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memória afro-cubana
Ismael Pordeus Jr.
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montar o Trono, para festejar o panteão. com o material a ser utilizado. Saímos pelas
ruas de Havana Velha, até chegarmos à pra-
Tendo nascido em Havana, em 1955, ça onde havia sobrados senhoriais de três
antes da revolução castrista, de uma famí- andares e que hoje se encontram divididos
lia sem recursos, Lázaro perdeu cedo a mãe em várias residências. No térreo, uma divi-
e foi criado basicamente pelo pai. Estudou, são com uma janela e uma porta, Lázaro me
tornou-se técnico em móveis de refrigera- apresentou à dona da casa, Heloina. Entra-
ção, fez o serviço militar obrigatório, e hoje mos em uma sala pequena com um sofá e
trabalha como guarda de armazém e elas- um televisor, em uma estante. Foi indicado
ificador no cais do porto. Casou-se com que o Trono seria colocado nesse local, e se-
uma professora com quem teve duas filhas. ria o móvel, deixando livre a parede.
"Mi mamá no era santera, falleció muy jo-
ven a Ia edad de 29 anos. Pero mi papá era Foram pregadas ao teto, toalhas de
santero tenía hecho Xangô, mis hijas son renda lilás e branca, em um ponto central,
anteras, una tiene hecho Xangô y Ia otra em seguida foram estendidas para os lados.
Iemanjá, mi esposa tiene hecho Iemanjá y Em baixo desse cortinado, centralizando,
yo que tengo hecho Obatalá. Cuando era em um móvel de mais ou menos l,20m de
pequeno no creía mucho en Ia santería. No altura, foi posta a terrina contendo o as-
engo una tradición santoral en mi familia. sentamento do orixá protetor de Heloina; e
_ li papá era santero pero no practicaba Ia coberta com uma outra tolha branca, dei-
religión normalmente, vivía para adorar a xando perceber o formato da vasilha e por
5US santos nada más, o sea, que no me crió cima foram colocados o colar de contas e
una tradición religiosa. Ya después por el o maracá de contas brancas. De cada lado
estino de Ia vida, sufrí un accidente y Xan- foram postos dois bancos, cobertos com
ô para salvarme quería que yo le entregara panos adamascados, nas cores: vermelho,
mi cabeza, y entonces, así fue como eché en azul, coral e amarelo e, cobrindo os assenta-
Ia santería. Desde ese entonces hasta acá mentos e sobres eles, foram postos colares
me ha ido muy bien, he visto muchas cosas e maracás, com contas das mesmas cores
de Bicá y adoro a Obatalá. Tengo seis santos dos orixás secundários que ela estava fes-
: echo y once santos collados". tejando. Heloina entregou uma guirlanda
de pequenas luzes que foram ligadas à ele-
Começou a fazer o Trono, em 1995, tricidade. Depois foram colocadas as flores:
com o tio de uma amiga que mora em Mia- angélicas, girassóis e lírios.
zni, a quem também chama de tio. O Trono,
anteriormente, só era feito para os seus fa- No chão, sobe uma esteira, colocaram
miliares e conhecidos. Tinham tudo que era os bolos e doces: quatro bolos cobertos com
_ ecessário para realizá-Ia: os panos que se glacês, confeitados, na cor azul, escritos em
ansformam em toalhas, cortinas e os co- cima: Felicida Iemanjá e um branco com
lares. Decidiram então, fazê - 10 para qual- os dizeres: Felicida Obatalá, um outro de
quer pessoa que pedisse e, assim ter um chocolate, doce de banana de rodelas em
rendimento, alugando todo esse material, compota, canudinhos recheados com doce,
que é adquirido em Miami, como me referi cocada branca, bandeja com bolos peque-
acima, por essa sua amiga. nos confeitados, uma bacia com cocada
branca, bandeja com bombons, duas garra-
fas de rum e uma de champanhe francês.
A cesta forrada com uma toalha de renda
o TRONO tinha uma campainha dentro. Ao olhar o
trabalho concluído com a riqueza das cores
O trono é um altar que se faz para dos vários degraus dados pelos panos, os
comemorar a festa de feitura do orixá, no colares, flores, e pela fartura dos doces, a
cumprimento de uma promessa ou por de- imagem que nos fica é a de um dos sel sa-
voção. Saímos da casa de Lázaro em um grado.
reículo com três lugares, acoplado a uma
bicicleta onde foram colocadas as sacolas Enquanto Lázaro e seu tio montavam o
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tiveiro. Essa recolha foi posta na escrita,
retornou a Cuba e viraram os "libretos",
que circulavam de padrinhos a afilhados,
que demonstravam maior dedicação ao
aprendizado.
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ger Chartier (1996), como práticas da escri- xiliar no processo de transculturação, por
ta comum, ou escritas sem qualidade que, que passam todas as religiões de matrizes
durante muito tempo, foram deixadas de afro-americanas.
lado pelas abordagens clássicas das práti-
cas culturais e que, hoje, são objeto de múl- Desejaria concluir, dizendo que, o Tro-
tiplos trabalhos, de reavaliações importan- no, ao mesmo tempo, não pode deixar de
tes e encontram um lugar central sobre as ser relacionado ao altar de algumas igrejas,
interrogações dessas mesmas práticas. em Havana, onde o espaço barroco é presi-
dido pela superabundância, pela saturação
Gostaria de ressaltar que na minha úl- sem limite, pela ausência do vazio, como
tima viagem, aqui relatada, pude constatar lembra Severo Sarduy. Outra comparação
a utilização do livro, em casa de babalawos, possível é com o altar da Umbanda, de um
como manual de estudo, mas também como modo geral, construído em degraus, satu-
suporte da memória. Após a realização do rados em imagens de santo, caboclos preto
jogo de Há, o livro foi aberto, para ser lido velhos, exus e pomba-giras que sobem em
em voz alta, relatando o mito referente ao busca do infinito, como nas igrejas da Bahia
odu do jogo realizado. Conversando, de- e de Minas Gerais.
pois do ato de leitura do mito e suas eluci-
dações, explicaram-me que a utilização do
livro ocorria, porque havia muitos mitos
e, conseqüentemente, alguns saíam mui-
to mais nos jogos de consulta que outros. REFERÊNCIAS
Assim os que apareciam mais raramente
acabavam ficando esquecidos. O livro em AUSTIN J.1.. Quand dire, c'est faire. Paris: Seuil,
questão é um registro da tradição, serve 1970.
mos, ah!, exacto, entonces my father, tienes CHARTIER, R. Les pratiques de, I'ecriture ordinaire.
Lyon: Université Lumiere.Lyonê: GRS, 1996.
que de esta es mucho sacrificio, porque tu
tienes que ir corriendo para aquí, corrien- CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam.
Oeiras: Celta Editora, 1993.
do para allá, aprendiendo por aquí, apren-
diendo por allá, aprendiendo por aquí, DIENTEIL, Erwan. Les dieux et des signes. Paris: Edi-
tions EHESS, 2000.
aprendiendo por allá, y entonces, siempre
aprendes algo. Y siempre vas aprendiendo DIETERLEN, G. Textes saxcrés d' Afrique Noire. Paris:
Galimard,1965.
algo que falta" .
GOODY, J. Entre I'oralité et I'ecriture. Paris: P.u.F. Eth-
nologies, 1994.
Lázaro me informou que já havia sido
HALBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de Ia me-
padrinho de vários santeiros e me mostrou mo ire. Paris: P.U.F., 1972.
uma das versões desses livros, intitulada,
PORDEUS JR, r.. O processo de textualização na Sante-
Tratados del cuarto de santo, que ensina ria cubana. Fortaleza: UFC, 2002.
como realizar os processos rituais.
---,.,.,,-_-c----c __ La transculturalité de conte mer-
veilleux dans les mytes Afro-Cubains, In MARTÍN J-B.
Gostaria de chamar a atenção para o e DECOURT, N, Littérature orale paroles vivantes et
mouvents. Lyon, 2002.
fato de que a textualização da memória
em um suporte gráfico - o livro - irá per- SARDUY, Severo. Barroco. Paris: Seuil, 1975.
mitir a permanência dessa memória, não ZUMTHOR, Paul. La lettre et Ia voix. Paris: Seuil,
1987,
somente em Cuba, mas também como au-
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