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ENTRE SANTOS E ENCANTADOS:

dossiê
o universo religioso e o princípio da dádiva
no bumba meu boi do Maranhão1

BETWEEN SAINTS AND ENCHANTED: the religious uni-


verse and the principle of the gift
in the bumba meu boi of Maranhão

Maria da Conceição Salazar Cano*

Introdução manifestando diferenças significativas na


nomenclatura adotada, na forma de apre-
O bumba meu boi2 – também chamado sentação, nos passos de dança, na perfor-
bumba boi, brincadeira do boi ou simples- mance, na vestimenta, na musicalidade, na
mente brincadeira que acentua seu caráter data de celebração e numa série de elemen-
lúdico – é uma manifestação da cultura po- tos distintos que refletem a cosmologia de
pular que conjuga diversão e religiosidade cada localidade.
envolvendo música, dança, poesia, cultu- No Maranhão, especificamente, além
ra material, dramatização e ritual. Embo- da dimensão lúdica, o bumba meu boi
ra seja mais expressivo nas regiões norte apresenta um acentuado caráter religioso
e nordeste do Brasil, pode ser observado que pode ser observado tanto na devoção
em vários estados do território brasileiro a Santo Antônio, São João, São Pedro e

* Doutoranda em “Patrimônios de Influência Portuguesa” da Universidade de Coimbra - UC (Coimbra/PT).


E-mail: ce.ica@ hotmail.com
1. Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no VI Congresso da Associação Portuguesa de An-
tropologia, realizado na Universidade de Coimbra, entre 1 e 4 de julho de 2016. Agradeço, particularmen-
te, ao João Leal e à Matina Ahlert pelos comentários e sugestões formulados. A pesquisa em questão foi
realizada com financiamento da CAPES através da bolsa de doutorado pleno no exterior BEX 1807/13-7.
2. Bumba ou bumbá é uma interjeição usada para a “impressão de choque, batida, pancada”. Assim, bum-
ba meu boi quer dizer “Bate! Chifra, meu boi!” (CASCUDO, 1962, p. 140). O termo deriva da expressão
‘zabumba, meu boi’, pela qual “o boi dançaria acompanhando o ritmo do zabumba”, espécie de tambor
(BORBA FILHO apud CAVALCANTI, 2000, p. 1022).

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São Marçal, em suas práticas do catolicis- destacar as análises de Regina Prado (2007)
mo popular, quanto nos terreiros e rituais sobre a relação entre a festa e a estrutura
afro-religiosos. Essa dimensão religiosa e socioeconômica no meio rural, e de Lucia-
ritualística relaciona-se diretamente com o na Carvalho (2011) sobre a diversidade de
universo simbólico da brincadeira, no qual temáticas narrativas encontradas na zona
brinca-se boi3 por devoção aos santos ju- rural maranhense e sobre a espontaneida-
ninos, principalmente São João, para, as- de dessas dramatizações. Os trabalhos de
sim, pagar uma promessa feita em virtude Michol Carvalho (1995) e de Ester Marques
de uma graça ou cura alcançada, ou para (1996), sustentados na relação tradição e
cumprir uma obrigação para com algum modernidade, abordam a espetacularização
encantado4 nos rituais afro-religiosos, so- da brincadeira e a suposta descaracteriza-
bretudo no tambor de mina5. Desse modo, ção de aspectos tidos como tradicionais –
no Maranhão, o bumba meu boi ultrapas- este é um ponto exaustivamente debatido
sa o estatuto de manifestação folclórica ou por pesquisadores, grupos de boi e instân-
cultural para ser considerado “quase uma cias governamentais de cultura.
forma de oração”6 (AZEVEDO NETO, 1983, As demais pesquisas, para citar algumas,
p. 66), assentada na devoção e na diversão7. têm focado no consumo do bumba meu boi
A bibliografia sobre a brincadeira do boi como uma atividade de lazer e um atrativo
é vasta. Dentre os estudos realizados sobre turístico e cultural (ARAÚJO, 1986), nas po-
o bumba meu boi do Maranhão é válido líticas de patrimonialização (CARVALHO,

3. “Brincar boi” é a expressão utilizada no Maranhão pelos adeptos desta brincadeira.


4. Encantados são entidades espirituais que se manifestam através da incorporação, ou transe mediúnico,
no tambor de mina – religião afro-brasileira. De acordo com Mundicarmo Ferretti (s/d: s/p), “fala-se na
[tambor de] mina que uma entidade é encantada quando teve vida terrena e desapareceu sem ter sido
constatada a sua morte. Em certo sentido, ao se encantar ela venceu a morte e pode reaparecer muito tem-
po depois incorporada em algum filho de santo, narrando sua estória”.
5. Amplamente difundido no Maranhão, o “tambor de mina desenvolveu características próprias, que o
distinguem não somente dos cultos africanos originais dos voduns e orixás, como também de outras reli-
giões afro-brasileiras” (ASSUNÇÃO, 1997, p. 200). De acordo com Sérgio Ferretti (2013, p. 264), para além
de entidades africanas, no tambor de mina também são cultuados os “caboclos”, os quais representam “no-
bres europeus que se encantaram na mina” e “entidades brasileiras”. A denominação “tambor de mina” faz
referência ao principal instrumento utilizado durante o ritual e ao forte de São Jorge da Mina, na atual
República do Gana, por onde embarcavam os escravos africanos (FERRETTI, 2013). Para um maior apro-
fundamento acerca do tambor de mina, consultar os estudos de Sérgio Ferretti (1985) e Mundicarmo Fer-
retti (1993).
6. Azevedo Neto (1983, p. 66) ressalta que “entretanto, não existem, contrariando alguns estudiosos,
quaisquer implicâncias idólatras, pois não é ao boi que rende homenagem mas, através dele, a um santo”.
7. De acordo com os dados levantados no Inventário Nacional de Referências Culturais, foram identifica-
dos no estado do Maranhão 450 grupos de bumba meu boi em 70 municípios (IPHAN, 2011a). Em São Lu-
ís, capital do estado, existem mais de 200 grupos dotados de personalidade jurídica e cadastrados nas ins-
tituições municipais e estaduais de cultura (CARVALHO, 2004a, 2004b). Entretanto, esses dados corres-
pondem à totalidade de grupos existentes, e portanto, envolvem bois de promessa, bois de encantado que
se inserem nos circuitos de apresentações, assim como, demais grupos que não mantêm vínculo religioso
com o bumba meu boi.

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2004a, 2004b), nos processos de construção assim como o dossiê de patrimonializa-
da identidade maranhense a partir da sele- ção produzido pelo Instituto do Patrimô-
ção do bumba boi como símbolo identitário nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
(ALBERNAZ, 2004; BARROS, 2005, 2007) e (2011a), que enfatiza o catolicismo popular
no personagem Cazumba8 (BEUQUE, 2010; inerente à brincadeira do boi.
MATOS, 2010). As publicações da Comissão Nesse sentido, visando contribuir para
Maranhense de Folclore, por sua vez, con- um maior entendimento acerca desse uni-
templam uma gama de etnografias acerca das verso religioso, pretendo neste estudo
variadas dimensões da brincadeira e também compreender como diferentes sistemas de
têm divulgado estudos que debatem, sobretu- crenças se conectam, se cruzam e se inter-
do, a dialética entre tradição e modernidade. ceptam no bumba meu boi através de for-
Embora o forte sentimento religioso mas criativas de devoção e diversão. Para
seja apontado nos diversos estudos sobre tal, a partir de um trabalho de campo rea-
o bumba meu boi, observa-se a falta de in- lizado entre março e setembro de 2013 em
formações mais abrangentes e sistemáticas São Luís do Maranhão, baseado fundamen-
sobre a devoção, principalmente no que se talmente na observação participante e na
refere às promessas. No entanto, é válido etnografia, procurei estabelecer um contato
sublinhar o contributo de Regina Prado mais aproximado junto ao bumba meu boi
(2007, p. 125) ao estabelecer que a promes- de Leonardo (caracterizado como um boi de
sa representa uma espécie de “contrato des- promessa) e ao boi Flor de São João (ca-
dobrado em dois tempos, onde as duas par- racterizado simultaneamente como um boi
tes envolvidas, o santo e o promesseiro, têm de promessa e de obrigação) devido ao seu
cada uma de cumprir com as partes que lhe caráter afro-religioso. Ainda, foi possível
cabem: o primeiro executando o milagre, acompanhar algumas celebrações com os
o segundo, providenciando o pagamento”. boizinhos9 de encantado nos terreiros de
Apesar de haver alguns trabalhos signifi- Nagô, Iemanjá e Fé em Deus.
cativos sobre as obrigações e a brincadei- Tendo em conta a importância da reli-
ra do boi realizada nos terreiros, a maioria giosidade no bumba meu boi e a interação
das análises socioantropológicas assume com os poderes invisíveis que envolve toda a
uma abordagem etnográfica centrada, so- ritualística da brincadeira, procuro demons-
bretudo, no ritual. Todavia, destacam-se os trar como esse caráter religioso, através da
trabalhos de Sérgio Ferretti (1996, 2013), promessa e obrigação, contribui para a ma-
Abmalena Sanches (2003), Gerson Lindoso nutenção de crenças e para o fortalecimento
(2006) e Mundicarmo Ferretti (2008), que das relações de dependência e reciprocidade
abordam a relação do bumba meu boi com que reforçam o caráter coletivo da brinca-
os encantados no tambor de mina, forne- deira, a partir de uma relação permeada pela
cendo elementos etnográficos relevantes, dádiva, i.e, voltada a atender à tríplice obri-

8. Este personagem caracteriza-se pelo uso de máscaras antropozoomórficas ou em formato de grandes


torres, veste-se com uma larga e comprida túnica trapeziforme, utiliza um cesto de fibra vegetal no qua-
dril para acentuar as ancas e atribuir graça ao seu bailado, chamando a atenção do público pela beleza e
criatividade de sua indumentária.
9. A armação dos boizinhos de terreiro costuma ter um tamanho menor do que a dos bois em outros grupos.

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gação de dar, receber e retribuir (MAUSS, ter temporário podendo ter duração de três,
2008). Desse modo, evidencio o sistema de cinco ou sete anos consecutivos, ou um ca-
trocas simbólicas existente ao analisar o ráter acrônico, uma vez que o promesseiro
bumba meu boi como um instrumento de pode comprometer-se com a brincadeira
reciprocidade entre pessoas e divindades. “enquanto tiver vida” e/ou saúde.
Também pode ocorrer a transferência da
1. O universo religioso no bumba meu boi promessa para uma terceira pessoa, geral-
mente um filho do promesseiro, atribuindo à
O sentimento religioso e a estreita liga- promessa um caráter hereditário, uma vez que
ção estabelecida com os santos populares é transmitida através das gerações; ou fazer a
são determinantes para a criação e também promessa para outra pessoa pagar em seu lu-
para continuidade de determinados grupos gar, normalmente, o “agraciado”. Muitos pais,
de bumba meu boi, visto que parte deles é avós e demais familiares costumam pedir pela
criada a partir de uma promessa ou obri- saúde de seus entes queridos quando estes en-
gação, e que somente alguns persistem, contram-se com alguma enfermidade, e, ao
enquanto outros sucumbem. Em geral, as alcançarem a graça ou a cura, “preparam11” o
promessas estão relacionadas com saúde, filho, neto ou parente para brincar boi. Segun-
problemas financeiros ou resolução de al- do Michol Carvalho (1995, p.74) a “seriedade
guma situação grave e podem ser sancio- do compromisso assumido com o santo – [é]
nadas de diferentes maneiras, variando tão forte que vai além da morte – sendo, in-
conforme o acordo estabelecido entre o clusive, transferido a terceiros”. Tal aspecto é
promesseiro e o santo: há quem prometa observado quando o promesseiro morre antes
brincar boi para São João e participar de al- de cumprir a promessa, competindo à sua fa-
gum grupo já constituído; ou contratar um mília o dever de efetivá-la.
grupo para brincar na porta de sua casa; Há, ainda, aqueles que começam a brin-
ou oferecer algum bem simbólico e/ou ma- car para pagar uma promessa, mas depois
terial a determinado grupo; ou “botar um de quitar sua dívida com o santo, conti-
boi” na rua, ou seja, organizar um grupo e nuam na brincadeira por prazer, diversão,
providenciar todas as condições necessárias mas sobretudo, em função dos laços de
para que ele possa sair às ruas, i.e, reunir amizade, sociabilidade e solidariedade que
brincantes10 fornecendo vestimentas, ins- estabelecem a partir do bumba boi. Ou-
trumentos, transporte para o deslocamento, tra forma de pagamento de promessa que
alimentação e bebida durante a celebração. merece referência foi apontada por Jandir
Tais promessas podem manifestar um cará- Gonçalves12, em conversa informal, pela

10. Brincantes são os indivíduos que integram os grupos de bumba meu boi.
11. Preparar, neste contexto do bumba meu boi, significa providenciar a indumentária e criar as condições
necessárias para inserir o indivíduo em um grupo de bumba boi, caso ainda não esteja ligado a nenhum.
12. Funcionário da Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão e estudioso da cultura popular, Jandir
Gonçalves, à época do trabalho de campo, era diretor da Casa de Nhozinho, a qual consiste em um espa-
ço de exposição de peças de artesanato que evidenciam elementos da vida cotidiana local, destacando os
métodos, técnicas e o saber fazer das camadas populares e de comunidades tradicionais maranhenses. Atu-
almente Jandir Gonçalves ocupa o cargo de Superintendente de Cultura Popular da Secretaria de Cultura
do Governo do Estado do Maranhão.

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qual o boi é “passado na água”, ou seja, o ticipação dos padrinhos do boi e, por vezes,
promesseiro, ritualmente deposita um boi- de um padre católico. Durante a ladainha
zinho em um pequeno barco semelhante – também realizada diante do altar, ora re-
a uma jangada e entrega-o no rio, como zada em latim ora cantada em português,
se fosse uma oferenda; caso alguém pegue e com duração de cerca de trinta minutos
esse boizinho ao longo do rio, deverá orga- –, faz-se o oferecimento das orações a São
nizar e realizar a brincadeira no próximo João, acentuando assim a dimensão reli-
ano e, em seguida, soltá-lo novamente no giosa da brincadeira. Todavia, cabe desta-
rio para cumprir a promessa que foi feita. car que essas orações em latim realizadas
Geralmente, os bois de promessa são no âmbito das celebrações do bumba boi,
orientados por um calendário relativamen- apresentam uma pronúncia um tanto de-
te fixo que obedece ao ciclo de vida do turpada, visto que os praticantes da brin-
bumba meu boi. Esse ciclo festivo é repleto cadeira não a dominam completamente. No
de orações, devoção a São João e diversão, entanto, a ladainha tem um caráter funda-
e comporta quatro momentos distintos: os mental e caracteriza as múltiplas etapas do
ensaios, o batizado do boi, as apresentações ciclo festivo da brincadeira, intervindo tan-
e a morte do boi. Normalmente, os ensaios to na abertura (nos ensaios) quanto no en-
começam no sábado de aleluia, se estendem cerramento do ciclo de vida do bumba meu
ao longo do mês de abril e maio e, para além boi, louvando São João e demais santos do
da finalidade de ensaiar as coreografias, as catolicismo popular.
músicas e as toadas13 que serão cantadas, De acordo com seu Raimundo Monteiro
pois o repertório destas muda a cada ano, da Cruz, rezador do boi de Leonardo há mais
visa também fortalecer as relações sociais de trinta anos, a ladainha “é uma tradição
e os vínculos de amizade e solidariedade que vem de muito tempo, é um oferecimen-
dentro do grupo. to falando a respeito daquela reza, daquela
O batizado do boi costuma ocorrer em promessa de santo” (entrevista concedida
23 de junho, véspera de São João; o ritual em 22 de agosto de 2013). Seu Raimundo
realiza-se diante do altar – espaço sagra- obteve esse conhecimento ao longo de sua
do dentro da sede14, onde encontram-se infância em Guimarães, por meio da orali-
diversas imagens de santos do catolicismo dade – ao acompanhar o pai nas rezas que
popular, com destaque para a de São João fazia nos vilarejos vizinhos, a pedido de
menino com o carneirinho, o dono da festa promesseiros –, e da participação nas fes-
–, denota forte caráter religioso, é marcado tividades católicas populares. Segundo seu
por orações, ladainhas15 e conta com a par- Raimundo, a ladainha que faz é uma he-

13. As toadas são as músicas compostas e cantadas pelos cantadores dos grupos de bumba meu boi; com
temática variada podem manifestar uma cosmovisão particular, prestar homenagem aos santos padroei-
ros, às entidades afro-religiosas ou a determinados indivíduos, refletir sobre acontecimentos históricos ou
contemporâneos, dentre outros temas.
14. Local onde os brincantes se reúnem, ensaiam, confeccionam as indumentárias, guardam o boi, os ins-
trumentos e as vestimentas, e realizam as cerimônias de batizado e morte do boi.
15. Os brincantes costumam denominar “ladainha” a todo o conjunto de orações, rezas, oferecimento,
benditos e versos, pronunciados e cantados, diante do altar durante a parte litúrgica.

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rança deixada pelo seu bisavô português A Senhora na janela
que migrou para o Brasil ainda no período Não lhe conhecia
colonial, e lhe foi transmitida através das De tantos martírios
sucessivas gerações, predominantemente Que Ele trazia
pela via paterna16. Para seu Raimundo, a
ladainha “é obra de Deus, é coisa de Deus Saiu atrás Dele
[...] tem gente que bota dinheiro no meu De rua em rua
bolso [para eu rezar], eu não ganho dinhei- Encontrou com Ele
ro [com reza], não, isso aí é de Deus, Deus Na rua de amargura
é quem me paga, né” (entrevista concedida
em 22 de agosto de 2013). Desse modo, a Falou ao Judas
ladainha representa um legado valioso dei- Disseste assim
xado a seu Raimundo, e este, por sua vez, Soltai o meu filho
parece preservar esta herança com fé, amor E prendei a mim
e dedicação. Assim, no batizado do boi de
Leonardo, seu Raimundo conduziu a lada- As apresentações, por sua vez, ocorrem
inha, proferiu as orações em latim e rezou com maior intensidade entre junho e julho
o “Bendito de São João”: de acordo com um calendário previamente
organizado, podem ser realizadas nos pal-
Estava na Sé cos e nas praças com patrocínio do Gover-
Fazendo oração no do Estado e da Prefeitura Municipal, nas
Chegou Madalena ruas, na porta das casas de promesseiros,
Senhor São João festeiros e terreiros, e onde chamarem o boi
para se apresentar, seja mediante pagamen-
Pedindo perdão to ou convite. Mas devido a uma dinâmi-
A Deus e a Jesus ca de contratos e convites realizados em
Pedindo perdão ocasiões diversas, as apresentações podem
Para santa cruz se estender ao longo do ano em situações
mais isoladas.
Vem cá minha amada Por fim, a morte do boi assinala o térmi-
Minha companheira no do ciclo festivo, não possui uma data es-
Vosso filho foi preso tipulada, uma vez que se realiza consoante
Na cruz de madeira o calendário e o costume de cada grupo,
podendo ocorrer entre agosto e novembro,
A Senhora levantou-se e é permeada por orações, ladainhas, dan-
Não lhe disse nada ças, músicas, dramatização e um banquete
Chegou em casa farto em comidas e bebidas para celebrar o
Banhada em lágrimas encerramento das festividades. A celebra-

16. O bisavô de seu Raimundo transmitiu este conhecimento ao seu avô; este, o transferiu ao pai de seu
Raimundo, que, por sua vez repassou a seu Raimundo. Todavia, os filhos e netos de seu Raimundo não têm
interesse nessa prática, embora eu tenha observado na celebração da morte do boi de Leonardo, alguns jo-
vens manifestarem interesse e dominarem as orações.

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ção da morte do boi varia de acordo com giões de matriz africana, nomeadamente o
a ritualística e o costume de cada grupo, tambor de mina, com base no qual consa-
pelo qual o boi pode morrer e ter a carca- grou a sede do boi demarcando os espaços
ça ou armação17 despedaçada e partilhada sagrados da casa e, dessa maneira, estabe-
entre os presentes: poderá ocorrer a morte leceu a ritualística e os alicerces simbóli-
de esbandalhar (esta será elucidada mais à cos e espirituais que ainda hoje protegem
frente); ou a meia morte (quando corta-se o grupo.
apenas a língua do boi para entregar ao A ritualística executada até os dias pre-
indivíduo que fez a promessa), ou apenas sentes obedece aos preceitos deixados por
“desmaiar”, ou ser posto em liberdade. Leonardo e envolve defumação, velas ace-
Entretanto, na atualidade, é cada vez me- sas, sacrifício de animais e cuidados espe-
nor o costume de realizar a morte propria- ciais com uma série de objetos, espaços sa-
mente dita do boi em virtude de possíveis cralizados e datas comemorativas. Embora
contratos e convites para apresentação da Leonardo já tenha falecido, sua filha Regina
brincadeira do boi ao longo do ano, em si- Avelar Santos, que dirige o grupo, realiza a
tuações isoladas, seja em eventos culturais, defumação de pés descalços conforme seu
seja em atividades voltadas para o turismo pai lhe instruiu, defuma o boi (artefato) e
local. Ainda, os elevados gastos investidos todos os compartimentos da casa com o au-
na confecção de uma nova armação de boi xílio de um turíbulo nos dias de ensaio, nas
são outro fator que corrobora a não realiza- datas comemorativas, antes do grupo sair
ção desse ritual. Desse modo, para celebrar da sede para brincar e quando retorna, com
a morte do boi, de forma geral, os grupos a finalidade de afastar os espíritos ruins e
optam por soltar o boi, permitindo a sua proteger o grupo. Nesse sentido, a obediên-
fuga, ou deixam-no desmaiado. Portanto, o cia à ritualística estabelecida por Leonardo,
ciclo festivo do bumba meu boi e toda a ri- de acordo com Émile Durkheim (2002, p.
tualística que ele envolve, articula a devo- 382), é necessária “para manter a vitalidade
ção a São João ao sentimento de diversão. das crenças em causa, para impedir que es-
Dentre os grupos formados em virtude tas últimas se apaguem da lembrança, quer
de uma promessa, destaca-se o boi da Li- dizer, em suma, para reavivar os elementos
berdade ou boi de Leonardo, como também mais essenciais da consciência coletiva”.
é conhecido, fundado em 1956 por mes- Segundo Regina, seu pai tinha uma obri-
tre Leonardo Martins Santos (1921-2004) gação para com São João e São Benedito,
como forma de pagar uma promessa feita o “santo preto” protetor dos pobres e opri-
a São João. Convém sublinhar, entretanto, midos, e padroeiro do tambor de crioula18,
a relação estreita de Leonardo com as reli- sublinhando assim a forte ligação que seu

17. A carcaça ou armação do boi é confeccionada em madeira leve e coberta por um tecido bordado ou
pintado, chamado “couro” do boi.
18. O tambor de crioula é uma manifestação da cultura popular maranhense que envolve dança circular
feminina, batida de tambores, canto e devoção a São Benedito. Os grupos mais representativos do bumba
meu boi de São Luís formam um núcleo em seu interior para compor o tambor de crioula. Do mesmo mo-
do como o bumba meu boi, o tambor de crioula pode ser praticado tanto como uma forma de divertimen-
to quanto devoção, agradecimento, promessa e obrigação para com São Benedito.

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pai mantinha com os santos. A devoção de onardo ainda estava vivo quando o boi da
Leonardo para com São João pode ser ob- promessa foi deixado de lado porque [o gru-
servada em algumas das toadas que compôs: po] já tinha nova administração e diziam:
“que promessa? A promessa é dele, deixa
O dono dessa festa é São João pra lá”. Se você está dentro de um grupo e se
O Pai nos dá o poder propôs a ajudar Leonardo, então dê continui-
E ele me dá a orientação dade ao que você encontrou, e como o boi
Nossa Senhora benze o nosso batalhão [da promessa] tinha um formato mais anti-
Se brincar boi é pecado go, mais feio, não saiu mais nas brincadeiras.
A Deus eu peço perdão Então o velho [Leonardo] adoeceu, teve as li-
nhas de santo dele todas misturadas, porque
Em conversa informal, Regina destacou quando ele teve o primeiro AVC lá no hos-
que o boi da Liberdade possui dois bois (ar- pital, ele disse para minha irmã de criação:
tefatos). Um deles é o obrigatório, ou seja, “eu não tenho mais jeito, minhas linhas es-
é o boi da promessa feita por Leonardo e tão todas trocadas”. Ele sabia a que estava
tem a idade de fundação do grupo. Embo- se referindo, que era a parte dele, a obriga-
ra a carcaça deste boi tenha sido trocada ção de santo que ele abandonou. [...] A par-
em 2008 devido à deterioração do tempo, tir do momento que ele abandonou os pon-
a cabeça do boi mantém-se a mesma e não tos dele, que não vinha acender uma vela [na
pode ser trocada ou modificada, pois tra- sede], porque essas obrigações são sérias e
ta-se de um boi de promessa. Segundo ela, quem tem que cumprir é o dono [do boi], en-
o grupo pode ter quantos bois quiser, mas tão foi outra falha dele (apud SANTOS, 2008,
não pode faltar o da promessa, pois este é o p. 206, os itálicos são meus).
boi da obrigação19.
Em Memória de velhos20, Regina nar- Atendendo às orientações de Leonardo,
ra um período de certo declínio no grupo no dia 23 de junho, véspera de São João,
ocasionado pela quebra de um tabu e pela conforme demanda a tradição, ocorreu o ba-
interrupção da ritualística de Leonardo, tal tizado do boi da Liberdade. Essa ritualística
como pode-se constatar no seguinte trecho: tem o objetivo de atribuir proteção ao grupo
simbolizado no boi (artefato); para Regina
A partir do momento que esse boi [da pro- o boi é apresentado a São João através do
messa] ficou de lado as coisas começaram a ritual do batismo. No entanto, segundo Re-
dar errado dentro da brincadeira porque ele gina, a festividade de morte do boi é a ce-
é o boi da casa, é o boi da promessa. [...] Le- lebração mais importante, pois significa que

19. No tambor de mina utiliza-se o termo obrigação para referir-se a determinados rituais de caráter obri-
gatório desempenhados pelos médiuns em benefício das entidades espirituais. No entanto, no bumba meu
boi, o termo também pode ser usado como equivalente à promessa, conforme será visto mais adiante.
20. A entrevista foi realizada com Leonardo. Entretanto, quando o Centro de Cultura Popular Domingos
Vieira Filho foi transcrever essa entrevista para a edição do livro Memórias de Velhos, detectou problemas
no áudio que dificultaram o entendimento; o fato de Leonardo estar debilitado por causa do primeiro aci-
dente cardiovascular cerebral também contribuiu para essa dificuldade. Assim, os organizadores do livro
decidiram chamar Regina para complementar a entrevista concedida por seu pai.

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o grupo conseguiu cumprir a sua missão de nhuma religião afro-brasileira, mantém a
realizar a brincadeira em mais um ciclo de ritualística de Leonardo e cuida dos espaços
vida, e que para realizar um grande festejo, consagrados da sede porque são “hábitos
com fartura de comidas, bebidas, músicas, da casa” – como costuma dizer – preser-
atrações e diversão, não poupa esforços nem vando, assim, o legado de seu pai conforme
recursos econômicos. Em 2013, gastou cer- lhe foi transmitido desde a infância, através
ca de doze mil reais: as despesas todas fo- da observação e da memória oral e visual.
ram arcadas com a verba arrecadada com E complementa:
as apresentações contratadas, porém o gru-
po contou também com a colaboração de E eu vejo assim: ele [o boi] faz parte da mi-
amigos, vizinhos e promesseiros através de nha vida, da minha luta, do meu cotidiano,
doações de alimentos, de materiais e/ou ser- eu pretendo lutar representando o boi da Li-
viços. De acordo com Regina berdade, o boi que Leonardo fundou, assim,
é como se eu tivesse fazendo aquilo que ele
[...] a gente se organiza pra gente comprar, mais queria. [...] Pra mim é assim, faz par-
aí quem fizer uma promessa e trouxer algu- te da minha vida, hoje eu não me vejo sem
ma coisa, ótimo, porque eu acho que aí é que tá inserida no boi de Leonardo (Regina, em
é a história, é você não sair pedindo, […] as entrevista concedida em 1º de setembro de
pessoas que fazem promessa, às vezes, tra- 2013, os itálicos são meus).
zem uma caixa de conhaque, de vinho, saca
de arroz, bolo. […] é um momento de confra- Regina argumenta ainda: “não esta-
ternização, momento de festa, então se é um mos fazendo uma simples festa, estamos
momento de festa, você pode dar o teu jei- cumprindo uma obrigação e de coração eu
to pra fazer a festa, assim que eu acho, en- levo essa obrigação muito à sério” (apud
tendeu. E é tão assim… tão abençoado tudo, SANTOS, 2008, p. 205). Desse modo, a ri-
que as coisas vão gradativamente chegando tualística deixada por Leonardo atende a
(entrevista concedida em 1º de setembro de determinados “tabus” e revela uma noção
2013, os itálicos são meus). êmica e um padrão de comportamento que,
acredita-se, garante a proteção, o forta-
Além da defumação, para a festividade lecimento e a união do grupo. Com base
de morte do boi, Regina preserva a prática nos argumentos de Victor Turner sobre a
de “sacrificar um animal”21 no quintal da simbologia encontrada nos rituais ndembu,
sede por ser uma “casa de festa” e exigir sustento que a manutenção dos “hábitos da
esse tipo de sacrifício, entretanto este ritual casa” – como referiu-me Regina – “não é
não é regido pela ritualística afro-religio- uma mera reunião de sinais cognoscitivos”
sa; e no dia da morte do boi, ela costuma (TURNER, 1974, p. 107), pois deles depende
respingar sal grosso no lombo do boi para a continuidade e o sucesso do grupo.
proteger o grupo da inveja e de mau olha- A ligação íntima, de natureza religiosa,
do. Embora Regina não faça parte de ne- que as pessoas mantêm com o bumba meu

21. Antigamente, sacrificava-se uma vaca, mas na atualidade, por razões econômicas, sacrifica-se um por-
co. A carne deste animal é partilhada entre os brincantes juntamente com os demais alimentos durante os
dias de festejo.

Entre santos e encantados 75


boi ultrapassa a promessa e a dimensão lú- universo religioso, revelando a devoção e
dica e festiva, para homenagear também os o sentimento de fé que seus brincantes e
mortos em visitas ao cemitério. De acordo apreciadores têm para com a brincadei-
com o relato de Jandir Gonçalves conti- ra do boi, seja em vida ou mesmo após a
do no vídeo documentário produzido pelo morte. Neste caso, a vida e morte do brin-
IPHAN (2011b), tais visitas são observadas cante personificam o próprio ciclo festivo
em Bom Jesus do Alto Mearim, Itapecuru – tal como é ritualisticamente celebrado –,
e microrregião do baixo Parnaíba, onde o evidenciando, através de formas criativas,
bumba meu boi surge “como consolador da a articulação entre o aspeto religioso e a
morte”. Embora as visitas de cova, como brincadeira.
são conhecidas, sejam raras, ainda é pos- No Maranhão, também é habitual a
sível observá-las na atualidade, sobretudo ocorrência dos boizinhos de encantados
no interior do estado, e constituem uma que, vinculados aos terreiros afro-religiosos
dimensão de análise relevante. Devo desta- (umbanda e tambor de mina), costumam
car também a ocorrência de visitas de cova brincar durante os rituais de incorporação
com a celebração do Divino Espírito San- a pedido dos encantados, em meio a deter-
to, que seguem uma ritualística semelhante minadas festividades dos terreiros, ou, da
à dos grupos de bumba boi. Conforme as mesma maneira que os bois de promessa,
imagens registradas, e que me foram gen- podem brincar nos diversos espaços orga-
tilmente fornecidas por Jandir Gonçalves, nizados pelo poder público integrando as-
os brincantes devidamente trajados, levam sim o calendário “oficial” de apresentações
o boi para dançar em cima da sepultura do do período junino. De acordo com Sérgio
falecido, com o acompanhamento de ins- Ferretti (1996), os boizinhos de encantado
trumentos, os presentes acendem velas ao foram introduzidos no calendário das co-
redor do túmulo, rezam, choram, dançam, memorações dos terreiros afro-religiosos do
brincam e cantam; neste caso, porém, o Maranhão há aproximadamente 60 anos, a
tema das toadas cantadas versa sobre o fa- partir do pedido de uma entidade espiritual
lecido e sua história. que gosta de brincar boi nos terreiros de
A visita de cova pode ser realizada du- tambor de mina e umbanda. Atualmente
rante o funeral, no sétimo dia ou em data existem mais de 30 boizinhos de encantado
posterior, para atender à solicitação do catalogados pela Secretaria de Cultura do
próprio falecido efetivada tanto antes de Estado do Maranhão.
seu falecimento, quanto posteriormente em São inúmeros os terreiros em São Luís
aparições através de sonhos ou vidências, que organizam festa de bumba meu boi
ou a pedido de algum membro da família. para os encantados. Conforme Mundicar-
Normalmente, o ritual inicia-se com um mo Ferretti (2008, s/p) os boizinhos de en-
pedido de licença cantado pelos brincantes cantado não apresentam uma organização
junto ao cruzeiro e, conforme narra Jandir complexa, visto que seus brincantes são os
Gonçalves no documentário produzido pelo frequentadores do terreiro, mas, por ve-
IPHAN (2011b), “é a cantoria mais impor- zes, “costumam contar com a participação
tante, porque é ali que se ajoelhariam todas de grupos de boi comandados por pessoas
almas” do cemitério. Tal dimensão ratifica amigas ou cujo dono é devoto da entidade
a forte relação do bumba meu boi com o a quem pertence o boizinho e para quem

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é oferecida a brincadeira”. De uma forma durante o toque do tambor de mina realiza-
geral, as festividades dos boizinhos de en- do no dia 24 de junho, em meio às manifes-
cantado não obedecem ao ciclo festivo do tações mediúnicas de ordens diversas, após
bumba meu boi, mas seguem a dinâmica a “chegada” das entidades. Com o boizinho
dos festejos de cada terreiro e, por vezes, ao centro de uma roda, os padrinhos (pes-
nascem, brincam e morrem dentro dos ter- soas vinculadas ao terreiro) batizaram-no
reiros, sem saírem às ruas (IPHAN, 2011a). com água benta e um ramo de folhas, acen-
A partir de observações realizadas na deram velas e os demais encantados canta-
Casa de Nagô, Terreiro de Mina Iemanjá e ram e brincaram com o boizinho de seu Lé-
Terreiro Fé em Deus pude constatar que a gua e em seguida encerraram a celebração.
brincadeira com os boizinhos de encantado Inserida nas festividades de encerra-
pode tanto ocorrer sem data marcada, du- mento das comemorações do Divino Es-
rante os rituais de incorporação a pedido pírito Santo, a morte do boizinho de seu
dos encantados, quanto em meio a deter- Légua foi realizada em 28 de agosto. Pri-
minadas festividades dos terreiros, quando meiramente, houve o toque de tambor de
ocorre o batizado e a morte dos bois. Os mina no terreiro de Iemanjá para “chamar”
batizados costumam ocorrer durante o pe- os encantados; logo que estes se manifes-
ríodo junino em homenagem a São João ou taram, seguiram em cortejo pelas ruas do
São Pedro, e, geralmente, o ritual de bati- bairro à procura do boi juntamente com a
zado dos boizinhos de encantado consiste população local e os cantadores convida-
em uma celebração relativamente rápida, dos especialmente para esta ocasião com
de caráter privado, realizada durante o to- a finalidade de entoar toadas referentes à
que22 de tambor de mina, admitindo pouca morte do boi. Ao longo do trajeto, o cor-
assistência para além dos frequentadores tejo parava em frente a inúmeras casas de
habituais dos terreiros. Já as festividades promesseiros e de demais pessoas ligadas
de morte dos bois dependem do calendário ao terreiro para cantar e homenagear os
festivo de cada terreiro e, por vezes, podem donos das casas em agradecimento às doa-
coincidir com o encerramento das festas do ções e contribuições efetivadas em prol da
Divino Espírito Santo realizadas nos pró- festa e/ou de outras demandas do terreiro.
prios terreiros, entre os meses de agosto e Ao encontrar o boizinho na casa de um dos
setembro. E mais: representam um grande integrantes do terreiro, com os galhos de
acontecimento, envolvem uma gama de planta enfeitando sua cabeça a fim de sina-
atividades e atrações e contam com ampla lizar sua morte, cantou-se:
participação da população local e da comu-
nidade do entorno. Qual é hora Qual é hora
No Terreiro de Mina Iemanjá, situado no Cela cavalo vaqueiro e bota meu boi pra fora
bairro Fé em Deus, o batizado do boizinho Cela cavalo e bota meu boi pra fora
do encantado Légua Bogi Buá da Trindade, Recebi uma ordem
chamado Brilho de Santo Antônio, ocorreu Tenho que cumprir

22. Consiste no ritual ritmado pela batida dos abatás ou atabaques (espécie de tambores tocados com as
mãos) que facilita e induz o transe mediúnico e a incorporação. De acordo com o toque e o cântico, ma-
nifesta-se um determinado tipo de entidade.

Entre santos e encantados 77


Seu Légua mandou eu aqui ção para com o seu encantado. Segundo
E bota meu boi pra fora. relatou-me Izaurina Nunes24 em conversa
informal, no início, ainda em sua juven-
Então, o cortejo retornou ao terreiro de tude, dona Elzita brincava em grupos de
Iemanjá para concretizar a morte do boi; bumba boi a pedido de Surrupirinha, no
este, por sua vez, conforme a praxis da personagem do caboclo de pena. Ao ob-
brincadeira, não perdia a oportunidade de servar diversos grupos onde esse persona-
tentar fugir, embora sempre houvesse al- gem é frequente, pude constatar inúmeros
guém atento e pronto a impedi-lo. brincantes, dissimulando gestos de incor-
Ao chegar à praça pública situada em poração. Quando conseguiu construir o seu
frente ao terreiro de Iemanjá, pessoas do próprio terreiro em 1967 no bairro Saca-
bairro aguardavam a morte do boi que dan- vém, a brincadeira passou a ser feita com
çava e brincava com os encantados, com um boizinho de vara25, depois formou um
a assistência e com os garotos, os quais grupo composto por crianças para brincar
provocavam-no a todo momento para que com o boi. Na atualidade, para realizar a
este reagisse e avançasse sobre os mesmos brincadeira com o boizinho e agradar Sur-
afugentando-os. Os encantados tentavam rupirinha, dona Elzita costuma convidar
sucessivamente laçar o boi; e quando fi- um grupo de bumba boi para ajudá-la a
nalmente conseguiram, amarraram-no ao cumprir a sua missão, fazer a matança do
mourão23. Ao som de toadas que anuncia- boi de Surrupirinha e encerrar as festivida-
vam a morte do boi, fizeram-lhe um “corte” des do terreiro.
no pescoço, retiraram-lhe o “sangue”, sim- Neste contexto, é válido sublinhar o fato
bolizado no vinho, e distribuíram-no en- de muitas entidades que pedem a realização
tre alguns indivíduos ligados ao terreiro e de festas populares, tais como bumba meu
depois soltaram o boizinho permitindo sua boi, tambor de crioula ou festas do Divino
fuga, e assim, o boi de seu Légua não foi Espírito Santo, serem devotas de santos ca-
mais visto. tólicos, tal como pode ser observado em uma
Já no terreiro Fé em Deus, da “mãe de toada composta pelo próprio Surrupirinha,
santo” dona Elzita Vieira Martins Coelho, na qual, exalta a sua devoção a São João:
o boizinho pertence a Surrupirinha, cha-
ma-se Terror da Mata e apresenta algumas Esse ano eu ganhei uma prenda que há muito
peculiaridades ritualísticas que devem ser tempo eu esperava
destacadas. Embora não goste de brincar Esse ano eu ganhei uma prenda que há muito
boi, dona Elzita precisa cumprir a obriga- tempo eu esperava

23. Árvore retirada do mangue, enfeitada com brinquedos e doces para esta ocasião e depositada em fren-
te ao terreiro. Há quem faça remédio com um galho do mourão por acreditar nas propriedades terapêuti-
cas decorrentes do vínculo que mantém com o poder mágico do bumba meu boi.
24. Técnica do IPHAN e responsável pelo processo de patrimonialização do bumba meu boi do Maranhão,
Izaurina Nunes mantém estreitas relações com diversos grupos de bumba boi e alguns boizinhos de encan-
tado, sendo diversas vezes convidada a ser madrinha.
25. Consiste em um boizinho de cerca de 60 centímetros, pendurado na ponta de uma vara de aproxima-
damente um metro de cumprimento. Então, segura-se a vara para brincar e dançar com o boizinho e inte-
ragir com as demais pessoas.

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Sair de uma fazenda pra outra fazenda de Deus evitando possíveis fugas e assustando
gado as crianças que transitavam pelas ruas.
Quem me deu foi o boiadeiro por São João Ao chegar ao terreiro, o boi foi levado
abençoado para o mourão, implantado na rua ao lado
Sair de uma fazenda pra outra fazenda de do terreiro, onde havia uma imagem de
gado São Pedro e outra, em tamanho menor, de
Quem me deu foi o boiadeiro por São João São João, uma vela acesa e uma bacia para
abençoado. depositar o “sangue” do boi. O boi tentou
escapar ao laço de Surrupirinha inúmeras
Desse modo, o batizado do boi de Surru- vezes, até que finalmente este laçou-o e o
pirinha ocorreu no dia de São Pedro em 29 amarrou junto ao mourão. Este episódio é
de junho e a matança em 28 de julho para permeado de toadas que narram todos os
encerrar as comemorações do Divino Espíri- acontecimentos. Enquanto Surrupirinha
to Santo e de Senhora Sant’Ana. O ritual do segurava uma vela, o Cazumba “cortou”
batizado foi semelhante ao do terreiro de Ie- o pescoço do boi, retirou-lhe o “sangue”,
manjá, realizado em meio aos rituais de in- o depositou em uma bacia e compartilhou
corporação durante as comemorações a São entre os presentes. O miolo27 encenou a
Pedro. Entretanto, a morte do boi de Surru- morte e o sofrimento do boi, balançando o
pirinha apresentou alguns elementos signi- mourão de forma a derrubar os doces que
ficativos e diferenciais: para realizar a ma- o enfeitavam. Nesse momento, as crianças
tança do boi, dona Elzita convidou o grupo aproximaram-se do mourão para pegar os
Novo Boi de Viana26 que, sob o comando de doces. Assim, sem que ninguém o visse, o
Surrupirinha, dançou, primeiramente dentro miolo saiu debaixo da armação do boi an-
do terreiro e depois iniciou o cortejo pelas tes que esta fosse “repartida”. Em seguida,
ruas do bairro à procura do boizinho, profe- o Cazumba retirou o “couro” do boi, o qual
rindo toadas que anunciavam a sua morte. foi cuidadosamente guardado, e cortou sua
Ao longo do cortejo, Surrupirinha in- “carne”, ou seja, destruiu a armação do boi
citava as pessoas a andarem mais rápido, e repartiu os pedaços aos presentes para dar
alegando que a festa estava atrasada e que boa sorte ou para fazer infusões terapêuti-
deveria ter começado mais cedo. Ao parar cas, pois acredita-se que a armação simbo-
em frente à casa de um morador do bairro, liza a “carne” que foi oferecida a São João e
onde o boi estava escondido, o grupo parou por isso teria propriedades medicinais.
e cantou. Então o mascarado Cazumba foi Geralmente o ritual seguido da destrui-
buscar o boi e o trouxe para junto do grupo, ção da armação do boi, também chamado
devidamente caracterizado com o ramo de de “morte de esbandalhar”, está relaciona-
folhas nos chifres para sinalizar sua morte. do ao pagamento de uma promessa, e na
O Cazumba acompanhou e perseguiu o boi atualidade é raramente realizado em fun-
durante o trajeto de volta ao terreiro Fé em ção dos elevados custos investidos na con-

26. O grupo compareceu ao terreiro Fé em Deus para a realização da matança do boi de Surrupirinha tra-
jando a indumentária completa, munido de todos os instrumentos e acompanhado do Cazumba.
27. Sujeito que esconde-se por baixo da armação do boi reproduzindo seus movimentos e bailado.

Entre santos e encantados 79


fecção de uma armação de boi. Entretanto, função dessas entidades exigirem a orga-
no terreiro Fé em Deus quem determina se nização de um bumba meu boi para elas
haverá ou não a “morte de esbandalhar” é brincarem, sob o risco dos médiuns que as
Surrupirinha, que costuma ordenar a dis- incorporam sofrerem algum tipo de trans-
tribuição da “carne” do boi em anos alter- torno em suas vidas privadas caso não
nados. Após a distribuição da “carne” do atendam ao pedido do encantado. Tal as-
boi, a festa prosseguiu com música, dança, pecto pode ser observado na toada “Eu não
comidas e bebidas em abundância. queria brincar”, de autoria de Euclides Me-
Para além de ilustrar a “morte de esban- nezes Ferreira, e que integra o CD “Bum-
dalhar” já pouco observada em São Luís, ba meu boi Garotos do Cruzeiro”, o qual
na morte do boi de Surrupirinha ficou evi- contempla diversas toadas de boizinhos de
dente também a participação fundamental encantados:
do Cazumba em todo o processo, tanto na
captura e nos cuidados para o boi não fugir Eu disse que eu não queria brincar
quanto na execução da morte e na distri- Mas meu São João me ordenou
buição de sua “carne”. Tal aspecto corrobo- Eu disse que eu não queria brincar
ra ainda a afirmação de alguns intelectuais, Mas meu São João me ordenou
como por exemplo Matos e Ferretti (2009), Tenho outros compromissos
que atribuem poderes mágico-religiosos a Onde não devo faltar
este mascarado e destacam o seu caráter li- Mas com as graças divina de Deus
minar, situando-o entre o mundo dos mor- Eu vou com a sereia do mar
tos e o mundo dos vivos. Entretanto, em
Memória de velhos, Abel Teixeira – brin- Desse modo, os terreiros afro-religiosos
cante do boi da Floresta, nascido em 1934, do Maranhão costumam organizar celebra-
e intérprete do Cazumba –, relativiza esta ções envolvendo não só o bumba meu boi,
concepção sublinhando que, para além de mas também o tambor de crioula e a festa
ajudar na matança do boi, a função desse do Divino Espírito Santo com o objetivo de
personagem é provocar o riso nas pessoas agradar, homenagear e divertir os encanta-
(TEIXEIRA, 2008). dos, caboclos e preto velhos que costumam
Ao longo dos cortejos dos boizinhos “frequentar” os terreiros, como, por exem-
de encantados, foi interessante observar plo, seu Légua (Légua Bogi Buá da Trin-
a interação entre os encantados e as de- dade), Surrupirinha, Joãozinho de Légua,
mais pessoas que acompanhavam o boi Corre Beirada, Preto Velho, Dom Sebastião,
pelas ruas dos bairros. Todos caminhavam, dentre outras entidades.
cantavam e dançavam em homenagem aos Tal aspecto levou o professor Ferretti
boizinhos que iriam morrer. Alguns, indu- (1996, s/p) a considerar os terreiros do Ma-
zidos pelo ritmo das toadas incorporavam ranhão como “núcleos dinamizadores da
pelas ruas, permitindo que outras entida- cultura popular maranhense”, uma vez que
des espirituais também participassem da cultuam “entidades espirituais, voduns, ca-
brincadeira, evidenciando a interação entre boclos ou encantados, que apreciam a rea-
entidades, brincadeira, “fiéis” e assistência. lização de festas oferecidas nos terreiros em
É importante frisar o caráter de obri- sua homenagem”, e assim agregam em seus
gação inerente aos bois de encantado, em festejos diversas manifestações culturais.

80 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018


Entretanto, deve ser considerado que parte incorporação em meio à brincadeira do boi
dos brincantes de bumba meu boi, tambor é evidente sobretudo na capela de São Pe-
de crioula e praticantes das festas do Divi- dro, onde, ao prestarem suas homenagens
no Espírito Santo são frequentadores assí- e cumprirem suas promessas e obrigações,
duos dos terreiros de mina e umbanda de alguns brincantes manifestam seus encan-
São Luís. Portanto, para além de atender ao tados através do transe mediúnico observa-
desejo dos encantados, penso que se trata do dentro da própria capela.
também de uma consequência dos próprios Portanto, os boizinhos de encantado
adeptos dessas religiões transitarem entre o podem limitar-se à brincadeira realizada
“mundo” dos terreiros e o das brincadeiras nos terreiros, tal como pude constatar no
e devoções populares, promovendo assim, terreiro de Iemanjá, na Casa de Nagô e no
nos momentos oportunos e de celebração, a terreiro Fé em Deus, ou transpor as frontei-
união desses dois universos que se cruzam ras dos terreiros e integrar os circuitos das
através do bumba meu boi. apresentações contratadas, como ocorre
Ferretti (1996) destaca ainda o costume com inúmeros grupos. Todavia, muitos bois
dos grupos de bumba meu boi do Mara- de encantado que se inserem no circuito
nhão visitarem os terreiros de mina e um- comercial das apresentações contratadas,
banda com o intuito de pedir proteção às buscam manter a discrição e dissimulam
entidades. Tal acontecimento é observado determinados aspectos religiosos, como por
sobretudo à véspera de São Pedro, dia 28 de exemplo a questão da incorporação, que,
junho, quando dezenas de grupos de bumba embora seja sabido que alguns brincantes
boi visitam a Casa das Minas28 – o terreiro brinquem atuados (incorporados), isso não
de tambor de mina mais antigo de São Luís é declarado, pois poderia prejudicar os con-
–, cantam e dançam em sua porta antes de tratos e futuras apresentações.
se deslocarem à capela de São Pedro, onde Dentre os bois que pertencem a um de-
prestam homenagens ao santo, pagam suas terminado encantado, mas assumem um
promessas e cumprem suas obrigações. formato mais espetacular e passam a brin-
Deve ser sublinhada também a presença de car também nos arraiais organizados pelo
brincantes de diferentes grupos que brin- Estado, destaca-se o boi Flor de São João29,
cam boi incorporados com seus guias es- fundado por seu Antônio, um “pai de san-
pirituais, embora tal aspecto não seja reco- to” de São Luís. No entanto, seu Antônio
nhecido pela maioria dos brincantes. Essa relatou-me, em conversa informal, que

28. Apontada como precursora do culto do tambor de mina no Maranhão, a Casa das Minas é considera-
da o terreiro de mina mais antigo de São Luís, foi fundada em 1840 por escravas africanas oriundas de
Daomé (atual Benin), possui organização matriarcal e caracteriza-se por “receber” apenas entidades afri-
canas (FERRETTI, s/d). Em 2002, a Casa das Minas foi tombada pelo IPHAN através do processo Nº-
1464-T-00, cuja inscrição foi registrada no Livro do Tombo Histórico e no Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico em função de seu valor cultural e de sua “relevância para a memória nacional do ponto de
vista cultural, histórico, étnico, antropológico e social” (ANDRÉS, 2002, p. 5).
29. Tanto o nome do boi Flor de São João quanto o de seu Antônio foram alterados. Como este grupo ori-
ginou-se no terreiro a partir do desejo de um encantado e passou a inserir-se nas programações juninas
do Estado, optei por manter o anonimato para preservá-lo, visto que a declaração de tal aspecto pode pre-
judicar futuros contratos e apresentações, tal como confessou-me seu Antônio, dono do grupo.

Entre santos e encantados 81


esse boi pertence a Joãozinho de Légua, dos), mesmo em grupos que não mantêm vín-
entidade que seu Antônio incorpora, e foi culo com os encantados e religiões afro-bra-
“recebido” por volta de 1972. Mas só as- sileiras, caracterizando uma relação direta
sumiu a atual configuração e passou a sair entre o brincante e a divindade. Alguns, in-
às ruas e se apresentar nos arraiais a partir duzidos pelo ritmo das toadas e pela mística
de 1999, em decorrência de uma promes- envolvente incorporam entidades que gostam
sa feita a São João, a qual será cumprida de brincar boi, seja nas apresentações ou nos
para o resto da vida. Assim, o grupo de seu rituais de batizado e morte do boi, permitin-
Antônio possui dois bois: um representa o do que outras entidades espirituais também
boi do encantado e chama-se Flor da Mata participem da brincadeira, evidenciando as-
enquanto o outro simboliza a promessa e sim o encontro de divindades e o cruzamen-
denomina-se Flor de São João. to de religião, brincadeira e “fiéis”. Portanto,
Diante das dificuldades em arcar com observam-se as trocas e ambivalências que,
todas as despesas do grupo30 e cumprir sua articuladas no bumba meu boi do Maranhão,
promessa, seu Antônio destaca que a “fé no enriquem a brincadeira e sublinham a sua di-
santo” o motiva e o tranquiliza, pois, na sua versidade litúrgica.
concepção, “Deus é grande, a fé da gente Para Ferretti (2014), essas trocas repre-
que é mais importante, a fé que cura, né, sentam o sincretismo presente na religio-
acredito, tenho muita fé em São João [...] eu sidade, na cultura popular e em demais
pedi para ele olhar pela gente que tá com aspectos da realidade social maranhense, o
problema, para ele resolver, ele vai ajudar a qual, ora revela-se como um paralelismo ou
gente” (entrevista concedida em 25 de abril justaposição de ideias e valores que apro-
de 2013). E assim, seu Antônio acredita que ximam-se, mas não se confundem, ora se
conseguirá continuar cumprindo sua pro- configura como uma mistura, fusão ou hi-
messa de botar o boi na rua enquanto vivo bridação de elementos culturais e religiosos
for. Esta fé no santo manifestada por seu de diferentes procedências, ou ora é mar-
Antônio, bem como o sentimento de devo- cado pela convergência ou pela separação
ção e confiança em São João que ajudará de rituais e crenças. Assim, Ferretti (2014)
a superar as dificuldades para a brincadeira aponta a relação entre divindades africanas
do boi ter continuidade, é notória em todos e católicas como exemplo de paralelismo
os grupos com quem conversei e também ou justaposição; e, como casos exemplares
sobressai nos discursos dos diferentes brin- de fusão, mistura ou hibridação, destaca as
cantes que contam com o auxílio do santo festas de bumba meu boi, tambor de crioula
para superar as dificuldades enfrentadas ao e do Divino Espírito Santo realizadas nos
longo da vida. terreiros de mina como forma de homena-
É válido sublinhar, ainda, a existência de gear e/ou atender o pedido de algum en-
brincantes que brincam atuados (incorpora- cantado, assim como, a prática de pessoas

30. As despesas totais com a produção do boi Flor de São João – confecção das indumentárias, contrata-
ção da orquestra, aluguer de autocarro para deslocar os brincantes nos dias de apresentação e preparati-
vos para a celebração do batizado e morte do boi – aproximam-se dos 40 mil reais por ano, sem contar
com a colaboração que recebe dos amigos e de determinados políticos com quem seu Antônio estabelece
algum tipo de relação.

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brincarem boi para cumprirem promessas ambas as direções do contato impulsiona
feitas aos santos do catolicismo popular. processos criativos (ASSUNÇÃO, 2005).
No entanto, é válido sublinhar que, Portanto, como argumenta Assunção
em conformidade com Mathias Assun- (2005, p. 162) “a crioulização não sugere
ção (2005), o termo sincretismo tem sido uma mera fusão, fornece a melhor solução
evitado e mesmo criticado por lideranças para a análise deste vasto escopo de possi-
afro-religiosas e militantes do movimento bilidades dinâmicas que vão desde a fusão
negro que buscam, na atualidade, um pro- simples à convergência, até a associação e
cesso de dessincretização ou reafricaniza- o paralelismo sem amálgama”.
ção, pelo qual as religiões afro-brasileiras Embora reconheça associação ou fusão
deveriam se livrar dos elementos cristãos entre práticas afro-religiosas – como é o
e afirmarem-se como práticas independen- caso do tambor de mina do Maranhão –,
tes, derivadas de africanos. Neste sentido, Assunção (2005, p. 161) afirma que as lide-
Assunção (2005, p. 160) infere: “de fato, ranças afro-religiosas não consideram esse
pode-se argumentar que o que está em tipo de associação como representação de
crise é uma certa visão de miscigenação, sincretismo, pois definem como sincretismo
sincretismo e cultura que tem dominado a apenas “o processo pelo qual a religião do
literatura mais antiga sobre o tema” e, as- colonizador é imposta e adotada pelo co-
sim, questiona as abordagens simplistas de lonizado”, ou seja, para estes, sincretismo
sincretismo como mera fusão de elementos refere-se a “uma fusão imposta de cima”
heterogêneos. para baixo. Sendo assim, sublinhando a
Desse modo, Assunção propõe uma abor- necessidade de se repensar o uso do ter-
dagem sobre os processos de interação cul- mo e distinguir seu sentido restrito e seu
tural a partir do conceito de crioulização: sentido amplo, Assunção (2005, p. 161)
estabelece uma diferenciação fundamental
Penso que o conceito de crioulização é de entre “sincretismo vertical” e “sincretismo
longe o mais adequado para subsumir os di- horizontal”, e argumenta que “relações de
ferentes processos contraditórios de intera- poder desiguais são, portanto, um elemen-
ção cultural distinguidos por Ferretti e outros to crucial para avaliar se aspectos ‘negati-
pesquisadores. A crioulização também tem a vos’ ou ‘positivos’ prevalecem numa dada
vantagem de referir-se ao processo de hibri- combinação”. Neste sentido, “sincretismo
dismo cultural num contexto específico, o do vertical” é usado para designar “uma fusão
“Atlântico Negro”, no qual a ideia de deslo- imposta de cima para baixo” e, portanto,
camento não só do colonizador, mas também marcada por “relações de poder desiguais”,
dos escravos deportados e de suas culturas é enquanto “sincretismos horizontais” refe-
central (ASSUNÇÃO, 2005, p. 161). rem-se a trocas e cruzamentos observados
entre uma mesma classe sociocultural (AS-
Usado para referir-se a processos de hi- SUNÇÃO, 2005, p. 161).
bridação cultural no “Atlântico Negro”, o Nesta acepção, as brincadeiras de boi
conceito de crioulização está ligado à ideia realizadas nos terreiros e, da mesma ma-
de deslocamento, tanto de classes domi- neira, as promessas e obrigações, embora
nantes quanto de populações subalterniza- marcadas pela mediação e predominância
das, e sugere que o intercâmbio cultural em dos “pais” e “mães de santo” e dos donos de

Entre santos e encantados 83


boi, podem constituir exemplos de sincre- tem de si próprio e da sua unidade e, ao
tismo horizontal, pois representam trocas e mesmo tempo, os indivíduos são reconfir-
interações culturais observadas entre popu- mados na sua natureza de seres sociais”,
lações subalternizadas e, portanto, dentro seja enquanto integrantes de um grupo de
de uma mesma classe social, a partir de um boi, ou como membro de um terreiro de
acordo firmado entre fiéis/brincantes e di- tambor de mina ou de umbanda. Portanto,
vindades. Este acordo, por sua vez, é regido em concordância com Durkheim (2002), o
pelo princípio da dádiva (MAUSS, 2008), o bumba meu boi revela-se importante para
qual envolve reciprocidade entre as partes a constituição de uma coletividade, para a
e caracteriza-se pela obrigatoriedade que manutenção das crenças e propagação de
as pessoas têm de retribuir a proteção ou um conjunto de valores sociais e morais
graça divina, sob o risco de perder a for- que, de certa maneira, moldam o compor-
ça mágica, religiosa e espiritual, conforme tamento dos praticantes, sejam estes brin-
será abordado a seguir. cantes, admiradores ou afro-religiosos.
Nesse contexto, a dimensão social do
2. O sistema de trocas no bumba meu boi bumba meu boi é importante para o for-
talecimento do sentimento de pertença e
As trocas, articulações e cruzamentos para a consolidação dos laços afetivos e
culturais revelam o complexo universo do das relações de reciprocidade que reforçam
bumba meu boi, uma brincadeira que está o caráter coletivo da brincadeira. Essas re-
presente na vida cotidiana de grande parte lações não se estabelecem apenas dentro de
da população maranhense. Assim, eviden- um grupo, mas também se alargam à parte
cia-se, um habitus próprio transmitido ao da vizinhança que se envolve com a festa.
longo de gerações, pois, como define Pierre Tanto no caso do boi de Leonardo, quanto
Bourdieu, o habitus deve ser no boi Flor de São João e nos boizinhos
dos terreiros de Iemanjá e Fé em Deus, esse
[...] entendido como um sistema de disposi- vínculo com a vizinhança foi observado
ções duráveis e transponíveis que, integran- sobretudo nas festividades de morte do boi,
do todas as experiências passadas, funciona quando determinadas pessoas colaboraram
em cada momento como uma matriz de per- para essas festividades através de doações
cepções, apreciações e ações e torna possível de gêneros alimentícios, bebidas de diver-
cumprir tarefas infinitamente diferenciadas, sas espécies e demais materiais e serviços
graças à transferência analógica de esque- necessários para a produção da festa. Ain-
mas (BOURDIEU, 2002, p. 167). da, no dia do ritual de matança do boi, os
grupos saíram em cortejo pelas ruas dos
Desse modo, o bumba meu boi atua no bairros como forma de se despedir da co-
sentido de guiar ações e comportamentos munidade e agradecer os favores prestados.
de um determinado conjunto de pessoas. É válido referir ainda aqueles que, mes-
Através de um ritual cíclico, o bumba meu mo não colaborando diretamente com a or-
boi cria relações de identificação coletiva, ganização da festa, comparecem nos dias
pois, como abordado por Émile Durkheim festivos para prestigiar o grupo ou o terreiro
(2002, p. 382), “por meio do rito, o grupo e, simultaneamente, dançar, beber, encon-
reanima periodicamente o sentimento que trar amigos e se divertir. Este elemento de

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diversão também está presente no discurso A promessa é a relação estabelecida entre a
da grande maioria dos brincantes com quem condição humana concreta e um envólucro de
conversei, os quais, quando questionados santidade que a rodeia. Faz parte de uma visão
sobre o significado do boi em suas vidas, do mundo dentro da qual constitui um modo
destacavam: “é um prazer”, “é diversão”, de comunicação essencial. Por isso mesmo ela
“é alegria”, “é minha vida”; configurando o aproxima-se do sacrifício, ao mesmo tempo
bumba meu boi como um locus de diversão. que se insere no quadro de uma economia de
Nesta acepção, a dimensão lúdica é impor- troca (SANCHIS, 1983, p. 47).
tante para a integração entre sujeitos brin-
cantes e não brincantes, contribuindo para o Nesse sentido, a concretização da pro-
fortalecimento do caráter coletivo da festa e messa está condicionada à troca, através
do sentimento de pertença. da qual “ganha-se um maior sentimento de
A dimensão religiosa, por sua vez, pela segurança, uma certeza de proteção, uma
qual os adeptos sacrificam-se para pagar presença do sagrado que acompanhará
promessas, cumprir obrigações e agradar os o desenrolar do cotidiano da existência”
santos e os encantados, demonstra o intrin- (SANCHIS, 1983, p. 48). Desse modo, como
cado sistema de trocas (MAUSS, 2008) en- infere Sanchis (1983, p. 54), a promessa, e
tre praticantes e divindades. De acordo com da mesma forma a obrigação, revelam uma
Marcel Mauss (2008) esse sistema caracteri- estrutura de troca vertical e horizontal, pois
za-se como um mecanismo de comunicação “ao mesmo tempo, esta troca cria e reforça
e reciprocidade entre pessoas e divindades, horizontalmente os laços de uma comuni-
envolvendo uma rede de solidariedade, dade, ligando-a a um recurso ultra-social,
com regras morais que se impõem à cole- fonte de segurança psicológica, de vitali-
tividade, para atender à tríplice obrigação dade e de energia moral”. Nesta acepção,
de dar, receber e retribuir. Assim, a partir a celebração do bumba meu boi, tal como
de uma relação permeada pela dádiva es- apontado por João Leal em seus estudos so-
tabelece-se no bumba meu boi um vínculo bre a festa do Espírito Santo nos Açores, é
social que reforça as relações de poder e as resultante desse sistema de trocas simbóli-
hierarquias sociais tanto dentro dos terrei- cas entre praticantes e divindades, e, por-
ros afro-religiosos (ratificando a soberania tanto, configura-se como um “contrato ce-
do “pai” ou “mãe de santo” para com seus lebrado com a divindade que intercambia a
“filhos” e frequentadores do terreiro) como graça divina solicitada com a ‘performance’
nos grupos de bumba meu boi (acentuan- de um ritual em sua homenagem e louvor”
do o prestígio do dono do boi diante dos (LEAL, 1994, p. 68).
brincantes e promesseiros) e também nas Embora tanto a promessa quanto a
comunidade do entorno, nas quais essas li- obrigação representem um ato obrigató-
deranças exercem seu controle e poder. rio, visto que ambas fazem parte de um
Tendo em conta que, muitas vezes, é acordo estabelecido com o santo ou com
através da promessa que os indivíduos o encantado, o compromisso firmado com
buscam solução para problemas de ordem São João ou demais santos do catolicis-
pessoal de diversas naturezas e recorrem ao mo popular constitui-se como promessa,
bumba meu boi para concretizá-las, é váli- enquanto o compromisso firmado com os
da a definição de Pierre Sanchis, pela qual, encantados nas religiões de matriz africana

Entre santos e encantados 85


carateriza-se como obrigação. Muitos brin- formas criativas de devoção são fortemente
cantes vinculados ao bumba meu boi, seja elaboradas a partir de princípios católicos e
por promessa ou por obrigação, alegam que afro-religiosos que manifestam o processo de
quando deixam de brincar as coisas em sua crioulização (ASSUNÇÃO, 2005), característi-
vida começam a dar errado, revelando as- co do ethos do bumba meu boi, e revelam a
sim agencialidades do mundo para além do sua atuação em dimensões diversas, reinven-
humano que impacta na vida das pessoas. tando tradições31 e impulsionando-o a cruzar
Por isso, penso que o caráter de obrigação é fronteiras e transpor barreiras que separam
inerente a ambas as práticas, pois há o risco mundos e crenças.
dos promesseiros e dos médiuns sofrerem Embora a devoção seja determinante
sanções do santo e dos encantados se não para a criação e continuidade de alguns gru-
cumprirem com o acordo, evidenciando re- pos e que, de fato, muitos brincantes brin-
lações de dependência e reciprocidade entre quem boi por promessa ou obrigação, é vá-
os promesseiros e os santos, e entre os mé- lido sublinhar, entretanto, que este aspecto é
diuns e os encantados – tal como defende o mais evidente nos bois de terreiro onde a de-
princípio da dádiva (MAUSS, 2008). voção é marcadamente a um santo católico
Desse modo, evidencia-se que a relação e a encantados. Em grupos, como o boi da
com o santo e/ou encantado e a sensação Liberdade, por exemplo, apesar da motiva-
de dever cumprido é mais importante do ção religiosa estar presente, ela é mais sele-
que qualquer coisa, pois “botar o boi na tiva e aplica-se sobretudo à dona da brinca-
rua” é cumprir um dever, uma obrigação a deira, que visa dar continuidade à promessa
ser atingida em sua plenitude, e conforme de seu pai Leonardo, e a alguns brincantes
relatou-me seu Antônio, tem que agradar o e promesseiros. Tal como mencionado an-
santo com luxo e beleza, não pode ser de teriormente, certos brincantes começam a
qualquer jeito. Neste sentido, os gastos rea- brincar boi por promessa, mas depois de pa-
lizados em honra da divindade, seja san- garem suas dívidas com o santo, continuam
to ou encantado, “podem ser considerados na brincadeira motivados pela diversão e
como uma espécie de contra-dádiva à dá- pelos laços afetivos que constroem.
diva divina solicitada” (LEAL, 1994, p. 72). Essas formas criativas evidenciam-se
Para além do cumprimento das promessas ainda na relação entre a religiosidade e o
e das obrigações, nota-se ainda o forte senti- caráter lúdico, uma vez que elas estão in-
mento religioso e a interação com os “poderes trinsecamente articuladas no bumba meu
invisíveis” (TURNER, 1988) em múltiplas di- boi, não havendo, portanto, fronteiras entre
mensões da brincadeira, como por exemplo, essas dimensões. Nesta acepção, a devoção
a exaltação às divindades no conteúdo das configura-se em um modo de diversão, da
toadas, nos bordados das indumentárias, nas mesma forma como a diversão está envolta
orações, nos cânticos, nas ladainhas, nas in- por uma aura sagrada, abrangendo tanto
corporações e em toda a ritualística. Assim, os brincantes e adeptos quanto as divin-

31. Segundo definiu Eric Hobsbawm (1984, p. 9), a invenção da tradição é entendida como um “conjunto
de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ri-
tual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que
implica, automaticamente; uma continuidade em relação ao passado”.

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dades que se manifestam através do transe identitárias que permitem a sua continuida-
mediúnico para brincar boi e louvar São de ao longo do tempo e em diversos espaços.
João. Assim, o bumba meu boi manifesta
uma “visão de mundo” própria, nos termos Considerações finais
abordados por Victor Turner (1988), e se
fortalece como um espaço de diversidade e Neste estudo procurei demonstrar a pro-
alteridade cosmológica. funda ligação com o sagrado, com a devo-
Desse modo, através do lúdico e da reli- ção e com a oração observada no bumba
giosidade, o bumba meu boi ressignifica o meu boi, que revela uma “visão de mun-
sentido da vida de muitos adeptos e brin- do” (TURNER, 1988, p. 85) particular dos
cantes, os quais, por meio da brincadeira, brincantes e demais indivíduos envolvidos
parecem “ter construído, ao lado do mundo com o bumba boi, e que evidencia a inte-
oficial, um segundo mundo e uma segunda ração do bumba meu boi com os “poderes
vida”, conforme a acepção de Mikhail Ba- invisíveis”, através de promessas feitas aos
khtin (2010, p. 5). Esta segunda vida, criada santos do catolicismo popular ou de obri-
durante o ciclo ritualístico e totalmente de- gações para com os encantados nos rituais
dicada32 ao bumba meu boi, revela a exis- do tambor de mina e umbanda. Em concor-
tência de uma “dualidade do mundo” vi- dância com Victor Turner, penso que essa
venciada pelos praticantes a cada ano, pela dimensão religiosa é fundamental “para a
qual, é possível compreender a “consciên- compreensão do pensamento e do senti-
cia cultural” dessa população (BAKHTIN, mento das pessoas sobre aquelas relações,
2010, p. 4-5). Assim, através do bumba e sobre os ambientes naturais e sociais em
meu boi, as pessoas são temporariamente que operam” (TURNER, 1988, p. 19).
transportadas para fora de si, distraídas das Tendo em conta que essa religiosidade
suas ocupações e das preocupações habi- encontra-se articulada à dimensão lúdica,
tuais (DURKHEIM, 2002). uma vez que a brincadeira é voltada tanto
Nesse contexto, promove-se, ainda, uma para o divertimento de pessoas em honra às
“fuga provisória dos moldes da vida ordi- divindades, quanto de divindades que gos-
nária” (BAKHTIN, 2010, p. 8) que renova as tam da brincadeira, posso concluir que não
promessas, as obrigações e os laços de soli- há uma fronteira entre diversão e devoção
dariedade, e regenera a vida de brincantes no cerne do bumba meu boi. Desse modo, o
e demais pessoas intimamente ligadas ao bumba meu boi revela a sua capacidade de
bumba meu boi. Portanto, ao mesmo tempo ultrapassar as fronteiras, através de formas
que o bumba meu boi simboliza a diversão, é criativas de devoção e diversão que se ma-
marcado também pela devoção, configuran- terializam na brincadeira por meio de agen-
do-se, dessa forma, como um espaço de in- cialidades que impactam significativamente
teração criativa entre os distintos universos na vida das pessoas, e assim a brincadeira
que se articulam na brincadeira reforçando consagra-se como um mecanismo de reci-
epistemologias, significados sociais e formas procidade entre seres divinos e pessoas.

32. É válido mencionar que muitos dos brincantes chegam a tirar férias de suas atividades profissionais
para vivenciarem mais intensamente o período festivo.

Entre santos e encantados 87


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Entre santos e encantados 89


Resumo Abstract

Conhecido nacionalmente como a mani- Known nationally as the most emblematic


festação cultural mais emblemática do Ma- cultural manifestation of Maranhão, the
ranhão, o bumba meu boi destaca-se pela bumba meu boi stands out for the ludic di-
dimensão lúdica e pelo caráter religioso, mension and the religious character, which
o qual pode ser observado tanto em suas can be observed both in its relations with
relações com o catolicismo popular, prin- popular Catholicism, especially in devotion
cipalmente na devoção a São João, quanto to São João (Saint John), and in his con-
em suas conexões com as religiões de ma- nections with Afro-Brazilian religions. In-
triz africana. Inseridas nessa religiosidade, serted in this religiosity, the promises and
as promessas e obrigações para com santos obligations towards saints and enchanters
e encantados destacam-se, pois assumem stand out, as they assume varying propor-
proporções variadas e podem manifestar o tions and can manifest the system of sym-
sistema de trocas simbólicas existente en- bolic exchanges between “players” and di-
tre brincantes e divindades. Estas relações vinities. These relationships reveal, through
evidenciam, através de formas criativas de creative forms of devotion, the syncretic
devoção, a disponibilidade sincrética ca- disposition characteristic of the ethos of the
racterística do ethos do bumba meu boi e bumba meu boi and reveal their action in
revelam a sua atuação em dimensões diver- diverse dimensions, reinventing traditions
sas, reinventando tradições e impulsionan- and impelling it to cross borders and to
do-o a cruzar fronteiras e transpor barreiras overpass barriers that separate worlds and
que separam mundos e crenças. Neste sen- beliefs. In this sense, considering the diffe-
tido, considerando os universos religiosos rent religious universes, I intend to unders-
distintos, pretendo compreender como estes tand how these systems of beliefs connect,
sistemas de crenças se conectam, se cruzam intersect and intercept each other in the
e se interceptam no bumba meu boi. bumba meu boi.

Palavras chave Keywords


Bumba meu boi. Religiosidade. Promessa. Bumba meu boi. Religiosity. Promise. Obli-
Obrigação. Dádiva. gation. Gift.

Recebido em: 15.01.18


Aprovado em: 13.06.18

90 Repocs, v.15, n.30, jul./dez. 2018

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