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ESCATOLOGIA

a) A PARUSIA , fundamento da escatologia cristã.


1. O Conceito
O interesse pela parusia advém do fato de que a comunidade cristã primitiva esperou um
acontecimento que finalizará a história num duplo sentido: seja porque lhe conferirá uma finalidade, uma
meta; seja porque lhe imporá uma conclusão.
O vocábulo grego parousia ( de páreimi: estar presente, estar aí, chegar) é originalmente referido
tanto para a descida ou manifestação de pessoas divinas na terra ( por ocasião de uma festa religiosa ou
por uma intervenção milagrosa), quanto para as visitas que reis e príncipes fazem às cidades
submetidas ao seus impérios. O sentido principal do termo, conforme a cultura grega, é de visita,
chegada, advento de um soberano ou de uma divindade. E serve tanto para ser empregado como conceito
político1, quanto religioso. Esta identificação entre o profano e o sagrado deve-se ao fato de que em
ambiente helenístico as figuras reais são consideradas com acentos divinos. O que sempre se destaca
para a parousia é o seu caráter triunfal e glorioso. Trata-se de uma manifestação em poder e glória que
tem um acento explicitamente jubiloso e festivo.
No Novo Testamento, o conceito é utilizado para descrever a futura vinda de Cristo, Senhor de tudo
e de todos ( Pantocrátor) no final dos tempos. As descrições desse advento valem-se das imagens da
manifestação gloriosa do imperador romano. A Carta aos Gálatas apresentará a parusia de Cristo como a
manifestação do verdadeiro soberano que dominará as potestades e o mundo ( Cf. Gl 4,3). Espera-se a
libertação das escravidões e dos sofrimentos, do pecado e da guerra, mas principalmente, aguarda-se a
aniquilação da morte, o último inimigo a ser destruído. Com a visita do Senhor, espera-se a
transfiguração total do universo2.
1.1 Variações terminológicas
Habitualmente o vocábulo para designar a consumação da história é parusia. Sabe-se, porém, que
outras expressões neotestamentárias remetem ao mesmo evento. Há uma variedade de termos que
expressa a riqueza do conceito nos livros do Novo Testamento. É justamente essa diversidade que
possibilitará diferentes acentos teológicos sobre o acontecimento.
Um termo alternativo utilizado é epifania (epiphanéia = manifestação). Ele, substitui o vocábulo
parusia, ausente nas Cartas Pastorais. Epifania é uma palavra usada entre os gregos para referir-se às
manifestações das divindades pagãs ou para personagens reais que se apresentam como representantes
das divindades. Os imperadores também eram acolhidos como ephíphanes, juntamente com os títulos de
senhor, deus e salvador. A epifania do soberano pode se relacionar com data do seu aniversário, do
começo do mandato imperial ou da sua visita a uma das cidades.
Nas Cartas Pastorais o termo é relacionado tanto à primeira vinda de Cristo ( 2 Tm 1,10; Tt 2,11;
3,4), quanto à sua vinda final ( 1 Tm 6,14; 2 Tm 4,1.8; Tt 2,13). A bivalência do termo na Carta a Tito,

1
Na época imperial, a parusia do César podia inclusive dar lugar a uma nova era, comportando uma virada determinante da
história. O imperador era aclamado em sua parusia como senhor e portador da salvação. O povo aguardava com expectativa a
sua vinda, porque da mesma se esperava conseguir benefícios excepcionais.
2
Sobre o significado da Parusia ver: A . OEPKE, Parousia, in TWNT V, 857ss.; A . FEUILLET, Parousie, in SDB VI, 1331
ss.; L. CERFAUX, Jesucristo en San Pablo, Bilbao, 1960, 34s.;J.L. RUIZ DE LA PEÑA, La outra dimensión, Escatologia
cristiana, Madrid, 1975, 159ss; IDEM La Pascua de la creación, Madrid, 1996, 124ss.; S. ZEDDA, L´escatologia biblica II,
Brescia, 1975, 171s.; M. BORDONI, Gesù di Nazaret Signore e Cristo, v.2 e 3, Roma, 1982-1986; IDEM. Gesù nostra
speranza, Bologna, 1991.
possibilitará aos Santos Padres falarem de uma dupla vinda do Salvador. E a continuidade entre parusia e
epifania é percebida em 2 Tes 2,8, que menciona a “epifania” da sua parusia, isto é, a manifestação do
advento de Cristo em poder e glória.
Epifania pode ter como variantes o substantivo apocalipse ( revelação) e o verbo manifestar-se (
phaneroûn), na voz passiva ( Col 3,4, 1 Jo 2,8). O vocábulo apocalipse aparece em 1 Cor 1,7 como
objeto de esperança cristã. O verbo phaneroó aparece em Col 3,4 e indica a manifestação de Cristo que
implicará também na manifestação gloriosa dos cristãos ( 1 Jo 2,28).
Manifestação, revelação, visita e vinda são vocábulos que expressam a riqueza terminológica do
conceito parusia. A utilização, entretanto, caracteriza-se sempre pela acentuação alegre do evento
significado.

2. Fundamentação Bíblica
Não existe no Antigo Testamento um termo hebraico que possa equiparar-se ao que se denomina no
grego do Novo Testamento como “parousia”3 . O vocábulo é mencionado 24 vezes no Novo
Testamento, designando o mesmo sentido que os gregos davam à palavra. Refere-se ao advento glorioso
de Cristo no final dos tempos, citado nos sinóticos, no corpus paulino, no joanino e nas cartas pastorais 4.
Geralmente a expressão parusia está ligada à idéia de fim do mundo e ao juízo final. O texto da primeira
Carta aos Tessalonicenses ( 4,13-18), por exemplo, utiliza traços apocalípticos judaicos para descrever o
evento: a voz do arcanjo, o toque da trombeta, as nuvens, a ressurreição dos mortos. Conclui-se, então,
que os textos neotestamentários integram inseparavelmente a parusia e os outros elementos do
éschaton5: a vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos, o juízo final e a nova criação.
O advento de Cristo conclui e consuma a história enquanto evento salvífico. Trata-se de uma
chegada em poder e glória, que derrotará as potestades do inimigo e glorificará os que agora pertencem a
Cristo. Será uma manifestação gloriosa de Jesus, distinta da Encarnação, quando Ele se revelou na
humildade do presépio. É por isso que os documentos, em sua totalidade, nunca se referem a uma
segunda vinda, mas apenas como “vinda” . O Novo Testamento não entende a encarnação como uma
primeira parusia de Cristo. O termo é utilizado somente para a chegada do Filho do Homem no juízo
universal6. Há, contudo, elementos que justificam a aplicação tardia do termo também para a
encarnação. Isto ocorre quando compreende-se o aparecimento de Cristo como um “devir” de Deus que
faz de Jesus a “ parusia de Deus” (Cf. Mt 1,23). Encontra-se, ainda, uma outra utilização do vocábulo ao
identificar-se Jesus com as figuras veterotestamentárias do “ Filho do Homem” e do “ Servo de Javé”.
Entende-se, assim, que a obra da salvação deve ser realizada numa única pessoa que se manifesta em
seus adventos. No mesmo sentido está a idéia de que o cumprimento ( o já ) e a consumação ( o ainda-
não) se realizam na mesma pessoa com suas duas parusias: na carne e na glória.
Biblicamente entende-se que a parusia de Jesus Cristo só pode ser descrita através de imagens. As
visões neotestamentárias referem-se ao Antigo Testamento, principalmente na transposição cristológica
do “Dia de Javé”; revelando uma continuidade do conceito de parusia do Novo Testamento com a
esperança escatológica do Antigo Testamento. Os evangelhos sinóticos falam da vinda do Filho do
Homem evocando o capítulo 7 do livro de Daniel. No texto aparece a imagem do juízo e ressalta-se a
vinda majestosa em poder e glória com anjos e nuvens. O mesmo cenário pode ser lido em 1 Tes 4.

3
Quando no Antigo Testamento aparece o termo em Jt 10,18 e 2 Mc 8,12; 15,21, há um significado puramente profano,
totalmente desvinculado do sentido religioso. No entanto, o conceito de parusia está associado ao “ Dia de Javé”, que será
aplicado a Jesus Cristo. Seu correspondente é o “ Dia de Deus” do Antigo Testamento ( Cf. Am 5,18; Sl 96,13;98,9).
4
Há, no entanto, uma exceção: em 2 Ts 2,9 a expressão parusia não significa o advento de Cristo, mas a “vinda do ímpio”
que é instrumento para a ação de Satanás.
5
Éschaton designa o futuro final da história e do cosmos, é o fim último e a meta de toda criação mo tempo e no espaço. Dele,
deriva a palavra éschata que são os acontecimentos finais, tais como a ressurreição dos mortos e o juízo final. Mais, eschatói
é quem se espera no final de tudo: o Deus que vem.
6
Cf. K. RAHNER, Parusia, in Sacramentum Mundi, V, 237.
2.1 Jesus e o anúncio da parusia
A questão que passamos a análise agora, refere-se à consciência e pregação de Jesus sobre a sua
parusia. As atitudes de Jesus nos Evangelhos em relação aos doentes, pecadores, excluídos e pobres
revelam sua preocupação em devolver a dignidade humana e anunciar uma Boa Nova de salvação a
todos, especialmente aos mais sofridos. Esses são sinais característicos de seu messianismo, exercido
nos traços do Servo Sofredor que assume as dores de seu povo. Ele anuncia a chegada do Reino de Deus
sobre a terra. Algumas vezes identifica a sua própria pessoa como a presença do Reino na terra. A vida e
atividade do Nazareno é marcada pelo anúncio da vinda do Filho do Homem que fará irromper,
definitivamente, o Reino de Deus. Quando Jesus ensina seus discípulos a rezar ao Pai, orienta-os a
suplicar pelo advento do Reino ( Lc 11,2; Mt 6,10).
O problema é saber se Jesus previa um tempo intermediário entre a sua morte e a sua parusia, ou se
esperava uma iminente manifestação do seu senhorio. Textos como “ Em verdade, eu vos digo que não
acabareis de percorrer as cidades de Israel até que venha o Filho do Homem” (Mt 10, 23) e “ Eu
garanto a vocês: alguns dos que estão aqui, não morrerão sem ter visto o Reino de Deus chegar com
poder”( Mc 9,1) indicam a idéia de que Jesus pensava numa certa proximidade da parusia, até não mais
tarde que os limites de sua geração. Apesar da polêmica nos estudos dos textos, tanto na redação, quanto
no sentido, resta-nos ver qual a importância que Jesus deu a essa posição sobre a proximidade do seu
advento em poder e glória. E o que dizer sobre a protelação da parusia? Jesus teria se enganado? – como
chegaram a sustentar alguns teólogos nos passado.
Se tomamos outros textos como Lc 17,20 “Os fariseus perguntaram a Jesus sobre o momento em
que chegaria o Reino de Deus. Jesus respondeu: “ O Reino de Deus não vem ostensivamente” e Mc
13,32 “Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos no céu, nem o Filho. Somente
o Pai é quem sabe”, constata-se que Jesus não preocupou-se com a determinação do “quando” da
parusia. Ele fala do fim acentuando o caráter imprevisível de seu advento, sem revelações apocalípticas e
nem previsões de acontecimentos que permitissem um cálculo. Ele não aceita que se projete o fim ou se
marque uma data. No texto lucano, Jesus contra a opinião dos fariseus, assegura que a vinda do Reino
não está sujeita à observação. Em Marcos, Jesus mesmo confessa ignorar o dia da parusia, pois trata-se
de um conhecimento exclusivo do Pai.
O Nazareno previu, entretanto, um tempo intermediário entre a sua morte e a parusia. As parábolas
do crescimento do Reino dão a entender este ínterim. A própria vida de Jesus é como uma semente que
movimenta um processo: com perseverança e paciência se desfrutará a sua plenitude. A formação de um
discipulado, as instruções sobre a relação com o mundo e sobretudo a entrega de uma tarefa missionária
entre os seus seguidores, supõem que Jesus tinha certeza de que o fim não viria com a sua morte, caso
contrário nada disso teria sentido. Na mesma direção estão os insistentes convites à vigilância. Estas,
confirmam a tese de que há uma indeterminação absoluta sobre o momento da parusia. Nelas se especula
sobre a dupla possibilidade de uma chegada repentina ( a parábola do servo infiel) ou tardia ( na
parábola das dez virgens). Quando Jesus emprega o “ não sabeis nem o dia e nem a hora” em sua
pregação, entende-se a total imprevisão do “quando” do final dos tempos. E insistindo na vigilância e
perseverança, percebe-se um Jesus mais preocupado com a qualificação do tempo em que se vive, do que
a quantificação dos dias que faltam para o fim.
Com acentos diferenciados, percebe-se que na pregação de Jesus há uma continuidade na expectativa
da comunidade: a parusia virá e está próxima, mas não se sabe quando isto acontecerá. Espera-se que ela
venha o mais breve possível. Há uma irrelevância teológica quando à data, mas há a necessidade de uma
perseverante vigilância. Não pode-se descartar, também o tempo intermediário entre a ressurreição de
Jesus e a sua parusia. Sem ele, não haveria lugar para o mandato missionário, a ética exigente e a
expectação7. O fato deste tempo se dilatar e protelar a consumação além da ciência humana de Jesus, não
7
A comunidade de Qunram é um exemplo de entusiasmo na esperança da parusia e renúncia às posses. É uma comunidade
onde pobres, famintos e sofredores são considerados beatos, porque no contexto apocalíptico, eles em breve rirão. Tende-se a
esquecer as preocupações terrenas, porque confia-se incondicionalmente na aproximação previdente de Deus. Vive-se no
estreito seguimento do decálogo, não admitindo o divórcio, pede-se o amor ao inimigo e renuncia-se à lei de Talião. “ A
comunidade Q é uma comunidade retirada em si mesma, na espera de Deus com a aproximação do Jesus celeste”. E.
altera a esperança de que estamos cada dia mais perto do fim. Em Cristo inaugurou-se os tempos finais e
não haverá maior manifestação de Deus do que o seu Verbo encarnado.

2.2 A comunidade cristã primitiva e a espera de Cristo


Certamente o problema mais difícil da escatologia neotestamentária é saber quando virá o Senhor e o
porquê do retardamento8. É na tentativa de resolver esta questão que cai-se na tentação de considerar
como produção da comunidade cristã primitiva os textos mais incômodos 9. Nos estudos bíblicos não
existe um acordo na análise dos textos. É possível apenas uma consideração global sobre o problema,
partindo dos resultados exegéticos obtidos até agora.
O debate nasce da constatação de duas linhas de texto que, inicialmente, podem parecer
contraditórios: um grupo de textos menciona a proximidade da parusia, outro, ao contrário, proclama a
sua dilatação no tempo. Vimos no parágrafo acima que as parábolas da vigilância e alguns textos de
Paulo podem indicar uma aproximação do evento. Constatou-se, também, que a impossibilidade de datar
ou prever com segurança o evento, baseia-se em textos bíblicos.
Provavelmente os primeiros cristãos esperavam uma parusia próxima, dentro de sua geração. Textos
como 1 Tes 4,15-17 e 1 Cor 15, 51-52 são testemunhas a este respeito. Eles supõem que nem todos os
membros da comunidade morrerão antes da vinda de Jesus. Paulo está seguro de encontrar-se entre o
grupo dos privilegiados que não morrerão até a parusia. A morte dos cristãos antes do “Dia do Senhor”
causa um certo mal-estar, mas em Rm 13,11-12 lê-se que “apesar de tudo” aproxima-se o dia portador da
salvação.
O problema que se impõe é saber se a comunidade cristã primeira colocava sua esperança
escatológica exclusivamente no advento próximo do fim. Em caso afirmativo, a esperança cristã em
nada difere da esperança judaica. Os judeus também esperam a resolução iminente da história. E se
admitimos que a expectativa cristã reduzia-se à esperança na imediata ou próxima vinda de Cristo em
poder e glória, como explicar o fato da comunidade ter sobrevivido apesar de ruir sua persuasão
fundamental: a parusia próxima? O que é mais surpreendente ainda, é o fato de ter sobrevivido sem
renunciar a sua atitude característica de expectação.
Na Carta aos Romanos, Paulo já não aborda mais o tema sobre o fim dentro de sua geração:
possivelmente renunciara a esta idéia. Seguramente, entretanto, deixou-se de contar entre os que
viveriam até então ( Fl 1,21-23). Apesar disso, continua alimentando e pregando a esperança na parusia (
Fl 1,6-10; 2,16; 3,20-21). Aos poucos, os escritos mudam a terminologia e tendem a afirmar mais a
aproximação e vizinhança da parusia e sustentam que o Senhor está próximo. A modificação acentua
mais o aspecto teológico da vizinhança e aproximação de Cristo, do que o seu caráter cronológico. Não
se nega uma proximidade temporal, mas afirma-se cada vez mais o “já realizado em Cristo” como
garantia do penhor futuro.
Na Segunda Carta aos Tessalonicenses, Paulo admoesta aos que acentuavam suas opiniões sobre o
fim do mundo, impedindo que suponham a iminência do “Dia do Senhor” ( 2 Tes 2,2). Ele proíbe a
redução cronológica da vinda de Cristo. O que está em jogo, portanto, não é a data da parusia, mas a
preparação dos cristãos para o advento daquele dia que virá como um ladrão ( 1 Tes 5,2.4).
A Segunda Carta de Pedro, no terceiro capítulo aborda o tema do atraso da parusia. Dá uma palavra
sobre os que criticam os cristãos diante de uma esperança que vê protelada sempre mais a vinda do
Cristo. E a mensagem é articulada em duas fases: a) a relativização do tempo de espera, que não pode
ser computado segundo os módulos humanos comuns, pois diante do Senhor “um dia é como mil anos e
mil anos como um dia” ( v.8) – dessa forma não é possível admitir um retardamento do cumprimento da

SCHILLEBEECKX, Gesù, la storia di un vivente, Brescia, 1976, 498ss.


8
Cf. RUIZ DE LA PEÑA, La otra dimensión, Op. cit. 153.
9
Cf. R. SCHNACKENBURG, Reino y reinado de Dios, Madrid, 1967, 179.
promessa; b) “ o Dia do Senhor chegará como um ladrão” (v.10), acentuando o aspecto imprevisível da
parusia.
Entre os textos que falam de uma proximidade e outros que sustentam uma dilatação da parusia, é
possível interpretar uma incompatibilidade ou uma complementaridade. Na primeira posição, os
estudiosos concordam em classificar como elemento autêntico da pregação de Jesus, somente os textos
pertencentes à linha da proximidade da parusia, atribuindo aos outros, à criação da comunidade primitiva
para remediar a falta de realização da expectativa. Supõe-se um erro de Jesus sobre a data do evento e
acusam o retardamento da parusia à valorização de um tempo intermediário (especialmente em Lucas) e
à constituição do corpo ético e institucional do Novo Testamento 10. Seguindo a hipótese da
complementaridade, os estudiosos percebem que no querigma apostólico não menciona-se a
proximidade da parusia, que a comunidade sobrevive sem traumas aparentes ao retardamento e que a
proximidade é entendida num sentido teológico e não estritamente temporal.
Conclui-se, portanto, que o autêntico problema da proximidade da parusia não refere-se ao fato de
um suposto retardar do advento final de Cristo, mas depende da reta compreensão de tal vizinhança. O
que fez as primeiras comunidades cristãs superarem a frustração de uma expectativa imediata da parusia
foram as construções interpretativas sobre o evento esperado. O acento teológico permitiu manter a
esperança em Cristo, já presente em sua Igreja, e na sua parusia que se realizará nos tempos finais. Entre
a iminência e a protelação da parusia, os primeiros cristãos preferem esperar no Deus fiel que cumpre
suas promessas. Para além do cálculo temporal, do quando e do como, está a experiência do encontro
com o Ressuscitado como penhor seguro da esperança no futuro em Cristo. As crises são superadas na
passagem de uma esperança situada nos confins do tempo e do espaço para uma expectativa no Deus
fiel, que cumpre o que diz. O cronológico é superado pelo sentido teológico do evento.

2.3 Os sinais do advento de Cristo


O Novo Testamento apresenta alguns sinais indicativos que precederiam a chega do Filho do
Homem: a perda da fé ( Lc 18,8 e Tes 2,3b), o aparecimento do Anticristo 11 ( 2 Tes 2,1-4; 1 Jo 2, 18-22;
4,1-4; 2 Jo 7), a pregação do Evangelho a todas as nações ( Mt 24,14) e a conversão de Israel ( Rom
11,25 ss.).
Sobre a perda da fé atribui-se o texto de Lucas 18,8: “Mas o Filho do Homem, quando vier, será que
vai encontrar a fé sobre a terra?” . Partindo de uma interpretação literal e fundamentalista, encontra-se
aqui um dos indícios que precederiam o fim do mundo. Essa hermenêutica, entretanto, é fruto de um erro
de exegese, pois não é possível saber qual critério verifica quando a fé é intensa ou fraca a ponto de
chegar o final dos tempos. Uma justa análise do texto deve considerar que o versículo é parte final da
parábola de Jesus sobre o juiz iníquo e a viúva injustiçada ( Lc 18,1-8). No contexto, a frase exorta os
discípulos para perseverarem e viverem na fidelidade, para que suas orações seja atendidas. Não é
possível tomar o versículo como uma referência isolada ao fim do mundo.
Já a interpretação sobre o aparecimento do Anticristo considera diferentes elementos. Este é um
personagem que aparece em diferentes textos bíblicos. A imagem é usada por São Paulo ( 2 Tes 2,1-4) e
por São João ( 1 Jo 2,18-22; 4,2-4; 2 Jo 7-9). O parecer de ambos sobre o assunto é feito de modo
contraditório12. Para Paulo o Anticristo é um personagem individual e que há de vir. João, por sua vez,
identifica-o com uma coletividade já presente que se encarna na oposição ao Cristo 13. No Apocalipse,
porém, o Anticristo é descrito a partir das características do Império Romano ( Ap 13,1-10). E o
vocábulo “Anticristo” aparece somente nos escritos de João ( 1 Jo 2,18: “Vocês não ouviram dizer que o
Anticristo devia chegar?” ). Paulo usa mais a expressão “homem ímpio” ( 2 Tes 2,1-12 - “aparecerá o
homem ímpio, o filho da perdição: ele é o adversário que se opõe e se levanta contra todo ser que se
chama Deus” ). Tanto para Paulo, quanto para João, o fim do mundo seria marcado por uma apostasia
10
Cf. G. GOZZELINO, Nell´attesa della beata speranza, Torino, 105 ss.
11
De todos os sinais da parusia, o que mais mereceu atenção e estudos exegéticos foi o relativo ao Anticristo ( Cf.
FEUILLET, Op. cit. 1393 e R. SCHNACKEMBURG, Cartas de San Juan, Barcelona, 1980, 177-181).
12
Cf. ZEDDA, L´escatologia biblica, II, Brescia, 1975, 154 ss. e 397 ss.
13
João condena especialmente a seita gnóstica.
geral que poderia ser interpretada como uma perversão religiosa total da humanidade ou até mesmo um
resfriamento generalizado da fé. Ele seria um poder do mal representado por uma pessoa, ou por um
poder coletivo, representado pelas forças maléficas que se opõem ao Reino de Cristo e que estão atuando
na história e no cosmos. Pode-se considerá-lo como um poder que enfrenta o senhorio de Cristo, que
nega a sua divindade, causa a confusão e faz excluir a esperança na parusia de Jesus. É um poder que
está presente em todos os tempos da história, assinalando que a última hora já chegou. João identifica
este sinal como uma marca indelével para perceber quem rejeita Cristo: “ Pois vejam quantos
anticristos já vieram! Daí reconhecemos que a última hora já chegou” (1 Jo 2,18b).
Sobre a pregação do Evangelho de Cristo em todo mundo, também é preciso ponderar as variações da
exegese. Colhe-se este sinal em Mateus “E esta Boa Notícia sobre o reino será anunciada pelo mundo
inteiro, como um testemunho para todas as nações. Então chegará o fim” ( 24,14). Sobre a expressão
“mundo inteiro”, a exegese vê uma referência ao mundo habitado daquele tempo e especificamente o
Império Romano. E a palavra “fim” é uma alusão à destruição de Jerusalém. O texto, portanto,
expressaria que o Evangelho deveria atingir as partes mais importantes do Império, antes que Jerusalém
fosse destruída. Isso já estava acontecendo durante a pregação de Paulo ( 1 Tes 1,8; Rm 1, 5-8; 10,18; Cl
1,6.23)14.
Intérpretes mais antigos, entretanto, sustentaram que ao ser pregado o Evangelho no mundo inteiro,
estaria próximo o fim do mundo. Precisando a compreensão desse sinal, está a posição de Santo
Agostinho, comentando Mt 24,14: “ (...) mesmo que tivéssemos certeza de que o Evangelho tivesse sido
anunciado a todos os povos do mundo, mesmo assim não poderíamos dizer quanto tempo faltaria para o
fim do mundo”15. A exegese contemporânea entende o versículo 14 do capítulo 24 de Mateus como a
indicação do fim do judaísmo ou do reino da Judéia e a expansão da salvação para todos os povos 16. E a
expressão “ mundo inteiro” é vista num sentido hiperbólico.
De outra parte, embora seja difícil precisar o sentido da expressão “ todas as nações”, permanece
sempre válida a tarefa de evangelizar durante o tempo intermediário. Este indicaria o dever missionário
da Igreja no tempo entre a ressurreição de Cristo e a sua parusia. O mandato missionário também
permanece difícil de se objetivar e precisar, principalmente quando sente-se a necessidade de uma “
nova evangelização”, porque as culturas mudam e a própria Igreja deve ser permanentemente
evangelizada17.
Outro sinal referente à parusia é a conversão de Israel. Este está largamente desenvolvido no
capítulo 11 da Carta de Paulo aos Romanos: “Pois se o fato de eles serem rejeitados trouxe a
reconciliação do mundo, o efeito da reintegração deles será a ressurreição dos mortos” ( Rom 11,15).
Percebe-se, então, que Paulo não pensa numa Igreja sem os judeus. O apóstolo relaciona o seu povo com
a parusia dizendo que a rejeição de Jesus como Cristo possibilitou a extensão das promessas de salvação
para todos os povos, mas quando manifestar-se em sua glória, também os judeus verão o seu Messias
esperado e a consumação de todas as promessas no Senhor Jesus. Para Paulo, Deus não rejeitou Israel,
pois há um “resto” de Israel que aderiu ao Evangelho, garantindo a continuidade do projeto de Deus para
o seu povo. Os que rejeitaram Jesus e o Evangelho são vistos como duros de coração que deverão esperar
uma manifestação final do Cristo( Rom 11,12). Judeus e gentios, portanto, são herdeiros das promessas
que encontrarão fim e meta na parusia.

2.3.1 O conteúdo dos sinais


A interpretação dos sinais do futuro advento do Cristo deu margem à fantasia de muitos grupos
religiosos, inclusive católicos, que encontram por todos os lados indicações da iminência do fim do
mundo. Muitas pessoas comentam sobre as catástrofes naturais, epidemias, aparições de Nossa Senhora e

14
Cf. A. CHOURAQUI, O Evangelho segundo Mateus – Comentário a Mt 24,14, São Paulo, 1996.
15
SANTO AGOSTINHO, Epistula 197.
16
Cf. A. LANCELLOTTI, Comentário ao Evangelho de Mateus, Petrópolis, 1980, 205.
17
Cf. EN 15.
até diante da crise de esperança da sociedade moderna que “estes” são sinais antecipadores do apocalipse
final.
A teologia compreende os sinais com muita cautela e faz uma análise crítica de acordo com os
princípios hermenêuticos das afirmações escatológicas. É preciso diferenciar entre o que se afirma e a
imagem que se evoca18. Pode-se dizer que os sinais são importantes para todas as épocas, em todos os
tempos eles apontam para a permanente vizinhança do Reino de Deus. Eles sinalizam para a
humanidade que todo tempo é último; por isto inquietam, evitam a inércia e suscitam o trabalho pelo
Reino. Contra a mentalidade de quem vê a catástrofe iminente, a Igreja faz uma leitura mais prudente,
pois nenhum dos sinais consegue prever, com certeza, o tempo final. São indicações que apelam os
cristãos para viverem vigilantes e esperançosos no Salvador que virá.
Os sinais, de certa forma, sempre estiveram presentes em cada geração cristã, alertando e convidando
ao seguimento de Cristo. Terremotos, guerras, fome, e muitos outros indicadores, muitas vezes
alarmaram pessoas que liam nos fatos uma futura catástrofe advinda da ira de Deus. Nada disso é mais
fantasioso e pouco eficaz para a esperança cristã na parusia.

3. O tema na Igreja antiga


Os escritos do Novo Testamento referem-se ao final ainda não realizado expresso na superposição de
suas tradições principais: primeiro, através da ressurreição de Jesus já inaugurou-se um novo tempo, um
novo éon; e segundo, remete-se à fé na futura intervenção de Cristo que inaugurará de forma definitiva o
novo céu e a nova terra. Esta justaposição, e não mera dilatação da parusia, foi a tarefa imposta às
teologias do cristianismo primitivo 19. A fé na parusia foi registrada em todas as manifestações da igreja
antiga, na liturgia primitiva, no testemunho dos Santos Padres, nos Símbolos e doutrinas do Magistério.

3.1 O período patrístico


A Didaqué conserva o Maranathá cúltico e conclui com uma evocação da vinda do Senhor nas
nuvens do céu20. Para designar essa vinda, somente o Discurso a Diogneto e o Pastor de Hermas utilizam
o termo parusia no sentido técnico 21. Já Inácio de Antioquia, emprega-o para designar a encarnação 22.
Este é o sentido que também Justino outorga sem desconhecer, porém, a significação técnica de “vinda
gloriosa”. Para distinguir ambos os significados, Justino é o primeiro a usar as expressões “primeira e
segunda vinda de Cristo”. Utiliza também “ vinda sem glória e vinda na glória” 23. Distinção conhecida
também por Irineu de Lion24.
A esperança em um iminente final do mundo precisou ser conciliada na comunidade cristã primitiva
com a dura realidade de que a história continuava e o fim parecia tardar. Deste problema ocuparam-se os
Padres apostólicos e os primeiros apologetas cristãos.
A Carta de Clemente afronta o problema de reclamações diante de uma esperança que tardava e
parecia tender à frustração: “Estas coisas ouvimos já dos nossos pais, agora estamos nos tornando
velhos e nada disso aconteceu”.25 E uma resposta é encontrada na Segunda Carta de Clemente:
“Esperando, perseveramos para receber o prêmio.”. 26 Percebe-se que, lentamente há um
redimensionamento da expectativa; de uma espera próxima, para uma vigilância da hora incerta: “Dado
que não conhecemos o dia da aparição de Deus, esperamos de hora em hora o seu Reino”27.

18
Cf. K. RAHNER, Sacramentum Mundi, 247.
19
Cf. K. RAHNER, Parusia in Sacramentum Mundo, V, 243.
20
Cf. Didaqué 7,6.
21
Cf. Hermas v. III,5; s.IX 14,2.
22
Cf. S. INACIO DE ANTIOQUIA, Fld. 9,2.
23
Cf. S. JUSTINO, Dial. 14,8; 31,1; 49,2.7.8;53,1;54,1; 1 Apol 35,8, 52,3.
24
Cf. S. IRINEU DE LION, Adv. Haer. IV, 22,1-2;33,11.
25
1 Clem. 23,3.
26
2 Clem. 11,5.
27
Ibid. 12,1.
A fé na parusia aparece notavelmente purificada dos elementos secundários nos escritos de Santo
Agostinho. Na Epístola 199, intitulada De fine saeculi28, ele trata das questões relativas à data e
interpretações dos sinais parusíacos. Sobre estes, Agostinho destaca a sua obscuridade e condena a
perigosa tentativa de definir algo sobre eles. E especificamente sobre a data, escreve: “ não me atrevo a
calcular o tempo. Nem creio que algum profeta tenha fixado sobre o assunto do número de anos. Mais
bem há de prevalecer o que o próprio Senhor disse”29. Justamente por isso, sustenta: “quem disse que o
Senhor virá logo, fala segundo uma opção na qual pode enganar-se perigosamente”30.

3.2 Os símbolos cristãos


A Igreja assumiu a doutrina da parusia nos credos31. E o Concílio Lateranense IV a definiu em
32
1215 . A fé na vinda gloriosa foi registrada nos Símbolos desde as suas primeiras formulações com a
expressão: “há de vir a julgar”33. A expressão pode induzir a pensar que a parusia é considerada a partir
do juízo. Na realidade é uma justaposição vinda-juízo, a partir da qual se explica que o juízo será uma
manifestação de poder e não uma ação judicial. “Vir a julgar”, portanto, quer significar “ vir com poder”.
Somente mais tarde, quando perdeu-se a dimensão triunfal do conceito de juízo, foi necessário interpolar
entre ambos os verbos a expressão “com glória” – há de vir com glória para julgar.
O símbolo niceno-constantinopolitano associa a vinda de Cristo na glória, ao anúncio do juízo
escatológico colocado em suas mãos: “ E de novo virá na glória para julgar os vivos e os mortos” 34. A
expressão “ de novo” repreende a argumentação de Justino à Trifão, que permite repartir as profecias
relativas ao Cristo em suas vindas: a primeira, sofrida e kenótica e a segunda, definitiva e gloriosa. Na
segunda vinda se realizará o fim dos tempos, já inaugurado pela ressurreição. Por isso, a parusia é
mencionada no Credo seguindo a profissão de fé que proclama Jesus sentado à direita do Pai,
expressando, assim, que ele participa da glória do Pai, é juiz e Senhor e somente na parusia todos verão a
sua glória.
Outra expressão muito presente nos Credos, principalmente nos orientais, é: “ e o seu Reino não
haverá fim”. Sua motivação é polêmica. No quarto século surgiu uma heresia atribuída a Marcelo de
Ancira, o qual sustentava que na parusia o Verbo retornaria ao Pai, até confundir-se nele. O mistério
trinitário teria assim um valor econômico e histórico, mas não teológico e eterno. A idéia remonta a uma
interpretação indevida do texto paulino: “É preciso que ele reine até que não tenha colocado todos
os seus inimigos sob seus pés. (...) E quando tudo lhe for submetido, também ele, o Filho, será submetido
Àquele que submeteu todas as coisas, para que Deus seja tudo em todos” ( 1 Cor 15,25.28). A Igreja,
como revela a história dos dogmas, vê neste texto uma alusão ao último cumprimento da missão do
Filho. Não entende-se que o Filho não haverá mais razão para ser e existir depois da consumação de
tudo. A fé cristã professa que o Filho, glorificado em sua humanidade, continuará a exercitar eternamente
a sua função mediadora. É nele e por ele que os eleitos verão a Deus. O Reino que a parusia inaugurará,
portanto, não terá fim, pois será ao Reino do Filho, do Pai e do Espírito Santo.

3.3 Os aspectos litúrgicos


A celebração litúrgica era vista na Igreja Primitiva como a antecipação mítica do Reino de Deus.
Cada vez que ela acontece, antecipa-se uma realidade que será permanente somente na consumação dos
tempos. Na Eucaristia ressoa o Maranathá ( Vem, Senhor Jesus!). Neste clamor percebe-se um
paralelismo de situações: como o Senhor veio na celebração, atendendo à oração sacramental, espera-se a
sua vinda no final da história, respondendo à súplica da Igreja que espera a sua presença gloriosa e
28
PL 33, 904-925.
29
S. AGOSTINHO, Ep. 197, 1.2.
30
IDEM, Ep. 199, 54.
31
Cf. DS. 10-76.
32
Cf. DS. 801.
33
O símbolo batismal da igreja armena professa: “ Cremos (...) na vinda terrível e gloriosa” (DS. 6) e na fórmula de Hipólito
de Roma lê-se: “Crês em Cristo (...) que virá para julgar os vivos e os mortos?” (DS.10).
34
DS. 150.
pública35.No mesmo contexto cultual, encontra-se a fórmula Maran atha ( o Senhor vem!), que indica
mais uma profissão de fé do que propriamente uma oração. O emprego destas fórmulas expressa o valor
e o conteúdo da liturgia cristã primitiva sobre o advento de Cristo.

4. Neutralização e crise de expectativa.


Com o passar do tempo percebe-se que a esperança, a reflexão e a fé na parusia sofreu uma notável
transformação. Se as comunidades primitivas viviam galvanizadas pela esperança no advento de Cristo
em glória e poder, diferente é a percepção medieval. Da patrística à teologia medieval constata-se uma
certa neutralização da expectativa. Basta ver que desde a Idade Média, até o Concílio Vaticano II,
somente duas vezes é mencionado o termo “parusia” nos documentos do Magistério eclesiástico: no IV
Concílio de Latrão36 e na profissão de fé do Imperador Miguel Paleólogo 37. Ambas as referências são
empregadas de forma simples e rotineira.
Entre os fatores que influenciaram esse deslocamento de compreensão e a conseqüente
neutralização da parusia, destaca-se a dissociação entre futuro histórico e a esperança do Reino. No
tempo da igreja nascente, as perseguições e os martírios impeliam a esperança num tempo novo de paz e
justiça. Os cristãos clamavam a vinda de Cristo para finalizar o poder arrogante de então, que matava e
oprimia. Nesta tensão aguardava-se uma nova terra e um novo céu. Com a paz constantiniana, as
perseguições cessaram, o Reino é identificado com o Império Cristão e novos acentos sobre a parusia
emergem.
Na medida em que o tempo se prolongava e a história continuava, protelando a expectativa de uma
intervenção definitiva de Deus, duas posições se destacaram: por um lado, a esperança num reino
milenar na terra e, por outro, no período medieval, a busca do céu, da visão beatífica do encontro com
Deus, depois da morte. Ambas as interpretações favoreceram reflexões que até hoje influenciam a
expectativa na parusia: ora pontualizando-a no tempo cronológico ( o fim do mundo) , ora remetendo-a
para uma realidade totalmente transcendental ( o céu) sem implicações sobre a terra. No século III,
Orígenes afirma que o Reino de Deus estaria somente na alma do crente e não no mundo. Enfatiza uma
escatologia individual que esvazia a dimensão coletiva. O cristianismo da experiência bíblica entra em
contato com a filosofia grega da escatologia individualizada e nasce uma nova escatologia, sem aspectos
coletivos e mundanos.
Há uma nítida deslocação da esperança cristã na parusia, influenciada por condicionamentos do
passado que poluíram as fontes originais. A herança que recebemos desse processo faz com que acentue-
se mais o sujeito que espera a parusia, do que o objeto de sua esperança. O que está radicalizado não é a
índole transcendental do esperado, mas o ser humano que aguarda uma dimensão espiritual futura e
melhor, não raras vezes, desconectada com a dimensão corporal, terrena e material da existência humana.
Muitos esperam somente naquilo que sustenta o espírito. Destaca-se um dualismo que impossibilita uma
relação de diálogo entre história e esperança.
A espera próxima pela vinda de Cristo foi cedendo lugar para uma expectativa mais remota. Ao
longo do tempo, não soube-se transmitir à comunidade cristã, que a proximidade em questão é uma
situação de iminência, incomensurável nos padrões do tempo físico, mas perceptível na visão teológica
do “agora” da salvação e da proximidade permanente de Cristo38.

4.1 Do Maranathá ao Pro Mora Finis.


A esperança em um reino milenar que se realiza sobre a terra está registrada em diferentes culturas e
crenças. Os cristão esperavam o reino de paz que Cristo inauguraria, os romanos aguardavam a idade do
ouro e os nossos contemporâneos prenunciam um “fim” deste mundo, numa situação sem história e sem
conflitos.

35
Cf. O . CULLMANN, Christologie du Nouveau Testament, Neuchâtel, 1966, 181ss.
36
DS. 801.
37
DS. 852.
38
Cf. RUIZ DE LA PEÑA, La pascua de la creación, 140.
O milenarismo cristão professa a fé no retorno de Cristo para completar seu plano salvífico. A
plenitude do seu reino é esperada na história, no mundo. No milênio a paz será estabelecida e o mal
exterminado , marca a morte do infiel e a destruição da impiedade. Não se acredita que a parusia seja o
fim da história. A doutrina da Igreja diz que a parusia termina a história e dá início ao novo céu e nova
terra definitivos. O milenarismo, no entanto, diz que Cristo volta e dá início a um outro período histórico:
o reino milenar. No reino se cumprirão todas as promessas do Antigo Testamento: a justiça total, a paz
universal, a perfeição moral e física; após, haverá um tempo de conclusão do milênio e então virá a
ressurreição e o juízo universal.
Os milenaristas têm uma esperança muito concreta e real. Acreditam na transformação do mundo, nas
dimensões cósmicas, históricas e sociais. Têm uma visão pessimista do mundo atual e esperam a
iminência do reino milenar: “Cristo em breve voltará!”, apregoam. Todos os que acreditam numa utopia
sobre a terra são identificados como ramificações do milenarismo. Atua entre os milenaristas o influxo
do judaísmo, especialmente a crença judaica sobre o futuro reino messiânico compreendido como
domínio político e material. Confirma este dado o fato da esperança milenar ter desenvolver-se
principalmente em ambientes asiáticos, onde o cristianismo ficou mais exposto ao condicionamento
judaico.
No início da era cristã, algumas vezes interpretou-se Ap 2,1-10 partindo de concepções judaicas.
Os profetas do Antigo testamento propuseram a vinda do Messias como o início de um tempo de grande
prosperidade para Israel ( Cf. Is 9,1-6; Ez 40,1-18; Dn 7,1-28). Os autores de livros apócrifos
valorizaram tais vaticínios e descreveram o reinado do messias como um período de abundância e de
felicidade material neste mundo. Diziam que as pessoas viveriam um número de anos maior do que a
cifra dos dias de outrora. E enquanto os judeus identificavam esse bem-estar terrestre com a bem-
aventurança definitiva do ser humano, outros o interpretavam como início de um reinado messiânico.
Já no tempo da Igreja pré-constantiniana prevalecia uma atitude cristã favorável à esperança no
milenarismo. É o que nos relata Barnabé, Justino e Irineu de Lion39.
Eusébio de Cesaréia dá informações sobre a mudança que ocorreu na interpretação sobre o reino da
glória depois da virada constantiniana40. A mudança de paradigma sobre a interpretação da história passa
de um sofrer com Cristo no tempo presente ( como anteriormente ocorria durante as perseguições e
martírio), para um reinar com Ele. Inicia-se, portanto, o reino milenário. Quando o Império romano da
Besta Apocalíptica se transformou no Império Cristão e o cristianismo deixou de ser religião perseguida,
para tornar-se a religião dominante, teve origem o chamado milenarismo presêntico. O Sacro Império é
considerado a encarnação do reino milenário descrito no capítulo 20 do livro do Apocalipse e na
monarquia divina universal de Daniel 2 e 7. A teologia da igreja torna-se a teologia imperial, pois o
Império Cristão é considerado a representação do senhorio de Deus na terra 41. Trono e altar, salvação e
domínio fundam-se em unidade. Com a virada constantiniana a cristandade perseguida torna-se religião
lícita e dominante, que no império romano assumirá a forma bizantina e no oriente se desenvolverá como
cesarismo e no ocidente como Sacro Império: um ideal teopolítico considerado válido até o final dos
tempos.
O reino de Constantino inicia com a cruz. Não a do Calvário, mas com aquela do seu sonho: “ In hoc
signes vinces”. Na certeza de que “com este sinal” venceria, Constantino avançou sobre Massêncio em
312 e vitorioso, inicia um processo de maior acolhida do cristianismo em seu império, até assumi-lo por

39
Cf. BARNABÉ,Ep. De Barnabé XV, 3-8; JUSTINO, Diálogo com Trifão, 80; S. IRINEU,Adv. Haer., V, 30,4,33,2.
40
Cf. EUSÉBIO DE CESARÉIA, Hist. Eccl. 10,4.
41
A primeira teologia do reino, destinada a influenciar por longo tempo, foi aquela elaborada por Eusébio de Cesaréia, que
justamente por isso foi considerado o “teólogo da corte” de Constantino, o Grande. Para Eusébio, os protótipos de Constantino
e da Igreja, Augusto e Cristo, são providenciais e estão ligados entre si, no quadro da história da salvação pelo
recenseamento: o Salvador nasce quando “ um decreto de César Augusto ordenou que se fizesse o recenseamento de toda
terra” ( Lc 2,1). Quando o Senhor apareceu sobre a terra, no mesmo momento em que Augusto, o primeiro entre os romanos,
tornou-se senhor das nações, terminaram também muitas soberanias e a paz se estendeu sobre a terra. Constantino é visto
como aquele que deve levar a salvação do reino messiânico a todos os povos. Cf. H. BERKHOF, Die Theologie des Euseb
Caesarea, Amsterdã, 1939.
completo. Para a teologia constantiniana do Reino, Cristo já reina no céu sob as vestes do Pantocrátor,
como muitas vezes se representa nas cúpulas de basílicas bizantinas. A Igreja, então, não clama mais
“venha o teu Reino e passe este mundo” como no tempo dos mártires, mas professa o “pro mora finis”,
implorando que o fim seja deferido.
O que Constantino iniciara, chega ao seu auge com Justiniano, quando Estado e Igreja se fundem
numa espécie de unidade quiliástica. Dos dois carismas: o eclesial e o imperial, retira-se a idéia dos dois
poderes: o espiritual e o temporal. O Sacro Império é concebido como a meta última do plano que Deus
projetou para os povos e portanto é o cumprimento da história universal.
A mesma monarquia religiosa e política era concebida como uma imitatio Dei e permeada pelo
esplendor da glória sobrenatural. O imperador que professava a fé era também a origem de todo poder
sobre a terra e única fonte de direito, pelo qual governava com uma autoridade que não conhecia limites.
Este absolutismo autocrático conotou o sistema e a história política de Bizâncio e depois da queda de
Constantinopla, em 1453, continuou até 1917 com Moscou na autocracia do césar da Rússia. O
milenarismo político do império bizantino conhece seu fim quando Roma é tomada pelos germânicos e
conquistada pelos visigodos.
Enquanto a Igreja se aliava cada vez mais ao Império, nascia o monaquismo. Quanto mais se
desenvolvia uma cristandade secular, mundana, no sentido mais restrito do termo, tanto maior consenso
encontravam as comunidades monásticas. Era a reação contra a identificação e redução do Reino de
Cristo aos reinos do mundo.
Se a cristandade do mundo via a realização do Reino de Cristo no Império Cristão, a cristandade das
ordens religiosas fazia valer a reserva apocalíptica contra as potências deste mundo. O Império, por sua
vez, compreende que sua missão é anunciar o Evangelho de Cristo até os confins da terra ( Cf. At 1,8) .
Com essa motivação, a missão do Evangelho torna-se a tarefa geopolítica do Império. Quer-se
evangelizar e subjugar os povos ao reino de paz que Cristo inaugurará nos últimos tempos. Ilustra bem
esta concepção, a conquista e evangelização da América. Sob a guia de Portugal e Espanha, não se
evangelizava para suscitar a fé, mas para propagar o Reino de Cristo, onde a submissão produzia a
salvação e a resistência conduzia à morte. A escolha que se impunha não era entre fé e incredulidade,
mas entre ser batizado ou morrer.
É possível captar o caráter milenarista do império cristão também na motivação messiânica das
cruzadas medievais. A reconquista da cidade santa de Jerusalém objetivava dominar a capital do reino
milenário e o lugar do retorno de Cristo. Segundo o mito messiânico, o último imperador cristão será o
imperador do tempo final, ele vencerá o Anticristo e se transferirá para a cidade santa onde depositará
sobre o Gólgota a sua coroa, aos pés de Cristo, que ali retornará.
Na medida em que a igreja se concebia como reino milenário de Cristo, não pôde-se mais admitir
que algo se colocasse entre o seu presente e o seu futuro na eternidade celeste . Ela está convicta de que
chegará até o fim do mundo sem que as portas do inferno prevaleçam sobre ela. O limite dessa
identificação do reino com a igreja é de reduzir a grandeza do evento da parusia para a história e o
cosmos numa simples transposição: da igreja terrestre para o reino celeste.
4.2 O Reino sobre a terra: a interpretação milenarista
No cristianismo antigo chegara-se a criar um esquema para interpretar o reino messiânico. A sua
duração era calculada em função dos sete dias em que se julgava ter sido criado o mundo: a história
anterior ao messias se estenderia por 6000 anos; o sétimo milênio seria o período do reino messiânico, no
qual os justos gozariam de repouso e bem-estar paralelos ao repouso de Deus após a obra da criação.
Terminados os sete milênios, dar-se-ia finalmente a entrada de cada criatura no seu estado definitivo.
Vejamos o esquema criado pelos milenaristas cristãos da antigüidade, baseados em Apocalipse 20:
1. A segunda vinda Cristo em glória e poder;
2. A primeira ressurreição, apenas para os justos;
3. O juízo universal;
4. O reino messiânico de mil anos
5. A segunda ressurreição, ou geral, de todos os homens e mulheres;
6. O juízo final;
7. O prêmio ou a sanção definitiva.
Analisando esse esquema, percebe-se que a primeira ressurreição é concedida unicamente aos
justos. Ressuscitados, estes se assentarão com Cristo para participar do julgamento que se realizará. O
juízo é denominado de universal porque serão julgados os povos como coletividades. Em seguida,
inaugura-se o reino dos mil anos. Satanás, estando impedido de exercer sua ação nociva, não poderá
interferir nem no céu e nem na terra. Os justos ressuscitados, reinarão com Cristo na cidade de Jerusalém,
renovada e gloriosa. No mundo viverão aqueles que ainda não ressuscitaram, com melhores condições
de vida do que nos tempos anteriores à segunda vinda de Cristo. Terminado este período, Satanás fará a
derradeira perseguição contra o Reino de Cristo, e será prostrado para sempre. Acontecerá então a
segunda ressurreição dos mortos, daqueles que não participaram da primeira, e ocorrerá o juízo final,
juízo de cada indivíduo particular. Juízo em que Cristo não terá assessores e examinará tanto pecadores,
quanto justos. O julgamento final é também chamado juízo dos mortos, enquanto o anterior, o universal,
é dito juízo dos vivos42. Neste esquema originou-se o quiliasmo ( do grego chílioi = mil) ou
milenarismo. E ainda hoje é possível encontrar grupos religiosos fundamentalistas que pregam esse
tempo milenar sobre a terra, sendo versões modernas de interpretações quiliásticas antigas.

4.2.1 O milenarismo e a Tradição


É possível classificar dois tipos de quiliasmos.
a) O Milenarismo material, conhecido também como grosseiro, entende a felicidade do reino terrestre
de Cristo nos prazeres da carne: uso e abuso do sexo, da comida e da bebida. Esta interpretação foi
sustentada por Cerinto e ensinada por adeptos da gnose no segundo século. Este milenarismo foi
totalmente condenado por todos os Santos Padres e Doutores da Igreja. Depois de ter caído no
esquecimento a partir do terceiro século, ressurgiu por inovadores religiosos do século XVI.
b) Milenarismo espiritual ou mitigado, é o que concebe a felicidade em termos mais dignos. Afirma
que os justos, após a primeira ressurreição, já não casarão nem serão sujeitos à fome ou à dor,
segundo o que diz Jesus em Lc 20,35.

Nos primeiros séculos do cristianismo, o milenarismo espiritual era professado por vários Padres e
escritores da Igreja: São Justino, Santo Irineu, Tertuliano, Latâncio e São Metódio de Olimpo. Ilustra
este pensamento a descrição do reino terrestre dada por Pápias na Adversus Haereses de Santo Irineu:

“Virão dias em que as videiras crescerão, tendo cada qual dez mil cachos; em cada cacho,
haverá dez mil bagos; e cada bago espremido dará vinte e cinco medidas de vinho. E, quando
alguns dos santos colher um cacho, outro clamará: sou cacho de melhor qualidade; tomai a mim,
por mim bendiz ao Senhor. Da mesma forma o grão de trigo.43”

Santo Agostinho também sofreu a influência do reino milenário, principalmente nos primeiros
escritos, mas depois propôs novo modo de interpretar Ap 20, excluindo o reino milenário44.
O milenarismo foi atacado com vigor no Oriente pela escola de Alexandria, por Clemente e
sobretudo por Orígenes. No ocidente a posição de São Jerônimo e de Santo Agostinho fazem com que o
sistema caia em descrédito na tradição cristã. A esperança milenarista não desapareceu completamente e
renasceu das cinzas na baixa Idade Média com Joaquim di Fiore, tendo suas influências até nossos dias.
O Magistério da Igreja, sem condenar formalmente o milenarismo, lhe é desfavorável. Em 1944 a
Santa Sé foi questionada sobre a idéia do milenarismo espiritual e a hipótese de que Cristo virá antes do

42
É com esta distinção que os milenaristas interpretam a fórmula de 2 Tm 4,1; At 10,42 e 1Pd 4,5 e do Símbolo de fé: “Cristo
há de vir a julgar os vivos e os mortos”.
43
Adv. Haer. 5,33.
44
Cf. S. AGOSTINHO, De civitate Dei 20, 7-9.
juízo final para reinar visivelmente neste mundo. A resposta se fez nos seguintes termos: “ O sistema
dito ‘ milenarismo mitigado’ não pode ser ensinado sem perigo para a fé”45.

4.2.2 As previsões do fim do mundo e o reino milenar


O mundo pagão e o mundo judeu da antigüidade conheciam diferentes interpretações sobre uma
nova fase do mundo e da história, com a proximidade do messias e do seu reino. Isto chegou a
influenciar os primeiros cristãos na expectativa de que o Senhor Jesus não tardaria a voltar. A tensão
escatológica chegou ao extremo em fins do século II e início do III. Na Ásia Menor, Montano e suas
profetizas, Priscila e Maximila, apregoaram a vinda iminente do Paráclito prometido por Jesus em João
16. Acabaria o mundo presente para dar lugar ao Reino de Deus, Era comum até entre cristãos
demonstração de fanatismo46.
A expectativa de um iminente fim do mundo dissipou-se com o decorrer do tempo. Isto não
impedia que certos cristãos procurassem através de cálculos e conjeturas anunciar a época da catástrofe
final. Se ela não estava às portas, pensavam também que ela não podia tardar. Foi o caso de Santo Irineu
de Lion que partilhava da idéia de que no ano 6000 após a criação do mundo seria o ano final da
história47. Opinião semelhante era sustentada por Hipólito de Roma 48, Santo Ambrósio49 e Santo Hilário
de Poitiers50.
No século V a idéia da iminência do fim do mundo foi novamente alimentada pelo desenrolar dos
acontecimentos de então: invasões dos Godos assolavam o Império Romano e sua capital. Até que em
476 Odoacre se apoderou de Roma, destituindo o último imperador, Rômulo Augusto. A queda da cidade
que até então fora o centro da civilização, união e bem-estar entre os povos, parecia ser prognóstico de
que o mundo não subsistiria. Este pensamento é atestado por São Jerônimo, São João Crisóstomo e São
Leão Magno51. No sexto e sétimo séculos, São Gregório Magno indicava em suas pregações a próxima
vinda de Cristo, já que as guerras e as misérias da época pareciam ser os sinais precursores da parusia52.
Foi no décimo século, entretanto, com o início do novo milênio ( o segundo da era cristã) que a
questão sobre o fim tornou-se mais forte. Escritores e pregadores medievais chegaram a julgar que no
ano 1000 o Anticristo seria desencadeado sobre o mundo e em seguida viria o juízo universal. Famosa e
polêmica foi a percepção de Joaquim di Fiore ( 1130-1202)nos finais do século XII 53. Ele distinguia três
idades do mundo: a do Pai, a da revelação do Filho e a do Espírito Santo, caracterizada por um
entendimento mais profundo e espiritual das Escrituras Sagradas. Seria esta, a era definitiva, guiada pelo
Evangelho eterno cuja menção está Ap 14,6.

45
“ Systema millennarismi mitigati tuto doceri non potest” AAS. 36 ( 1944) 212, DS. 3839.
46
Como nos atesta Hipólito de Roma no início do século III: “ Um bispo na Síria persuadiu muitos irmãos a irem para o
deserto ao encontro de Cristo, com suas esposas e seus filhos; estes vaguearam pelas montanhas e ao longo das estradas;
pouco faltou para que o governo os mandasse prender como salteadores. (...) No Ponto, outro bispo, homem piedoso e
humilde, mas demasiado confiante em suas visões, teve três sonhos e pôs-se a profetizar: Acontecerá isto e aquilo. E por fim:
‘Sabeis irmãos, que o juízo se realizará dentro de um ano, e, caso não aconteça o que vos digo, não deis mais fé às Escrituras,
mas procedeis como bem quiserdes’. Ora, nada do previsto se verificou; o bispo se viu confuso, os irmãos se escandalizaram,
as virgens se casaram e os que haviam vendido seus campos foram obrigados a mendigar” In Danielem 3,18s.
47
Cf. S. IRINEU , Adv. Haer. 5,23,2.
48
Cf. HIPÓLITO DE ROMA , In Danielem 4,23.
49
Cf. S. AMBRÓSIO , In Com. Lc 7,7.
50
Cf. S. HILÁRIO , In Com. Mt 17,2.
51
Cf. S. JERÔNIMO , Ep. 71,11 ( comentário a 2 Ts 2,50) ; S. JOÃO CRISÓSTOMO, in Com. Mt 20,6; in Jo 34,2; S. LEÃO
MAGNO, Serm. 19,1.
52
Cf. S. GREGÓRIO MAGNO, Moralia ad Job I. XVII cap. IX n. 11. PL LXXVI.
53
Joaquim di Fiore é sobretudo um exegeta. Afirmou ter recebido uma iluminação que lhe permitiu compreender de maneira
nova as Escrituras. Ele rompe com o sistema agostiniano ao afirmar que a história não espera o fim do mundo, mas espera a
sua transformação. Ele marcará o pensamento de seu tempo e se cristalizará em outros grandes pensadores. São Boaventura,
no século XIII tem posição joaquinista, embora não aceitará a superação de Cristo pelo Espírito, como pensava di Fiore. No
Renascimento ( séc. XV e XVI) os missionários franciscanos no México, inspirados em Joaquim di Fiore, compreendem sua
missão como a evangelização dos últimos povos da terra. Um estudo amplo sobre a importância deste monge calabrês no
pensamento cristão encontra-se em H. DE LUBAC, La posterità spirituale di Gioacchino da Fiore, Milão, 1980.
São Tomás de Aquino informa que alguns doutores medievais julgavam que os astros cessariam
de se mover no fim dos tempos, para ocupar exatamente a mesma posição que tinham no início do
mundo, de tal forma que nenhuma trajetória astral ficaria incompleta. Atribuía-se, então, a duração de
36.000 anos da história toda. O que determinaria ainda mais 30.000 anos antes do fim do mundo. Para o
doutor angélico um futuro tão extenso parecia pouco provável 54. Atestava, porém, que não existe um
tempo diferente e nem previa uma plenitude intra-histórica.
O século XV foi marcado por expectativas do fim do mundo. O desejo da nova era, lançado por
Joaquim di Fiore e seus seguidores, crescia diante das desordens religiosas e políticas dos séculos XIV e
XV: transferências dos papas para Avinhão, o grande Cisma do Ocidente cristão, novas teorias relativas
ao governo da Igreja e do Estado.
No período da Reforma Protestante os grandes reformadores não mostravam muito entusiasmo
pelo milenarismo. Lutero acreditava no próximo advento de Cristo, mas rejeitava o quiliasmo.
Desgostavam-no profundamente os cálculos que alguns familiares e amigos faziam sobre a data da
parusia. Da mesma forma agiu Calvino, para quem os milenaristas eram acusados de retalhar o reinado
de Cristo e reduzi-lo a mil anos. A Confissão Helvética de 1566, condena o “ sonho dos judeus ”, ou
seja , que antes do juízo final haveria uma idade de ouro e durante mil anos os que temem a Deus
ocupariam todos os reinos da terra. Excluía-se, assim, sob o plano teológico, a possibilidade da esperança
cristã implicar num futuro para os hebreus enquanto tais.
A Idade Moderna também conheceu previsões e profecias sobre o fim. O Iluminismo francês
apesar de ser laicista e anticlericalista, converge para o espírito de Joaquim di Fiore, com a lei dos três
estados formulada por Augusto Comte e Saint Simon, pela qual o positivismo representa o terceiro reino
do Espírito e o estágio completo da evolução humana.
O humanista pico de Mirandola, morto em 1494 previa a volta de Cristo para o ano de 1994,
partindo de pressupostos da mística neoplatônica e cabalística. O exegeta católico do século XVII,
Cornélio Lapide, predizia a proximidade do fim do mundo apelando para um oráculo comum entre os
turcos: a religião de Maomé haveria de durar dois mil anos.
Um milenarista destacado foi o jesuíta chileno Manuel Lacunza ( 1731-1801), para quem a
Teologia, a Sagrada Escritura e a Astronomia eram ocupações favoritas. Ao morrer, deixou uma obra
inacabada intitulada: “ A vinda do Messias em glória e majestade” 55 , que em 1824 foi incluída no Index
(índice dos livros proibidos), tendo sido condenada possivelmente pelo capítulo que dedicava ao reino
dos mil anos de Cristo na terra56.
Grupos religiosos sobrevivem até hoje baseados no anúncio iminente do fim. É o caso dos
Adventistas do Sétimo Dia, fundados por Guilherme Miller, morto em 1849, que após ter aderido ao
racionalismo de sua época, se converte à corrente dos batistas. Miller partia do princípio de que todas as
profecias bíblicas referentes ao Messias se devem cumprir literalmente. Na segunda vinda de Cristo, em
glória, ele estabelecerá seu reino milenário, que será a realização verbal da era messiânica profetizada
pelo Antigo Testamento. Terminado o milênio, virá o juízo final. E partindo de Daniel 8,14, que propõe
um enigma de duas mil e trezentas tardes e manhãs, Miller considerou as tardes e as manhãs como anos
e julgava que Cristo viria instaurar o milênio no ano 2300 a partir da data do oráculo, isto é, 457 a.C., o
que projetaria a parusia de cristo para o ano de 1843, precisamente entre março de 1843 e março de 1844.
Em 1833, uma chuva de asteróides favoreceu a interpretação de Miller e foi entendida como prenúncio
do fim. Com a passagem do ano de 1843 houve a grande decepção para os seus 50.000 adeptos. Miller
protelou para outubro de 1844 a data derradeira e nada aconteceu. Os adventistas até hoje conservam a
crença no próximo regresso de Cristo e alguns dizem que o prazo previsto por Daniel de fato terminou
em 1844, mas Cristo ainda estaria a purificar o santuário, conforme o oráculo, e logo após viria para
completar esta obra.

54
Cf. TOMÁS DE AQUINO, S. Th. Supl. III, 91, a . 2 ad8.
55
Cf. M. LACUNZA. La Venida del Mesías en Gloria y Majestad, Londres, 1816, 4 tomos.
56
Esta é opinião sustentada pelo estudioso de Lacunza: F.O. PARRA, El reino que há de venir: Historia y Esperanza en la
obra de Manuel Lacunza, in Pensamiento Teologico in Chile, Santiago, 1993.
Influenciados pelos adventistas, nasce as Testemunhas de Jeová, fundados por Charles Russell,
morto em 1916. Adepto também de cálculos para detrminar a data do fim, Russell afirmava que a sua
geração não passaria sem ter visto o Reino de Deus, e profetizou o ano de 1874 para a parusia de Cristo.
Em 1914 seria inaugurado o ano milenário, ao qual, no ano de 2914 se seguiriam os céus novos e a terra
nova. Nesta estrada muitos trilham até hoje, sejam os adeptos, quanto os dissidentes, todos buscam
prever a aproximação do fim do mundo e o início do novo reino.
Outro grupo com tendências milenaristas são os Mórmos, a Igreja dos Santos dos Últimos Dias,
como a própria denominação já indica. Fundada por J. Smith, este esperava ver o final dos tempos antes
de morrer.
No meio católico não são raras as notícias sobre revelações particulares com aparições de Jesus e
da Virgem Maria referindo-se ao final dos tempos. A revelação do terceiro segredo de Fátima em maio
de 2000 causou decepção em muitas pessoas, convictas de que a Virgem teria revelado algum segredo
sobre o destino final do mundo. Muitas profecias aparecem prevendo um fim catastrófico e fazendo uma
leitura da realidade em chave apocalíptica, interpretando-a como prenúncios do fim. Promovendo
mensagens de conversão e de penitência, tais profecias tendem a transmitir a idéia de que o tempo final
está muito próximo e que é preciso se preparar para o caos. Embora a Santa Sé tenha advertido sobre a
relatividade do conteúdo das revelações particulares, prossegue o fenômeno com bom número de adpetos
entre os católicos.

2.3 O Sentido da fé milenarista


O relato do combate escatológico e o reino dos mil anos têm uma função parenética. Querem exortar
os cristãos perseguidos à perseverança até a morte. A força dessa exortação reside na promessa de uma
recompensa próxima garantida aos mártires. A morte do mártir exemplifica o sentido verdadeiro de toda
morte cristã. A imagem da primeira ressurreição evoca o dom de uma nova relação com Deus. Imagem
que deve sustentar a caminhada do cristão na história.
O milenarismo pode ajudar a “sonhar” um futuro diferente “ nesta terra”. Impedem reduzir a
esperança cristã na dimensão espiritual e o dualismo corpo e alma, tão presente na concepção de muitos
cristãos. O novo céu, supõe uma nova terra. O sonho e o desejo, longe de ser uma projeção da futura
realidade, podem estimular o empenho pela sociedade nova. A grande tragédia moderna é a incapacidade
de pensar um futuro melhor para todos, principalmente para as massas sobrantes da humanidade, aquelas
populações que não contam nem economicamente, nem politicamente e muito menos, socialmente57.
Um futuro reinado de Cristo sobre a terra pode soar como uma utopia, como “um não lugar”.
Dificilmente espera-se que o reino venha sobre a terra, como fruto da absoluta intervenção livre de Deus
sobre o mundo. E os milenaristas, do seu modo, tangendo as fronteiras da heresia, marcam a história
profetizando a chegada de um novo tempo que urge uma tomada de posição no aqui e agora de cada
tempo histórico58.
A inspiração e força do conteúdo milenarista provoca a sociedade e a história para repensar o futuro
intra-histórico. A crise ecológica, a violação dos direitos humanos e injustiça social clamam por
situações e medidas concretas. Dependem de estruturas que planejem e executem projetos que garantam
a vida para todos e para tudo. E isto supõe uma resistência na esperança, esperar contra todo desespero.
É a esperança das vítimas do sistema mundial em vigor. Por não terem seus direitos garantidos no tempo

57
A Teologia da Libertação, acusada de milenarista, considera que na América Latina a tendência ao quiliasmo é uma das
latências mais revolucionárias e libertadoras do povo. No Brasil, o fenômeno de Antônio Conselheiro no Nordeste é um
indicador do desejo de um novo reino, refutando a república que se instalava. A própria Teologia da Libertação admite, no
entanto, que trata-se de uma realidade profundamente ambígua porque muitas formas de esperança se confundem com o mito.
Sobre este tema escreve Hugo ASSMANN, Teología desde la práxis de la liberación, Salamanca, 1976, 88ss.
58
Há até quem sustente que o “reino dos mil anos” constitui o fundamento da ética cristã, um estímulo concreto para
desenvolver a solidariedade e a responsabilidade neste mundo, uma fonte de inspiração para o compromisso atual. O milênio,
como cumprimento da história dentro da própria história, inspira uma ação possível e esperançosa. É o que afirma C.
BRUSTSCH, La Clarté de L`Apocalypse, Paris, 1966, 334-335.
presente, acreditam num futuro alternativo. Na concretização dessa ânsia, desfilam utopias que vêm e
que vão. Permanece, no entanto, a esperança.
Num balanço final, pode-se perceber que sem o milenarismo a escatologia se dilui numa nostalgia
transcendente e se reduz na esperança no além, abstrata. Por outro lado, quando o momento presente é
identificado de forma quiliástica como o Reino de Cristo, então só resta esperar o fim do mundo. O
quiliasmo tem seu lugar na escatologia cristã somente enquanto o reino milenário de Cristo é objeto de
esperança concreta, que se estende sobre a sociedade e a história. O reinado milenar de Cristo não pode
ser entendido como um reino de mil anos partindo de interpretações fantasiosas e fundamentalistas do
capítulo 20 do Apocalipse. O quiliasmo entra na escatologia para reclamar uma dimensão mais histórica
e corpórea, mais material e concreta do que supõe a categoria Reino de Deus. Sem acolher o
milenarismo, é preciso insistir que o Reino de Deus deve ser construído com a participação da
humanidade na história, apesar de ser dom total. Neste sentido, pode-se verificar os tempos históricos e
criticar o quanto cada época aproxima-se ou afasta-se do reino de liberdade, vida e justiça; sinais que
prefiguram e antecipam o Reino definitivo.

B ) O advento de Cristo para a História e o Cosmos

Introdução sobre os éschata.


O advento de Cristo há de transformar o cosmos e a história. Na dimensão histórica a parusia
deverá levar à plenitude todas as expectativas dos seres humanos, construtores e vítimas da história. Essa
perspectiva atinge tanto a dimensão pessoal quanto coletiva. Outro aspecto que aguarda ser resolvido
refere-se ao último inimigo: a morte. Enquanto ela não for derrotada fica difícil falar de ressurreição dos
mortos. Estes aguardam a aniquilação da morte. Decorrente da ressurreição final será o juízo universal
que fará reinar a justiça de Deus sobre a terra. Com o juízo será possível avaliar os grandes instrumentos
de opressão e violência ao longo dos séculos. Somente após refletirmos as questões deixadas em aberto
pela esperança da parusia sobre a história e a antropologia, é que poder-se-á abordar a outra dimensão: a
cósmica, que englobará todo o criado.

1. A ressurreição dos mortos: Morrer para nascer


São Paulo afirma que a ressurreição do Crucificado dá início ao processo da ressurreição dos mortos
e a nova criação do mundo ( Cf. Rm 8,11). Na ressurreição de Jesus revelou-se a vida eterna e
manifestou-se a força da vida no Espírito Santo. Os corpos mortais superam, em Cristo, não somente o
pecado, mas também derrotam a morte. Em 1 Cor 15,20-24 Paulo descreve o processo com as expressões
aparché e arrabón, indicando antecipações que se sucedem umas às outras. São partes que tendem ao
todo e o início que ruma para a perfeição final. Pelo fato da criação escatológica resultar do processo da
ressurreição e da criação da vida é que Deus Criador recebe um novo nome, messiânico: ho egeiras
Ieosun: “Aquele que ressuscita Jesus”, o Pai de Jesus Cristo, o Deus que ressuscita os mortos, o Deus da
Esperança ( Rm 15,13)59.
Segundo a estrutura escatológica do relato das aparições do Ressuscitado, os discípulos anunciaram o
acontecimento de Jesus Cristo como “a ressurreição dos mortos”. Evidentemente que a expectativa
apocalíptica se volta àquela ressurreição singular e universal que acontecerá no final dos dias ( Cf. Dn
12,2). Os cristãos, no entanto, modificaram essa expectativa antiga proclamando em Jesus Cristo já
iniciou, antes de todos os outros, a ressurreição escatológica dos mortos. Com Cristo já iniciou o último
dia da história. Nas palavras paulinas compreende-se que “a noite vai avançada e o dia é vizinho” ( Rm
13,12). E Jesus é anunciado como “primícia dos que morreram” ( 1 Cor 15,20), “primogênito daqueles
que ressuscitam dos mortos”( Col 1,18).

59
Cf. J. MOLTMANN, Deus na Criação, 106-107.
Na parusia de Jesus Cristo deverá emergir, portanto, o elemento específico da escatologia cristã: a
ressurreição dos mortos. Ela está indicada no Credo Apostólico com a expressão “ressurreição da
carne”60, que compreende a vida eterna sem prescindir da vida corporal. O Credo Niceno-
constantinopolitano refere-se a esta dimensão nos termos: “ espero a ressurreição dos mortos e a vida do
mundo que virá”61.
A ressurreição da carne é a recuperação da corporalidade dos mortos. Com ela o cristianismo
professou a necessidade de não abstrair a esperança de uma vida futura que perdesse a identidade de cada
pessoa. As interpretações modernas que tendem ao reducionismo espiritual e abdicam o aspecto concreto
da ressurreição não respondem à expectativa da comunidade cristã primitiva 62. Para teólogos como J.
Moltmann, não é possível conceber a esperança eterna apenas para a alma na imortalidade do céu. Essa
interpretação provoca a inimizade entre corpo e alma que sugere a submissão do corpo ao domínio da
alma e a repressão de seus impulsos e necessidades. Há quem pense de encontrar Deus onde o corpo
termina, por isso consideram-no um inimigo a ser silenciado e flagelado para o bem da alma. “E ficamos
cruéis, violentos, permitimos a exploração e a guerra. Pois se Deus se encontra para além do corpo, então
tudo pode ser feito ao corpo”63. O anseio por libertação do corpo faz o ser humano, que pensa somente na
alma, desejar a morte, e desenvolver o instinto tanático contra toda carne na própria vida, na vida dos
outros e na natureza. Se o corpo é o registro histórico da existência, que marca, define e determina a
vida, ele também há de ser glorificado na parusia.
Somente a ressurreição da carne desenvolve o aspecto natural do conceito pessoal de ressurreição dos
mortos. Essa fundamenta-se no ressuscitamento escatológico, por meio do qual deus cria novas todas as
coisas, levando-as à consumação. Ora, aqueles que Deus ressuscita no final dos tempos têm que erguer-
se por si mesmos. À força de cima, corresponde a força de baixo. Os mortos permanecem identificáveis
para Deus, ainda que se decomponham. A história individual não pode ser anulada e dissolvida no além
da morte. Ela não pode destruir o relacionamento do Criador com a criatura.
O Novo Testamento vincula a ressurreição dos mortos à singularidade da páscoa de Jesus. Como a
ressurreição do Cristo morto foi realizada por Deus mediante o Espírito da vida, assim também a
ressurreição dos mortos é esperada como um evento físico que diz respeito ao ser humano integral, isto é,
como vida infusa aos “corpos mortais” ( Rm 8,11). A ressurreição dos mortos é descrita como um
processo pessoal. A destruição da morte, no entanto, ilustra a dimensão cósmica ( Cf. 1 Cor 15,26 e Ap
21,4). Ambos os aspectos estão intimamente ligados. A ressurreição dos mortos requer uma nova terra,
onde a morte não terá mais vez.
Os termos mais freqüentes no Novo Testamento para exprimir o significado do ressuscitamento ou a
ressurreição dos mortos são: transformatio ( 1 Cor 15,52) e transfiguratio (Fil 3,21). Expressam que na
ressurreição o ser humano encontra sua salvação, reconciliação e realização final. Ressuscitar para a vida
eterna significa que para Deus nada se perde: nem a dor e nem os instantes de felicidade. O homem
encontrará em Deus não somente o momento último, mas toda sua história reconciliada. O que na vida é
experimentado como graça, será consumado totalmente na glória. Em Cristo e na força do seu Espírito já
inicia uma vida nova no meio da existência assinalada pela morte. Experimenta-se, antecipadamente, o
que somente a parusia revelará totalmente.

1.1 A ressurreição individual.


No confronto com a escatologia católica, a ressurreição dos mortos distingue-se da acentuação
protestante em relação ao destino individual. A escatologia reformada interessa-se pelo final dos tempos
60
DS 10.
61
DS 150
62
Totalmente contra a essa redução, J. Moltmann radicaliza: “ Quer-se sacrificar a esperança para a natureza carnal do
homem em favor da personalidade dos mortos. Isso, porém, é absurdo, porque os homens são carne e participam das
energias como também das mazelas da carne de todos os seres viventes. Se não existe a ressurreição da carne natural, então
também não existe a ressurreição dos mortos pessoal. Se existe a ressurreição dos mortos pessoal, então existe também a
ressurreição da carne natural”. (O Caminho de Jesus Cristo, 348).
63
R. ALVES, Creio na ressurreição do corpo, São Paulo, 1984, 8.
de forma especial porque não concebe um tempo intermediário entre a morte individual e o juízo final
dos mortos. Nesta percepção, os mortos estão num sono eterno até o dia da ressurreição final na parusia
de Cristo.
O pensamento católico sobre o tema remonta à declaração de Bento XII realizada no Concílio de
Trento na sessão XXV, quando rejeita a opinião de que os mortos dormiriam na esperança de serem
ressuscitados no advento de Cristo. Sustenta-se, no entanto, que cada ser humano é julgado
imediatamente após a morte64. É o juízo particular que antecipa individualmente o juízo universal. Há
dois juízos, conforme a doutrina católica, um particular, subitamente após a morte, e outro universal, na
parusia, quando haverá a destruição da morte e iniciará o novo céu e nova terra.
A posição luterana vê a condição dos mortos como uma espécie de sono profundo, sem sonhos, além
do espaço e do tempo, onde não há mais consciência e nem se experimentam sensações 65. Os mortos no
último dia não saberão onde estavam e nem por quanto tempo estiveram mortos. Todos são ressuscitados
de improviso, sem saber de que modo se encontraram com a morte e como ela foi superada 66. Lutero não
responde sobre a quantidade de tempo que passará entre a morte do indivíduo e a ressurreição
escatológica. Nem vale-se das categorias de tempo e espaço. Ele recorre às expressões de tempo de
Deus: “ num abrir e fechar de olhos” ( 1 Cor 15,52). O último dia é o “Dia do Senhor”, o tempo de Deus
é o tempo do presente eterno. Se os mortos não vivem mais no tempo dos vivos, então eles existirão na
presença eterna de Deus. O tempo da morte até a ressurreição será “um só instante”. Sobre a questão do
lugar ou estado no qual os mortos se encontram, responde-se que já estão no novo mundo da
ressurreição e da vida eterna. Assim interpreta-se as palavras de Jesus na cruz dirigidas ao crucificado do
seu lado: “Hoje estarás comigo no paraíso” ( Lc 23,43). Ele diz “ hoje” e não daqui a três dias,
referindo-se ao hoje eterno de Deus.
Há, entre os luteranos, teólogos que não concordam totalmente com o sono dos mortos até a parusia.
É o caso de J. Moltmann que aproxima-se muito mais da idéia de um “acordar” dos mortos logo após a
morte para viver, na comunhão de Cristo , até a parusia. Ele compreende que essa existência dos mortos
em Cristo não é a ressurreição, mas apenas um “estar em Cristo”. Os mortos não estão separados de
Deus, sustenta. Não estão dormindo, como ensina a doutrina luterana tradicional, mas também não estão
ressuscitados, como professa a fé católica. Para Moltmann os mortos estão “em Cristo”.
Interessa-nos especialmente o fato do teólogo protestante refutar a idéia do sono dos mortos. Para ele
é preciso admitir que em Cristo, também os mortos disporão de um tempo, havendo Cristo tempo para
eles. Na Primeira Carta de Pedro afirma-se que foi anunciada a Boa Nova também aos mortos ( 4,6) e
que depois da morte, Cristo anunciou a salvação também aos espíritos que esperavam na prisão ( 3,19). O
que leva a concluir que Cristo se importa com os mortos. Faz-se necessário distinguir, porém, que o
tempo dos mortos não é igual ao tempo da vida na terra, que traz a morte. Eles vivem no tempo de Cristo,
que Moltmann interpreta como o “tempo do amor”. Dessa forma, o teólogo reformado chega afirmar o
purgatório: “ É justamente este o elemento de verdade contido na doutrina do purgatório”67.
Retomando a fé católica sabe-se que logo após a morte há a ressurreição individual, quando os
mortos permanecem em Cristo, ainda que não se saiba quando e nem como, esperam a ressurreição da
carne e o juízo universal. E desprende-se dessa constatação que há duas esferas: a dos mortos e a dos
vivos. Pode-se considerar dois semi-círculos de relacionamentos: a comunhão entre os vivos e a
comunhão entre os mortos. O espaço no qual os vivos se movimentam não dá acesso ao espaço
reservado aos mortos. Não somos capazes de imaginar o espaço que os mortos dispõem em Cristo,
porque desse dado não temos experiência. A única certeza que temos é que a nossa morte não nos
separará de Cristo. A separação entre o além dos mortos e o mundo dos vivos é causada pela morte e
superada somente no Ressuscitado. Rejeita-se e nem supõe-se alguma possibilidade de uma
64
Cf. DS 1820-1835.
65
Cf. M. LUTERO, Predigt. 16, Sonntag nach Trinitatis.
66
Essa posição é análoga ao Alcorão ( Sura 10, 46ss.; 46,35) onde se afirma que o ressuscitado não tem consciência do
intervalo que separa a morte do último juízo. Para os mortos há a impressão de que o juízo vem imediatamente depois da
morte.
67
J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 127.
comunicação entre vivos e mortos como fazem as crenças reencarnacionistas e a necromancia. O que
mantém unidos vivos e mortos é a comunhão dos dois círculos: O Cristo. Nele se estabelece a
“comunhão dos santos” vivos e mortos. Nele estão unidas as duas vertentes no amor recíproco e na
esperança comum na parusia do Reino. No fim dos tempos serão ressuscitados todos os mortos ao
mesmo tempo e repentinamente, num momento, ao soar da última trombeta ( Cf. 1 Cor 15,52), isto é,
diacronicamente. A ressuscitação dos mortos liga o fim dos tempos da história da morte e o início da
eternidade da nova criação, na qual a morte não mais existirá.

1.1.1 A questão da alma separada do corpo depois da morte.


A redenção que inclui o corpo humano é tradicional no meio católico. Não obstante as tentativas
recentes de amenizar o escândalo que esta significa para a razão e para ciência, a reafirmação da fé
original tem seus fundamentos. A fé na ressurreição da carne remonta principalmente a Santo Tomás de
Aquino , para quem a relação grega entre matéria e forma é estendida à alma como forma do corpo. Não
mais como Aristóteles, uma forma que perece com o corpo. Mas uma forma espiritual que não se destrói
na morte, nem se espiritualiza totalmente, mas mantém uma relação transcendental com a matéria. A
alma garante a continuidade do ser humano e a unicidade do seu corpo, já que ela é sua forma. Tomás de
Aquino chega a afirmar que a alma é mais perfeita quando unida ao corpo do que quando separada68.
O vínculo entre alma e corpo se faz na ordem do existir e do conhecer, por isso a alma separada
tem relação profunda com seu corpo e nunca se transformará em puro espírito, pois conserva sempre seu
aspecto de mundanidade, de corporeidade, de historicidade. Ao insistir nessa relações, o “doutor
angélico” une matéria, mundo e história, sem evidentemente, utilizar esses termos. O conhecimento a
partir do sensível, como a forma natural e digna da alma, marca-a definitivamente. Mesmo separada não
se desliga totalmente dessa condição e mantém relação com esse antigo modo de conhecer e portanto de
ser. Santo Tomás vincula o conhecimento das almas separadas com conhecimentos precedentes, com sua
relação natural, com alguma afeição69.
Na simplificação catequética, contudo, pode-se perceber que ocorreu uma desvinculação da
alma em relação ao mundo, ao corpo e à matéria:

“A diferença entre uma alma separada e um anjo - diferença que Tomás insiste em conservar -
praticamente desaparece na consciência de um católico médio. A alma leva da terra somente os méritos e
os deméritos segundo os quais será julgada para prêmio ou condenação eternos. É esse esquema dualista,
espiritualista e simplificado, que de fato era vivido pelo católico médio e não a Teologia elaborada com
matizes e distinções de Santo Tomás”70.

As primeiras reações contra esta posição da imortalidade da alma remetem à Karl Barth, para
quem o homem morre todo e não tem em si, em sua natureza, o germe da imortalidade. Ele coloca em
contraposição à imortalidade da alma, a ressurreição do homem por obra de Deus. Ele quer ressaltar a
transcendência e não a autonomia natural do ser humano. Outro combate veio dos estudos da exegese,
afirmando que a tese da imortalidade da alma está subtraída do seu fundamento bíblico. É uma idéia
estranha ao pensamento semita e bíblico. Oscar Culmann recuperará a idéia da “dormitio” para referir-se
ao sono dos mortos à espera da ressurreição. A posição tradicional da alma imortal, separada do corpo à
espera da ressurreição dos mortos no final dos tempos seráa rejeitada como não bíblica e de origem
helênica. Na verdade, a Bíblia conhece diferentes formas de concepção da vida além da morte, desde o
sheol sem nenhuma esperança de vida até a forma mais elaborada da ressurreição dos mortos no Novo
Testamento.
A fé católica, entretanto, afirma a continuidade e a subsistência, depois da morte, do elemento
espiritual, dotado de consciência e vontade, de tal modo que o “eu humano” subsiste no ínterim entre a

68
Cf. S. Th . I q. 89 a . 1 e a . 2 ad 1m; I q. 90 a . 4c; I q. 118 a . 3c.
69
Cf. S. Th . I q. 89 a . 4c.
70
J.B. LIBÂNIO e M.C. BINGEMER, Op. cit., 184.
morte e a ressurreição final. E para designar tal elemento espiritual usa a palavra “alma”. É o que ensina
o “Credo do Povo de Deus” de Paulo VI:

“Cremos que as almas de todos aqueles que morrem na graça de Cristo, que se devam ainda
purificar no Purgatório, quer sejam recebidas por Jesus no Paraíso, no mesmo instante em que deixam os
seus corpos, como sucedeu com o Bom Ladrão, formam o Povo de Deus, para além da morte, que será
definitivamente vencida no dia da Ressurreição, em que estas almas se reunirão aos seus corpos”71.

O teólogo J. Ratzinger retém o esquema da alma separada e ressurreição dos corpos no final dos
tempos, mas apresenta alguns aspectos inovadores. Ele entende, com o auxílio da categoria “tempo da
memória”, extraída de Santo Agostinho, a relação da alma separada com a história. O “tempo da
memória” reúne de modo original o presente, o passado e o futuro. Carrega a marca da relação com o
mundo corporal e supera-a . Ao morrer, o homem desliga-se do tempo físico e retém o tempo da
memória que não é a eternidade e nem o tempo físico. Este tempo permite entender o que de definitivo
se fez na vida, o que depende de uma purificação e o que já pode estar numa nova relação com a
matéria através da ressurreição da carne. Porque o homem continua depois da morte temporal, mantendo
relação com a história humana da qual saiu pela morte. Ela constituiu seu tempo humano, que
permanece após a morte na forma de “tempo da memória”72.
Há quem defenda, por outro lado, que o corpo entra na glória ressuscitado logo após a morte.
Este esquema resolve melhor a relação entre matéria e espírito segundo os postulados das ciências físicas
e humanas. Responde melhor às linhas antropológicas atuais, mas pode ainda ficar preso a um horizonte
individualista e sem perspectiva parusíaca. Descarta-se o caráter de comunhão na esperança entre céu e
terra que aguardam o Senhor da parusia para plenificar o Reino “assim na terra como no céu”. Tal
percepção possibilita o individualismo, enquanto cada um é a história que construiu e que seguirá à sua
ação, mas marcada por ela. Os mártires do Apocalipse que clamam por justiça ao Cordeiro não têm mais
razão de esperar o juízo final segundo esta concepção, pois já foram glorificados plenamente e
individualmente. A causa comum que fê-los padecer coletivamente se dilui na glorificação individual.
Cada um que morre já vive, no instante de sua morte, a parusia do Cristo que vem no último dia de cada
história individual.
O Catecismo da Igreja Católica refere-se a este argumento nos parágrafos 997 a 1001 quando diz que
os mortos ressuscitam definitivamente no último dia, no fim do mundo. Eles esperam a glorificação
do corpo que se realizará na parusia do Cristo. E também como todo o gênero humano, o mundo todo
que está intimamente ligado com a humanidade e por ela chega ao seu fim, será restaurado em Cristo.
Integra-se a visão do ser humano como um todo, corpo e alma, matéria e espírito , possibilitando uma
nova aproximação com a modernidade para a qual o dualismo que supervaloriza o espírito e atrofia o
corpo não é mais capaz de responder às inquietações humanas. O esquema tradicional da alma que
espera a ressurreição dos mortos no dia da ressurreição encontra-se com a esperança na parusia e
forma uma unidade diante do futuro de Cristo. A corporalidade da ressurreição só terá lugar na nova
criação que será inaugurada no evento parusíaco.

1.3 A pessoa e o mundo na ressurreição dos mortos


O Reino de Deus não se ocupa apenas da dimensão pessoal, nem a escatologia pode reduzir-se a
resolver o problema do futuro de cada ser humano. Entretanto, a justiça e a paz prometidas são conceitos
que se relacionam e se referem às pessoas e ao mundo. Os dados bíblicos informam que o evento
parusíaco vem acompanhado da ressurreição dos mortos. Essa ressurreição parusíaca envolve todos os
seres humanos e cada um em particular, porque é todo o homem que ressurge, não somente o seu corpo.
A profissão de fé católica entende que a ressurreição dos mortos na parusia comporta um duplo aspecto.

71
PAULO VI, O Credo do Povo de Deus, Doc. Pont. 177, Petrópolis, 1969, 13.
72
J RATZINGER, Escatología, Salamanca,1992 .170-172.
Por um lado será a confirmação, para além da morte, da identidade de cada ser humano, de sua história
vivida entre angústias e esperanças; de pessoa encarnada. Neste sentido haverá uma profunda
continuidade entre o ser ressuscitado e seu “eu presente”, com todas as dimensões da vida terrena: as
formas precárias e as escolhas fundamentais de sua vida. Nada se perde, tudo é retomado na identidade
de cada pessoa diante do evento final. Por outro lado, este “eu encarnado” será totalizado na ressurreição,
não somente pela sua reintegração essencial, para a qual recuperará a sua corporalidade, mas também em
razão de que se manifeste o significado das instâncias humanas da vida corporal.
O ser corporal humano atual é limitado biologicamente ( pelo corpo mortal) e moralmente ( pelo
corpo do pecado). É por isso que vive-se uma existência humana exposta às múltiplas formas de
alienação. Com a parusia, o corpo da ressurreição realizará uma forma de vida escatológica na qual a
corporalidade expressará a realização de uma presença de comunhão com o mundo e com os outros seres
humanos. A pessoa verá realizada plenamente em si, a sua identidade de “imagem de Deus”. Essa
dimensão escatológica comporta uma certa transcendência da corporalidade como realidade
simplesmente biológica, pois comportará uma nova identidade e uma finalidade superior, que tenderá à
imortalidade. O desejo de ser imortal é diverso do distinto de sobrevivência que temos agora em nosso
ser. Ratzinger explica que “este é comum a todos os organismos vivos e estão no lado de cá da morte,
refere-se à vida temporal da qual os seres participam. É uma tendência de conservação e reprodução da
vida biológica vegetal e animal. A tendência à imortalidade é própria do ser humano que tem sede de
plenitude de vida para além da morte e comporta em si um desejo antropológico implícito de
ressurreição”73.
O advento de Cristo realizará plenamente o que confessamos como “ressurreição da carne” no
Credo Apostólico74. Entretanto, a ressurreição dos mortos não pode ser pensada sem o evento pascal de
Cristo. O fundamento e a manutenção da esperança na ressurreição parusíaca é a ressurreição do
Crucificado. O Ressuscitado estende os efeitos de sua ressurreição, levando-a à plenitude quando
envolve toda criatura humana e a criação na parusia. É Cristo que transfigurará o nosso mísero corpo
mortal para conformá-lo num corpo glorioso, diz Paulo ( Fl 3,21). O processo de transfiguração não é
compreendido como mero ato físico, mas está na ordem da nova criação, por isso se expressa em uma
nova vida dada pelo Ressuscitado na força de seu Espírito.

2. A justiça de Deus no juízo universal


Originalmente o juízo final foi entendido como a instância na qual Deus faz justiça para os que
sofrem injustiças. Tratava-se de uma esperança para as vítimas da História Universal ( cf. Ap 6,10.17).
Posteriormente, ele foi entendido como um juízo sobre os malfeitores e Deus foi concebido como um
juiz criminal da humanidade, diante do qual todas as pessoas deveriam tremer. A espera do juízo passava
através de uma mensagem ameaçadora que intimidava, desprovida de seu caráter alegre e libertador.
Diversa é a perspectiva do Antigo Testamento, na qual Javé cumpre a justiça em Israel mediante
sua aliança. Ele julga os povos no “dia de Javé” que deve acontecer nos “últimos tempos” ( Is 2,2 e Mq
4,1). O resultado será o grande reino da paz. Os profetas anunciaram este juízo afirmando seu início no
próprio Israel. Javé também julgará o Israel oprimido e condenará seus inimigos que triunfam. Desta
esperança nascem os salmos da vingança, que expressam a necessidade da reparação da injustiça que
Israel padece por amor ao nome de Deus.
No cristianismo o juízo foi transformado no dia da ira de Deus. A história da teologia e da arte
cristã apresentam a relação da expectativa da volta de Cristo ao juízo final sobre vivos e mortos. Isto é
bem acentuado na arte medieval. Muitas pinturas nas igrejas faziam uma catequese do medo, apavorando

73
J. RATZINGER, Escatología. Curso de Teología Dogmática, t. IX, Barcelona, 1992, 144s.
74
A ressurreição da carne é vista como símbolo da integralidade humana, que permite uma crítica contra toda redução
espiritualista e o resgate da valorização da corporalidade humana. Em vistas da integração corpo e alma que deverão
ressuscitar, o ser humano deve ser visto como o sujeito de uma promessa ativa: a ressurreição dos mortos. Por isso não é
admissível o dualismo corpo e espírito, quando se sabe que todo ser humano está destinado à comunhão na Trindade. Sobre o
tema, Cf. D. WIEDERKEHR, Prospettive dell`escatologia, Brescia, 1978.
as pessoas sem criarem alegre expectativa. A esperança no Reino sem fim do Credo Niceno foi relevada
a segundo plano ou esquecida completamente.
A imagem de Cristo juiz do mundo não estimulou a esperança na parusia, pelo contrário. Na
medida em que se associou a parusia ao juízo final, obscureceu-se o sentido do julgamento que reside
unicamente na vitória da justiça de Deus que há de tornar-se a base da nova criação. Daí a necessidade
de exorcizar o pânico e o medo do julgamento, para que renasça o desejo de uma feliz realização da
obra de Cristo. O motivo dessa esperança é o próprio Jesus Cristo que a si mesmo se entregou pelos
pecadores e sofreu as dores e as enfermidades humanas. Ele é esperado como juiz. O Crucificado julgará
mediante o Evangelho da justiça de Deus e não segundo uma lei estranha. O amor de Deus que Jesus
proclamou e personificou é incondicional. Ele atinge sua forma mais perfeita no amor ao inimigo. Seria
impossível pensar que o Cristo na parusia agirá em contradição com o Jesus dos Evangelhos. Caso
contrário, desmentiria tudo o que fez e falou o Nazareno e apareceria como outro juiz universal,
desconhecido dos cristãos, que têm um Mestre manso e humilde de coração.
A expectativa pelo juízo derradeiro deve estar integrada na expectativa de Cristo e não
inversamente. O que se tem visto com freqüência é a projeção de angústias reprimidas, para satisfazer
desejos masoquistas de autoflagelo. Jesus julgará segundo o critério de sua Boa Nova. Sua justiça
salvífica renovará o mundo. Somente depois que a expectativa apocalíptica do juízo estiver inteiramente
cristianizada ela perderá seus medos e se tornará uma esperança libertadora voltada para o futuro. O
juízo deve ser esperado e rezado a partir de seu caráter provisório, porque é premissa para a vinda do
Reino eterno. Somente assim o pavor do juízo não paralisará por mais tempo a expectativa da parusia.
O julgamento de Deus no juízo final não será a última palavra de Cristo. Seu pronunciamento
final será: “Eis que eu renovo todas as coisas”. O juízo final, por isso, é passageiro. Definitiva é a nova
criação, que será inaugurada com o julgamento. Por isso toda esperança no juízo deve suscitar alegria da
libertação, porque a justiça triunfará. Aplica-se aqui a expressão popular diante de tantas situações
injustas: “ A justiça de Deus tarda, mas não falha”.

2.1 Salvação e condenação no juízo final.


A questão que passamos a analisar agora refere-se ao problema da sentença final do julgamento
universal: acontecerá um duplo êxito do juízo ou uma reconciliação geral? Quando pensa-se numa
reconciliação universal pode-se perguntar: “Por que devo crer e empenhar-me numa vida justa se no final
todos serão perdoados e salvos?” De outra parte, o duplo êxito do juízo permite indagar: “ Por que
Deus criou os seres humanos se no final há a possibilidade da condenação eterna?” Pode Deus odiar as
suas criaturas sem odiar a si mesmo?”
O primeiro aspecto de nossa reflexão trata da condenação eterna e a salvação dos diabos.
Questiona-se a possibilidade do juízo final permitir uma salvação sem fim para os bons e o destino eterno
dos maus no inferno. A polêmica é antiga. Orígenes na sua teologia pedagógico-salvífica via que no fim
até o diabo seria salvo, mas não conseguiu impor sua idéia no cristianismo antigo 75. A Igreja luterana na
Confissão Augusta, em seu artigo 17 ensinava que Jesus Cristo virá nos últimos dias para julgar e fazer
ressurgir todos aqueles que estão mortos, para dar vida aos crentes e eleitos, para mandar ao inferno os
ímpios e os diabos. Reprova-se, então, os anabatistas, com sua posição de que os diabos e os condenados
não terão uma pena eterna. Em termos análogos sustenta a igreja reformada na Confissão Helvética, em
seu artigo XI e o Catecismo de Heidelberg, na questão 52.
Somente nos séculos XVII e XVIII essa doutrina será reproposta em ambiente protestante. Passa-
se a crer, então, que no fim haverá o juízo, com o paraíso e o inferno, mas em função do Reino universal.

75
DS 411: “Si quis dicit aut sentit, ad tempus esse daemonun et impiorum supplicium, ejusque finem aliquando futurum, sive
restitutionem et reitegrationem fore daemonun aut impiorum hominum, anathema sit.” [ Se alguém afirmar ou crer que o
suplício dos demônios e dos malvados é temporâneo e que haverá um dia um fim, ou que haverá uma salvação e reintegração
dos demônios e dos malvados, seja anátema.] O Quinto Concílio ecumênico Constantinopolitano, de 553 ratificou este edito
do Imperador Justiniano.
E justamente por isso os tormentos do inferno não serão eternos, mas limitados, como é o éon temporal.
Afirma-se que se é verdade que Deus será tudo em todos, não poderá existir mais nenhum inferno.
A expressão apokatastasis pántòn está em Atos 3,21 e indica a restauração de todas as coisas.
Entende-se aqui a realização das promessas divinas e não uma reconciliação universal. O que não
acontece em Efésios 1,10, quando a recapitulação de tudo em Cristo e a reconciliação de todas as coisas
em Cristo Col 1,20 indicam claramente uma reconciliação universal. A imagem do Pantocrátor expressa
que Cristo governa sobre tudo para entregar o Reino ao Pai, para que Deus seja tudo em todos.
Favorável à tese da reconciliação geral está a experiência da graça que é maior do que o pecado: “
Lá onde abundou o pecado, superabundou a graça” ( Rm 5,20). Em Deus, o amor rende a ira. Nesta
percepção o juízo não pode apresentar um duplo êxito, antes, serve de afirmação universal da justiça
divina, quando todas as coisas serão recriadas. Nela a salvação se manifesta através de uma confiança
ilimitada em Deus. Para quem defende esta tese, o duplo êxito do juízo é rejeitada porque deposita uma
confiança exagerada nas decisões humanas.
Contra a doutrina da reconciliação universal está o fato de que o Deus que restaura e cria direitos,
pretende também salvar os homens através da fé. A humanidade não é arrastada, mas persuadida a entrar
pela porta da salvação. Em Cristo a Trindade se humilha até o ponto de confiar a própria glorificação nas
mãos da humanidade. Deus respeita a liberdade e a decisão humana, sua fé e sua incredulidade, para
depois dar o último juízo, o que cabe a cada um.
Sobre o duplo êxito do juízo testemunham principalmente os textos do evangelho de Mateus:
quando fala-se de fé e de incredulidade. Distinguindo o caminho da vida e o da perdição ( Mt 7,13). Há
também o capítulo 25 ( 31-46) que refere-se ao juízo final que descreve o Filho do Homem proferindo:
“Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos”. Aos da sua
direita, porém, dirá: “Vinde benditos do meu Pai, recebei a recompensa na herança do Reino preparado
para vós desde a fundação do mundo”. A decisão se faz pelo bem praticado em favor dos empobrecidos,
oprimidos e sofredores. Marcos também menciona o inferno e do fogo eterno ( Mc 9, 45.48). Lucas
refere-se ao rico Epulão que é precipitado no inferno e nos tormentos, enquanto o pobre Lázaro é
acolhido no seio de Abraão (Lc 16,23). João identifica a fé com a vida eterna e a incredulidade com a
perdição ( Jo 3,36). Paulo também reconhece a perdição em Fil 3,19; 1 Cor1,18; 2 Cor 2,15.
O restabelecimento de todas as coisas evoca o problema dos diabos e a descida de Cristo aos
infernos. A doutrina cristã tem por pressuposto que na sua paixão e morte Jesus experimentou o
verdadeiro e total inferno dos seus sofrimentos em vistas da reconciliação do mundo e para a danação do
pecado. Baseando-se na descida de Cristo ao inferno, há quem afirme que o Redentor já salvou a todos,
nada será perdido e tudo será restaurado e acolhido no Reino de Deus. Para Lutero, por exemplo, Cristo,
no abandono da cruz, suportou no nosso lugar, por nós e em nosso favor, todos os tormentos do inferno,
da rejeição de Deus e da morte eterna76. Sofrendo no seu próprio corpo a nossa maldição, através de suas
feridas conhecemos a eleição pela graça. O reformador fala de um Cristo que desce aos infernos antes da
morte física sobre a Cruz. Calvino segue na mesma direção 77. Refere-se ao abandono que o Cristo sofre
entre o Getsêmani e o Gólgota como um sofrimento pela eternidade. A oração que não é atendida no
Monte das Oliveiras é vista como preparação às penas do inferno. É o que testemunham o suor e o
sangue que banham a terra. Jesus teria experimentado a dor da geena. O inferno, segundo Lutero, não é
um lugar especial, nem mesmo um mundo subterrâneo, mas uma experiência existencial 78, a experiência
da cólera e da maldição de Deus que se abatem sobre o pecado e sobre a impiedade.
A descida de Cristo aos infernos indica que também no inferno Deus se faz presente ( Cf. Sl
139,8); que Jesus sofreu a experiência de inferno; por isso o inferno e a morte estão superados em Deus.
Nesta linha de pensamento, teólogos como Moltmann identificam a destruição da morte com a destruição
do inferno. Afirma-se que Cristo deixou-se perder para colocar-se à procura dos que estão perdidos afim
76
Cf. M. LUTERO, Tischereden I, 1017.
77
Cf. CALVINO, Inst. II, 16,10.
78
Teólogos evangélicos recentes seguem Lutero e Calvino quando interpretam que o inferno não é um lugar particular,
separado, mas uma experiência existencial. É o caso de K. Barth, P. Althaus, W. Pannenberg e J. Moltmann.
de reconduzi-los à casa do Pai. E quando ele foi libertado do inferno, abriu as portas e derrubou os seus
muros. Declara-se, então, que pela ressurreição de Cristo não existe mais a perdição por toda
eternidade79.
Seguindo a teoria da reconciliação universal, estendida à destruição do inferno, o juízo final é tido
como a posição de Deus sobre a história. Todos os pecados, as maldades, injustiças e violências deste
mundo que mata e sofre, serão condenadas e destruídas porque o juízo de Deus executa o que promete.
No julgamento, todavia, todos os pecadores, os malvados, os violentos, os assassinos e os filhos de
satanás, o diabo e os anjos caídos seriam libertados, salvos de sua corrupção mortal e restituídos na
essência mais verdadeira dos seres que saem das mãos do Criador. Deus, assim, permaneceria fiel a si
mesmo e não consentiria que se perca nada do que fora criado.
2.2 Juízo particular: crise e síntese da Vida
O esquecimento da escatologia no pensamento cristão, conduziu o catolicismo a perceber o
julgamento apenas sob a forma individual, denominado pelos manuais de teologia como “julgamento
particular”. Na Idade Média, entretanto, já Tomás de Aquino questionava-se a respeito da legitimidade
da repetição do julgamento particular no final da história 80. Interpretava-se o julgamento último a partir
do juízo particular, como se fosse a norma.
A parusia significa a evidência universal do senhorio do Crucificado. O juízo final é diferente do
julgamento particular, após a morte. Este segundo verifica as ações de cada pessoa diante da proposta de
Jesus Cristo, e que pode ser resumido nas palavras do místico espanhol São João da Cruz: “No entardecer
da vida, seremos julgados pelo amor”81. O juízo final interessa-se pela história como um todo, uma vez
que revela a todos que a história humana, em sua positividade ou negatividade, é a história do Messias e
de Deus.
C. Duquoc atribui o esquecimento do significado teológico do juízo final, na recente tradição, devido
à importância que se revestiu o individualismo nos séculos precedentes, desde o Renascimento 82. O que
desembocou numa moral individualista, esquecida das dimensões sócio-políticas do ser humano. Ora, a
história não pode ser concebida como a justaposição de ações individuais, pois o processo histórico afeta
a todos os seres humanos e é determinado pela ação e situação de cada pessoa. Essa interligação de
responsabilidades e determinismos, que forma a rede de relações sociais, é também lugar da relação com
Deus. A parusia será o desvelamento da oculta identidade entre a relação com os homens e relação com
Deus, mediante o relacionamento com o seu Messias.
O julgamento consiste na revelação da legitimidade da esperança, implícita na prioridade do amor
ao próximo e à justiça, mais do que à própria existência terrena enclausurada no egoísmo. O julgamento
é atual, porque é na decisão histórica a favor da luz ou das trevas que se dá o veredicto. A parusia revela
a solidez da esperança, mas quem opta pelas trevas já está julgado. A parusia mostra também as
conseqüências mortais para quem opta pelas trevas e verifica a validade da opção feita na história.
Se a parusia traz o julgamento, então no “grande dia” ela faz aparecer a aberração do desprezo
pelo outro, pela justiça e pelo futuro. Ela não é mais apelo à fé , mas é salvação ou perdição 83. É a
parusia que desvela a identidade entre a causa histórica da justiça e do amor ao outro. A parábola do
juízo final em Mateus 25 é o lugar clássico no qual encontra-se afirmada a objetividade do juízo, nos
critérios de Jesus de Nazaré e sua prática de amor a Deus e aos irmãos. Supor que no final tudo será
zerado, sem respeitar a opção daqueles que negam o projeto de Deus, é esvaziar a justiça divina. Ainda
que ninguém seja condenado, resta a possibilidade de condenação como opção livre e consciente para
cada criatura humana.

2.2.1 A possibilidade do inferno


79
J. Moltmann assume a concepção dos Armênios quando afirmavam que o Cristo, mediante a sua paixão destruiu
completamente o inferno. Sabe-se que a Igreja Antiga, entretanto, condenou essa declaração (Cf. DS 1011)
80
Cf. S. Th. III q.59, a .5.
81
S. JOÃO DA CRUZ, Avisos, 59.
82
C. DUQUOC, Op. cit., 283.
83
Posição defendida também por C. DUQUOC, Op. cit., 280s.
O questionamento sobre a pena eterna diversas vezes apareceu na reflexão cristã e não faltou
quem sustentasse que Deus não poderia abandonar alguém no inferno “eternamente”, porque contradiria
à criação, a paternidade e sua misericórdia infinita. Tal concepção afirma que no final de tudo, Deus teria
compaixão até dos demônios e salvaria a todos. Essa visão aproxima-se da teoria espírita e oriental do
“karma”, a qual sustenta que no fim, por mais duras que sejam as reencarnações, tudo chega à perfeição.
O Evangelho realmente nos revela que Deus criou tudo para a salvação e não quer que nada se perca.
E o inferno é, de fato, um escândalo até aos olhos de Deus 84. O inferno, no entanto, não foi criado por
Deus, mas pela decisão das criaturas livres e inteligentes, anjos e homens, que decidem serem diabólicos.
A “possibilidade” de uma condenação eterna revela a grandeza de nossa liberdade, a dignidade e a
seriedade de nossas escolhas. A criatura humana foi feita para ser livre , porque o amor é livre e só o
amor salva. O inferno deve permanecer como a séria possibilidade de recusarmos livremente e
definitivamente o amor de Deus, rejeitando a comunhão trinitária.
Pode ser muito difícil que alguém escolha o inferno, porque a vida neste mundo é tempo de
salvação. Não dá para julgar ninguém, e nem sabemos se há alguém no inferno. Não temos certeza nem
mesmo de Judas. E se alguém quiser sustentar que o inferno está vazio, tem a liberdade para pensar
assim. Entretanto, quando se vê tanta malícia e corrupção, tanta monstruosidade criada com crueldade
sofisticada, é também muito difícil pensar que o inferno esteja vazio85.
Por mais difícil que seja pensar num Deus que permite a frustração eterna da criatura, seria otimismo
cego amenizar o peso e o significado da opções pela cultura da morte que invade estruturas, ideologias e
também pessoas humanas. Sem desejar e nem julgar quem está ou vai ao inferno, é preciso manter, com
a tradição bíblica e apostólica, a possibilidade de uma condenação eterna, pois o tempo do amor e das
opções pela vida são o motivo da existência na história. E sobre aqueles que não podem decidir? Os
deficientes mentais, os maníacos, as multidões de homens e mulheres privados de direitos, de liberdade e
de esperanças. Certamente o critério para a condenação é ser livre, maduro e responsável, não vítima e
nem padecer com as decisões dos outros. São perspectivas diferentes do mesmo julgamento. O juízo,
portanto, não usa senão critérios da misericórdia divina que considera as condições internas e externas de
cada pessoa, na liberdade e responsabilidade de cada uma.

2.3 A unidade entre o particular e o universal


O conteúdo do julgamento é a história real, pois é nessa mesma história empírica que esteve em
jogo a relação com o Ressuscitado e, por isso, com Deus. O veredicto do julgamento não é arbitrário, não
é imprevisto; mas é conforme o Evangelho do Cristo na sua condição de Messias-Servo. A parusia é
assim uma verificação da identidade entre Deus e o homem, iluminada pela verdade do messianismo do
Servo.
Parusia e juízo final da história se relacionam de forma indissociável, bem como a ressurreição
geral dos mortos e a nova criação. As teologias da desmitologização reduziram esta dimensão a uma
categoria da existência. Esvaziaram-na de toda e qualquer possibilidade de caráter fatual, porque
proclamam que não há nenhum “retorno” de Cristo que deva ser esperado neste mundo. Esse “retorno” é
considerado como fruto da fantasia. A redução da parusia a uma categoria existencial retira todo sentido
global da história e nega a sua verificação final no julgamento.
Santo Tomás de Aquino escreve que a forma do julgamento ninguém pode saber com certeza 86. É
somente através de imagens que se proclama que a história tem um sentido e que caminha em direção do
encontro com Deus. Os texto bíblicos afirmam que diante dEle estarão todas as nações da terra ( Lc
21,35), desde o início dos tempos ( Mt 10,15) até os últimos ( Mc 8,38). E não somente os seres
humanos, mas também todas as criaturas manifestarão o juízo e a verdade de si mesmas e de Deus. Tudo
estará aberto, como um livro, onde será possível ler o que está escrito ( Ap 20,12): os pensamentos
ocultos (Lc 6,37), as omissões ( Tg 4,17), cada palavra proferida para a construção ou destruição ( Mt

84
Cf. L.C. SUSIN, Op. cit., 50.
85
Cf. Ibid., 51.
86
S. Th. Suppl., 88,4
12,36), as intenções do coração ( Mt 15,3-9) e especialmente o amor sem limites ( Mt 25,31-46). No
juízo tudo aparecerá no seu sentido último.
No presente as pessoas vivem de encontros e desencontros, estão abertas em busca do sentido da
existência, vivem o tempo do risco e do livre arbítrio para o bem e para o mal. Somente na morte se
realiza a grande síntese da vida, quando no encontro íntimo entre a criatura humana e o seu Criador se
faz a grande decisão, o juízo particular. E no juízo universal se realiza a manifestação universal do que
ocorreu no juízo particular. Este ato público revela o vínculo de cada pessoa com o todo. Há uma
comunhão e mística que nos une a todos e a tudo. Fazemos parte da globalidade da criação que somente
se manifestará como unidade total no Juízo Universal. O juízo particular na morte está em profunda
correlação com o Juízo Universal, pois cada ser humano, embora síntese do todo, é um momento de um
processo universal que o transcende. Ele é parte da história de toda a criação. Melhor que identificar dois
julgamentos, seria pensar num único juízo com momentos escatológicos diferenciados: o particular e o
universal; com critérios, porém, comuns: a participação de toda criação na glória de Deus.
A idéia do único juízo com dimensões particulares e universais, leva-nos a afirmar que aqueles
que estão em Cristo, os eleitos, mesmo que estejam pessoalmente felizes, ainda não estão plenificados
enquanto a terra não chegar ao seu acabamento. Os que vivem nos “céus”, por isso, estão em comunhão
com os que habitam na terra, através da solidariedade e da intercessão; até a parusia e a glória plena.

3. A nova criação: espaço da parusia

Para integrar a categoria “espaço” na reflexão sobre a parusia, é importante precisar a linguagem.
Isto se faz distinguindo espaço geométrico de espaço ecológico. A moderna separação cartesiana de um
sujeito espiritual sem corpo e um mundo de corpos estendidos no espaço geométrico é estranha à tradição
bíblica. A percepção cartesiana reduz as coisas, independente de serem pedra, animal ou planta, à
estruturas geométricas significadas pelos seus valores de uso. Na concepção ecológica, parte-se do
pressuposto de que espaço é ante de tudo “ambiente vital”. Esse será o conceito que utilizaremos nessa
reflexão.

3.1 Ceús e terra da parusia


A etimologia hebraica designa céu como o que é alto, e terra como o que é baixo. Nas tradições
bíblicas, céu significa a região do ar para as nuvens e para os animais alados. O espaço é dividido em
céu, terra e mar. Pode-se distinguir também o céu no sentido simbólico, como sendo o mundo dos anjos,
mundo invisível e lugar da glória de Deus.
O céu como lugar da glória pode ser expresso tanto no singular, quanto no plural: “Eis que do Senhor
teu Deus são o céu, o céu dos anjos, a terra e tudo o que nela existe” ( Dt 10,14). O céu dos céus reúne o
plural aberto das regiões invisíveis e desconhecidas da criação. Paulo menciona um terceiro céu ( 2 Cor
12,2). Não sabemos se ele fala do céu do anjos, no além, do ar ou do céu das estrelas. Influenciados pelo
judaísmo, alguns Santos Padres referiam-se aos sete céus. Essa multiplicidade de falar do céu revela de
forma objetiva a impossibilidade de determinar exatamente o que seja essa região da criação na
linguagem humana. Diferente da terra, que é sempre referida no singular, confiada e conhecida pelo ser
humano.
Na Bíblia, o céu é a morada de Deus. Ele age na terra a partir do céu, onde seu nome é santificado, sua
vontade é realizada e seu Reino é preparado. Por mais estranho que possa parecer, é preciso assumir o
conceito de céu como o meio ambiente que está mais próximo de Deus e lhe corresponde totalmente.
A terra, por sua vez, é a região mais ampla de sua existência, seu meio ambiente indireto. O céu,
porém, não tem natureza divina, ele é uma parte do mundo criado que deve ser diferenciada do
mundo visível. É através dessa diferenciação que o mundo visível pode ser compreendido como
criação, o qual existe a partir de Deus. Quem mora no céu é o Criador que virá morar em toda sua
criação. A imanência de Deus no mundo torna-o excêntrico, isto é, sua centralidade está fora de si,
transcende-o; por isso a esperança escatológica se orienta pela expectativa de que o Reino do céu
venha sobre a terra e que a glória de Deus resplandeça na esfera visível da criação: a terra. “ Assim na
terra, como no céu”.
Com o termo terra pensa-se no espaço de vida das pessoas e dos animais terrestres, em oposição ao
espaço do ar e do mar. É o espaço visível da criação em oposição ao céu, ao mundo invisível. A terra é
simbolicamente a parte da criação na qual Deus ainda não tomou moradia. Esse simbolismo implica que
a terra não seja compreendida apenas como este planeta, mas também todo mundo material e visível ao
qual a terra pertence87.
Sobre a relação entre o céu e a terra, é preciso romper com o dualismo. Se vemos a relação do
Criador com a criatura, percebemos a analogia que deve resplandecer entre céu e terra. O céu é sempre
descrito nas tradições bíblicas como o lugar onde Deus está, a partir de onde ele age e para onde se
dirigem a oração e o louvor. Em correspondência, o amor de Deus se endereça claramente à terra e ao
mundo, no qual as pessoas existem.
Outra relação se faz necessário: entre céu e Reino de Deus. Pode-se considerar o céu como o
ambiente da presença de Deus, mas ainda não é o palco do Reino da glória, porque este último supõe
também a outra esfera da criação: a terra. Mais, o Reino implica num novo céu e numa nova terra, que se
relacionam de uma forma atualmente desconhecidas. O Reino deve ser concebido a partir da integração
entre céu e terra. O céu é a dimensão atual que aguarda a comunhão plena com a terra na glória da
parusia. Então Deus reinará absolutamente sobre toda criação e céu e terra, unidos, formarão o habitat de
Deus. No Reino, a diferença entre céu e terra não é abolida e nem funde-se os dois espaços vitais num
terceiro ambiente. A terra não se torna celeste e nem o céu se torna terrestre, mas ambos deverão se
comunicar de uma maneira nova e ilimitada88.

3.2 A shekiná, Tenda da presença


A Bíblia e os credos cristãos têm como premissa espacial para a parusia de Cristo, o céu. À
ascensão de Jesus ao céu, corresponde à vinda do céu. O conceito de espaço, entretanto, precisa
especificar essa categoria do lugar da parusia. Se a mediação temporal referia-se a um novo conceito de
tempo, que não o chronos, mas o éon da parusia, na mediação espacial pede um aprofundamento de
conceitos.
Na teologia do Filho do Homem afirma-se que a vinda do Cristo no fim dos tempos procede do
céu. A imagem recorda o Filho do Homem que vem sobre as nuvens do céu, com poder, honra e força.
Ele vem de cima, do próprio Deus, do céu. Os evangelistas afirmam que ele virá na glória do seu Pai
( Mc 8,38). O que pressupõe que ele estava anteriormente sentado à direita do Poder ( Mc 14,62).
Afirmar que “Cristo vem do céu” significa expressar simbolicamente a sua procedência de Deus,
mas também indica o espaço que está em contraposição ao mundo visível. Por isso se diz que ele virá
com os anjos ( Mc 13,27), que ele enviará aos quatro ventos para reunir os eleitos. Não se pensa no
firmamento visível dos astros, mas no círculo das possibilidades e forças criativas de Deus, onde ele
habita e por isso o céu já tem parte na sua eternidade.
A expressão “nuvens do céu”, nas quais vem o Filho do Homem, é uma alusão à revelação da
glória de Deus ( Cf. Ex 16,10) e à indicação de sua presença ( Ex 13,21 e Ap 10,1). Não refere-se ao céu
físico. O espaço da parusia não pode ser apenas o céu. É preciso um recurso de linguagem que expresse
melhor a morada de Deus com suas criaturas, a comunhão de céu e terra, a nova relação que se
estabelece entre tempo e espaço.
Utilizando um simbolismo adotado por Moltmann, é possível encontrar um “espaço” que retrate
nos limites da linguagem o que seria o lugar da parusia: trata-se da shekiná. Esta categoria é extraída da
doutrina rabínica e cabalística que afirma a presença de Deus nas pessoas e sua morada entre elas. Ela
remonta a idéia do Deus que abandona a sua concentração, distende-se e produz uma habitação fora de si
87
É o que professa a fé da Igreja afirmando que Deus é o Criador das coisas “visíveis e invisíveis”, conforme reza o Credo
apostólico, o Niceno-constantinopolitano, e no Credo Quicumque.
88
Sobre essa distinção Cf. J. MOLTMANN, Deus na Criação, 266s.
que tornar-se-á também sua morada com as criaturas. Esse contrair-se de Deus num espaço terreno não
significa a atenuação de sua presença universal89.
Através da shekiná Deus está presente em Israel, sofre com o povo a perseguição, é peregrino
com os hebreus e prisioneiro no exílio, bem como é solidário na morte de seus mártires. A shekiná mora
no jardim do Éden, mas depois do primeiro pecado se distancia da humanidade. No tempo compreendido
entre Abraão e Moisés, ela retorna gradativamente sobre Israel e lhe salva da escravidão do Egito:
aparece para Moisés sobre a sarça ardente, faz o povo atravessar o mar de juncos, pousa sobre a arca da
aliança e estabelece sua morada no templo de Sião. Depois da destruição do templo de Salomão em 587,
ela retorna ao céu e acompanha o povo no exílio. A recordação da destruição da cidade de Deus, do
templo e do palácio real pelos babilônicos, se transforma na esperança de que Deus retornará, em glória,
sobre o templo futuro, para habitar para sempre no meio dos israelitas. Isto é o que descreve o profeta
Ezequiel nos capítulos 40 a 48. A revelação da glória de Deus nos últimos tempos está ligada ao retorno
definitivo da shekiná. A habitação escatológica de Deus no novo céu e na nova terra é a presença de
Deus no espaço de suas criaturas. O que acompanhou Israel na libertação da escravidão do Egito e que
depois encontrou sobre o Monte Sião de Jerusalém uma morada determinada no tempo, passa a penetrar
os grandes espaços da criação na shekiná.
Moltmann ilustra a teoria da shekiná relacionando-a com a Kenose de Jesus. A cristologia
dogmática procurou explicar a plenitude da divindade que habita em Jesus com termos semelhantes ao da
teologia da contração. Abaixando-se e humilhando-se, o Lógos eterno assumiu a figura de escravo, para
partilhar como irmão ( Fl 2), dos sofrimentos de seus irmãos e assim redimi-los . Para salvaguardar a
imutabilidade de Deus, a cristologia sucessiva substituirá a idéia da kenose pela de assunção da natureza
humana pela parte do Lógos. Segundo Moltmann, ambas cristologias prospectam uma singular
comunhão que se estabelece entre Deus e a natureza humana e a própria história na qual ele vem agora
habitar.
Na reflexão sobre a parusia interessa particularmente a idéia da shekiná como habitação de Deus
no meio de sua criação. Trata-se de uma nova presença de Deus. Ele não é mais apenas o Criador e
Salvador de sua criação, mas também habita com as criaturas. O mundo, o céu e a terra, tornam-se a
morada de Deus. Tudo isso pode ser um sonho ou fantasia se não tiver uma prefiguração que antecipe o
futuro. E é justamente na cristologia que encontra-se a concretização mais absoluta da shekiná: na
Encarnação. Em Cristo está presente o mesmo Deus que reconciliou em si o mundo. O ser humano que
está em Cristo, já é uma nova criatura. Em Cristo encontra-se uma dupla morada: a habitação de Deus e a
habitação dos crentes. Uma dupla habitação que fundamenta a esperança escatológica e universal dos
cristãos na nova criação de todas as coisas. Em Jesus a shekiná adquire traços totalmente distintos da
doutrina rabínica90. Jesus é Deus que habitou entre nós, o Verbo feito carne ( Jo 1, 13). Na escatologia
cristã esta habitação de Deus com seu povo não é fixa num lugar e num tempo, ela tem uma
transversalidade e singularidade como foi o evento Cristo para toda história e cosmos. A nova Jerusalém
desce do céu, advém com o Cristo e o céu e a terra se comunicam de forma ainda não conhecida.
Como no início o Criador fez da criação a própria morada, no fim, a nova criação torna-se sua
morada. Há uma interação nos modos de habitar: o mundo em Deus e Deus no mundo. Isto não implica
que o mundo desapareça em Deus num panteísmo, nem que Deus se dissolva no mundo, num ateísmo.
Na recíproca habitação, Deus e o mundo permanecem inconfundíveis e inseparáveis, dado que Deus
habita na criação de maneira divina e o mundo habita em Deus de forma mundana.

89
Essa idéias remontam ao pensamento de Franz Rosenzweig: “ Entre o Deus de nossos pais e o resto de Israel, a mística faz
ponte com a doutrina da shekiná. O abaixar-se de Deus ao homem e o habitar de Deus no meio dos homens, vem figurada
como uma divisão que se realiza no próprio Deus. Deus se divide em si, se dá ao povo, padece seus sofrimentos e com isso
aceita a miséria dos países estrangeiros, e peregrina com Israel em suas peregrinações. (...) Deus mesmo – como seria muito
natural para o ‘Deus de nossos pais” – se vende a Israel e sofre a sua mesma sorte, para o qual se torna também carente de
redenção. A relação entre Deus e o resto, neste sofrimento, vai além de si mesmo”. F. ROSENSWEIG, Der Stern der
Erlösung III, 129s.
90
Cf. J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 335-336.
Da auto-humilhação divina fala-se também tratando das inabitações históricas do Espírito. Na
experiência do Espírito Santo, experimenta-se uma nova presença de Deus. Ele habita o ser humano.
Esta morada é compreendida como a shekiná de Deus. Antes do Espírito de Jesus ser efundido sobre a
terra, a presença de Deus vinha experimentada somente no templo, na liturgia e no dia do Senhor. Agora,
a própria humanidade, o corpo humano torna-se templo do Espírito Santo; a shekiná por excelência. Na
parusia, enfim, o novo céu e a nova terra tornar-se-ão templo e morada de Deus. O mundo inteiro será a
pátria de Deus. Pela inabitação do Espírito, o ser humano e a comunidade cristã são transfigurados no
corpo de Cristo.

3.4 Shekiná e Sabbat: futuro e presente da parusia


Se assumimos a shekiná, enquanto tenda da Presença e o Sabbath, enquanto “tempo” da
comunhão plena do Criador com as criaturas, como símbolos escatológicos, podemos afirmar que ambos
se relacionam profundamente. O sábado ou domingo da semana é a shekiná de Deus que ainda não
chegou na pátria futura. A shekiná escatológica é o sábado que chegou à sua realização nos espaços do
mundo. Sabbath e Shekiná se relacionam como promessa e realização, início e atuação plena.
A unidade entre sabbath e shekiná se dá na imagem do Deus que mergulha no sábado da criação,
procurando seu repouso. Este descanso não é compreendido negativamente, como fim da inquietude
criadora e histórica de Deus, mas sim como a felicidade eterna e a paz que não conhece fim 91. No Salmo
132, nos versículos 13 e 14 pode-se intuir melhor essa relação: “Porque Javé escolheu Sião, e a desejou
como residência própria: Ela é minha mansão para sempre, aí vou habitar, pois eu a desejei”.
É possível representar a presença de Deus em diversos modos: como o lugar da glória, o local
onde Deus pretende fazer morar o seu nome, como a base de apoio para o seu trono que está no céu. A
morada de Deus em Sião não tem um caráter exclusivo. Na recordação da arca peregrina, a morada de
Deus vem localizada no meio dos israelitas ( Ez 43,7) e assim Israel percebe a presença da shekiná até no
exílio. Esta convicção influencia posteriormente sobretudo o modo de santificar o sabbath. Com a
destruição do templo de Jerusalém, os filhos de Israel passam a considerar o sábado como o edifício que
se ergue no tempo. A presença espacial de Deus torna-se uma presença temporal e o sabbath do tempo
abre-se para a shekiná do final dos tempo.
O Novo Testamento também enquadra-se no contexto dessa expectativa sabática sobre uma futura
shekiná que preencherá céu e terra. Paulo vê a plenitude dos tempos na missão do Filho ( Gl 4,4-5). João
descreve o mesmo acontecimento como o Verbo que se fez carne e veio habitar entre nós ( Jo 1,14). A
morada eterna do Logos em nossa carne significa a realização dos tempos e vice-versa: os tempos se
cumprem quando a shekiná de Deus se afirma definitivamente. Lucas descreve a primeira pregação de
Jesus no sábado messiânico, quando se dá o cumprimento das Escrituras, o ano da Graça e da libertação (
Lc 4,18ss). É por isso que Jesus convidará os cansados e oprimidos para confortá-los, isto é, para torná-
los partícipes da shekiná e do sabbath. Para a comunidade pascal, Deus já habita neste mundo de
impiedade na figura do Crucificado. E, através do Ressuscitado, mediante o Espírito, ele já antecipa a
nova criação da shekiná universal.
Quando sabbath e shekiná estabelecerem a inabitação de Deus, no mundo cessará para as
criaturas o tempo (chronos) da distância de Deus e da caducidade e iniciará a vida eterna. Extinguirá
também o espaço ( tópos) da distância de Deus e iniciará a presença eterna na onipresença de Deus.
Então a eternidade da inabitação de Deus concederá às criaturas, para sempre, um espaço que não
conhece mais aflição.

4. Fim ou transfiguração do Mundo


Uma reflexão sobre a parusia não pode eximir-se de enfrentar o problema da esperança num
mundo em crise. Dentre os grandes desafios da escatologia atual emerge a necessidade de dar uma
resposta às constantes pregações sobre o final do mundo. Vimos, no início deste estudo, como a idéia a
91
Cf. J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 293.
idéia do fim fascina e afeta a expectativa de homens e mulheres em todos os tempos. Analisemos
diferentes tradições que tentaram dar uma explicação sobre o destino final da terra.
Uma primeira tradição remonta à ortodoxia luterana que afirma a idéia da aniquilação e
destruição de tudo. Ensina-se que ao último juízo, segue o fim total deste mundo. Com exceção dos
anjos e dos seres humanos, tudo será consumado e se dissolverá no nada. Nesta posição, não espera-se
uma transformação, mas o fim das substâncias que este contém92. Baseando-se em 2 Pe 3,12, sustenta-se
que os anjos beatos e as pessoas crentes são totalmente absorvidas na visão beatífica de Deus. Os
teólogos luteranos do século XVII não pensavam apenas na passagem desta idade do mundo, mas
também na destruição do mundo conhecido. O mundo foi criado como céu e terra, mas somente
permanecerão o paraíso dos remidos e o inferno dos condenados. A terra deixará de existir.
O limite dessa interpretação está no fato de que a figura de um mundo destinado a desaparecer
contrasta com a vontade de Deus que contempla a sua criação e vê que tudo é muito bom. Se a salvação
consiste apenas na visão beatífica de Deus e interessa-se somente por uma alma sem corpo, então
desaparece totalmente a idéia da ressurreição da carne.
Outra percepção é defendida pela teologia reformada do século XVII que proclamava a fidelidade
que continuamente Deus demonstra nos confrontos do criado e da sua lei, para a qual não poderia admitir
uma destruição, mas apenas uma transformação93. Será o tempo no qual o Crucificado se manifestará
como o justo a respeito do mundo inteiro e o Reino de Deus assumirá uma figura gloriosa. A nova
intervenção do Criador interessará aos mortos porque toda alma será reunida ao corpo no qual viveu
sobre a terra. Para a tradição reformada esta unidade do “novo” e do “idêntico” exprime o sentido da
transformação do mundo e não o conceito de reforma do mundo. A destruição do mundo, porém, está
implícita nessa transformação, enquanto a recriação do céu e da terra pressupõe a destruição do estado no
qual o mundo existe atualmente.
A crítica a essa versão paira sobre o sentido da fidelidade de Deus. Na opinião de J. Moltmann, a
fidelidade de Deus para com o mundo por ele criado, não pode limitar a sua liberdade de levar a
cumprimento pleno a obra de suas mãos, de fazer da criação temporal, uma criação eterna, e modificar
deste modo a própria existência do criado94. Enfim, não se compreende até que ponto as transformações
nos tempos escatológicos mudam a realidade mundana em profundidade, modificam as condições
transcendentais próprias do mundo e as bases sobre o qual isso acontece.
Da tradição oriental das igrejas ortodoxas emerge a doutrina da redenção física, que a igreja
antiga dilata até incluir todo o cosmos. Remonta-se à Santo Atanásio na sua expressão: “Deus se fez
homem para que nós homens fossemos divinizados” 95. A divinização humana estende-se até o cosmos
graças ao fato da teologia ortodoxa não distinguir entre natureza e pessoa. Cada pessoa é vista como uma
hipóstase de toda natureza cósmica, vinculada com as outras criaturas. Disso, decorre que a natureza
cósmica é comum a todas as pessoas humanas e as hipóstases humanas existem em comunhão com todas
as demais criaturas. Da unidade entre pessoa e natureza segue que a natureza é redimida quando a pessoa
é redimida, transfigurada e divinizada. A chave da união hipostática entre pessoa e natureza é o corpo
humano. Se a imagem de Deus foi criada não somente na alma, mas também no corpo, então a salvação
comportará a transfiguração corporal.
O limite desse pensamento é considerar a divinização do cosmos num sentido demais
espiritualizado, que não dá lugar para uma nova criação do céu e da terra. Acentua muito mais a
divinização do que uma nova relação que a parusia trará.
Na linha dos profetas de Israel encontra-se a interpretação escatológica do ecofeminismo 96. Este
tem o interesse de calar uma escatologia especulativa, muito elevada e acusada de machista. Defende-se,
92
Cf. H. SCHIMID, Die Dogmatik der evangelisch – lutherischen Kirche, dargestellt und aus den Quellen belegt, Gütersloh,
1983, 407.
93
Cf. H. HEPPE – E. BIZER, Die Dogmatik der evangelisch – reformierten Kirche, Locus XXVIII: De glorificatione,
Neukirchen, 1958, 557ss.
94
J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 299.
95
ATANÁSIO, De Incarnatione, 54.
96
Cf. RUETHER, R. Sexismus un die Rede von Gott. Schritte zu einer anderen Theologie, Gütersloh, 1985.
então, que a terra é boa, como bom é o processo de vida e morte. Deveríamos, portanto, retomar a
doutrina da morte natural e considerar a lei da vida como boa e justa. Ensina-se que a existência
individual um dia acabará por dissolver-se na matriz cósmica da matéria-energia, em novos centros
individuais. Esta matriz da vida está destinada a durar eternamente e constitui a base do vir e do devir
próprio do ser individualizado e dos mundos planetários.
O que no Novo Testamento é esperança escatológica, no ecofeminismo torna-se onipresença
panteística. A matriz da vida é destinada a durar eternamente; não aceita-se a destruição do mundo ou o
fim do planeta. Afirma-se que a vida individual é mortal, diversa é a vida coletiva, imortal. Neste hino
de louvor à terra boa, não se adverte sobre a fragilidade e as possibilidades destrutivas do planeta.
Descarta, principalmente, a necessidade da redenção. Não é possível idolatrar a terra a ponto de deificá-
la. Não pode-se pensar que a terra, criatura viva e geradora de vida, venha a torna-se a deusa Gaia97.
O profundo respeito pela terra não significa valorizar o processo vida-morte pensando que se
continua a viver nos vermes e nas plantas que poderão derivar do nosso corpo orgânico. Trata-se, antes,
de viver na esperança do dia no qual a terra se abrirá e os mortos ressurgirão. Com eles, a própria terra
será ressuscitada na nova criação. A idéia de ressurgir desta própria matéria priva a esperança para a terra
e não permite uma expectativa de ressurreição unida à criação visível.
Num balanço conclusivo das posições acima sobre o final do mundo, pode-se encontrar sérios
limites teológicos. A doutrina luterana da destruição parece pressupor uma teologia da cruz demais
unilateral. A reflexão ortodoxa da divinização unilateraliza, por sua vez, a teologia da ressurreição. A
teoria da transformação do mundo da tradição reformada poderia ser a ponte entre as duas primeiras, mas
não conseguiu tocar nem a profundidade da teologia luterana da cruz e nem o vértice da teologia
ortodoxa da divinização. A mais recente teoria da Terra Boa carece dos fundamentos escatológicos e cai
facilmente no panteísmo.
Uma alternativa para o impasse pode ser o pensamento de Johan Tobias Beck ( 1804-1878) que
concebeu o novo mundo dos tempos escatológicos como uma nova organização mundana que não
conhecerá mais contradições derivantes do pecado e nem as conseqüências da morte, onde se imporá
uma nova ordem de escolha, inspirada na justiça 98. Afirma-se que o fim pressupõe a realização do início
e não sua destruição. A nova totalidade orgânica unifica céu e terra, divino e humano. A presença de
Deus se realiza na plenitude da comunhão com a humanidade.
Beck descreve o novo organismo mundial recorrendo ao conceito de pericórese recíproca: os
seres humanos tornam-se templo de Deus e este torna-se o seu templo. Há aqui uma profunda
compenetração, como ocorre em Cristo na doutrina das duas naturezas. A esfera terrena do mundo não é
separada da celeste, mas torna-se o próprio paraíso, porque é permeada pela mesma vida divina e pela
sua excelsa potência. Neste caminho, segue J. Moltmann com a doutrina da shekiná que prevê a unidade
entre céu e terra sem destruição, mas recriação 99. Ele supõe que o Reino da glória comporta tempo e
história, futuro e possibilidade, sem quaisquer limitação e ambivalência. Prefere falar de tempo eterno do
que eternidade atemporal e início da história eterna de Deus, da pessoa e da natureza, do que fim da
história100. Evidente que falta precisão nesses conceitos e suas conseqüências para a escatologia, mas de
Moltmann adotamos a idéia de que o mundo não será destruído. A plenificação da criação e da história
da promessa de Deus representam o fim deste mundo corrompido pelo pecado e pela morte, pela
injustiça e pela violência. Rejeita-se a interpretação apocalíptica da destruição do mundo.
A transformação para a glória ocorre na parusia diacronicamente a toda criação desde o primeiro
até o último dia. Ela não é algo que acontece depois deste mundo, mas algo que acontece com este
mundo. A vivência das criaturas pelas gerações é redimida e transformada em alegria eterna. Nessa
mesma direção pensa I. Ellacuría, sustentando que a nova criação não é a criação de um novo mundo fora

97
Tese defendida pelo astrofísico agnóstico JAMES LOVELOCH, Gaya – a New Look at Life on Earth, Oxford, 1979.
98
Cf. J.T. BECK, Die Vollendung des Reiches Gottes. Separatabdruck aus der Christlichen Glaubenslehre, Gütersloh, 1887,
95ss.
99
Cf. J. MOLTMANN, Das Kommen Gottes, 306.
100
Cf. J. MOLTMANN, Deus na Criação, 307.
da história, mas é a cristificação da natureza e da história. É o advento do Reino de Deus que
transformará este mundo, tornando possível a vida, incluso os mortos101.
Para a reflexão sobre a parusia, isso implica dizer que o Dia da vinda do Senhor é um “dia” e não
uma noite. Nesse simbolismo cósmico há um sinal de vida e de esperança, pois tudo não termina num
eclipse de Deus, num fim do mundo que acaba em nada, como tantas vezes proclamaram grupos
fanáticos apocalípticos. O dia da vinda será um dia sem noite, dia da luz eterna, dia da nova criação. “O
tempo criado na alternação entre dia e noite acabará para dar lugar apenas à aurora da eternidade”102.
O dia da parusia cairá no tempo, por isso será chamado de dia “dia derradeiro”. O que vai
determiná-lo será o que nele acontecer: a vinda do Senhor na glória. Com ela interrompe-se a
transitoriedade do tempo e determina-se o seu final. É muito mais do que um dia do calendário: é o dia
de todos os dias, porque iluminará todos os outros dias da história que passa: os vivos o verão como
“transformação” de tudo, e os mortos, como “ressuscitação”. Para que em tudo haja a “transfiguração” da
glória divina. Não pode ser considerado um dia na seqüência dos demais dias, mas um dia que encontra-
se transversalmente em todos os dias e em todos os tempos. Ele não acontece apenas em frente, mas
também de cima; não apenas no tempo, mas também em relação a ele103.

101
Cf. I. ELLACURÍA, Mysterium Liberationis I, 424.
102
Cf. J. MOLTMANN, O Caminho de Jesus Cristo,433.
103
Aqui entende-se a categoria tempo a partir das distinções feitas anteriormente entre chronos e kairós. O momento
escatológico tem dois aspectos: Deus restringe sua glória e a criação entra no reino. No fim do tempo, Deus recebe suas
criaturas no reino. Assim, o último momento passa a ser o momento escatológico. O dia derradeiro conduz para o eterno dia
da nova criação. Não se trata de uma eternidade essencial, mas de uma eternidade compartilhada que consiste na participação
da eternidade essencial de Deus.

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