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2004
O CORPO COMO LÓCUS DE ENCANTAMENTO NA CRIAÇÃO EM
DANÇA1
Cleyce Silva Colins (UFRGS)i
1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
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This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001
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Coreografia criada a partir dos fatores do movimento Laban, dentro da disciplina de “Análise do
Movimento” do curso de Dança da Universidade Federal de Pelotas-RS.
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Pomba-Giras – Entidade cultuada nas religiões afro-brasileiras.
2005
o desejo de saber levou-me posteriormente a uma festa de Exu5 e Pomba-Giras. Na
ocasião pude vê-los pela primeira vez. Era um encontro de várias terreiros 6 da
cidade de Pelotas e ali pude observar os Exus e Pomba-Giras em terra. Os adeptos
estavam em círculo e quando os tambores começaram a tocar as feições e a
estrutura corporal de movimento dos que compunham a roda se modificou
completamente e as pessoas pareciam outras. Lembro que depois desse dia fiquei
um bom tempo, nos meus momentos de criação, imitando as mudanças corporais
testemunhadas naquele ato. Aqueles movimentos por mim imitados começaram a
compor partes de coreografias e os movimentos que concebia me remetiam a
energia de Exu. Quando alguém perguntava-me sobre o que estava pesquisando
falava que estava inspirando-me na dança Butoh7. Mesmo tendo consciência de que
estava imitando as ações dos Exus e Pomba-Giras sentia receio em assumir tais
figuras como direcionamento de criação, pois não queria sujeitar-me a sofrer
preconceito, afinal, o Butoh já fazia parte do universo de possibilidades estéticas
aceitas pela academia. Barbosa et al. (2008) ao realizar uma análise do movimento
em rituais umbandistas descreve:
5
“Exu é o orixá iorubano que versa sobre os princípios da mobilidade, da transformação, das
imprevisibilidades, trocas, linguagens, comunicações e toda forma de ato criativo.” (RUFINO,2016.
p.2)
6
“O terreiro é um continuum cultural, ao mesmo tempo em que mantém uma tradição, responde à
História através de elementos adaptados ao longo do tempo; é um espaço de resistência frente a
ideologia dominante porque tem projetos diferentes da lógica vigente de poder.” (SODRÉ, 2005, p.90)
7
O Butoh é uma dança japonesa que emergiu na década de 60, no contexto pós Segunda Guerra
Mundial. Para a autora: Maura Baiocchi (1995) os corpos dos dançarinos no Butoh movem-se
vagarosamente, pesadamente e assumem posturas bizarras. “O butoh surgiu de uma crise de
identidade que marcou o Japão de pós-guerra. Numa época atormentada entre a obsessão pelo
progresso – como uma revanche em relação à desfeita da guerra – e a vontade de voltar ao
nostálgico Japão de antes da invasão ocidental, o butoh vai agitar a apatia reinante nos meios
artísticos e marcar os pontos de reflexão sobre a vida e a identidade do corpo cultural. O ideograma
“bu" evoca as danças xamânicas, as miko dá Antigüidade, realizadas pelas sacerdotisas que
rodopiavam para provocar chuva. Ou as tamafuri, movimentos vibratórios dos corpos dos xamãs em
transe. (...) O caractere "toh" simboliza o fato de pisar a terra, uma ação que consiste em chamar para
si as forças dos espíritos da terra ou ainda a vontade de sacudir, acordar ou abalar o mundo.” 2006
(BAIOCCHI, 1995, p. 11-12)
religiões afro-gaúchas8. Era um vínculo baseado na análise dos modos de mover
das diferentes entidades constituintes do panteão de religiões afro-gaúchas. A
percepção que me fazia relacionar o Butoh a Exu se dava pela plasticidade corporal
da dança que identificava em ambos. O uso de modificação de tônus do corpo
resultado da modulação da tensão muscular ora fluida e ora tensa, assim como a
realização de movimentos nos níveis médio e baixo era o que percebia de
semelhanças. Lembro que essas impressões permaneceram comigo por bastante
tempo. Foi o encantamento do Corpo Exu que mexeu com a estética dos meus
movimentos e foi por ele que várias vezes retornei as religiões afro-gaúchas,
especificamente, Umbanda, Quimbanda e Batuque no Rio Grande do Sul.
Umbanda
8
Termo utilizado pelo autor Oro (2012) para descrever as religiões afro-brasileiras que possuem
matriz ou influência africana e que são comumente intituladas por religiões de transe.
9
Responsável pelo culto religioso, o guia chefe pode ser uma das entidades tipificadas como Exus,
Pomba Giras, Caboclos, Pretos-velhos, Crianças e alguns orixás africanos incorporados no sacerdote
do templo.
2007
A umbanda em Ortiz (1999) resulta do embranquecimento da cultura negra e
o empretecimento do espiritismo kardecista, o autor propõe que ela é uma
adaptação das religiões afro-brasileiras a nova sociedade urbana e industrial do
início do século XX, que passava pelo processo de transformação da estrutura social
escravocrata para o capitalismo de mercado. Esses dois processos expostos por
Ortiz (1999) são antecedidos na visão de Prandi (1998) pela “sincretização10 com o
catolicismo, durante a formação das modalidades tradicionais conhecidas como
candomblé, xangô, tambor de mina e batuque” (PRANDI, 1998, p.151). Em sua
perspectiva “desde o seu início, as religiões afro-brasileiras formaram-se em
sincretismo com o catolicismo.” (PRANDI, 1998, p.153)
10
“Sincretismo é uma mistura de elementos culturais diversos que se agregam para dar origem a um
novo conjunto de elementos, agora transmutados e ressignificados, mas que, mantém, em algum 2008
grau, as características trazidas das culturas originais.” (COSTA, 2013, p. 50)
ocupando um lugar de destaque. “O corpo vincula-se ao sagrado.” (SODRÉ, 1999,
p. 179)
Corpo
11
O transe pode ser definida como o momento em as entidades assumem a direção do corpo do 2009
médium para, assim, poderem realizar seus trabalhos em Terra.
58). Percebo que esses outros modos de atenção que estão além do olhar e da
mente também são presentes na maneira como o umbandista passa a sentir e viver
o mundo. Muniz Sodré em palestra (MUNIZ..., 2017) evidencia que a perspectiva
para os corpos de terreiro é a da lógica da corporeidade, o corpo está em primeiro
plano. Neste sentido a premissa que concebe o corpo como distinto da mente, que
abre caminho para o pensamento dicotômico ocidental e que aponta o corpo a
serviço da mente, não é o sentido que opera em um terreiro de Umbanda. Deste
modo, o entendimento de corpo que tendo a considerar como o corpo na umbanda é
resultado de uma experiência religiosa, que tem o corpo como lugar sagrado,
receptáculo do divino, é devidamente encantado e “o primeiro lugar de ataque do
colonialismo.” (RUFINO, 2016, p. 71)
Encantamento
Considerações
Percebo que o encante modificou minha noção de corpo desde uma relação
primeira com o próprio ritual, no qual a dimensão ritualística por mim vivenciada foi
como espectadora, ou seja, alguém de fora que assiste e – conforme narrei
anteriormente – buscou imitar o que viu. Mas logo depois adentrou ao cultivo
religioso umbandístico como participante do rito. Ainda que minha experiência
religiosa na umbanda me possibilite a munir-me de materiais para pensar essa
pesquisa, um exercício importante que venho fazendo e tratarei de aperfeiçoar é o
de criar mecanismos que me possibilitem pensar essa ideia de corpo e
encantamento para além do ritual. Não buscando nem uma transposição de
elementos de um lugar a outro, nem um uso instrumental do ritual com vistas a 2011
criação em dança. Deste modo pretendo trabalhar com alguns saberes, como o
encantamento, que se constitui de determinadas formas no ritual e podendo ser
disparador para pensar/experimentar o trabalho em Dança. Para além o trajeto a
reflexão aqui proposta, aponta para um pensamento de corpo de modo decolonial,
tendo nas perspectivas de corpo em transe, encruzilhada e encantamento um modo
para pensar a transgressão dos limites da colonialidade do corpo na dança.
Referências
BARBARA, Rosamaria. A dança das Aiabás: dança, corpo e cotidiano das mulheres
de candomblé. 2002. Tese (Doutorado em Sociologia) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
doi:10.11606/T.8.2002.tde-09082004-085333. Acesso em: 2018-10-09.
COSTA, Hulda Silva Cedro da. Umbanda, uma religião sincrética e brasileira
[manuscrito] /Hulda Silva Cedro da Costa. – 2013.175 f. ; 30 cm.Tese (doutorado) –
Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Ciências da Religião, 2013.
MUNIZ Sodré – O Espaço da África no Brasil. [S. l.]: Nós Transatlânticos, 2017.
Disponível em:
https://youtu.be/8asUpAkFbu4?list=PLekNlFtIPESLtPvMk9srRrOtDn41OLTiE.
Acesso em: 25 jun. 2019.
2012
OLIVEIRA, David Eduardo de. Cosmovisão africana no Brasil: elementos para
uma filosofia afrodescendente. Curitiba: Editora Gráfica Popular, 2006.
SIMAS, Luiz Antônio; RUFINO, Luiz. Fogo no Mato: a ciência encantada das
macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018. 124 p.
PAGLIUSO, Ligia & BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Luz no caminho:
Corpo, gesto e ato na umbanda. Afro-Ásia, 42, p. 195-225, 2010.
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Atualmente bolsista capes do Programa de Pós – Graduação em Artes Cênicas da UFRGS.
Participa do projeto de pesquisa “A formação teatral como criação de si mesmo” e dos Grupos GINGA
– Grupo Interseccional de Pesquisas em Negritude, Gênero e Artes e GETEPE – Grupo de Estudos
em Educação, Teatro e Performance. E-mail: cleycesc@gmail.com
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