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Cultura Bantur(Angola Congo)

O Candomblé Angola se constitui ao longo de sua história como uma das religiões
de matriz africana importante no Brasil e no mundo pelas práticas ritualísticas,
indumentárias, hierarquias e pelos adeptos seguidores dos rituais afro-brasileiros.
Essa religião tem se expandindo desde a chegada dos povos africanos no
continente americano, a partir do século XVI. Essas culturas oriundas do
continente africano trazem em seu bojo uma contribuição significativa para a
sociedade brasileira, de modo particular para a questão religiosa, a dança e o
domínio do trabalho.

RITO E RELIGIOSIDADE DO CANDOMBLÉ


ANGOLA
Analisando as diversas formas de expressões religiosas, verifica-se uma
imensurável riqueza presente em diversos aspectos do Candomblé Angola, que se
fundamentam através da vivência aos cultos oferecidos aos Nkisis, seja por meio
dos ritos, pela musicalidade, dança, entre outros, que ocupam um papel
importantíssimo para os afrorreligiosos.

Adentrar neste universo simbólico, ritualístico e cheio de tradições é descobrir o


que há de valioso para compreender o papel representativo, definidos pelos seus
membros e dos elementos que fazem parte da religião. O simbolismo religioso
mostra a conexão entre o mundo terreno e as divindades. Esta peculiaridade,
analisada no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, parte da afirmativa das
expressões religiosas que conferem o significado dos elementos religiosos,
confirmando a sacralidade ou a essência do Candomblé como religião de matriz
africana.

Observando esses aspectos significativos, percebe-se a profunda ligação dos


seguidores com os seus Nkisis, seja pela reverência, pela dança, pela música,
pela vestimenta e pelos ritos iniciáticos. Cada participante tem a compreensão do
que significa a religião, incorporando as práticas religiosas como algo fundante a
ser seguido.

No percurso transcorrido através dos objetos sagrados analisados na casa


Rudembo Gunzo de Bamburucema, percebe-se uma força superior que vem das
divindades, favorecendo a comunicação direta com seus adeptos. Portanto, serão
analisadas características importantes, como a dança, o processo de iniciação, os
sacrifícios, a indumentária, as comidas votivas e a musicalidade, realizados pelos
candomblecistas, considerando que esses elementos contém uma interligação,
possibilitando formas de afirmação da identidade cultural-religiosa.

Mariza Peirano (2002) elucida que a vida em sociedade é sempre marcada por
rituais. Em sua conceituação, os ritos precisam de uma compreensão etnográfica,
ou seja, apresentada pelo pesquisador junto ao grupo que ele observa. E, por fim,
em sua análise, os processos rituais são fenômenos de transmissão de valores em
qualquer sociedade.
Considerando o Rito como expressão que fundamenta o universo religioso,
podemos destacar as contribuições fenomenológicas, antropológicas, históricas e
religiosas que definem os ritos pela visão de Aldo Terrin (2004). Nesta perspectiva,
o autor elucida as práticas ritualísticas como ordem cósmica universal dos deuses,
ou seja, num mundo que nos permite viver de forma mais organizado e não
caótico.

Este pensamento remete a uma classificação de alguns ritos que são praticados
no interior de cada religião. Vale lembrar que as religiões de matriz africana são
compostas de ritos de iniciações, sacrifícios de animais para as festas públicas,
saída de santo, entre outros elementos, que permitem estabelecer funções
prioritárias acerca dos ritos.

Terrin leva a compreender que nas religiões tradicionais africanas, existem


diversos comportamentos de rituais, que são ações significativas e que
consequentemente fazem parte da vida dos seguidores. Neste sentido, o rito faz
parte da história das religiões, pois em cada uma delas, percebe-se uma
particularidade e uma intensa organização para manter a ordem em relação aos
seus ritos.

Partindo do princípio dos rituais desenvolvidos no terreiro Rudembo Gunzo de


Bamburucema é interessante observar que em todos os momentos ritualísticos há
sempre momento do transe. A cada canto ou dança, os Filhos são levados ao
estado de possessão, ou seja, os participantes da religião entram no modo da
inconsciência, condensando aspectos descritos como emoção, inconsciência,
desfalecimento, entre outros. Neste aspecto, vale ressaltar que o transe vivenciado
na comunidade religiosa pode ser entendido como fenômeno comunicativo, onde
os gestos são acompanhados por um intenso envolvimento emocional. A
corporeidade é um aspecto de grande relevância neste fenômeno, pois é através
do corpo que pode ser observada a força dos Orixás, expressa em cada gesto, em
cada canto e em cada dança dos que compõem o terreiro.

Gostaria também de fazer presente outro elemento que compõe parte dos rituais
candomblecista e que é muito apreciado não somente para quem faz parte da
religião, mas também para quem participa dos rituais. São as cores como
componentes importantes das festas que acontecem no terreiro. Isso é bem
expressivo através das indumentárias utilizadas por cada Filho de santo, de acordo
com o seu Nkisi. Por exemplo, o azul está relacionado a Ogum, o vermelho e azul
são de Iansã e branco de é de Oxalá. Para as festas públicas ou de iniciação, a
indumentária é extremamente significativa, pois é através desses artefatos
religiosos que os Orixás serão identificados.

A exuberância dessas vestimentas caracteriza o Filho de santo. No Candomblé


Angola, outros objetos sagrados são utilizados pelos Filhos de santo, como o odé,
que fica na parte da cabeça, ou seja, uma espécie de coroa. Usam-se também os
mojolós, que são os colares de conta dos Nkisis, e as roupas, sempre com a
tonalidade do Orixá.

Nas festas públicas, cada Filho de santo apresenta-se com sua indumentária de
acordo com o seu Orixá; as cores têm uma representação importante para as
divindades. Os colares no pescoço simbolizam a energia, o axé trazido pelos
deuses. Não se pode negar o simbolismo que compõe esses rituais, pois para
manter a tradição faz-se necessário a utilização desses artefatos que fazem parte
do espaço sagrado.

De acordo com alguns afrorreligiosos, houve mudanças significativas nas


vestimentas dos filhos de santos. Hoje, as exigências são bem maiores. Quem
está fazendo sua iniciação na religião prepara sua roupa com toda exuberância
para o dia da festa. No discurso de Mãe Beth, entre outros, nota-se uma
particularidade desses elementos que é tão importante quanto outras partes que
compõe os ritos, sejam as cerimônias de iniciações, oferendas aos deuses, como
a preparação de alimentos.

Cada indumentária realça a realeza do Orixá, transmitindo, através das cores, a


força que vem dos deuses. O Filho de santo ou o sacerdote, ao dançar
paramentado nas festas públicas, apresenta seu Nkisi para a comunidade,
confirmando seu santo de cabeça.

OS RITUAIS ORDINÁRIOS E PÚBLICOS


Toda e qualquer celebração religiosa tem a presença de cânticos para chamar os
deuses. A música vem sempre acompanhada dos atabaques que conduzem esse
momento festivo. Na constituição da festa, ou xirê, como é definido no Candomblé,
Roger Bastide faz uma alusão bastante interessante ao dizer que:

Os cânticos, todavia, não são apenas cantados, são também “dançados”, pois
constituem a evocação de certos episódios da história dos deuses, são fragmentos
de mitos, e o mito deve ser representado ao mesmo tempo que falado para
adquirir todo o poder evocado (BASTIDE, 2001, p.36).

Não obstante, podemos compreender que, para Bastide, e outros que adentraram
neste universo religioso, a musicalidade faz parte da evocação aos deuses. Seus
cânticos transmitem suas histórias de vida contada de geração em geração. Essas
músicas têm o poder de chamar os Nkisis para a festa, não importa onde eles
estejam. Na afirmativa da angoleira Mãe Beth “todo ritual tem o cântico, tem o
toque. O que vai buscar nossos Nkisis é o toque do atabaque” [2].

Na nação Angola, em geral, há o canto, o toque e a dança nos momentos de


festas. Para aqueles que participam destes rituais, esses símbolos têm um grande
significado, pois através da música e da dança muitos entram em transe quando
recebem seus Nkisis.

Outro dado importante é a quantidade de cânticos entoados para os deuses. De


acordo com Bastide:

Cada divindade recebe o mínimo de três cânticos; e ainda me lembro do protesto


dos fiéis, uma noite em que não sei porque razão um dos deuses só recebeu dois,
em lugar de três cânticos regulamentares. O número de três não é, porém, um
mínimo; pode-se cantar quantidade maior de cânticos (BASTIDE, 2001, p. 36).

Esses cânticos representam para os religiosos candomblecistas a busca da


identidade sagrada para os deuses, visto que estes são chamados pela música
correspondente ao seu santo de cabeça. Os Nkisis têm suas especificidades tanto
na música, quanto na dança. A constituição da musicalidade, bem como o número
das cantorias, tem por finalidade chamar o maior número de Nkisis, dependendo
da quantidade de adeptos no terreiro. O ritmo e a gestualidade influenciam em
grande parte o contato ou a possessão dos Filhos de santo. Estes, a partir do
momento em que entram em cena caracterizados, passam por um momento de
preparação para receberem suas divindades. Nesse momento, eles começam a
dançar e, em seguida, são tomados pelas divindades.

No Candomblé Angola, e em outras nações, o primeiro cântico é para Exú


(mavambo), pois ele tem o poder de manter o equilíbrio ou a harmonia no terreiro,
caso contrário, Exú, como o primeiro homenageado dos orixás, se manifesta
causando transtorno para todos os fiéis. Na casa Rudembo Gunzo de
Bamburucema, depois de homenagear Exú, os outros também recebem cânticos
próprios de suas divindades, como o Kabila, que é sincretizado com São
Sebastião, Katendê, Kafungê, Angolô e Mametu Bamburucema, que é o Nkisi de
mãe Beth.

Observando esses fenômenos, dá para perceber que essas expressões religiosas


são também a interação de deuses (as) presente na invocação das práticas
ritualísticas. As danças aos Nkisis estabelecem essa comunicação entre suas
divindades. Esses fenômenos ultrapassam a alma, criando conexão de
dinamicidade entre seus seguidores. Os ritos, a música e o perfil corporal
expressam a religiosidade do Candomblé. Este perfil corporal elucida um valor
importantíssimo dentro da religião. A veste é uma representação, como também a
movimentação que gira em torno da mesma. A religião, neste aspecto, passa a ser
a busca constante pelo Sagrado.

No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, em algumas festas que participei,


verifiquei que a música é parte fundamental no ritual. Em uma homenagem
preparada por Mãe Beth a Dona Ita, a sacerdotisa, juntamente com seus Filhos de
santo, cantam e dançam no salão, enquanto os outros convidados ficam sentados
acompanhando o ritual.

Todas as partes celebrativas são de extrema relevância. Outra representação


importante são as cores utilizadas nesses rituais, carregadas de simbolismo e de
significados. Cada cor instrumentalizada nos ritos e nas danças tem uma
autoafirmação do poder sagrado, quando incorporado através do seu Nkisi. O
candomblecista as usa de acordo com a divindade que recebeu no início do seu
processo iniciático.

Esse simbolismo religioso mostra, acima de tudo, a conexão entre o mundo


terreno e as divindades que compõem o mundo místico. Essa peculiaridade em
análise na Casa Rudembo Gunzo de Bamburucema parte da afirmação dos
elementos religiosos que conferem o sentido ou significado sobre a expressão
religiosa. Estes princípios nativos confirmam o que há de mais sagrado, a essência
do Candomblé como religião de matriz africana.

A religião é à força de elementos naturais e sobrenaturais, que está acima de


nosso poder humano, porque se sobrepõe a algo enigmático, que vai além da
razão. Essa força elementar, que dá vestimenta, passando pela dança e pela
musicalidade, mostra o que há de valor nas expressões de sua religiosidade.
Os deuses, ora incorporados neste universo, associam-se aos elementos
evocados na natureza, tendo um papel significativo no campo religioso. Essas
divindades, que mostram a profundeza da alma dos seguidores, estabelecem
comunicação direta com o universo da natureza, pois cada divindade está
associada a uma força elementar, como o fogo, a água, vento, etc.

Não há uma separação entre esses mundos, mas há uma aproximação com este
universo sagrado. Porém, cada um tem sua característica particular, passando
para a coletividade. A dança, os ritos, as cores e os gestos articulados em cada
festa realizada no candomblé tem um valor profundo na busca pelo Sagrado,
considerando que esses elementos contém uma interligação, possibilitando formas
de resistência para manter viva sua tradição. A profundidade que ocorrem nessas
manifestações religiosas é positiva, para mostrar a sociedade que este mundo
místico tem valor e que deve ser respeitado.

Ao analisar seus costumes, ritos e danças aos Nkisis, constatei que essas são
formas de afirmação dos elementos da identidade afro-brasileira. Isso revela a
preocupação que os candomblecistas têm em manter viva na memória o que eles
herdaram de seus antepassados. Aqui, os que participam dos rituais continuam
com grande persistência na luta para não deixarem sucumbir sua religiosidade
para as gerações futuras.

A música também é um instrumento que expressa o respeito a cada Nkisi. Canta-


se homenageando a sua divindade, trazendo para o meio do terreiro forças
sobrenaturais que compõem o cenário. Os que participam deste momento místico
são conduzidos, além da dança, por toques considerados sagrados. Cada gesto é
muito importante para seus membros, pois revelam a grandeza das divindades.

No Candomblé Angola, segundo Veridiana Machado (2015), a música tem uma


função estruturante, através dos tambores, nas cantigas para os Nkisis e nos
diversos rituais, sejam eles nas festas públicas ou em rituais mais complexos como
a iniciação (feitura de santo) ou em rituais fúnebres (MACHADO, 2015, p. 114).
Neste particular, Mãe Beth lembra que a composição musical é um dos elementos
importantíssimo no Candomblé pois através da musicalidade os Nkisis são
chamados para o terreiro, dando início a manifestação do sagrado, representada
nos Filhos de santo.

A música entoada no terreiro executa uma sequência lógica; a sacerdotisa inicia a


cantoria e em seguida os makotas continuam a música. Nesses intervalos, os
Filhos de santo também cantam diversas canções em círculos e fazendo
movimentos. Os angoleiros evocam seus deuses gerando a energização do
espaço sagrado. É importante ressaltar o lugar que a música ocupa no candomblé
como fundamentação sagrada nos rituais, sobretudo em “roda de Candomblé”, ou
seja, em festas públicas. Lembrando que o intuito do canto é a evocação e
reverência aos deuses, e tudo está sintonizado através do toque, das cantorias e
dos instrumentos percussivos sacralizados, pelas palmas e pela composição de
vozes e gestos dos participantes.

Ao abordar a temática “Capoeira Angola”, Flávia Diniz (2011) faz um recorte


interessante sobre a musicalidade. Segundo ela, a música tem um papel central
em muitos rituais afro-brasileiros, como rodas de capoeira, sambas de roda, festas
públicas e outras cerimônias privadas do candomblé (DINIZ, 2011, p. 19). Neste
particular, percebo que a música revela valores, paradigmas e humanização do
cotidiano. Os ritmos mais tocados no Angola para os Nkisis são o congo, cabula e
ijexá.

A música é um fator importante no Candomblé, pois através dela os Filhos são


levados para o estado de transe e guardam características comuns nos rituais,
através da circularidade, com repetições de cantorias. Percebi claramente este
fenômeno no terreiro ora pesquisado, quando em determinados momentos da
música alguns Filhos de santo começaram a entrar em transe, ou seja, começa o
processo de incorporação.

Convém ainda ressaltar que, os instrumentos que são utilizados no terreiro, que
acompanham a musicalidade, são de suma importância para os rituais
candomblecistas.

No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, cito o adjá, que é um instrumento


musical para a evocação dos baquices, sendo manipulado tanto pela sacerdotisa
Mãe Beth ou pelas kotas, que também são lideranças no terreiro. Por outro lado,
os três tambores são estritamente tocados por lideranças masculinas. Os homens
são responsáveis por tocar e pela execução do repertório musical nas festas
internas e principalmente nas festas públicas. São preparados para cuidar da parte
musical do terreiro, tendo boa dicção, entre outras características, para a função
de evocar o Nkisi, cuidando da sacralidade do espaço celebrativo.

Neste sentido, podemos destacar que no terreiro de Mametu Mãe Beth, além dos
atabaques existem outros instrumentos importantes, como o caxixi que eles batem
através da reza para as invocações dos Nkisis. Tem também a sineta para Exú,
que é conhecido por Mavambo na nação Angola. O toque do sino é para chamar e
também para buscar as energias para o espaço sagrado.

No terreiro ora pesquisado existem três instrumentos que são fundamentais para
as festas de candomblé. Primeiro é o ogã, um instrumento que dá início ao
candomblé. Este tem a finalidade de dar o sinal inicial e o tipo de ritmo a ser
tocado. Depois tem o adjá, que tem por objetivo chamar todos os Nkisis. Segundo
Beth Pantoja, o adjá “vai buscar os Nkisis onde eles estiverem” [3]. Durante as festas
de Candomblé, sobretudo nos rituais, este instrumento é tocado durante as
músicas no salão.

Por fim, têm-se os três atabaques, mais conhecidamente por rum, rupi e lê. Estes
instrumentos exercem uma função muito importante no terreiro. Através deles, os
rituais acontecem, pois são eles que durante as festas tocam as músicas. É
importante destacar que os ogãs, que são homens preparados para tocar, têm um
grande conhecimento da musicalidade. Eles entoam músicas para chamar os
Nkisis e continuam saudando todas as divindades.

Como vimos, as religiões de matriz africana trazem em seu bojo informações que
nos capacitam a adentrarmos na simbologia mística e fenomenológica dos Ritos,
sobretudo no que diz respeito aos ritos iniciáticos, musicalidade, danças, comidas
votivas e indumentárias. Esses elementos religiosos geram sistemas simbólicos
bastante complexos, com os quais é possível interpretarmos as religiões afro-
brasileiras na sociedade em que habitamos.
Certamente, as considerações acerca do Candomblé Angola em Belém nos
ajudam a olhar de perto elementos essenciais que compõe este universo místico e
religioso, desde a chegada dos primeiros religiosos candomblecistas iniciados na
Bahia. Por isso, Daniela Cordovil faz uma abordagem bem definida sobre a
chegada do Candomblé no Pará:

A partir da década de 1950, tem entrada no Pará outra tradição religiosa, o


candomblé. Trazido da Bahia, esta matriz religiosa atraiu adeptos do batuque e da
umbanda pela possibilidade de realizar uma ‘feitura’ no santo, construindo para o
pai de santo uma maior legitimidade e melhor maneira de professar a fé
(CORDOVIL, 2004. p.34).

Sua abordagem nos leva a ter clareza sobre a legitimidade dos rituais professados
por estes afrorreligiosos, procurando mostrar que toda e qualquer forma de rito
está intrinsecamente conectada em diversos âmbitos do universo religioso, seja
através da música, das celebrações ritualizadas, entre outros. O Candomblé, como
religião de matriz africana e com seu aspecto representativo, procura vivenciar das
mais diversas formas suas expressões religiosas, mostrando para a sociedade sua
importância com suas especificidades, bem como sua contribuição no mundo
religioso.

O RITO DE INICIAÇÃO
As religiões de matriz africana trazem representações importantes sobre a cultura
e sua religiosidade. Dentre esses fenômenos, podem-se destacar os processos de
iniciação do Candomblé Angola, que é um dos aspectos bastante valorizado
dentro da religião. O processo iniciático é o elemento fundante da identidade
angoleira. É interessante notar que neste campo de representação do Candomblé,
ressalta-se o quanto é importante para a religião os ritos de iniciações, ou os ritos
de passagem. Esse processo dá legitimidade ao novo integrante da religião, pois
de certa forma ele passa a integrar com todos os direitos que lhes são cabíveis.
Como membro da comunidade, ele passa a assumir determinadas funções dentro
do terreiro.

Neste sentido, pode-se dizer que os processos de iniciação apresentam


características importantes na vida dos afrorreligiosos, uma vez que é um dos
fundamentos do Candomblé em geral. Porém, este ritual requer uma preparação
específica: no primeiro momento, o filho ou filha de santo recebe algumas
orientações do sacerdote ou sacerdotisa, a fim de saber de como ele (a) deve se
comportar enquanto sujeito religioso para o dia da festa. Porém, o novo membro
da religião passa por vários processos de tratamento espiritual, através de banhos
e limpeza do corpo. Segundo a sacerdotisa Mãe Beth, a iniciação dura em torno de
vinte e um dias e, a partir deste momento, o iniciando já faz parte da religião,
começando como noviço até chegar ao grau de Pai ou Mãe de santo [4].

É interessante notar que, durante esses vinte e um dias de recolhimento, o Filho


de santo, além de receber as orientações do sacerdote, é lapidado como um
diamante, como nos revela Mãe Beth: “a gente lapida aquela pessoa como um
diamante bruto”. Em sua fala, a angoleira deixa claro que este é um dos momentos
mais significativos para a religião, pois é neste processo que o (a) Filho (a) torna-
se membro efetivo do Candomblé Angola e passa a autoafirmar-se como tal. É de
extrema importância o processo de iniciação, porque a partir desta caminhada,
depois de sete ou mais tempo de iniciado, a pessoa tem a capacidade de abrir seu
próprio terreiro e de ter seus Filhos de santo.

No terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema, segundo Mãe Beth, muitas


iniciações se dão por motivos de cura. Quando um membro a procura acometido
por algum tipo de doença, a obtenção da cura vem através da feitura de santo, ou
seja, pela iniciação no Candomblé. A linguagem utilizada por Mãe Beth é muito
interessante, porque segundo ela, o tempo de recolhimento no baquice é um
momento em que o iniciado tem contato com os elementos fundantes da religião,
seja através da presença do sacerdote que o acompanha, ou pelas comidas que o
alimenta durante este período de recolhimento.

Esta experiência fundante no Candomblé Angola e em outras religiões afro-


brasileiras é muito discutida entre a sociedade, trazendo valiosa contribuição de
sociólogos, antropólogos, historiadores, entre outros cientistas que adentraram
neste campo religioso. Quero destacar a experiência iniciática de Pierre Verger,
que se iniciou no Candomblé de nação Ketu. Seus relatos mostram a riqueza que
há nesta religião, partindo de suas experiências e de seus escritos sobre as
religiões de matriz africana. Em sua obra intitulada “Lendas Africanas dos Orixás”,
o autor relata as características de cada Orixá, desde os mais conhecidos, até os
que são poucos estudados dentro da religião.

Na obra intitulada “Orixás”, Pierre Verger descreve cuidadosamente os ritos de


iniciação no Candomblé Ketu:

Durante o período de iniciação, o noviço é mergulhado num estado de


entorpecimento e de dócil sugestibilidade, causado, em parte, por abluções e
beberagens de infusões preparadas com certas folhas. Sua memória parece
momentaneamente lavada das lembranças de sua vida anterior. Nesse estado de
vacuidade e de disponibilidade, a identidade e o comportamento do orixá podem
se instalar livremente, sem obstáculos, e tornar-se-lhe familiar (VERGER, 1981, p.
44).

Nesta transcrição, posso afirmar que o processo iniciático é puramente sagrado


pela presença de elementos que garantem essa sacralidade, como os banhos,
ebós e fusões de folhas. O iniciado é levado para um plano espiritual se
preparando para exercer funções importantes na religião. Neste estado de
preparação, há uma conexão com a divindade e mudanças de comportamentos
influenciadas pelo Orixá que se instala de forma livremente.

Outra contribuição importante é de Roger Bastide sobre suas experiências no


Ketu, que nos ajudam a compreender a iniciação dos Filhos de santo. O autor
discorre em suas pesquisas etnográficas sobre os passos que se dá neste
processo. Inicialmente, o neófito faz o bori, que literalmente é “dar de comer a
cabeça” (BASTIDE, 2001), em seguida faz a lavagem das contas, a fim de ser
levado para o quarto de iniciação, que dura em torno de vinte e um dias. Neste
período, há um acompanhamento sistemático por parte do sacerdote e para os
que estão recolhidos tem algumas restrições, como não manter contato com o
mundo lá fora, nem relações com a família, exceto o contato e a relação que há
com o seu Pai ou Mãe de santo.
É importante destacar que este modelo apresentado por Bastide é da nação Ketu,
porém, com algumas similaridades em relação aos ritos, danças, comidas votivas,
entre outros. Tanto no Angola como no Ketu, o tempo de iniciação é o mesmo, que
dura em torno de vinte e um dias. As divindades também mudam de nomes, por
exemplo, chamam-se Orixás no Ketu e no Angola são conhecidos por Nkisis.

Para Mãe Beth Pantoja, existem poucas diferenças ente o Ketu e o Angola; a
sacerdotisa destaca, contudo, que existem formas diferenciadas na musicalidade e
no preparo das comidas votivas. Essas diferenças, segundo ela, não tiram a
essência da religião, pois as mesmas cultuam seus Orixás, cada uma da melhor
forma possível.

Volney Berkenbrock (1997), em seus estudos sobre a experiência religiosa do


Candomblé, faz uma análise bem interessante acerca da feitura de santo. Para
ele, alguns elementos da iniciação são importantíssimos para entendermos o que
há no interior da religião em relação aos ritos iniciáticos. Segundo o autor, na
iniciação, a pessoa tem contato com a divindade, mas não necessariamente, pois
o sujeito não precisa ser iniciado para ter contato com o seu Nkisi. Porém, o
iniciado deve saber o Nkisi que rege sua cabeça. Para isso, é necessário que o Pai
ou Mãe de santo consulte o Ifá, que é o Orixá da sabedoria. Outro momento
ritualístico, no qual é introduzido, é a oferenda de Exú, que segundo os
candomblecistas tem por finalidade manter a harmonia no espaço sagrado.

Por conseguinte, quem está iniciando tem que ter consciência do significado de
cada passo neste processo, como tomar banho para se purificar e usar roupas
novas, além de carregar no pescoço o colar com as cores de seu Orixá, a fim de
deixar a vida profana para adentrar numa esfera sagrada. Com a orientação do
sacerdote, o neófito é introduzido na religião, passando a conhecer melhor seu
Nkisi e descobrindo os segredos da religião.

No Candomblé, independentemente de qual seja a nação, os ritos de iniciação são


muito parecidos. Na nação Ketu, segundo Prandi, os filhos de santo são também
denominados de “Cavalos dos deuses”, ou seja, a partir do transe, o Filho ou a
Filha de santo deixa-se “cavalgar pela divindade” (PRANDI, 1996, p.18). Esse
aspecto muito se assemelha com a nação Angola, uma vez que o iniciado também
entra em transe, raspa a cabeça, é recolhido durante vinte e um dias, além de
fazer suas oferendas aos Nkisis, entre outras práticas que fazem parte da religião.

É interessante salientar que a iniciação requer muitos dias de recolhimento. Esse


processo pode se dá de forma isolada ou com outra pessoa, como aconteceu com
Mãe Beth, que fez sua iniciação com outra pessoa. Esse fenômeno, no Candomblé
Angola, recebe o nome de Barco-de-Muzenza. Segundo Elizabete de Barros, em
sua dissertação de Mestrado, a iniciação numa comunidade gera envolvimento de
todos, pois representa o aumento da família de santo, além da Mãe de santo que
acompanha o iniciado. Após esse primeiro momento, o Filho de santo passa pelo
processo das obrigações, que tem uma duração um pouco menor que o da
iniciação.

Ao discorrer sobre as iniciações em seu terreiro, a sacerdotisa relata que é algo


muito importante na vida do iniciado. Primeiramente, a pessoa é preparada para
vivenciar essa nova etapa de vida. Após o recolhimento de vinte e um dias, com
acompanhamento espiritual de Mãe Beth, acontece o ritual da saída de santo.
Neste dia, celebra-se a festa da Quizomba do Nkisi, que é o dia do nascimento do
Filho de santo. Ao ser interrogada sobre o nome do Nkisi, ela diz que “o Nkisi
sempre ele traz alguma coisa, traz o Orixá, traz o Nkisi, mas nem todos trazem tão
claro, mas sempre envia mensagem. Já teve Filho de santo que disse tudo
praticamente”[5].

As iniciações no terreiro Rudembo Gunzo de Bamburucema acontecem,


sobretudo, nos meses de Janeiro e Fevereiro, porém, o mês de fevereiro não é
considerado muito favorável, pois segundo Mãe Beth é um mês muito agitado,
onde Exú está solto. Por isso, a maioria das iniciações feitas por ela acontece no
mês de Janeiro.

Ao falar da iniciação em seu terreiro, Beth Pantoja salienta que o tempo é muito
importante, e lembra de como a iniciação aconteceu em sua vida no angola [6]:

Já era adulta, com 20 e tantos anos. Você morre pra essa vida e constrói uma
nova página, novo livro na sua vida. Então, a partir daquele momento começa a
contar tempo. Então, com 7 anos se torna adulta, com 7 anos você se torna mãe
de santo, ou pai de santo, ou Mametu de Nkisi que eu sou, que significa mãe
espiritual do santo. Pra mim é uma faculdade, porque tem que cumprir 7 anos.

No discurso acima, a angoleira adverte o quanto o tempo é importante, pois


durante certo período tem que pagar as obrigações que são determinadas pelo
Nkisi. No Rudembo Gunzo de Bamburucema, depois dos sete anos, paga com
catorze e, por fim, com vinte e um anos. “Você fecha a ‘cabala’”, expressão
utilizada por Mãe Beth para dizer o tempo determinado das obrigações, ou pode
também expressar as várias festas de obrigação que serão feitas durante certo
período pelo Filho de santo. Após esse tempo você vai zelar pelo seu Nkisi através
das oferendas.

Ainda sobre a iniciação no Candomblé, faz-se necessário lembrar que existe uma
peculiaridade no gosto dos santos quanto a sua forma de vestir, comer e utilizar as
cores, como elucida os autores Arno Vogel, Silva Mello e Pessoa de Barros (2012),
na obra “Galinha d´Angola”. As divindades privilegiam certas cores, vestimentas,
sabores, aromas, entre outros artefatos que compõem os rituais do Candomblé.
Em dias de festa, observo o quanto esses símbolos são importantes, pois
expressam a alegria da festa e o Nkisi de sua cabeça, bem como a identidade
cultural religiosa, através dos ritos. Para os iniciados na religião, um dos momentos
de grande relevância é o bori, como já foi mencionado em outro momento, é “dar
de comer a cabeça”. Com esta jornada, o ingresso começa a participar nos rituais
concernentes ao Candomblé, dando início a trajetória no santo.

O espaço reservados a esses rituais é sempre o barracão. No terreiro Rudembo


Gunzo de Bamburucema, a festa de iniciação acontece no salão, um espaço
pequeno, porém cheio de representação. Segundo os autores citados acima, “um
bori alimenta a cabeça, concebida como algo a parte, distinta do corpo, especial,
sagrada […]”. Neste sentido, pode-se dizer que é um ato de alimentar a cabeça de
alguém, pois é algo sagrado. Esta sacralidade é perceptível no momento do
sacrifício. Os autores ainda discutem que a iniciação tem por finalidade tornar
possível a consonância tanto das divindades, quanto de outros fragmentos uns
com os outros, gerando a unidade. A esse aspecto, os discursos supracitados
trazem valiosas contribuições para compreender a vida dos iniciados no
Candomblé, sua trajetória, aspirações e vivências enquanto adeptos da religião.

Outra contribuição interessante está pautada no pensamento de Victor Turner, nos


remetendo sobre o processo ritual. O autor explicita que na África Central existe o
povo Ndembo, que possui ritos complexos de iniciação. Ficam recolhidos por
longos períodos na floresta para treinamento de noviços em costumes esotéricos
(TURNER, 1974, p. 17). Estas práticas ritualísticas são de grande importância para
a comunidade, pois os membros que fazem parte desses rituais tentam
compreender o que os movimentos e palavras significam para eles. Outro rito
bastante relevante dentro de sua classificação é o Isoma, que Turner identifica
como “rituais das mulheres” ou “procriação”. “O Isoma é a manifestação de uma
sombra que faz a mulher dar à luz uma criança morta ou leva à morte uma série de
crianças” (TURNER, 1974, p. 31).

Partindo desse imaginário simbólico, o autor nos ajuda a compreender o que de


fato acontece nas realizações de rituais nas religiões, sobretudo, nos processos de
reclusão dos neófitos quando iniciados no Candomblé Angola. Ao abordar a
dimensão religiosa do povo Ndembo, o autor analisa que os objetos que são
utilizados, os gestos, cantos ou preces, a unidade de espaço e de tempo
representam algo diferente de si mesmo (TURNER, 1974, p. 29). Eles têm noção
das funções simbólicas dos elementos rituais.

Considerando a importância dos Ritos, sugerimos uma abordagem sobre os “Ritos


de Passagem”, assumindo o pensamento de Turner, que faz uma discussão
acerca desse fenômeno. Segundo ele, em se tratando desses ritos, existe a “fase
de reagregação”, compreendendo a investidura pública do Kamongesha, com toda
a pompa e a cerimônia (TURNER, 1974, p. 125). Essas formas e atributos dos
ritos de passagem estão presentes nas religiões afro-brasileiras. Neste contexto,
as análises feitas por estes autores nos ajudam a compreender como esses ritos
têm um sentido profundo para os que fazem parte da comunidade religiosa.

Ao partir da conceituação dos rituais na comunidade, fica latente a preocupação do


autor em relação ao significado dessas representações, sobretudo dos símbolos
que por si já transmitem características fundantes dessas populações. É
importante observar que em grupos como este, analisado pelo autor, sempre
conseguem expressar essa unidade no tempo e no espaço, é o que consigo
observar no interior dos rituais do Candomblé Angola. Os sacerdotes, juntamente
com seus Filhos de santo, mantém uma correlação de harmonia e cumplicidade,
cada um assumindo seu lugar específico dentro do terreiro. Partindo desses
rituais, posso observar que alguns elementos são constitutivos para essas
representações simbólicas, como o canto, a dança e o próprio lugar sagrado,
considerado o espaço agregador em função dos rituais afro-brasileiros.

Por outro lado, existem as propriedades dos símbolos rituais, que “possuem as
propriedades de condensação, unificação de referentes dispares, e polarização de
significado” (TURNER, 1974, pp. 70-71). Segundo o autor, um símbolo pode ter
múltiplas representações ou ter vários significados, e isto é perceptível quando se
encontram grupos que fazem experiências de ritos de passagem, ou pela presença
de símbolos nos momentos rituais. Em cada experiência religiosa, esses símbolos
deixam de ser unívocos, assumindo diversos significados, dependendo do
momento e do espaço temporal. A este fundamento, cito como símbolo nos rituais
candomblecistas e em outras religiões a presença de sangue como elemento
agregador de unidade e legitimidade dos iniciados na comunidade.

Neste aspecto, Turner apresenta a árvore mudyi como símbolo do ritual de


puberdade das moças, enquanto que a árvore mukula representa o sangue da
circuncisão de uma determinada tribo. Esse simbolismo une “a ordem orgânica
com a sócio-moral, proclamando a unidade religiosa suprema de ambos, acima
dos conflitos entre essas ordens e no interior delas” (TURNER, 1974, p. 71).
Portanto, os símbolos são resultados do que englobam suas propriedades.

No terreiro de Mãe Beth, como já foram elencados, os rituais demandam honrarias


aos Nkisis; pelo toque do atabaque dá-se início a uma sequência de músicas que
introduz no salão a presença dos Orixás. Para o Filho de santo, esse momento é
sempre carregado de significado: por exemplo, ao chegar ao salão, fazem
reverência aos atabaques e a todos os sacerdotes que estão presentes na festa;
antes de entrarem na dança ou cantarem, os filhos de santo pedem bênçãos de
mãe Beth.

Em uma de suas festas, realizada para homenagear o Boiadeiro, observei que


durante a dança e na sequência musical, alguns Filhos de santo entram em transe,
outros ficam rolando pelo chão. Uns, agachados, batem palmas e, em seguida,
entram na circularidade. Essas danças e cantorias são sempre acompanhadas por
bebidas. Os seguidores, em determinados momentos, quando as entidades
chegam, começam a trocar de roupas, homenageando o Nkisi que rege sua
cabeça; por outro lado, há os Filhos que servem os presentes com bebida e
comidas, tudo numa perfeita sintonia.

Ainda durante o ritual, quando a sacerdotisa, junto com outros Filhos de santo,
dança, alguns ficam sentados no salão. Depois de várias sequências musicais,
eles saem e vão pedir a bênção da Mãe de santo e, em seguida, a dos que estão
presente no salão. Tudo isso acontece porque existe uma relação de cumplicidade
entre sacerdotes, Filhos de santo, divindades e seguidores da religião, tornando o
espaço sagrado como lugar de realização e de festa.

Em síntese, pode-se dizer que os ritos de iniciações são extremamente


importantes para os afrorreligiosos, pois expressam algo de divino, nesta
composição de ritos, cores, danças e sacrifícios, é o que podemos perceber em
trabalhos etnográfico de diversos pesquisadores que adentraram nos estudos de
Candomblé Angola.

RITUAL DE SACRIFÍCIO
As religiões de matriz africana são constituídas por rituais cheios de significados, é
o que veremos em torno dos sacrifícios [7]. Esse é um dos momentos muito
apreciado pelos afrorreligiosos, uma vez que dá visibilidade pelo que está sendo
celebrado. Segundo Volney Berkenbrock, “o sacrifício é o fator que ativa e
possibilita o equilíbrio, e tem por objetivo proporcionar a reconstituição e a
redistribuição do axé” (BERKENBROCK, 1999, p.203).

Neste sentido, o sacrifício é um momento sagrado, pois em sua essência traz


força, vitalidade ou axé dos deuses que ora estão sendo preparados. Segundo
Prandi, “o culto demanda sacrifício de sangue animal, oferta de alimentos e vários
ingredientes” (PRANDI, 1996, p. 20). Esses rituais de grande expressividade no
Candomblé, através dos animais sacrificados, confirmam a sacralidade religiosa
nesta expressão do Sagrado. O ritual candomblecista, ainda de acordo com
Prandi, envolve celebrações, toques, danças e músicas, denominadas de “xirê”,
que significa “vamos dançar”. Este lado é sempre festivo, representativo, com
honrarias aos Orixás, manifestadas através das cores, danças e vestimentas
referentes às suas divindades.

Ao me reportar sobre o ritual do sacrifício, trago as contribuições de Marcel Mauss


e Henri Hubert (2013). Em seus ensaios sobre o Sacrifício os autores falam do
caráter sagrado dos animais domésticos, que segundo ele, a oferenda da vítima
passa a representar como uma dádiva do homem aos deuses. Nota-se, neste
discurso, que a partir desse princípio, surge o sacrifício como dádiva. Em toda
obra, os autores discorrem sobre vários rituais de sacrifício presentes em várias
religiões, dentre as quais destacam-se o ritual Hindu, o ritual Hebreu e textos da
Bíblia Sagrada, sobretudo do livro do Levítico, com citações que expressam tipos
de sacrifícios de pureza e impureza. Ao falar de sacrifícios, os autores sugerem
que esta palavra está ligada a “consagração” (MAUSS e HUBERT, 2013, p.15).
Neste aspecto é importante lembrar que os espaços celebrativos ou objetos
utilizados nos rituais sempre implicam em uma consagração. É o que observo na
Casa de Mãe Beth, uma vez que, dado início a ritualística, há sempre a presença
consagratória do espaço e objetos religiosos.

Ao fazer a correlação entre consagração e sacrifício, Marcel Mauss e Henri Hubert


(2013) deixam claro que não se trata de uma prática que envolve todos os rituais.
Há casos de sacrifícios em que um objeto passa de um domínio comum ao
domínio religioso. Porém, existem casos isolados em que não acontece essa
mesma prática, esgotando seu efeito sagrado, como a unção de um rei; somente
ele é consagrado, e ao seu redor nada é alterado.

Foi o que observei no Candomblé Angola: ao contrário do sacrifício, a consagração


irradia para além da coisa sagrada, que, durante certos rituais, está muito
presente, sobretudo, em festas públicas, ritos iniciáticos, entre outros.

Outro elemento importante a ser destacado é o sujeito que recolhe o sacrifício, ou


seja, o sacrificante. Segundo Mauss e Hubert, essa função pode ser executada
coletivamente ou através de um indivíduo. Neste caso, vê-se com frequência nos
terreiros, antes dos rituais de obrigações, pessoas preparadas para organizar e
preparar os animais que serão sacrificados. Segundo Mametu Beth Pantoja, são
pessoas que primeiro passam por um processo de purificação para dar início ao
ritual.

Partindo dos discursos destes dois autores, pode-se dizer que o sacrifício exerce
uma função religiosa e, por conseguinte, o espaço também é religioso. Neste
sentido, o sacrifício é um ato importantíssimo, pois confere essa grande dádiva de
tornar o que é profano em algo sagrado.

Em outro momento, os autores destacam esse lugar como “lugar sagrado”


(MAUSS e HUBERT, 2013, p.32). No mundo do Antigo Testamento, havia o
sacrifício dos hebreus celebrado em um único espaço, previamente consagrado.
Este espaço era escolhido pela divindade e, ao mesmo tempo, divinizado pela sua
presença. Tudo isso era necessário para manter a sacralização no ritual, pois o
lugar também era importante, portanto, deveria ser consagrado para manter a
pureza e santidade do templo, por isso, havia os sacrifícios, cerimônias
expiatórias, entre outros elementos que mantinham a santificação do lugar.

Quando se trata de ritos, sobretudo relacionados aos sacrifícios, faz-se necessário


entender o processo de ligação que se dá entre o sacerdote, o sacrificante com a
vítima. São laços que os unem, adquirindo um caráter sagrado isolado do mundo
profano. Esta dimensão está muito bem representada nas religiões afro-brasileiras.
Há pessoas que congregam esses elementos sagrados num espaço sacrificial e
conseguem alcançar essa conexão entre humano com o sagrado.

É interessante notar que em algumas religiões, sobretudo as de tradição afro,


existe o sacrifício, porém, algumas em maior proporção e outras em menor
número. No entanto, a presença desses rituais marca, de certa forma, a
sacralização do espaço ou da vítima que ora está sendo oferecida.

Por outro lado, existe uma complexidade no sacrifício. De acordo com Mauss e
Hubert, isso acontece pela ausência da unidade. É que dentro desta diversidade
de rituais religiosos existe a necessidade de estabelecer a comunicação entre o
mundo sagrado com o profano através de uma vítima. No Angola, percebe-se que
este vínculo de comunicação se dá entre o sacerdote e o sacrificante com todos os
objetos que estão envolvidos no sacrifício. Em alguns momentos, a interlocução
acontece de forma visível entre Filhos de santo com o seu Nkisi, sobretudo nas
saídas de obrigações. As vítimas sacrificadas dão vida a este mundo tão
complexo, mas, de certa forma, sagrado.

Os autores apresentam o sacrifício em dois aspectos: primeiro como um ato útil, e,


por conseguinte, como uma obrigação. Ambos estão envolvidos, trocam serviços e
cada um traz o seu aspecto positivo. Este duplo sentido faz compreender a
importância da diversidade religiosa que compõe os rituais, e que os mesmos não
se fecham em si mesmo, e sim interagem em suas mais diversas expressões
sagradas, sobretudo quando existe uma ligação profunda de um mundo profano
com o universo sagrado.

Ao discutirem sobre a fragmentação do sacrifício, Mauss e Hubert compreendem


que o Rito estabelece um conjunto de coisas sagradas, ou seja, põe em
movimento uma comunicação entre a sacralidade e o profano através de uma
vítima, de um ser destruído durante a cerimônia. É interessante notar que todos os
que se evolvem neste ritual são consagrados para atuarem no rito, como o
sacrificador, o sacrificante, o lugar e os instrumentos que são previamente
purificados. A vítima também passa por um longo processo de saída do mundo
profano para a entrada no mundo sagrado, gerando uma comunicação entre esses
dois mundos.

Portanto, os autores citados, trabalham com a ideia de que há dois tipos de


sacrifícios, que é a sacralização e a dessacralização. Na primeira ideia, as forças
de consagração são levadas da vítima ao sacrificante, ou seja, é um rito de
entrada; na segunda, destacam-se os ritos de saída, onde são transmitidas as
impurezas religiosas do sacrificante à vítima.
De acordo com Mametu Muagile, o ritual do sacrifício é um momento sagrado.
Quem prepara esses animais passa por um momento de purificação. Limpam-se
os animais, preparam-nos com muito cuidado, tendo em vista que serão utilizados
para as festas de obrigações. Na nação Angola, é tata kivanda (ogã no Ketu) que
sacrifica os animais, estes previamente purificados, ou seja, preparados para
realizar o ritual. Os preparativos são realizados com muito cuidado: primeiro,
escolhem-se os animais que serão oferecidos, que devem ser necessariamente os
melhores para serem utilizados, sobretudo para as obrigações. Depois, esses
animais são sacrificados e levados para os kotarefula (segundo a nação Angola),
que preparam a comida. Estes são altamente limpos e purificados para preparar as
comidas votivas[8].

Segundo Roger Bastide, estes rituais realizam-se geralmente mediante a um


pequeno grupo de adeptos da religião. Na falta do sacrificador, função hierárquica
exercida na casa, o Babalorixá assume o ritual. É importante destacar que o
“objeto do sacrifício, que é sempre um animal, muda conforme o deus ao qual é
oferecido: trata-se conforme a terminologia tradicional, ora de um animal de duas
patas, ora de um animal de quatro patas, isto é, galinha, pombo, bode, carneiro,
etc.” (BASTIDE, 2001, p.32).

Neste particular, percebe-se que não é qualquer animal, mas os que são
carregados de representações simbólicas, sobretudo do ponto de vista do sagrado.
A escolha se deve às exigências dos Nkisis, ou seja, das divindades. Portanto, o
momento dos sacrifícios requer silêncio e concentração; buscam-se, na força do
Axé, as energias para fazer os preparativos das festas. Como se pode observar,
os sacrifícios de animais no Candomblé Angola são plenos de rituais, favorecendo
o contato direto com o Divino, pois, a partir dessa preparação, as divindades se
aproximam dos seguidores da religião.

Para Severino Croatto, o sacrifício “é o fato religioso mais típico, mas ao mesmo
tempo o mais difícil de ser compreendido” (CROATTO, 2001, p. 364). De origem
latina, o sacrifício tem o significado de fazer com que as coisas sejam sagradas.
Neste sentido, para o autor, a definição de sacrifício é empobrecida, valendo
apenas para o contexto cultural romano. Entretanto, em sua linguagem
interpretativa, sacrificar “é converter em sagrado o que é entendido como a
‘oferenda’ do sacrifício” (CROATTO, 2001, p.355), visto que, no universo religioso
e fora dele, a compreensão que se dá é que o sacrifício está relacionado com uma
vítima, sobretudo de um ser animal.

O simbolismo que gira em torno dos sacrifícios apresenta a essência primordial


das religiões de matriz africana, pois em sua caracterização têm-se o animal como
elemento extremamente importante, sendo através dele o contato estabelecido
com as divindades. Os animais sacrificados estão ligados diretamente com os
Nkisis. Em cada ritual que é preparado pelos adeptos da religião percebe-se a
força do Axé, a energia que ultrapassa a fronteira do sagrado.

Ao ser questionada sobre os rituais em sua Casa, Mãe Beth responde [9]:

Os rituais no candomblé, vamos iniciar. Aí canto, faço todo processo, tudo o que
tem que fazer. Ai você vai cantar pra mavambo. Todas as nações começam com
exú. Todos nós entendemos que o primeiro homenageado, porque ele foi o
primeiro ser criado, depois vem Deus. Começa por mavambo na minha nação.
Depois vem o despacho das coisas do agrado dele. Aí você vai ver uma vela
acesa com padê que é uma farofa de dendê. Pra que o ritual saia em paz. Depois
vem a defumação do incenso. A pessoa vai e defuma todo o ambiente.

O ritual descrito por Mãe Beth revela o quanto é importante para os


candomblecistas o simbolismo que identifica o povo de santo, como a música, a
comida sagrada, entre outros elementos identitários do terreiro.

RITUAIS DE ALIMENTAÇÃO: AS COMIDAS


VOTIVAS
Nos processos iniciático, ou em outros rituais que acontecem no terreiro, têm-se
um elemento que é muito importante para as festas: são as comidas votivas. Não
se pode deixar de ter presente esse fundamento dentro do terreiro, pois a comida
é que alimenta os Nkisis, divindades e os Filhos de santo. Quando um Filho de
santo fica recolhido, ele é alimentado durante vinte e um dias com os alimentos
preparados por seu Pai ou Mãe de santo. Ao sair, em sua festa de obrigação
também há a comida referente ao Nkisi que rege sua cabeça. Já nas festas
públicas, existem as comidas que são oferecidas a todo povo que acompanha os
rituais.

Neste aspecto, recorro às contribuições de Marcel Mauss (2003), que relatam uma
experiência significativa sobre a dádiva e as obrigações que acontecem na
Polinésia e Melanésia. O sistema de oferenda vai desde o nascimento até os ritos
funerários. Neste sentido, é importante ressaltar que em toda dádiva implica um
dar e receber. Segundo Mauss, existem situações em que acontece esse
fenômeno, sobretudo em relações entre membros de família, grupos, hóspedes,
etc. Por outro lado, alguns indicadores nos apontam que a recusa da obrigação de
dar e receber equivale em declarar guerras, ou seja, recusa-se a aliança e a
comunhão.

O autor vai mais além em sua abordagem e diz o seguinte:

Em tudo isso há uma série de direitos e deveres de consumir e de retribuir,


correspondendo a direitos e deveres de dar e receber. Mas essa mistura íntima de
direitos e deveres simétricos e contrários deixa de parecer contraditória se
pensarmos que há, antes de tudo, mistura de vínculos espirituais entre as coisas,
que de certo modo são alma, e os indivíduos e grupos que se tratam de certo
modo como coisas (MAUSS, 2003, p.202).

Neste universo institucional, que demandam relações de poder, mentalidade,


serviços, ofícios sacerdotais, entre outros, percebe-se uma transmissão de
prestação de contas. O indivíduo vive constantemente nessas relações de dar e
receber, assegurando direitos essenciais em suas relações, seja do ponto de vista
social ou religioso.

O autor apresenta, de forma simples e direta, quais são as obrigações desse


sistema que é dar, receber e retribuir. A hibridização presente nessas sociedades
acerca do processo de obrigação leva-nos a compreender como esse fenômeno
está representado no universo religioso, sobretudo no candomblé angola, que é a
discussão deste trabalho. A primeira obrigação é o de dar. Segundo Marcel Mauss,
em toda sociedade as pessoas apresentam-se para dar. Essa prática é bastante
visível em reuniões, encontros entre amigos para partilhar os ganhos de caça e
colheita que vem dos deuses.

Sobre a obrigação de receber, alguns elementos devem ser considerados. Por


exemplo, na dádiva, nunca se pode fazer a recusa de algo. Neste sentido, o
processo de recebimento é sempre aceito. Em princípio, na dádiva, sabe-se que
há um comprometimento tanto para quem dar, quanto para quem recebe,
confirmando uma reciprocidade nas relações de igualdade.

Por fim, o autor sugere que além da composição de troca, existe também a
obrigação da retribuição, que deve ser realizada com juros. Na falta dessa
retribuição, o indivíduo sofrerá sanções, como a escravidão por essa dívida,
perdendo a condição de homem livre. A essa configuração, compreendo a
importância dessa composição da dádiva nos espaços religiosos, sobretudo no
Candomblé Angola como religião de matriz africana e que apresenta esses
elementos ou mantém em suas relações esses três fenômenos: dar, receber e
retribuir. Nos rituais realizados durante o ano, ficam latentes as relações entre os
adeptos à presença da dádiva.

Quando apresento este elemento, faço uma correlação com as comidas que são
preparadas pelos candomblecistas. A comida votiva, ou sagrada, tem esse
simbolismo, que é dar aos deuses o que eles consideram que sejam mais
importantes, tendo em vista que tudo o que se prepara pertence a eles. Ao
oferecer a essas divindades pelos Filhos que o ofertam, acredita-se que há uma
retribuição por parte dos que recebem a oferta ou obrigação como costumam
mensurar.

Dessa forma, existe toda uma preparação em realizar essas comidas. Segundo
Mãe Beth, elas são preparadas num clima de silêncio e de muito respeito. De
acordo com a sacerdotisa, os que cuidam e preparam as comidas votivas são
chamados de kotarefula, e são pessoas que se dedicam inteiramente para que
tudo ocorra bem. Porém, as pessoas que as preparam passam por todo um
processo de ritual, como enfatiza Mãe Beth: “e assim tudo é um ritual, roupa
branca, vestido, arrumado com seu fio de conta no pescoço, a gente não conversa,
conversa pesada (…) sempre voltado para aquele Nkisi que está fazendo aquela
comida”[10] . Neste depoimento, podemos dizer que as comidas aos Nkisis
constituem um valor precioso na vida dos afrorreligiosos; para cada Nkisi é
preparada uma comida diferente, que vai desde a escolha dos animais até a
preparação final.

As comidas preparadas para as festas de iniciação ou públicas são diversas. De


acordo com a sacerdotisa Mãe Beth, para cada santo é um tipo de comida. Por
exemplo, padês, omolocú, o abará, o vatapá, caruru, entre outras. Ainda em sua
transmissão oral, percebe-se que essas comidas são alimentos de verdade e que
procuram dar o melhor para seus Nkisis.

O que mais me impressionou neste momento, dentro dos elementos que são
utilizados na religião, é a maneira com que esses alimentos são preparados. Os
candomblecistas que realizam esses rituais têm que estar bem física e
espiritualmente para passarem boas energias para o que está sendo feito: “então
tem que ter essa ligação, essa conexão com o sagrado, porque aquela comida é
votiva, é sagrada.”[11]. Neste sentido, posso dizer que existe uma interligação entre
as divindades com os religiosos, ou seja, a comida é a ligação entre o humano
com o sagrado.

Na casa Rudembo Gunzo de Bamburucema, o Nkisi homenageado é Iansã, que


está ligada ao vento e tem várias representações. A esta divindade, uma das
principais comidas que é oferecida é o acarajé com caruru. É interessante notar
que no momento da preparação não se pode tocar ou comer antes do santo:
“primeiro pro santo, nunca a gente pode comer antes.” [12].

Neste particular, a sacerdotisa Mãe Beth assegura que a comida é sagrada e que
de forma alguma pode ser “mexida” antes de dar para os Nkisis. Ela relata que, um
dia em sua casa, preparava a comida para o santo, quando um de seus Filhos de
santo comeu parte da comida que estava sendo preparada. Poucos minutos
depois, o Filho começou a sentir fortes dores, ficando sobre os cuidados da
sacerdotisa, que lhe preparou banhos e remédios para aliviar suas dores.

As comidas votivas, nesta esfera do sagrado, constituem um elemento de


aproximação com os deuses. Cada oferenda dá ao santo algo extremamente
valioso, a fim de que esta oferta traga paz, harmonia e energias positivas ao
terreiro. Essas e outras histórias confirmam a sacralidade dos rituais, concernentes
às comidas votivas, pois em cada preparação e, sobretudo, nas oferendas, dá-se
aquilo que é o melhor para as divindades, a fim de que seja alcançada a realização
de todos os pedidos de quem ora faz a obrigação.

Quando me refiro aos alimentos que compõem as cerimônias candomblecistas, me


reporto à experiência religiosa de Pierre Verger no novo mundo. Nos dias de festa,
um elemento para o qual é dada grande ênfase é o padê no terreiro. Este se
apresenta sob duas formas: no primeiro momento, com cânticos em honra a Exú,
que recebe como oferenda farofa amarela, cachaça e dendê ou, quando há
sacrifício, um animal de quatro patas e um de duas patas, tornando-se uma
cerimônia completa nos dias de festas (VERGER, 1981, p.72). Essas cerimônias
consistem em grandes celebrações em honra a Exu, que é o primeiro
homenageado da Casa e também os demais Orixás do panteão africano. O padê é
a comida votiva oferecida aos Nkisis, pois são eles que trazem paz, energia, e
grande prosperidade ao terreiro.

Para Pierre Verger, esses alimentos são de grande importância para compreender
o sentido dos rituais que estão ligados às oferendas. Em cada oferta observa-se
que os pratos preparados são de boa qualidade, haja vista que os deuses são
exigentes nesses rituais. É interessante notar que em cada festa religiosa são
preparados muitos tipos de comida, pois para cada Orixá se oferece uma comida
diferente. Nem sempre os organizadores conseguem recursos para essas
preparações, uma vez que são bastante onerosos os gastos. Eles trabalham
alguns anos para oferecer uma festa digna para seu Orixá. No dia que antecede a
festa, os preparativos são feitos pelas pessoas que recebem essa função na Casa.

No terreiro analisado, existem alguns tipos de comidas que não podem faltar,
dentre as quais destaco o acaçá. No Candomblé Angola, e em outras nações, ele
sempre vai estar presente. O acaçá é uma comida feita de milho branco e é muito
importante, pois é um alimento feito para todos os Nkisis. Quanto à preparação,
Mãe Beth diz que é feito da seguinte forma [13]:
Pega o milho branco, cozinha, escorre e faz todo uma limpeza. Lava e bota no
fogo pra cozinhar, deixe ele molizinho e bate ou no liquidificador ou pila. Depois vai
pro fogo e aí a massa tá preparada. Tem uma forma de enrolar, prepara a folha da
bananeira, escalda para tirar as impurezas e lava. Passa no fogo. Tem pessoas
que faz de várias formas, mas tem que passar por esse processo, da higienização,
da purificação. Ele é muito fino, muito importante.

Ainda de acordo com a sacerdotisa, o acaçá é uma comida que vai de Mavambo
(Exú) a Lembá (Oxalá). Porém, cada Nkisi tem sua comida própria, ou de sua
preferência. Outra comida feita por Mãe Beth Pantoja é o acarajé, que é preparado
com o feijão fradinho. Ele é colocado de molho, tirando-se a pele para depois ser
preparada a massa no ponto. É uma comida feita para vários Nkisis. Segundo a
angoleira, em sua Casa ela pouco usa sal no preparo desse alimento, apenas o
tempera com um pouco de dendê, acrescentando-lhe mais azeite português.
Depois que os bolinhos são preparados, fritam-se os acarajés. Há Nkisi que não
come dendê; para esses, preparam-se com o azeite português.

Ao abordar sobre as comidas votivas, perguntei a Mãe Beth sobre o prato que é
colocado no meio do salão, em alguns rituais do Candomblé. A este aspecto, ela
diz que é o padê de Exú, uma comida, ou oferenda, para Mavambo. Este alimento
é feito da farinha suruí, que é uma farinha especial, produzida no quilombo.
Prepara-se o padê de farinha fina, junto com outros ingredientes, como milho
branco, leite de oliva, azeite de dendê. Essa mistura depende muito de quem está
preparando. Tem também o padê de água e mel, que não pode faltar.

Além dessas iguarias preparadas para os Nkisis, tem a pipoca, símbolo de


oferenda. No terreiro Rudembo Gunzo de bamburucema, a pipoca é jogada no
salão como sinal de oferenda aos Nkisis. Neste sentido, Mãe Beth diz que esse
ritual tem todo um fundamento, pois é onde rezam-se às divindades. É importante
perceber que as comidas preparadas na casa têm um fundamento, um significado,
pois a sacerdotisa faz questão de relatar que tudo faz parte do sagrado, ou seja,
além da comida que deve conter essa sacralidade, quem prepara também devem
estar purificados para fazer a comida do santo.

CONCLUSÃO
O simbolismo que gira em torno do Candomblé Angola me faz compreender a
riqueza e a sua importância na sociedade contemporânea. A legitimidade através
dos cultos ora realizados no terreiro tem a representação de mostrar, não somente
aos adeptos da religião, mas para toda a comunidade, como a religião vem
ganhando seu espaço na sociedade, sobretudo em visibilizar a questão cultural e
identitária.

Ao apresentar as práticas ritualísticas no terreiro de mãe Beth Pantoja, quero neste


artigo enfatizar o quanto é importantes os rituais que fazem parte do candomblé
angola, não somente com seu arcabouço teórico, mas, acima de tudo na interação
com os sujeitos que compõe essa bonita história de tradição, religiosidade e acima
de tudo de garantia de sua ancestralidade. Os rituais ora apresentados, fazem
parte dos elementos fundantes dessas religiões de matriz africana, sua
importância nesta região amazônica tão rica e cheia de contrastes. Porém, tão
significativa para os povos que fazem parte de sua história.

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