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Uma segunda “última dança”: realismo, morte e memória no

cinema1

A second “last dance”: realism, death and memory in cinema


2
Nicholas Andueza (Doutorando – UFRJ)

Resumo:
Ao abordar Memory of the camps, Jean-Louis Comolli fala de uma “última dança” entre vida e
morte, feita por nazistas que, forçados pelos Aliados, se abraçaram a cadáveres para carregá-
los às valas. Tomo esse motivo da “dança” para abordar S-21: a máquina de morte do Khmer
Vermelho, de Rithy Panh, em que ex-guardas demonstram “coreograficamente” como tratavam
corpos de presos que já não estão mais lá. Neste percurso, observo relações entre morte,
memória e realismo no cerne do cinema.

Palavras-chave:
Rithy Panh, realismo, morte, memória, cinema de arquivo.

Abstract:
When approaching Memory of the camps, Jean-Louis Comolli talks about a “last dance”
between life and death, performed by Nazis that, forced by the Allies, hugged corpses to drag
them into graves. I take such “dance” motive to approach S-21: the Khmer Rouge killing
machine, by Rithy Panh, in which ex-guards show “choreographically” how they treated
prisoners’ bodies that are no longer there. In this route, I observe relations between death,
memory and realism in the heart of cinema.

Keywords:
Memory of the camps, Rithy Panh, death, memory, archive cinema.

Filme, “dança” e morte

Em Memory of the camps testemunhamos imagens de um dos grandes horrores da

Segunda Guerra Mundial: os corpos, mortos e vivos, que restaram nos campos de

concentração nazistas. Num texto talvez obrigatório a quem quer que veja essas imagens,

Jean Louis Comolli (2006) se pergunta sobre o limite da morte no cinema. Como assistir aos

milhares de cadáveres que nos são violentamente expostos pelo filme? Cada cadáver um

corpo, uma pessoa – já ida, mas que ainda resta, que permanece como imagem. Como ver os

guardas nazistas carregando aqueles corpos às valas? Como tentar dar conta desse contato

1
Trabalho apresentado no XXI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão:
Repensando o Realismo.
2
Doutorando em Comunicação e Cultura (UFRJ), Mestre em Comunicação (PUC-Rio - 2016). Escreve
críticas de arte para a Dasartes. É editor de cinema e audiovisual. Email: nicholasandueza@gmail.com.
absurdo, desse abraço mortal entre um nazista vivo e seu prisioneiro morto? E como o cinema

é capaz de carregar essas tensões?

Comolli propõe que olhemos para aqueles corpos abraçados rumo ao enterro como um

par em sua “última dança” (2006, p.40). O signo (gentil, festivo, erótico) da dança contrasta

profundamente com a morbidez da cena. E talvez aí esteja a força dessa leitura, na

contradição, porque ela lida exatamente com essa matéria dos contrários: um corpo morto e o

outro vivo, um nu e raquítico, o outro saudável e vestido, um sendo a vítima e o outro, seu

algoz – toda uma dialética histórica condensada num par que se move em conjunto. O contato,

essa estranha intimidade entre corpos, flexiona e condensa visualmente tais disparidades, as

faz explodirem na tela e transpassarem à experiência de quem assiste.

Ao mesmo tempo, interessa acrescentar uma outra camada de dança que não é a “de

salão”, explorada pelo autor, mas sim a dança “ritual”. Nesta, a violência soa menos estranha,

dado que a dança-ritual está ligada ao que Giorgio Agamben chama “máquina sacrifical”,

funcionando necessariamente na violência da separação que o ato religioso implica (2007, p.65

e 69). Agamben nos lembra também que o contato (contagione) é justamente uma das vias

que regula essa máquina, entre os extremos do sacrifício e da profanação (ibid., p.66). Nesse

sentido, assistimos a uma dança que observa a dor das vítimas e ao mesmo tempo pune os

nazistas ao obrigá-los a, através do enterro, restituir àqueles corpos a dignidade que lhes fora

retirada – como num ritual de purificação, de (des)encenação da história.

Assim, esses dois sentidos (“de salão” e “ritual”) ocupam o nome “dança”, convocado

por Comolli. Um binômio que replica a estrutura polarizada da imagem que visa a descrever –

algoz e vítima, vida e morte. Só assim, com um termo contraditório, seria possível nomear a

crueza do que vemos. Mas sempre há algo que nos escapa, que se esquiva da palavra. Ao se

perguntar sobre os fundamentos de tal crueza, sobre como seria viável ao cinema uma visão

tão direta da morte, o autor vai ao cerne do dispositivo cinematográfico e identifica, ali também,

uma polarização, uma dança:

A operação cinematográfica pode se definir como síntese do


movimento, que acontece no momento da projeção, enquanto todas
as fases anteriores do trabalho cinematográfico (filmagem,
montagem) se desenrolam sob o registro da análise do movimento.
É a distinção entre o projeto científico de Étienne-Jules Marey (o
fuzil cronofotográfico e a análise fotográfica dos movimentos
imperceptíveis a olho nu: o galope do cavalo, o voo da gaivota, o
salto do gato) e o projeto de espetáculo/ entretenimento dos irmãos
Lumière: passar da análise do movimento, da análise do ser vivo (o
registro de um certo número de fotogramas por metro de filme), à
síntese do movimento (colocando em movimento a sequência de
fotogramas impressos na película). Existe aí um jogo entre dois
polos contrários (...) (COMOLLI, 2006, p.44).

Nesse sentido: “o horror, o irrepresentável, o que não pode ser mostrado remetem

paradoxalmente à economia íntima do cinema, ao seu segredo, à palavra primeira de sua

magia” (ibid., p.44-46). E se o cinema é em si mesmo uma dança entre os polos de análise e

de síntese do movimento, significa que guarda em si algo da versão “de salão” – em que há

comunhão entre corpos, paridade, equilíbrio – e algo da versão “ritual” – capaz de violência,

voltada a uma disparidade, a um desequilíbrio, a uma função religiosa de separação. Assim, o

cinema-dança ao mesmo tempo que, em sua via “de salão”, junta morte e vida, congelamento

e movimento, reitera pela via “ritual” a contradição absurda entre esses polos-base e, portanto,

a contradição existencial do ser-cinema. Meu objetivo neste artigo é me servir da contribuição

de Comolli, contaminada pela de Agamben, para re-assistir a alguns trechos de S-21: a

máquina de morte do Khmer Vermelho (2003), de Rithy Panh, que traz cenas de ex-guardas

Khmer mostrando como tratavam prisioneiros da célebre S-21, uma das prisões principais do

violento governo do Khmer Vermelho no Camboja (1975-1979).

Uma dança entre volumes e vazios

Entre as imagens que Panh traz de S-21, hoje desativada, vemos registros do espaço e

de seus arquivos numa condição de ruína. Entramos em contato com um processo geral de

desfalecimento que se ocupa em apagar da memória (coletiva e individual) um passado

violento – estratégias de esquecimento, como propõe Andreas Huyssen (2014, p.158), que se

conectam a interesses de certos grupos em não serem julgados pelos crimes cometidos

durante a ditadura Khmer. Frente a esse caminho aparentemente linear do tempo-história, sob

o qual as coisas ruem e somem, Rithy Panh introduz no espaço da prisão corpos diretamente

ligados ao seu funcionamento passado: duas vítimas que conseguiram sobreviver às torturas e

alguns ex-guardas. A interação entre eles e o espaço parece ativar outras relações temporais,

reabrindo não apenas o passado, mas o próprio presente. O tempo homogêneo é então
transformado em tempo-legião, em um tempo atravessado por tantos outros, trazidos pelas

lembranças das pessoas envolvidas – uma abertura temporal recorrente em filmes de memória

(FRANÇA; ANDUEZA, 2017).

Essa ativação do tempo vem por uma série de procedimentos cinematográficos:

entrevistas com as vítimas e com os ex-guardas; filmagem das obras de uma das vítimas,

Vann Nath, que é pintor e representa pictoricamente o suplício dos prisioneiros; leitura feita

pelos ex-guardas de autos oficiais e arquivos; interação entre Vann Nath e ex-guardas, num

diálogo (e numa disputa) sobre a história do Khmer; encenação pelos ex-guardas de como

procediam com o manejo de prisioneiros. Apesar de serem todos procedimentos relevantes,

especialmente o da interação entre Vann Nath e os algozes, o qual, segundo Anita Leandro,

marca “um método de abordagem humanista do testemunho do inimigo” que Panh

desenvolverá em sua cinematografia (2004, p.5), pretendo focar no último procedimento citado:

a encenação dos ex-guardas.

Num momento filmado à noite, um dos ex-guardas se re-interpreta, volta ao posto de

guarda e interage com prisioneiros invisíveis. A representação no entanto não é inteira, na

medida em que, por entre diálogos com prisioneiros hipotéticos, estão descrições das ações

para a câmera. Assim, o ex-guarda nos diz que “às 10h o interrogador traz o prisioneiro de

volta”, em seguida se vira e fala com o prisioneiro invisível, “fique aqui!”, e depois continua para

a câmera: “destranco a porta e o levo para dentro” – enquanto isso imposta o braço, como se

levasse o prisioneiro, e adentra a cela, carregando-o até o número “14” pintado na parede (ao

lado de vários outros números). “‘Fique aqui!’ Abro o cadeado, passo as correntes nele, tiro as

algemas e retiro a venda”, diz o ex-guarda encenando com o próprio corpo os procedimentos.

“Fique quieto! Não dê um pio! Senão trago o porrete!”, diz ao terminar e sair. A cena é toda

filmada, sem cortes, com uma câmera na mão que fica sempre fora da cela, observando por

entre as barras de ferro sem fazer movimento de zoom; os enquadramentos variam de acordo

com a distância do personagem-ator para a câmera.

A “coreografia” feita durante a encenação não só ilustra como se portava o ex-guarda à

época, mas também nos conta sobre a presença de um outro corpo que não conseguimos ver.

Quando o personagem “finge” que carrega alguém, que o prende e que o ameaça, eis que nos
deparamos com o abismo da história: ele não está simplesmente “fingindo”, ele está re-

encenando algo efetivamente praticado – por ele mesmo. Portanto, o segundo corpo,

deliberadamente provocado pela “dança”, não é imaginário apesar de invisível: é histórico,

tomando a forma de um vazio presente, de um fantasma. Como o tempo-legião da lembrança,

é um corpo-memória que se abre a muitos outros corpos e que condensa em si todos os

prisioneiros de S-21 e, por que não, todos aqueles que foram e continuam sendo vítimas da

miséria humana, uma vez que parece acumular em si os olhares de todos os seres sofrentes.

Reconhecemos a sua existência por conta da dança, da fala do ex-guarda e da

disposição do espaço (a porta que abre, o número “14” na parede). Ali, do lado do volume, do

corpo que vemos, está um outro que olha para nós, um vazio. Georges Didi-Huberman vai

defender que é essa a experiência da visão em sua plenitude: não apenas ver, mas

experimentar o olhar que a cena nos lança de volta, habitar com angústia o ponto de cisão (e

de encontro) desse duplo caminho do olhar (2010, p.29). Com isso, Rithy Panh explicita outra

camada de bipolaridades na “dança” de Comolli: além de vida e morte, de algoz e vítima,

também presença e ausência, memória e esquecimento. A dança do ex-guarda suscita e leva

consigo um outro corpo como um par no salão, mas também expurga horrores e dignifica

vítimas através de um ritual. A disparidade absoluta entre o que vemos e o que não vemos nos

grita o óbvio: um dos corpos não é visível porque já se foi.

Realismo, morte e memória: entre a cena e a cela

Não foi só Comolli que apontou a relação intrínseca entre o cinema e o par morte-vida.

Autores que discutem a ontologia do meio também se conectaram com esse pensamento.

Entre eles, gostaria de ressaltar André Bazin, Siegfried Kracauer e Jean Epstein.

Bazin relaciona o aperfeiçoamento das técnicas artísticas de reprodução realista (em

cujo o topo estão a fotografia e o cinema) com uma “psicologia” humana pela superação da

morte que remonta à mumificação (1991, p.19 e 20). Essa leitura de fato pode ser considerada

teleológica, na medida em que não se distancia da visão moderna da morte como algo “tabu” –

fenômeno recente, como mostra Philipe Ariès (2003) –, mas ainda assim, a conexão entre o

realismo nas artes e a mumificação soa frutífera se reservada ao contexto moderno. O gesto
de salvar-se numa duplicação, numa alteridade de si, traz consigo a ideia de um cinema como

meio redentor do mundo. Algo que também está na célebre abordagem de Bazin sobre o “mito

do cinema total”, na qual defende que a gênese do meio cinema não está no avanço técnico-

científico, mas no mito muito anterior de um reprodutor absoluto da natureza (1991, p.29).

Kracauer também considera que o cinema está ligado à redenção da “realidade física”,

no sentido de ser capaz de registrá-la e revelá-la (HANSEN, 1997, p.IX). Colocando-o em

diálogo com Bazin, fica claro o interesse pela relação do realismo cinematográfico com o

registro do efêmero: não apenas copiar, mas também fazer ver. Para Kracauer, o cinema é

fatalmente realista, a questão é de que forma essa potência é utilizada, se na formação de

“imagens corroborativas” (que se conformam a ideias pré-determinadas – fazer acreditar), ou

de imagens questionadoras (que partem da observação do mundo para desafiar o

conhecimento estabelecido – fazer ver) (1997, p.306). Assim, propõe o autor, o caráter

libertário do cinema está em se fazer escudo de Perseu, ou seja, em servir de espelho entre

nós e os horrores do mundo (e a própria morte), para que olhemos as medusas sem nos

petrificarmos (ibid., p.305).

Em Epstein, autor e cineasta do início do século XX que desafia a clássica biparticação

entre realistas e formalistas (GUNNING, 2012, p.18 e 19), o cinema tem um poder animista que

“dá às aparências mais congeladas das coisas e dos seres o maior presente de todos diante da

morte: a vida” (EPSTEIN, 1974, p.138). E esse poder de vida ocorre nos momentos

fotogênicos, ou seja, nos efêmeros instantes em que o cinema é de fato cinematográfico

(FRANÇA; ANDUEZA, 2017). Aqui também a intervenção do filme no mundo tem um caráter

libertador, traçando uma ponte entre o estético e o epistemológico (GUNNING, 2012, p.17).

Nesse sentido, reservadas as diferenças entre os autores, há uma afinidade na forma como

veem o par vida-morte no realismo do cinema: algo que o fundamenta enquanto meio ao

marcar sua dinâmica de contato com o mundo.

Mesmo com a recente queda de credibilidade do índice na imagem cinematográfica

(LEVIN, 2009), o fato é que, no cinema baseado na câmera (e não na animação

computadorizada), a imagem continua existindo como o resto de luz que escapou pela objetiva.

Isso não significa que vemos um exato duplo do real, nem que o registro sirva exatamente
como “prova”. Mas significa, sim, que há um elo não desconsiderável entre a imagem e o

mundo; no caso de Rithy Panh, entre a cena e a cela. Em seu documentário, o corpo filmado

de fato já habitou a prisão, e o vazio que vemos emana a realidade factível da morte, de modo

que o longa sintetiza um movimento (e uma vida) da memória. Reitero, a liga entre imagem e

mundo não é desconsiderável, não só porque implica o mundo na imagem, mas também

porque nos implica no mundo: nos diz que os horrores que assistimos são também nossas

medusas – e aí reside a potência histórica do cinema.

Referências

AGAMBEN, G. Elogio à profanação. In: ____________. Profanações. São Paulo: Boitempo,


2007.

ARIÈS, P. História da morte no ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.

BAZIN, A. O cinema: ensaios. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.

COMOLLI, J. L. A última dança: como ser espectador de Memory of the Camps. Devires, Belo
Horizonte, v.3, n.1, pp.8-45, jan.-dez., 2006.

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.

EPSTEIN, J. Écrits sur le cinéma: tome 1. Paris: Édition Seghers, 1974.

FRANÇA, A.; ANDUEZA, N. Presente que irrompe: Fotogenia e Montagem. Revista ECO-PÓS
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, v. 20, n.2, 2017.

GUNNING, T. Preface. In: KELLER, S.; PAUL, J. N. (orgs.). Jean Epstein: critical essays and
new translations. Amsterdã: Amsterdan University Press, 2012.

HANSEN, M. Introduction. In: KRACAUER, S. Theory of filme: the redemption of physical


reality. Londres; Nova York: Oxford University Press, 1997.

KRACAUER, S. Theory of filme: the redemption of physical reality. Londres; Nova York: Oxford
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LEVIN, T. Y. Retórica do índice temporal: narração vigilante e o cinema “tempo real”. In:
MACIEL, K. (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009, p.175-192.

HUYSSEN, A. Culturas do passado presente: modernismos, artes visuais, políticas da


memória. Rio de Janeiro: Contraponte; Museu de Arte do Rio, 2014.
LEANDRO, A. A história na primeira pessoa: em torno do método de Rithy Panh. E-compós,
Brasília, v.19, n.3, set./dez. 2016. Disponível em: <http://www.e-compos.org.br/e-
compos/article/view/1279/903>. Visitado em: 01/12/2018.

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