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A SEQUÊNCIA DOS ORIXÁS NOS XIRÊS DO CANDOMBLÉ KETU EM SANTA CATARINA:

UMA INTERPRETAÇÃO A PARTIR DA SIMBOLOGIA DA CABAÇA IGBÁDU

GT “CAMINHOS DA AMÉFRICA LADINA: REFLEXÕES SOBRE MÚSICAS, PERFORMANCES E DANÇAS


AFRO-DIASPÓRICAS, LATINOAMERICANAS E CARIBENHA”

Luciano da Silva Candemil/UFPR


lucianocandemil@hotmail.com

Resumo: Trata-se de um estudo sobre a sequência dos orixás reverenciados nos xirês do candomblé
ketu em Santa Catarina. Nas cerimônias parte da trama mitológica é revivida por meio de transes
míticos e por uma performance musical e extramusical. Segundo a cosmovisão iorubá, a estrutura
religiosa é fundamentada em princípios e simbologias que se relacionam e que se revelam, às vezes,
apenas de forma oculta. No trabalho de campo foi observado que há uma estreita ligação entre o
repertório de cantigas com a ordem dos orixás no xirê, a qual tem uma estrutura praticamente fixa.
Por não encontrar uma resposta para esta sequência dos orixás, o trabalho procurou interpretar esta
questão, a qual foi feita principalmente por meio do mito de origem da cabaça igbádu, um dos
fundamentos do complexo cultural Nagô. Pelo fato do pesquisador não ser iniciado nesta religião, o
livro Os Nagô e a Morte (ELBEIN DOS SANTOS, 2021) foi utilizado como eixo norteador visando
avançar em espaços não permitidos. Também foram utilizados referenciais teóricos da
etnomusicologia, em especial, sobre a relação entre o musical e o extramusical (BLACKING, 1995).
Será demonstrado que a ordem dos orixás no xirê possui uma estrutura lógica que pode ser
interpretada pela simbologia da cabaça igbádu.
Palavras-chave: Candomblé ketu. Orixás. Xirê. Cabaça Igbádu. Musical e Extramusical.

The sequence of the orixás in the xirê of the candomblé ketu in Santa Catarina: an
interpretation from the symbology of the igbádu’s gourd

Abstract: this is a study on the sequence of the revered orixás in the xirê of candomblé ketu. During
the ceremonies, part of the mythological plot is revived through mythical trances and a musical and
extra-musical performance. According to the Yoruba cosmovision, the religious structure is based on
principles and symbologies that are related and that are revealed, sometimes, only in a hidden way.
In the fieldwork carried out in Santa Catarina, it was observed that there is a close connection between
the repertoire of songs with the order of orixás in xirê, which has a practically fixed structure. By not
finding an answer to this sequence of orixás, the work sought to interpret this question, which was
mainly made through the myth of the origin of the Igbádu gourd, one of the foundations of the Nagô
cultural complex. The book Os Nago e a Morte (ELBEIN DOS SANTOS, 2021) was used as a
guiding axis in order to advance in spaces that were not allowed. Theoretical references of
ethnomusicology were also used, in particular, on the relationship between the musical and the
extramusical (BLACKING, 1995). It will be shown that the order of the orixás in xirê has a logical
structure that can be interpreted by the symbology of the Igbádu gourd.
Keywords: Candomblé ketu. Orixás. Xirê. Igbádu’s gourd. Musical and extra-musical.

Introdução
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O termo candomblé corresponde a um grupo de manifestações religiosas, de tradição oral,
iniciáticas, que cultuam divindades de origem africana; surgidas no Brasil em decorrência do tráfico
de negros escravizados (TEIXEIRA, 1999. LODY, 1987). Destas, o candomblé ketu vem a ser a
religião dos orixás, originária do reino de Ketu, na atual Nigéria; estabelecido inicialmente no estado
da Bahia e atualmente difundido pelo Brasil (LÜHNING, 1990. VERGER, 1999). Segundo a
cosmovisão iorubá, a estrutura religiosa do candomblé ketu é fundamentada em princípios e
simbologias das quais a música é parte essencial (ELBEIN DOS SANTOS, 2012).
Durante as cerimônias parte da trama mitológica é revivida por meio de transes míticos e
por uma performance musical e extramusical (BLACKING, 1995), na qual a percussão, o canto e a
dança formam uma unidade indissociável. Nesse contexto, a música tem função comunicativa, de
direção e sustentação dos cultos, sendo um meio de interação com os orixás, e, portanto, tem a sua
própria linguagem e estética (PRANDI, 2005). No entanto, tanto o repertório sonoro, ritmos, timbres
e cantigas, quanto, o repertório de gestos corporais estão diretamente associados a um sistema de
interrelações, que se expressa por meio de símbolos que revelam aspectos da própria estrutura
religiosa, muitas vezes revelados apenas de forma oculta e para os seus adeptos.
No cotidiano das casas1 de candomblé ketu acontecem desde rituais restritos às pessoas
iniciadas até as festas públicas, também chamadas de homenagens. No trabalho de campo realizado
em diversos terreiros2 situados na região catarinense compreendida entre as cidades de Florianópolis
e Itajaí, foi observado uma certa similaridade na sequência das cantigas dos orixás durante a
realização do xirê, a segunda parte de uma festa, ou ainda, a primeira parte pública da mesma.
Com o tempo, constatei que o repertório vinculava-se à ordem em que os orixás eram
reverenciados. Apesar de haver pequenas alterações entre os terreiros visitados, identifiquei que havia
uma sequência praticamente fixa. No entanto, além do fato de ser considerada uma tradição, não foi
encontrada uma resposta precisa para esta questão, nem por meio das entrevistas, nem em
bibliografias especializadas. Tendo em vista que havia uma certa estrutura lógica na sequência dos

1
Torna-se importante ressaltar que, apesar dos vínculos históricos e religiosos com a Bahia, as casas de candomblé ketu
espalhadas pelo Brasil adotam soluções regionais, ou seja, uma casa não é igual a outra.
2
Destaca-se os mais visitados: Ilê Alaketú Oyá Onìrá Asé, do babalorixá Jean, em Itajaí; Ilê-Asé Yemonjá Ygbô, da
ialorixá Emília, em Porto Belo; Ilê Alaketu Ase Odo Alasan, da ialorixá Evelise, em Penha; e, Ilê Alaketu Okê Obá Ketu,
do babalorixá Ricardo, e Ilê Asé Omim Babá Oxaguian, do babalorixá Edenilson, ambos em São José.

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orixás no xirê, o presente trabalho procurou encontrar uma interpretação para esta questão, a qual foi
feita principalmente por meio do mito de origem da cabaça igbádu, um dos fundamentos básicos do
complexo cultural Nagô.
Entretanto, é preciso considerar que este pesquisador não é uma pessoa iniciada na religião
do candomblé ketu, fato que impõe certa limitação, tanto no acesso a determinados espaços físicos,
participação em rituais, bem como, a um grande universo de conhecimento sagrado. Portanto,
estrategicamente, o livro Os Nagô e a Morte: Pàde, Àsèsè e o Culto Égun na Bahia (ELBEIN DOS
SANTOS, 2012) foi utilizado como eixo norteador com o objetivo de avançar em questões que não
foram possíveis de serem vivenciadas. Também foram utilizados referenciais teóricos da
etnomusicologia, em especial, a relação entre o musical e extramusical (BLACKING, 1995).
Em relação ao complexo cultural Nagô, compreende-se aqui como um conjunto de
componentes culturais trazidos pelo povos iorubanos, da língua nagô ou iorubá3, oriundos da Nigéria
e do Baixo Daomé, também chamados de nagô4 ou ketu (CASTRO, 1968, p. 27). Ressalta-se que, no
processo de transferência forçada da África Ocidental para o Brasil, estes negros escravizados 5
trouxeram suas raízes culturais posteriormente expressas nos modos e costumes, nos artefatos e
instrumentos, na culinária, na língua, com destaque aqui para a música, danças, crenças e concepção
de mundo.

A concepção de mundo Nagô e a cabaça igbadú

O complexo religioso Nagô é constituído por dois tipos de organização litúrgica. São
instituições distintas, bem definidas, com práticas e sacerdócios próprios, tendo por um lado o culto
dos orixás, entidades divinas; e do outro, o culto dos eguns, os ancestrais, espíritos de seres humanos
(ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 109). No entanto, é importante esclarecer que os orixás são
“ancestrais divinizados, antigos reis ou heróis, [...] considerados como representações das forças da

3
O iorubá é um idioma originário da África Ocidental. Trata-se de uma língua milenar falada atualmente por milhões de
pessoas na Nigéria, Togo e Benim, tendo sobrevivido no Brasil com o nome popular de nagô” (FILHO, 2010, p.21).
4
“[...] o termo Nàgô no Brasil acabou por ser aplicado coletivamente a todos esses grupos vinculados por uma língua
comum com variantes dialetais”, tais como: Kétu, Sabe, Òyó, Ègbá, Ègbado, Ijesa, Ijebu, etc (ELBEIN DOS SANTOS,
2012, p. 28-29).
5
Refere-se aqui a grande quantidade de africanos escravizados que foram embarcados principalmente em portos situados
no Golfo do Benim e no litoral de Angola e Congo (VERGER, 2002, p.23).

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natureza” (BARROS, 2009, p. 22).
Elbein dos Santos (2012, p. 56) explica que, a comunidade Nagô concebe a existência em dois
planos: o aiyê, o mundo, que “compreende o universo físico concreto e a vida de todos os seres
naturais”; e o orun, “o espaço sobrenatural, o outro mundo”; considerados como “níveis de existência
inseparáveis” (ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 60). Segundo os mitos genéticos relacionados à
criação do universo e aos princípios progenitores divinos, a igbá-odù ou igbádu é a representação
mais conhecida para simbolizar a unidade entre os dois planos de existência. Igbádu é “simbolizada
por uma cabaça formada de duas metades unidas, a metade inferior representando o àiyé, a metade
superior o òrun, e contendo em seu interior uma série de elementos” (ELBEIN DOS SANTOS, 2012,
p. 61).
Simbolicamente, a união entre os dois planos de existência é mantida por um pilar chamado
de opô ou ixê, que nos terreiros de candomblé ketu visitados é representado por um poste central que
fica localizado no salão principal do barracão, o espaço onde acontecem os rituais e festas
(CACCIATORE, 1977, p. 151). Embora alguns terreiros não tenham o elemento materializado no
meio do salão, para muitas pessoas da religião, destas casas catarinenses, existe uma linha imaginária
que faz a ligação entre os assentamentos da terra e do orun, funcionando como um canal de energia
(CAMARGO, 20206).
De forma sintetizada, o aiyê é o nível de existência controlado por Odùduwà, orixá associado
à água e à terra, representante do poder feminino, do “princípio feminino de onde tudo se origina”,
“símbolo coletivo dos ancestrais femininos”; enquanto o orun é o nível de existência regido por
Obatalá, ou Oxalá, “símbolo coletivo do poder ancestral masculino”, associado aos elementos água e
ao ar (ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 62-63).

Os orixás e os quatro elementos da natureza

No culto africano dos orixás todas as entidades sobrenaturais são chamadas de irúnmalè,
ficando agrupadas do lado direito quatrocentos “irúnmalè da direita”, que são chamados de “orixás”
e do outro lado duzentos “irúnmalè da esquerda”, que são os “ancestres”, os espíritos dos seres

6
Willian Camargo é o alabê, chefe dos tocadores de atabaques, do Ilê Asé Omim Babá Oxaguian. Gravação.
Aula/entrevista. São José, 10/06/2020.
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humanos (ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 76-78). No Brasil, usa-se apenas a palavra “orixá” para
designar todas as divindades, só havendo distinção “por pertencerem à direita ou à esquerda, pelas
cores que lhes são atribuídas, pelos elementos da natureza e funções e atividades que lhes
correspondem” (ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 84-85).
Em relação a cabaça igbádu, os orixás são separados em dois lados de acordo com os
elementos da natureza: terra, água, fogo e ar. Por conta do poder de interação e fecundação, no lado
feminino são agrupados os orixás genitores [masculinos e femininos] relacionados aos elementos
água e terra, como por exemplo, a água dos mares, dos rios, lagos e mangues (ELBEIN DOS
SANTOS, 2012, p.83); como também todos os orixás-filhos7. Neste lado, teremos as entidades
chamadas de “orixás da terra”, da terra propriamente dita e da terra que contém água, como por
exemplo, Omolu ou Obaluaiê (orixá-filho), Oxumaré (orixá-filho), Nanã, Oxum, Iemanjá, Obá, Ewá,
Oyá ou Iansã (orixá-filha). É importante ressaltar que todos os orixás femininos estão relacionados
de alguma maneira com o elemento água e por isso formam o grupo das iabás, ou seja, as senhoras
das águas.
Apesar do elemento terra estar associado ao poder feminino, a maior parte das divindades
pertencentes ao grupo dos “orixás da terra” são orixás genitores de caráter masculino, que como
veremos, são os orixás que abrem e que ocupam quase que a primeira metade de um xirê de
candomblé ketu, praticamente nessa ordem: Ogum, Oxossi, Omolu, Ossain, Iroko e Oxumaré.
Para ilustrar a relação de alguns orixás com a terra, conforme sintetiza o Pai Cido de Òsun
Eyin (REIS, 2000, p. 48), Ogum é da terra da tecnologia e das batalhas; Oxóssi é da terra da caça e
da fartura; Omolú da terra das doenças e curas; Ossain da terra das folhas sagradas; Oxumaré é da
terra dos ciclos; Logun Edé da riqueza e beleza; Ewá da terra dos mistérios e; Nanã “participa do
elemento terra por ser uma deusa das águas paradas e pantanosas e da lama, ou seja, da fusão entre
terra e água” (REIS, 2000, p. 48).
O fogo é outro elemento da natureza importante para o culto dos orixás na África e para o
candomblé ketu no Brasil. O poder do fogo está associado à sua capacidade de “transformar as coisas,
no grande impacto que produz na vida humana” (REIS, 2000, p. 51). Por isso, o elemento fogo está

7
“Cada òrìsá-filho está marcado pelos elementos que lhes deram origem; são as diversas combinações que fazem sua
singularidade, associam-nos a aspectos diferentes da natureza e lhe conferem o controle sobre funções específicas”
(ELBEIN DOS SANTOS, 2012, p. 96).

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relacionado a Exu, o orixá do princípio de transformação. Além disso, Exu “é o elemento dinâmico
de tudo que existe e o princípio de comunicação e expansão (CACCIATORE, 1977, p. 118). Esta
natureza de Exu vem do fato mitológico de ter sido o primeiro elemento procriado. Sendo assim,
tornou-se o “princípio ativo de todas as coisas” (MAURÍCIO, 2009, p. 220). Por conta disso, seu
culto acontece separadamente no ritual chamado padê, que antecede ao xirê.
Ainda no que concerne ao elemento fogo, pelo fato de também representar o poder, é um
dos símbolos de Xangô, orixá relacionado à justiça. Ademais, como o fogo tem relação com a energia
e movimento, este elemento remete a outros dois orixás, Oyá (fogo e vento) e Obá (fogo e água).
Portanto, em relação ao xirê, o grupo dos “orixás do fogo” é formado por Xangô, Oyá (ou Iansã) e
Obá. No entanto, é importante salientar que, por conta de suas histórias mitológicas na África, Oyá e
Obá fazem parte do grupo das iabás (CACCIATORE, 1977, p. 138).
Nos rituais do candomblé ketu também temos os orixás do ar, que são os deuses relacionados
a criação, Oxalufã e Oxaguiã, respectivamente, o “mais velho” e o “mais novo”, que são os dois tipos
de Oxalá cultuados no Brasil. Verger explica que Orixalá (Oxalá) ou Obatalá significa “O Grande
Orixá” ou “o Rei do Pano Branco”, que é a mais importante divindade iorubá, o primeiro orixá criado
pelo deus supremo Olodumaré, o qual lhe concedeu a missão de criar o mundo (VERGER, 2002, p.
252). Por conta disso, o “ar é o grande elemento de Oxalá, a essência da vida [...] estar vivo é ter ar,
é respirar, é ter Oxalá dentro de si. Quando nos falta o ar, quando nos falta Oxalá, falta-nos também
a vida” (REIS, 2000, p. 245). A associação com o elemento ar faz com que Oxalá seja o único orixá
pertencente do lado direito da cabaça igbádu.

A sequência dos orixás no xirê

Na região catarinense pesquisada, normalmente, um ritual restrito ou uma festa de candomblé


ketu tem três partes, nessa ordem: padê, xirê e dar rum. O padê ou ipadê é um dos ritos prioritários
do orixá Exu, é um ritual específico para quem é iniciado e ainda assim não é para todos (CAMARGO,
20208). O objetivo deste rito é invocar o orixá Exu para pedir proteção e “para pedir que o candomblé
corra bem, para que ele cuide da porta para que não haja confusão” (CAMARGO, 2020 9); mas

8
Gravação. Aula/entrevista. São José, 17/06/2020.
9
Idem.

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também, para “levar as oferendas e encontrar os deuses para chamá-los” (CACCIATORE, 1977, p.
205).
Depois da segunda parte, o xirê, foco deste trabalho, o qual retomaremos na sequência,
acontece o “dar rum” ou “dar rum ao orixá”, momento em que os ogãs (músicos) tocam “os atabaques
para o orixá dançar [...] com suas roupas e apetrechos rituais” (CACCIATORE, 1977, p. 100). De
fato, o “dar rum” torna-se uma parte especial e muito esperada, pois é quando os orixás ocupam o
salão para realizar as suas danças individualizadas, repletas de movimentos e gestos que retratam
narrativas mitológicas, “expressando a majestade e realeza com as quais se apresentam aos seus
descendentes” (LÜHNING, 1990, p. 118). É o encontro entre os orixás fisicamente incorporados com
os iniciados e com os não iniciados na religião.
Tendo em vista que o padê é um ritual restrito e que o “dar rum” de cada ritual ou festa tem
as suas particularidades, o presente trabalho tem como foco apenas a sequência fixa dos cânticos do
xirê, a qual está diretamente relacionada com a ordem dos orixás reverenciados nesta parte do ritual.
No que se refere à parte do “dar rum”, ressalta-se que o repertório de ritmos e cantigas que são
entoados, dependem do orixá homenageado e dos orixás incorporados num determinado dia.
Etimologicamente, a palavra siré ou xirê significa “divertir-se, brincar, festejar”
(CACCIATORE, 1977, p. 251-252), e, portanto, “pode ser traduzida como “fazer festa, brincar””
(MAURÍCIO, 2009, p.203). No entanto, para Mãe Stella de Oxossi, siré é a “festa sagrada que
homenageia, reverencia um Orísa” (SANTOS, 2010, p. 182). Por conta disso, costumeiramente a
palavra xirê pode designar a primeira parte da festa ou a festa propriamente dita.
De fato, como parte de uma festa, o xirê é o início de um grande encontro dos orixás com as
pessoas iniciadas e não iniciadas. Torna-se a “ocasião em que o rufar dos atabaques e o canto das
pessoas conclamam e convidam os orixás para que venham à festa que seu povo lhes oferece”
(MAURÍCIO, 2009, p.203). Porém, tudo aquilo que é tocado e cantado num xirê segue uma ordem
sequencial fixa que está relacionada com a ordem de chegada dos orixás na terra. É por isso que xirê
também designa a “ordem em que são tocadas, cantadas e dançadas as invocações aos orixás, no
início das cerimônias festivas ou internas” (CACCIATORE, 1977, p. 251).
Segundo o babalorixá Jean ty Onirá, essa ordem foi definida no passado pelos orixás (SILVA,

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201910); possivelmente num jogo de búzios, quero acreditar. Durante os quatro anos de trabalho de
campo, observei que nos terreiros de candomblé ketu visitados em Santa Catarina, a ordem das
cantigas permanece praticamente fixa em cada casa, porém, todas são muito similares entre si,
havendo poucas alterações na ordem dos orixás nos xirês. No entanto, em nenhum momento encontrei
algum tipo de explicação que estabelecesse critérios, ficando as respostas vinculadas a termos como
tradição e passado. Também não foram encontrados esclarecimentos nas bibliografias. Diante disso,
tendo como referência a relação entre o musical e o extramusical (BLACKING, 1995), buscou-se
uma interpretação a partir das questões mitológicas expostas anteriormente, com destaque para a
simbologia da cabaça igbádu.
Conforme dito recentemente, a ordem das cantigas pode variar de um terreiro para outro, mas
normalmente, o xirê do candomblé ketu em Santa Catarina, começa e termina com o vamunha, um
toque de caráter instrumental, sem cantigas, muito usado como toque de abertura e como toque de
encerramento. É importante informar que praticamente todo o xirê ocorre sem os iniciados “virarem
no santo”, sem os transes míticos, que só devem acontecer na última cantiga do xirê antes do vamunha
de retirada11.
Depois do vamunha de abertura, de maneira geral constatei que os xirês começam sempre com
Ogum, depois Oxossi e finalizam com Xangô. Podem também terminar com outro orixá, quando na
ocasião de festas muito específicas, geralmente grandiosas, como as festas anuais para Oxossi, que
por sua vez é o orixá Rei de Ketu. Segundo Cacciatore (1977, p. 251), é comum que os xirês terminem
com cantigas para Oxalá, e de fato isto foi constatado em Santa Catarina, porém, cabe ressaltar que
nesse caso a autora se refere a xirê como sinônimo de festa e não de uma parte da festa ou de um
ritual restrito.
Em relação a sequência dos orixás homenageados no xirê, apesar das pequenas alterações na
ordem da mesma, verifiquei que permanece uma certa estrutura lógica que pode ser explicada pelo
mito de origem da cabaça igbádu, pelos princípios genitores masculinos e femininos, pelo elemento
da natureza correlato e pela origem étnica dos orixás. Tomando como referência os princípios
genitores, podemos dividir a ordem do xirê em dois grupos: primeiro canta-se para os orixás de caráter

10
Anotação. Itajaí, 13/11/2019.
11
Toque instrumental normalmente executado para a retirada de todos os adeptos e orixás manifestados que estão
presentes na parte central do salão.
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masculino e depois para os orixás de caráter feminino. Até aqui não há transe mítico. Na sequência
são entoadas cantigas para Xangô, sendo que na última os iniciados “viram no santo” 12. Entretanto,
podemos refinar esta explicação adicionando outros critérios de categorização.
Nessa direção, no xirê, primeiro são reverenciados os orixás masculinos de origem ketu
relacionados ao mundo externo, chamados de “orixás da rua”, que são os orixás ligados a guerra, a
caça e as plantas, respectivamente Ogum, Oxossi e Ossain, sempre nesta ordem, exceto por Ossain
que pode aparecer em outra posição, mas se ocorrer, será dentro do grupo dos orixás masculinos.
Estes orixás também fazem parte do grupo dos “orixás da terra”.
Esta situação particular de Ossain é devido ao fato de ser considerado um orixá tanto de origem
ketu como de origem jeje13. É por isso que logo depois de Ossain vem o subgrupo dos orixás
masculinos de origem jeje, que por sua vez também são “orixás da terra”, normalmente nesta ordem:
Omolú, Oxumarê e Iroko; ou Omolu, Ossain, Iroko e Oxumarê. A priori, Iroko é um orixá relacionado
ao tempo e às árvores, mas por conta de sua origem jeje ele permanecerá neste subgrupo. Outro ponto
a evidenciar sobre os orixás masculinos é que primeiro são reverenciados os orixás progenitores
míticos, Ogum, Oxossi e Ossain, que coincidentemente são de origem ketu, para depois cantar para
os orixás-filhos, Omolu e Oxumarê, de origem jeje.
Como o último orixá masculino é de origem jeje e relacionado à terra, para manter a lógica,
para fazer a transição para o grupo dos orixás femininos, canta-se para Nanã14, um orixá de origem
jeje associado a lama e aos pântanos. Esta característica de Nanã ajuda a explicar porque ela é o
último dos orixás da terra e o primeiro dos orixás da água, bem como, o primeiro orixá feminino.
Portanto, Nanã abre o grupo dos orixás relacionados à terra que contém água ou ao elemento água
(rio, mar, etc.), que por sua vez são todos orixás femininos. Como já vimos, este grupo é também
chamado de iabás, que é formado pelos orixás Nanã, Oxum15, Obá, Ewá, Oyá (ou Iansã) e Iemanjá.
Em relação a ordem das cantigas das iabás, normalmente sempre se começa com Nanã e
finaliza com Oyá e depois Iemanjá. No entanto, em relação às outras iabás, que ficam no meio deste

12
Termo êmico que designa a manifestação do transe, o momento em que a pessoa iniciada dá passagem para o orixá.
13
Etnia de língua fon, da região de Daomé, atual Benim.
14
Segundo o babalorixá Jean Ty Onìrá, Nanã é mãe de Iroko, Ewá e Obaluaiê (SILVA, 2018). Anotação. Cerimônia do
Amalá para Xangô. Itajaí, 10/10/2018.
15
Em alguns terreiros, como no Ilê Alaketú Oyá Onìrá Asé e Ilê Alaketu Okê Obá Ketu, depois de Oxum canta-se para
Logun Edé, que é considerado seu filho.
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subgrupo, há algumas possibilidades, mas, normalmente canta-se primeiro para as iabás progenitoras
para depois cantar para as iabás-filha. É por isso que em muitos terreiros catarinenses, como no caso
do Terreiro do Pai Edenilson, canta-se para Nanã, Oxum e Obá, e depois para Ewá e Oyá, que são
orixás-filhos. Também é possível encontrar uma alternância de posição entre dois orixás femininos
da água, Oxum e Ewá; e entre dois orixás femininos do fogo, Obá e Oyá. Como uma exceção, Iemanjá
é a última iabá reverenciada porque ela é considerada a “mãe de todos os orixás” (MAURÍCIO, 2009,
p. 296).
Outro ponto importante é a origem étnica das senhoras das águas. Todas as iabás são de
origem ketu, exceto por Nanã e Ewá que são de origem jeje. Pela origem étnica, Ewá poderia ser
cantada logo depois de Nanã, mas, esta sequência não foi encontrada em nenhum terreiro. Isto se
explica pelo fato de Ewá ser um orixá-filho. Portanto, tanto o caso da ordem dos orixás masculinos,
quanto da ordem dos orixás femininos, reflete o respeito à hierarquia, um dos princípios básicos do
candomblé ketu.
Como Oyá é um orixá-filho, as suas cantigas acontecem na parte final do grupo dos orixás
femininos, geralmente antes de sua mãe Iemanjá, o que configura uma exceção à regra, pois no
candomblé ketu, os mais velhos estão sempre na frente. Em relação a Obá, em alguns terreiros ela é
cultuada na parte inicial do grupo das iabás, logo depois de Nanã, ou na parte intermediária, não
havendo uma sequência padrão.
Na estrutura do xirê, normalmente Xangô é o último orixá a ser reverenciado. Porém, em
algumas festas, depois da última cantiga de Xangô, quando os “santos” 16 “chegam na terra”17 pode
ser executada uma cantiga ou apenas um toque específico para o orixá que está sendo homenageado,
o dono da festa. Por exemplo, na festa de Oxossi toca-se agueré, na festa de Ogum tem uma cantiga
específica para Ogum “chegar”; e depois, estes orixás convocam todas as divindades presentes para
dançar, exceto Exu. Nestes casos, todos os orixás “descem” nesta cantiga suplementar, exceto os
orixás que tem quizila18 com o orixá dono da festa (CAMARGO, 202019).
Conforme foi visto, num xirê tradicional do candomblé ketu são reverenciados treze orixás,

16
No contexto do candomblé, o termo santo refere-se aos orixás e não aos santos católicos.
17
Chegar e descer: o mesmo que se manifestar.
18
Neste caso, aversão ou inimizade.
19
Anotação. Aula/entrevista. São José, 14/10/2020.
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sendo seis orixás masculinos e seis orixás femininos na parte sem transe mítico; e o orixá Xangô na
parte final, momento em que se prepara e efetiva a “virada de santo”. Sobre a simetria numérica da
parte do xirê sem “estado de transe”, este fato pode indicar uma relação com a cabaça igbádu, ou seja,
duas partes iguais, duas metades da cabaça. Temos aqui a representação do poder masculino e do
poder feminino, respectivamente, lado direito e lado esquerdo. Além disso, como Exu é cultuado
separadamente no padê, isto também pode ser explicado pelo fato mítico deste orixá estar associado
aos dois lados e por ser um elemento pertencente ao centro.

Considerações finais

O presente trabalho teve como foco a sequência em que os orixás são reverenciados durante
um xirê de candomblé ketu nos terreiros catarinenses. No decorrer do texto diversas observações e
conclusões já foram antecipadas. Nesse instante serão destacados apenas os pontos mais centrais,
principalmente aqueles relacionados ao objetivo da pesquisa: interpretar a relação entre a estrutura
do xirê com o mito de origem da cabaça igbádu. O interesse é reforçar que a performance musical,
bem como, os gestos da dança, estão diretamente associados a fatores extramusicais, mais
precisamente aqui na sua ordem de execução.
Vimos, de maneira geral, que o candomblé ketu é a religião dos orixás no Brasil, caracterizada
por uma estrutura religiosa alicerçada em fundamentos e simbologias, sendo o resultado de uma
herança cultural trazida pelos povos iorubanos e outras etnias. Durante as cerimônias fechadas e festas
públicas, os princípios básicos são vividos e revelados pelo encontro dos humanos com os orixás
incorporados. Associado ao processo de iniciação, um desses princípios básicos é o respeito aos
“mais velhos”, o qual chamo de “hierarquia do conhecimento”, que se revela quando se toca, se canta,
se dança; como também, em outras dimensões ritualísticas. De acordo com o que foi demonstrado,
esse respeito à hierarquia também é presenciado na sequência dos orixás no xirê. No entanto, há
outros fundamentos que ajudam a explicar porque esta ordem é praticamente fixa nos terreiros
visitados, assim como, esclarecem a lógica da sua estrutura.
Por meio da representação da cabaça igbádu, foi visto que, Odùduwà, é o orixá que controla
o aiyê, a metade inferior, o lado esquerdo, o lado do poder feminino, relacionado a água e a terra;
enquanto Oxalá é o orixá que rege o òrun, a metade superior, o lado direito, o lado do poder
masculino, associado ao ar e a água. Além disso, a sequência dos orixás também pode ser interpretada
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pelos elementos da natureza, aos quais as divindades estão vinculadas, como também, pela origem
étnica das mesmas.
De maneira geral, conclui-se que o xirê inicia e finaliza com os orixás masculinos. Primeiro
canta-se para os orixás da guerra e da caça, de origem ketu; depois para os orixás relacionados a terra
e às plantas; depois vem os orixás de origem jeje; na sequência tem o grupo das iabás, os orixás
femininos; e por último Xangô, ou Xangô e Oxalá, ou ainda, Xangô e Oxossi, a depender da
especificidade de cada festa. Para finalizar, almeja-se que este trabalho tenha trazido contribuições
para a difusão parcial do complexo cultural Nagô.

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