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Pulsão, sublimação e o “quereres"1

Lara Matos
Juliana Rego da Silva (Orientação)

Foi buscando entender a pulsão que me interessei pela sublimação,


conceito bastante nebuloso e que em sua explicação Freud se referencia a uma
“prática”: o fazer artístico2 . Ao entender a pulsão descrevi um percurso
interessante neste momento inicial de aprendizagem, percorri o caminho
contrário do seu Lim mais “sublime” para seu início tão turvo nas pulsões.
Certamente um referente na produção de arte e no fazer artístico como um
todo, descrita como um “representante psíquico de forças orgânicas”3, a pulsão
aparece tanto como discurso descritivo do conLlito - interior ou exterior do ser
humano – em que se baseiam as maiores obras da humanidade no campo das
artes – quanto na prática da arte. E é neste lugar (in)exato entre somático e
psíquico que os artistas (e aqui falo ponto de vista de atriz) buscam erguer suas
bases, neste terreno movediço se encontra o ponto de partida dos trabalhos mais
preciosos de criação. Por isso a ideia de que “o artista e sua obra são
inseparáveis”, aLirmação complicada, mas que tem se mantido no tempo histórico
como referência sobre o fazer arte.
Essa busca angustiada pela totalidade que é inatingível, e que bate de frente
com as limitações que as pulsões encontram na relação com as dinâmicas do
aparelho psíquico como o princípio da realidade e sua capacidade de
convencimento pelo “adiamento do prazer”4.
Esse “acordo geral” trouxe à memória uma cena com a qual me deparei
alguns anos atrás, onde, dividindo o apartamento com uma amiga, tínhamos um
piano emprestado disposto na sala. O piano, pesado e imponente, sonoro e
silencioso dominava a centralidade da sala e de nossas vidas em comum, aLinal

1 Apresentado ao ICPOL (Instituto clínico de psicanálise de orientação lacaniana) - 2020

2 FREUD, 2010 p 24-25

3 idem, 2013 p 24-25

4 idem, 2010 p 123-124


ter um piano na sala na atualidade não passa despercebido, em geral o piano era
o marco da casa para nós e para aqueles que nos visitavam.
O piano também era onde esta minha amiga, cantora proLissional se
debruçava nas horas do nosso dia cantando ou dando aulas. A cantora namorava
um homem com quem se dava como muito certa uma relação para instituir, e ao
mesmo tempo mantinha uma relação de amizade com seu ex-namorado, um
talentoso fotógrafo, essa sim uma verdadeira “paixão impossível”. Se tratava de
uma relação que depois de brigas, idas e vindas, havia sido desfeita em comum
acordo, pela consciência da incapacidade de articular a convivência, os acordos e
a intensidade que aquele encontro proporcionava nos dois.
A cena interessante, que eu passei a chamar de “os amantes modernos”
consiste exatamente no momento em que estes dois corpos se encontraram,
minha amiga e seu “ex”, sentados ao piano, cantando muito envolvidos a canção
“O quereres” de Caetano Veloso. A situação de muito envolvimento Lísico, uma
racionalidade técnica e sensível de escuta para adequar as duas vozes, o tempo
da música, a letra: assim passaram a tarde toda em volta do piano. Por muito
tempo tive aquela cena como o processo de encerramento deLinitivo daquela
relação (encerramento que já durava pelo menos dois anos, trazendo muita
angústia aos dois).
Aquela música que os dois destrinchavam ao piano com seus corpos e suas
lógicas, era mais um elemento da cena, uma narrativa daquilo que se passava no
corpo dos dois e do piano.
Em “O quereres”5, Caetano Veloso se debruça em antíteses, para mostrar as
dinâmicas de um querer que (nem sempre se sabe) está no outro, mas também
em si. O querer que encontra uma frustração, mas que nem por isso cessa de
querer, num movimento contínuo6: as pulsões e suas alternâncias. A cena dos
“amantes modernos” ilustrava ali uma fala de si para si e de si para este outro,
inalcançável em seu desejo. E para além disso, o processo desenvolvimento desse
desejo, desse querer, apaziguado e sublimado naquela cena, vivida pelos dois

5 Onde queres revólver, sou coqueiro/E onde queres dinheiro, sou paixão/Onde queres descanso,
sou desejo/E onde sou só desejo, queres não
6 FREUD, 2013 p 19
Linalizando o vai e vem das pulsões que faziam de um e de outro objeto7. A
pulsão, isso que escapa, pois não há como “aprender o total que também não
há”8. Esse percurso ambivalente dos afetos na cena que descrevi expressava o
descolamento do representante ideativo que, recalcado, Linalmente escoava
naquela ação conjunta “sublimativa”.
Pensando no momento histórico em que Freud desenvolveu seu trabalho,
que em linhas gerais era ambiente de um fazer artístico muito mais inacessível,
talvez por isso a sublimação pode ter sido relegada a esta “aura” inata de certas
almas dadas ao fazer artístico. Hoje é possível perceber que a arte é uma
capacidade de todos, e o que falta normalmente é coragem, ou meios, para dar
vazão à expressão na sociedade.
No caso dos dois amantes a concordância com a necessidade do fechamento
da relação não podia ser apenas consciente, pois é possível que a cena do piano
não acontecesse se os dois estivessem dominados pela razão da necessidade. Na
cena descrita há algo do saber (aquele que não diz respeito à inteligência), saber
tanto o desejo quanto o recalque, somados à capacidade de instrumentalizar
essas sensações através da música, sublimação possibilitada pela vontade de agir
em arte, que é base da formação de quem usa da sensibilidade para viver e
erguer-se no mundo. Assim, é possível que sublimar seja uma capacidade
daquele que faz arte pois ele se instrumentaliza para isto, nem sempre surte
efeito em todas as esferas da vida do sujeito, mas é um caminho provável no
percurso. Saber-se e saber o instrumento não é um dom, mas é uma sorte, e neste
ponto lembro de outra canção de Caetano Veloso:

As garras da felina me marcaram o coração


Mas as besteiras de menina que ela disse, não
E eu corri pro violão, num lamento, e a manhã nasceu azul
Como é bom tocar um instrumento.

7 ibidem, p 26-27

8 O quereres estares sempre a Lim/ Do que em mim é de mim tão desigual/Faz-me querer-te bem,
querer-te mal
E eu querendo querer-te sem ter Lim/E, querendo-te, aprender o total/Do querer que há, e do que
não há em mim
Referências bibliográLicas:

FREUD, S. As pulsões e seu destinos. Trad. Pedro Heliodoro Tavares – Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2013 – (Obras Completas de Sigmund Freud: 2).

______. O mal-estar na civilização. (1930) In: O mal-estar na civilização, Novas


conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas v. 18).

______. Além do princípio de prazer. (1920) In: História de uma neurose infantil:
(“O homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920).
Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras
completas: 14).

VELOSO, C. O quereres. Disponível em: https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/


44758/
Acesso: 04/08/2020, 13:50.
______________Tigresa. Disponível em: https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/
44781/
Acesso: 04/08/2020, 13:53.

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