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A MÚSICA NA UMBANDA: NOTAS SOBRE A ARTESANIA NA CONSTRUÇÃO


DE SABERES E POTÊNCIAS SOCIOPEDAGÓGICAS

Fernanda de Abreu da Silva1

RESUMO

Este texto consiste numa discussão introdutória, que tem como objetivo demonstrar o
papel que a música ocupa no contexto da religião afro-brasileira de Umbanda, assim
como sua dimensão pedagógica. O método mobilizado foi a observação participante,
baseada na vivência da autora enquanto nativa do campo e no diálogo com alguns
dos membros do terreiro estudado, a partir de entrevistas informais. O material
utilizado consiste na descrição etnográfica de um ritual e na transcrição do discurso
nativo acerca de sua própria vivência musical-religiosa. Os resultados revelam que a
função específica da música na religião umbandista pode ser utilizada dentro e fora
do ritual religioso e, através dela. significantes e significados culturais são
compartilhados coletivamente, apresentando em si também uma potência pedagógica
e de cunho sociológico.

Palavras-chave: Religiões Afro-brasileiras; Umbanda; Música; Etnomusicologia.

INTRODUÇÃO

A umbanda é uma religião afro-brasileira que surgiu e se popularizou na


primeira metade do século XX, no Rio de Janeiro. Pode ser pensada como o resultado
de um duplo movimento: de um lado, apropria-se de elementos já existentes em cultos
e ritos do candomblé, de outro, os reinterpreta dentro da lógica do espiritismo
kardecista (MAGNANI, 1986). Se o leitor visitar um ilê2 de candomblé durante uma
saída de santo, poderá observar que durante o transe ritual há a possessão do filho-

1 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Contato:


fer_abreu_silva@hotmail.com
2 Termo utilizado no candomblé como sinônimo de terreiro ou casa.

Edição Nº. 10, Vol. 1, jan./dez. 2020. Inserida em: http://www.uel.br/revistas/lenpes-pibid/


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de-santo pelo orixá, entendido como um herói divinizado que recria um tempo mítico
da mãe África, descendo em terra com sua dança e espalhando sua energia: o asè 3.
Já os espíritos que descem nas sessões kardecistas são individualizados e
reconhecidos pela história de suas vidas passadas, enquanto as entidades
umbandistas constituem categorias mais genéricas, onde a referência à vida pessoal
é substituída por um estereótipo, um arquétipo, como por exemplo, caboclos e pretos-
velhos.
Magnani (1986, p. 31), expõe de maneira sintética as diferenças entre essas
três religiões no que diz respeito ao caráter do transe:

[...] no candomblé, ele é regulado por um conjunto de mitos que


contam as peripécias dos deuses e que os iniciados repetem, através
da coreografia, cânticos e roupas; as possessões individuais se
complementam, atualizando, para a comunidade reunida, uma história
muito antiga, mítica. No espiritismo kardecista os médiuns emprestam
seu corpo, sua voz, sua matéria, enfim, para que os despojados do
invólucro físico possam continuar comunicando-se com os parentes,
amigos, discípulos. Na umbanda o transe não é nem estritamente
individual nem propriamente representação mítica, mas a atualização
de fragmentos de uma história mais recente através de personagens
tais como foram conservados na memória popular (MAGNANI, 1986,
p. 31).

Tratando-se do transe nos rituais (ou giras, como são chamados pelos
nativos) na umbanda, este possui como função principal a prestação de atendimento
direto aos frequentadores do terreiro, através de conversas, conselhos e passes
dados pelas entidades incorporadas4 nos médiuns ou cavalos. Estes últimos possuem
a sensibilidade necessária para estabelecer uma espécie de ponte entre o mundo
espiritual e o mundo físico, que se fortalece no momento do ritual.
Assim como no candomblé, um elemento que se destaca nos rituais é a
música, executada através dos atabaques (tambores), da voz dos participantes e de
outros instrumentos a depender de cada casa. Utilizo a definição de música elaborada

3 Termo yorubá, também escrito como “axé”, representa uma força mágica, universal e sagrada, que
assegura a existência dinâmica do mundo e dos seres.
4 Na bibliografia existente sobre a temática do transe nas religiões afrobrasileiras, é comum encontrar

o uso do termo “possessão” relacionado ao candomblé e também à umbanda, esta última, em


literaturas mais antigas. Entretanto, há um consenso no campo umbandista mais contemporâneo no
que diz respeito ao uso da categoria “incorporação”, visando demarcar a concepção de que os médiuns
podem escolher “se entregar” ao transe ou não, a depender de sua vontade, e mantendo-se em estado
de transe ainda de maneira consciente ou semiconsciente.
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por Seeger (2008, p. 239), entendendo-a enquanto “um sistema de comunicação que
envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se
comunicam com outros membros”.
De acordo com as categorias nativas, o grupo responsável por essa execução
é chamado de curimba, e as músicas executadas no contexto umbandista são
chamadas de pontos cantados. Dessa forma, este artigo pretende pôr em prática uma
das tarefas da musicologia: discutir como as pessoas produzem sentido da música,
neste caso, no contexto religioso umbandista e como ela pode servir como mediadora
de um processo de ensino e aprendizagem.
Blacking (2007, p. 204) afirma que “toda performance musical é, num sistema
de interação social, um evento padronizado cujo significado não pode ser entendido
ou analisado isoladamente dos outros eventos no sistema”. Nesse sentido, para
discussão dessas questões, parto de uma descrição etnográfica realizada em 2019
de um ritual no terreiro londrinense Quintal de Aruanda, o qual acompanho enquanto
filha da casa e pesquisadora da cosmologia afro-brasileira, para em seguida trazer
diferentes percepções que as pessoas têm da música e da experiência musical
enquanto potência dentro e fora do terreiro.

O RITUAL

Comumente quando se pensa em um ambiente religioso, não é o som que


vêm primeiro à mente, e sim o silêncio. Os membros do Quintal costumam brincar que
a casa parece uma feira: antes do início dos trabalhos todos conversam, andam de
um lado para o outro buscando e ajeitando materiais de trabalho, ensaiam os pontos
mais uma vez antes do início da gira. As 19h55 Elisa, mãe-de-santo da casa, toca um
sino que chama os filhos a se sentarem em roda e começarem a entrar em um estado
de concentração. As 20h pai Eduardo saúda os presentes e realiza a leitura de algum
texto de cunho filosófico, realizando uma pequena reflexão após essa leitura.
A partir desse momento, as luzes brancas se apagam e predomina a luz azul,
criando um outro ambiente propício ao trabalho daquela noite: a gira de cura. Os
médiuns se levantam e pai Eduardo guia um exercício de consciência corporal,
alongamento e respiração, preparando o corpo e a mente dos filhos da casa para o
ritual. A isso chama-se “firmar a cabeça”, estar conectado e presente naquele
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momento, algo que encontra paralelos – e outros nomes – em outros contextos


performativos para além da esfera religiosa.
Todas as terças-feiras, ao iniciar os rituais, o pai de santo profere as seguintes
palavras: “Salve papai Oxalá! Salve o pai Tião e salve o pai Banto! Salve a Umbanda,
e salve todas as religiões! Salve todas as entidades que ajudaram a construir o Quintal
de Aruanda, e salve os filhos do Quintal! Mais uma noite de trabalho, nós pedimos
permissão, força e proteção pra abrir a gira de hoje. Que o trabalho possa ser o mais
profundo possível, e que cada um possa levar tudo aquilo que merece!”. Percebo que
sua entonação é a mesma ao abrir todas as giras, semana após semana, quase como
se cantasse a melodia de uma mesma música, que se repetida, busca uma certa
eficácia simbólica.
Pai Eduardo saúda em voz alta a defumação, prática que consiste na queima
de ervas específicas que ao produzirem fumaça liberam um poder energético
acumulado e limpam o ambiente. O responsável por carregar o defumador espalha
primeiro a fumaça entre os atabaques, já que no contexto ritual esses instrumentos
são entendidos enquanto sagrados, capazes de emanar e direcionar energias.
O grupo da curimba canta os pontos de defumação sob o toque do ijexá, toque
de tambor popular no candomblé, enquanto cada um presente no ambiente é
defumado. Quando um verso é repetido duas vezes, a segunda repetição cabe a todos
os filhos da casa, não estando mais circunscrita somente à curimba a
responsabilidade de cantar.

Eu abro o canto para defumar, eu abro o canto para incensar (2x) / Oi


defuma com arruda e guiné, oi defuma com alecrim e alfazema /
Defuma a casa, defuma filhos de fé, oi defuma com as ervas da jurema
(2x) / Da jurema vieram as ervas, pra defumar, pra defumar (2x) /
Defuma o Quintal de Aruanda, defuma os filhos do congá (2x) /
Defuma aqui, defuma lá, defuma o congá de Oxalá (2x) / No braseiro
de pai Xangô, as ervas da jurema vão queimar (2x) / Defuma
defumador, incensa incensador, para os filhos do congá purificar (2x)5.

5 Todos os pontos cantados citados durante este texto consistem em transcrições diretas e literais da
maneira como são cantados no terreiro em que a pesquisa foi realizada. No contexto das religiões afro-
brasileiras, encontramos uma dificuldade particular em localizarmos as fontes precisas no que diz
respeito à autoria e origem das músicas, uma vez que são religiões de tradição oral. Há ainda a
particularidade de que, em cada terreiro de Umbanda, há a possibilidade do ritual se dar de maneira
diferente. Essa abertura permite também variações musicais principalmente no que diz respeito às
letras dos pontos cantados.
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Na parte do ponto que fala sobre Xangô, orixá associado às pedreiras, o ritmo
se torna um pouco mais pesado e mais lento, ainda que com a mesma sequência de
toques do ijexá. Após esse ponto, é cantada a música mais animada, que fazem os
filhos da casa dançarem e promovem uma interação maior entre a curimba e os outros
filhos da casa:

Estou louvando, estou incensando (2x) / A casa dos meus orixás (2x)
/ Para o mal sair, e a felicidade entrar (2x) / Eu já louvei, eu já incensei
(2x) / A casa dos meus orixás (2x) / Para o mal sair, e a felicidade
entrar (2x).

Após a defumação, a curimba começa a cantar o Hino da Umbanda e todos


acompanham, alguns com os braços erguidos e as mãos elevadas ao céu, de olhos
fechados.

Refletiu a luz divina, com todo o seu esplendor / Vem do reino de


Oxalá, aonde há paz e amor / Luz de refletiu na terra, luz que refletiu
no mar / Luz de veio de Aruanda, para tudo iluminar / A Umbanda é
paz e amor / É um mundo cheio de luz / É a força que nos dá vida / E
à grandeza nos conduz / Avante, filhos de fé! / Com a nossa lei não há
/ Levando ao mundo inteiro, a bandeira de Oxalá (2x).

Após o hino da Umbanda, a curimba saúda o Hino das Sete Linhas e todos
cantam juntos.
Tantas batalhas venci, muitas ainda vou enfrentar / Muitas vezes vou
cair, mas sempre vou levantar! / Meu escudo é minha fé, minha espada
é o orixá! / Tenho meu corpo fechado, nas rezas do jacutá / Quando
eu cai, pai Ogum me levantou / Quando sofri, mãe Oxum me amparou
/ Me vi perdido, Exu veio me guiar / Estava com fome, Oxóssi me
ensinou a caçar / Fui humilhado, e Xangô me defendeu / Fui
perseguido, Oyá em seus ventos me escondeu / Cai doente, Omolú
quem me curou / Estava sujo, Iemanjá quem me banhou / Eu vi a
morte, mas Nanã lhe afastou / Cuidou de mim, e o meu pranto ela
secou / Desesperado, vi minha fé vacilar / Fui renovado nas palavras
de Oxalá / Se eu fosse só não estaria mais aqui! O meu orixá me
ajudou a persistir! Na noite escura, nos caminhos me guiou! E na
Umbanda retribuo seu amor (2x).

Em todos os dias de trabalho na casa, sempre é seguida a ordem de cantar


os pontos de defumação, o hino da umbanda e o hino das sete linhas. Após esses
três, há a flexibilidade de “chamar” a linha de trabalho necessária para aquele dia ou
momento. Com uma aproximação sutil, pai Eduardo avisa a uma das integrantes da
curimba que irão iniciar a gira chamando os caboclos.
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Tambor, tambor, chama quem mora longe! (2x) / A gira é de caboclo,


foi Oxalá quem mandou, segura o coro tambor, que ele vai chegar!
(2x) / A estrela lá no céu brilhou, e a mata escureceu (2x) / Por onde
andam os capangueiros da Jurema, que até agora não apareceu? (2x)
/ Assobia assobia, ele assobiou (2x) / Cadê os caboclos da mata que
ainda não chegou? (2x).

Durante a execução dos pontos cantados alguns médiuns ficam de olhos


fechados, em silêncio, outros continuam cantando até que ocorra a incorporação de
maneira repentina. Os caboclos se manifestam ora batendo no peito, ora bradando,
ora rondando o local da gira como se fizessem algum tipo de proteção ou segurança
do espaço.
Após essa breve descrição do ritual, trago uma investigação sobre como
alguns filhos da casa pensam acerca do que consideram como performance musical,
entendendo essa percepção nativa como chave para compreender a estrutura, o
significado dos símbolos musicais e sua função dentro e fora do espaço do terreiro.

OS PARTICIPANTES

Pergunto à Gabrielle6, responsável por tocar o atabaque e cantar os pontos,


qual a importância do ponto cantando para ela dentro e fora do ritual.

A importância do ponto cantado pra mim dentro da gira é enquanto


homogeneização da energia, porque eu acredito que quando a gente
canta um ponto de forma coletiva, ele tem a potencialidade de
transformar a nossa energia né? De transformar ela de n formas
necessárias ao trabalho, seja pra deixar a energia mais ativa, a energia
mais passiva, pra deixar a energia mais elevada, mais negativada... o
ponto tem essa função dentro da gira, e a gente canta ele na abertura
pra trazer essas energias dos orixás, das entidades, pra que a gente
consiga ter um trabalho mais homogêneo e mais fluído. E fora, pra
mim é importante pra me equilibrar e pra equilibrar o ambiente que eu
to, sempre que eu sinto que eu to um pouco desequilibrada eu canto
ponto em casa e ele funciona como uma oração7 (Relato de Gabrielle,
em 2019).

6Gabrielle, ouvida em 2019, identificada apenas pelo primeiro nome.


7A interlocução com os sujeitos da pesquisa que são nativos do campo se deu através da troca de
mensagens e áudios, tendo como meio eletrônico o aplicativo whatsapp. As falas foram transcritas de
modo literal respeitando a integralidade de cada fala, de acordo com as respostas que foram dadas por
Gabrielle e Pedro.
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Pergunto se a maneira de tocar o atabaque pode mudar de um momento para


outro durante o ritual.

A maneira como eu toco atabaque pode variar de acordo com a


energia que eu to sentindo no momento e que precisa ser passada pro
terreiro. Eu toco de forma mais rápida quando eu sinto que a energia
precisa ser mais rápida, quando eu sinto que precisa ser desagregada
ou desacelerada, eu toco de maneira mais lenta. Aí varia também do
ritmo do ponto, do ponto que eu vou tocar... E também pode variar de
acordo com a minha energia, a energia que eu to. Se eu estiver
desequilibrada não vou conseguir tocar direito (Relato de Gabrielle, em
2019).

Quanto à ordem das músicas, Gabrielle diz que;

Os pontos têm uma ordem mais ou menos dada [...] nos pontos de
Iansã, por exemplo, eu gosto de puxar primeiro um ponto lento, depois
um mais rápido, depois um mais lento, porque geralmente é uma
energia muito rápida, aí a energia precisa voltar a acalmar. Mas não
existe uma regra, vai do momento. (Relato de Gabrielle, em 2019).

Por fim, pergunto se há uma preocupação em cantar no tom, de maneira


afinada, ou não errar os toques no atabaque.

Ao meu ver não existe uma necessidade de ser afinado, ou não errar
os toques. Acho que deve haver uma coisa homogênea, no sentido de
tá todo mundo na mesma sintonia e cantando do mesmo jeito, mas a
gente não tá ali pra fazer show, [...] a gente tá ali pra cantar pros filhos
da casa, pras entidades e pros orixás, então há uma necessidade de
se fazer com amor e muito respeito, não de ser bom, acho que isso é
uma consequência, não um objetivo, sabe? Então não há essa
cobrança de cantar bem, cantar afinado (Relato de Gabrielle, em
2019).

Pergunto à Pedro8, médium de incorporação no terreiro, como é para ele


quando a curimba começa a tocar, quais seus pensamentos e sensações nesse
momento.
Esse momento eu relaciono bastante com a firmeza de cabeça que a
gente precisa ter pra gira, apesar de que o trabalho começa quando a
gente chega no terreiro... pra mim é como se fosse um interruptor que
é apertado, pra eu me desligar das minhas questões pessoais e
externas, e quando a curimba começa a tocar é o momento que eu
busco maior concentração e vou me deixando levar pelo toque, pelo
canto... e a sensação é de estar me unificando mais com os irmãos da
corrente (Relato de Pedro, em 2019).

8 Pedro, ouvido em 2019, identificado apenas pelo primeiro nome.


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Pergunto também qual a visão que ele tem sobre a função da música na
umbanda.
Eu acho que assim como fora da umbanda, dentro a música pode ter
várias funções, como resgate de origens, de saberes populares,
algumas também contam histórias, ou trazem alguns ensinamentos.
Acho que todas as músicas, todos os pontos cantados chamam
energias superiores, né? E eu vejo por exemplo na abertura da gira,
quando a curimba começa a puxar os pontos, eu sinto um sentimento
de mais unificação entre a corrente mediúnica e o público que vem em
busca do terreiro. Acho que na hora que a gente se coloca pra chamar
o sagrado de alguma forma, não tem muita separação entre quem é
de dentro e quem é de fora (Relato de Pedro, em 2019).

Pergunto ainda se ele costuma ouvir os pontos fora do contexto do ritual, e


por que.
Eu acho que não deve ter um dia que eu passe sem escutar algum
ponto de umbanda, ou então alguma música que faz referência às
tradições de terreiros, porque eu me sinto bem de alguma forma
quando eu escuto, e pra mim é uma outra forma de manifestar a minha
fé. Porque não depende, por exemplo, de ser um dia de gira, de tá
dentro do terreiro... é algo que tenho mais liberdade de fazer isso no
dia a dia. Mas se percebo que to ouvindo por ouvir, sem prestar
atenção, ou que tá tocando e eu to preocupado com outras coisas daí
eu paro, porque não me sinto confortável se não to aproveitando aquilo
como acho que deveria aproveitar (Relato de Pedro, em 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A música na umbanda escapa da tradição europeia que a tudo tenta


padronizar em suas frequências e afinações. É uma lógica outra, intrinsecamente
imbricada com os sentidos dos participantes, tal qual pensou Le Breton (2007) ao
pontuar que o homem experimenta o mundo ao ser atravessado por ele,
atravessamento o qual se dá pelo corpo e pelos sentidos desse corpo, processo e
experiência os quais também produzem sentido ao indivíduo e ao grupo social no qual
se insere. Se o pensamento cartesiano faz ecoar na modernidade a marcante frase
“penso, logo existo”, Le Breton nos convida a experienciar o mundo pela chave do
“sinto, logo existo”, e dessa forma, a musicalidade apresenta-se enquanto uma
potência construtora de sentidos sobre o mundo.

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Se experimentamos e aprendemos sobre o mundo através do corpo,


compartilho da noção de Rufino (2018, p. 86) quando o argumenta que o corpo é

suporte de memórias, saberes, matriz primeira e potência motriz. Essa


consideração está presente na noção de incorporação, conceito que
circunscreve e credibiliza a dimensão dos saberes praticados, partindo
do pressuposto de que todo saber, para se manifestar, necessita de
um suporte físico. Assim, o suporte físico-corpo é, por sua vez, parte
do saber; não há separação entre eles (RUFINO, 2018, p. 86).

Portanto, ao discutirmos o papel da música no ritual umbandista, nos


apoiamos também na ideia de Le Breton (2007) de que as percepções sensoriais – e
neste caso, sobretudo auditivas –, não são estritamente fisiológicas, mas sim
orientadas e modeladas culturalmente, além de serem formadoras de significados.
Nesse caso, ainda que a percepção sensorial seja particular e própria de cada
participante do ritual, os significantes culturais são compartilhados coletivamente. Os
ensinamentos da curimba, por exemplo, são passados na forma da tradição oral tal
como acontece no candomblé, os atabaques são ajustados “de ouvido”, e seu toque
muda de acordo com a necessidade do momento durante o ritual.
Especialmente no que diz respeito aos toques musicais, estes podem se
prolongar, tornarem-se mais lentos, mais rápidos, de acordo com a percepção e
sensibilidade de quem toca. Blacking (2007, p. 201) afirma que “[...] as gravações da
improvisação aparentemente espontânea da música africana revelam uma coerência
da performance, sugerindo que os músicos retêm em suas cabeças tanto a gramática
de um sistema musical como o equivalente de uma partitura”.
Ao que parece, aqueles que executam os pontos cantados seja com a voz ou
com os atabaques, tem em mente uma espécie de roteiro-ritual que ainda assim
apresenta a liberdade de mudanças e improvisos, que visam justamente dar coerência
ao que a cada momento do ritual pede. Cabe à curimba interpretar essas
necessidades que a gramática energética do ambiente comunica. Blacking (2007)
ainda argumenta que;

o que alguns ouvidos escutam como tensões dissonantes, para os


cantores são profundamente concordantes e uma fonte de experiência
transcendental. Mesmo que todas as sociedades humanas
conhecidas possuam aquilo que musicólogos treinados reconhecem
como sendo música, em algumas não há uma palavra para música ou

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existe um conceito de música cujo significado é bem diferente daquele


geralmente associado à palavra “música” (BLACKING, 2007, p. 202).

Isso fica evidente no discurso de Gabrielle, chefe da curimba, ao relatar a não-


preocupação com os possíveis erros na execução ou uma polifonia de vozes “fora do
tom”. O ponto principal é a experiência coletiva no momento do ritual, a participação
dos integrantes enquanto coletivo. A terminologia “música” é substituída por “ponto
cantado”, trazendo consigo outras regras que escapam à lógica ocidental.
As letras dos cânticos contam histórias que integram o enredo do ritual,
ajudando na produção simbólica do ambiente e da experiência de cada um. Para isso,
os performers que executam os pontos cantados guiam a narrativa através da
produção do som, deixando-se afetar por ele e afetando os filhos da casa e os
visitantes, como um canal para as energias espirituais que são manifestadas.
Seeger (2008) traz a ideia de que;

A função da música na sociedade humana [...] em último caso, é


controlar o relacionamento da humanidade com o sobrenatural,
intermediando pessoas e outros seres, e dando suporte à integridade
dos grupos sociais individuais. Isso é feito expressando os valores
centrais relevantes da cultura em formas abstratas… Em cada cultura
a música funcionará para expressar, de uma forma particular, uma
série de valores particulares (SEEGER, 2008, p. 250).

Esse relacionamento da humanidade com o “sobrenatural”, através da


música, fica evidente até mesmo no cotidiano dos filhos de santo, fora do contexto do
terreiro. A música funciona como um meio de acesso ao sobrenatural e ao sagrado
mesmo nos solos considerados profanos, como demonstrou o discurso de Pedro e
Gabrielle sobre o ato de ouvir os pontos cantados fora do terreiro.
Na cosmologia umbandista, tudo que uma pessoa pensa ou sente reflete
diretamente em como a energia dela se manifesta e em como ela capta as energias
que chegam até ela, e nesse caso, tudo o que vibra na mesma energia se conecta.
Nesse sentido, o grupo da curimba realiza também uma função mediúnica, uma vez
que empresta seu corpo enquanto canal de comunicação, não no sentido de
incorporar, mas de tocar e cantar sob influência das energias. Há uma quebra da
dicotomia entre mente e corpo, presente no pensamento cartesiano. Tudo é uma coisa
só.

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As características da música na umbanda apresentam uma determinada


artesania do fazer musical, e por que não, uma pedagogia de terreiro. Ao entendermos
a pedagogia enquanto o processo pelo qual se dá uma relação de ensino e
aprendizagem, o espaço do terreiro como um todo mostra-se pedagógico, tal qual o
ato de aprender a tocar o atabaque, afiná-lo, aprender os ritmos e letras das canções,
entre outras atividades que permeiam a vivência umbandista.
Além disso, as letras das canções religiosas contam histórias que remetem
diretamente à história da população negra que foi transladada do continente africano
ao Brasil em situação de escravidão. As cantigas da linha de pretos e pretas velhas,
principalmente, demarcam esse resgate de origens.

Vovó tem sete saias, na última saia tem mironga / Vovó veio de Angola
pra salvar filhos de umbanda (2x) / Com seu patuá e a figa de guiné /
Vovó veio de Angola pra salvar filhos de fé (2x) / Vovó não quer casca
de coco no terreiro (2x) / Que faz alembrar dos tempos de cativeiro
(2x)

Esse resgate de origens da história do povo negro, de saberes e tradições


populares, foram pontuados por Pedro durante a entrevista ao falar sobre a função da
música no contexto umbandista. Ademais, as músicas na umbanda nos permitem
estabelecer um diálogo com a sociologia ao mobilizar a categoria racial enquanto um
demarcador importante nos arquétipos dessa religião. Novamente, há uma dimensão
pedagógica que se apresenta na possibilidade de aprender e ensinar através da
música tanto no contexto ritual quanto fora dele.
Ao compreendermos a potência que reside no uso da musicalidade enquanto
ferramenta de ensinar e aprender, sobre o mundo, sobre a cultura, entendemos que
a construção de saberes, símbolos e sentidos se dá de maneira artesanal, tal qual
acontece no processo educacional formal em sala de aula. O terreiro é uma grande
sala de aula para quem deseja dele ser aluno e aprendiz, lugar onde se mostra
possível alargar interpretações e conhecimentos acerca do mundo, lugar do saber
praticado (RUFINO, 2018), e as músicas que lá ecoam abrem espaço para debate
sobre temas importantes como racismo e antirracismo, colonialismo, brasilidade.
A musicalidade presente nos terreiros é apenas um dos aspectos que
podemos escolher enquanto ferramenta de processo pedagógico, que certamente
extrapola o contexto religioso para nos convidar a uma reflexão sobre relações de

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poder, sobre quais histórias e narrativas são contadas e quais não são, sobre a
importância do corpo e dos sentidos na construção dos saberes do/no mundo, e no
saber enquanto instrumento de ação.

REFERÊNCIAS

BLACKING, John. Música, cultura e experiência. Cadernos de Campo, São Paulo, n.


16, p. 201-218, 2007.

LE BRETON, David. El sabor del mundo. Una antropologia de los sentidos. 1ª ed.
Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Umbanda. São Paulo: Ática, 1986.

RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. Periferia, v. 10, nº 1, p. 71-88, jan./jun.


2018.

SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Cadernos de Campo, São Paulo, nº. 17, p.
237-260, 2008.

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