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CONTOS DE MACUMBA E

ASSOMBRAÇÃO

CHARLES ODEVAN XAVIER

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

CHARLES ODEVAN XAVIER


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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
Copyright © 2018 Charles Odevan Xavier

Todos os direitos reservados

ISBN: 9781091827295

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
A Chiara Evelyn Xavier
Uma menina que adora ouvir estórias.

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
Foto de capa extraída do CEU General de Brigada e Rainha Pombo-Gira.

Esta instituição religiosa cedeu o direito de imagem para utilização de foto para o autor deste livro.

Esta instituição fica no bairro Barra do Ceará. Um território no litoral da periferia de Fortaleza no estado do
Ceará.

Esta instituição desenvolve relevantes trabalhos sociais de combate à miséria e de empreendedorismo


sociocultural junto à população afrodescendente do bairro e do entorno.

O terreiro é administrado por duas pessoas: Mãe Bia de Pomba-gira e Pai Ricardo de Xangô.

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

GLOSSÁRIO

Gangaiumbanga – Nkice [pronuncia-se inquice] que corresponde a Oxalufã (Oxalá velho). É o


“dono do pó”.

Kassumbenca – Deus congo da adivinhação; corresponde a Orumilá.

Aluvaiá – Divindade correspondente a Exu. Escravo dos inquices.

Egum - Espírito, alma de morto. Do iorubá égun, “osso”, “esqueleto”.


Exus - Na umbanda e na quimbanda, por influência do catimbó e de
outras formas de culto, o Exu-Elegbara jeje-nagô se transmutou em várias
entidades, as quais, mais próximas do conceito cristão de demônio (embora
os chamados “Exus batizados” dediquem-se ao bem e à caridade), agrupam se
em legiões ou falanges, conhecendo-se, entre outras, as seguintes
(segundo Renato Ortiz, 1978): Alebá, Bauru, Calunga, Carangola, Ganga,
Gererê, Lalu, Lonã, Macanjira, Marabô, Marê, Nanguê, Pemba, Sete
Pembas, Tiriri. A estes, Napoleão Figueiredo (1983), pesquisando
especificamente a umbanda amazônica, acrescenta os seguintes: Mirim,
Toquinho, Veludinho da Meia-Noite, Manguinho, Gira-Mundo, Pedreira,
Corcunda, Ventania, Meia-Noite, Mangueira, Tranca-Ruas, Tranca-Gira,
Tira-Toco, Tira-Teima, Limpa-Trilho, Veludo, Porteira, das Matas,
Campina, Capa Preta, Pinga-Fogo, Brasa, Come-Fogo, Lodo, Caveira, Sete
Encruzilhadas, Sete Ventanias, Sete Poeiras, Sete Chaves, Sete Capas, Sete
Cruzes, Pomba-Gira (forma feminina), do Mar, Maria Padilha, Naguê,
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Cabeira, Caveira, Zé Pilintra, dos Ventos, Pedra Preta, Pimenta, Malê,
Molambo, das Almas, Pagão, Vira Mundo, Tronqueira, dos Cemitérios,
Caminaloá, Tatá-Caveira, da Lama, Quebra-Barreira, Julico, Perneta,
Cuera. Os Exus da umbanda e da quimbanda são quase sempre representados como homens e
mulheres brancos.
Quimbanda - Antiga denominação do chefe religioso (ritualista) de
cultos bantos; linha ritual da umbanda. Na primeira acepção, o termo,
usado no masculino, é aportuguesamento do quimbundo kimbanda,
ritualista que, manipulando as forças vitais, restitui o equilíbrio do
indivíduo e da sociedade. O vocábulo corresponde ao quicongo nganga e se
distingue de outros como o quimbundo muloji e o quicongo ndoki, que
designam o feiticeiro, agente de práticas que objetivam malefícios.
Especificamente no Brasil, o termo, no feminino, denomina, desde meados
do século XX, uma linha ritual de práticas semelhantes às do rito congo*,
do vodu haitiano, de objetivos tidos como maléficos. Considere-se, então,
como proposta etimológica, o fato de que, entre o povo basanga, do antigo
Zaire, o vocábulo kibanda nomeia o conjunto de mortos maléficos e não
protetores (conforme Kabengele, 1986). Ver UMBANDA [Cristianização].
Quimbandeiro. Praticante da quimbanda
Umbanda - Religião brasileira de base africana, resultante da
assimilação de diversos elementos, fundamentando-se em cultos bantos aos
ancestrais e na religião dos orixás jejes-iorubanos. Segundo alguns de seus
teóricos, sincretizou-se com o hinduísmo, dele aceitando as leis que
envolvem carma, evolução e reencarnação; com o cristianismo, seguindo
principalmente suas normas de fraternidade e caridade; além de receber
influências da religiosidade ameríndia. Em seus templos são realizadas
sessões, em geral semanais, nas quais o transe mediúnico é provocado por
cânticos e toques de tambor. Incorporados, os espíritos dos pretos velhos,
caboclos e crianças, bem como os exus, dão consultas aos fiéis. Etimologia:
O vocábulo umbanda ocorre no umbundo e no quimbundo significando
“arte de curandeiro”, “ciência médica”, “medicina”. Em umbundo, o termo
que designa o curandeiro, o médico tradicional, é mbanda, e seu plural
(uma das formas) é imbanda. Em quimbundo, o singular é kimbanda e seu
plural, também, imbanda. A medicina tradicional africana é ritualística; daí
o mbanda ou kimbanda ser comumente confundido com o feiticeiro, o que
não é correto, já que os papéis são bem distintos: o mbanda cura, o
feiticeiro (ndoki em quicongo; ver ENDOQUE) perpetra malefícios (ver
QUIMBANDA). Os pretos velhos: Incorporando práticas de outras
origens, pouco a pouco a umbanda tem reduzidos os traços de sua
africanidade. Tais traços, não obstante, sobrevivem na figura dos pretos
velhos, divinização de negros bantos tomados como ancestrais. Essas
entidades representariam uma tentativa de recriar, em terra brasileira, a
ancestralidade que a escravidão destruiu. Atraídos pelo espiritismo de
Allan Kardec, chegado ao Brasil em meados do século XIX, os primeiros
umbandistas teriam evocado, após a abolição, tais entidades, que, assim
como algumas das que são cultuadas na cabula e no omolocô,
representariam espíritos de antepassados, e antepassados bantos, como
expressamente indica a maioria de seus nomes – Vovó Cambinda, Vovô
Congo, Pai Joaquim de Angola, Vovó Maria Conga etc. – e como indica
também a sua morada mítica, Aruanda*, cujo nome remeteria ao
continente africano, simbolizado pela cidade de Luanda, capital da
República de Angola. Para certas correntes do kardecismo, porém, a
escravidão do negro no Brasil justificar-se-ia pelo fato de que, com o
sofrimento, as almas dos cativos teriam evoluído e se aprimorado. Então,
enquanto a face africana da umbanda canta, dança, come, bebe e toca
tambor, seu lado cristão faz o elogio da dor e do sofrimento por intermédio
especialmente dos pretos velhos. Cristianização: Embora tenha como base
o culto a orixás e ancestrais africanos, somado à divinização dos índios (na

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forma idealizada pela estética do romantismo brasileiro no século XIX),


hoje, sem dúvida, a umbanda é um ramo brasileiro do cristianismo que se
transforma ao incorporar novas influências. Da religiosidade tradicional
negro-africana permaneceram o culto a alguns orixás iorubanos, algumas
práticas litúrgicas, alguns símbolos – como os colares de contas –, bem
como algumas formas de sacrifícios e oferendas, além dos tambores, em
alguns casos. Essa cristianização progressiva, aliada a uma espantosa
globalização, a qual levou a umbanda a vários países, inclusive europeus,
caminhava, à época deste texto, no sentido de um branqueamento*,
mediante iniciativas que procuravam mostrar essa religião como algo mais
“científico” e menos “primitivo”. E isso contrariando os princípios que
teriam norteado o advento dessa vertente religiosa. Segundo uma versão
histórica, a umbanda teria nascido exatamente no dia 15 de novembro de
1908, em Niterói, RJ. Nesse dia, o médium Zélio Fernandino de Moraes
(1891-1975) teria incorporado, numa mesa kardecista, a entidade chamada
Caboclo das Sete Encruzilhadas, a qual teria se expressado veementemente
contra a discriminação de que, ali, eram objeto os espíritos de negros
escravos, índios e crianças, tachados de “atrasados”. Durante sua
manifestação, a entidade teria resolvido fundar um culto que abrigasse
todos esses espíritos discriminados. Entretanto, a partir do Primeiro
Congresso de Espiritismo de Umbanda, realizado no Rio de Janeiro em
1941, a própria umbanda, por meio de uma vertente conhecida como
“umbanda branca” ou “de mesa”, cada vez mais se reaproximou do
kardecismo, indo daí até o orientalismo e condenando “fetiches, seitas ou
crenças”, conforme proclamação transcrita nos anais do encontro
(conforme Renato Ortiz, 1978, p. 172). Nascia, então, segundo Ligiéro e
Dandara (1998, p. 120), o “oposto diametral” da umbanda cristã: a
vertente denominada “quimbanda”. Em 2008, escritos supostamente
psicografados, atribuídos ao espírito denominado “Ramatis”, celebravam o
centenário da umbanda dentro dessa perspectiva desafricanizante. Ver
MACUMBA [1]; OMOLOCÔ; QUIMBANDA.
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

EXU NA BANANEIRA?

I sso aconteceu numa época em que não havia conhecido nenhum ilê de candomblé,
portanto, a minha referência de Exu era a da Umbanda e da Quimbanda.

Já lia manuais de quimbanda. Foi neles que me inspirei de fazer o


que fiz: evocar Exu.

Tudo aconteceu numa noite sem ventos, perto de 21 horas – sim!


Porque o manual de quimbanda advertiu que se a evocação fosse feita
meia-noite. Eu estaria automaticamente evocando para intenções
malévolas – no entanto, eu não tinha intenções malévolas. As poucas
vezes, que utilizei do recurso de contar com ajuda do chamado mundo
espiritual, posteriormente, foi sempre com intenções benéficas.

Mas voltando ao relato. Perto de 21 horas fechei a luz do quintal,


pois havia lido no manual de quimbanda que os Exus não gostam de luz,
são entidades trevosas... [quem sou eu para questionar a tradição oral
desses manuais? ]. E levei uma vela branca. Fui até o fim do quintal,
Charles Odevan Xavier
onde ficava um pé de bananeira. Para poder transitar no escuro, fiquei
acendendo fósforos. E ao chegar ao pé da bananeira, abaixei-me e acendi
a vela. Pus a vela no pé da bananeira em cima de um caco de telha. Como
era uma noite sem vento, consegui acender a vela sem maiores
problemas. E fiz a evocação pedindo a Exu que me desse um emprego,
que estava em dificuldades financeiras, mas não queria o sacrifício de
ninguém, ou seja, prejudicar ou pisar ninguém.

Assim que terminei a evocação, da noite sem ventos, com todas as


folhas das arvores paradas, de repente começou a ter uma espécie de
redemoinho no meio das raízes da bananeira. E também eu pude ouvir
ruídos estranhos, como se bichos esquisitos invisíveis estivessem
rangendo.

Tudo isso iluminado pela luz trêmula da vela.

Eu não sei se de fato eu mexi com um Exu, mas de alguma forma


eu provoquei uma reação extraordinária. E entre causa e efeito, o efeito
foi aquele do redemoinho de vento numa noite sem ventos e de ruídos de
bichos que não conseguia ver. De alguma maneira, uma força, energia,
sei lá o que, telúrica, das profundezas da terra foi convocada a agir, a se
fazer presente, justamente após a evocação. Portanto, não sei se existe
Exu, mas energias estranhas com certeza existem.

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
Charles Odevan Xavier

O BONEQUINHO DO CÃO

U m amigo judeu sefardita e cabalista havia me dado um dinheiro


para eu poder prestar um concurso de professor de História na
rede básica de ensino.

Para garantir a aprovação no concurso


resolvi dar uma oferenda ao orixá Exu. Não era exatamente um padê
ritual. Tratava-se apenas de comprar um desses bonequinhos metálicos
que são vendidos nas lojas umbandistas para se fazer assentamentos de
Exu. Sim! Aqueles bonequinhos pintados de vermelho e preto, com
chifres e pênis ereto. Na típica representação do caráter erótico-pulsional
do orixá trickster, do orixá mercurial.

E aí fui na loja. Pedi o bonequinho. Paguei.

Quando cheguei em casa eu pus o


bonequinho na estante de ferro do meu quarto. E resolvi dar uma saída,
para resolver uns negócios.

Como minha família é uma família abusiva


e disfuncional, é claro, que ao chegar. Eles ou parte deles já haviam
entrado no meu quarto sem portas ou trancas e bisbilhotado o que havia
ali.

Quem percebeu a estatueta e foi enredar1


para minha mãe: foi minha sobrinha mais nova.

E eu ao chegar em casa dei-me conta de sua


presença atônita.

1
Na variedade dialetal cearense, o verbo enredar é
algo próximo de fuxicar, fofocar.
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

— Tio Cláudio, a mãe viu aquele bonequim


e quer saber o que é aquilo?

E aí depois, a minha mãe - tele-católica


fanática, aficionada no Pe. Reginaldo Manzotti e contribuinte da
emissora Evangelizar é Preciso – chamou-me e perguntou.

— Cláudio, o que é aquele negócio no


quarto?

Eu me fiz de desentendido, sonso.

— Que negócio?

—Aquela estátua. O que é aquilo?

—Ah! A senhora tá falando do guerreiro


africano?

—Sim! O que significa?

E eu cínico respondi:

—Um guerreiro africano.

Minha mãe pediu que eu tirasse aquele


negócio feio lá de casa, urgentemente.

E ela explicou cientificamente


convencendo-me:
Charles Odevan Xavier
—Tire, por favor, sou sua mãe. Tire! É de
mim.

O que eu acho engraçado nessa situação é


que a estatueta não estava no quarto dela, nem muito menos, na sala da
casa. Mas no meu quarto. O que me leva a concluir que eu não tenho lá
muita privacidade ou maiores direitos naquela casa.

Tanto que eu já pedi um NIS baixa renda e


me cadastrei no: Minha casa, minha dívida. Decididamente estou
cansado daquele povo chato. Daquele povo tóxico.

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

MINHA IRMÃ FUTRICA NO DESPACHO

Minha irmã é uma doidinha, de baixa escolaridade e de caráter torpe.

Interesseira, falsa, fuxiqueira. É o tipo de gente que numa residência,


num lar, numa família, resolve ficar atenta a tudo que se passa, para
poder descobrir segredos daqueles membros familiares que não contam
com grande prestígio no gradiente de poder familiar. Ou seja, oportunista
e perigosa.

Certo dia vim de uma loja de umbanda. Onde comprei uma garrafa de
marafo para agradar a Exu.

Ela, percebeu que cheguei com a mochila muito cheia. E quando me


ausentei de casa; ao chegar, peguei-a futricando na mochila.

Ela veio com uma desculpa esfarrapada. E ainda tentou me abraçar e


beijar falsamente como uma cobra que ela é.
Charles Odevan Xavier

Ela teve a audácia de pôr um recipiente plástico contendo um


condicionador do cabelo de piriguete dela na minha estante de ferro,
derrubando meus livros de umbanda e candomblé que ela despreza e
chama no seu português estropiado de: macumbagem.

Como Exu e a falange dos Caveiras 2 andam por aqui com ela; eles
derrubaram a porcaria do condicionador dela na frente dela. E ela saiu
assustada do meu quarto.

2
A falange de Caveiras é uma egrégora de espíritos
tarefeiros ligados ao meu orixá Omolu.
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

MARAFO PARA EXU

E u peguei a garrafa de marafo que estava na minha mochila no


horário de meia noite. Queria agradar a Exu. Meu interesse é que
ele me favorecesse em questões materiais e mundanas. Coisas de
sobrevivência.

Já que Exu é o b+[ara]. Ou seja, aquele que não deixa faltar o de comê
do fiel. Ara é o corpo físico, sede do emi, o sopro vital, insuflado por
Olodumaré. Este emi é equivalente ao ruah hebraico bíblico; onde
supostamente o Deus de Abraão, Isaac e Jacó teria posto seu hálito nos
lábios de Adão.

Bem. Mas isso aqui precisa ser um conto e não um ensaio teológico.

Havia comprado numa loja de umbanda a garrafa de marafo e tive o


aborrecimento com minha irmã folgada.

Além do mais, fui inventar de oferendar Exu em plena 8:30 da noite. Ou


seja, com um monte de gente passando.

Derramei o fluido do marafo na encruzilhada perto de um escritório de


advocacia do meu bairro pertencente a um advogado muito esnobe e
parece que ele viu ou algum vizinho fuxiqueiro falou para ele.

Eu estava zangado com minha irmã. Saí de lá. Fui para casa. E tranquei
no meu quarto. Exu falou nas cartas do baralho cigano que não aceitou a
oferenda. É lógico. A gente fazer uma oferenda para uma divindade com
o coração cheio de guerra; é lógico que não ia dar certo.
Charles Odevan Xavier

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

UM HOMEM VESTIDO DE PRETO

N
uma noite de madrugada no meu quarto. Eu acordei e vi
saindo do banheiro, de dentro da escuridão, um homem
vestido de preto. Nos poucos segundos que vi o homem deu
para ver seu ar imponente, seu semblante entre o arrojo e o cinismo. Ele
não era um homem negro, era branco e estava inteiramente vestido de
preto: calça, camisa, capa, meias, sapatos, cabelos, tudo negro.

Eu saí correndo com medo e gritando. Minha mãe veio do quarto


ao lado e começou a rezar em mim. Ela se disse arrepiada. E fiquei
transtornado, choramingando.

….................................................................................................................

Dias depois eu fui num centro espírita cruzado que tem perto da
minha casa. O que eu chamo de centro espírita cruzado é um lugar bem
peculiar, onde tem a prática da mesa branca, um congá cheio de imagens
Charles Odevan Xavier
da umbanda e onde os doutrinadores tentam ser kardecistas. A dona do
centro tem uma pequena lojinha de produtos de umbanda na porta de
casa, pois o centro espírita foi construído no quintal.

Pois bem. Lá, um senhor disse que talvez essa entidade que eu vi
tenha sido Seu Tranca-Rua. Já que ele afirmou que estava sentindo a
presença de Tranca-Rua perto de mim.

…................................................................................................................

Já no terminal de ônibus dias depois, eu relatei o que vi para outro


sacerdote que eu conhecia de outro templo do meu bairro. Só que dessa
vez era outro tipo de templo: um templo de catimbó, como viria a
confirmar anos depois, com o próprio sacerdote.

Ele conjeturou que podia ser o Seu Capa-Preta ou então um


quiumba3.

3
Quiumba, no meio das religiões afro-brasileiras, significa um
desencarnado de baixo padrão vibratório muito apegado à sua última vida terrena; da qual não se libertou
totalmente. É frequente entre os religiosos de terreiro afirmar que estas entidades gostam de lugares como
prostíbulos e bares de esquina. Não são espíritos intelectualmente inferiores: podem até mesmo serem argutos
juntando-se a magos negros para praticarem crimes na Terra através de mecanismos fluídicos do além: como
obsessões.
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

O que pude concluir disso tudo é que no mundo das religiões afro:
nada é preciso. Um diz que é uma coisa, já o outro diz que é outra coisa.

O certo é que esse homem vestido de preto apareceu tempos


depois da evocação na bananeira. Anos depois um sacerdote de umbanda
cruzada com angola (que conheci no bairro da Maraponga) disse quando
se abre um canal no mundo espiritual dificilmente se fecha. Ou então se
fecha com a loucura ou com a morte. Assim, eu abri um canal com o
mundo dos Exus, das elegbaras e agora a porta estava destrancada. A
minha mediunidade estava aberta para esse tipo de entidade.

Como não sou cristão não tenho o receio cristólatra que percebi
nesse sacerdote de umbanda cruzada com angola. Não tenho medo de
Exu, pois Exu não é o Diabo bíblico, embora a quimbanda tenha
egunizado 4e quiumbanizado tanto o orixá Exu, que hoje ele pode ser
confundido até com um obsessor desqualificado. Mas eu como tenho
leituras e senso crítico aguçado, não tenho medo de Exu nem de
Elegbaras.

4
Egum significa desencarnado. Pode ter uma equivalência com
os espíritos sofredores – [os irmãozinhos no léxico espírita kardecista]. Mas enquanto no mundo espírita
kardecista os desencarnados são acolhidos, doutrinados e até estudados. Já no meio afro-brasileiro eles são
evitados. Por que se acredita que os eguns ou espíritos sofredores liberam miasmas ou fluidos negativados que
podem consumir o fluido vital da pessoa encarnada – [o ‘axé’ da pessoa praticante].
Charles Odevan Xavier

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

PARA SE LIVRAR DE UM EGUM

M
aria perdeu o amante caminhoneiro num acidente de carro.
Meses depois começou a sentir-se abatida, como se algo
chupasse suas forças e energias.

João, o marido, já começava a desconfiar de algo estranho. E


vivia perguntando por que a mulher vivia suspirando e chorando pelos
cantos.

Maria sentia falta de Valdemar. Até aí tudo bem. Mas sentia o


perfume barato que o caminhoneiro usava vir do lado de fora, trazido
pelo vento. E aquele cheiro lhe dava acessos de melancolia e arrepios
pelo corpo.

Contou para Ivete, a amiga e confidente, o que estava sentindo


constantemente.
Charles Odevan Xavier
E Ivete sentenciou: — Maria, muiê tu tá com encosto do
Valdemar perto de ti. Esse negócio de sentir o prefume dele não é normal
não. Teu marido pode acabar descobrindo tudo. Sabe o que tu deve
fazer? Vai na Mãe Selma, ela é uma ótima mãe de santo. Eu posso te
levar lá.

…...............................................................................................................

Num dia que o aposentado João saiu, Maria ligou para Ivete e
foram juntas para Mãe Selma.

Chegando lá, Mãe Selma jogou as cartas. Além disso, ouviu seus
guias. E deu o diagnóstico da situação:

— Esse teu caminhoneiro não conseguiu se desligar de ti. Tu


precisas dar caminho a esse egum, se não ele vai ficar te perturbando. Ele
não faz por mal. Ele gosta de ti. Mas como morreu de desastre, ele tá
com uma negatividade que tá te prejudicando.

Maria perguntou o que poderia fazer para dar solução na situação.


Pois já faziam oito meses do desastre. E vivia sentindo o perfume do
defunto constantemente.

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

—Vamos ter que fazer um ebó no cemitério. E vai ser bem


trabalhoso. Você vai comprar o material que eu vou te passar e vamos
fazer.

Maria concordou com o preço do material e do serviço, mas


achou tudo muito complicado. Mesmo assim, como estava precisando
concordou em ir para o cemitério com a quimbandeira.

…......................................................................................................
.................................................................

Maria e Mãe Selma chegaram ao cemitério do bairro, com o


embrulho carregando todo o material do ebó. Era meia noite. Para
homenagear Ogum Megê que “fica” no portão de ferro do cemitério do
lado esquerdo, elas derramaram um pouco de cerveja branca no chão.
Mãe Selma que sabia as palavras salvou a entidade e Maria repetiu. Em
seguida colocaram um pedaço de pano vermelho no chão, em cima dele
puseram a garrafa de cerveja com o restante do conteúdo. Mãe Selma
acendeu um charuto de boa qualidade, deu três baforadas e pôs em cima
de uma caixa de fósforos aberta. Ao lado Mãe Selma acendeu uma vela
vermelha e colocou no chão.
Charles Odevan Xavier
Maria sentiu medo, mas seguindo o que Mãe Selma ensinou.
Juntas ofereceram aquele ebó para Ogum Megê com humildade, pedindo
licença para entrar no cemitério.

Do lado de dentro, derramaram um pouco de uma garrafa de


cachaça do mesmo lado do portão. Mãe Selma estendeu no chão um
pedaço de pano vermelho e pediu a Maria que a ajudasse a estender por
cima do pano vermelho: um pano preto. Por cima dos panos cruzados,
Mãe Selma colocou a garrafa de cachaça. Mãe Selma acendeu uma vela
preto-vermelha no chão ao lado dos panos cruzados. Maria abriu uma
caixa de fósforos sob comando de Mãe Selma e colocou no chão. Sobre
ela Mãe Selma pôs um charuto aceso de boa qualidade. E depois de tudo
isso, as duas fizeram um pedido de licença a Exu Porteira para entrar no
cemitério.

Ao adentrar no cemitério Mãe Selma procurou à sepultura mais


bonita. E em cima dela colocaram um pano amarelo. Maria, embora
estivesse ainda nervosa, pois nunca entrara num cemitério aquele horário
e com aquelas intenções, ajudava no que podia a Mãe Selma. Abriram
uma garrafa de champanha e despejaram um pouco do conteúdo em torno
do pano amarelo. Deixaram a garrafa de champanha em cima do pano
amarelo.

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

Em cima do pano amarelo as duas mulheres colocaram Nove


rosas amarelas sem espinhos. Os espinhos foram tirados ainda na casa de
Mãe Selma.

A quimbandeira acendeu uma vela amarela e pôs em cima do


pano amarelo. Maria abriu uma caixa de fósforos e colocou ao lado. Em
cima da caixa de fósforos, Mãe Selma colocou duas cigarrilhas.

As duas mulheres ofereceram tudo a Inhançã e pediram licença


para trabalhar no cemitério.

Mãe Selma procurou uma última sepultura preta à esquerda do


Cruzeiro das Almas. Aos pés da sepultura a quimbandeira derramou um
pouco do conteúdo de uma garrafa de cachaça. As mulheres estenderam
um pano branco e por cima dele um pano preto. Colocou a garrafa de
cachaça em cima dos panos cruzados.

A feiticeira acendeu uma vela preto-branca em cima dos panos.


Ao lado da vela, Mãe Selma repetiu o processo de colocar uma caixa de
fósforos abertos e acender um charuto de boa qualidade.
Charles Odevan Xavier
As duas mulheres pediram a Seu João Caveira que aceitasse a
oferenda e pediram licença para trabalhar no cemitério.

E depois a feiticeira e cliente foram para o Cruzeiro das Almas.


No pé dele, acenderam uma vela preta e ofereceram para Seu Omolu e
pediram licença para fazer o trabalho, finalizando as devidas evocações.

Agora se iniciava outro processo.

Mãe Selma colocou Nove velas brancas formando uma cruz ao pé


do Cruzeiro das Almas e as acendeu. Depois colocou nove dálias brancas
em formato de cruz. Por baixo da flor que ficou no centro da cruz, a
quimbandeira pôs um papel com o nome do caminhoneiro morto,
pedindo para seu Obaluaiê para dar encaminhamento a ele na
espiritualidade, para que ele não mais perturbasse Maria.

…..................................................................................................................
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

Dias depois do “trabalho” tão custoso [Maria teve que gastar


umas economias sem o marido perceber] e complicado. O efeito foi
positivo. E Maria que tinha certo preconceito com macumba, passou a
frequentar o terreiro de Mãe Selma, conseguindo até convencer o marido
aposentado de frequentarem juntos.
Charles Odevan Xavier

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

REINO DAS ENCRUZILHADAS

F
elipe estava vivendo um dilema: permanecer no emprego de
auxiliar de escritório ou abandonar tudo para fazer uma
faculdade de cinema e vídeo.

Não sabia mais o que fazer. Aquela dúvida lhe consumia noites e
mais noites mal dormidas e no dia seguinte quando ia trabalhar no
escritório sentia-se estressado e com os nervos à flor da pele, sem falar
que sentia sonolência.

A decisão que tomasse iria pagar um preço caro. Ficar no


escritório seria a acomodação, o já conhecido, a rotina. E queria novos
horizontes.

Fazer faculdade de cinema e vídeo na universidade pública local


consumiria alguns meses dedicados a passar no vestibular e depois de
aprovado talvez não conseguisse logo bolsa de assistência, apesar de ser
pobre.
Charles Odevan Xavier
E este dilema estava lhe consumindo todo o juízo. Pensava na
família: uma mãe aposentada ignorante; uma irmã fútil, estúpida e
desempregada e duas adoráveis sobrinhas pequenas. De certa forma essa
família fragilizada material e psicologicamente, dependia de seu pequeno
ordenado como complemento de renda.

Ele era cético, sabia que sua vida dependia unicamente dele e por
isso estava tão estressado em tomar uma decisão. Não confiava no acaso,
Deus, anjinhos cor de rosa. Não relegava ou delegava a um suposto
sagrado: a melhor resolução para o seu drama. A resolução tinha que
partir dele. Ele deveria estar no total controle da situação. Em sua vida
não havia lugar para o imprevisto, tudo tinha que partir dele mesmo.

Mas como andava angustiado acabou falando para um amigo do


seu namorado (Luís), o drama que estava vivendo. O que ele não contava
é que esse conhecido seu, era um exímio tarólogo e praticante de
candomblé angola.

O conhecido, Marcelo, ouviu atentamente o drama de Felipe e


formulou um vaticínio baseado no conhecimento dos catiços da
quimbanda e no tarô dos orixás, que ele sabia jogar a quase vinte anos:

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

— Você está como que na frente de uma encruzilhada. E Exu Rei


das Sete Encruzilhadas o aconselharia a ver a encruzilhada da sua vida
como ela é realmente. Uma encruzilhada num quarteirão tem vários
lados. Assim é a vida: a decisão que você tomar vai acarretar uma série
de consequências. Sendo parte dessas consequências previsíveis: no curto
prazo e imprevisíveis a médio e em longo prazo.

Felipe ficou pensativo, apesar de seu preconceito com o


misticismo, macumba e essas coisas, ele devia concordar que ouviu algo
muito sábio, viesse aquilo de que fonte fosse.

Realmente sua mãe aposentada e sua irmã desempregada iriam


chiar caso ele abandonasse o emprego, para fazer uma faculdade diurna.

A Universidade, por ser pública, talvez fornecesse uma bolsa de


assistência, já que ele era carente. Isso ele sabia de antemão porque tinha
outros amigos universitários carentes que tinham bolsa de assistência.
Mas o valor da bolsa era muito baixo.

Entretanto, daria para as despesas da faculdade. Iria almoçar no


Restaurante Universitário, não compraria livros, tiraria fotocópias de
livros e assim iria se virando quando finalmente ingressasse na faculdade.
Charles Odevan Xavier

Permanecer no escritório não estava mais lhe dando satisfação


profissional e pessoal.

Sabia que iria pagar um preço alto: cobrança familiar,


incompreensões, falta de dinheiro. Porém com ou sem Exu 7
encruzilhadas iria fazer seu curso de cinema. Estava decidido.

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
Charles Odevan Xavier

EM ANGOLA, ESCUTO A CRIAÇAO DO MUNDO

Q uando estive na zona rural de Luanda, procurei ouvir os mitos locais


com um kimbanda.

Eu levei um pequeno gravador e o kimbanda permitiu que


gravasse o seu relato. Contudo, devo advertir ao leitor que aqui não se
trata de historiografia, mas de mitologia.

…..................................................................................................................
......................................................................................................................
...........................

Primeiro houve o nada. Na reta não havia espaço nem tempo. E


no oco do nada morava Nzambi. Vivia só, contemplando a si mesmo. De
certa forma ali era a eternidade. Tudo era igual, sem diversidade e sem
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

movimento. Nzambi se entediou de tanta oquidão, de tanta mesmice e


num átimo de criatividade decidiu fazer um mundo onde sua vista
pudesse pousar a cada momento numa coisa diferente. Queria que tudo se
movesse e se transformasse. E imaginou um mundo onde até mesmo a
repetição daria origem a novidades.

Nzambi criou os nkices e atribuiu a cada um deles um de seus


poderes, para que juntos governassem o mundo.

Antes de tudo, foi preciso criar a Terra e o firmamento e o que


neles deveria existir. Gangaiumbanga, o filho mais velho de Nzambi,
recebeu esse encargo. Nzambi entregou-lhe o saco da Criação, que
continha toda a matéria imprescindível para a produção pretendida, e
falou:

—Vá e crie.

Antes de Gangaiumbanga partir, Nzambi o advertiu:

—Nada será como foi. O mundo começará a existir. Lembre-se de


que Aluvaiá, o mais novo de seus irmãos, recebeu de mim os atributos do
poder da transformação. Sem esse atributo, nada se faz: não se cria e não
se destrói; não se faz crescer ou definhar nem mesmo o mais
Charles Odevan Xavier
insignificante dos seres. Faça um ebó para Aluvaiá, você sabe o que ele
gosta de comer e ele o ajudará na criação do mundo.

Gangaiumbanga despediu-se do pai e seguiu viagem estrada a


fora, levando o saco da Criação consigo nas costas. O fardo era pesado, a
viagem era longa e cansativa. Ao passar por uma árvore de galhos
longos, cortou uma vara e improvisou um cajado para nele se apoiar ao
longo da jornada. Ele criaria o mundo, o Sol, as estrelas, a Lua e a Terra.
Encheria a Terra de mares e serras; assim como haveria rios, planícies,
planaltos e cachoeiras. A superfície da Terra seria coberta de terra firme
com plantas de todos os tipos. Seriam criados animais. A cada
pensamento na mente fértil de Gangaiumbanga, a matéria se bulia no
saco da Criação, que adquirira um pulsar lento, mas repetitivo e ficava
mais pesado. A vida já se manifestava no saco da Criação.

De longe, sem ser visto Aluvaiá acompanhava Gangaiumbanga,


no desejo de ser chamado para dar sua contribuição a grande obra.
Gangaiumbanda ia tão absorto no seu projeto de criar o mundo, que nem
percebia a que estava sendo seguido por Aluvaiá.

A cada passo que avançava no itinerário da Criação,


Gangaiumbanga ia se convencendo que não devia nada ao irmão caçula.
Ele sozinho criaria o mundo, tinha atributo para isso. Ele seria grande,

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

ruminava o pensamento, seria o maior dos nkices, e sua obra, inigualável.


Não havia motivo para se preocupar com Aluvaiá. Talvez lhe desse
alguns de comeres: uns inhames assados e meia cabaça de cachaça, de
que o irmãozinho tanto gostava. Contudo, se ele, Gangaiumbanga, estava
destinado a ser o grande nkice, por qual motivo deveria se preocupar em
fazer ebós ao irmão para que ele o ajudasse? Faria tudo sozinho, tinha o
saco da Criação! Em pouco tempo seria aclamado por todos. O mundo,
grato, lhe renderia as devidas homenagens.

Assim, matutando, Gangaiumbanga esqueceu Aluvaiá


completamente. Não se lembrou de que sem o controle sobre o
movimento, atributo que pertencia a Aluvaiá, nenhuma iniciativa poderia
dar resultado. Mas Gangaiumbanga era Gangaiumbanga. Já se imaginava
o Criador.

Desgostoso com o pouco caso do irmão, Aluvaiá tratou de


lembrá-lo de que sem sua participação nada de concreto proviria da
imaginação.

Gangaiumbanga ou Batala, um epiteto que quer dizer Senhor do


Pano Branco, por causa de seu gosto por tudo que é branco, puro e
imaculado.
Charles Odevan Xavier
Para mostrar a Gangaiumbanga que ele não era tão autossuficiente
e poderoso como imaginava, Aluvaiá lhe preparou três incidentes.

Primeiro fez Gangaiumbanga deslizar e sujar as vestes na lama da


estrada. Gangaiumbanga não suportava a sujeira, e teve que voltar para
casa para se trocar. Perdeu uma infinidade de tempo.

Quando Gangaiumbanga voltou para a estrada, tropeçou numa


cabaça cheia de azeite de dendê. E novamente sua roupa teve que ser
trocada, já que Gangaiumbanga tem quizila com dendê.

Aluvaiá a tudo assistia dando risadas com a caminhada acidentada


do irmão mais velho.

Na terceira vez, foi com carvão que Gangaiumbanga se sujou. E


lá foi ele de novo se trocar. Com tudo isso ele não se lembrou de pedir
auxílio a Aluvaiá. Não lhe deu nenhum agrado, nenhum ebó.

Odudua, outro irmão de Gangaiumbanga, que acompanhava tudo


com muito interesse e certa inveja, resolveu tirar proveito da situação.
Uma vez que o desastrado irmão se mostrava incapaz de cumprir com
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

rapidez sua tarefa, por que não tomar para si a incumbência? Afinal, o
mundo não podia ficar esperando Gangaiumbanga mudar de roupa
indefinidamente. Odudua começou a conjeturar que poderia ser ele o
Criador. Cada vez mais convencido da incapacidade de Gangaiumbanga
foi se aconselhar com seu irmão Kassumbenca, um adivinho que sabia
tudo sobre o presente, o passado e o futuro.

Kassumbenca jogou seus 16 caoris mágicos no chão, estudou o


desenho que eles formavam e disse a Odudua que seus intentos poderiam
se concretizar. Antes de tudo, deveria fazer um ebó para Aluvaiá
composto de uma porção de inhames, uma cabaça de cachaça, uma de
azeite de dendê e outra de água fresca, além de dezesseis punhados de
caoris. E não podia esquecer uma boa porção de pimenta da costa. Ao se
direcionar para o lugar onde o mundo ia ser criado, deveria levar uma
galinha de cinco dedos em cada pé, um camaleão e quarenta e uma
correntes de ferro, que alguns dizem ter sido uma cifra de quatrocentas
mil e uma. Porém, antes tinha que se apropriar do saco da Criação.

Odudua deixou o presente para Aluvaiá numa encruzilhada, de


onde ele vigiava quem ia de um lugar para outro, e se pôs a caminho do
lugar da Criação.
Charles Odevan Xavier
Ao passo que, Gangaiumbanga, prestes a cumprir seu destino, se
arrastava sob o sol inclemente, levando as costas o saco da Criação, que a
cada passo ficava mais pesado. O calor era abrasador e uma sede
tremenda lhe secava a boca.

Gangaiumbanga parou embaixo de um dendezeiro e com seu


cajado fez um furo no caule da palmeira. Do buraco jorrou um vinho
fresco e encorpado. Gangaiumbaga bebeu do vinho-de-palma até lhe
matar a sede, mas a bebida serviu com um forte sedativo. Assim, ali
mesmo na estrada, Gangaiumbanga adormeceu embriagado.

Odudua, atônito, que de longe acompanhava os movimentos do


irmão, aproximou-se e sacudiu Gangaiumbanga. Constatando que
Gangaiumbanga não acordaria tão logo de seu sono cheio de torpor,
Odudua pegou o saco da Criação, pôs nas costas e seguiu adiante,
deixando o irmão com seus sonhos de criador.

Chegando ao lugar da criação, que os eruditos também poderiam


chamar de 'axis mundi'. Odudua pegou às quarenta e uma correntes,
juntou-as uma com as outras formando uma só enorme corrente de ferro.
Por ela desceu até a superfície das aguas. Do saco da Criação tirou um
punhado de terra que aspergiu sobre as águas, e ali se formou uma ilhota,

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

um montículo. Em seguida soltou a galinha de pés de cinco dedos, e ela


pôs-se a ciscar, espalhando por todos os lados a terra do montículo.

Querendo verificar se o mundo estava suficientemente sólido,


Odudua fez descer pelas correntes o camaleão. O qual andou
seguramente pela Terra e voltou são e salvo para suas mãos. Com outros
punhados do pó da Criação, foi acrescentando ao mundo tudo o que nele
deveria haver.

Pronto! O mundo estava criado. Contente, Odudua voltou para a


casa do Pai para lhe dar a boa-nova.
Charles Odevan Xavier

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
Charles Odevan Xavier

O CHAMADO DO MATO

J oãozinho era o irmão do meio. Morava numa cidade pequena e nos


finais de semana ia para o assentamento rural onde morava o avô.

Joãozinho era um menino lido e gostava de contos de terror que


pegava na biblioteca municipal da cidade.

O avô, seu Francisco, não frequentou a escola, mas era um


homem viajado. E passara parte da juventude na Bahia, frequentando os
candomblés de Salvador.

Agora na maturidade morava no interior do Ceará num


assentamento da reforma agrária, no que foi uma grande fazenda de gado.

Tinha hábitos religiosos mestiços: misturando um catolicismo


popular com crença em fantasmas, assombrações, visagens, bruxedos e
feitiçarias.
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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

Se Seu Francisco fosse angolano, do Congo ou moçambicano, ele


seria um nganga, um sortílego, pois conhecia os fármacos da mata nativa
e os aplicava em benzeções.

Ele era um rezador e vinha pessoas de longe para ele rezar.


Charles Odevan Xavier

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO
Charles Odevan Xavier

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

UM CRIME CHEIO DE MIRONGA

D
r. Luís chegou ao local do crime. Os policiais já haviam
cercado o corpo do travesti com uma faixa de segurança
amarela e preta para impedir o avanço de curiosos e para
permitir um melhor trabalho da perícia.

O perito disse para o delegado que o travesti provavelmente


sangrou até morrer, tinha um talho profundo no pescoço e ao lado do
corpo tinha uma chave e uma cruz.

O travesti estava por cima de um pano, como que uma bandeira


negra e branca e quando os médicos-legistas suspenderam o corpo e
colocaram no rabecão; Dr. Luiz percebeu que no lugar onde estava o
corpo tinha ficado uma poça de sangue e dois tridentes prateados
pintados em formato de cruz.

Logo sua intuição descartou a possibilidade do crime ter algo a


ver com torcidas organizadas de futebol. E passou a pensar na hipótese
Charles Odevan Xavier
de magia negra, já que as cores, os símbolos e objetos remetiam ao
universo do esoterismo e de algum rito maçônico desconhecido qualquer.

Pediu para Alberto, o fotografo da polícia, fotografar tudo.

…......................................................................................................
........

No laboratório de antropologia da religião da Universidade local,


o prof. Aleister recebeu um recado da secretaria do departamento:

— Prof. Aleister tem um policial querendo conversar com o


senhor. Ele deixou um número para o senhor ligar para ele.

Aleister pegou o papel com o número e discou para o delegado.

— Bom dia! Aqui é o Prof. Aleiter com quem falo?

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

— Bom dia! Professor. O senhor não me conhece, meu nome e


Luís Carvalho. Sou delegado de polícia e gostaria de lhe mostrar umas
fotos para o senhor me ajudar a solucionar um crime.

— Bem, Dr. Luís... eu sou muito ocupado, por que o senhor me


procurou? Em que posso ser útil?

— O senhor é uma referência em religiões populares, religiões


negras, misticismo, magia, esoterismo... o crime que ocorreu parece ter
relação com essas práticas e gostaria de ter uma opinião sua.

— Certo. Eu posso reservar um tempo amanhã à tarde na minha


agenda.

…......................................................................................................
......................................................................................................................
.........................

O Prof. Aleister chegou à delegacia e o inspetor de polícia o


encaminhou para a sala do delegado Dr. Luiz Carvalho.
Charles Odevan Xavier
— Boa tarde, professor, que bom que o senhor veio.

— Sim. Em que posso ajudar?

O delegado pediu ao inspetor que trouxesse um envelope pardo.

Luiz abriu o envelope e mostrou as fotos do crime para o


professor.

— Professor o assassino ou assassina matou um travesti. Eu como


sou um homem de esquerda, não quero deixar essa morte impune. O
senhor sabe que no nosso Estado tem aumentado as denúncias contra
crimes homofóbicos. E a minha dúvida é se esse é um crime homofóbico
feito por algum psicopata neonazista, já que como o senhor está
percebendo além da vítima ser um travesti, ele era negro. Ou se o crime
tem outra motivação.

O Prof. Aleister examinou as fotos do corpo e do local do crime.


Inicialmente o professor sentiu certa repugnância pelo teor chocante das
fotos, mas como tinha amigos homossexuais ficou sensibilizado em
ajudar a resolver aquele crime.

— Dr. Luís quando foi feito esse crime?


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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

— O corpo foi encontrado na segunda-feira, mas provavelmente


foi morto na virada da sexta para o sábado.

Dr. Luís pediu para o inspetor trazer outro envelope. O inspetor


trouxe e o delegado tirou um saco onde havia uma chave e uma cruz
prateadas.

—Esses são os dois objetos metálicos que encontramos ao lado do


cadáver.

Dr. Luís pegou um pequeno gravador e pediu para o professor


emitir sua opinião, que ele iria gravar.

— Bem. A pessoa que cometeu esse crime conhece quimbanda ou


quer associar seu ato sádico com quimbanda. A forma que o rapaz foi
morto e o sangue todo, tudo leva a crer que o assassino encarou o seu
crime como uma oferenda cruenta, um sacrifício, um ebó para Exu Rei
Sete Cruzeiros.

O Delegado além de gravar, resolveu fazer anotações num bloco


de papel pontuando aquelas palavras.
Charles Odevan Xavier

— O Crime foi feito na meia-noite de sexta para sabável, ou seja,


numa evocação para magia negra, com intenções maléficas. Sábado é
regido por Saturno, o lado sombrio e nefasto do zodíaco.

— Prossiga professor, pode prosseguir que eu estou gravando e


anotando tudo. Tudo isso vai ajudar a elucidar o crime.

—A Bandeira alvinegra e uma alusão ao reino do cruzeiro, logo


tem relação com o cemitério, com a morte e com o orixá Omulu.

— O que é orixá, professor?

—Dr. Luís orixá é um arquétipo, é um ancestral divinizado da


cultura ioruba da África. Ou também pode ser uma energia da natureza
antropomorfizada. Mas, como disse, Muniz Sodré: o orixá é um
incorporal que é mais biossimbólico do que biológico.

— Nossa que coisa complicada! Esse Omo...

— Omolu.

— Pois é.. esse Omolu. Ele é do mal ou do bem?

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CONTOS DE MACUMBA E ASSOMBRAÇÃO

— Dr. Luiz a cultura africana tribal e tradicional não lida com


esses conceitos dualistas e ocidentais de bem e mal. O africano
tradicional relativiza esses conceitos. Sendo assim, Omolu é a divindade
que traz a peste, a enfermidade, mas também é o médico dos pobres, o rei
que traz prosperidade material. E uma divindade ligada a terra e tudo o
que a terra pode dar, assim como, também e ligado à terra que come os
cadáveres.

— Nossa! Muito complexo isso tudo.

— E a mitologia africana é muito complexa mesmo, tão complexa


e profunda quanto à mitologia greco-romana.

— O que sabemos da vítima até agora é pouco. Chamava-se


Raimundo, era nordestino, alagoano, para ser mais preciso. Não tinha
passagens pela polícia, não usava droga nem devia a nenhum traficante.
Fazia programas à noite e era diarista durante as tardes, segundo o
testemunho de outros travestis. Sim! Procuramos a Associação de
travestis local para saber o que descobrimos.
Charles Odevan Xavier

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