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RESUMO
Este texto consiste numa discussão introdutória, que tem como objetivo demonstrar o
papel que a música ocupa no contexto da religião afro-brasileira de Umbanda, assim
como sua dimensão pedagógica. O método mobilizado foi a observação participante,
baseada na vivência da autora enquanto nativa do campo e no diálogo com alguns
dos membros do terreiro estudado, a partir de entrevistas informais. O material
utilizado consiste na descrição etnográfica de um ritual e na transcrição do discurso
nativo acerca de sua própria vivência musical-religiosa. Os resultados revelam que a
função específica da música na religião umbandista pode ser utilizada dentro e fora
do ritual religioso e, através dela. significantes e significados culturais são
compartilhados coletivamente, apresentando em si também uma potência pedagógica
e de cunho sociológico.
INTRODUÇÃO
de-santo pelo orixá, entendido como um herói divinizado que recria um tempo mítico
da mãe África, descendo em terra com sua dança e espalhando sua energia: o asè 3.
Já os espíritos que descem nas sessões kardecistas são individualizados e
reconhecidos pela história de suas vidas passadas, enquanto as entidades
umbandistas constituem categorias mais genéricas, onde a referência à vida pessoal
é substituída por um estereótipo, um arquétipo, como por exemplo, caboclos e pretos-
velhos.
Magnani (1986, p. 31), expõe de maneira sintética as diferenças entre essas
três religiões no que diz respeito ao caráter do transe:
Tratando-se do transe nos rituais (ou giras, como são chamados pelos
nativos) na umbanda, este possui como função principal a prestação de atendimento
direto aos frequentadores do terreiro, através de conversas, conselhos e passes
dados pelas entidades incorporadas4 nos médiuns ou cavalos. Estes últimos possuem
a sensibilidade necessária para estabelecer uma espécie de ponte entre o mundo
espiritual e o mundo físico, que se fortalece no momento do ritual.
Assim como no candomblé, um elemento que se destaca nos rituais é a
música, executada através dos atabaques (tambores), da voz dos participantes e de
outros instrumentos a depender de cada casa. Utilizo a definição de música elaborada
3 Termo yorubá, também escrito como “axé”, representa uma força mágica, universal e sagrada, que
assegura a existência dinâmica do mundo e dos seres.
4 Na bibliografia existente sobre a temática do transe nas religiões afrobrasileiras, é comum encontrar
por Seeger (2008, p. 239), entendendo-a enquanto “um sistema de comunicação que
envolve sons estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se
comunicam com outros membros”.
De acordo com as categorias nativas, o grupo responsável por essa execução
é chamado de curimba, e as músicas executadas no contexto umbandista são
chamadas de pontos cantados. Dessa forma, este artigo pretende pôr em prática uma
das tarefas da musicologia: discutir como as pessoas produzem sentido da música,
neste caso, no contexto religioso umbandista e como ela pode servir como mediadora
de um processo de ensino e aprendizagem.
Blacking (2007, p. 204) afirma que “toda performance musical é, num sistema
de interação social, um evento padronizado cujo significado não pode ser entendido
ou analisado isoladamente dos outros eventos no sistema”. Nesse sentido, para
discussão dessas questões, parto de uma descrição etnográfica realizada em 2019
de um ritual no terreiro londrinense Quintal de Aruanda, o qual acompanho enquanto
filha da casa e pesquisadora da cosmologia afro-brasileira, para em seguida trazer
diferentes percepções que as pessoas têm da música e da experiência musical
enquanto potência dentro e fora do terreiro.
O RITUAL
5 Todos os pontos cantados citados durante este texto consistem em transcrições diretas e literais da
maneira como são cantados no terreiro em que a pesquisa foi realizada. No contexto das religiões afro-
brasileiras, encontramos uma dificuldade particular em localizarmos as fontes precisas no que diz
respeito à autoria e origem das músicas, uma vez que são religiões de tradição oral. Há ainda a
particularidade de que, em cada terreiro de Umbanda, há a possibilidade do ritual se dar de maneira
diferente. Essa abertura permite também variações musicais principalmente no que diz respeito às
letras dos pontos cantados.
Edição Nº. 10, Vol. 1, jan./dez. 2020. Inserida em: http://www.uel.br/revistas/lenpes-pibid/
5
Na parte do ponto que fala sobre Xangô, orixá associado às pedreiras, o ritmo
se torna um pouco mais pesado e mais lento, ainda que com a mesma sequência de
toques do ijexá. Após esse ponto, é cantada a música mais animada, que fazem os
filhos da casa dançarem e promovem uma interação maior entre a curimba e os outros
filhos da casa:
Estou louvando, estou incensando (2x) / A casa dos meus orixás (2x)
/ Para o mal sair, e a felicidade entrar (2x) / Eu já louvei, eu já incensei
(2x) / A casa dos meus orixás (2x) / Para o mal sair, e a felicidade
entrar (2x).
Após o hino da Umbanda, a curimba saúda o Hino das Sete Linhas e todos
cantam juntos.
Tantas batalhas venci, muitas ainda vou enfrentar / Muitas vezes vou
cair, mas sempre vou levantar! / Meu escudo é minha fé, minha espada
é o orixá! / Tenho meu corpo fechado, nas rezas do jacutá / Quando
eu cai, pai Ogum me levantou / Quando sofri, mãe Oxum me amparou
/ Me vi perdido, Exu veio me guiar / Estava com fome, Oxóssi me
ensinou a caçar / Fui humilhado, e Xangô me defendeu / Fui
perseguido, Oyá em seus ventos me escondeu / Cai doente, Omolú
quem me curou / Estava sujo, Iemanjá quem me banhou / Eu vi a
morte, mas Nanã lhe afastou / Cuidou de mim, e o meu pranto ela
secou / Desesperado, vi minha fé vacilar / Fui renovado nas palavras
de Oxalá / Se eu fosse só não estaria mais aqui! O meu orixá me
ajudou a persistir! Na noite escura, nos caminhos me guiou! E na
Umbanda retribuo seu amor (2x).
OS PARTICIPANTES
Os pontos têm uma ordem mais ou menos dada [...] nos pontos de
Iansã, por exemplo, eu gosto de puxar primeiro um ponto lento, depois
um mais rápido, depois um mais lento, porque geralmente é uma
energia muito rápida, aí a energia precisa voltar a acalmar. Mas não
existe uma regra, vai do momento. (Relato de Gabrielle, em 2019).
Ao meu ver não existe uma necessidade de ser afinado, ou não errar
os toques. Acho que deve haver uma coisa homogênea, no sentido de
tá todo mundo na mesma sintonia e cantando do mesmo jeito, mas a
gente não tá ali pra fazer show, [...] a gente tá ali pra cantar pros filhos
da casa, pras entidades e pros orixás, então há uma necessidade de
se fazer com amor e muito respeito, não de ser bom, acho que isso é
uma consequência, não um objetivo, sabe? Então não há essa
cobrança de cantar bem, cantar afinado (Relato de Gabrielle, em
2019).
Pergunto também qual a visão que ele tem sobre a função da música na
umbanda.
Eu acho que assim como fora da umbanda, dentro a música pode ter
várias funções, como resgate de origens, de saberes populares,
algumas também contam histórias, ou trazem alguns ensinamentos.
Acho que todas as músicas, todos os pontos cantados chamam
energias superiores, né? E eu vejo por exemplo na abertura da gira,
quando a curimba começa a puxar os pontos, eu sinto um sentimento
de mais unificação entre a corrente mediúnica e o público que vem em
busca do terreiro. Acho que na hora que a gente se coloca pra chamar
o sagrado de alguma forma, não tem muita separação entre quem é
de dentro e quem é de fora (Relato de Pedro, em 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vovó tem sete saias, na última saia tem mironga / Vovó veio de Angola
pra salvar filhos de umbanda (2x) / Com seu patuá e a figa de guiné /
Vovó veio de Angola pra salvar filhos de fé (2x) / Vovó não quer casca
de coco no terreiro (2x) / Que faz alembrar dos tempos de cativeiro
(2x)
poder, sobre quais histórias e narrativas são contadas e quais não são, sobre a
importância do corpo e dos sentidos na construção dos saberes do/no mundo, e no
saber enquanto instrumento de ação.
REFERÊNCIAS
LE BRETON, David. El sabor del mundo. Una antropologia de los sentidos. 1ª ed.
Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.
SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Cadernos de Campo, São Paulo, nº. 17, p.
237-260, 2008.