não morrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com
poder”( Mc 9,1) indicam a idéia de que Jesus pensava numa certa proximidade da parusia, até não mais
tarde que os limites de sua geração. Apesar da polêmica nos estudos dos textos, tanto na redação, quanto
no sentido, resta-nos ver qual a importância que Jesus deu a essa posição sobre a proximidade do seu
advento em poder e glória. E o que dizer sobre a protelação da parusia? Jesus teria se enganado? – como
chegaram a sustentar alguns teólogos nos passado.
Se tomamos outros textos como Lc 17,20 “Os fariseus perguntaram a Jesus sobre o momento em
que chegaria o Reino de Deus. Jesus respondeu: “ O Reino de Deus não vem ostensivamente” e Mc
13,32 “Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos no céu, nem o Filho. Somente
o Pai é quem sabe”, constata-se que Jesus não preocupou-se com a determinação do “quando” da
parusia. Ele fala do fim acentuando o caráter imprevisível de seu advento, sem revelações apocalípticas e
nem previsões de acontecimentos que permitissem um cálculo. Ele não aceita que se projete o fim ou se
marque uma data. No texto lucano, Jesus contra a opinião dos fariseus, assegura que a vinda do Reino
não está sujeita à observação. Em Marcos, Jesus mesmo confessa ignorar o dia da parusia, pois trata-se
de um conhecimento exclusivo do Pai.
O Nazareno previu, entretanto, um tempo intermediário entre a sua morte e a parusia. As parábolas
do crescimento do Reino dão a entender este ínterim. A própria vida de Jesus é como uma semente que
movimenta um processo: com perseverança e paciência se desfrutará a sua plenitude. A formação de um
discipulado, as instruções sobre a relação com o mundo e sobretudo a entrega de uma tarefa missionária
entre os seus seguidores, supõem que Jesus tinha certeza de que o fim não viria com a sua morte, caso
contrário nada disso teria sentido. Na mesma direção estão os insistentes convites à vigilância. Estas,
confirmam a tese de que há uma indeterminação absoluta sobre o momento da parusia. Nelas se especula
sobre a dupla possibilidade de uma chegada repentina ( a parábola do servo infiel) ou tardia ( na
parábola das dez virgens). Quando Jesus emprega o “ não sabeis nem o dia e nem a hora” em sua
pregação, entende-se a total imprevisão do “quando” do final dos tempos. E insistindo na vigilância e
perseverança, percebe-se um Jesus mais preocupado com a qualificação do tempo em que se vive, do que
a quantificação dos dias que faltam para o fim.
Com acentos diferenciados, percebe-se que na pregação de Jesus há uma continuidade na expectativa
da comunidade: a parusia virá e está próxima, mas não se sabe quando isto acontecerá. Espera-se que ela
venha o mais breve possível. Há uma irrelevância teológica quando à data, mas há a necessidade de uma
perseverante vigilância. Não pode-se descartar, também o tempo intermediário entre a ressurreição de
Jesus e a sua parusia. Sem ele, não haveria lugar para o mandato missionário, a ética exigente e a
expectação7. O fato deste tempo se dilatar e protelar a consumação além da ciência humana de Jesus, não
7
A comunidade de Qunram é um exemplo de entusiasmo na esperança da parusia e renúncia às posses. É uma comunidade
onde pobres, famintos e sofredores são considerados beatos, porque no contexto apocalíptico, eles em breve rirão. Tende-se a
esquecer as preocupações terrenas, porque confia-se incondicionalmente na aproximação previdente de Deus. Vive-se no
estreito seguimento do decálogo, não admitindo o divórcio, pede-se o amor ao inimigo e renuncia-se à lei de Talião. “ A
comunidade Q é uma comunidade retirada em si mesma, na espera de Deus com a aproximação do Jesus celeste”. E.
altera a esperança de que estamos cada dia mais perto do fim. Em Cristo inaugurou-se os tempos finais e
não haverá maior manifestação de Deus do que o seu Verbo encarnado.
14
Cf. A. CHOURAQUI, O Evangelho segundo Mateus – Comentário a Mt 24,14, São Paulo, 1996.
15
SANTO AGOSTINHO, Epistula 197.
16
Cf. A. LANCELLOTTI, Comentário ao Evangelho de Mateus, Petrópolis, 1980, 205.
17
Cf. EN 15.
até diante da crise de esperança da sociedade moderna que “estes” são sinais antecipadores do apocalipse
final.
A teologia compreende os sinais com muita cautela e faz uma análise crítica de acordo com os
princípios hermenêuticos das afirmações escatológicas. É preciso diferenciar entre o que se afirma e a
imagem que se evoca18. Pode-se dizer que os sinais são importantes para todas as épocas, em todos os
tempos eles apontam para a permanente vizinhança do Reino de Deus. Eles sinalizam para a
humanidade que todo tempo é último; por isto inquietam, evitam a inércia e suscitam o trabalho pelo
Reino. Contra a mentalidade de quem vê a catástrofe iminente, a Igreja faz uma leitura mais prudente,
pois nenhum dos sinais consegue prever, com certeza, o tempo final. São indicações que apelam os
cristãos para viverem vigilantes e esperançosos no Salvador que virá.
Os sinais, de certa forma, sempre estiveram presentes em cada geração cristã, alertando e convidando
ao seguimento de Cristo. Terremotos, guerras, fome, e muitos outros indicadores, muitas vezes
alarmaram pessoas que liam nos fatos uma futura catástrofe advinda da ira de Deus. Nada disso é mais
fantasioso e pouco eficaz para a esperança cristã na parusia.
18
Cf. K. RAHNER, Sacramentum Mundi, 247.
19
Cf. K. RAHNER, Parusia in Sacramentum Mundo, V, 243.
20
Cf. Didaqué 7,6.
21
Cf. Hermas v. III,5; s.IX 14,2.
22
Cf. S. INACIO DE ANTIOQUIA, Fld. 9,2.
23
Cf. S. JUSTINO, Dial. 14,8; 31,1; 49,2.7.8;53,1;54,1; 1 Apol 35,8, 52,3.
24
Cf. S. IRINEU DE LION, Adv. Haer. IV, 22,1-2;33,11.
25
1 Clem. 23,3.
26
2 Clem. 11,5.
27
Ibid. 12,1.
A fé na parusia aparece notavelmente purificada dos elementos secundários nos escritos de Santo
Agostinho. Na Epístola 199, intitulada De fine saeculi28, ele trata das questões relativas à data e
interpretações dos sinais parusíacos. Sobre estes, Agostinho destaca a sua obscuridade e condena a
perigosa tentativa de definir algo sobre eles. E especificamente sobre a data, escreve: “ não me atrevo a
calcular o tempo. Nem creio que algum profeta tenha fixado sobre o assunto do número de anos. Mais
bem há de prevalecer o que o próprio Senhor disse”29. Justamente por isso, sustenta: “quem disse que o
Senhor virá logo, fala segundo uma opção na qual pode enganar-se perigosamente”30.
35
Cf. O . CULLMANN, Christologie du Nouveau Testament, Neuchâtel, 1966, 181ss.
36
DS. 801.
37
DS. 852.
38
Cf. RUIZ DE LA PEÑA, La pascua de la creación, 140.
O milenarismo cristão professa a fé no retorno de Cristo para completar seu plano salvífico. A
plenitude do seu reino é esperada na história, no mundo. No milênio a paz será estabelecida e o mal
exterminado , marca a morte do infiel e a destruição da impiedade. Não se acredita que a parusia seja o
fim da história. A doutrina da Igreja diz que a parusia termina a história e dá início ao novo céu e nova
terra definitivos. O milenarismo, no entanto, diz que Cristo volta e dá início a um outro período histórico:
o reino milenar. No reino se cumprirão todas as promessas do Antigo Testamento: a justiça total, a paz
universal, a perfeição moral e física; após, haverá um tempo de conclusão do milênio e então virá a
ressurreição e o juízo universal.
Os milenaristas têm uma esperança muito concreta e real. Acreditam na transformação do mundo, nas
dimensões cósmicas, históricas e sociais. Têm uma visão pessimista do mundo atual e esperam a
iminência do reino milenar: “Cristo em breve voltará!”, apregoam. Todos os que acreditam numa utopia
sobre a terra são identificados como ramificações do milenarismo. Atua entre os milenaristas o influxo
do judaísmo, especialmente a crença judaica sobre o futuro reino messiânico compreendido como
domínio político e material. Confirma este dado o fato da esperança milenar ter desenvolver-se
principalmente em ambientes asiáticos, onde o cristianismo ficou mais exposto ao condicionamento
judaico.
No início da era cristã, algumas vezes interpretou-se Ap 2,1-10 partindo de concepções judaicas.
Os profetas do Antigo testamento propuseram a vinda do Messias como o início de um tempo de grande
prosperidade para Israel ( Cf. Is 9,1-6; Ez 40,1-18; Dn 7,1-28). Os autores de livros apócrifos
valorizaram tais vaticínios e descreveram o reinado do messias como um período de abundância e de
felicidade material neste mundo. Diziam que as pessoas viveriam um número de anos maior do que a
cifra dos dias de outrora. E enquanto os judeus identificavam esse bem-estar terrestre com a bem-
aventurança definitiva do ser humano, outros o interpretavam como início de um reinado messiânico.
Já no tempo da Igreja pré-constantiniana prevalecia uma atitude cristã favorável à esperança no
milenarismo. É o que nos relata Barnabé, Justino e Irineu de Lion39.
Eusébio de Cesaréia dá informações sobre a mudança que ocorreu na interpretação sobre o reino da
glória depois da virada constantiniana40. A mudança de paradigma sobre a interpretação da história passa
de um sofrer com Cristo no tempo presente ( como anteriormente ocorria durante as perseguições e
martírio), para um reinar com Ele. Inicia-se, portanto, o reino milenário. Quando o Império romano da
Besta Apocalíptica se transformou no Império Cristão e o cristianismo deixou de ser religião perseguida,
para tornar-se a religião dominante, teve origem o chamado milenarismo presêntico. O Sacro Império é
considerado a encarnação do reino milenário descrito no capítulo 20 do livro do Apocalipse e na
monarquia divina universal de Daniel 2 e 7. A teologia da igreja torna-se a teologia imperial, pois o
Império Cristão é considerado a representação do senhorio de Deus na terra 41. Trono e altar, salvação e
domínio fundam-se em unidade. Com a virada constantiniana a cristandade perseguida torna-se religião
lícita e dominante, que no império romano assumirá a forma bizantina e no oriente se desenvolverá como
cesarismo e no ocidente como Sacro Império: um ideal teopolítico considerado válido até o final dos
tempos.
O reino de Constantino inicia com a cruz. Não a do Calvário, mas com aquela do seu sonho: “ In hoc
signes vinces”. Na certeza de que “com este sinal” venceria, Constantino avançou sobre Massêncio em
312 e vitorioso, inicia um processo de maior acolhida do cristianismo em seu império, até assumi-lo por
39
Cf. BARNABÉ,Ep. De Barnabé XV, 3-8; JUSTINO, Diálogo com Trifão, 80; S. IRINEU,Adv. Haer., V, 30,4,33,2.
40
Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA, Hist. Eccl. 10,4.
41
A primeira teologia do reino, destinada a influenciar por longo tempo, foi aquela elaborada por Eusébio de Cesaréia, que
justamente por isso foi considerado o “teólogo da corte” de Constantino, o Grande. Para Eusébio, os protótipos de Constantino
e da Igreja, Augusto e Cristo, são providenciais e estão ligados entre si, no quadro da história da salvação pelo
recenseamento: o Salvador nasce quando “ um decreto de César Augusto ordenou que se fizesse o recenseamento de toda
terra” ( Lc 2,1). Quando o Senhor apareceu sobre a terra, no mesmo momento em que Augusto, o primeiro entre os romanos,
tornou-se senhor das nações, terminaram também muitas soberanias e a paz se estendeu sobre a terra. Constantino é visto
como aquele que deve levar a salvação do reino messiânico a todos os povos. Cf. H. BERKHOF, Die Theologie des Euseb
Caesarea, Amsterdã, 1939.
completo. Para a teologia constantiniana do Reino, Cristo já reina no céu sob as vestes do Pantocrátor,
como muitas vezes se representa nas cúpulas de basílicas bizantinas. A Igreja, então, não clama mais
“venha o teu Reino e passe este mundo” como no tempo dos mártires, mas professa o “pro mora finis”,
implorando que o fim seja deferido.
O que Constantino iniciara, chega ao seu auge com Justiniano, quando Estado e Igreja se fundem
numa espécie de unidade quiliástica. Dos dois carismas: o eclesial e o imperial, retira-se a idéia dos dois
poderes: o espiritual e o temporal. O Sacro Império é concebido como a meta última do plano que Deus
projetou para os povos e portanto é o cumprimento da história universal.
A mesma monarquia religiosa e política era concebida como uma imitatio Dei e permeada pelo
esplendor da glória sobrenatural. O imperador que professava a fé era também a origem de todo poder
sobre a terra e única fonte de direito, pelo qual governava com uma autoridade que não conhecia limites.
Este absolutismo autocrático conotou o sistema e a história política de Bizâncio e depois da queda de
Constantinopla, em 1453, continuou até 1917 com Moscou na autocracia do césar da Rússia. O
milenarismo político do império bizantino conhece seu fim quando Roma é tomada pelos germânicos e
conquistada pelos visigodos.
Enquanto a Igreja se aliava cada vez mais ao Império, nascia o monaquismo. Quanto mais se
desenvolvia uma cristandade secular, mundana, no sentido mais restrito do termo, tanto maior consenso
encontravam as comunidades monásticas. Era a reação contra a identificação e redução do Reino de
Cristo aos reinos do mundo.
Se a cristandade do mundo via a realização do Reino de Cristo no Império Cristão, a cristandade das
ordens religiosas fazia valer a reserva apocalíptica contra as potências deste mundo. O Império, por sua
vez, compreende que sua missão é anunciar o Evangelho de Cristo até os confins da terra ( Cf. At 1,8) .
Com essa motivação, a missão do Evangelho torna-se a tarefa geopolítica do Império. Quer-se
evangelizar e subjugar os povos ao reino de paz que Cristo inaugurará nos últimos tempos. Ilustra bem
esta concepção, a conquista e evangelização da América. Sob a guia de Portugal e Espanha, não se
evangelizava para suscitar a fé, mas para propagar o Reino de Cristo, onde a submissão produzia a
salvação e a resistência conduzia à morte. A escolha que se impunha não era entre fé e incredulidade,
mas entre ser batizado ou morrer.
É possível captar o caráter milenarista do império cristão também na motivação messiânica das
cruzadas medievais. A reconquista da cidade santa de Jerusalém objetivava dominar a capital do reino
milenário e o lugar do retorno de Cristo. Segundo o mito messiânico, o último imperador cristão será o
imperador do tempo final, ele vencerá o Anticristo e se transferirá para a cidade santa onde depositará
sobre o Gólgota a sua coroa, aos pés de Cristo, que ali retornará.
Na medida em que a igreja se concebia como reino milenário de Cristo, não pôde-se mais admitir
que algo se colocasse entre o seu presente e o seu futuro na eternidade celeste . Ela está convicta de que
chegará até o fim do mundo sem que as portas do inferno prevaleçam sobre ela. O limite dessa
identificação do reino com a igreja é de reduzir a grandeza do evento da parusia para a história e o
cosmos numa simples transposição: da igreja terrestre para o reino celeste.
4.2 O Reino sobre a terra: a interpretação milenarista
No cristianismo antigo chegara-se a criar um esquema para interpretar o reino messiânico. A sua
duração era calculada em função dos sete dias em que se julgava ter sido criado o mundo: a história
anterior ao messias se estenderia por 6000 anos; o sétimo milênio seria o período do reino messiânico, no
qual os justos gozariam de repouso e bem-estar paralelos ao repouso de Deus após a obra da criação.
Terminados os sete milênios, dar-se-ia finalmente a entrada de cada criatura no seu estado definitivo.
Vejamos o esquema criado pelos milenaristas cristãos da antigüidade, baseados em Apocalipse 20:
1. A segunda vinda Cristo em glória e poder;
2. A primeira ressurreição, apenas para os justos;
3. O juízo universal;
4. O reino messiânico de mil anos
5. A segunda ressurreição, ou geral, de todos os homens e mulheres;
6. O juízo final;
7. O prêmio ou a sanção definitiva.
Analisando esse esquema, percebe-se que a primeira ressurreição é concedida unicamente aos
justos. Ressuscitados, estes se assentarão com Cristo para participar do julgamento que se realizará. O
juízo é denominado de universal porque serão julgados os povos como coletividades. Em seguida,
inaugura-se o reino dos mil anos. Satanás, estando impedido de exercer sua ação nociva, não poderá
interferir nem no céu e nem na terra. Os justos ressuscitados, reinarão com Cristo na cidade de Jerusalém,
renovada e gloriosa. No mundo viverão aqueles que ainda não ressuscitaram, com melhores condições
de vida do que nos tempos anteriores à segunda vinda de Cristo. Terminado este período, Satanás fará a
derradeira perseguição contra o Reino de Cristo, e será prostrado para sempre. Acontecerá então a
segunda ressurreição dos mortos, daqueles que não participaram da primeira, e ocorrerá o juízo final,
juízo de cada indivíduo particular. Juízo em que Cristo não terá assessores e examinará tanto pecadores,
quanto justos. O julgamento final é também chamado juízo dos mortos, enquanto o anterior, o universal,
é dito juízo dos vivos42. Neste esquema originou-se o quiliasmo ( do grego chílioi = mil) ou
milenarismo. E ainda hoje é possível encontrar grupos religiosos fundamentalistas que pregam esse
tempo milenar sobre a terra, sendo versões modernas de interpretações quiliásticas antigas.
Nos primeiros séculos do cristianismo, o milenarismo espiritual era professado por vários Padres e
escritores da Igreja: São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, Latâncio e São Metódio de Olimpo. Ilustra
este pensamento a descrição do reino terrestre dada por Pápias na Adversus Haereses de Santo Irineu:
“Virão dias em que as videiras crescerão, tendo cada qual dez mil cachos; em cada cacho,
haverá dez mil bagos; e cada bago espremido dará vinte e cinco medidas de vinho. E, quando
alguns dos santos colher um cacho, outro clamará: sou cacho de melhor qualidade; tomai a mim,
por mim bendiz ao Senhor. Da mesma forma o grão de trigo.43”
Santo Agostinho também sofreu a influência do reino milenário, principalmente nos primeiros
escritos, mas depois propôs novo modo de interpretar Ap 20, excluindo o reino milenário44.
O milenarismo foi atacado com vigor no Oriente pela escola de Alexandria, por Clemente e
sobretudo por Orígenes. No ocidente a posição de São Jerônimo e de Santo Agostinho fazem com que o
sistema caia em descrédito na tradição cristã. A esperança milenarista não desapareceu completamente e
renasceu das cinzas na baixa Idade Média com Joaquim di Fiore, tendo suas influências até nossos dias.
O Magistério da Igreja, sem condenar formalmente o milenarismo, lhe é desfavorável. Em 1944 a
Santa Sé foi questionada sobre a idéia do milenarismo espiritual e a hipótese de que Cristo virá antes do
42
É com esta distinção que os milenaristas interpretam a fórmula de 2 Tm 4,1; At 10,42 e 1Pd 4,5 e do Símbolo de fé: “Cristo
há de vir a julgar os vivos e os mortos”.
43
Adv. Haer. 5,33.
44
Cf. S. AGOSTINHO, De civitate Dei 20, 7-9.
juízo final para reinar visivelmente neste mundo. A resposta se fez nos seguintes termos: “ O sistema
dito ‘ milenarismo mitigado’ não pode ser ensinado sem perigo para a fé”45.
45
“ Systema millennarismi mitigati tuto doceri non potest” AAS. 36 ( 1944) 212, DS. 3839.
46
Como nos atesta Hipólito de Roma no início do século III: “ Um bispo na Síria persuadiu muitos irmãos a irem para o
deserto ao encontro de Cristo, com suas esposas e seus filhos; estes vaguearam pelas montanhas e ao longo das estradas;
pouco faltou para que o governo os mandasse prender como salteadores. (...) No Ponto, outro bispo, homem piedoso e
humilde, mas demasiado confiante em suas visões, teve três sonhos e pôs-se a profetizar: Acontecerá isto e aquilo. E por fim:
‘Sabeis irmãos, que o juízo se realizará dentro de um ano, e, caso não aconteça o que vos digo, não deis mais fé às Escrituras,
mas procedeis como bem quiserdes’. Ora, nada do previsto se verificou; o bispo se viu confuso, os irmãos se escandalizaram,
as virgens se casaram e os que haviam vendido seus campos foram obrigados a mendigar” In Danielem 3,18s.
47
Cf. S. IRINEU , Adv. Haer. 5,23,2.
48
Cf. HIPÓLITO DE ROMA , In Danielem 4,23.
49
Cf. S. AMBRÓSIO , In Com. Lc 7,7.
50
Cf. S. HILÁRIO , In Com. Mt 17,2.
51
Cf. S. JERÔNIMO , Ep. 71,11 ( comentário a 2 Ts 2,50) ; S. JOÃO CRISÓSTOMO, in Com. Mt 20,6; in Jo 34,2; S. LEÃO
MAGNO, Serm. 19,1.
52
Cf. S. GREGÓRIO MAGNO, Moralia ad Job I. XVII cap. IX n. 11. PL LXXVI.
53
Joaquim di Fiore é sobretudo um exegeta. Afirmou ter recebido uma iluminação que lhe permitiu compreender de maneira
nova as Escrituras. Ele rompe com o sistema agostiniano ao afirmar que a história não espera o fim do mundo, mas espera a
sua transformação. Ele marcará o pensamento de seu tempo e se cristalizará em outros grandes pensadores. São Boaventura,
no século XIII tem posição joaquinista, embora não aceitará a superação de Cristo pelo Espírito, como pensava di Fiore. No
Renascimento ( séc. XV e XVI) os missionários franciscanos no México, inspirados em Joaquim di Fiore, compreendem sua
missão como a evangelização dos últimos povos da terra. Um estudo amplo sobre a importância deste monge calabrês no
pensamento cristão encontra-se em H. DE LUBAC, La posterità spirituale di Gioacchino da Fiore, Milão, 1980.
São Tomás de Aquino informa que alguns doutores medievais julgavam que os astros cessariam
de se mover no fim dos tempos, para ocupar exatamente a mesma posição que tinham no início do
mundo, de tal forma que nenhuma trajetória astral ficaria incompleta. Atribuía-se, então, a duração de
36.000 anos da história toda. O que determinaria ainda mais 30.000 anos antes do fim do mundo. Para o
doutor angélico um futuro tão extenso parecia pouco provável 54. Atestava, porém, que não existe um
tempo diferente e nem previa uma plenitude intra-histórica.
O século XV foi marcado por expectativas do fim do mundo. O desejo da nova era, lançado por
Joaquim di Fiore e seus seguidores, crescia diante das desordens religiosas e políticas dos séculos XIV e
XV: transferências dos papas para Avinhão, o grande Cisma do Ocidente cristão, novas teorias relativas
ao governo da Igreja e do Estado.
No período da Reforma Protestante os grandes reformadores não mostravam muito entusiasmo
pelo milenarismo. Lutero acreditava no próximo advento de Cristo, mas rejeitava o quiliasmo.
Desgostavam-no profundamente os cálculos que alguns familiares e amigos faziam sobre a data da
parusia. Da mesma forma agiu Calvino, para quem os milenaristas eram acusados de retalhar o reinado
de Cristo e reduzi-lo a mil anos. A Confissão Helvética de 1566, condena o “ sonho dos judeus ”, ou
seja , que antes do juízo final haveria uma idade de ouro e durante mil anos os que temem a Deus
ocupariam todos os reinos da terra. Excluía-se, assim, sob o plano teológico, a possibilidade da esperança
cristã implicar num futuro para os hebreus enquanto tais.
A Idade Moderna também conheceu previsões e profecias sobre o fim. O Iluminismo francês
apesar de ser laicista e anticlericalista, converge para o espírito de Joaquim di Fiore, com a lei dos três
estados formulada por Augusto Comte e Saint Simon, pela qual o positivismo representa o terceiro reino
do Espírito e o estágio completo da evolução humana.
O humanista pico de Mirandola, morto em 1494 previa a volta de Cristo para o ano de 1994,
partindo de pressupostos da mística neoplatônica e cabalística. O exegeta católico do século XVII,
Cornélio Lapide, predizia a proximidade do fim do mundo apelando para um oráculo comum entre os
turcos: a religião de Maomé haveria de durar dois mil anos.
Um milenarista destacado foi o jesuíta chileno Manuel Lacunza ( 1731-1801), para quem a
Teologia, a Sagrada Escritura e a Astronomia eram ocupações favoritas. Ao morrer, deixou uma obra
inacabada intitulada: “ A vinda do Messias em glória e majestade” 55 , que em 1824 foi incluída no Index
(índice dos livros proibidos), tendo sido condenada possivelmente pelo capítulo que dedicava ao reino
dos mil anos de Cristo na terra56.
Grupos religiosos sobrevivem até hoje baseados no anúncio iminente do fim. É o caso dos
Adventistas do Sétimo Dia, fundados por Guilherme Miller, morto em 1849, que após ter aderido ao
racionalismo de sua época, se converte à corrente dos batistas. Miller partia do princípio de que todas as
profecias bíblicas referentes ao Messias se devem cumprir literalmente. Na segunda vinda de Cristo, em
glória, ele estabelecerá seu reino milenário, que será a realização verbal da era messiânica profetizada
pelo Antigo Testamento. Terminado o milênio, virá o juízo final. E partindo de Daniel 8,14, que propõe
um enigma de duas mil e trezentas tardes e manhãs, Miller considerou as tardes e as manhãs como anos
e julgava que Cristo viria instaurar o milênio no ano 2300 a partir da data do oráculo, isto é, 457 a.C., o
que projetaria a parusia de cristo para o ano de 1843, precisamente entre março de 1843 e março de 1844.
Em 1833, uma chuva de asteróides favoreceu a interpretação de Miller e foi entendida como prenúncio
do fim. Com a passagem do ano de 1843 houve a grande decepção para os seus 50.000 adeptos. Miller
protelou para outubro de 1844 a data derradeira e nada aconteceu. Os adventistas até hoje conservam a
crença no próximo regresso de Cristo e alguns dizem que o prazo previsto por Daniel de fato terminou
em 1844, mas Cristo ainda estaria a purificar o santuário, conforme o oráculo, e logo após viria para
completar esta obra.
54
Cf. TOMÁS DE AQUINO, S. Th. Supl. III, 91, a . 2 ad8.
55
Cf. M. LACUNZA. La Venida del Mesías en Gloria y Majestad, Londres, 1816, 4 tomos.
56
Esta é opinião sustentada pelo estudioso de Lacunza: F.O. PARRA, El reino que há de venir: Historia y Esperanza en la
obra de Manuel Lacunza, in Pensamiento Teologico in Chile, Santiago, 1993.
Influenciados pelos adventistas, nasce as Testemunhas de Jeová, fundados por Charles Russell,
morto em 1916. Adepto também de cálculos para detrminar a data do fim, Russell afirmava que a sua
geração não passaria sem ter visto o Reino de Deus, e profetizou o ano de 1874 para a parusia de Cristo.
Em 1914 seria inaugurado o ano milenário, ao qual, no ano de 2914 se seguiriam os céus novos e a terra
nova. Nesta estrada muitos trilham até hoje, sejam os adeptos, quanto os dissidentes, todos buscam
prever a aproximação do fim do mundo e o início do novo reino.
Outro grupo com tendências milenaristas são os Mórmos, a Igreja dos Santos dos Últimos Dias,
como a própria denominação já indica. Fundada por J. Smith, este esperava ver o final dos tempos antes
de morrer.
No meio católico não são raras as notícias sobre revelações particulares com aparições de Jesus e
da Virgem Maria referindo-se ao final dos tempos. A revelação do terceiro segredo de Fátima em maio
de 2000 causou decepção em muitas pessoas, convictas de que a Virgem teria revelado algum segredo
sobre o destino final do mundo. Muitas profecias aparecem prevendo um fim catastrófico e fazendo uma
leitura da realidade em chave apocalíptica, interpretando-a como prenúncios do fim. Promovendo
mensagens de conversão e de penitência, tais profecias tendem a transmitir a idéia de que o tempo final
está muito próximo e que é preciso se preparar para o caos. Embora a Santa Sé tenha advertido sobre a
relatividade do conteúdo das revelações particulares, prossegue o fenômeno com bom número de adpetos
entre os católicos.
57
A Teologia da Libertação, acusada de milenarista, considera que na América Latina a tendência ao quiliasmo é uma das
latências mais revolucionárias e libertadoras do povo. No Brasil, o fenômeno de Antônio Conselheiro no Nordeste é um
indicador do desejo de um novo reino, refutando a república que se instalava. A própria Teologia da Libertação admite, no
entanto, que trata-se de uma realidade profundamente ambígua porque muitas formas de esperança se confundem com o mito.
Sobre este tema escreve Hugo ASSMANN, Teología desde la práxis de la liberación, Salamanca, 1976, 88ss.
58
Há até quem sustente que o “reino dos mil anos” constitui o fundamento da ética cristã, um estímulo concreto para
desenvolver a solidariedade e a responsabilidade neste mundo, uma fonte de inspiração para o compromisso atual. O milênio,
como cumprimento da história dentro da própria história, inspira uma ação possível e esperançosa. É o que afirma C.
BRUSTSCH, La Clarté de L`Apocalypse, Paris, 1966, 334-335.
presente, acreditam num futuro alternativo. Na concretização dessa ânsia, desfilam utopias que vêm e
que vão. Permanece, no entanto, a esperança.
Num balanço final, pode-se perceber que sem o milenarismo a escatologia se dilui numa nostalgia
transcendente e se reduz na esperança no além, abstrata. Por outro lado, quando o momento presente é
identificado de forma quiliástica como o Reino de Cristo, então só resta esperar o fim do mundo. O
quiliasmo tem seu lugar na escatologia cristã somente enquanto o reino milenário de Cristo é objeto de
esperança concreta, que se estende sobre a sociedade e a história. O reinado milenar de Cristo não pode
ser entendido como um reino de mil anos partindo de interpretações fantasiosas e fundamentalistas do
capítulo 20 do Apocalipse. O quiliasmo entra na escatologia para reclamar uma dimensão mais histórica
e corpórea, mais material e concreta do que supõe a categoria Reino de Deus. Sem acolher o
milenarismo, é preciso insistir que o Reino de Deus deve ser construído com a participação da
humanidade na história, apesar de ser dom total. Neste sentido, pode-se verificar os tempos históricos e
criticar o quanto cada época aproxima-se ou afasta-se do reino de liberdade, vida e justiça; sinais que
prefiguram e antecipam o Reino definitivo.
59
Cf. J. MOLTMANN, Deus na Criação, 106-107.
Na parusia de Jesus Cristo deverá emergir, portanto, o elemento específico da escatologia cristã: a
ressurreição dos mortos. Ela está indicada no Credo Apostólico com a expressão “ressurreição da
carne”60, que compreende a vida eterna sem prescindir da vida corporal. O Credo Niceno-
constantinopolitano refere-se a esta dimensão nos termos: “ espero a ressurreição dos mortos e a vida do
mundo que virá”61.
A ressurreição da carne é a recuperação da corporalidade dos mortos. Com ela o cristianismo
professou a necessidade de não abstrair a esperança de uma vida futura que perdesse a identidade de cada
pessoa. As interpretações modernas que tendem ao reducionismo espiritual e abdicam o aspecto concreto
da ressurreição não respondem à expectativa da comunidade cristã primitiva 62. Para teólogos como J.
Moltmann, não é possível conceber a esperança eterna apenas para a alma na imortalidade do céu. Essa
interpretação provoca a inimizade entre corpo e alma que sugere a submissão do corpo ao domínio da
alma e a repressão de seus impulsos e necessidades. Há quem pense de encontrar Deus onde o corpo
termina, por isso consideram-no um inimigo a ser silenciado e flagelado para o bem da alma. “E ficamos
cruéis, violentos, permitimos a exploração e a guerra. Pois se Deus se encontra para além do corpo, então
tudo pode ser feito ao corpo”63. O anseio por libertação do corpo faz o ser humano, que pensa somente na
alma, desejar a morte, e desenvolver o instinto tanático contra toda carne na própria vida, na vida dos
outros e na natureza. Se o corpo é o registro histórico da existência, que marca, define e determina a
vida, ele também há de ser glorificado na parusia.
Somente a ressurreição da carne desenvolve o aspecto natural do conceito pessoal de ressurreição dos
mortos. Essa fundamenta-se no ressuscitamento escatológico, por meio do qual deus cria novas todas as
coisas, levando-as à consumação. Ora, aqueles que Deus ressuscita no final dos tempos têm que erguer-
se por si mesmos. À força de cima, corresponde a força de baixo. Os mortos permanecem identificáveis
para Deus, ainda que se decomponham. A história individual não pode ser anulada e dissolvida no além
da morte. Ela não pode destruir o relacionamento do Criador com a criatura.
O Novo Testamento vincula a ressurreição dos mortos à singularidade da páscoa de Jesus. Como a
ressurreição do Cristo morto foi realizada por Deus mediante o Espírito da vida, assim também a
ressurreição dos mortos é esperada como um evento físico que diz respeito ao ser humano integral, isto é,
como vida infusa aos “corpos mortais” ( Rm 8,11). A ressurreição dos mortos é descrita como um
processo pessoal. A destruição da morte, no entanto, ilustra a dimensão cósmica ( Cf. 1 Cor 15,26 e Ap
21,4). Ambos os aspectos estão intimamente ligados. A ressurreição dos mortos requer uma nova terra,
onde a morte não terá mais vez.
Os termos mais freqüentes no Novo Testamento para exprimir o significado do ressuscitamento ou a
ressurreição dos mortos são: transformatio ( 1 Cor 15,52) e transfiguratio (Fil 3,21). Expressam que na
ressurreição o ser humano encontra sua salvação, reconciliação e realização final. Ressuscitar para a vida
eterna significa que para Deus nada se perde: nem a dor e nem os instantes de felicidade. O homem
encontrará em Deus não somente o momento último, mas toda sua história reconciliada. O que na vida é
experimentado como graça, será consumado totalmente na glória. Em Cristo e na força do seu Espírito já
inicia uma vida nova no meio da existência assinalada pela morte. Experimenta-se, antecipadamente, o
que somente a parusia revelará totalmente.
“A diferença entre uma alma separada e um anjo - diferença que Tomás insiste em conservar -
praticamente desaparece na consciência de um católico médio. A alma leva da terra somente os méritos e
os deméritos segundo os quais será julgada para prêmio ou condenação eternos. É esse esquema dualista,
espiritualista e simplificado, que de fato era vivido pelo católico médio e não a Teologia elaborada com
matizes e distinções de Santo Tomás”70.
As primeiras reações contra esta posição da imortalidade da alma remetem à Karl Barth, para
quem o homem morre todo e não tem em si, em sua natureza, o germe da imortalidade. Ele coloca em
contraposição à imortalidade da alma, a ressurreição do homem por obra de Deus. Ele quer ressaltar a
transcendência e não a autonomia natural do ser humano. Outro combate veio dos estudos da exegese,
afirmando que a tese da imortalidade da alma está subtraída do seu fundamento bíblico. É uma idéia
estranha ao pensamento semita e bíblico. Oscar Culmann recuperará a idéia da “dormitio” para referir-se
ao sono dos mortos à espera da ressurreição. A posição tradicional da alma imortal, separada do corpo à
espera da ressurreição dos mortos no final dos tempos seráa rejeitada como não bíblica e de origem
helênica. Na verdade, a Bíblia conhece diferentes formas de concepção da vida além da morte, desde o
sheol sem nenhuma esperança de vida até a forma mais elaborada da ressurreição dos mortos no Novo
Testamento.
A fé católica, entretanto, afirma a continuidade e a subsistência, depois da morte, do elemento
espiritual, dotado de consciência e vontade, de tal modo que o “eu humano” subsiste no ínterim entre a
68
Cf. S. Th . I q. 89 a . 1 e a . 2 ad 1m; I q. 90 a . 4c; I q. 118 a . 3c.
69
Cf. S. Th . I q. 89 a . 4c.
70
J.B. LIBÂNIO e M.C. BINGEMER, Op. cit., 184.
morte e a ressurreição final. E para designar tal elemento espiritual usa a palavra “alma”. É o que ensina
o “Credo do Povo de Deus” de Paulo VI:
“Cremos que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo, que se devam ainda
purificar no Purgatório, quer sejam recebidas por Jesus no Paraíso, no mesmo instante em que deixam os
seus corpos, como sucedeu com o Bom Ladrão, formam o Povo de Deus, para além da morte, que será
definitivamente vencida no dia da Ressurreição, em que estas almas se reunirão aos seus corpos”71.
O teólogo J. Ratzinger retém o esquema da alma separada e ressurreição dos corpos no final dos
tempos, mas apresenta alguns aspectos inovadores. Ele entende, com o auxílio da categoria “tempo da
memória”, extraída de Santo Agostinho, a relação da alma separada com a história. O “tempo da
memória” reúne de modo original o presente, o passado e o futuro. Carrega a marca da relação com o
mundo corporal e supera-a . Ao morrer, o homem desliga-se do tempo físico e retém o tempo da
memória que não é a eternidade e nem o tempo físico. Este tempo permite entender o que de definitivo
se fez na vida, o que depende de uma purificação e o que já pode estar numa nova relação com a
matéria através da ressurreição da carne. Porque o homem continua depois da morte temporal, mantendo
relação com a história humana da qual saiu pela morte. Ela constituiu seu tempo humano, que
permanece após a morte na forma de “tempo da memória”72.
Há quem defenda, por outro lado, que o corpo entra na glória ressuscitado logo após a morte.
Este esquema resolve melhor a relação entre matéria e espírito segundo os postulados das ciências físicas
e humanas. Responde melhor às linhas antropológicas atuais, mas pode ainda ficar preso a um horizonte
individualista e sem perspectiva parusíaca. Descarta-se o caráter de comunhão na esperança entre céu e
terra que aguardam o Senhor da parusia para plenificar o Reino “assim na terra como no céu”. Tal
percepção possibilita o individualismo, enquanto cada um é a história que construiu e que seguirá à sua
ação, mas marcada por ela. Os mártires do Apocalipse que clamam por justiça ao Cordeiro não têm mais
razão de esperar o juízo final segundo esta concepção, pois já foram glorificados plenamente e
individualmente. A causa comum que fê-los padecer coletivamente se dilui na glorificação individual.
Cada um que morre já vive, no instante de sua morte, a parusia do Cristo que vem no último dia de cada
história individual.
O Catecismo da Igreja Católica refere-se a este argumento nos parágrafos 997 a 1001 quando diz que
os mortos ressuscitam definitivamente no último dia, no fim do mundo. Eles esperam a glorificação
do corpo que se realizará na parusia do Cristo. E também como todo o gênero humano, o mundo todo
que está intimamente ligado com a humanidade e por ela chega ao seu fim, será restaurado em Cristo.
Integra-se a visão do ser humano como um todo, corpo e alma, matéria e espírito , possibilitando uma
nova aproximação com a modernidade para a qual o dualismo que supervaloriza o espírito e atrofia o
corpo não é mais capaz de responder às inquietações humanas. O esquema tradicional da alma que
espera a ressurreição dos mortos no dia da ressurreição encontra-se com a esperança na parusia e
forma uma unidade diante do futuro de Cristo. A corporalidade da ressurreição só terá lugar na nova
criação que será inaugurada no evento parusíaco.
71
PAULO VI, O Credo do Povo de Deus, Doc. Pont. 177, Petrópolis, 1969, 13.
72
J RATZINGER, Escatología, Salamanca,1992 .170-172.
Por um lado será a confirmação, para além da morte, da identidade de cada ser humano, de sua história
vivida entre angústias e esperanças; de pessoa encarnada. Neste sentido haverá uma profunda
continuidade entre o ser ressuscitado e seu “eu presente”, com todas as dimensões da vida terrena: as
formas precárias e as escolhas fundamentais de sua vida. Nada se perde, tudo é retomado na identidade
de cada pessoa diante do evento final. Por outro lado, este “eu encarnado” será totalizado na ressurreição,
não somente pela sua reintegração essencial, para a qual recuperará a sua corporalidade, mas também em
razão de que se manifeste o significado das instâncias humanas da vida corporal.
O ser corporal humano atual é limitado biologicamente ( pelo corpo mortal) e moralmente ( pelo
corpo do pecado). É por isso que vive-se uma existência humana exposta às múltiplas formas de
alienação. Com a parusia, o corpo da ressurreição realizará uma forma de vida escatológica na qual a
corporalidade expressará a realização de uma presença de comunhão com o mundo e com os outros seres
humanos. A pessoa verá realizada plenamente em si, a sua identidade de “imagem de Deus”. Essa
dimensão escatológica comporta uma certa transcendência da corporalidade como realidade
simplesmente biológica, pois comportará uma nova identidade e uma finalidade superior, que tenderá à
imortalidade. O desejo de ser imortal é diverso do distinto de sobrevivência que temos agora em nosso
ser. Ratzinger explica que “este é comum a todos os organismos vivos e estão no lado de cá da morte,
refere-se à vida temporal da qual os seres participam. É uma tendência de conservação e reprodução da
vida biológica vegetal e animal. A tendência à imortalidade é própria do ser humano que tem sede de
plenitude de vida para além da morte e comporta em si um desejo antropológico implícito de
ressurreição”73.
O advento de Cristo realizará plenamente o que confessamos como “ressurreição da carne” no
Credo Apostólico74. Entretanto, a ressurreição dos mortos não pode ser pensada sem o evento pascal de
Cristo. O fundamento e a manutenção da esperança na ressurreição parusíaca é a ressurreição do
Crucificado. O Ressuscitado estende os efeitos de sua ressurreição, levando-a à plenitude quando
envolve toda criatura humana e a criação na parusia. É Cristo que transfigurará o nosso mísero corpo
mortal para conformá-lo num corpo glorioso, diz Paulo ( Fl 3,21). O processo de transfiguração não é
compreendido como mero ato físico, mas está na ordem da nova criação, por isso se expressa em uma
nova vida dada pelo Ressuscitado na força de seu Espírito.
73
J. RATZINGER, Escatología. Curso de Teología Dogmática, t. IX, Barcelona, 1992, 144s.
74
A ressurreição da carne é vista como símbolo da integralidade humana, que permite uma crítica contra toda redução
espiritualista e o resgate da valorização da corporalidade humana. Em vistas da integração corpo e alma que deverão
ressuscitar, o ser humano deve ser visto como o sujeito de uma promessa ativa: a ressurreição dos mortos. Por isso não é
admissível o dualismo corpo e espírito, quando se sabe que todo ser humano está destinado à comunhão na Trindade. Sobre o
tema, Cf. D. WIEDERKEHR, Prospettive dell`escatologia, Brescia, 1978.
as pessoas sem criarem alegre expectativa. A esperança no Reino sem fim do Credo Niceno foi relevada
a segundo plano ou esquecida completamente.
A imagem de Cristo juiz do mundo não estimulou a esperança na parusia, pelo contrário. Na
medida em que se associou a parusia ao juízo final, obscureceu-se o sentido do julgamento que reside
unicamente na vitória da justiça de Deus que há de tornar-se a base da nova criação. Daí a necessidade
de exorcizar o pânico e o medo do julgamento, para que renasça o desejo de uma feliz realização da
obra de Cristo. O motivo dessa esperança é o próprio Jesus Cristo que a si mesmo se entregou pelos
pecadores e sofreu as dores e as enfermidades humanas. Ele é esperado como juiz. O Crucificado julgará
mediante o Evangelho da justiça de Deus e não segundo uma lei estranha. O amor de Deus que Jesus
proclamou e personificou é incondicional. Ele atinge sua forma mais perfeita no amor ao inimigo. Seria
impossível pensar que o Cristo na parusia agirá em contradição com o Jesus dos Evangelhos. Caso
contrário, desmentiria tudo o que fez e falou o Nazareno e apareceria como outro juiz universal,
desconhecido dos cristãos, que têm um Mestre manso e humilde de coração.
A expectativa pelo juízo derradeiro deve estar integrada na expectativa de Cristo e não
inversamente. O que se tem visto com freqüência é a projeção de angústias reprimidas, para satisfazer
desejos masoquistas de autoflagelo. Jesus julgará segundo o critério de sua Boa Nova. Sua justiça
salvífica renovará o mundo. Somente depois que a expectativa apocalíptica do juízo estiver inteiramente
cristianizada ela perderá seus medos e se tornará uma esperança libertadora voltada para o futuro. O
juízo deve ser esperado e rezado a partir de seu caráter provisório, porque é premissa para a vinda do
Reino eterno. Somente assim o pavor do juízo não paralisará por mais tempo a expectativa da parusia.
O julgamento de Deus no juízo final não será a última palavra de Cristo. Seu pronunciamento
final será: “Eis que eu renovo todas as coisas”. O juízo final, por isso, é passageiro. Definitiva é a nova
criação, que será inaugurada com o julgamento. Por isso toda esperança no juízo deve suscitar alegria da
libertação, porque a justiça triunfará. Aplica-se aqui a expressão popular diante de tantas situações
injustas: “ A justiça de Deus tarda, mas não falha”.
75
DS 411: “Si quis dicit aut sentit, ad tempus esse daemonun et impiorum supplicium, ejusque finem aliquando futurum, sive
restitutionem et reitegrationem fore daemonun aut impiorum hominum, anathema sit.” [ Se alguém afirmar ou crer que o
suplício dos demônios e dos malvados é temporâneo e que haverá um dia um fim, ou que haverá uma salvação e reintegração
dos demônios e dos malvados, seja anátema.] O Quinto Concílio ecumênico Constantinopolitano, de 553 ratificou este edito
do Imperador Justiniano.
E justamente por isso os tormentos do inferno não serão eternos, mas limitados, como é o éon temporal.
Afirma-se que se é verdade que Deus será tudo em todos, não poderá existir mais nenhum inferno.
A expressão apokatastasis pántòn está em Atos 3,21 e indica a restauração de todas as coisas.
Entende-se aqui a realização das promessas divinas e não uma reconciliação universal. O que não
acontece em Efésios 1,10, quando a recapitulação de tudo em Cristo e a reconciliação de todas as coisas
em Cristo Col 1,20 indicam claramente uma reconciliação universal. A imagem do Pantocrátor expressa
que Cristo governa sobre tudo para entregar o Reino ao Pai, para que Deus seja tudo em todos.
Favorável à tese da reconciliação geral está a experiência da graça que é maior do que o pecado: “
Lá onde abundou o pecado, superabundou a graça” ( Rm 5,20). Em Deus, o amor rende a ira. Nesta
percepção o juízo não pode apresentar um duplo êxito, antes, serve de afirmação universal da justiça
divina, quando todas as coisas serão recriadas. Nela a salvação se manifesta através de uma confiança
ilimitada em Deus. Para quem defende esta tese, o duplo êxito do juízo é rejeitada porque deposita uma
confiança exagerada nas decisões humanas.
Contra a doutrina da reconciliação universal está o fato de que o Deus que restaura e cria direitos,
pretende também salvar os homens através da fé. A humanidade não é arrastada, mas persuadida a entrar
pela porta da salvação. Em Cristo a Trindade se humilha até o ponto de confiar a própria glorificação nas
mãos da humanidade. Deus respeita a liberdade e a decisão humana, sua fé e sua incredulidade, para
depois dar o último juízo, o que cabe a cada um.
Sobre o duplo êxito do juízo testemunham principalmente os textos do evangelho de Mateus:
quando fala-se de fé e de incredulidade. Distinguindo o caminho da vida e o da perdição ( Mt 7,13). Há
também o capítulo 25 ( 31-46) que refere-se ao juízo final que descreve o Filho do Homem proferindo:
“Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Aos da sua
direita, porém, dirá: “Vinde benditos do meu Pai, recebei a recompensa na herança do Reino preparado
para vós desde a fundação do mundo”. A decisão se faz pelo bem praticado em favor dos empobrecidos,
oprimidos e sofredores. Marcos também menciona o inferno e do fogo eterno ( Mc 9, 45.48). Lucas
refere-se ao rico Epulão que é precipitado no inferno e nos tormentos, enquanto o pobre Lázaro é
acolhido no seio de Abraão (Lc 16,23). João identifica a fé com a vida eterna e a incredulidade com a
perdição ( Jo 3,36). Paulo também reconhece a perdição em Fil 3,19; 1 Cor1,18; 2 Cor 2,15.
O restabelecimento de todas as coisas evoca o problema dos diabos e a descida de Cristo aos
infernos. A doutrina cristã tem por pressuposto que na sua paixão e morte Jesus experimentou o
verdadeiro e total inferno dos seus sofrimentos em vistas da reconciliação do mundo e para a danação do
pecado. Baseando-se na descida de Cristo ao inferno, há quem afirme que o Redentor já salvou a todos,
nada será perdido e tudo será restaurado e acolhido no Reino de Deus. Para Lutero, por exemplo, Cristo,
no abandono da cruz, suportou no nosso lugar, por nós e em nosso favor, todos os tormentos do inferno,
da rejeição de Deus e da morte eterna76. Sofrendo no seu próprio corpo a nossa maldição, através de suas
feridas conhecemos a eleição pela graça. O reformador fala de um Cristo que desce aos infernos antes da
morte física sobre a Cruz. Calvino segue na mesma direção 77. Refere-se ao abandono que o Cristo sofre
entre o Getsêmani e o Gólgota como um sofrimento pela eternidade. A oração que não é atendida no
Monte das Oliveiras é vista como preparação às penas do inferno. É o que testemunham o suor e o
sangue que banham a terra. Jesus teria experimentado a dor da geena. O inferno, segundo Lutero, não é
um lugar especial, nem mesmo um mundo subterrâneo, mas uma experiência existencial 78, a experiência
da cólera e da maldição de Deus que se abatem sobre o pecado e sobre a impiedade.
A descida de Cristo aos infernos indica que também no inferno Deus se faz presente ( Cf. Sl
139,8); que Jesus sofreu a experiência de inferno; por isso o inferno e a morte estão superados em Deus.
Nesta linha de pensamento, teólogos como Moltmann identificam a destruição da morte com a destruição
do inferno. Afirma-se que Cristo deixou-se perder para colocar-se à procura dos que estão perdidos afim
76
Cf. M. LUTERO, Tischereden I, 1017.
77
Cf. CALVINO, Inst. II, 16,10.
78
Teólogos evangélicos recentes seguem Lutero e Calvino quando interpretam que o inferno não é um lugar particular,
separado, mas uma experiência existencial. É o caso de K. Barth, P. Althaus, W. Pannenberg e J. Moltmann.
de reconduzi-los à casa do Pai. E quando ele foi libertado do inferno, abriu as portas e derrubou os seus
muros. Declara-se, então, que pela ressurreição de Cristo não existe mais a perdição por toda
eternidade79.
Seguindo a teoria da reconciliação universal, estendida à destruição do inferno, o juízo final é tido
como a posição de Deus sobre a história. Todos os pecados, as maldades, injustiças e violências deste
mundo que mata e sofre, serão condenadas e destruídas porque o juízo de Deus executa o que promete.
No julgamento, todavia, todos os pecadores, os malvados, os violentos, os assassinos e os filhos de
satanás, o diabo e os anjos caídos seriam libertados, salvos de sua corrupção mortal e restituídos na
essência mais verdadeira dos seres que saem das mãos do Criador. Deus, assim, permaneceria fiel a si
mesmo e não consentiria que se perca nada do que fora criado.
2.2 Juízo particular: crise e síntese da Vida
O esquecimento da escatologia no pensamento cristão, conduziu o catolicismo a perceber o
julgamento apenas sob a forma individual, denominado pelos manuais de teologia como “julgamento
particular”. Na Idade Média, entretanto, já Tomás de Aquino questionava-se a respeito da legitimidade
da repetição do julgamento particular no final da história 80. Interpretava-se o julgamento último a partir
do juízo particular, como se fosse a norma.
A parusia significa a evidência universal do senhorio do Crucificado. O juízo final é diferente do
julgamento particular, após a morte. Este segundo verifica as ações de cada pessoa diante da proposta de
Jesus Cristo, e que pode ser resumido nas palavras do místico espanhol São João da Cruz: “No entardecer
da vida, seremos julgados pelo amor”81. O juízo final interessa-se pela história como um todo, uma vez
que revela a todos que a história humana, em sua positividade ou negatividade, é a história do Messias e
de Deus.
C. Duquoc atribui o esquecimento do significado teológico do juízo final, na recente tradição, devido
à importância que se revestiu o individualismo nos séculos precedentes, desde o Renascimento 82. O que
desembocou numa moral individualista, esquecida das dimensões sócio-políticas do ser humano. Ora, a
história não pode ser concebida como a justaposição de ações individuais, pois o processo histórico afeta
a todos os seres humanos e é determinado pela ação e situação de cada pessoa. Essa interligação de
responsabilidades e determinismos, que forma a rede de relações sociais, é também lugar da relação com
Deus. A parusia será o desvelamento da oculta identidade entre a relação com os homens e relação com
Deus, mediante o relacionamento com o seu Messias.
O julgamento consiste na revelação da legitimidade da esperança, implícita na prioridade do amor
ao próximo e à justiça, mais do que à própria existência terrena enclausurada no egoísmo. O julgamento
é atual, porque é na decisão histórica a favor da luz ou das trevas que se dá o veredicto. A parusia revela
a solidez da esperança, mas quem opta pelas trevas já está julgado. A parusia mostra também as
conseqüências mortais para quem opta pelas trevas e verifica a validade da opção feita na história.
Se a parusia traz o julgamento, então no “grande dia” ela faz aparecer a aberração do desprezo
pelo outro, pela justiça e pelo futuro. Ela não é mais apelo à fé , mas é salvação ou perdição 83. É a
parusia que desvela a identidade entre a causa histórica da justiça e do amor ao outro. A parábola do
juízo final em Mateus 25 é o lugar clássico no qual encontra-se afirmada a objetividade do juízo, nos
critérios de Jesus de Nazaré e sua prática de amor a Deus e aos irmãos. Supor que no final tudo será
zerado, sem respeitar a opção daqueles que negam o projeto de Deus, é esvaziar a justiça divina. Ainda
que ninguém seja condenado, resta a possibilidade de condenação como opção livre e consciente para
cada criatura humana.
84
Cf. L.C. SUSIN, Op. cit., 50.
85
Cf. Ibid., 51.
86
S. Th. Suppl., 88,4
12,36), as intenções do coração ( Mt 15,3-9) e especialmente o amor sem limites ( Mt 25,31-46). No
juízo tudo aparecerá no seu sentido último.
No presente as pessoas vivem de encontros e desencontros, estão abertas em busca do sentido da
existência, vivem o tempo do risco e do livre arbítrio para o bem e para o mal. Somente na morte se
realiza a grande síntese da vida, quando no encontro íntimo entre a criatura humana e o seu Criador se
faz a grande decisão, o juízo particular. E no juízo universal se realiza a manifestação universal do que
ocorreu no juízo particular. Este ato público revela o vínculo de cada pessoa com o todo. Há uma
comunhão e mística que nos une a todos e a tudo. Fazemos parte da globalidade da criação que somente
se manifestará como unidade total no Juízo Universal. O juízo particular na morte está em profunda
correlação com o Juízo Universal, pois cada ser humano, embora síntese do todo, é um momento de um
processo universal que o transcende. Ele é parte da história de toda a criação. Melhor que identificar dois
julgamentos, seria pensar num único juízo com momentos escatológicos diferenciados: o particular e o
universal; com critérios, porém, comuns: a participação de toda criação na glória de Deus.
A idéia do único juízo com dimensões particulares e universais, leva-nos a afirmar que aqueles
que estão em Cristo, os eleitos, mesmo que estejam pessoalmente felizes, ainda não estão plenificados
enquanto a terra não chegar ao seu acabamento. Os que vivem nos “céus”, por isso, estão em comunhão
com os que habitam na terra, através da solidariedade e da intercessão; até a parusia e a glória plena.
Para integrar a categoria “espaço” na reflexão sobre a parusia, é importante precisar a linguagem.
Isto se faz distinguindo espaço geométrico de espaço ecológico. A moderna separação cartesiana de um
sujeito espiritual sem corpo e um mundo de corpos estendidos no espaço geométrico é estranha à tradição
bíblica. A percepção cartesiana reduz as coisas, independente de serem pedra, animal ou planta, à
estruturas geométricas significadas pelos seus valores de uso. Na concepção ecológica, parte-se do
pressuposto de que espaço é ante de tudo “ambiente vital”. Esse será o conceito que utilizaremos nessa
reflexão.
89
Essa idéias remontam ao pensamento de Franz Rosenzweig: “ Entre o Deus de nossos pais e o resto de Israel, a mística faz
ponte com a doutrina da shekiná. O abaixar-se de Deus ao homem e o habitar de Deus no meio dos homens, vem figurada
como uma divisão que se realiza no próprio Deus. Deus se divide em si, se dá ao povo, padece seus sofrimentos e com isso
aceita a miséria dos países estrangeiros, e peregrina com Israel em suas peregrinações. (...) Deus mesmo – como seria muito
natural para o ‘Deus de nossos pais” – se vende a Israel e sofre a sua mesma sorte, para o qual se torna também carente de
redenção. A relação entre Deus e o resto, neste sofrimento, vai além de si mesmo”. F. ROSENSWEIG, Der Stern der
Erlösung III, 129s.
90
Cf. J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 335-336.
Da auto-humilhação divina fala-se também tratando das inabitações históricas do Espírito. Na
experiência do Espírito Santo, experimenta-se uma nova presença de Deus. Ele habita o ser humano.
Esta morada é compreendida como a shekiná de Deus. Antes do Espírito de Jesus ser efundido sobre a
terra, a presença de Deus vinha experimentada somente no templo, na liturgia e no dia do Senhor. Agora,
a própria humanidade, o corpo humano torna-se templo do Espírito Santo; a shekiná por excelência. Na
parusia, enfim, o novo céu e a nova terra tornar-se-ão templo e morada de Deus. O mundo inteiro será a
pátria de Deus. Pela inabitação do Espírito, o ser humano e a comunidade cristã são transfigurados no
corpo de Cristo.
97
Tese defendida pelo astrofísico agnóstico JAMES LOVELOCH, Gaya – a New Look at Life on Earth, Oxford, 1979.
98
Cf. J.T. BECK, Die Vollendung des Reiches Gottes. Separatabdruck aus der Christlichen Glaubenslehre, Gütersloh, 1887,
95ss.
99
Cf. J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 306.
100
Cf. J. MOLTMANN, Deus na Criação, 307.
da história, mas é a cristificação da natureza e da história. É o advento do Reino de Deus que
transformará este mundo, tornando possível a vida, incluso os mortos101.
Para a reflexão sobre a parusia, isso implica dizer que o Dia da vinda do Senhor é um “dia” e não
uma noite. Nesse simbolismo cósmico há um sinal de vida e de esperança, pois tudo não termina num
eclipse de Deus, num fim do mundo que acaba em nada, como tantas vezes proclamaram grupos
fanáticos apocalípticos. O dia da vinda será um dia sem noite, dia da luz eterna, dia da nova criação. “O
tempo criado na alternação entre dia e noite acabará para dar lugar apenas à aurora da eternidade”102.
O dia da parusia cairá no tempo, por isso será chamado de dia “dia derradeiro”. O que vai
determiná-lo será o que nele acontecer: a vinda do Senhor na glória. Com ela interrompe-se a
transitoriedade do tempo e determina-se o seu final. É muito mais do que um dia do calendário: é o dia
de todos os dias, porque iluminará todos os outros dias da história que passa: os vivos o verão como
“transformação” de tudo, e os mortos, como “ressuscitação”. Para que em tudo haja a “transfiguração” da
glória divina. Não pode ser considerado um dia na seqüência dos demais dias, mas um dia que encontra-
se transversalmente em todos os dias e em todos os tempos. Ele não acontece apenas em frente, mas
também de cima; não apenas no tempo, mas também em relação a ele103.
101
Cf. I. ELLACURÍA, Mysterium Liberationis I, 424.
102
Cf. J. MOLTMANN, O Caminho de Jesus Cristo,433.
103
Aqui entende-se a categoria tempo a partir das distinções feitas anteriormente entre chronos e kairós. O momento
escatológico tem dois aspectos: Deus restringe sua glória e a criação entra no reino. No fim do tempo, Deus recebe suas
criaturas no reino. Assim, o último momento passa a ser o momento escatológico. O dia derradeiro conduz para o eterno dia
da nova criação. Não se trata de uma eternidade essencial, mas de uma eternidade compartilhada que consiste na participação
da eternidade essencial de Deus.