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A PROPÓSITO DE CAFE MÜLLER , de PINA BAUSCH

Solange Pimentel Caldeira


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Quando o espectador chega para assistir Cafe Müller, o espaço cênico é o primeiro choque.
Como? Uma cena para dança entulhada de mesas e cadeiras? Em seguida vem a música,
considerada tradicionalmente como elemento vital para a dança. Mas não há música em boa
parte da peça. Em muitos momentos há silêncio, em outros há apenas os ruídos produzidos
pela ação cênica e, quando há trilha musical propriamente dita, não é o que a convenção
definiu como música de balé. Bem, mas quem são então os personagens, já que também é
teatro? Não há nomeação de personagens. Recorre-se ao programa, há que se ter alguma
pista. No programa a própria Pina Bausch fala: “Recordações da infância, quando
costumava ficar escondida, debaixo das mesas do Café, observando as pessoas.” (Pina
Bausch) A conotação semântica do próprio sintagma eleito por Bausch - recordações da
infância - aclaram uma primeira perspectiva: o cunho épico, a opção pela narrativa,
narrativa de ações recordadas e, como tal, projeções de idéias e emoções
subjetivas que se traduzem em um mundo cênico. Mundo
mediado pela consciência do sujeito-narrador, que organiza um
relato monológico, onde se anuncia o teor confessional de um
personagem que percorre uma estação de sua vida - a infância.
Observa-se então, não um personagem que mergulha
no subconsciente, mas um autor-narrador onisciente, que revela
e enuncia sua memória através de uma montagem que trai sua
presença de narrador-manipulador dos fatos revelados. A
recordação é o princípio estrutural da peça. No palco, seu
‘espaço interno’, Pina Bausch, apresenta seu passado em flashback,
um passado que se objetiva e invade a cena, atualizando
a memória como princípio constitutivo.
Os personagens que aparecem nesse passado perdem,
pois, sua autonomia de figuras dramáticas independentes,
surgindo como projeções de um eu que domina o palco. Apesar
de Bausch falar de sua infância, o personagem que ela
protagoniza em cena é uma mulher madura, sem qualquer
característica infantil. Isto sugere a interpenetração cênica de
passado e presente, ou seja, a suspensão da unidade de tempo.
O lugar da ação, por sua vez, embora permaneça o mesmo - o
interior de um Café - sofre transformações com o jogo contínuo
das cadeiras e dos bailarinos, com constantes entradas e saídas,
não se sabe bem de onde e para onde, que extrapolam o
ambiente, rompendo a unidade de lugar.
A continuidade da ação não se traduz na sucessão
linear das cenas. Cada uma é um recorte, um fragmento do
passado da mulher de camisola longa (Bausch). Um passado,
recuperado pela memória, que é mistura de recordações,
vivências, mas também de invenções, livre-associações próprias
da estrutura épica do sonho, das alucinações.
Como seguidamente acontece no teatro
contemporâneo, Cafe Müller apresenta-se como uma obra
aparentemente inorgânica, onde o sentido se constrói não por
um encadeamento linear de elementos, mas pela justaposição
de fragmentos freqüentemente díspares. Nesse jogo, o modo de
fazer se revela o tempo todo. Bausch expõe o seu processo, por
exemplo, ao usar a desconstrução/construção na cena entre
Mercy, Airaudo e Minarik.
A cena começa com um abraço entre Mercy e Airaudo
, que estabelece uma insinuação amorosa. Entra Minarik e
começa a desfazer o abraço, parte por parte, cuidadosamente,
de modo que se perceba cada um dos movimentos corporais
inscritos na frase. Estabelece assim uma descontextualização
e, por conseguinte, nova contextualização, que rompe com o
sentimentalismo realista ao praticamente desumanizar as
figuras, transformando-as em bonecos posicionáveis. Com isso,
Bausch além de desvelar o processo da composição, provoca o
distanciamento.
A mesma seqüência estrutural se refaz oito vezes, cada
vez com mais urgência, até que o manipulador sai
definitivamente pela porta direita. O processo da repetição
acelerada estabelece uma mecanização do movimento que
introduz novos sentidos.
O jogo de construção-desconstrução vai provocando
o efeito de um grotesco risível. A frase persiste mesmo depois
da saída de Minarik, por mais oito vezes, agora por iniciativa
só da mulher. Esse moto continuum, torna-se cada vez mais
forte, mais rápido, mais direto e mais violento. O deslizar
transforma-se num movimento de cair, o abraço agora é um
choque dos dois corpos. A seqüência nos oferece uma releitura:
desta vez é como uma luta que se trava. A urgência dos gestos
da mulher sugerem desespero, incluindo em sua partitura
pequenos sons da respiração entrecortada pelo esforço físico,
enquanto que a passividade do homem, que em nenhum
momento toma qualquer iniciativa, poderia se traduzir talvez
como indiferença. O riso do público vai emudecendo à medida
em que a metamorfose radical do movimento evolui do lúdico
para o conflito. Essa nova distorção constrói nova tensão
dramática a partir da instabilidade dos elementos constitutivos.
O som da cena é o das passadas do homem de terno,
dos corpos se batendo e da respiração da mulher. Na última vez
o casal permanece no abraço, que vai se desconstruindo por si
só, até os dois não se tocarem mais. Nesse momento, Pina
Bausch pára o ímpeto dramático, e é nessa parada, nessa
perplexidade, que se observa outro de seus mecanismos
desestabilizantes, resultante do impasse entre fluxo e supressão
do fluxo.
Quando Brecht institui seu teatro épico, ao ‘mostrar
que mostra’, questiona a realidade social discutindo a realidade
do teatro. Bausch, por analogia, questiona também a realidade
social, discutindo a realidade balética, que jamais desvendara
seu processo na cena.
A cena produz significantes, cabe ao espectador
descobrir seus significados. A cena bauschiana é uma prática e
uma teoria, já que, ao fazer a construção e destruição de imagens,
o espectador é levado a uma prática reflexiva. Observa-se a
criação de um conflito de textos corporais e, com essa estratégia,
Bausch questiona a unidade estética e de sentido - não há uma
única coisa a ser dita, mas coisas a serem confrontadas,
conflituadas.
Bausch trabalha a perda do sentido (não a ausência
de sentido) que permeia a vida humana. Depois de Freud e
Nietszche, a unidade humana é uma questão problemática. O
homem não é uno, é formado por pedaços, fragmentos, pistas,
traços, regido pelo inconsciente, à compreensão do qual não
tem acesso. Para falar disso Bausch lança mão de procedimentos
que causam instabilidade ao universo cênico, como a
constituição de um sujeito narrador via uma multiplicidade de
elementos cênicos e não só através de um único ator-personagem.
Em Cafe Müller, é o conjunto dos elementos que costuram essa
voz narrativa, através das movimentações/ações de todos os
signos da cena. A constituição organiza um sujeito instável, que
se desdobra, se fragmenta, que muitas vezes se reconstitui em
objetos materiais, como as cadeiras, manipuladas o tempo todo,
como um conjunto sem vontade própria. Mas há um fio narrativo
que perpassa todo o espetáculo e, como as cadeiras, permanece
em cena todo o tempo: a atuação da mulher de camisola longa
(Pina Bausch). Nela está um princípio mínimo de organização.
Mesmo sem ser inteiro, mesmo em pedaços, em agonia, é este
personagem o sujeito narrador.
Não é possível falar da elaboração da peça sem nos
reportamos às características que marcam o Cubismo do início
do século XX, quais sejam: o aspecto escultural, o trabalho com
fragmentos e com formas esquematizadas, a exploração da
ambigüidade da forma e dos materiais, a instabilização da
relação entre os objetos, a collage. Ao termo collage, nas
referências ao texto literário e teatral, prefere-se montagem. O
objetivo da montagem não é imitar, mas construir a idéia do
objeto. Além do princípio construtivo, através dos fragmentos,
mistura de materiais diferentes e justaposição de estilos, a
montagem traz outra temporalidade, que é a da simultaneidade.
É dentro dessa nova forma de se conceber o trabalho
artístico que se encaixa o trabalho de Pina Bausch. O que se
tinha na dança, até então, eram mudanças na forma, ou seja,
transgressões ao vocabulário do ballet em todas as correntes da
‘dança moderna’. Porém a construção coreográfica e os
princípios regentes continuavam intactos. O coreógrafo
idealizava sua obra, que era ensinada aos bailarinos intérpretes.
A preocupação fundamental era com a forma, as linhas do corpo.
Pouco se trabalhava o conteúdo. Não que as obras não tivessem
teor dramático, pois este é inerente ao corpo humano. Apenas
essa parte não era considerada essencial. Obviamente, as artes
cênicas foram se desenvolvendo e a dança foi ficando no limbo
do ‘romantismo’ clássico ou nos desenhos e formas mecanizadas.
Alguns coreógrafos notaram o problema e tentaram alguma
saída, como Martha Graham, Merce Cunningham, Maurice
Béjart entre outros, mas o compromisso com a forma prevalecia
sempre.
Na Alemanha, vítima de um momento de
incomparável angústia histórica, o expressionismo deixa raízes
na dança. Rudolf Von Laban, Mary Wigman e Kurt Jooss sentem
na pele toda a insatisfação e questionamentos de um mundo
que se constrói e se destrói numa velocidade assustadora. Não
há mais sentido na vida de uma sociedade que vive da morte. E
é esse mundo caótico, feito de pedaços, que o mundo cênico
deve traduzir em projeções de consciência subjetiva (muitas
distorcidas e disformes), apresentando-o mediado pela
consciência de um sujeito-narrador. É desta linhagem que Pina
Bausch é herdeira.
Porém, apesar de estar presente na dança
expressionista alemã o trabalho com o texto-corporal, percebese
ainda um texto literário por trás, uma espécie de libreto,
algo que seria fonte das danças, ou seja, a dança ainda submetida
a um pensamento escrito, literário. Bausch rompe
definitivamente com isso. Em Bausch a escrita é feita pelo corpo,
por que simplesmente não é possível se escrever uma
dramaturgia da dança com outro instrumento. Cafe Müller é
um texto dramático corporal. É nisso que se situa a genialidade
de Bausch. Talvez seja esse o ponto decisivo para a dança
contemporânea. Até Bausch a composição da dança estava
submetida aos padrões da língua escrita. ora, se a dança é a
expressão do corpo, se esta é sua linguagem primeira, é através
do corpo que deve ser escrita. Que o corpo pensa, sabe-se desde
o nascimento. Mas tal faculdade é reprimida em prol de uma
civilização da palavra. Contudo o corpo que pensa continua
existindo. O que Bausch fez foi despertar e questionar essa
memória que subjaz no corpo do homem. Em Bausch temos o
pensamento do corpo em forma de dramaturgia corporal. Cafe
Müller é prova inconteste disso. Não há texto escrito. Há as
letras das músicas, mas Bausch as desvincula de qualquer poder
de indução quando, após o término da frase musical, as partituras
corporais continuam, ou quando a música entra só algum tempo
depois do movimento corporal. Nesta singular dramaturgia, o
corpo do bailarino-ator é o material vital, a inspiração e o
instrumento de sua escrita.
A identificação, qualquer que seja, é exaustivamente
negada ou esvaziada. Apesar de cada bailarino ter um
personagem do início ao fim da peça, os personagens são
projeções de idéias e emoções subjetivas, assim, esses elementos
se apresentam distorcidos. Na verdade são projeções das
concepções, visões e mensagens do sujeito-narrador. Como no
drama expressionista, a protagonista está essencialmente só,
face a um mundo estranho que não se cristaliza em voz articulada
ou parceria de diálogo. Quando se exprimem experiências
profundas, que por sua própria natureza são incomunicáveis ou
inconfessáveis, a situação dialógica é inviabilizada. É o que se
observa em quase todos os momentos de pas-de-deux, que são
continuamente interrompidos, seja por outro personagem, seja
pela desistência ou mudança do foco de interesse. Tal processo
nos remete ao ‘aparente diálogo expressionista’: dois (ou três)
monólogos paralelos ou a um texto único distribuído por várias
vozes. Assim, tem-se vários relatos simultâneos, que parecem
vinculados entre si pela constante inversão dos pares. Fica a
impressão de diferentes faces de um mesmo personagem ou da
confusão das lembranças passadas.
Como no drama expressionista, o que domina a cena
não são personagens dialogando ou monologando, mas
movimentos de alma, visões que tomam feição épica por causa
da distensão narrativa que as desenvolve na sucessão das cenas.
As constantes lembranças da protagonista narradora surgem
como evocações poéticas intercaladas por comentários reflexivos
que, de algum modo, voltam à pista inicial de que são
‘recordações da infância’. Isso lembra o teatro de bonecos, onde
o narrador conta uma história enunciando as falas para os
bonecos. Como a movimentação marionética estipulada para o
casal Mercy/Airaudo, em que os personagens, na condição de
bonecos manipulados, servem de suporte para as projeções e
emoções subjetivas de Bausch, um momento antiilusionista
inesquecível. Também estão contidas nas partituras corporais
de Bausch partes das frases de movimento de cada um dos
personagens, que nada mais são que enunciação das ‘falas’ dos
personagens-bonecos. Outro traço é a ruptura da ilusão realista
pelo burlesco, o que Bausch consegue ao repetir as seqüências
inúmeras vezes, o que além de esvaziar e abstrair o gesto,
acrescenta um. comentário irônico. O mesmo tipo de comentário
se observa no processo de estilização de gestos convencionais,
involuntários ou do dia-a-dia, outra constante na obra de Pina
Bausch.
Cafe Müller tem como princípio estrutural a
recordação. O palco é o ‘interior da cabeça’ da mulher de
camisola (Bausch). É nesse ‘espaço interno’ que se apresenta o
passado da protagonista, passado que surge como fluxo de
consciência ou monólogo interior, que move os personagens.
No desdobramento épico entre sujeito e objeto, o passado se
objetiva e invade a cena. Os personagens que aparecem nesse
‘passado’, perdem sua autonomia de figuras dramáticas,
surgindo como projeções de um eu que domina o palco - Bausch.
Tem-se assim a construção de um drama monológico, apesar
dos diálogos aparentes.
Pina Bausch efetiva claramente esse caminho ao
trabalhar o esvaziamento e a abstração dos personagens através
das repetições, colagens, justaposições, desmontagens e
remontagens, que desmitificam, despersonalizam e desvelam,
levando o espectador, pelo efeito de distanciamento, a uma
atitude reflexiva, crítica. O melhor exemplo dessa
desfamiliarização do familiar é a opção de colocar as duas
personagens principais (Bausch/ Airaudo) ‘cegas’: duas
bailarinas cegas, certamente constituem a crítica máxima à
dança, estabelecida culturalmente como arte visual por
excelência.
Partindo do subjetivo, Bausch faz com que a platéia
lance um olhar ao seu próprio mundo interior. O espectador é
remetido para além da cena, numa reflexão sobre a condição da
natureza humana. Seu teatro não é reprodução fotográfica do
real, mas um teatro que exaspera sua teatralidade sem a rotina
cacofônica da imitação superficial da vida. Bausch é uma
analista do que de mais profundo e oculto existe no Homem.
Cafe Müller, como outras coreografias suas, é uma obra aberta,
violenta, crua, apresentando sentimentos e emoções no seu
estado puro, livres de convenções e truques. É através dessa
dramaturgia corporal que Pina Bausch discute a relação homemmulher,
a possibilidade da convivência humana, os terrores de
infância, o amor, o medo, a perda, a solidão.

Nota 1 Programa distribuído na tournée do Wuppertaler Tanztheater, em


1980, no Teatro Municipal de São Paulo, Brasil.

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