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cinema1
Resumo:
Ao abordar Memory of the camps, Jean-Louis Comolli fala de uma “última dança” entre vida e
morte, feita por nazistas que, forçados pelos Aliados, se abraçaram a cadáveres para carregá-
los às valas. Tomo esse motivo da “dança” para abordar S-21: a máquina de morte do Khmer
Vermelho, de Rithy Panh, em que ex-guardas demonstram “coreograficamente” como tratavam
corpos de presos que já não estão mais lá. Neste percurso, observo relações entre morte,
memória e realismo no cerne do cinema.
Palavras-chave:
Rithy Panh, realismo, morte, memória, cinema de arquivo.
Abstract:
When approaching Memory of the camps, Jean-Louis Comolli talks about a “last dance”
between life and death, performed by Nazis that, forced by the Allies, hugged corpses to drag
them into graves. I take such “dance” motive to approach S-21: the Khmer Rouge killing
machine, by Rithy Panh, in which ex-guards show “choreographically” how they treated
prisoners’ bodies that are no longer there. In this route, I observe relations between death,
memory and realism in the heart of cinema.
Keywords:
Memory of the camps, Rithy Panh, death, memory, archive cinema.
Segunda Guerra Mundial: os corpos, mortos e vivos, que restaram nos campos de
concentração nazistas. Num texto talvez obrigatório a quem quer que veja essas imagens,
Jean Louis Comolli (2006) se pergunta sobre o limite da morte no cinema. Como assistir aos
milhares de cadáveres que nos são violentamente expostos pelo filme? Cada cadáver um
corpo, uma pessoa – já ida, mas que ainda resta, que permanece como imagem. Como ver os
guardas nazistas carregando aqueles corpos às valas? Como tentar dar conta desse contato
1
Trabalho apresentado no XXI Encontro Socine de Estudos de Cinema e Audiovisual na sessão:
Repensando o Realismo.
2
Doutorando em Comunicação e Cultura (UFRJ), Mestre em Comunicação (PUC-Rio - 2016). Escreve
críticas de arte para a Dasartes. É editor de cinema e audiovisual. Email: nicholasandueza@gmail.com.
absurdo, desse abraço mortal entre um nazista vivo e seu prisioneiro morto? E como o cinema
Comolli propõe que olhemos para aqueles corpos abraçados rumo ao enterro como um
par em sua “última dança” (2006, p.40). O signo (gentil, festivo, erótico) da dança contrasta
contradição, porque ela lida exatamente com essa matéria dos contrários: um corpo morto e o
outro vivo, um nu e raquítico, o outro saudável e vestido, um sendo a vítima e o outro, seu
algoz – toda uma dialética histórica condensada num par que se move em conjunto. O contato,
essa estranha intimidade entre corpos, flexiona e condensa visualmente tais disparidades, as
Ao mesmo tempo, interessa acrescentar uma outra camada de dança que não é a “de
salão”, explorada pelo autor, mas sim a dança “ritual”. Nesta, a violência soa menos estranha,
dado que a dança-ritual está ligada ao que Giorgio Agamben chama “máquina sacrifical”,
funcionando necessariamente na violência da separação que o ato religioso implica (2007, p.65
e 69). Agamben nos lembra também que o contato (contagione) é justamente uma das vias
que regula essa máquina, entre os extremos do sacrifício e da profanação (ibid., p.66). Nesse
sentido, assistimos a uma dança que observa a dor das vítimas e ao mesmo tempo pune os
nazistas ao obrigá-los a, através do enterro, restituir àqueles corpos a dignidade que lhes fora
Assim, esses dois sentidos (“de salão” e “ritual”) ocupam o nome “dança”, convocado
por Comolli. Um binômio que replica a estrutura polarizada da imagem que visa a descrever –
algoz e vítima, vida e morte. Só assim, com um termo contraditório, seria possível nomear a
crueza do que vemos. Mas sempre há algo que nos escapa, que se esquiva da palavra. Ao se
perguntar sobre os fundamentos de tal crueza, sobre como seria viável ao cinema uma visão
tão direta da morte, o autor vai ao cerne do dispositivo cinematográfico e identifica, ali também,
Nesse sentido: “o horror, o irrepresentável, o que não pode ser mostrado remetem
magia” (ibid., p.44-46). E se o cinema é em si mesmo uma dança entre os polos de análise e
de síntese do movimento, significa que guarda em si algo da versão “de salão” – em que há
comunhão entre corpos, paridade, equilíbrio – e algo da versão “ritual” – capaz de violência,
cinema-dança ao mesmo tempo que, em sua via “de salão”, junta morte e vida, congelamento
e movimento, reitera pela via “ritual” a contradição absurda entre esses polos-base e, portanto,
máquina de morte do Khmer Vermelho (2003), de Rithy Panh, que traz cenas de ex-guardas
Khmer mostrando como tratavam prisioneiros da célebre S-21, uma das prisões principais do
Entre as imagens que Panh traz de S-21, hoje desativada, vemos registros do espaço e
de seus arquivos numa condição de ruína. Entramos em contato com um processo geral de
violento – estratégias de esquecimento, como propõe Andreas Huyssen (2014, p.158), que se
conectam a interesses de certos grupos em não serem julgados pelos crimes cometidos
durante a ditadura Khmer. Frente a esse caminho aparentemente linear do tempo-história, sob
o qual as coisas ruem e somem, Rithy Panh introduz no espaço da prisão corpos diretamente
ligados ao seu funcionamento passado: duas vítimas que conseguiram sobreviver às torturas e
alguns ex-guardas. A interação entre eles e o espaço parece ativar outras relações temporais,
reabrindo não apenas o passado, mas o próprio presente. O tempo homogêneo é então
transformado em tempo-legião, em um tempo atravessado por tantos outros, trazidos pelas
lembranças das pessoas envolvidas – uma abertura temporal recorrente em filmes de memória
entrevistas com as vítimas e com os ex-guardas; filmagem das obras de uma das vítimas,
Vann Nath, que é pintor e representa pictoricamente o suplício dos prisioneiros; leitura feita
pelos ex-guardas de autos oficiais e arquivos; interação entre Vann Nath e ex-guardas, num
diálogo (e numa disputa) sobre a história do Khmer; encenação pelos ex-guardas de como
especialmente o da interação entre Vann Nath e os algozes, o qual, segundo Anita Leandro,
desenvolverá em sua cinematografia (2004, p.5), pretendo focar no último procedimento citado:
medida em que, por entre diálogos com prisioneiros hipotéticos, estão descrições das ações
para a câmera. Assim, o ex-guarda nos diz que “às 10h o interrogador traz o prisioneiro de
volta”, em seguida se vira e fala com o prisioneiro invisível, “fique aqui!”, e depois continua para
a câmera: “destranco a porta e o levo para dentro” – enquanto isso imposta o braço, como se
levasse o prisioneiro, e adentra a cela, carregando-o até o número “14” pintado na parede (ao
lado de vários outros números). “‘Fique aqui!’ Abro o cadeado, passo as correntes nele, tiro as
algemas e retiro a venda”, diz o ex-guarda encenando com o próprio corpo os procedimentos.
“Fique quieto! Não dê um pio! Senão trago o porrete!”, diz ao terminar e sair. A cena é toda
filmada, sem cortes, com uma câmera na mão que fica sempre fora da cela, observando por
entre as barras de ferro sem fazer movimento de zoom; os enquadramentos variam de acordo
época, mas também nos conta sobre a presença de um outro corpo que não conseguimos ver.
Quando o personagem “finge” que carrega alguém, que o prende e que o ameaça, eis que nos
deparamos com o abismo da história: ele não está simplesmente “fingindo”, ele está re-
encenando algo efetivamente praticado – por ele mesmo. Portanto, o segundo corpo,
prisioneiros de S-21 e, por que não, todos aqueles que foram e continuam sendo vítimas da
miséria humana, uma vez que parece acumular em si os olhares de todos os seres sofrentes.
disposição do espaço (a porta que abre, o número “14” na parede). Ali, do lado do volume, do
corpo que vemos, está um outro que olha para nós, um vazio. Georges Didi-Huberman vai
defender que é essa a experiência da visão em sua plenitude: não apenas ver, mas
experimentar o olhar que a cena nos lança de volta, habitar com angústia o ponto de cisão (e
de encontro) desse duplo caminho do olhar (2010, p.29). Com isso, Rithy Panh explicita outra
consigo um outro corpo como um par no salão, mas também expurga horrores e dignifica
vítimas através de um ritual. A disparidade absoluta entre o que vemos e o que não vemos nos
Não foi só Comolli que apontou a relação intrínseca entre o cinema e o par morte-vida.
Autores que discutem a ontologia do meio também se conectaram com esse pensamento.
Entre eles, gostaria de ressaltar André Bazin, Siegfried Kracauer e Jean Epstein.
cujo o topo estão a fotografia e o cinema) com uma “psicologia” humana pela superação da
morte que remonta à mumificação (1991, p.19 e 20). Essa leitura de fato pode ser considerada
teleológica, na medida em que não se distancia da visão moderna da morte como algo “tabu” –
fenômeno recente, como mostra Philipe Ariès (2003) –, mas ainda assim, a conexão entre o
realismo nas artes e a mumificação soa frutífera se reservada ao contexto moderno. O gesto
de salvar-se numa duplicação, numa alteridade de si, traz consigo a ideia de um cinema como
meio redentor do mundo. Algo que também está na célebre abordagem de Bazin sobre o “mito
do cinema total”, na qual defende que a gênese do meio cinema não está no avanço técnico-
científico, mas no mito muito anterior de um reprodutor absoluto da natureza (1991, p.29).
Kracauer também considera que o cinema está ligado à redenção da “realidade física”,
diálogo com Bazin, fica claro o interesse pela relação do realismo cinematográfico com o
registro do efêmero: não apenas copiar, mas também fazer ver. Para Kracauer, o cinema é
conhecimento estabelecido – fazer ver) (1997, p.306). Assim, propõe o autor, o caráter
libertário do cinema está em se fazer escudo de Perseu, ou seja, em servir de espelho entre
nós e os horrores do mundo (e a própria morte), para que olhemos as medusas sem nos
entre realistas e formalistas (GUNNING, 2012, p.18 e 19), o cinema tem um poder animista que
“dá às aparências mais congeladas das coisas e dos seres o maior presente de todos diante da
morte: a vida” (EPSTEIN, 1974, p.138). E esse poder de vida ocorre nos momentos
(FRANÇA; ANDUEZA, 2017). Aqui também a intervenção do filme no mundo tem um caráter
libertador, traçando uma ponte entre o estético e o epistemológico (GUNNING, 2012, p.17).
Nesse sentido, reservadas as diferenças entre os autores, há uma afinidade na forma como
veem o par vida-morte no realismo do cinema: algo que o fundamenta enquanto meio ao
computadorizada), a imagem continua existindo como o resto de luz que escapou pela objetiva.
Isso não significa que vemos um exato duplo do real, nem que o registro sirva exatamente
como “prova”. Mas significa, sim, que há um elo não desconsiderável entre a imagem e o
mundo; no caso de Rithy Panh, entre a cena e a cela. Em seu documentário, o corpo filmado
de fato já habitou a prisão, e o vazio que vemos emana a realidade factível da morte, de modo
que o longa sintetiza um movimento (e uma vida) da memória. Reitero, a liga entre imagem e
mundo não é desconsiderável, não só porque implica o mundo na imagem, mas também
porque nos implica no mundo: nos diz que os horrores que assistimos são também nossas
Referências
COMOLLI, J. L. A última dança: como ser espectador de Memory of the Camps. Devires, Belo
Horizonte, v.3, n.1, pp.8-45, jan.-dez., 2006.
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
FRANÇA, A.; ANDUEZA, N. Presente que irrompe: Fotogenia e Montagem. Revista ECO-PÓS
do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, v. 20, n.2, 2017.
GUNNING, T. Preface. In: KELLER, S.; PAUL, J. N. (orgs.). Jean Epstein: critical essays and
new translations. Amsterdã: Amsterdan University Press, 2012.
KRACAUER, S. Theory of filme: the redemption of physical reality. Londres; Nova York: Oxford
University Press, 1997.
LEVIN, T. Y. Retórica do índice temporal: narração vigilante e o cinema “tempo real”. In:
MACIEL, K. (Org.). Transcinemas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2009, p.175-192.