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o tronoe a ritualização da

memória afro-cubana
Ismael Pordeus Jr.

Doutor em Sociologia e Antropologia pela


Universidade de Lyon 2 e Professor Titular do
Departamento de Ciências Sociais da UFC.

Procuro, neste ensaio, abordar um dos ões de matrizes Afro-Americanas, utilizan-


aspectos das pesquisas que venho realizan- do neste processo, o suporte oral/escrito.
do em Cuba sobre a religião designada, de Desta maneira podem-se perceber práticas
modo geral, como Santeria - a construção comuns a essas religiões como forma de
do altar votivo denominado de Trono - tal manutenção e transmissão da memória.
como é realizado em Havana de Cuba. Para
tanto, procuro apoiar-me na narração de SANTERIA CUBANA
um santeiro que arma os tronos e, ao mes-
mo tempo, nas observações realizadas du- A RegIa Lucumi ou Santeria, como é
rante as estadas em campo, que compõem designada, genericamente, é uma das reli-
as análises que venho desenvolvendo sobre giões de matriz africana, como o Candom-
os processos de transculturação das religi- blé, no Brasil e o Vodu, no Haiti. Todas elas

Montagem de um trono da santaria cubana


absorveram, em seu processo de transcul- distribuídos, na maioria, em terrinas que se
turação, práticas do catolicismo e das reli- encontravam em armários, guarda-louças,
ziôes dos autóctones. Encontramos nessas e, alguns, em vasilhas de ferro ou de barro,
religiões, a manifestação paradigmática da no chão. E, durante um ano, veste-se todo
cultura da mestiçagem que, no caso do Ca- de branco, submetendo-se a uma série de
ribe, é designada, genericamente, de criou- interdições.
la. Os santeiros crêem em um deus único:
Olorun ou Olodumaré, a fonte do axé, á Andando pelas ruas de Havana, não é
energia espiritual de que se compõe o uni- difícil encontrar homens ou mulheres ves-
-erso, os seres vivos e a matéria. Olorun tidos de branco, com turbante na cabeça,
interage com o mundo e o homem através indicando sua nova situação de pertença a
dos orixás. Cada orixá governa as forças Santeria.
a natureza e cada aspecto da vida huma-
na. a Santeria, como nas outras religiões Quando o novo santeiro tem alguma
Afro-Americanas, as pessoas recorrem aos necessidade espiritual irá procurar nova-
orixás em busca de auxílio para aflições do mente o babalawo para jogar o colar de Há
cotidiano, nos seus aspectos espirituais e e saber o que deverá ser realizado. Assim,
~ ateriais. A comunicação entre os orixás e o padrinho e a madrinha passam para um
homens se realiza através dos rituais, in- papel secundário. E a cada ano irão encon-
vocações, adivinhações, banhos de folhas, trar meios de festejar seu anjo da guarda
o terendas e sacrifícios de animais A música (o orixá), montando um Trono com muitas
e o ritmo, como em todas essas religiões, iguarias e realizando uma festa em sua pró-
auxiliam nos processos que desencadeiam pria casa.
a ossessão. Todas essas tradições têm sido
ansmitidas, pela linguagem oral e corpo- o santeiro, para quem o mundo é natu-
ral, de geração em geração, pelos vários ralmente mágico, aprende, através da ação
orocessos rituais que pontuam o cotidiano mágica, como atuar no cotidiano. Para toda
da Santeria, conduzindo a uma visão de essa cultura de mestiçagem, de um modo
undo e a um conhecimento específico que geral, a magia possui sua eficácia. Em ne-
znarca o cotidiano, conduzindo o neófito à nhuma das casas que tive oportunidade de
sessão pelo orixá que se manifesta e, estar em Havana, principalmente na Hava-
através de gestos, mantém vivas essas lin- na Velha, deixei de ver objetos referentes às
8lagens. Hoje, essa transmissão é reforça- práticas da religião, principalmente junto
'a pelo suporte da escrita. às portas de entrada, com seus potes de fer-
ro com pregos, correntes ou outros assen-
Segundo Heloina, uma santeira na tamentos, como bonecas vestidas, trazendo
casa de quem, pela primeira vez, assisti à na cabeça turbantes ou, recipientes com fa-
montagem de um Trono, na participação da cões, pedaços de ferro, pregos, parafusos,
festa, para se iniciar, o indivíduo passa por pedaços de carvão vegetal.
diversas cerimônias e, como no Candomblé
rasileiro, - o jogo do oráculo de Há, feito Todas essas questões, até aqui arrola-
elo babalawo, é que irá dizer o que deve- das, levam-nos a perceber uma diferença
rá ser realizado na iniciação. Depois vem o marcante entre a Santeria e o Candomblé:
recolhimento do iawo, durante vários dias, não termos encontrado, em Havana, qual-
onde ocorrem sacrifícios de animais e são quer barracão ou terreiro comunitário, tal
utilizadas ervas para os banhos lustrais. O como no Brasil.
ritual ocorre na casa do padrinho ou da ma-
drinha, como é designado o santeiro que vai
dirigir o processo ritual. Logo após a inicia- A VALORIZAÇÃO DAS
ção, o neófito retoma à sua casa trazendo ORIGENS AFRICANAS
todos seus pertences sagrados referentes
aos orixás. Esses objetos, designados de A antropóloga Maria Lina Leão Teixei-
assentamentos, representam o orixá e me ra, com quem realizei parte das pesquisas
foram mostrados por vários santeiros. São em Cuba, chama a atenção para a valora-

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ção no cenário brasileiro, a partir dos anos do com nossa observação e com os comen-
50 do século XX, dos sistemas de crenças tários de nossos entrevistados, em Cuba, a
"Afro" que se traduziram pela visibilidade abundância de comida e bebida só pode ser
nos meios de comunicação (programas de vista em ocasiões de cerimônias da sante-
rádio, como o de Átila Nunes, no Rio de Ja- ria, quando, "não se sabe como, as pessoas
neiro; publicação de jornais, e uma impres- conseguem tudo de bom e de melhor para
sionante produção de livros voltados para oferecer aos orixás e aos humanos que os
a temática, principalmente da Umbanda). celebram", escapando do rigor e das difi-
Valoração que também ocorre em momen- culdades que marcam o cotidiano da po-
tos marcantes que mobilizam a sociedade pulação. Evidentemente, as colocações a
nacional, como carnaval e festas de fim de respeito das privações e restrições impos-
ano. Outras festas religiosas católicas tam- tas, desde os anos 60, assim como a situ-
bém são marca das pela presença das crenças ação política, é feita de maneira evasiva,
africanas: o 15 de agosto de Nossa Senhora, ficando as críticas e os inconvenientes do
associado à Iemanjá; o 27 de setembro, de regime castrista subentendidos. Percebe-
São Cosme e Damião, associado aos Ibeji; se, no falar dos adeptos, o reconhecimento
o 13 de junho, de Santo Antonio relaciona- de uma situação melhor, de igualdade so-
do a Ogum que também é associado ao 23 cial, pós Revolução, para o povo em geral,
de abril de São Jorge. Vale lembrar que em principalmente em termos de educação e
Cuba, também essa transculturação com o saúde; no entanto, veladamente, foi-nos
catolicismo é comum, pois Santa Bárbara é relatado, várias vezes, a onipresença da
cultuada como Xangô e Obaluaiê, como São corrupção em todos os níveis, sobretudo
Lázaro, dentre outros. no que se refere ao acesso aos bens de con-
sumo. Percebemos que todos têm a consci-
Chamou-me atenção o aspecto da au- ência de que as privações impostas recaem
sência de povo de santo em Havana, como principalmente sobre a população, ficando
se tivesse havido a dissolução de comuni- isenta a pequena parcela que ocupa os altos
dades, isto é, de grupos organizados e es- escalões governamentais. É, por meio dessa
pacialmente localizados para celebrar La teia de relações veladas, que são consegui-
Ocha ou La RegIa Lucumi, ou seja, para dos alimentos e bebidas para as oferendas
reverenciar os orixás e os antepassados, de e animais para os sacrifícios e para as festas
acordo com uma hierarquia religiosa, que (presenciadas em minha estada na festa em
alicerça laços de pertença e de parentesco casa de Heloina e, posteriormente, a da fei-
entre aqueles que seguem, parcial ou inte- tura de um Babalawo brasileiro). Assim se
gralmente, um processo de iniciação, como mantêm, por meio de remessas de parentes
no Brasil. Isto não quer dizer da inexistên- e amigos (ainda não descobrimos por que
cia de um grupo mais amplo, que gostaria mecanismos, já que pelo serviço postal é
de considerar como o povo de santeria, da problemática a chegada de doações) o co-
mesma forma como, no Brasil, pensamos lorido das miçangas e dos panos que ador-
o conjunto maior de adeptos do múltiplo nam os altares, os assentamentos das divin-
universo religioso afro-brasileiro, povo de dades e os corpos dos adeptos durante os
santo. O povo de santo não supõe uma processos rituais.
homogeneidade de crenças; ao contrário,
produtos da dinâmica da transculturação
traduzem os mecanismos e os fatores ine- DE SANTEIRO A
rentes ao cenário social em que estão inse- CONSTRUTOR DE TRONO
ridos. Revelam ainda as articulações simbó-
licas que concorrem para a complexidade Foi pelas mãos de Lázaro que come-
dos imaginários religiosos Afro-Cubano e cei a entrar no imaginário Afro-Cubano.
Afro-Brasileiro. Podem evidenciar também Fui levado à sua casa por um rapaz que,
as estratégias e nuances do ser/fazer dos nas horas de folga do trabalho, se des-
adeptos que, historicamente, vem contor- dobra como guia de turismo. Lázaro me
nando as dificuldades e os conflitos com as mostrou todo os panos e colares, nas cores
ideologias e práticas dominantes. De acor- referentes a cada orixá, que utiliza para

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montar o Trono, para festejar o panteão. com o material a ser utilizado. Saímos pelas
ruas de Havana Velha, até chegarmos à pra-
Tendo nascido em Havana, em 1955, ça onde havia sobrados senhoriais de três
antes da revolução castrista, de uma famí- andares e que hoje se encontram divididos
lia sem recursos, Lázaro perdeu cedo a mãe em várias residências. No térreo, uma divi-
e foi criado basicamente pelo pai. Estudou, são com uma janela e uma porta, Lázaro me
tornou-se técnico em móveis de refrigera- apresentou à dona da casa, Heloina. Entra-
ção, fez o serviço militar obrigatório, e hoje mos em uma sala pequena com um sofá e
trabalha como guarda de armazém e elas- um televisor, em uma estante. Foi indicado
ificador no cais do porto. Casou-se com que o Trono seria colocado nesse local, e se-
uma professora com quem teve duas filhas. ria o móvel, deixando livre a parede.
"Mi mamá no era santera, falleció muy jo-
ven a Ia edad de 29 anos. Pero mi papá era Foram pregadas ao teto, toalhas de
santero tenía hecho Xangô, mis hijas son renda lilás e branca, em um ponto central,
anteras, una tiene hecho Xangô y Ia otra em seguida foram estendidas para os lados.
Iemanjá, mi esposa tiene hecho Iemanjá y Em baixo desse cortinado, centralizando,
yo que tengo hecho Obatalá. Cuando era em um móvel de mais ou menos l,20m de
pequeno no creía mucho en Ia santería. No altura, foi posta a terrina contendo o as-
engo una tradición santoral en mi familia. sentamento do orixá protetor de Heloina; e
_ li papá era santero pero no practicaba Ia coberta com uma outra tolha branca, dei-
religión normalmente, vivía para adorar a xando perceber o formato da vasilha e por
5US santos nada más, o sea, que no me crió cima foram colocados o colar de contas e
una tradición religiosa. Ya después por el o maracá de contas brancas. De cada lado
estino de Ia vida, sufrí un accidente y Xan- foram postos dois bancos, cobertos com
ô para salvarme quería que yo le entregara panos adamascados, nas cores: vermelho,
mi cabeza, y entonces, así fue como eché en azul, coral e amarelo e, cobrindo os assenta-
Ia santería. Desde ese entonces hasta acá mentos e sobres eles, foram postos colares
me ha ido muy bien, he visto muchas cosas e maracás, com contas das mesmas cores
de Bicá y adoro a Obatalá. Tengo seis santos dos orixás secundários que ela estava fes-
: echo y once santos collados". tejando. Heloina entregou uma guirlanda
de pequenas luzes que foram ligadas à ele-
Começou a fazer o Trono, em 1995, tricidade. Depois foram colocadas as flores:
com o tio de uma amiga que mora em Mia- angélicas, girassóis e lírios.
zni, a quem também chama de tio. O Trono,
anteriormente, só era feito para os seus fa- No chão, sobe uma esteira, colocaram
miliares e conhecidos. Tinham tudo que era os bolos e doces: quatro bolos cobertos com
_ ecessário para realizá-Ia: os panos que se glacês, confeitados, na cor azul, escritos em
ansformam em toalhas, cortinas e os co- cima: Felicida Iemanjá e um branco com
lares. Decidiram então, fazê - 10 para qual- os dizeres: Felicida Obatalá, um outro de
quer pessoa que pedisse e, assim ter um chocolate, doce de banana de rodelas em
rendimento, alugando todo esse material, compota, canudinhos recheados com doce,
que é adquirido em Miami, como me referi cocada branca, bandeja com bolos peque-
acima, por essa sua amiga. nos confeitados, uma bacia com cocada
branca, bandeja com bombons, duas garra-
fas de rum e uma de champanhe francês.
A cesta forrada com uma toalha de renda
o TRONO tinha uma campainha dentro. Ao olhar o
trabalho concluído com a riqueza das cores
O trono é um altar que se faz para dos vários degraus dados pelos panos, os
comemorar a festa de feitura do orixá, no colares, flores, e pela fartura dos doces, a
cumprimento de uma promessa ou por de- imagem que nos fica é a de um dos sel sa-
voção. Saímos da casa de Lázaro em um grado.
reículo com três lugares, acoplado a uma
bicicleta onde foram colocadas as sacolas Enquanto Lázaro e seu tio montavam o

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Trono, tomavam uma vez ou outra um gole deceu-me e disse que iria guardá-Ia para a
de rum. Lázaro me disse: festa do próximo ano. Fiquei observando,
tirando fotografias e tentando gravar as
...me gusta el trabajo que realizamos por- músicas. O violinista saía da cadeira apro-
que 10hacemos con amor, aparte que como ximava-se da dona da festa e acentuava o
es parte de nuestro trabajo si no 10 hace- som do instrumento. Deixei os apetrechos
mos bien no tenemos una clientela, o sea, tecnológicos do lado e também comecei a
que tenemos que poner calidad y empeno dançar. O rum era distribuído, de vez em
en 10 que estamos haciendo, para Ia gente, quando, assim como os bolos e os doces. As
quienes 10vean, que quede cuidado y en Ias pessoas se aproximavam da cesta, que es-
próximos anos nos vuelva a llamar para que tava sobre a esteira, levantavam com uma
procedamos a hacerlo. Hasta ahora a todo mão uma cédula de dinheiro em saudação,
el que le hacemos un trono el ano próximo colocavam na cesta, pegavam na campai-
se 10volvemos a hacer y así se 10hacemos a nha e tocavam-na. Em um certo momento,
sus familias santorales, a sus hijos santora- Heloina começou a balançar a cabeça, para
les, a sus amistades. frente e para trás, sacudindo o corpo de uma
forma violenta.Imediatamente, uma senho-
Em uma entrevista posterior pergun- ra se aproximou, segurou-a abraçou-a e ela
tei a Lázaro quanto era cobrado pelo alu- foi se acalmando. Logo em seguida, vol-
guel dos panos e colares, assim como pela tou a seu estado normal e voltou a dançar,
montagem do Trono; e como era o dinheiro como se nada houvesse acontecido.
dividido. Disse que eram cobrados 200 pe-
sos, sendo que 50 ficavam de reserva para Quero chamar atenção para esse as-
compra de material e os 150 divididos entre pecto da festa, feita em função da come-
eles dois. Era, em média, um trono por se- moração ao orixá, na Santeria, como acabo
mana, o que lhe dava um rendimento maior de descrever; no que se refere às fronteiras
do que o de classificador no cais do porto, sagrado/profano, tal como somos habitu-
seu trabalho regular. ados a pensar. A reverência e a possessão
de Heloina, a prostração dos demais par:
Gostaria de lembrar que podemos ticipantes, que ali se encontravam, frente
aqui perceber questões que compõem, por ao sagrado, representado pelo Trono, onde
um lado, a economia do campo do religioso (todos sabiam) se encontravam os assenta-
e, por outro, da própria economia cubana mentos dos orixás, era, indiscutivelmente
como já fiz referência acima. um ritual sagrado. E, ao mesmo tempo, as
bebidas e comidas, principalmente as dan-
ças estavam naquilo que somos habituados
A BRICOLAGEM DO a pensar como profano, a festa, o momento
SAGRADO E DO PROFANO por excelência do excesso. E, me pergunto,
se não seria uma forma herética da própria
Terminados os trabalhos, fomos em- cultura cubana de fazer essa bricolagem,
bora e fiquei de retomar à noite. Voltei ao naquilo que habitualmente é pensado como
hotel e me dirigi à loja que vende produtos ruptura?
para turistas, por conta dos preços serem
proibi tivos para os cubanos. Comprei um
champanhe e às 19 horas retomei à casa de TEXTUALIZAÇÃO E
Heloina, que estava cheia. O sofá havia sido SUPORTE DA MEMÓRIA
retirado e encostado à parede e uma peque-
na orquestra, composta por quatro músicos Como me foi relatado, os santeiros
tocava violoncelo, violino, acordeão e ago- mais antigos, depois da abolição da es-
gô. A música era entre a salsa e a rumba. As cravidão, retomaram à África, no final
pessoas, vestidas com roupas do cotidiano, do século XIX, em busca de suas etnias
dançavam-se soltas, de frente para o Trono, de origem e procuraram reaprender as
destacando Heloina, com um ramo de an- histórias míticas e as práticas rituais que
gélicas nas mãos. Entreguei a garrafa, agra- se haviam perdido no longo tempo do ca-

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tiveiro. Essa recolha foi posta na escrita,
retornou a Cuba e viraram os "libretos",
que circulavam de padrinhos a afilhados,
que demonstravam maior dedicação ao
aprendizado.

Hoje, esses libretos tomaram uma ou-


tra dimensão editorial e podem ser adqui-
ridos, livremente, no mercado, em bancas
que vendem material para as práticas re-
ligiosas da Santeria. E ultrapassaram essa
etapa de editoração "em vias de se fazer".
Podem ser comprados em Miami, onde a
Santeria se implantou entre os cubanos e,
mesmo, apropriados por autores que recla-
mam ser fruto de pesquisas realizadas em
Cuba, a partir de informações colhidas com
santeiros e babalawos.

a primeiro contacto que tive com essa


literatura foi o Manual del Santero en Cuba.
a livro, no meu entender, junta-se a um fe-
nômeno mais amplo, que vem ocorrendo
com a memória africana transposta para a
América, que, antes transmitida oralmente,
passou a ser deitada na escrita por pessoas
pertencentes às religiões Afro-Americanas.
a Manual, mimeografado, contém 507 pá-
ginas, e é anônimo.

a material oral, que compõe o livro


Manual del Santero en Cuba é importante
pelo interesse que ele apresenta, mas tam-
bém pelo papel que desempenha no univer-
so das cerimônias, no ritmo da execução de
rituais complexos, aos quais se integram na
mesma rubrica que os gestos do oficiante,
do sacrificador ou dos participantes. Sim-
ples preces, "o dizer fazer" individuais ou
coletivas, como cultuar o Orixá através das
oferendas, como fazer o Trono, fórmulas de
invocação, onde intervém repetições rítmi-
cas, moduladas ou cantadas, textos longos
que servem de base à-transmissão, o regis-
trar da memória, e o ensino àqueles que se
submetem à iniciação. E ainda, os orikis
dos 256 Odus, e suas respectivas interpre-
tações.

Posso então afirmar que se trata de um


registro geral de toda a prática religiosa da
Santeria de Cuba. Esse material, embora de
ordem teológica para os santeiros, poderia
ser classificado, na noção proposta por Ro-

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ger Chartier (1996), como práticas da escri- xiliar no processo de transculturação, por
ta comum, ou escritas sem qualidade que, que passam todas as religiões de matrizes
durante muito tempo, foram deixadas de afro-americanas.
lado pelas abordagens clássicas das práti-
cas culturais e que, hoje, são objeto de múl- Desejaria concluir, dizendo que, o Tro-
tiplos trabalhos, de reavaliações importan- no, ao mesmo tempo, não pode deixar de
tes e encontram um lugar central sobre as ser relacionado ao altar de algumas igrejas,
interrogações dessas mesmas práticas. em Havana, onde o espaço barroco é presi-
dido pela superabundância, pela saturação
Gostaria de ressaltar que na minha úl- sem limite, pela ausência do vazio, como
tima viagem, aqui relatada, pude constatar lembra Severo Sarduy. Outra comparação
a utilização do livro, em casa de babalawos, possível é com o altar da Umbanda, de um
como manual de estudo, mas também como modo geral, construído em degraus, satu-
suporte da memória. Após a realização do rados em imagens de santo, caboclos preto
jogo de Há, o livro foi aberto, para ser lido velhos, exus e pomba-giras que sobem em
em voz alta, relatando o mito referente ao busca do infinito, como nas igrejas da Bahia
odu do jogo realizado. Conversando, de- e de Minas Gerais.
pois do ato de leitura do mito e suas eluci-
dações, explicaram-me que a utilização do
livro ocorria, porque havia muitos mitos
e, conseqüentemente, alguns saíam mui-
to mais nos jogos de consulta que outros. REFERÊNCIAS
Assim os que apareciam mais raramente
acabavam ficando esquecidos. O livro em AUSTIN J.1.. Quand dire, c'est faire. Paris: Seuil,
questão é um registro da tradição, serve 1970.

para estudo e é um suporte da memória. BASTIDE, Roger. Mémoire collective et sociologie du


bricolage. In: L' anné sociologique, 3eme série. Paris:
P.u.F., 1971.
"Bueno, cuando uno inicia Há, después
CABRERA, Lydia. El Monte. Igbo Finda. EWE
tu compras Ias libras y después tu vas estu- ORISHA,VITIFINDA. Habana: Ediciones CR. 1954.
diando, vas estudiando, vas estudiando Ias
CALAME-GRIAULE, G. Graines de parole. Puis-
signos y por el otro conocimiento, hay cosas sance du verbe et tradition orales. Paris: Editions du
que en realidad no se llegan del conjunto CNRS.1989.
del mismo libro, que se aprenden, que uno CAZÉNEUVE, Jean. Sociologie du rite. Paris: P.U.F.,
10 va viendo, según mi llamada presencia- 1965.

mos, ah!, exacto, entonces my father, tienes CHARTIER, R. Les pratiques de, I'ecriture ordinaire.
Lyon: Université Lumiere.Lyonê: GRS, 1996.
que de esta es mucho sacrificio, porque tu
tienes que ir corriendo para aquí, corrien- CONNERTON, Paul. Como as sociedades recordam.
Oeiras: Celta Editora, 1993.
do para allá, aprendiendo por aquí, apren-
diendo por allá, aprendiendo por aquí, DIENTEIL, Erwan. Les dieux et des signes. Paris: Edi-
tions EHESS, 2000.
aprendiendo por allá, y entonces, siempre
aprendes algo. Y siempre vas aprendiendo DIETERLEN, G. Textes saxcrés d' Afrique Noire. Paris:
Galimard,1965.
algo que falta" .
GOODY, J. Entre I'oralité et I'ecriture. Paris: P.u.F. Eth-
nologies, 1994.
Lázaro me informou que já havia sido
HALBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de Ia me-
padrinho de vários santeiros e me mostrou mo ire. Paris: P.U.F., 1972.
uma das versões desses livros, intitulada,
PORDEUS JR, r.. O processo de textualização na Sante-
Tratados del cuarto de santo, que ensina ria cubana. Fortaleza: UFC, 2002.
como realizar os processos rituais.
---,.,.,,-_-c----c __ La transculturalité de conte mer-
veilleux dans les mytes Afro-Cubains, In MARTÍN J-B.
Gostaria de chamar a atenção para o e DECOURT, N, Littérature orale paroles vivantes et
mouvents. Lyon, 2002.
fato de que a textualização da memória
em um suporte gráfico - o livro - irá per- SARDUY, Severo. Barroco. Paris: Seuil, 1975.

mitir a permanência dessa memória, não ZUMTHOR, Paul. La lettre et Ia voix. Paris: Seuil,
1987,
somente em Cuba, mas também como au-

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