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LENDO E AGENCIANDO IMAGENS: O REI, A NATUREZA E SEUS BELOS NATURAIS - schwarcz, moritz lilia
sociologia&antropologia | rio de janeiro, v.04.02: 391– 431, outubro, 2014
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ardentemente. Para satisfazer seu desejo ele resolveu tomá-la à força. Athena ficou furiosa
e decretou o destino da sua serva: transformou-a em um ser condenado a arcar com o
exílio, acrescidos de deformação facial, corporal e capilar, para que ninguém mais
conseguisse olhar para ela. Aqueles que olhassem, seriam transformados em pedra pelo
poder das serpentes que cada fio de cabelo havia se transformado. Apartada para sempre
do contato e afetos humanos, a solidão lhe é imputada até morrer. Resultado: o homem,
o deus, sai desta história ileso, enquanto a mulher violentada foi sentenciada como
culpada.
A obra de Bernini parece ter conseguido captar e transpor para o mármore a
expressão de sofrimento, desolação, tristeza e dor em seu momento de transformação.
Seu sofrimento é registrado em sua expressão facial enquanto seu cabelo se transforma,
mecha por mecha, em serpentes se contorcendo. A forma extremamente complexa de seu
cabelo, com suas muitas camadas sobrepostas, é uma demonstração virtuosa de
habilidade. Bernini pretendia fazer uma criação realista de mármore nesta escultura. Ele
habilmente transformou o mito da Medusa em sua cabeça; em vez de Medusa
transformando carne em pedra, ele a transformou em pedra.
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O efeito é dinâmico, criando a impressão de movimento. As sombras
constantemente em mudança obscurecem e revelam detalhes enquanto o espectador se
move em torno desta escultura. O único ponto de descanso visual é encontrado na
expressão angustiada de Medusa, o centro emocional da peça. Bernini esculpe seu rosto
com uma textura suave para mostrar sua humanidade, em contraste com as cobras mais
grosseiras. O artista acentua a crueldade do castigo de Medusa pela expressão ameaçadora
da cabeça de cada cobra em sua cabeça.
A cultura do estupro, da violência, do assédio à mulher remonta à antiguidade.
No caso do Brasil, assim como vários outros países latino-americanos, onde se tenha a
presença de colonizadores, encontramos traços da violência na miscigenação de raças,
uma característica que acompanha sempre os dominadores — exemplos coloniais não
faltam, dos senhores que estupravam suas escravas, dos colonizadores que estupravam as
índias— , realidades muitas vezes romantizadas como forma de acobertar crimes e
insentar uma elite que tal como os deuses do Olimpo, seguiram endeusados em práticas
onde a justiça não os alcançaram..
Aqui no Brasil, recentemente, para efeito de ilustração e paralelismo com o mito
de Medusa e a cultura do estupro, podemos citar diversos casos, mas um em especial,
chama-nos a atenção, justamente por estar ligado à uma mulher que tal qual a Medusa
estava em pleno exercício de seus rituais religiosos quando sofreu um ataque. Caso que
foi noticiado pelo próprio autor do estupro, e tal qual na mitologia grega, saiu impune.
Estamos falando do caso de um
ex-ator de telenovelas, atual deputado federal pelo Partido Social Liberal, revela
narrando de modo jocoso “ter pegado uma mãe de santo” no extinto programa de
entrevistas Agora é Tarde6 da Rede Bandeirantes7 - programa que se enquadrava no
gênero late-night talk show8. Durante a entrevista o apresentador Rafael Bastos pede
para o ator contar uma história engraçada da sua vida; e ele começa: “eu comi uma
mãe de santo”, contextualiza a história e diz que não resistiu e ficou excitado ao ver
as “curvas” do seu corpo, e que o desejo incontrolável o fez virar a mãe de santo de
costas, colocá-la de quatro, erguer sua saia, agarrá-la e segundo ele “mandar ver”,
“sapequei ela, fiz tanta pressão na nuca dela... que ela apagou, dormiu”. Durante a
descrição e tentativa de reinterpretação da cena, o ator, o apresentador – que não se
ausenta durante a revelação, fazendo comentários sarcásticos – e a plateia riem
incessantemente.
Gozei!
Larguei no chão
As frases acima foram ditas e encenadas pelo ator durante a entrevista no Agora É
Tarde, que foi transmitida pela primeira vez no dia 22 de abril do ano de 2014 (nesta
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primeira exibição não houve repercussão). Em 25 de fevereiro de 2015, a mesma
entrevista é reprisada e gera grande impacto nas redes sociais9, Facebook e Twitter, a
maior parte dessas manifestações/produções interpretava a história como uma cena de
estupro10, ou melhor, como a confissão de um estupro, qualificando o ator como
estuprador e em alguns momentos como racista. Uma página feminista e antirracista
no Facebook posta parte da entrevista e produz uma legenda própria: “comeu” ou
estuprou!?; não houve consentimento; o cara apagou a mãe de santo com violência;
aplausos calorosos a uma cena de estupro; é isso que a sociedade faz com o machismo
e o racismo, aplaude. Esse vídeo teve 3.019.363 visualizações, 15 mil curtidas, 7,5
mil comentários e 27.407 mil compartilhamentos11. Essas produções também acusam
o ator, o apresentador, o programa e as mídias comerciais como responsáveis por
naturalizar certos fatos relacionados à violência sexual, como (re) produtoras da
cultura do estupro:
(...) Está na hora dos veículos de comunicação assumirem sua responsabilidade como
patrocinadores da violência contra a mulher. Isso NÃO É ENTRETENIMENTO.
(Publicação na página do coletivo feminista no Facebook). 2
Medusa estava inserida em uma sociedade, ativa, tinha seus propósitos, possuía
beleza e graça, e de repente perdeu tudo por causa de um homem. Na verdade mais do
que um homem, um deus, e deuses podem fazer o que bem entenderem. A sociedade
também a injustiça, pois um dado nessa bizarra narrativa é que a pessoa responsável pelo
templo, que julga e condena a subalterna, também é uma mulher. No caso brasileiro do
estupro declarado na televisão pelo atual deputado do PSL, cremos que ele também segue
impune por se achar um “deus”, acima dos meros mortais, de alguma forma inatingível
pela justiça. Naquela época, em 2014 talvez se sentisse blindado por sua fama, e, agora
permanece assim devido ter alcançado um cargo na política (ou melhor, na necropolítica).
E como ficou a mãe de santo que foi “apagada” e estuprada por ele? Como ficamos todas
nós?
Na milenar versão de Ovídio 3, Perseu faz declarações machistas, dizendo que a
punição foi “justa” e “merecida”. O deputado do PSL faz declarações mais do que
machistas, mas também racistas. Medusa trabalhava no templo de Atena. Poseidon a
cobiça e a estupra. A mãe de santo trabalhava em um terreiro, e foi estuprada por ser
“gostosa.”Atena condena Medusa como a culpada pelo acontecido, transformando-a em
um ser com serpentes no lugar dos cabelos, para que qualquer homem que a olhasse
fosse transformado em pedra. E a mãe de santo, foi transformada em quê ou o quê?
Medusa segue para o seu exílio, almaldiçoada e ainda por cima grávida, com o
fruto do estupro. As histórias sobre a cabeça de serpentes que petrifica homens chamam
a atenção de reis gananciosos, que delegam a Perseu a tarefa de matar a Górgona e
entregar-lhes a mortífera cabeça. Atena volta à cena, patrocinando a empreitada de
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Ana Carolina Braga Azevedo, « Foi estupro ou apenas uma piada? Os embates midiáticos,
políticos/militantes e judiciais em torno de um caso público », Ponto Urbe [Online], 23 | 2018, posto
online no dia 28 dezembro 2018, consultado o 29 abril 2019. URL :
http://journals.openedition.org/pontourbe/5698 ; DOI : 10.4000/pontourbe.5698
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Medusa - https://pt.wikipedia.org/wiki/Medusa. Acesso em 29/04/2019 às 14:38
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Perseu, que o equipa com um escudo; um par de sandálias aladas, doados por Hermes e
um capacete que o tornava invisível, doado pelo deus Hades. Dentre as muitas versões
sobre a morte da Medusa, algumas relatam que Perseu nem chegou a usar todas estas
armas incríveis, pois quando ele a
encontrou, ela estava dormindo. Ele
aproveita o momento em que esta se
apresenta indefesa e a decapita.
Perseu é exaltado como o grande
herói que venceu a tenebrosa Medusa.
Na verdade foi um grande covarde.
No momento em que ele decepa sua
cabeça, dois seres mitológicos
nascem do pescoço que sangra: o
cavado alado Pégasus e o gigante
dourado Crisaor. Perseu irá usar a
cabeça da Medusa em várias de suas
aventuras até entregá-la à Atena, que
a recebe e fixa-a em seu escudo, o
Aegis.
Daí chegamos a mais cruel e uma das
mais belas representações de Medusa
na arte, na figura 3: Perseu com a
cabeça da Medusa, de Cellini.
Na época em que a escultura foi criada, o
bronze não havia sido usado em quase meio
século para uma obra de arte monumental.
Cellini tomou a decisão consciente de
trabalhar neste meio porque derramando
metal derretido em seu elenco, ele estava
vivificando a escultura com sangue que dá
vida. 4
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https://en.wikipedia.org/wiki/Perseus_with_the_Head_of_Medusa – acesso em 29/04 2019 – 17:56
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de suas servas, quase como uma vingança, fruto de inveja, de competição, de um ódio
que não se reprime. A psicanalista Beth Seelig,
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https://pt.wikipedia.org/wiki/Medusa acesso em 29/04/2019 – 17:45
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Figura 4: “Medusa with the head of Perseus”, Luciano Garbati, 2008.
Muito se fala sobre a questão do lugar de fala. Adoraríamos que Garbatti fosse
uma escultora, mas é um escultor, um homem, e, mais uma vez contamos com o trabalho
dos homens na arte para o trabalho de mudar as represenações e nos auxiliar na luta. Ao
contrário dos seus antecessores e vários outros artistas, não precisamos que as obras e os
meios midiáticos-artísticos-literários-familiares-sociais-políticos nos detonem ainda
mais. Precisamos buscar alternativas e histórias que nos empoderem, reforcem a luta para
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desconstruir as fontes de tanta violência e discriminação, restituindo nossa força, nosso
poder. E às vezes ajudar também quem está muito próximo mas que ainda sofre a
contaminação de quem age e rema contra as mulheres ou o poder feminino inerente nas
mais diversas representações.
Recentemente ouvi uma pessoa dizer, em tom de brincadeira, na minha presença
- como se eu não estivesse por perto - para o meu irmão, que eu era péssima influência
para a filha dele, minha sobrinha. Então respondi:
- Realmente eu sou e sempre serei sempre uma má influência para ela. Pois se
eu a influenciar ela se tornará uma mulher forte, independente, auto-confiante e livre.
Fará o que ela quiser e se tornará tudo o que ela quiser ser.
É espantoso como ainda no séc. XXI temos que continuar a lutar por direitos tão
básicos, como o respeito, o direito à vida, não só às mulheres, mas dos seres humanos,
além dos direitos que o movimento feminista encampa. Ser feminista nos dias de hoje
ainda carrega uma carga pejorativa. Criaram o termo feminazi para insultar quem tem os
ânimos mais fortes e inflamados, e feministo para os homens que muitas vezes trabalham
a favor das mulheres, mas como não têm lugar de fala, são mal vistos por muitos
movimentos. Tanto homens quanto mulheres precisam deixar de lado os confrontos
sectários e buscar o que os unem, convergir para o que é essencial, que é se opor a uma
necropolítica que massacra, a ambos, mas muito mais às mulheres.
Referências
AZEVEDO, Ana Carolina Braga - Foi estupro ou apenas uma piada? Os embates
midiáticos, políticos/militantes e judiciais em torno de um caso público - Ponto Urbe
[Online], 23 | 2018, posto online no dia 28 dezembro 2018, consultado o 29 abril 2019.
URL : http://journals.openedition.org/pontourbe/5698 ; DOI : 10.4000/pontourbe.5698
LINS, Beatriz Accioly- “Ih, vazou!”: pensando gênero,sexualidade, violência e
internetnos debates sobre “pornografia devingança - cadernos de campo, São Paulo,
n. 25, p. 246-266, 2016 – disponível
em: http://www.periodicos.usp.br/cadernosdecampo/article/download/114851/134104
acesso em29/04/2019 as 15:40
Medusa - https://pt.wikipedia.org/wiki/Medusa acesso em 29/04/2019 às 14:38
Medusa - Ebah - https://www.ebah.com.br/content/ABAAAfLEMAL/medusa acesso em
29/04/2019 – 17:30
Perseus with the head of Medusa.
https://en.wikipedia.org/wiki/Perseus_with_the_Head_of_Medusa – acesso em 29/04
2019 – 17:56
SCHWARCS, Moritz Lilia - Lendo e agenciando imagens: O REI, A NATUREZA E
SEUS BELOS NATURAIS - sociologia&antropologia | rio de janeiro, v.04.02: 391–
431, outubro, 2014
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UOL – "Eu já transei com uma mãe de santo", revela Alexandre Frota na TV9 Do
UOL, em São Paulo 23/05/2014,01h11
https://televisao.uol.com.br/noticias/redacao/2014/05/23/eu-ja-transei-com-uma-mae-de-santo-
revela-alexandre-frota-na-tv.htm - – acesso em 29/04/2019 17:30
Figura 1- https://art.scholastic.com/pages/topics/posters/medusa-gian-lorenzo-
bernini.html
Figura 2 - http://allpainters.org/paintings/medusa1-gian-lorenzo-bernini.html
Figura 3 - https://en.wikipedia.org/wiki/Perseus_with_the_Head_of_Medusa
Figura 4 - https://worthingtheatres.co.uk/jasmin-vardimons-medusa-a-modern-take-on-an-
ancient-myth/luciano-garbati-medusa/