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Sumário

cinema
A devoração selvagem de Julio Bressane

perfil Hilda Hilst

retrato do artista
Um lance de búzios: a poesia de Antonio Risério

coluna
Marcia Tiburi

entrevista Frei Beto

dossiê Psicanálise marginal?


Apresentação
São Paulo
Psicanálise coxinha
As margens da formação
Clínica miúda
Amizade
Diga-me com quem andas...
O chato do vinho
Comentadores
Internet
Sofrimento
A verdade que ele revela ao sujeito e ao analista
Da nossa violenta natureza
Mimimi, antigo nhenhenhém

ensaio
Somente os bárbaros podem se defender

teatro
Com Eros e à esquerda

estante
A pedra no caminho de Nuno Ramos
A alma militante de Daniel Defert

colaboraram nesta edição


cinema
A devoração selvagem de Julio Bressane
LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR.

Embora sempre tenha margeado a história do cinema brasileiro, a obra de Julio Bressane vem ganhando,
desde o início da década passada, um foco mais do que merecido. Em 2002 e 2003, no Rio de Janeiro e
em São Paulo, houve retrospectivas completas de seus filmes, que, a partir de então, passaram a ser
referência central para toda uma nova geração de cinéfilos, críticos e realizadores.
Também em 2002, o Festival de Turim consagrou-lhe uma grande retrospectiva, primeiro fruto da
descoberta tardia de Bressane pelos europeus. Nos últimos cinco anos, outras mostras de mesma estatura
foram acontecendo: primeiramente no Indie Lisboa, em 2011, depois no Bafici (Argentina), em 2013, e
agora, em fevereiro de 2015, uma retrospectiva integral foi realizada na Cinemateca de Toulouse, que já
o homenageara em 2005 com a exibição de cinco filmes. Na edição dos Cahiers du Cinéma de abril de
2015, há um artigo laudatório de quatro páginas celebrando a iniciativa da Cinemateca de Toulouse e
apontando aspectos gerais da obra de Bressane, que o crítico Nicolas Azalbert não hesita em equiparar à
de Glauber Rocha.
Bressane se acha ainda representado na atual retrospectiva de cinema brasileiro da Cinemateca
Francesa, um evento que reúne mais de oitenta filmes e busca apresentar ao público parisiense uma
cinematografia que, salvo poucas exceções cinemanovistas (Glauber, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá
Diegues, Nelson Pereira dos Santos, Leon Hirszman), é quase que inteiramente desconhecida na França.
A mostra dá destaque especial à produção contemporânea, reservando às épocas passadas um sobrevoo
histórico que, mesmo apresentando graves ausências (nenhum filme de Ozualdo Candeias, por exemplo),
prova-se coerente no geral e conta com muitas pérolas até então ignoradas pelos franceses. De Bressane,
além de Matou a família e foi ao cinema e O anjo nasceu, dois marcos históricos indispensáveis rodados
em 1969, será exibido A erva do rato, de 2008.
Mas o resumo de eventos feito acima, no fim das contas, não nos dá nada além de um bom pretexto
para falar do formidável cinema de Bressane, que, independentemente das efemérides, merecerá sempre
nossa atenção. Assistir a um filme de Julio Bressane é perceber, simultânea e inextricavelmente, várias
camadas de tempo e de imagem. São comuns em seus filmes, sobretudo naqueles realizados dos anos
1980 para cá, procedimentos de colagem de materiais heterogêneos, como se a montagem obedecesse a
um fluxo de pensamento que, sem ignorar as contribuições do acaso e do inconsciente, faz arte erudita e
arte popular, alta e baixa cultura serem centrifugadas por uma força criativa capaz de tudo devolver a um
mesmo magma primordial.
ANTROPOFAGIA OSWALDIANA
Em Tabu, de 1982, Bressane entrecorta suas imagens com cenas da obra-prima homônima de F.W.
Murnau, rodada no Taiti em 1931. Em determinado momento, ele sobrepõe uma marchinha carnavalesca
às imagens de Murnau, que mostram as moças de uma população nativa dançando. As imagens, então,
entram em sincronia com a música, como se os gestos e movimentos das dançarinas taitianas
coincidissem com os dos foliões do carnaval carioca, ou como se a celebração em terras brasileiras e os
rituais festivos dos povos oceânicos estivessem nutridos por uma mesma fonte de energia dionisíaca (já
se entrevê aí a influência de Aby Warburg, iconólogo e historiador da arte alemão cujos escritos tiveram
grande impacto sobre Bressane).
Tabu mostra um encontro imaginário de Oswald de Andrade com Lamartine Babo (interpretado por
Caetano Veloso), no Rio de Janeiro dos anos 1930. As palavras – e nenhum outro cineasta brasileiro é
tão atento a elas – são cuidadosamente elaboradas nos diálogos do filme, que se acavalam num labirinto
de aliterações, antíteses, trocadilhos, hibridações de termos cultos e ditos populares, de linguagem
prosaica e neologismos concretistas. Bressane encontra o elo perdido entre o modernismo e as canções
dos carnavais de outrora (verdadeiros tesouros da língua portuguesa).
Em Sermões – A história de Antônio Vieira, obra-prima de 1989, o diretor aprimora o estilo de mise
en scène já apresentado em Tabu: composições de quadros rebuscados, recorrência de acentuadas contra-
plongées e preferência por planos autônomos que são como grandes cristais condensativos, em vez de
planos transitivos que se encaixariam reciprocamente na decupagem de modo a formar uma progressão
dramática convencional. Sermões é um filme de imagens estratificadas, hipersemiotizadas, com diversas
camadas de significação e temporalidades simultâneas, diferentes níveis estruturais e conceituais. As
citações de trechos de outros filmes se proliferam, e incluem imagens de A Paixão de Joana D’Arc (Carl
Theodor Dreyer, 1928), Eldorado (Marcel L’Herbier, 1921), Viagem à Lua (Georges Méliès, 1902) e
Cidadão Kane (Orson Welles, 1941). Esse trabalho de apropriação e devoração selvagem de referências
cinematográficas estrangeiras deve muito à antropofagia oswaldiana, que constitui uma das principais
linhas de força do imaginário artístico brasileiro, e que tem importância capital para Bressane, como ele
próprio faz questão de sempre frisar.
Mas as mais interessantes citações visuais de Sermões não são de filmes, e sim, de pinturas. Ainda no
começo do filme, surge uma jovem de curvas esplêndidas deitada de costas para a câmera, com seu rosto
só aparecendo graças a um espelho segurado por um anjo. Ora, trata-se de uma recriação da Vênus de
Velásquez, cujo intrincado dispositivo plástico Bressane refaz por meio do cinema. Mais adiante, outra
jovem aparece sobre uma enorme concha a boiar no mar, com sua farta cabeleira revoluteando ao vento:
é a citação de outra Vênus, desta vez, a de Botticelli.
O diálogo do cineasta com a pintura vem se provando cada vez mais revelador. Em Filme de amor,
de 2003, são citados dois quadros de Balthus, dentro de uma mesma ideia de transpor a pintura para o
cinema mediante a técnica do tableau vivant, que consiste em fazer uma composição pictural ser
encarnada por modelos vivos. Tais imagens geram ruído no filme, estancam o fluxo narrativo para
propor uma outra ordem de contemplação. Mesmo se o espectador não conhecer os quadros de Balthus,
ou não reconhecer a reconstrução fílmica operada por Bressane, ele terá a sensação de estar em contato
com imagens que pedem uma fruição mais detida.
Talvez esse impulso pictural tenha despontado na obra de Bressane em Barão Olavo, o Horrível, um
dos seis longas realizados no breve e intenso ciclo de vida da produtora Belair, que ele criou com
Rogério Sganzerla em 1970. Filmado no sítio de Elyseu Visconti em Teresópolis, Barão Olavo atesta um
desejo de trabalhar de maneira pictórica com a cor e a paisagem, como se Bressane tivesse se deixado
contaminar pelos muitos quadros que se veem nas paredes do sítio.
LIBERDADE FORMAL
A relação de Bressane com a pintura tem seu ápice em A erva do rato, que aborda questões específicas
da criação artística ao narrar o envolvimento obsessivo de um fotógrafo (Selton Mello) com sua modelo
(Alessandra Negrini), que ele convence a posar para ensaios fotográficos que vão se tornando mais
pervertidos e eróticos à medida que ele explora o corpo nu da moça por ângulos cada vez mais invasivos,
até fotografar seu sexo em primeiríssimo plano. O momento da revelação dessa fotografia é demorado,
vagaroso, filmado num plano-sequência que preserva toda a duração do processo. A foto ganha
visibilidade aos poucos, até fazer despontar a imagem do sexo feminino, captada de um ângulo que se
reporta ao famoso quadro A origem do mundo, de Gustave Courbet, pintado em 1866. Tal imagem será
complementada por uma outra, que mostra Alessandra Negrini deitada na cama, com o cabelo espalhado
no travesseiro de modo a evocar a personagem mitológica da Medusa, que Freud, num conhecido ensaio,
descreveu como um substituto da representação do sexo feminino, definindo a vitória de Perseu (que
decapitou a temida Górgona com sua espada) como um recalcamento do medo da castração. O texto de
Freud sobre o mito de Medusa certamente foi uma das inspirações de Bressane, que associa as
ambivalências despertadas por essa figura (repulsão e atração, excitação e medo, ameaça e aparição
estupefaciente) ao que a personagem de Selton Mello parece sentir ao revelar a fotografia da vulva da
sua companheira.
Para reforçar o clima mórbido de A erva do rato, Bressane alude a alguns dos motivos pictóricos
mais fortemente conectados aos temas que gravitam em torno da morte. A começar pela natureza morta,
gênero que ganhou prestígio nos Países Baixos e na Espanha do Século de Ouro. Alguns planos de A
erva do rato lembram as naturezas mortas sóbrias e meditativas do pintor espanhol Juan Sánchez Cotán,
que, nos primeiros anos do século 17, dedicou-se a uma série de quadros que sempre apresentavam uma
quantidade restrita de frutas e legumes num espaço delimitado por um nicho retangular. Do universo
pictórico de Sánchez Cotán, Bressane “imita” não apenas o rigor da composição, mas também a forma
de iluminação ao estilo do tenebrismo caravaggesco. À aparência saudável dos alimentos vistos nas
pinturas do espanhol, contudo, contrapõe-se a mensagem de morte contida nos planos rodados por
Bressane: as frutas e legumes estão apodrecidos e assediados por moscas. Esses elementos servem para
transformar a imagem numa vanitas, ilustrando, de certa forma, o assunto mais geral de que trata o
cinema: a ação do tempo sobre as coisas (a morte em andamento). E não é preciso uma ampulheta em
quadro a simbolizar esse efeito do tempo: ele já existe na própria duração dos planos.
Outra evocação da morte mediada pelo imaginário pictural se dá numa cena em que Negrini tenta se
afogar na banheira, remetendo às heroínas lânguidas e cianóticas da pintura romântica, sensualizadas na
sua morbidade mesma, a exemplo da Ophelia de John Everett Millais, representação sublime da
personagem suicida de Hamlet.
O aparente rigor implicado em tais empreitadas de transcodificação da pintura no cinema não deve
nos cegar para a total liberdade formal que fundamenta o estilo de Bressane, cujo cinema não se pauta
apenas na meditação estética, mas também na captação bruta da luz, na significação em estado nascente,
no registro imediato das primeiras impressões ópticas oferecidas por um espaço. Em vários planos de
Tabu e Sermões, a composição e a iluminação cuidadosamente estudadas são subitamente abandonadas
por uma espécie de mouvement fou da câmera, que se põe a percorrer vertiginosamente o espaço ou a
enquadrar o céu e rodopiar em estado delirante. Quando não é a câmera que perde as estribeiras, são os
atores, os corpos em cena, que se entregam a convulsões, espasmos, tremedeiras, formas de pathos. São
corpos atravessados pelo mesmo veneno que faz o corpo de Laocoonte se contorcer na mais mítica
escultura da Antiguidade romana. Corpos em transe, figuras essenciais de um cinema que oscila entre as
operações conceituais do intelecto e a embriaguez das sensações primárias.
perfil Hilda Hilst
Na casa de Hilda
HELDER FERREIRA

Leusa Araujo chegou até a porta do bar, mas não ousou entrar. Foi uma tremenda sorte. Lá dentro,
acontecia o lançamento do livro de poesia Da morte. Odes mínimas que, mais tarde, terminaria
interrompido abrupta e dramaticamente pela própria autora, Hilda Hilst. Notoriamente uma mulher de
rompantes, de temperamento forte, ela decidiu encerrar o jantar comemorativo puxando a toalha da
mesa, derrubando pratos, copos e talheres de todos, após ser provocada e ofendida por uma das
convidadas. Talvez não fosse o momento ideal para o encontro.
A jornalista, à época com vinte anos de idade, fora pega de assalto pela prosa poética da escritora
paulista. “Li Kadosh, primeiro livro dela que me caiu nas mãos e pelo qual me apaixonei; depois li
Fluxo-Floema, o livro decisivo da minha afinidade com a obra. O efeito foi castrador: simplesmente
parei de escrever. Precisava conhecer a mulher cuja obra estava mudando minha vida, mas chegando lá
não consegui reunir coragem para entrar. Não me sentia convidada”, recorda Leusa – hoje, uma escritora
com diversos livros publicados e 35 anos mais velha – em seu escritório na Zona Oeste de São Paulo.
Assim como Leusa Araujo, muitos outros leitores se aproximaram de Hilda instigados por sua obra, e
acabaram ou morando em sua casa, em Campinas, ou tornando-se um grande amigo, visitando-a nos
finais de semana. Não era fácil ser amigo de Hilda, já que sua sinceridade, às vezes áspera, poderia por
tudo a perder. Ao mesmo tempo, não há um dentre os amigos entrevistados que deixe de citar
generosidade e carinho como fortes características da escritora. Ela mesma, nos anos 1980, anotara numa
agenda a lista de seus melhores amigos – Leusa está nessa listinha. Essa agenda, que testemunha o
ambiente intelectual, afetivo e, claro, às vezes tempestuoso, dos seus últimos anos de vida, esteve
exposta na Ocupação Hilda Hilst, no Itaú Cultural, em São Paulo, e marcou o início de um parceria
importante entre o Itaú Cultural e o Instituto Hilda Hilst. Essa parceria prevê a preservação do acervo da
escritora, na Casa do Sol.
Hoje, a obra de Hilda Hilst está bem mais acessível aos leitores. Foi reeditada pela Editora Globo,
com organização do crítico literário Alcir Pécora, e agora está nas mãos do selo Biblioteca Azul, da
mesma editora, que promete, para o segundo semestre deste ano, uma edição de sua poesia completa e
um livro que compila as cartas trocadas entre ela e o escritor Mora Fuentes, que chegou a morar na sua
casa nos anos 1970 e ter um relacionamento amoroso com a escritora. Além disso, ela também será tema
do documentário Hilda Hilst pede contato, dirigido por Gabriela Greeb, e será interpretada pela atriz
Tainá Müller, numa cinebiografia dirigida por Walter Carvalho. Mas quando estava viva, em pleno vigor
intelectual, conseguir uma editora para seus livros era uma luta que envolvia quase todos seus amigos. E
seus livros mais antigos só eram encontrados em sebos, como lembra Leusa Araujo.
O primeiro encontro entre ela e Hilda, de fato, aconteceu apenas em 1985, cinco anos depois do
lançamento de Da morte. Odes Mínimas, quando a jornalista já havia lido tudo o que pudera encontrar da
escritora pelos sebos da cidade de São Paulo. Sentindo-se mais preparada, decidiu fazer uma visita a
Hilda em sua residência na cidade de Campinas, a Casa do Sol. “A simpatia foi imediata quando ela
percebeu que eu havia lido seus livros, porque o assunto na casa era literatura e a obra da Hilda,
prioritariamente”, conta. Logo, a escritora lhe propôs um trabalho: que ela escrevesse um texto
introdutório para a reedição de sua prosa que estava sendo negociada com uma editora. O projeto, no
entanto, não vingou.
A partir disto, Leusa começou a conhecer as dificuldades que a autora, apesar de adorada pela crítica,
sofria em sua relação com o mercado editorial. A jornalista passou, então, a exercer informalmente um
papel de agente literária, recebendo originais da escritora, divulgando seu trabalho em editoras e veículos
de comunicação. Algum tempo depois, conseguiu contato com o jornalista Eugênio Bucci, que
trabalhava como assistente de Caio Graco, diretor da Brasiliense, que foi então convencido a publicar,
em 1986, a novela inédita Com meus olhos de cão acompanhada de outros trabalhos de prosa poética que
já haviam sido publicados anteriormente.
O processo de edição do livro foi doloroso para Hilda, que se ressentiu com o tratamento de segunda
classe dispensado pela editora. “Ela percebeu que o projeto estava acontecendo por causa dos amigos,
que o Caio não se engajou. Acabou se indispondo com ele, que não foi visitá-la, não foi fazer uma corte
que ela sabia que, por exemplo, a Lygia Fagundes Telles tinha com o Pedro Paulo de Sena Madureira. O
Eugênio foi quem tocou tudo”, diz Leusa, que trabalhou no projeto junto com a jornalista e poeta Luíza
Mendes Furia, outra amiga cujo nome consta na agenda da escritora.
COMO CASSANDRA
Juntas, elas continuaram assessorando-a na gestão de sua obra, participando da revisão e preparação dos
manuscritos de Sobre tua grande face, Amavisse – que foi rejeitado pelo extinto programa Bolsa Vitae
de Artes – e Alcoólicas, livros de poesia que foram publicados pela editora Massao Ohno. Também
estavam presentes quando Hilda decidiu que começaria a escrever pornografia. “Ela disse, certa vez, que
precisava ganhar dinheiro, que iria virar uma escritora erótica e vender tanto quanto Cassandra Rios.
Demos risada”, relembra Luíza. “Então ela escreveu O caderno rosa de Lori Lamby, me mostrou e eu
disse: olha, Hilda, isso aqui é muito engraçado, mas não tem nada a ver com Cassandra Rios; tem você
aqui. E ela concordou: ‘Também achei muito divertido, morri de rir escrevendo’.”
Quem dera todos possuíssem o mesmo senso de humor. As estripulias sexuais da personagem de oito
anos de idade escandalizaram muita gente: o crítico literário Léo Gilson Ribeiro, por exemplo, cortou
relações com Hilda e nunca mais voltou a escrever sobre ela, e o artista plástico Wesley Duke Lee
recusou-se a ilustrar a obra. Por fim, o desenhista (e humorista) Millôr Fernandes aceitou a empreitada,
mas nenhum editor se interessou em publicar o romance além de Massao Ohno, que já havia publicado
diversos livros da escritora. “O Massao era ótimo para publicar, mas não era um empresário, um grande
distribuidor”, comenta Luíza. “Para se ter uma ideia, certa vez fui até o escritório da editora, que ficava
em São Paulo, na Rua da Consolação, buscar alguns exemplares de Lori Lamby para Hilda e, quando
cheguei lá, não encontrei ninguém além de um cachorro. Eu entrei – porque estava tudo aberto –, peguei
o pacote de livros e fui embora.”
Ainda em 1990, a editora Siciliano publica Contos d’Escárnio – Textos grotescos, mesmo ano em
que o jornalista alagoano Jurandy Valença chega a São Paulo, aos 21 anos, com o objetivo de conhecer a
escritora. Após três meses na capital paulista, ele conseguiu o número de telefone da Casa do Sol e
chorou quando, na terceira tentativa, ouviu a voz de Hilda do outro lado da linha. Passou a frequentar o
local todos os fins de semana até que, no ano seguinte, mudou-se para lá a convite da nova amiga, que
lhe ofereceu três coisas: casa, comida e tempo. “Não tenho dinheiro para te oferecer, mas você vai
entender que o tempo é bem mais valioso”, ela disse. Ele se adequou à rotina da casa, onde viveu por
quase cinco anos: “O cotidiano era voltado totalmente para a leitura. Ela acordava, tomava café,
conversávamos sobre o que tínhamos lido. Ela lia em média de oito a doze horas por dia. Parava pra
almoçar, voltava a ler de novo e às 20h ela parava tudo pra ver o Jornal Nacional e a novela das nove”.
Certa vez, ele leu para Hilda cerca de trinta poemas que havia escrito. Ela ouviu todos
silenciosamente, fumando seus cigarros Chanceler, para só depois anunciar seu veredicto: “Ju, se você
acha que é um poeta, você está totalmente equivocado. Tudo o que você leu aí é uma merda”. Enquanto
ele se recupera do choque, ela vai até sua biblioteca e volta com três livros de filosofia – O livre arbítrio,
de Schopenhauer, Temor e tremor, de Kierkegaard e Ecce homo, do Nietzsche. “Para ser um grande
poeta, você não tem que se contaminar com a poesia; você tem que ler filosofia, precisa entender o que é
palavra, o que é pensamento”, sentenciou ela.
Durante os primeiros anos, ele mal saía de casa; apenas se dedicava à leitura, à escrita e aos afazeres
domésticos – entre os quais, o trato da matilha que já contava com mais de sessenta cães. Com três anos
e meio, começaram as brigas, especialmente quando ele começou a se relacionar com pessoas de sua
idade. “A Hilda era taurina, extremamente possessiva. Ela perguntava: ‘Quem em Campinas é mais
interessante que eu?’; ou então pedia que eu levasse as pessoas para casa. Só que havia três requisitos
para isso: a pessoa tinha que gostar de cachorro, conhecer ela e ser culto.”
Em uma dessas reuniões, ele convidou Edson Costa Duarte, apelidado pelos amigos de “Morto”, que
fazia mestrado sobre Clarice Lispector na Unicamp, e mais dois colegas. Estavam todos bebendo há
algum tempo, quando Hilda disse que Edson era mau, horrível, que não gostava dele e queria que ele
fosse embora de sua casa. Em seguida, foi dormir. “No dia seguinte, ela já era outra; disse que achava
meu apelido um horror e que ia me chamar de ‘Vivo’”, recorda ele. “Pela primeira vez, eu vi uma pessoa
que tinha um interesse genuíno pelo outro, uma pessoa de espírito largo. Quando ela me mandou embora
e disse que estava com medo de mim, de alguma maneira ela se mostrou frágil também.”
Depois do primeiro mal-entendido, acabaram se tornando amigos. Vivo foi morar na Casa do Sol três
meses depois e por lá ficou durante dez anos, fazendo companhia à escritora, ajudando-a na
administração do lar e chegando até a organizar a parte de seu arquivo que foi vendida à Unicamp. Lá se
aprofundou na obra de Hilda, que foi tema de sua tese de doutorado na Universidade Federal de Santa
Catarina. A mudança para Florianópolis, em 2002, também teve outro motivo: ele não queria
acompanhar a morte da amiga. “Eu conheci uma Hilda no início dos sessenta anos, totalmente viçosa,
sarcástica, virulenta na coisa da palavra, violenta às vezes nos atos. Não suportava vê-la tão debilitada”.
TUMOR ENCAPSULADO
Os problemas de saúde de Hilda começaram a surgir na segunda metade dos anos 1990. A artista plástica
Olga Bilenky, viúva do escritor Mora Fuentes – grandes amigos que moraram na Casa do Sol nos anos
1970 –, conta que ela e o marido estranharam o emagrecimento da escritora e levaram-a ao médico, que
descobriu no pulmão de Hilda um tumor encapsulado. “O médico disse que a vida dela iria reflorescer
depois de retirar o tumor, mas não foi isso que aconteceu. A partir desse tumor, que não foi a causa de
nada, começaram a acontecer coisas: ela sofreu duas quedas e teve três isquemias cerebrais”, relembra.
Em fevereiro de 2004, aos 73 anos, a escritora morreu por falência múltipla dos órgãos, após ficar 35
dias internada para a realização de uma cirurgia, devido a uma queda que lhe causou uma fratura no
fêmur. Por causa da deficiência crônica cardíaca e pulmonar que sofria, Hilda não conseguiu “voltar” da
anestesia. “Durante o Réveillon de 2004, ela começou a ficar meio torta e nós achamos que era o início
de um derrame, levamos ela ao hospital e descobrimos que era uma infecção urinária. Ela voltou pra
casa, olhou no espelho e disse: ‘Olga, eu estou ótima para tudo que está acontecendo’. De alguma forma,
durante a noite, ela caiu, tropeçou num cachorro, talvez, e o fêmur dela quebrou.”
Segundo a artista plástica, a morte de Hilda foi um grande baque para Mora Fuentes, que voltou a
morar na Casa do Sol nos últimos anos de vida da escritora para ajudá-la. “A morte dela foi para ele o
que a dele foi para mim. Foi outro grau de perda diferente do meu, porque eu amei muito a Hilda, mas
ele e ela tiveram uma profunda harmonização. Foi um grande encontro mesmo, sabe? Eu não teria
conhecido a Hilda não fosse o Zé (Mora Fuentes), mas ele a teria conhecido. Foi uma grande amizade
apesar de eles serem um o contraponto do outro, como Hillé e Ehud”, diz ela, fazendo referência aos
personagens da novela A obscena Sra D, que ela acredita que Hilda tenha escrito baseada na relação com
o amigo.
Há alguns anos, Olga voltou a morar na Casa do Sol, onde, desde 2005, funciona o Instituto Hilda
Hilst, fundado por ela e Moura Fuentes, a quem Hilda deixou parte da propriedade. A Daniel Fuentes,
filho do casal que cresceu visitando e passando férias na casa de Hilda, ela deixou os direitos autorais de
sua obra completa. É ele também que preside o Instituto desde a morte do pai, em 2009, além de gerir e
divulgar a obra da escritora. “Minha função foi construir uma lógica econômica racional para a
preservação e divulgação desse legado todo. Com direitos autorais você pode fazer como todo mundo
faz no Brasil, que é uma gestão passiva, um escritório onde você administra contratos por demandas que
vêm de fora. Óbvio que fazemos isso também, mas não é nem dez por cento do trabalho”, completa.
retrato do artista

Um lance de búzios: a poesia de Antonio Risério


CLAUDIO DANIEL

Antonio Risério pertence a uma geração de poetas brasileiros que, na década de 1970, assimilou o rigor
formal da Poesia Concreta, a releitura crítica da realidade brasileira pelo Tropicalismo, as linguagens da
publicidade, das histórias em quadrinhos, da música popular e a inquietação da contracultura. Poetas
como Risério, Duda Machado, Waly Salomão, Paulo Leminski, Alice Ruiz e Régis Bonvicino
publicaram poemas em revistas de vanguarda editadas nesse período, como Código, Raposa, Muda e
Qorpo Estranho, e editaram seus primeiros livros por conta própria, com pequenas tiragens.
Ao contrário de seus companheiros de geração, Risério reuniu sua poesia em livro vinte anos depois,
com Fetiche, publicado em 1996 pela Fundação Casa de Jorge Amado. Nesse volume, o poeta baiano
incluiu poemas visuais elaborados com recursos de computador, como “o peixe é sempre o último a
saber da água”, e outras composições visuais, mais antigas, criadas a partir da colagem e montagem de
fotos, desenhos e textos em várias tipologias de letraset, como é o caso do poema “risos estalam sisos/
rios mudam a plumagem/ quando renasce das cinzas/ o kamikaze da linguagem”.
A influência da Poesia Concreta é evidente, mas não exclusiva: podemos reconhecer no humor,
ironia, escatologia e em certo brutalismo desses poemas visuais um parentesco com o dadaísmo, assim
como acontece na poesia visual de Glauco Mattoso e Sebastião Nunes. O ready made, técnica recorrente
na poesia e nas artes visuais dadaístas, comparece em várias peças de Risério, como no poema que
reproduz um retrato de Fernando Pessoa, recortado e ampliado numa sequência de páginas em que o
rosto do poeta português desaparece progressivamente até permanecer apenas um detalhe do bigode,
invertido, sugerindo o formato da vagina. Em “Guerra nas estrelas”, o poeta baiano cria outro ready
made, estampando na página um desenho de Flash Gordon, trocando o texto original dos balões de
diálogo dos personagens da história em quadrinhos por frases de sentido metalinguístico (“se tenho uma
estrela para trocar por um estilo novo/ tenho um estilo para queimar por um sentido novo”). Os textos
poéticos de Fetiche exploram com felicidade a musicalidade das palavras, mesclando aliterações,
assonâncias, trocadilhos, neologismos e termos de origem indígena, iorubá e japonesa, como na série de
poemas breves “Abayté ya” (“alokorô alakorô/ oh oxotokanxoxô”) e na “Arte poética”: “na serra da
desordem/ no piracambu tapiri/ em cada igarapé do pindaré/ em cada igarapé do gurupi/ existe uma
palavra/ uma palavra nova para mim”.
Em Brasibraseiro, livro escrito a quatro mãos com Frederico Barbosa e publicado em 2004, há uma
estratégia de revisitação da cultura brasileira em sua multiplicidade étnica, linguística, religiosa e
estética, tendo como perspectiva utópica um novo projeto civilizacional (“para que seja/ exterminado/ o
jugo/ para não haver ignorância/ tendo porto aberto/ a liberdade popular”). O livro recupera episódios da
história brasileira, como a escravidão e a catequese, inclusive parodiando o discurso quinhentista, e
chega até a época contemporânea, como no belíssimo poema “Strassenkinder”, que retrata o cenário de
exclusão dos meninos de rua (“crianças de poucos pentelhos/ de rubras roupas rasgadas”).
É preciso destacar também os pioneiros estudos de etnopoesia realizados por Risério em livros como
Textos e tribos e Oriki orixá, este último acompanhado por criativas traduções de poemas rituais da
tradição oral nagô-iorubá que celebram os orixás do candomblé, como este belo oriki, pleno de sutilezas
sonoras: “Xangô oluaxô fera faiscante olho de orobô/ Bochecha de obi./ Fogo pela boca, dono de
Kossô”.
coluna

Polifonia do silêncio
MARCIA TIBURI

Dizer que o silêncio é polifônico pode parecer uma frase de efeito. De fato, assim como o escuro não é a
ausência de luz, o silêncio não é a ausência de som. Uma história natural do silêncio precisaria
rememorar os sons que ainda carregam silêncio: o barulho das ondas do mar, o vento que tangencia as
paredes, o riso das crianças brincando, o canto de um pássaro, a respiração de um animal que dorme,
uma pedra que rola, uma palavra pronunciada poeticamente.
A história natural do silêncio foi substituída pela história tecnológica do ruído. Ruído é o som
desprovido de silêncio, fácil de reconhecer no que cansa os ouvidos, no que não aconchega a nossa
percepção.
Desde a invenção dos microfones, dos gravadores e amplificadores, o ruído se tornou uma questão
cultural. A regressão da audição é uma questão no campo da audição musical. Desaprendemos a ouvir
certas coisas, enquanto nos adaptamos a outras. Ouvimos de um modo diferente. Nossos ouvidos
saturados aprendem a se proteger. Fones de ouvido nos permitem escutar músicas que nos dão prazer,
mas também nos ajudam a evitar o encontro com a “paisagem sonora” de nossa época. Os sons que
queremos ouvir se tornam facilmente ruídos que evitam que sejamos devorados por outros ruídos. Ouvir
hoje tornou-se um ato de administração de uma paisagem sonora devastada por ruídos.
O silêncio foi aniquilado, mas não desapareceu por completo. O silêncio que sobrevive no ruído é o
silêncio morto: mutismo que tanto é efeito do sofrimento quanto costuma causá-lo. O silêncio morto está
em toda parte, como um fantasma que apavora quem o desconhece. Temos medo do silêncio morto. Já o
silêncio vivo, do qual precisamos para viver, é raro. Ele sobrevive guardado na natureza que se torna,
junto com ele, cada vez mais intangível na experiência. O silêncio sobrevive também nas artes, na
literatura, na pintura, na gravura, até mesmo no cinema. O silêncio cultural relaciona-se com o silêncio
da natureza. Kant falava em belo artístico e em belo natural – talvez o silêncio vivo seja o reduto dessa
experiência em uma sociedade sonoramente saturada.
SILÊNCIO E EDUCAÇÃO
O silêncio é uma relação entre sons no tempo e no espaço. Se a polifonia do silêncio nos dá a
epistemologia e estética do silêncio, uma ética-política do silêncio surge quando pensamos na
performatividade do silêncio, nos gestos, atos e efeitos que ele provoca.
Há lugares que privilegiam a experiência do silêncio. Um deles é a escola, exemplo onde a
experiência cognitiva e sensível depende em grande medida do que se escuta. Professores nas salas de
aula sempre pedem silêncio. Quando o impõem por meios autoritários, geram mutismo. Estudantes
respondem ao mutismo imposto com barulhos próprios, em uma tentativa de escapar ao mutismo.
Porém, em tempos de regressão da audição, no âmbito da paisagem administrada, a dialética entre
silêncio e som está adoecida. Nem sempre os estudantes respondem ao mutismo com um som autêntico.
Às salas de aula de hoje, os estudantes trazem ruídos do ambiente exterior que promovem mais
mutismo. Em nossa época, a aprendizagem autêntica é evitada com a contribuição dos próprios
estudantes que, sem saber, agem contra eles mesmos. O sistema capitalista não deseja que os estudantes
aprendam nada que possa ter relação com o silêncio. Como experiência subjetiva, o silêncio ajuda a
formarmos a nós mesmos. Já o conteúdo repetitivo só precisa do silêncio morto e define uma educação
morta. Dessa atenção, dependem todos os processos de subjetivação que podem levar-nos à
emancipação.
Uma educação como aprendizagem do silêncio é o que cabe nesses tempos de mutismo.
entrevista Frei Beto
A vocação literária de Frei Betto
MANUEL DA COSTA PINTO

Prestes a completar 71 anos e com sessenta livros publicados, Frei Betto descobriu o amor pela escrita
muito cedo, quando suas redações escolares (ou composições, como se dizia à época) fizeram os
professores identificarem seu talento – mas só se tornou um autor “graças aos generais brasileiros”.
Integrante da Ação Católica, grupo que se opunha ao regime militar, Carlos Alberto Libânio Christo
foi preso duas vezes: em 1964 e no período 1969-1973, quando estava no Rio Grande do Sul e
participava de uma rede clandestina formada pelos dominicanos para apoiar os insurgentes.
Dessa segunda experiência, resultaram dois livros de cartas, atualmente reunidas num único volume
intitulado Cartas da prisão. Começava a se desenhar aí o perfil do religioso e militante que publicou
vários títulos de caráter memorialístico – entre eles, Batismo de sangue, que narra os episódios que
levaram ao assassinato do ativista Carlos Marighella e que daria origem ao filme homônimo de Helvécio
Ratton.
O cruzamento de atuação política com religião aproximaram Frei Betto do cristianismo progressista
dos dominicanos e da teologia da libertação, mas jamais sufocaram sua verdadeira vocação – a literatura.
Vocação que foi alimentada pela mãe, Maria Stella Libânio Christo, cristã progressista e autora de livros
sobre culinária (entre eles, o clássico Fogão de lenha), e pelo pai, Antônio Carlos Vieira Christo,
advogado, cronista e ferrenho anticlerical, que chorou copiosamente quando soube que o filho ia
ingressar na ordem dos dominicanos, mas que mais tarde se tornaria “fã da teologia da libertação, de D.
Pedro Casaldáliga”, segundo Frei Betto.
Na entrevista a seguir, concedida no convento dos dominicanos, no bairro paulistano de Perdizes, o
autor de Minas do ouro fala da preocupação de dissociar a ficção das questões ideológicas – que
continuaram presentes em suas intervenções públicas, levando-o a participar do programa Fome Zero,
durante o governo Lula, mas não o impedindo de ser um crítico dos desvios de rota do PT e da timidez
da esquerda.
Quando a literatura e a escrita aparecem na sua vida?
Comecei a escrever muito cedo. Sempre conto que, aos oito anos, quando estava no grupo escolar, minha
professora, Dercy Passos, entrou na sala com um maço de composições (belo nome que se usava então
para as redações) e, ao fazer a correção, deixou a minha por último. No fim, disse à classe: “Vocês
deveriam fazer como Carlos Alberto; ele escreve as próprias composições, não pede para os pais fazerem
por ele”. Aí meu ego bateu lá em cima... E mais tarde, no primeiro ano de ginásio, no Colégio Marista,
meu professor de português me chamou e disse: “Você só não será escritor se não quiser”. Só que, para
mim, ser escritor era coisa de outro mundo, para gente muito erudita. Foi daí que me meti no jornalismo.
Comecei, em 1966, por onde muitos almejavam concluir carreira: a revista Realidade.
Mas só me tornei autor graças aos generais brasileiros, ao escrever Cartas da prisão – que foram
publicadas primeiramente no exterior [com outros títulos e em volumes separados], primeiro na Itália,
em 1971, em seguida na França e em outros países. Depois, em 1977, saíram no Brasil.
A experiência política marcou muito sua literatura. Em que momento surge uma ficção “pura”,
sem essa preocupação?
A militância me dificultou muito na ficção, que é o que mais gosto de fazer. Tive de lutar para me
desfazer dessa camisa de força. Meu primeiro romance foi O dia de Ângelo, onde ainda havia essa
camisa de força, tinha um pouco das minhas experiências em celas solitárias. Depois vieram Hotel Brasil
e Minas do ouro – em que me soltei mais.
Essa mudança coincide com o período posterior à queda do muro de Berlim, quando as grandes
questões ideológicas declinam. É só depois disso, por exemplo, que você escreve Hotel Brasil, um
romance policial. Há alguma relação?
Até onde consigo enxergar conscientemente, queria enfrentar o desafio de fazer um policial – duplo
desafio de criar a ficção e o mistério, conduzir o leitor até o fim sem que ele descubra quem é o
assassino. Foi isso que passou na minha cabeça. Não tive a consciência de que, com a crise das
ideologias, iria fazer literatura “pura”.
Reservo 120 dias do ano só para escrever. Não são dias seguidos, mas são sagrados. E muitas vezes
estou fazendo ficção e fico árido; daí, inevitavelmente, leio Machado de Assis. Ele me reaquece, provoca
minha inventividade. Fui um leitor voraz de Jorge Amado e Erico Verissimo, de quem era amigo e que
me ajudou a montar uma biblioteca na penitenciária em que estive preso – e fui muito marcado pela
literatura francesa, Camus, o Sartre do teatro e de A náusea.
Falando em Jorge Amado e Sartre, que eram escritores muito engajados, como você avalia a
esquerda de hoje?
A esquerda hoje é uma raridade. Conheci muito intimamente o mundo socialista, na Nicarágua, depois
em Cuba, onde durante dez anos, entre 1981 e 1991, fiz um trabalho institucional de reaproximação entre
Igreja e Estado. Com a queda do muro de Berlim, a esquerda acadêmica, que nunca teve um trabalho
popular, foi cooptada pelo neoliberalismo, a ponto de hoje acontecer uma enorme crise econômica na
Europa Ocidental e não haver qualquer proposta de esquerda.
O principal problema filosófico hoje é a desistoricização do tempo. Isso se reflete na esquerda
mundial, que está perdendo o horizonte histórico (não tem utopia, não tem projeto), e também no plano
pessoal – a dificuldade de se ter projeto pessoal na vida profissional, artística, afetiva (todos ficam
vulneráveis a qualquer dificuldade na relação conjugal).
Isso está nos levando à falta de esperança, e faz com que a discussão política desça do racional ao
emocional. Sempre participei de discussões políticas e nunca vi nível de animosidade tão forte como
agora, porque se apagou o horizonte histórico.
Não é fácil ser de esquerda em um mundo tão sedutor quanto o do capitalismo neoliberal. Daí o
problema do PT, que foi perdendo o horizonte histórico de um projeto Brasil e trocando-o pelo horizonte
imediato de um projeto de poder.
Quando percebeu que o PT abandonou seu projeto inicial?
Isso desaparece na campanha de 2002, quando o PT faz a opção de assegurar a governabilidade pelo
mercado e pelo Congresso – daí as alianças e a “Carta aos Brasileiros”, que na verdade é a “carta aos
banqueiros”. Ali, o PT abandona sua matéria-prima, que são os movimentos sociais pelos quais deveria
ter assegurado a governabilidade, como fez Evo Morales na Bolívia, que não tinha apoio no congresso,
se apoiou nos movimentos sociais e, através deles, conseguiu mudar o perfil do congresso. Hoje, ele tem
apoio dos dois, é o presidente mais consolidado de toda essa safra progressista. O PT optou pelo
mercado e pelo Congresso. Agora, está refém dos dois e pagando um preço muito alto. Tanto que
chamou um homem do mercado para ver se melhora a economia e entregou a parte política para o
PMDB.
Se você já havia se decepcionado desde a “Carta aos Brasileiros”, por que participou do programa
Fome Zero, do governo Lula?
Achei que a “Carta aos Brasileiros” fosse uma coisa tática, que, uma vez eleito, o PT faria reformas
estruturais, tributária, agrária, algum tipo de reforma. Estava altamente entusiasmado. Sempre fui
convidado para trabalhar em administração, mas nunca quis trabalhar nem para a iniciativa privada nem
para governos. Gosto dessa vida cigana, solta. Quando Lula foi eleito e me convidou para o Fome Zero,
achei que trabalhar com os mais pobres entre os pobres – os famintos – se enquadrava em minha
perspectiva pastoral e tive todo apoio de meus superiores dominicanos e até de Roma.
Fiquei dois anos e, de repente, o governo matou o Fome Zero para substituí-lo pelo Bolsa Família.
Tive então a certeza de que essa opção contrariava a tudo aquilo que o PT vinha pregando desde a
fundação. O Fome Zero era um programa emancipador, o Bolsa Família é compensatório. O Fome Zero
ia mexer na estrutura do país e por isso foi boicotado pelos prefeitos. Era coordenado por comitês
gestores municipais, não passava pelos prefeitos, não havia como usar os recursos para fazer jogo
eleitoreiro, então os prefeitos se rebelaram, pressionaram a Casa Civil, que pressionou Lula. No fim,
Lula cedeu e eu caí fora.
Você chegou a escrever que o PT faz “populismo cosmético”.
O erro do Lula foi ter facilitado o acesso do povo a bens pessoais, e não a bens sociais – o contrário do
que fez a Europa no começo do século 20, que primeiro deu acesso a educação, moradia, transporte e
saúde, para então as pessoas chegarem aos bens pessoais. Aqui, não. Você vai a uma favela e as pessoas
têm TV a cores, fogão, geladeira, microondas (graças à desoneração da linha branca), celular,
computador e até um carrinho no pé do morro, mas estão morando na favela, não têm saneamento,
educação de qualidade. É um governo que fez a inclusão econômica na base do consumismo e não fez
inclusão política. As pessoas estavam consumindo, o dinheiro rolando e a inflação sob controle, mas não
se criou sustentabilidade para isso. Agora a farra acabou, está na hora de pagar a conta e chama-se o
Joaquim Levy [ministro da Fazenda].
Os católicos de esquerda foram preteridos pelo PT por conta dos compromissos com os
evangélicos?
Lula sempre reconheceu que as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) tiveram mais importância na
capilaridade do PT pelo território brasileiro do que o sindicalismo. Nos anos 80, havia núcleos do PT no
fundo do Maranhão ou do Amazonas graças a essas comunidades. Enquanto foram atuantes, não havia
evasão de fiéis para as igrejas pentecostais. Foi o fato de o Pontificado de João Paulo 2º reprimir as
CEBs que fez com que os bispos já não as patrocinassem e que muitas pessoas bandeassem para as
igrejas evangélicas.
Nas CEBs, o pobre se sente à vontade. Mas numa igreja, não. Você vai à paróquia e só tem classe
média, tem a patroa, tudo é centrado no padre – não há convivência como numa comunidade. Ainda
existem as CEBs, mas não com aquela força de antes.
As CEBs produziram muitos militantes, como Erundina, Vicentinho, Chico Alencar. As figuras
éticas [do PT] têm uma tradição de igreja. O PT é formado por três segmentos: o pessoal da Igreja, o do
sindicalismo e o da esquerda – remanescentes da esquerda da época da ditadura (Zé Dirceu, Paulo
Vannuchi etc.). O pessoal das CEBs, por formação pessoal, nunca teve muita gana de poder. Aos
poucos, ficaram em segundo plano.
Por outro lado, os evangélicos estão armando uma grande estratégia de domínio da política brasileira,
que se resume ao seguinte: “Nossos princípios religiosos exigem determinadas atitudes morais e nós só
podemos impor isso de duas maneiras: convertendo toda a nação (o que é impossível) ou tendo o poder
de fazer a lei civil obrigar as pessoas a agirem como nós queremos (já que a lei é universal)”. Se você
tem a caneta, você transforma seu princípio religioso em lei.
Você vê sinceridade religiosa nessas posturas ou é manipulação de sentimentos reativos dos fiéis?
As duas coisas. Há os fundamentalistas e há os que são meramente oportunistas. Estes perceberam que
aquilo é um manancial de votos. O pastor diz claramente: “o candidato é esse”. Isso não acontece na
Igreja Católica – aconteceu lá nos anos 30, com a LEC (Liga Eleitoral Católica), em que o bispo dizia
“isso sim, isso não”. Nas igrejas evangélicas, há hoje um direcionamento muito explícito. Muitos
políticos estão ali por fundamentalismo, muitos por oportunismo.
Qual sua posição sobre a liberação do aborto?
Defendo o modelo francês. Tudo deve ser feito pelo Estado para convencer a mulher a não abortar, mas
a decisão final é dela. Esse modelo, em primeiro lugar, fez com que acabasse o aborto clandestino e,
portanto, diminuísse o índice de mortes. Em segundo lugar, o fato de o médico e o ministro da confissão
religiosa da mulher induzirem-na a não abortar aumentou o índice de mulheres que foram à procura do
aborto, mas decidiram assumir o filho. Eu mesmo tenho experiência pessoal disso. Já recebi vários
adolescentes nessa situação e sempre disse o seguinte: “Tenha o filho e deixe aqui que eu crio, pode
deixar na porta do convento”. Nunca ninguém trouxe e hoje tenho uma porção de apadrinhados... Tenho
uma posição aberta, acho que aborto em última instância é um direito da mulher e não pode ser
criminalizado de jeito nenhum.
Mas isso não vai contra os dogmas da Igreja?
Não é dogma. Se fosse, a Igreja também teria de ser contra a guerra, não haveria capelão militar e, nos
EUA, seria contra pena de morte. Na verdade, há uma ambiguidade na teologia. São Tomás de Aquino
aceitava o aborto até quarenta dias após a fecundação, porque ainda não haveria ali, propriamente, uma
pessoa – e ele é a doutrina oficial da Igreja. A discussão teológica não está fechada. Tanto que escrevi
um texto sobre isso em 1988, que circulou na CNBB, e nunca recebi advertência. Aliás, nesse texto digo
que “se homem parisse, aborto seria um sacramento”...
E em relação ao casamento homossexual?
O fundamento da relação de qualquer ser humano é o amor – e, se há amor, há Deus. O tema da
sexualidade e da família está congelado na Igreja Católica desde o século 16. Tentou-se várias vezes
abrir esse tema nos concílios, mas ele foi podado. Acho que o papa Francisco, muito inteligentemente,
está conseguindo quebrar esse preconceito. Em vez de falar “vamos aceitar o casamento homoafetivo”,
ele fala “esses casais têm filhos, as crianças não têm direito à catequese?”. Com isso, já abriu o caminho.
Ele acaba de receber no Vaticano um transexual espanhol que foi discriminado pelos bispos e que agora
vai casar. Foi um escândalo na Espanha, tanto que dizem que a direita de lá reza assim para o papa:
“Senhor, iluminai-o ou eliminai-o”.
Outro tema atual que divide a opinião pública é a redução da maioridade penal. Qual sua posição?
Criminalizar a juventude é uma maneira cômoda de se omitir naquilo que deveria ser feito para evitar a
criminalidade juvenil: dar educação. É o caso das UPPs do Rio: a polícia sobe à favela, mas não sobem
escola, teatro, cinema, esporte, música – e o traficante não quer que seu filho seja bandido, quer que ele
seja doutor. Uma geração já poderia ter sido salva no Rio se os equipamentos sociais também tivessem
subido às favelas.
Como militante e ex-preso político, como vê o clamor pelo impeachment da presidente e pela volta
da ditadura?
Não me preocupam ameaças de impeachment ou golpe. Não há caldo de cultura. Os militares nem saem
de farda na rua. Militar, no Brasil, antes andava orgulhosamente de farda, até para arrumar namorada...
O que me preocupa é a despolitização da juventude brasileira. Os segmentos de esquerda deveriam
estar preocupados com a politização, como houve imensamente nos anos 70 e 80. Não há mais formação
de consciência crítica – e aí o pessoal vai no emocional, no oba-oba da volta dos militares, sem ter ideia
do que foi a ditadura, que pode parecer que foi tranquila, mas é porque havia uma censura brutal.
Estamos voltando a esse nível de desinformação, a esse horror à política.
dossiê Psicanálise marginal?

Apresentação
NINA LEITE E RICARDO GOLDENBERG

O leitor usual da revista CULT poderá estranhar ou até mesmo se surpreender com o formato e a
abordagem do presente dossiê. Neste sentido, algumas palavras dos organizadores são necessárias para
apresentar o que se lerá a seguir. O que temos como objetivo ao propor este material e, mais ainda, de
onde surgiu a proposta? Em primeiro lugar, evitar mais do “mesmo”, o que nos levaria a convidar
especialistas consagrados no campo dos estudos psicanalíticos e analistas com larga experiência a
desenvolver, com excelência certamente, temas que julgássemos importantes tanto teórica quanto
clinicamente. O “mesmo” em questão também se declinaria na distribuição de temas canônicos da
doutrina entre psicanalistas mais ou menos tarimbados, que rezariam pela cartilha do que é (e do que não
é) psicanálise para leitores supostos terem vivido em Marte durante o século vinte.
Rezar pela cartilha – é isso o que decididamente buscamos evitar. A escolha recaiu sobre o
recrutamento de colaboradores entre aqueles que podíamos supor que tinham mais perguntas do que
respostas concernentes à prática e teoria psicanalíticas e podiam querer escrever a partir delas. Para
encontrá-los pareceu-nos interessante colocar como critério que as suas filiações institucionais (caso
tivessem alguma) não os tivessem privado das suas próprias questões, convertendo-os em religiosos ou
militantes. Ou seja, que tivessem sabido resistir da boa maneira. Lembramo-nos dos estragos que
resultaram do desejo de Freud de fazer da sua invenção e seu método uma Causa: a criação de uma
geração de zumbis, repetidores hipnotizados de ladainhas e de fórmulas esotéricas tão empoladas quanto
vazias, que se alimentam da carne dos que chegam mais ou menos entusiasmados para aprender e que
serão, por sua vez, transformados em cadáveres insepultos e parcialmente comidos à procura de carne
fresca.
A questão que nos animava – a transmissão da psicanálise hoje, no Brasil, especialmente em São
Paulo – para além ou aquém dos dogmas institucionais consagrados, impôs primeiramente colocar-nos à
escuta das questões que nossos colegas – jovens e de nossa geração – gostariam de ver tratadas em um
dossiê de psicanálise. Todos os convocados responderam ao convite de um encontro em que não
tínhamos nenhuma pauta previamente definida, salvo conversar sobre psicanálise, e apostamos que,
daquela conversa, sairiam os temas para este número da revista. Ali se deu uma manhã de intenso e
entusiasmado trabalho em que todos tomaram a palavra para se pronunciar e fomos juntos delineando a
lista de verbetes. Se em um primeiro momento esperávamos apenas recolher os temas vivos e as
questões que mobilizam os psicanalistas em seu ofício na atualidade, vimo-nos, no decorrer da reunião,
completamente integrados na tarefa de partilhar a escrita dos verbetes. Organizamo-nos na tarefa em
função do interesse em cada tema e colocamo-nos ao trabalho. Reunimo-nos apenas essa vez com o
objetivo único de discutir o que seria interessante abordar em um dossiê de psicanálise. Não existe,
portanto, o menor “espírito de corpo” ou, por que não dizer, “de porco” causando nossa iniciativa.
Os doze verbetes que o leitor tem à sua frente sintetizam os assuntos e problemas que percorreram as
discussões; supomos que possam ser tomados como um instantâneo do que pensam alguns psicanalistas
que atualmente exercem a psicanálise nos mais variados contextos em São Paulo, independentemente de
serem iniciantes na prática ou já terem um consolidado percurso. A forma de trabalho que acabou se
configurando indica por si só que os verbetes poderiam ter sido outros, ou poderiam ser mais ou menos
numerosos. Nem todos concordam com tudo o que foi escrito, uma vez que não nos animava o menor
ideal unificador e as diferenças não foram disfarçadas ou as arestas limadas. Uma vez que o dossiê foi
feito entre todos, independentemente de quem escreveu o quê, decidimos que os textos não deveriam
estar assinados individualmente, exceto esta apresentação, visto que fomos nós os convocantes.
Lançando agora um olhar sobre o que fizemos, talvez seja possível afirmar que aí se realizou um ato
de profanação. Não à toa buscamos evitar o rezar de acordo com a cartilha, a fé religiosa em dogmas
assentados que aprisionam, fixam e cristalizam o vivo da experiência psicanalítica. Se com Agamben
entendemos o ato sacrílego como aquele que viola ou transgride a especial indisponibilidade das coisas
sagradas, um ato profanatório pode ser então entendido como significando a sua restituição ao livre uso
dos homens: uma devolução ao uso daquilo que o sagrado teria separado e petrificado. E fazer o sagrado
voltar à sua vocação puramente profana é tarefa política. Não é outra a tarefa à qual o legado freudiano
convoca cada psicanalista: em 1926 Freud publicou o que hoje conhecemos como “Análise leiga” ou
“Análise profana” em que, dialogando com um juiz imparcial, transmite a tese de que a análise é
leiga/profana e, de modo algum, privilégio de qualquer formação universitária/acadêmica específica, o
que atualmente podemos estender para a formação proposta em escolas de psicanálise. O fundamento
para o seu exercício sustentou-se, desde então, em um tripé ad nauseum replicado: análise pessoal,
supervisão e estudos teóricos. No entanto, o que ainda podemos constatar é o completo aprisionamento
da verdade por ele descoberta no funcionamento das instituições mesmas que, em princípio, deveriam
transmiti-la.
Donde o título deste dossiê, que é uma pergunta, talvez uma proposta, mas jamais um manifesto.
Psicanálise: marginal? Não estamos propondo uma psicanálise que fosse marginal, frente a outra que
estivesse instituída no centro. Não somos heterodoxos de uma ortodoxia. A nossa não é uma polêmica de
instituídos versus não instituídos, ou reconhecidos versus desconhecidos. Não há tampouco o menor
apelo à revolução, visto que a mesma nada mais é que a volta completa que nos leva de retorno ao ponto
de partida. Muito menos pretendemos evocar qualquer retorno aos fundamentos: bem sabemos o que
resulta dos fundamentalismos: o assassinato dos corpos e das almas. O que dizemos, sim, é que a
psicanálise será marginal ou não será. “Marginal” se refere à postura de qualquer psicanalista, digno do
nome, seja qual for a sua filiação teórica. “Marginal” quer dizer tomar a palavra desde as margens: do
discurso consciente, quando se trata da prática individual nos consultórios; das convicções fundamentais,
quando se trata de instituições; do discurso ideológico, quando se trata de intervir na mídia. Talvez seja
este o único denominador comum para nossos verbetes. O leitor fica com a palavra...
São Paulo
O CONTEXTO SOCIAL E A SOBREVIVÊNCIA DA PSICANÁLISE

Na recém-industrializada São Paulo dos anos 20 e 30, a vida moderna adensava o ar de questionamentos
sobre o cotidiano nas cidades, o papel das mulheres na sociedade e nas famílias, o lugar do sexo e da
moralidade, despertando em seus extremos o temor e suas reações, bem como um ímpeto de aventura e
experimentação. Pensamento e prática fundamentalmente moderna, a invenção freudiana fora tomada
então para auxiliar em reflexões sobre os contornos da fragilizada identidade nacional, tanto pelas mãos
de especialistas na disciplina dos corpos e dos costumes quanto por jovens artistas cosmopolitas.
De um lado, em grandes asilos, serviços de saúde mental e até mesmo em bancas de jornal, os
higienistas da medicina social promoviam um freudismo saudoso da moralidade patriarcal, contra os
“desvios” modernos exemplificados nas neuroses e perversões; de outro, os autointitulados modernistas
anunciavam o advento de um matriarcado canibalesco – representado especialmente no Manifesto
Antropófago de Oswald de Andrade – no qual uma versão materna do mito freudiano da horda primeva
responderia pela busca às entranhas do ser brasileiro. Ambos, higienistas e modernistas, tornar-se-iam os
personagens exemplares das duas grandes vias de inserção da psicanálise em solo paulistano.
Contudo, se tal escansão, no seio de uma megalópole que irrompeu do chão como um cogumelo
colossal depois da garoa, representa uma particularidade da psicanálise em território nacional,
exemplifica ao mesmo tempo uma generalidade da psicanálise. Em quase todos os seus lances de
expansão global, caucionada por sua institucionalização, a psicanálise se desdobrou em forma
basculante; à moral social que fazia face como uma instância crítica e renovadora operou o reforço de
dispositivos normalizadores; à ética do desejo e à intempestividade do inconsciente que ela própria
descobriu, operou a adaptação e o conformismo. A psicanálise das margens, underground, não subiria os
muros das sociedades orientadas para a promoção de um freudismo mainstream, assepsiado pela higiene
de seus protagonistas e estruturas de poder e transmissão.
Todavia, germinando fora dessas mesmas sociedades, a psicanálise curiosamente encontrou nas
Universidades um espírito semelhante ao daqueles primeiros modernistas que descobriram a face lúdica
e inovadora da criação freudiana, hoje um ponto de ancoragem em tempos de crise da institucionalização
de sua transmissão. Curioso que justamente onde o olhar se volta para a produção de saberes universais,
a psicanálise tenha encontrado espaço para a expressão de um impasse fundante da descoberta freudiana:
se, por uma via, ela parte da formulação de conceitos como “inconsciente”, “pulsão”, “repetição” e a
própria “transferência”, que trazem a marca de uma aspiração para a universalização, posto que
superaram o contexto de sua aparição, a Viena do fim de século 19; por outra, a psicanálise nasce de uma
restrição à particularidade de sua experiência, que exige presença pessoal, fala direta e encontro real
entre seus participantes. A transferência, por exemplo, precisa de um rosto, mesmo que seja para
esquecê-lo. O reconhecimento dessa condição para a formação e prática implica singularmente cada
analista diante de um saber clínico não transmissível pelos bancos das escolas, quer sejam nacionais ou
internacionais, como se fossem receitas de bolo ou petit gateau.
Neste sentido a cidade de São Paulo é um exemplo maior de que o fracasso, crise ou debilidade das
instituições talvez seja um ingrediente necessário para a sobrevivência da psicanálise, em sua potência
inventiva e subversiva. Condição tão necessária como o fracasso dos pequenos grupos tendencialmente
verticais. O mestre mundial e o mestre local ainda não saíram de seu impasse de reconhecimento. Seria
isso antes de um sinal de atraso, uma espécie de salto transcendental para a frente?
Psicanálise coxinha
A ESCOLHA POR PACIENTES DE UMA CERTA CLASSE SOCIAL É ALGO LEGÍTIMO, MAS DESRESPONSABILIZAR-SE
DESSA ESCOLHA É PROBLEMÁTICO

“Não podemos nos esquecer do social”, tem sido dito, com certa frequência, em espaços de formação em
psicanálise, esquecendo-se, todavia, de que no inconsciente não há negativa. Nos espaços e instituições
públicas, entretanto, a frase recorrente é outra quando é dita a vinculação de alguém à psicanálise: “é
coisa de coxinha”, como se naquele espaço não houvesse lugar para isso.
Dessas frases não podemos dizer serem senão, no mínimo, sintomáticas. Mas do quê?
Se compreendermos a noção de política como o ato de engendrar laço social, clínica é sempre
política. A clínica só se compõe através dos atravessamentos do tempo histórico em que está situada e
isso inclui, embora não se restrinja, ao espaço físico que compõe o setting, tal qual foi concebido. Se os
consultórios, assim como acontece em São Paulo, estão centralizados em bairros de alto poder aquisitivo,
seus códigos de endereçamento postais (CEP) determinam também um endereçamento da oferta de
escuta que produz efeitos de classe. Se escolher um recorte socioeconômico de classe para um público de
analisandos pode ser uma escolha legítima, problemático é, no entanto, desresponsabilizar-se dessa
escolha, isto é, esquecer-se de seus determinantes e de suas consequências.
Da psicanálise que não é capaz de reconhecer as questões sintomáticas do seu tempo, dizemos
coxinha. E, neste sentido, talvez o que psicanalistas e psicanalisantes coxinhas se esqueçam é que, ainda
que de portas fechadas, e entre quatro paredes, não há dentro e fora. Se há algum discurso subversivo,
nossa prática tem sua aposta a partir de uma ética: escutar o que, aparentemente, não se mostra, o que se
tenta calar e apagar – a falta. Mais ainda, transforma-a no pivô do movimento, independente de onde
esteja. Tal como a falta, qualquer tentativa de enquadrar o discurso psicanalítico repetidamente fracassa,
assim como a insistente busca de estabelecer quais portas delimitam os contornos da verdadeira
psicanálise – como se o enquadre a garantisse, ou como se ser ou não coxinha dependesse de estar dentro
ou fora do consultório.
Também não podemos deixar de sublinhar que a circulação da psicanálise em serviços públicos e
movimentos sociais acompanhou desde sempre a história do movimento psicanalítico no Brasil. A
questão parece ser o que disso deriva: muitas vezes, os questionamentos conduzem menos a uma
problematização do que pode ser psicanálise e mais a uma denúncia de sua não adequação ao que
supostamente ela deveria ser. Como fazer se nem sempre há uma demanda inicial do paciente? E o que
dizer sobre o pagamento se nos serviços públicos os atendimentos são, por direito, gratuitos? Como fazer
se não cabem atendimentos individuais? Isso não implicaria misturar o ouro da psicanálise com o cobre
da sugestão direta?
Ora, é importante lembrar, ainda, que coxinha, antes de ser sinônimo do conservadorismo paulistano,
foi, por bastante tempo, gíria para referir-se ao policial, aquele mesmo que comia o quitute na padaria
por extorsão. Ainda que com os preços salgados das sessões ou com a gratuidade das mesmas, coxinhas
são os que se abstêm de pagar, que buscam se apartar, ou esquecer, como se nada tivessem a ver com o
que desejam.
“Como se nada tivessem a ver com o que desejam” – marca da nossa sociedade, cinismo marcado por
um “fingir não saber, fingir não escutar”. Abster-se da implicação, do engajamento, coloca para os
sujeitos um conforto, uma morna rebeldia que não faz avançar naquilo que consideramos fundamental
para nossa geração: des-fazer um equívoco de pensar que a psicanálise necessariamente está no campo
das soluções individuais.
No consultório, na rua, nas instituições, a escuta promovida na relação analítica tem condições de
promover mudanças num sujeito e o relançar num laço inédito com seus semelhantes. Dessa forma,
quem sabe, possamos olhar, ver e sentir os tantos problemas advindos da segregação e do racismo com
outros operadores, necessariamente, não isoladamente.
Se possível, com riso.
As margens da formação
A POSIÇÃO MARGINAL À RIGIDEZ DAS INSTITUIÇÕES PODE SER ESTRATÉGICA E UM PRINCÍPIO DE MÉTODO

A um psicanalista deve interessar a rica possibilidade de participar das instituições psicanalíticas, por
elas circular e se beneficiar delas como lugar de recolhimento dos diferentes efeitos formativos em seus
membros e do encontro com seus pares.
Mas, as instituições – psicanalíticas ou não – pelo menos numa perspectiva foucaultiana, são
fundamentalmente dispositivos disciplinares, ou seja, espaços verticais de poder que exercem o controle
e a vigilância de seus membros, asseguram a repetição do mesmo criando igrejas dogmáticas e dialetos;
com isso, obstaculizam a inovação, a criatividade e as mudanças exigidas pelos efeitos das
transformações subjetivas no tempo histórico e social. Assim, por exemplo, a democratização da
informação (por oposição à elitização e seus efeitos colonizadores) ou a ênfase nos laços horizontais (por
oposição à filiação patriarcal), apenas para citar algumas características diferenciais da
contemporaneidade, precisam encontrar vias de atualização nas instituições que, por definição, oferecem
resistência à problematização de um giro que elas mesmas promovem – a saber, aquele que transforma a
formação analítica em formatação de analistas.
Por esse motivo, no caso específico das instituições analíticas, a posição marginal de pelo menos
alguns de seus integrantes parece-nos estratégica e um princípio de método. Impõe-se problematizar a
margem enquanto posição que propicia a elasticidade e permeabilidade das bordas. Isso porque o
funcionamento das instituições necessariamente promove a criação de um dentro e de um fora que
circunscrevem limites bem estabelecidos que visam a garantir que “o bom de dentro” expulse para fora
todo o mal, ao preço certamente de um incremento do mal-estar estrutural. No entanto, caso as margens
desses limites venham a ser habitadas, em vez de entronizadas e enrijecidas, surge a possibilidade de
uma borda permeável entre o dentro e o fora. Quando isso acontece, o que antes era fronteira/limite pode
momentaneamente revelar a estrutura de borda atravessada pelo que está ao mesmo tempo dentro e fora
– o lugar do marginal que não está à margem, mas na margem. Tomando a estrutura de borda como
primária, pode-se derivar daí um efeito imaginário que seria a fronteira. Sendo assim, é a borda que
interpela a fronteira, dado que a borda permite reviramento. Portanto, pensar a instituição analítica desde
a margem oferece as coordenadas para a autocrítica na própria instituição.
Serão essas coordenadas que permitirão pensar em uma relação centro-periferia diferenciada na
formação analítica. Do centro europeu (berço da psicanálise!) à periferia latina (a mão que o balança?), a
questão “onde estão os analistas?” se desdobra em ao menos quatro aspectos: o histórico – onde
estiveram, estão e estarão; o geográfico – nos grandes centros urbanos; o econômico – a que classe social
pertencem; e o político – como se organizam e são geridas as suas instituições. A marginalidade
enquanto posição consiste em reconhecer as segregações e estrangeirizações recorrentemente
naturalizadas nos processos de institucionalização. A importância e os efeitos da instituição para cada
analista ficam certamente na dependência dessa constituição marginal que acabamos de descrever; mas,
e muito especialmente, do percurso da análise do analista para que ele consiga transitar desde uma
espécie de demanda de filiação para a assunção de certa orfandade que acesse o ingresso a essa posição
de margem e a variedade dos efeitos formativos que, assim definida, a instituição psicanalítica pode
comportar.
Clínica miúda
ESPREMIDO ENTRE A LÓGICA E A TOPOLOGIA, O MATERIAL CLÍNICO DISPUTA LUGAR COM CITAÇÕES

Há uma tendência entre os analistas lacanianos de reduzir ao máximo o uso de material clínico nas
discussões de caso e nas publicações de artigos e livros. Essa tendência advém da crença de que
utilizando a teoria para ler os fenômenos clínicos, alcançaríamos uma suposta transmissão livre das
seduções das narrativas, quase sempre muito impressionistas. Criou-se então um novo ideal de
transmissão: nos debates clínicos, deve-se falar pouco da clínica.
Nesses debates, os conceitos devoram nossas pequenas dificuldades transformando-as em
deficiências formativas ou erros de compreensão. Os projetos clínicos e as concepções diagnósticas
distintas não encontram termo de comparação que não a gerada pela autoridade do supervisor e da escola
na qual esta se apoia. A antiga tradição da narrativa clínica, circunstanciada como capítulo de uma
literatura menor, torna-se capítulo secundário de demonstrações que constrangem a experiência a
confessar o que os conceitos já nos garantiram com anterioridade. Toda clínica tornou-se extraordinária e
pirotécnica, sem lugar para desvios, falhas e fracassos tematizados. Como resultado, temos uma clínica
cada vez mais miúda, submetida à teoria já enunciada por Freud e Lacan, sem ousar questioná-la.
Entre os analistas lacanianos, o fascínio pela teoria provoca um distanciamento cada vez maior do
sofrimento de seus analisandos. Assim como na Viena do fim do século 19, onde muitos médicos se
interessavam mais pela pesquisa, pelas autópsias e pela anatomopatologia do que pela relação
terapêutica, em certo lacanismo do início do século 21, a palavra terapêutico tornou-se xingamento.
Ainda que seja fundamental distinguir psicanálise de psicoterapia, teríamos que nos perguntar se haveria
psicanálise sem seu componente terapêutico. O que vemos frequentemente nas instituições de
transmissão da psicanálise lacaniana são discussões estéreis, que apenas reforçam o que já foi dito ou
escrito e acabam por expulsar a novidade que a experiência clínica traz.
Como resultado, temos uma clínica cada vez mais miúda, tímida, espremida entre a lógica e a
topologia. O material clínico construído nas sessões disputa lugar com citações, axiomas, divergências
nas traduções, grafos... Na experiência freudiana, a fala de cada paciente era tratada como um bebê, um
novo sujeito chegando pela primeira vez ao mundo que o antecede. Ele precisa ser apresentado aos que
ali habitam, introduzido aos poucos. Mas esse ser que chega traz também algo de novo, já que todo
nascimento envolve criação. Àqueles que recebem o bebê, cabe a tarefa de não deixá-lo destruir todo o
conhecimento acumulado pela humanidade e também reconhecer, saber olhar e dar voz à novidade que
ele carrega, já dizia Hannah Arendt. O lacanismo, quando coloca a clínica a serviço da teoria, calando a
fala-choro do analisando antes mesmo que ele seja introduzido nas regras do jogo da psicanálise, joga
fora o bebê com a água do banho. Diante da sapiência dos lacranianos, o recém-nascido analisante não
tem vez. É abortado no mesmo instante em que foi concebido.
Também não seria o caso de deixar o bebê reinar livremente. A escuta do analista precisa estar
banhada pela teoria para que ele recorte da fala do analisando que tipo de choro está em jogo. Um
analista atento e advertido consegue distinguir entre um choro de cólica, fome ou sono e devolvê-lo ao
analisando. Além disso, Freud já nos advertiu sobre os perigos do His majesty, the baby!
A formalização da clínica precisaria acontecer em uma terceira via, concebida no encontro entre o
bebê e aquele que cuida da dor do bebê – seu cuidador. É no encontro entre o imprevisível da clínica e a
letra morta da teoria que a Coisa freudiana pode nascer em cada análise. E para isso, precisamos de
cuidadores que escutem e de bebês que ousem interrogar a teoria. Só assim a psicanálise pode estar
realmente do lado de Eros e apostando no laço social.
Amizade
OS PONTOS NEVRÁLGICOS NA RELAÇÃO ENTRE ANALISTA E PACIENTE

Pode alguém passar por um processo de análise e afirmar com todas as certezas “meu analista não é meu
amigo”? Amizade e análise dividem esse lugar ímpar em relação aos vínculos sociais, por sustentarem
um hiato nada calculado entre intimidade e distância. Por mais que o amor já tenha encontrado seu lugar
de destaque na psicanálise, qualquer olhar mais atento percebe que a amizade também está imbricada nas
estruturas que sustentam o vínculo transferencial. A amizade pode ser entendida como uma aliança que
carrega a memória de um vínculo.
Enquanto saber e prática, a psicanálise nasce de uma amizade privilegiada, exclusiva e passional
entre Freud e Fliess. Podemos assim inferir que uma amizade foi a geradora da psicanálise. Nas famosas
correspondências entre os dois, essa amizade foi quase totalmente registrada, já que os encontros entre
Freud e Fliess foram poucos. O vínculo estabelecido entre os dois permitiu um espaço de discussão,
desabafo, construção e confissões relacionados a praticamente tudo: trabalho, teoria, família, mulheres,
ciência e outros. Não por menos, perder essa amizade foi um momento muito duro para o jovem Freud.
Fliess deixou uma marca, mesmo que ainda depois da ruptura outros amigos vieram, de outra forma,
ocupar esse lugar.
Os pares são fundamentais na história da psicanálise. Poder falar sem que seja necessariamente uma
supervisão e sem medo de retaliação deveria ser uma prática e não um privilégio. O próprio Freud foi se
dando conta disso, quando sentiu a necessidade de ter mais pares e não apenas discípulos para fortalecer
e fazer avançar suas descobertas. Não seria exatamente este um dos pontos críticos no que concerne à
formação do psicanalista? Na institucionalização da psicanálise em escolas de formação – ou até mesmo
nos programas de pós-graduação – há hierarquização, não só nas posições institucionais, mas também
nas relações afetivas. Existe uma posição a ser sustentada que talvez remonte ao primeiro círculo
psicanalítico em Viena. A passagem de uma reunião das quartas-feiras para uma Sociedade Psicológica
das Quartas-Feiras e por fim em Sociedade Psicológica de Viena mostram na institucionalizam o
desmantelamento de um espaço que talvez não operasse – ou deve-se operar – apenas como locus
profissional.
Não é segredo algum de que a formação em psicanálise é um percurso solitário e que com isso muito
se perde: o churrascão de fim de ano, a festa a fantasia da firma ou a pelada de final de semana das
escolas de psicanálise. Essas banalidades da vida profissional por acaso não têm uma função? Os
psicanalistas não perdem nada ao abdicar disto? Se for para termos instituições, não seria o caso de
institucionalizarmos o amigo secreto de fim de ano? Esquecemos que tanto os casos clássicos e os não
tão clássicos chegaram a Freud, em geral, pela via de encaminhamentos de amigos. Daqueles que
frequentavam o café na esquina ou a charutaria. Facilmente podemos reconhecer nos textos de Freud
referências a apontamentos e comentários de amigos que lhes proporcionaram um insight. Por outro
lado, essa maldição que parece assolar os psicanalistas em relação a suas amizades definitivamente tem
implicações na prática clínica psicanalítica.
Quando Freud decide falar das análises termináveis e das intermináveis, apresenta a hipótese de que,
se por ventura uma amizade ocorrer entre analista e analisando, ela poderá funcionar como um
encaminhamento para o final de análise. Assim, a amizade é apresentada como um laço afetivo que pode
contribuir para que o vínculo analítico possa se encaminhar em direção à finalidade do tratamento. Seria
isso o que poderíamos chamar de posição ética em relação ao outro? Na amizade o que conta menos é a
conquista, privilegiando-se a conservação. A existência da amizade depende das dificuldades que ela é
capaz de superar, o que a difere do amor – inclusive do de transferência – que cria seu objeto e deseja
sua posse. A amizade não visa à plenitude. Ainda que se espere muito de um amigo, não se espera tudo,
pois aceitamos que a amizade não seja perfeita – que exista distância.
Ironicamente, essa aproximação entre amizade e análise geralmente é concebida como um problema
ético. Por exemplo, na ideia sobre ser de “bom tom” não atender pessoas que mantenham relações
próximas, ou que frequentem círculos sociais do analista – de que não dividam amigos. Outro exemplo
seria o de não conceder conselhos para os pacientes, para evitar atravessamentos morais na transferência.
Talvez esses sejam dois pontos nevrálgicos que apontam para a diferença entre um analista e um amigo.
O silêncio do analista pode funcionar como um ouvido persecutório surdo à angústia do outro. É
recorrente que em casos de experiências traumáticas graves, por exemplo, alguém busque de início a
palavra de um amigo e não a escuta de um analista. Nesses casos de situações traumáticas, ou mesmo em
outras não tão críticas, primeiro precisa-se da palavra, mesmo que na forma de mau-conselho vindo de
um amigo. O que se espera de um amigo não é uma escuta qualificada, mas talvez, uma postura
desqualificada, daquele que te chacoalha e te leva para tomar um porre.
Diga-me com quem andas...
O QUE SE ESPERA DE UM BANDO DE “PSIS” É O RECONHECIMENTO MÚTUO COMO PARES

Ulysses Guimarães declarou certa vez que era prudente não estar tão perto de alguém com quem não
pudesse romper amanhã, nem tão afastado que não fosse possível reatar depois de amanhã. Donde se
deduz que, ao menos em política, seria imprudente deduzir a identidade do político pelas companhias
que frequenta.
E pelos amigos, dá para saber quem é alguém por quem o ronda? Soubemos de um garoto judeu que
era “brô” de filhos de alemães nazistas. Soubemos de outro que detestava o amigo íntimo de um amigo
íntimo (desmentindo aquilo de “os amigos dos meus amigos são meus amigos”).
Quem sabe pelo cônjuge? Acho que nem o mais uxório dos maridos admitiria ser definido pela
esposa. E a recíproca é verdadeira, visto que mesmo diante da constante lamúria feminina pela falta de
um homem para chamar de seu, basta encontrá-lo para começar a reivindicação de independência: “não
sou apenas a mulher de” (muito machista, dizem, reduzir a identidade feminina à de esposa).Talvez
pelos inimigos. Aqui, sim, estaríamos dispostos a conjecturar que o tipo de inimigos que uma pessoa é
capaz de angariar para si diz uma porção de coisas sobre ela (coisas que a própria se apressaria a
desmentir, claro). O documentário de Herzog sobre Klaus Kinski, Meu querido inimigo, poderia ser um
bom material de reflexão. Fito Paez canta que “não é bom ter inimigos que não estejam à altura do
conflito”.
Em suma, esse ditado deve ter sido inventado por mães preocupadas em não ver seus rebentos em
más companhias, já que isso falaria mal delas próprias. Com respeito às mães, sim, estaríamos dispostos
a admitir uma transitividade certa no que tange aos filhos, visto que via de regra se identificam com eles
(no sentido em que um RG identifica ao cidadão). Velhas amigas – judias, claro! A idische mame não é
acaso o paradigma materno? – conversam sobre seus filhos. A primeira diz: “Meu Issac ama sua mãe:
me deu cinco netos”. A segunda replica: “Pft! Isso não é nada! O meu Jacó me comprou um apartamento
com seis suítes em Higienópolis!”. E a terceira: “Vocês não sabem o que é amor! O meu Ianquele vai ao
psiquiatra cinco vezes por semana, paga quinhentos reais por consulta… e fala de mim!”.
Cabe perguntar: como se juntam os psicanalistas e o que diz de cada um o bando em que anda?
Foi precisamente por ser este um dos pontos mais problemáticos para os praticantes da psicanálise –
a relação entre o efeito dissolvente da identidade pela experiência analítica e a consequente busca de
uma nova identidade “psicanalítica” sob os auspícios de um mestre, mentor ou guru – que, quando
decidimos montar este dossiê, colocamos como condição de recrutamento: não estar religiosamente
filiado a uma instituição psicanalítica (a ênfase em “religiosamente”) e ter mais perguntas que respostas.
Ou seja, entendemos que andar em manada é tão necessário quanto inevitável quando se está exposto
durante anos, às vezes durante a maior parte da vida, ao questionamento das colunas de sustentação
simbólicas da identidade. Mas poder pensar em laços, entre “colegas”, que não estejam em franca
contradição com o objetivo de toda e qualquer psicanálise é talvez o mais insolúvel dos problemas da
psicanálise como instituição.
Quando não se exerce essa prática como forma de vida ou como profissão, o impasse se manifesta
menos, já que o analisando faz a experiência de relativizar as suas certezas identificatórias durante a sua
análise, mas uma vez finda esta, pode amparar-se na família, nos amigos, no trabalho, no esporte, na
profissão, na arte ou nos hobbies e tocar a sua vida mais ou menos racuna matata. Porém, quando se sai
da tarefa de paciente para a de analista, deixa de existir tal amparo.
Diríamos que o melhor que se pode esperar de um bando de “psis”, que não reneguem de fato do que
aprenderam durante as suas análises sobre o caráter alienante das identificações mais precoces, seria um
reconhecimento mútuo como pares que não seja uma fraternidade. Um bando de amigos, antes que um
bando de irmãos (“we few, we happy few, we band of brothers!”, diria Henrique V, na peça de
Shakespeare). Porque os irmãos o são em relação a um pai, que é também um rei, e que garante
justamente a pertença deles ao grupo enquanto vassalos (subjects). O reconhecimento, então, há de
resultar da experiência de cada um, em sua relativa solidão, repetida depois com cada um dos pacientes.
Há de resultar da possibilidade de compartilhar antes as dúvidas e incertezas de prática tão solitária, do
que as convicções e dogmas que possam ter adquirido ao longo do caminho e que serão postos em
questão pelos outros, pelos pares, na medida em que todos não comungam em um dogma que seja ao
mesmo tempo único, como comungam no sangue que será derramado na batalha da peça de
Shakespeare.
O chato do vinho
QUAL O PAPEL DA ERUDIÇÃO NA PSICANÁLISE?

Quem é que, nos cenários psicanalíticos mais diversos, nunca se deparou com o famigerado chato do
vinho (château du vin, em tradução livre)? Para ele, cada seminário é uma garrafa da mais nobre cepa; e
não apreciá-lo até a última gota, um verdadeiro pecado. Assim, os primeiros seminários harmonizam
bem com o cotidiano, ao passo que os últimos... ah!, que amadeirado, que força, quanta elegância!
Tal distinção requer anos de prática, narizes estrangeiros e, no mínimo, uma temporada em Paris –
não sem, é claro, um requintado combo: um intensivo de sessões in loco com algum analistenólogo
renomado. Após tanto tanino, sua língua roxa será o idioma do comboio, o próprio lacanês, essa forma
singular e cronificada de glossolalia, que se revela, minimamente, como um fracasso da escuta e uma
paródia de transmissão; ou, de fato, como uma transmissão em sentido mais venéreo: afinal, lacanês não
se aprende, mas se contrai – como dívidas, doenças ou matrimônios.
Em certo sentido, sempre em formação – pois pentelhar também é algo que se apura com o tempo –,
o chato do vinho, no exercício da sua práxis parasitária, vive e se engrandece de apontar na comunicação
dos colegas as imprecisões tão logo elas surgem: faz valer sua erudição nas referências, datas e citações
de Freud/Lacan – a retificação da leitura desviante é a ração que o anima.
Entretanto, para além da anedota, essa figura exerce uma função contraditória e reveladora no
movimento psicanalítico: a censura seria apenas a sua face mais evidente, pois quantas vezes não é essa
censura — para bom entendedor — a medida mais justa do reconhecimento de um Dizer? Um
reconhecimento pelo avesso e, por isso mesmo, verdadeiro. Resta então nos perguntar se seria, ou não,
legítimo esperar algo menos deformado, menos antinômico, no laço entre os analistas. Com isso, qual o
papel da erudição em psicanálise, para além do que o enochato encarna ao sugerir que a psi-malbec não é
pra qualquer bico?
Frente a uma análise nova – digamos assim: experimental –, ele a recebe com o devido descrédito
antecipado. Afinal, o chato do vinho opera uma antinomia entre rigor e risco: se o rigor está apenas do
lado do escrutinação das obras de Freud e de Lacan (com as pinças do lacanês e as lupas terminológicas
do alemão), então ele não corre o risco de interpretar ou de (re)construir – logo, de (re)escrever. E o
preço que paga por isso o lacanês (aqui não a língua, mas o gentílico) é ausência de uma iniciativa de
investigação singular: muita cultura psicanalítica, parcas análises.
Talvez, no entanto, o menor dos problemas do analista lacanês – ao contrário do que, em geral, se
pensa – seja o hermetismo escolástico: o falar cifrado reservado aos poucos da sua terra. Até porque,
com o passar do tempo, o jovem – que, de início, considera que a leitura de Freud é fácil e a de Lacan,
difícil – acaba percebendo que Freud não é tão fácil assim, e que Lacan não é lá tão impossível. Quem
sabe o seu problema seja, fundamentalmente, o de se mostrar pouco afetado, no sentido psicanalítico do
termo “afeto”, pela fala dos pacientes. E aí, de duas, uma: ou eles começam a falar na língua lacanesa do
analista (como se sofressem daquilo que o próprio Lacan chamou de “psicose lacaniana”), ou – menos
improvável – algo da escuta analítica não operou. Ora, não foi justamente Lacan quem enfatizou a
abertura que Freud tinha ao transformar a fala de seus pacientes em noções psicanalíticas? – lembremos
do isso, mas também do exemplo menos conhecido da noção de onipotência do pensamento, que nasce a
partir de uma fala do Homem dos Ratos.
Hoje, em contrapartida, as palavras dos pacientes são expatriadas das teorias dos analistas, perdendo
a sua cidadania para a emulação lacaniada. E o emulador não consiste, é claro, de alguém em particular,
mas, antes de tudo, trata-se de uma forma tipificada de apropriação da Coisa freudiana que – dada a sua
proliferação, a sua infestação nos circuitos de formação e acadêmicos – poderia ser pensada como a
própria ftiríase psicanalítica. É essa forma de apropriação do erudito que deve ser diferenciada da do
psicanalista, num momento em que se vê à exaustão o pavoneamento de um “saber sem consequências”
– a erudição, como definiu o próprio Lacan –, e que raramente se vê, contudo, a erosdição: o dizer com
Eros.
A partir de um eu sito, o erudito é aquele que cita. O erosdito, por sua vez, ex-cita e incita: reconstrói,
ao se implicar, e suscita transmissão. O chato do vinho nunca se embebeda; nunca se entusiasma, nunca
se entrega a Dionísio: contenta-se, isso sim, em ser um porre para si mesmo... e para alguns outros.
Mas, quem nunca?
Comentadores
A RELAÇÃO ENTRE A OBRA ORIGINAL, SUAS REFERÊNCIAS, E O COMENTÁRIO

A — Hegel diz X,Y,Z!


B — Sério!? E onde Hegel diz isso?
A — Li no livro do Žižek, O mais sublime dos histéricos.
B — Ah, mas então você leu Žižek, não Hegel!
E terminamos com um desapontado B, às voltas com um Hegel duas vezes perdido. E um
desapontado A, cuja boa nova decaída pela desqualificação não é sequer considerada. O que poderíamos
comentar sobre tal diálogo?
Dizem por aí que escolher um lado facilita a compreensão. Assim, obedientes e respeitosos das
opiniões alheias, pensamos que, caso do lado do Senhor A, alegaríamos que obviamente Žižek leu
Hegel. Opinião compartilhada por B. Não pela bibliografia referida no índice, que pode ser meramente
transcrita sem se ter aberto um único volume. Mas, por ter reconhecido sua própria leitura de A
fenomenologia do espírito no livro de Žižek (ou seja, B também tinha lido o comentarista em questão!).
O Senhor A, portanto, confia na autoridade do comentador a respeito do comentado. O Senhor B,
não, ele precisa beber direto da fonte.
“E Lacan?”, perguntamos. “Será que Lacan leu Hegel?”
Neste caso, a resposta não parece em nada evidente! Em primeiro lugar, porque as referências de
leitura do próprio psicanalista francês foram intencionalmente escondidas pelo editor oficial de O
Seminário para a editora francesa Seuil. E, em segundo lugar, porque sabemos que o mestre fez gato e
sapato daqueles que leu.
Como a historiadora Elisabeth Roudinesco (uma comentadora?) conta que Lacan tinha estudado
Hegel com Kojève, o Senhor B foi atrás de A dialética do senhor e do escravo em Hegel, de Kojève, e
pasmem! Aí sim estava o Hegel de Lacan. “É claro”, disse-nos B, “o que este último fez tanto com
Kojève quanto com o próprio Hegel é puro Lacan”. Será que se pode chegar a perceber isso estudando
apenas o que o psicanalista disse para seus alunos em 1963 a respeito do que o filósofo dissera sobre o
desejo (já que é disso que se tratava, para começo de conversa: do conceito de desejo em Hegel segundo
Lacan)?
Se o problema de A é a confiança na erudição do comentador, e o de B, a ilusão de uma remissão
direta aos originais, a questão passa a ser o que se deve entender por “original”. O que Hegel escreveu
sobre o Wunsch? O que Kojève escreveu sobre o que Hegel escreveu sobre o désir? O que Lacan disse (e
foi transcrito pelo editor) que Hegel escreveu sobre o desejo (omitindo que tirou isso de Kojève)? Então,
ainda uma vez, o que seria uma fonte confiável? Encontrar alguém que nos explique (porque supomos
que esse alguém deve saber) o que Lacan quis dizer, que Hegel teria dito sobre o désir-Wunsch?
E tudo isso deveria servir para compreender o conceito freudiano de desejo!
Então: A ou B? E por que não A e B? Onde está escrito que “ou” deve ganhar sempre de “e”?
Opinamos que há diferentes tipos de leituras. Não apenas leituras boas ou ruins, mas leituras que
evocam textos sobre textos e outras que se debruçam sobre escritos que parecem ter um fim em si
mesmos. Conhecendo a pouca generosidade lacaniana com seus leitores, caso um comentador de boa
índole produza um escrito que vise assistir na abordagem de um “original” lacaniano, amparando-o em
seu contexto histórico ou em ensaios não citados que dialogam com ele, além de um bom exegeta, ele
provará ter sido também um leitor criativo do autor em questão. Ao comentar, comentamos um texto.
Trata-se, obrigatoriamente, de um verbo transitivo. Aproveitar um comentário pressupõe ter lido
anteriormente o comentado. Operação, portanto, que exclui não só os incultos como também os
preguiçosos.
Conhecemos, também, escritos que promovem novos escritos. Escritos que nos arrebatam de tal
maneira que não deixam espaço para a paráfrase ou a glosa mas desencadeiam uma nova produção
escrita. São livros, estes, que não visam poupar ao leitor desavisado o trabalho de referir-se a uma obra
mais ou menos perdida ou inalcançável mas, sim, promovem uma desleitura – no sentido que dá Harold
Bloom à palavra – desta última que resulta num texto novo, mais ou menos inspirado. Não estaríamos
aqui frente ao comentário de um “original” preservado como uma relíquia, mas perante o que em música
seria uma variação sobre um tema. Uma produção original sobre um original. Ou, como dizia o Senhor
B, de um estilo “puro Lacan”. Lacan praticou intensamente a arte da desleitura dos escritos freudianos e
convidou os psicanalistas que se (auto)nomeiam lacanianos a se exercitarem na leitura com tal espírito.
Entretanto, o mestre parece ter sido ingênuo ao dar tanto crédito aos seus seguidores que, em grande
parte, não promovem sequer uma boa leitura e um bom comentário mas, antes, um novo dialeto, o
“lacanês”. Jargão comum às seitas, resultante de uma leitura errada, não só parasitária como pálida
imitação de um modelo tido como ideal.
Internet
A CIRCULAÇÃO DE SABERES FAZ VACILAR O DISCURSO QUE AFIRMA “ISTO É PSICANÁLISE”

A internet desafia a psicanálise ao expor a inconsistência de sua unidade: da clínica à política, passando
pelas teorias, a hiperexposição de nossos fazeres e posições nos lembra que pode haver mais diferenças
do que semelhanças no que se denomina e se pratica como psicanálise. A velocidade da informação, por
exemplo, nos convoca a questionar a temporalidade, mesmo a partir da ideia já conhecida do “só
depois”. E o novo tempo questiona seus efeitos na subjetividade do sujeito contemporâneo. Efeitos que
podem inclusive ser interpretados como novas formas de mal-estar, que desafiariam a clínica diária de
um analista preocupado em não formatar sua escuta apenas com quadros fixos do passado. O que, por
outro lado, pode levá-lo a uma demanda diária de update – mais impossível do que o próprio
psicanalisar.
Não se trata, portanto, de um lugar de críticas externas conceituais ou epistemológicas, mas antes
uma circulação incessante de saberes, que faz vacilar o suporte de qualquer discurso que afirme “isto é
psicanálise”. Assim sendo, quem responde à pergunta: o que é psicanálise? Pensemos o que a Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL), a Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil
(SPOB), a Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP), o Sindicato dos Psicanalistas do Estado de São
Paulo (SINPESP), a Sociedade Internacional de Trilogia Analítica têm em comum? Todas têm um
discurso conceitual que as sustenta, todas estão fora da universidade, todas têm seguidores, todas têm
figuras de mestria e todas se identificam com o significante “psicanálise”. Mas só o fato de todas
estarem listadas no Google faz este significante explodir em possibilidades de sentido, dado que a
internet propicia uma profusão de outros significantes a partir dos quais esse possa se significar. O que
pode nos levar a pensar que o Google “sabe” o que é psicanálise, no sentido de que expõe sua sintaxe e
não se aliena em uma semântica. Cada uma delas defende sua verdade, mas a internet denuncia que todas
as verdades são equivalentes.
Tal inconsistência pode ser igualmente apontada pela tecnologia através, propriamente, de sua
materialidade. Se no início da década passada, era bastante criticado fornecer ao paciente o número de
seu telefone celular, hoje há poucos motivos para não sustentar a possibilidade de uma remarcação de
sessão por WhatsApp ou uma reposição por Skype. Tais possibilidades convocam certas questões que
pareciam estar resolvidas: o estatuto do corpo em uma análise; a emergência de um analista onipresente;
a clínica atravessada pelas ferramentas de seu tempo; o lugar da imagem e do olhar em uma análise; e
outras variáveis do setting analítico.
Como se não fosse complicado o suficiente a prática ser atravessada por esse tipo de materialidade, a
própria interpretação clássica da teoria se vê à mercê do furo. Quando tesouros originais de Freud, Klein,
Winnicott e Lacan caem na net, deles todos podem gozar. A pirataria faz mais do que apenas
contrabandear o falo, abre rotas múltiplas nos mares da subversão descobrindo novos territórios por
acidente. As traumáticas aventuras do filho do Freud, Staferla, Lacan caminhoneiro, Freudonline e o
Lacaneando são causa e efeito do que se difunde sobre psicanálise. Mas essa é só a ponta do iceberg, o
visível na internet: a quantidade de grupos de estudo, artigos, leituras clínicas e outras atividades que se
potencializaram e mesmo nasceram dessa possibilidade mostra que a internet é muito menos virtual do
que se imagina.
Uma outra incidência da internet pode ser vista alhures. Tomemos o Ultimíssimo Lacan como um
fenômeno representativo do outros efeitos que a internet pode ter no furo de um saber. Ancorado em um
campo que exclama a primazia da zoeira, o Ultimíssimo Lacan fez uso tanto da imagem quanto da letra e
da enunciação para devolver o resto em forma de humor. Não sendo o único exemplo desse tipo de
funcionamento na internet, provocava denunciando o ridículo da psicanálise, não para destruí-la, mas
talvez para desmontá-la enquanto verdade unívoca. Há aí certa homologia com o discurso da histérica,
aquele que denuncia o mestre como faltante. Entretanto, responsabilizou-se por seu limite e terminou.
Nesse sentido, a denúncia funciona como ridicularização de qualquer lugar de mestre, inclusive o seu
próprio.
A internet não é o Outro. A internet não é virtual. É zoeira sem limites. A profusão de escolas e
instituições psicanalíticas não faz da psicanálise unívoca, não faz dela um campo total. Faz dela
inconsistente, fragmentada e faltante. Não apenas no imaginário de seu discurso, no simbólico de sua
transmissão, mas na angústia de seu real, que nada tem de virtual. Os efeitos balizados pelo fenômeno da
internet no campo psicanalítico não são um privilégio, muito menos um fardo da psicanálise. Nesse
sentido, a psicanálise na internet é objeto, e está à mercê da virulência que infesta a rede.
Sofrimento
A VERDADE QUE ELE REVELA AO SUJEITO E AO ANALISTA

Nem sempre um sintoma faz sofrer seu próprio portador. Não se sofre apenas “de”, mas também “por”,
“como” e, mesmo, “como se”. Às vezes são as cercanias familiares, amorosas ou tribais que sofrem,
como que em procuração compulsória, no sintoma do próximo. Talvez isso seja próprio ao sofrimento,
sua tendência a impor aos outros, por contágio e identificação, uma mesma gramática, uma mesma
forma de sofrer, assim como os grupos, psicanalíticos ou não, tendem a uma mesma forma de gozar. Tal
qual um tributo a ser pago com uma “tira de couro”, o sofrimento nos cobra, por assentimento ou
reprodução, um reconhecimento de valor em seus termos.
Por isso nem todo sofrimento é angústia transformada, retida ou vertida em ato. Nem todo sofrimento
é um sintoma colocado no museu de nossa própria história de identificações. Assim, não se produz por
princípio apenas sofredores, apassivados por vivências dolorosas consideradas êxtimas, como nos
inscreve na condição de sofrentes, posição na qual todo ser se conjuga em seus desencontros e
discordâncias com outrem. Por isso uma psicanálise marginal se pergunta se tudo o que há para escutar
são sintomas e, sem eles ficaremos inertes à espera de que o paciente fale nossa própria língua. É próprio
de nosso tempo transformar todo sofrimento em sintoma e todo sintoma em problema. Procurando bem,
esteja o Rei vestido ou não, sempre se encontrará o sintoma, mas isso é suficiente? Às vezes o
sofrimento vem com uma determinada ou indeterminada posição no mundo, o que não se reduz ao
sentimento de que nos limitamos aos nossos próprios corpos. Quase sempre o sofrimento é em função de
ideais, e sem eles não poderia surgir essa anomalia do saber, como fratura, incerteza ou suspensão
narcísica. Antes de ser simplesmente um fato, o sofrimento resume uma experiência em déficit ou
superávit de reconhecimento, por exemplo, tanto as próprias mazelas, como a felicidade alheia, suposta
ou imposta, são função do sofrimento. A tese de Lacan é de que “só o falo é feliz”, mas disso não se
deduz que também só o falo é infeliz. Os dois lados da mesma demanda não referem ao mesmo desejo.
Há muitas outras formas, variações gramaticais de expressão e dispersão, cada qual à sua maneira. Em
um percurso de análise, portanto, antes de inscrever e reduzir as dimensões do sofrimento a um resíduo
descartável, admite-se aí uma experiência constitutiva a ser reconhecida em seu tratamento uma vez, e
outra, e mais outra, até que fique diferente e, quem sabe, pior.
Nesses tempos de espetáculo, felicidade e eficiência, o sofrimento não parece uma escolha viável, ainda
que, com tais exigências, ele só possa ser exacerbado. Uma psicanálise marginal conserva nele seu
elogio, por confiar-lhe uma verdade que coloca tanto o sujeito quanto o analista implicados com as suas
próprias escolhas e liberdades – onde quer que possam estar. Daí sua posição genuína, inquieta, atrevida
e muitas vezes “indevida”: partir dos impasses do sofrer.
Da nossa violenta natureza
A ARMADILHA ARDILOSA DE QUE É POSSÍVEL VIVER NUM MUNDO SEM FRATURAS

O escorpião pede ao sapo que o ajude a atravessar o rio. Montado em suas costas, o escorpião não se
afogaria. O sapo retruca que se assim o fizer, o escorpião certamente o picaria e o mataria. “Eu sou
escorpião, não burro”, disse o próprio, “se te matar, morro”. Achando o argumento razoável, lá foram
eles. No meio da travessia, porém, o sapo sente a picada fatal e perplexo exclama: “mas, por que você
fez isso!?”. E o escorpião: “É da minha natureza...”.
E a nossa, a dita “natureza humana”, é assim violenta? Mais de um invoca Hobbes para sentir-se
justificado ou consolado frente a atos hediondos e que curiosamente são também qualificados de
“antinaturais” (aqui é a sombra de Rousseau que se perfila). Com Hannah Arendt também podemos nos
perguntar, perplexos, por que sociólogos insistem em estudar formigueiros para entender o
comportamento humano nos cortiços, se bastam algumas horas de convívio nessas habitações para
entender tudo. Em todo caso, não se sabe se tratam as formigas como se fossem humanas ou os humanos
como se fossem formigas.
A expressão “natureza humana” comporta dois equívocos, um conceitual, o outro lógico. Conceitual
pois a definição de natureza é cultural. De outro modo, somos seres de linguagem, o pensamento a
pressupõe e não temos outra natureza. Não saímos dela nem ao conceber o que lhe seria prévio ou
exterior. E cultura é outro nome da ordem simbólica que nos constitui. Conceber uma materialidade
biológica dada anterior não passa de um mito. Lógico, pois falar em natureza humana supõe uma
essência universal comum que nos definiria como um todo, o que está desmentido precisamente pela
violência, que faz valer diferenças que são todas sem exceção de “natureza simbólica”.
Nesse sentido, haveria que ir além até da ideia – cara também a Freud – de uma passagem natureza-
cultura. Mesmo ressalvando que existe um antagonismo insolúvel entre ambas, falar em passagem
pressupõe uma biologia bruta na origem. Para Freud, a defasagem estrutural entre as moções pulsionais e
a construção da cultura estaria na fonte de um mal-estar inominável e seria a causa de todas as
violências. Esse caminho, notadamente clínico, tem dado em uma explicação psicanalítica alinhada à
concepção de uma suposta natureza humana, tal como qualificar a pulsão de violenta, ou a violência
arbitrária da cultura que nos obriga a ceder alguma verdade recôndita de nosso ser.
Cada vez mais a violência, como palavra de ordem, é usada como chave fundamental para interpretar
diversos fenômenos culturais e subjetivos. Dada nossa natureza violenta, necessitamos do Estado para
gerir e conter, educar e civilizar o bárbaro que habita cada um de nós. Eliminados os fatores que
corrompem a ordem social, a harmonia pode reinar. Uma armadilha ardilosa, pois corrobora a fantasia de
que é possível viver em um mundo consistente e sem fraturas, bem ao gosto do todo orgânico propagado
pelo mundo corporativo. Basta um bom treinamento.
Voltando ao escorpião que deixamos montado nas costas do sapo no meio do rio, digamos que agiu
como agem os perversos ou os toxicômanos, quando demonstram ouvir a voz de um desejo que fala mais
alto que a da razão. Mas o sapo (que é o burro dessa estória) demonstra ter sido ludibriado menos pelo
seu carona que pela sua própria crença no valor supremo de uma Razão que teria chegado ao mundo para
dominar a Natureza violenta e indomável.
Mimimi, antigo nhenhenhém
A CULTURA DA RECLAMAÇÃO E A PROCURA DA CUMPLICIDADE DO ANALISTA

Pode-se reclamar em qualquer língua, mas caso existisse uma língua feita para isso, esta seria sem
dúvida o ídiche. Que outro povo, a não ser o judeu, dispõe de um local consagrado às lamentações, ao
qual acudem queixosos do mundo todo? Contam que o judeu perguntou ao funcionário de “Assistência
ao cliente” das Casas Bahia se podia reclamar, e depois de ouvir a afirmativa deste, tomou o rosto entre
as mãos – qual personagem do quadro O grito, de Munch – e disse: “Oy, oy, oy!” Suspirou fundo e… foi
embora.
A cereja do bolo é posta pelo cristianismo, que acresce o sacrifício e o castigo com a imagem de
Jesus crucificado. Culpados, devidamente castigados e obrigados ao sacrifício, só nos resta buscar o
departamento de reclamações mais próximo e militar a favor dos direitos do consumidor.
A psicanálise, uma invenção judaico-cristã (além da culpa), que deveria servir para abandonar o
queixume e a dor de cotovelo, tem sido insistentemente convocada como a sua derradeira consagração.
Justificada cientificamente, a cultura da reclamação passou a ser não só compreendida pelo que lamenta
mas também, infelizmente, compreensível aos que o rondam. Frases como: “fumo pedra porque meu pai
me abandonou”; “sofro essa inibição porque na infância...”; “mulheres sentem ciúmes porque o
patriarcado opressor as leva a brigar entre si, com vistas a enfraquecer o feminismo”; “estupro mulheres
para compensar a impotência a que me reduziu a superproteção materna”, e outros tantos apelos, abrem
uma linha de crédito infinita com o futuro. Traumatizado, oprimido e abusado, em suma, vítima que sou,
tenho o inconsciente como meu mais precioso álibi, e o mundo me deve eternamente. Afinal, “eu
mereço”.
O acolhimento político – quase sempre oportunista – da vitimização se manifesta nas novas (ou não
tão novas) formas do direito das denominadas minorias que, invertendo a sua razão histórica, fundam
novos racismos. Racismos estes que promovem verdadeiras caças-às-bruxas, que em nada deixam a
desejar ao mais despudorado maccarthismo, stalinismo, nazismo ou fundamentalismo (incluído o
sionismo, tão bem ironizado por Philip Roth em seu “there’s no business like Shoah business”). Desde
que inventaram a “correção política”, já não é mais possível se ter preferências e desejar manifestá-las.
Se gosto de comer carne estou discriminando as alfaces, coitadas. E pronto: será fundada a ABPA
(Associação Brasileira Pró-Alface) que entrará com um projeto de lei no congresso destinado a
estigmatizar os carnívoros qualificando-os de legumefóbicos.
Somos todos traumatizados ou traumatizáveis e, sabemos, o trauma pede o acolhimento e a angústia,
a boa e apaziguadora interpretação. Freud tratava a angústia de castração como a origem imaginária, na
nossa história simbolicamente real, das nossas inibições e sintomas que concretamente empatam a nossa
vida cotidiana. Pensava que a psicanálise devia servir como método para desvendar as suas raízes e
restituir-nos alguma margem de manobra para podermos pegar as rédeas das nossas vidas, como quem
diz “o touro pelos chifres”. Eis que a teoria desse método se neurotizou a ponto de inverter sua função e
ser usada como o fundamento e a justificação das nossas reivindicações de vítimas eternas. O que foi
feito do “passar da miséria neurótica ao infortúnio comum”, definição freudiana do fim de uma
psicanálise?
Longe de nós fazer pouco do sofrimento de quem nos consulta (ou, melhor, de quem “se consulta
conosco”), mas acreditamos que melhor o servimos não aceitando a cumplicidade que procura para as
justificativas biográfico-afetivas da sua repetição impotente. Uma vez ouvimos de uma colega que seu
analisando, ao não reconhecer nela a tolerância necessária para a fecundação de seu drama, ironizou:
“sorte que o paciente sou eu, né? Porque se eu dependesse da tua paciência estaria frito!”.
Tal dose bem-vinda de impaciência com as mazelas da vida do outro soa ser parte do que entendemos
como regra de abstinência do analista. Abstemo-nos em acolher tal “mimimi”, e isso resulta num convite
ao acolhimento da fala do sujeito desprovida de sua dose identificatória com a hiena Hardy (“oh céus”,
“oh vida”, “oh azar”). Alimentar o “por que o mundo foi tão cruel comigo?” não avança na intenção de
pensar o que então se pode fazer com o que o mundo fez com você. Faríamos um desserviço certo à
psicanálise e aos colegas psicanalistas se fingirmos concordar em colocar isso tudo na quota do real que,
segundo dizem alguns, seria “o impossível”, ou, ainda, do gozo que, segundo dizem os mesmos, seria o
nome da “singularidade” daquelas pessoas. Em vez disso nos parece mais profícuo buscar um outro
nome para aquilo que Freud chamou de covardia moral do neurótico.
ensaio

Somente os bárbaros podem se defender


FLÁVIO RICARDO VASSOLER

Moscou, 9 de maio de 2008. Estação de metrô (Park Pobedy, “Parque da Vitória”). Nas extremidades do
longo corredor principal da estação, descubro que a Rússia faz questão de se lembrar das barricadas de
sua história com dois painéis emblemáticos.
O painel à direita retrata o Príncipe e Marechal-de-campo Mikhail Ilariónovitch Goleníschev-
Kutúzov (1745-1813) secundado por seu Estado-Maior. A data do painel é inequívoca: 1812. Kutúzov e
seu Alto Oficialato são os heróis da resistência à invasão das tropas francesas comandadas por ninguém
mais que Napoleão Bonaparte.
O painel à esquerda leva a Praça Vermelha, o coração de Moscou, à estação Parque da Vitória.
Soldados soviéticos são ovacionados, mulheres, crianças e idosos se abraçam em êxtase, flores e boinas
vão ao ar, um jovem embasbacado ainda não acredita no que os alto-falantes do Kremlin acabam de
anunciar:
- Camaradas, o dia de hoje entra para a história! Nosso Exército Vermelho acaba de coagir a besta
fascista à capitulação incondicional, o III Reich já não existe mais! 9 de maio de 1945 passa a ser o Dia
da Vitória, camaradas, a Grande Guerra Patriótica acabou! Viva o Guia Genial dos Povos que nos alçou
da invasão fascista à vitória final, camaradas, viva o grande Stálin!
Para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), não houve a Segunda Guerra Mundial,
mas a Grande Guerra Patriótica (1941-1945). Em 1939, às vésperas da invasão nazista à Polônia, o III
Reich e a URSS firmaram um pacto de não-agressão que recebeu o nome de seus mediadores e
respectivos ministros das relações exteriores: Joachim von Ribbentrop e Viatcheslav Mikháilovitch
Mólotov. O pacto Ribbentrop-Mólotov, além de estabelecer um período de cinco anos de pax atomica
entre a Alemanha nazista e a URSS, acordou a cisão da Polônia entre as duas potências e selou o destino
dos Países Bálticos – Lituânia, Letônia e Estônia – e da Finlândia. Ainda assim, dois anos após a
assinatura do pacto, Hitler invadiria a União Soviética e passaria a lutar nas Frentes Ocidental e Oriental.
O pacto de não-agressão entre o III Reich e a URSS, além de dar sobrevida ao fortalecimento militar
soviético, fez com que a Blitzkrieg nazista se irradiasse, por providenciais dois anos, contra a Europa
Ocidental e, sobretudo, contra a Inglaterra.
Quando os Aliados pisam sobre os escombros do III Reich e decretam o fim da Segunda Guerra na
Europa, soldados ingleses, norte-americanos e soviéticos brindam com scotch e vodca ao ritmo da
balalaica. (Lara Müller, a alemã que há algumas semanas se hospedou na mesma casa em que estou
morando aqui em Chicago, me contou que, à época, sua avó ficou simplesmente atônita quando, pela
primeira vez em sua vida, viu um homem negro – um soldado norte-americano – em sua cidadezinha na
Bavária. Enquanto isso, a Democracia na América ainda separava o joio do trigo ao dispor banheiros,
escolas, teatros, assentos de ônibus, igrejas, empregos etc. do etc. para as colored people de modo a alijar
os negros do American Way of Life.)
Em fevereiro de 1945, durante a famosa Conferência dos Aliados realizada em Ialta, uma estação
balneária às margens do Mar Negro, na Crimeia, Winston Churchill, Franklin Delano Roosevelt e Ióssif
Stálin, diante da vitória iminente, começam a projetar a partilha da Europa após a guerra. Os soslaios de
desconfiança recíproca entre anglo-saxões e soviéticos parecem corroborar um velho provérbio árabe:
“Aquilo que o teu inimigo não puder saber, não o digas ao amigo”.
Há setenta anos, o fim da Segunda Guerra Mundial preparava o início da Guerra Fria.
Antes da era nuclear, a razão de Estado podia prolongar as guerras de modo a exaurir o exército
inimigo e a população civil. Em resposta aos ataques aéreos nazistas que devastaram Londres, a Royal
Air Force lançou mão de bombas incendiárias – as famosas blockbusters (arrasa-quarteirões) – para levar
as noites brancas de São Petersburgo às cidades alemãs e a seus bunkeres. (Nas décadas posteriores à
última Grande Guerra, o capitalismo transnacional – e monopolista – transformaria a blockbuster em
slogan para o princípio de livre iniciativa que arrasa toda e qualquer concorrência.)
Com o advento da era nuclear, a razão de Estado precisou recuar. Os líderes continuam a não se
importar com as agruras e tragédias de suas populações, mas uma guerra atômica extinguiria, num átimo,
toda e qualquer possibilidade de sobrevivência – isto é, toda e qualquer possibilidade de exploração
lucrativa dos espólios da guerra. Armados até os dentes com ogivas, mísseis, caças e submarinos
nucleares, EUA e URSS, as maiores potências bélicas de que a história já teve notícia, transformaram a
guerra total em completa impossibilidade. Não foi a razão de Estado que, ao se democratizar, isto é, ao
incluir o conjunto da população para a tomada das mais importantes decisões, chegou à conclusão
humanista de que a guerra é a maior das barbaridades. Na verdade, foram a corrida armamentista e a
iminência da hecatombe nuclear que levaram às últimas consequências o velho adágio romano: “Se
queres paz, prepara-te para a guerra”.
Não à toa, os militaristas de Washington e Moscou foram chamados à razão – isto é, ao conteúdo de
verdade que, como Pandora em seu cárcere, ainda resiste à revelia da razão de Estado – diante da
iminência absoluta da Mutual Assured Destruction, a “Destruição Mútua Assegurada”. Transformar São
Petersburgo em Hiroshima e Chicago em Nagasaki disseminaria ataques nucleares como reações em
cadeia. A Terra se tornaria um cogumelo radioativo. Ao fim e ao cabo, se o cosmonauta Iuri Gagárin
conseguisse escapar do apocalipse a bordo da mesma nave espacial que o tornara o primeiro ser humano
a viajar pela órbita terrestre, a frase do soviético a contemplar nosso planeta do espaço se tornaria a
lápide da história humana:
— A Terra é azul.
Azul fosforescente.
É por isso que a pax atomica assentada sobre a Mutual Assured Destruction pode ser coagulada,
coerentemente, pela sigla/diagnóstico MAD: quando a fragilidade racional da vida depende do ápice da
desrazão e de sua corrida armamentista, a loucura se confunde com o princípio de realidade e alicerça a
reprodução do cotidiano.
Porque você logo pode perder, porque você logo vai perder
Se a aniquilação nuclear (ainda) não se realizou, a sociopatologia da vida cotidiana parece ter se
transformado na segunda natureza da realidade com o recrudescimento do capitalismo. Quando a crise se
instaura e se agrava, o ódio purulento rompe a membrana da civilização.
A guerra total dá lugar à guerra civil.
Somos todos generais em miniatura, potenciais cossacos, vítimas e carrascos.
Os sinais da guerra civil, declarada ou não, se alastram como uma epidemia. A guerra se confunde
com a paz. A guerra civil recomeça a cada segunda-feira. Em São Paulo, ela arregimenta os
trabalhadores sonolentos sob a chuva gélida junto ao ponto de ônibus sem cobertura. Na Cracolândia, os
dejetos humanos se esgueiram sob viadutos e árvores – contanto que os zumbis viciados não atrapalhem
a circulação dos trabalhadores, a PM apenas observa. Os guetos ao sul de Chicago não precisam de
arame farpado para segregar os negros. Basta que a especulação imobiliária e a gentrificação sigam as
leis impessoais de mercado. Em um vagão do trem, observo como os cidadãos de bem olham de
esguelha para o mendigo que se esparrama por vários assentos. (Os olhares de asco e ódio difuso quiçá
estejam à espera de um programa vindouro para esterilização dos pobres.) As linhas azul e vermelha do
trem, em Chicago, funcionam 24 horas por dia. Como abrigo para as noites friíssimas de inverno, os
mendigos dormem no trem. E quem são os miseráveis da América? Há muitos ex-combatentes que
lutaram pelo estabelecimento da democracia (de mercado) no Iraque e no Afeganistão. Certa noite em
que estou voltando para casa, me ponho a conversar com George, o mendigo/ex-combatente que esteve
em Cabul. Ele mal consegue concatenar frases, o álcool já entorpece suas ideias. À iminência de descer
em minha estação, tiro a luva da mão direita para cumprimentar George. Ele arregala os olhos e, sem
conseguir tirar a luva com a mão trêmula, usa os dentes e me estende a mão direita cujos tocos de dedos
estão sem várias falanges.
— Puxei o pino da granada, you see, mas eu estava cercado, não pude atirá-la a tempo. Alguns
estilhaços ficaram sob a pele, junto ao peito, mas eu nunca consegui encontrar os restos dos meus dedos.
Em Miami Beach, no belo calçadão da Avenida Ocean Drive a margear a praia, ouço passos
estranhos se aproximando de minha nuca. Quando olho por sobre o ombro esquerdo, um senhor de
braços dados com a esposa caminha irregularmente. Duas hastes de metal, abaixo de seus joelhos, fazem
as vezes das canelas e dos pés. Como se não bastasse o espólio do Vietnã, o senhor aleijado ainda usa o
boné e a camiseta do U.S. Army.
De volta a Chicago, um jovem mendigo me pede esmola no vagão do trem. A perna torta denuncia
um acidente de carro. “O motorista me atropelou e fugiu. Eu não tenho dinheiro para fazer a cirurgia
que, eventualmente, poderia consertar minha perna.” Mas e seus pais? Ele logo me diz que não sabe
onde está o pai. Os pais haviam se separado há muitos anos. A mãe polonesa, por sua vez, fora deportada
dos EUA. Algum tempo atrás, a fome fez com que ela roubasse alguns pães no supermercado. A mãe de
Adrian já estava nos EUA há anos, mas não tinha dinheiro para pagar o processo de aquisição da
cidadania norte-americana. Logo, diante de uma ladra de pães, a corte e a imigração decidiram pela
deportação da mãe de Adrian de volta para a Polônia.
Quando me despeço de Adrian, ele me estende a mão e sentencia:
— Muito obrigado. E não falo apenas sobre o dinheiro. Agradeço a você por ter perguntado o meu
nome. Fazia muito tempo que eu não ouvia o nome de alguém e que não conversava por mais de três
minutos.
No Brasil, o ódio por detrás da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos ganha cada vez mais
partidos e partidários. No dia 15 de março de 2015, durante uma manifestação contra o governo de
Dilma Rousseff na Avenida Paulista – manifestação cujas facções mais reacionárias e golpistas pediam o
impeachment da presidente recém-eleita –, consta que um notório torturador de nosso último período
ditatorial teria subido em um carro de som e assim sentenciado:
— É uma pena, mas nós não tivemos tempo de fuzilar todos eles! Viva a ditadura militar!
Vários manifestantes tiraram fotos ao lado de soldados do Batalhão de Choque da Polícia Militar, de
modo a ovacionar a truculência e a letalidade da tropa na periferia de São Paulo, por onde os inimigos
públicos, pobres e pardos dos cidadãos de bem e de bens se esgueiram.
A recessão galopante no Brasil exacerba o hedonismo. Eu preciso sobreviver contra todos os demais.
Contra todos. Mas a crise, a contrapelo do hedonismo, também desvela a atrofia do eu, o ódio por si
mesmo. Quando todos somos descartáveis, o individualismo mórbido recrudesce a luta pela
sobrevivência na mesma medida em que radicaliza o autodesprezo do exército de derrotados e o medo e
o pânico dos vitoriosos que se tornam reféns do próprio privilégio.
Muros altíssimos encimados por cacos de vidro, fios de alta tensão e arame farpado. Câmeras
onipresentes estupram a privacidade. Porteiros dão lugar a sentinelas armados. Quando um visitante
chega a um condomínio de alto padrão nos Jardins, em Moema e/ou no Morumbi, em São Paulo, o
funcionário recebe o forasteiro como um invasor. Muitas vezes, há dois portões: assim que o forasteiro
chega ao prédio, o porteiro-sentinela colhe as primeiras informações – nome (do invasor) e (suposto)
apartamento de destino; em seguida, por intermédio de um botão e sem jamais sair de sua guarita
blindada, o porteiro-sentinela abre o primeiro portão. Segundo o princípio de presunção da culpa, o
forasteiro fica preso entre o primeiro e o segundo portão até que os anfitriões autorizem a entrada do
invasor que, só então, se torna um visitante.
Quando tamanha violência se naturaliza, somente os bárbaros podem se defender. Os bárbaros, os
vencedores da barbárie, os prisioneiros do próprio privilégio. Para vencer em uma sociedade tão doente,
não é preciso apenas trabalhar. (Já o Velho Testamento nos havia condenado a comer o pão apenas se
houver suor contra o rosto.) Para vencer em uma sociedade tão doente, é preciso odiar o próximo como a
ti mesmo, é preciso ter prazer em se mutilar, é preciso ter prazer em não voltar para casa até que a
sobrecarga de trabalho seja minorada, é preciso inundar a própria casa (o home office) com a pilha de
relatórios e planilhas, é preciso desprezar os derrotados pobres e pardos, é preciso enfileirá-los,
encarcerá-los, empilhá-los – e desová-los. Os perdedores querem o mesmo que os vencedores, o
hedonismo e o conforto ocupam o vácuo deixado pela morte de Deus, mas somente os bárbaros podem
defender os frutos de sua pilhagem. Por isso, é preciso não pestanejar sequer por um instante – porque
você logo pode perder, porque você logo vai perder.
Em 1947, com a memória da Paris sitiada pelos nazistas ainda contra a têmpora, assim escreveu (e
ansiou) Jean-Paul Sartre em sua Sursis: “Por toda parte homens se juntam em torno de sopeiras
fumegantes, partem o pão, enchem de vinho seus copos, limpam suas facas, e seus gestos cotidianos
fazem a paz. Ei-la, tecida com todos esses futuros, impregnada da obstinação hesitante da natureza; ela é
o retorno do sol, a imobilidade fremente dos prados, o sentido do trabalho dos homens”.
2015, setenta anos após o fim da Segunda Guerra Mundial:
Por toda parte homens se juntam em torno de sopeiras fumegantes, cindem as migalhas de pão,
olham para o fundo vazio de seus copos, desembainham suas facas, e seus gestos cotidianos emudecem a
paz. Ei-la, aguilhoada à fragilidade do futuro, prostrada diante da obstinação reincidente da sociedade;
ela é o retorno da noite (a ronda noturna), a rigidez cadavérica das vielas, o ressentimento do trabalho
dos homens.
teatro

Com Eros e à esquerda


WELINGTON ANDRADE

O ano de 2015 está transcorrendo de modo muito auspicioso para Zé Celso Martinez Corrêa e a
Associação Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona. Depois de terem vencido, na categoria teatro, o Prêmio
Governador do Estado Para a Cultura 2014, com a Odisseia Cacildas – que propôs um mergulho
dionisíaco na vida e obra da “atriz matriz” – e de terem cumprido uma nova (e bastante concorrida)
temporada de Pra dar um fim no juízo de Deus, de Antonin Artaud, o diretor e a companhia se lançam
agora à nova encenação de Um banquete de gala orgiástico!, uma recriação do clássico diálogo de
Platão sobre o amor feita por Zé Celso sob a forma de inspiradíssimos versos musicados.
Montado a convite do Festival de Zagreb, na Croácia, em junho de 2009, o espetáculo – que, além de
ter ficado em cartaz em São Paulo, passou, no ano seguinte, por várias capitais brasileiras no projeto
“Dionisíacas em Viagem” –, traz para a cena um célebre grupo de personagens históricos e de entidades
míticas, reunidos em uma grande festa da qual o público também é convidado a participar. Na adaptação
do Oficina, Agatão, grande ator grego, acaba de encenar as Bacantes e recebe para um banquete em sua
casa um grupo de convidados muito especiais, dentre eles, o filósofo Sócrates, o comediógrafo
Aristófanes, a sacerdotisa Diotima, o médico Erixímaco, o aspirante a filósofo Fedro, o general
Alcebíades e Pausânias, de quem não se sabe muita coisa além do fato de que, talvez, tenha sido
discípulo do sofista Pródico. Ao lado deles, entes divinos como Orpheu, Eurídice, Zeus, Jesus e Iemanjá
também participam do festejo.
É notória a capacidade que Zé Celso Martinez Corrêa tem para fazer o teatro dialogar com a
sociedade brasileira sob o signo de um “aqui e agora” sempre potente e agudamente provocador. Em
tempos nos quais o exercício da consciência política tem se convertido em amplo leque de demonstração
de ódio explícito e velada violência, manifestados em ágoras as mais diversas, sejam elas concretas,
sejam virtuais, um dos mais importantes homens do teatro e da cultura brasileira, ainda em franca
atividade – para o deleite de nossa sensibilidade e o desfrute de nossa inteligência –, empenha toda sua
energia criativa em recriar um texto que trata da alegria da convivência humana e do combustível
fundamental para movê-la: o amor.
POLITICIDADE SENSÍVEL
Escrito entre 385 e 370 a.C., O banquete é considerado um dos mais belos diálogos de Platão (e um dos
mais simples também), obras por meio das quais o fundador da Academia ateniense procurou preservar a
memória socrática. “... o Sócrates dos diálogos platônicos torna-se centro de uma companhia fantástica
de seres superiores cuja reunião máxima, cheia de alegria sublime, é O simpósio”, afirma Otto Maria
Carpeaux em sua monumental História da literatura ocidental, completando em seguida: “... é uma noite
de ebriedade patética; e durante a discussão desenfreada surge o mito de Eros, explicação da atração
física e espiritual entre as criaturas humanas. Ao amanhecer, entra Alcebíades, e com ele a realidade de
Atenas, associando-se ao banquete filosófico. Quer dizer, o Eros que está nas regiões ‘baixas’ do corpo e
igualmente no céu da especulação filosófica, o Eros também seria a nova força de ligação entre os
cidadãos, o novo mito da Cidade. Desde então, Platão abandona os abismos do seu inferno de sofistas e
as prisões do purgatório das almas, em que Sócrates sofreu, para subir ao paraíso de sua mitologia”.
Aproveitando-se das muitas indicações dramáticas presentes no original grego (ao contrário de
alguns diálogos platônicos, eminentemente discursivos, O banquete apresenta uma potencialidade cênica
viva e pulsante), Zé Celso instaura no Oficina, uma vez mais, aquela fascinante atmosfera de teatralidade
lúdica e lúbrica vazada em um arrematado tom de politicidade sensível, de acordo com a perspicaz
definição de Jacques Rancière. No espetáculo, a concepção platônica do amor, explorada por um método
de exposição que alia as técnicas da discussão e do discurso, está essencialmente preservada, mas ela se
deixa entremear o tempo todo com as concepções antropofágicas do teatro, da política e da cultura que o
Oficina vem defendendo há tantas décadas. Assim, ao racionalismo de um pensador que influenciou
inequivocamente a filosofia, a ciência e a educação no Ocidente alia-se – em uma bem-urdida trama de
saberes do passado e de reflexões sobre o presente – o dionisismo irrefreável de um diretor a quem
também se podem imputar os epítetos de Iaco, Brômio ou Zagreu, posto tratar-se de um avatar, entre
nós, do próprio deus.
Engana-se, entretanto, quem se deixa ofuscar primordialmente pelos elementos festivos, desabridos,
carnavalescos que emanam das encenações do Oficina e alimentam certa mística em torno do grupo,
simpática, porém, como toda profissão de fé exige, limitada e limitadora. O método de trabalho que Zé
Celso imprime à companhia em momento algum dispensa a compreensão profunda das palavras que
estão sendo ditas e um exercício rigoroso das formas que irão sustentá-las. No ensaio em que o colunista
esteve presente, realizado no mês de abril, um pouco antes do fechamento desta edição, era visível a
preocupação do diretor com a execução técnica e bem-acabada das ideias e das imagens pelas quais o
espetáculo transita. Delicadeza, cadência, ritmo, escuta interior e exterior eram as ações que Zé Celso
mais demandava de seus atores – submetidos a sucessivas repetições de cenas, gestos e inflexões. Há um
tênue, mas firme cinzel nas mãos do diretor, responsável por extrair da densidade das matérias socrática
e platônica toda a maleabilidade de significações nelas implícita.
Os momentos mais penetrantes em que a Grécia de outrora se encontra com o Brasil que nos rodeia
ocorrem em duas instâncias que dão suporte ao texto original. Em primeiro lugar, se O banquete é, como
postulam os comentadores, a comprovação da precedência da filosofia sobre a poesia, como Platão
defende na República, o certo é que para atingir tal estágio será necessário que a filosofia aprenda a se
expressar por meio da grande inventividade que pauta a poesia. Assim é que Um banquete de gala
orgiástico! configura-se um espetáculo de grande beleza poética, seja pela presença da musicalidade
lírica e ditirâmbica que lhe dá constante suporte, seja pela força da grande imaginação criativa que
envolve o emblemático edifício teatral concebido por Lina Bo Bardi – ele também uma peça de
resistência lírica contra o bruto automatismo das edificações da cidade.
APOLÍNEO E DIONISÍACO
Em segundo plano, porque tanto para Platão como para o Oficina, impulso e entusiasmo são elementos
fundamentais. Em Paideia: a formação do homem grego, o eminente helenista alemão de cuja epígrafe
se vale o presente texto afirma: “... Platão obriga as duas forças, Eros e Dioniso, a se colocarem a serviço
da sua ideia. Anima-o a certeza de que filosofia infunde sentido novo a tudo o que vive e tudo converte
em valores positivos, mesmo aquilo que já bordejava a zona de perigo. Atreve-se a instalar este espírito
em toda a realidade circundante e está certo de que deste modo afluirão à sua paideia todas aquelas
energias naturais e instintivas que de outra maneira teria de combater em vão. Na sua teoria do eros
lança uma audaciosa ponte sobre o abismo que separa o apolíneo do dionisíaco. Ele julga que, sem o
impulso e o entusiasmo inesgotáveis e incessantes renovados das forças irracionais do Homem, jamais
será possível atingir o cume daquela transfiguração suprema que atinge o espírito, quando este
contempla a ideia do Belo”.
Dentre as inúmeras possibilidades de fruição deste orgiástico banquete, duas parecem inquestionáveis
ao espectador: de um lado, ele haverá de reconhecer um Oficina apolíneo tão bom e consistente quanto o
Oficina dionisíaco que constantemente lhe faz sombra; de outro, compreenderá, com a fecundidade das
verdadeiras proposições éticas, que o amor e a amizade são as formas fundamentais que dão base à
convivência humana, esteja uma comunidade passando por uma fase de equilibrada alegria, esteja
atravessando ela um momento de graves e dramáticas cisões.
estante

A pedra no caminho de Nuno Ramos


HEITOR FERRAZ MELLO

Na obra de Nuno Ramos, há sempre uma tentativa de empurrar a arte para fora do seu limite
convencional, até onde isso ainda é possível, fazendo com que ela possa respirar outros ares e ser mais
efetivamente crítica diante do mundo da mercadoria. Mas o artista sabe que ao empurrar esses limites, ao
abrir novas picadas, ele estará sempre agindo na mesma lógica ditada pela mercadoria, num círculo
vicioso. Nessa picada, na qual ele procura dar forma à matéria, a própria matéria informe vai
aparecendo. Fica o rastro do esforço do artista que, em momentos mais radicais, acaba criando um
caminho de construção e desconstrução.
Nessa brenha, a procura metafísica sobre a sua presença no mundo (perguntas como: “qual/ o sentido
total/ da vida, minha vidinha? Fui/ feliz, gargalhei? Dei/ o cu, viajei, pedi esmola para a ONG certa?”) só
pode ser feita de maneira debochada e a resposta que não há fica esbatida no horizonte: é o que move o
artista, tragado pela sua matéria, numa espécie de transe contínuo. Em seu novo livro, Sermões, de onde
vieram os versos citados, essa tensão está encenada a cada página, num devaneio alucinatório, do qual o
narrador não consegue escapar. A voz central varia da prepotência à fragilidade completa; ao se afirmar,
muitas vezes retoricamente, ela se depara com a impossibilidade dessa afirmação. Tanto é que há uma
espécie de célula central que atravessa todo o poema, “haja! seja!”, num estranho dialogismo com a voz
poética. Não deixa de ser um eco que pede existência, pede contornos, para algo que se esgarça o tempo
todo.
Para sair do campo inicial da generalização, vamos ao longo poema criado por Ramos. Se em Junco,
livro anterior, também de poemas em versos, ele assumia uma voz lírica, com todos os problemas que
advêm dessa escolha, neste novo livro, o artista plástico e escritor resolveu criar uma personagem e dar a
ela a condução do texto. Essa personagem é um professor de filosofia, que fala em primeira pessoa. O
verbo aqui é mesmo “falar”, pois mesmo diante da matéria narrável, o discurso se reduz aos seus
devaneios e lembranças sexuais, que se voltam sempre para ele mesmo, numa espécie de tagarelice sem
fim.
Como ele diz logo de saída, numa avalanche de imagens e palavras descontroladas: “Tenda/ é assim
que chamo/ isso: peitos ou/ púbis, ranho/ morte de tudo na vida de um som/ f/ eliz, grito, gogó/ tromba
de um azul elefante/ instante dilatado, rangido/ de dentes e mãos pedindo pau/ cona, não/ terrenos,
documentos, promessa ou h/ erança, não/ talheres, testamentos, mas amor líquido/ visgo que vai na
risada/ untuoso/ (ajuda a entrar)”. A tenda aqui é um dos tantos jogos cheio de humor do autor: é a tenda
dos prazeres das Mil e uma noites, mas também a “tenda armada”, expressão comum entre garotos para
se referir ao pau levantado dentro das calças. É dessa tenda que nasce o discurso do professor de
filosofia, instalado inicialmente num hotel barato “num subúrbio de cidade/ barroca/ miserável/
brasileira”, deitado num tapete, com “tigres, arabescos” e sob uma “cúpula”, que se tornará uma imagem
de desejo sexual ao longo do livro.
Essa voz central não andará só, será também entremeada por outra voz, a de um duplo, como uma
vozinha que vem do fundo, se intromete, interfere no andamento da frase, num sentido ambíguo, pois ela
é complemento da voz principal, como também contraponto: é dessa voz que parte o mínimo refrão
“haja! seja!”, ecoando um lamento e um desejo de sair desse lugar impossível que o poeta-falante ocupa
e que só pode levá-lo à loucura ou à morte.
ROTEIRO BRASILEIRO
O próprio Nuno Ramos sentiu a necessidade de explicar ao leitor a “sequência narrativa”, que, como ele
mesmo diz, “não sei se fica clara”. Diz ele: “É a seguinte: 1. Tenda – Em Ouro Preto, um professor de
filosofia faz sexo debaixo de uma cúpula e sobre um tapete com a imagem de um tigre atacando ovelhas;
vai a um congresso, passando por Heathrow, aeroporto londrino; 2. (Parêntese. Moenda. Minha mãe
nascendo) – Sua mãe morre ou ele se lembra disso; 3. Prédio – Muda-se para São Paulo, onde aluga um
apartamento num edifício do Centro; 4. Sermões – Desce numa moto para uma praia de areia dura, onde
faz sermões em cima de um banquinho; 5. Igreja – Volta para a Igreja do Rosário, em Ouro Preto,
ficando lá dentro até que o vigia o ponha para fora; 6. Há. Alguém. – Passagem a alguma coisa como a
morte, através da descrição dos filmes Stalker (de Andre Tarkóvski) e A palavra (de Carl Dreyer); 7.
Laje – É recebido por uma deusa mais que hermafrodita, sua professora de ioga”.
Esse roteiro um tanto cinematográfico passa por quatro cidades: a Ouro Preto barroca e miserável; o
apartamentinho modernista em São Paulo, como diz o poeta-falante; a praia do litoral paulista (onde fará
seus sermões, como um Anchieta); e uma passagem relâmpago pelo aeroporto de Heathrow, em
Londres.
As três referências brasileiras não deixam de chamar a atenção nesse poema com seu tanto de quebra-
cabeças: a praia dos primeiros jesuítas, o barroco, e a arquitetura modernista dos anos 50. São referências
culturais fortes, com seu lastro na literatura brasileira, desde Oswald de Andrade de “Pau-Brasil”,
passando pela redescoberta de Minas pelos modernistas e desembocando na nossa modernidade de
fachada e apartamentinhos bossa-nova. O mundo pelo qual transita o professor de filosofia parece
rebater no próprio Brasil, que mesmo sem ser tratado diretamente, acaba se infiltrando no complicado
ponto de vista do poeta que fala pelos cotovelos.
A PEDRA NO CAMINHO
Esse Rousseau dos trópicos esbarra com a pedra brasileira no meio do caminho na sua relação com o
outro: as mulheres com quem faz sexo se tornam apenas objetos, não têm nomes (é o tal “pronome
infernal”), não têm rosto ou existência, apenas cona, útero, figo para um “pau duro” – como ele dirá,
“sou a pobre/ máquina do meu pau/ entrando, saindo, já despido/ de ambição e de memória”. E, na praia,
quando se põe a fazer seus sermões de um banquinho e se vê como um “profeta de Aleijadinho/ preso no
centro da pedra”, ele falará “sozinho”. Nesse trecho, inclusive, ele retoma o jogo entre o verbo “haver” e
o verbo “ser”, que é o centro de sua busca impossível: “Isso é tudo./ Há. E há de novo. É./ E é de novo.
Esse o motivo secreto/ das falas e dos sermões, de tantas/ declarações constitucionais sobre nossa
espécie/ de odes e loas ao cinema mudo/ em ritmo de tartaruga/ onde o pó ao pó se junta”.
Durante a leitura do livro, ou do fluxo sanguíneo e excitado de seu personagem, o título acaba se
impondo: o sermão, como peça da oratória religiosa, com suas ressonâncias históricas, como os sermões
do padre Antônio Vieira, é algo público, que é dito para uma comunidade sobre seus próprios interesses
morais, mas no livro de Nuno Ramos, o sermão é íntimo, com um cheiro de heresia, mas uma heresia
frágil, já que não encontra resistência. Ele procura um outro, que o ouça, e que seria virtualmente o seu
limite, mas ao mesmo tempo esse contato é uma enfrentamento, uma estranha luta: “Meu monólogo vai
para vocês./ Isso é o mais estranho, haver/ tímpanos, canais/ atentos à minha voz, que vaza a cera/ até os
miolos dos seguidores/ ou de hereges jogando/ areia no orador. Minha palavra. Como um pórtico/ aberto
à agonia do mar/ nada lhe é interdito. Sonop/ lastia universal, imitadora de garranchos/ sonoros,
fungadas de ave, pios de cães/ e ladradas – a todos reproduzo minuciosamente, num longo trinado./ E
sabem quem me escuta? Cada coala”. Ao proferir a existência do outro, que demarcaria campos
separados, ele se passa para o outro, fundindo-se.
O drama encenado e repetido à exaustão, cujo final chega a ser um tanto curioso – o de encontrar a
redenção na morte e transando com uma deusa hermafrodita, sua professora de ioga –, parece mesmo
apontar para o Brasil, para a indefinição do discurso brasileiro, tão cheio de ambiguidades, de discursos
ancorados numa mesma razão que se esfarela a cada passo. Nesse caminho, a metafísica encontra seu
limite, e a matéria informe – que se passa para a própria composição dos versos e do discurso – parece
dar um testemunho contundente. A verborragia circular do poema é marca dessa contundência.
A alma militante de Daniel Defert
ERNANI CHAVES

“Toda liberação revela o impensado da injustiça que a precedeu – uma injustiça da qual é difícil de se
sentir completamente inocente”. Com essa frase, Daniel Defert, mais conhecido por ter sido o
companheiro por 25 anos de Michel Foucault, responde à primeira pergunta que lhe é feita nesse livro de
entrevistas. Ele se refere aos três momentos nos quais a ideia e a experiência da “liberação” lhe
provocaram uma “emoção violenta”: em 1945, com quase sete anos de idade, a liberação de sua pequena
cidade, ocupada pelas tropas alemães; o fim da guerra da Argélia, com a assinatura do acordo de Evian,
em 18 de março de 1962, quando já era um ativo militante no movimento estudantil de esquerda na
França e aluno da prestigiada Escola Normal Superior Saint-Cloud e, finalmente, a aprovação da união
civil entre homossexuais, já no final do século passado.
Não é por acaso, portanto, que os entrevistadores e organizadores desse livro o intitularam de Uma
vida política. Desde cedo, quando ainda era aluno do ensino médio, em Lyon, a política passou a fazer
parte integrante da vida de Defert. Por meio de seu colega Alain Rouquié, futuro especialista em
assuntos da América Latina, tendo sido inclusive embaixador no Brasil de 2000 a 2003, ele descobriu
não apenas Marx, mas também o “tripé da cultura estudantil de esquerda” da época: o France
Observateur, L’Express e Les Cahiers du cinéma! Em 1960, já aluno da Saint Cloud, era o delegado de
sua instituição junto ao cartel das Escolas Normais Superiores, que incluía, é claro, a mais conhecida e
famosa, a da rue d’Ulm, onde Foucault, Bourdieu, entre outros, estudaram e Lacan, durante algum
tempo, realizou seu seminário. Militou arduamente contra a guerra na Argélia, num momento em que a
UNEF, União Nacional dos Estudantes Franceses, estava próxima do PSU, Partido Socialista Unificado,
cujo líder era Michel Rocard, que foi, posteriormente, Primeiro Ministro da França entre 1988 e 1991.
As rajadas fortes que antecederam o maio de 1968 o encontraram já com o seu doutorado em Sociologia
em andamento, como bolsista na Fundação Thiers. Defert nos conta o estado de terror que antecedeu, em
Paris, o Maio de 68. O aparato policial em nada se assemelhava ao que havia quando das manifestações
contra a guerra da Argélia. Agora, a mobilização policial expressava, de maneira altissonante, a
“insuportável” violência do Estado. Ou melhor, como o próprio Defert acrescenta mais adiante,
retomando a palavra que ouvira de Foucault, não apenas “insuportável” mas, principalmente,
“intolerável”. Foram os anos de engajamento na GP, na “Gauche Prolétarienne”, a “Esquerda
Proletária”. Mas foi também o período da descoberta de outro “efeito liberador”, aquele provocado pelo
“movimento de massa”, de tal modo que, para ele, o métier do sociólogo deixou de ser o daquele que
“analisa o social” para se tornar o próprio “movimento de massa”.
ENCONTRO COM FOUCAULT
Terminando seu período de estudo e pesquisa sob os auspícios da Fondation Thiers, Defert retorna a
Paris, desta feita direto para Vincennes, a universidade experimental criada depois do movimento de 68 e
para onde Foucault fora chamado a organizar o curso de Filosofia. Vincennes foi, segundo Defert, o
“viveiro de todas as tendências do esquerdismo”, dentre elas, a que levou à criação do GIP, o Grupo de
Informação das Prisões, por Foucault, Pierre Vidal-Naquet e Jean-Marie Domenach. A criação do GIP
foi antecedida pela participação de Defert na OPP, “Organização dos presos políticos”, uma célula da
GP, da qual um dos líderes foi Jacques Rancière. A advogada dos presos era Marianne Merleau-Ponty, a
filha do grande filósofo. Tudo parecia como se a Revolução Cultural maoísta tivesse sua continuidade
nas experiências militantes daquela época. A vitória de Pompidou, nas eleições subsequentes, colocou
um fim nessa ilusão. Mas Defert continua afirmando a peculiaridade da GP, que não era leninista, mas
marxista, que não era formada por um grupo específico, seja de estudantes ou de professores, mas que
“se inscrevia no seio das massas”. Sua questão principal era sempre “o que pensam as massas”, questão
que, para ele, teve o valor de “educação política”. Talvez por isso ele não relembre esse período com o
gosto amargo de uma “revolução fracassada”, mas “como uma grande insurreição que modificou
profundamente na nossa sociedade as relações de poder, de autoridade, de sexo e, finalmente, também as
próprias relações entre as sexualidades”.
É bem verdade que o encontro com Foucault, em 1960, foi decisivo na vida de Daniel Defert. Sua
relação com Foucault ocupa, em diversos momentos e aspectos, o centro dessas entrevistas. Mas não se
trata, evidentemente, de declarações a propósito da intimidade de ambos. Muito menos do elogio
desmesurado ou da declaração de subserviência intelectual. Muito pelo contrário: o companheiro de
Foucault teve sua própria vida, seja como intelectual, seja como militante. Mas quando as questões
ligadas à sexualidade aparecem, elas estão quase sempre vinculadas às questões filosóficas e políticas,
que também estavam em curso no pensamento de Foucault. É claro que o pano de fundo dessa relação é
também o milieu homossexual parisiense da década de 1960, em especial aquele que se localizava em
Saint-Germain de Près, onde pontificava o Fiacre, a boate mais famosa da época, local onde, antes de
conhecer Foucault, Defert conhecera Roland Barthes. E que também alcançava os famosos cafés
“existencialistas” daquele bairro parisiense. As histórias da conturbada relação do casal emblemático da
geração existencialista, Sartre e Simone de Beauvoir, passam a conviver com outras histórias e
certamente, muito da polêmica entre Sartre e Foucault foi discutida ali, entre grupos diferentes, tanto
politicamente quanto no que diz respeito à orientação sexual, em meio às elegantes mesas do Deux
Magots e do Café de Flore.
INTELECTUAL ESPECÍFICO
Mas o GIP tinha uma ambição bem maior do que a OPP. Sua criação, para a qual as ideias de Foucault
foram fundamentais, ao contrário da política tradicional, não visava se confrontar com a administração
das prisões, mas sim de caucionar as pesquisas clandestinas feitas dentro delas, para que a própria voz
dos detentos pudesse ser ouvida. Não se tratava portanto de “representar” os detentos, de “falar por eles”
ou mesmo de apresentar propostas para “reformar” as prisões. O que se almejava era que os próprios
detentos entrassem no jogo político, se apropriassem de suas regras e seus gestos, de tal maneira que, ao
final, eles dispensassem qualquer intermediação. Era, portanto, necessário vencer o silêncio que
aprofundava todas as formas de estigmatização. O intelectual é assim, nos diz Defert, apenas uma
espécie de relais, de um dispositivo que recebe determinada informação e a retransmite, ampliando-a. É
uma outra maneira de definir o que Foucault chamou, numa célebre conversa com Deleuze, de
“intelectual específico”.
A doença e a morte de Foucault levaram Defert a enfrentar um outro desafio. Inteiramente
desconhecida à época de seu aparecimento, envolta na adjetivação discriminatória de “câncer gay”, a
AIDS provocou um deslocamento fundamental no modo de entendimento da sexualidade, colocando em
questão os ideais libertários herdados de maio de 68. Quando Defert chega ao hospital no dia 25 de
junho de 1984, a direção médica pretendia eliminar do atestado de óbito a menção à causa da morte de
Foucault, o que estava absolutamente de acordo com os padrões franceses da ética médica. Para Defert,
entretanto, esse apagamento parecia não honrar a própria vida e as posições políticas de Foucault. Como
ele mesmo disse, a única maneira de honrar a memória de Foucault era, sem dúvida, “fazer alguma
coisa”. A alma militante de Defert, mais uma vez desperta, o jovem estudante “revolucionário” volta
novamente à tona e ele acabou criando a AIDES, primeira e mais importante ONG francesa de combate
à nova e surpreendente epidemia. Na palavra AIDES, Defert superpôs a palavra francesa “Aide”, “ajuda”
e “AIDS”, o nome em inglês da nova síndrome, também consagrado em português. Defert nos conta as
peripécias, as dificuldades, os enfrentamentos, o trabalho intenso desde a panfletagem nos locais gays até
a primeira grande peça publicitária, da sua presença nos congressos internacionais, mas também do
árduo estudo para tentar compreender o que era a nova síndrome. Na França, é impossível pensar a
questão do combate a AIDS, desde a prevenção até as formas de atendimento na rede pública de saúde,
sem o trabalho desenvolvido por Defert, que foi homenageado em 1988, com a “Legião de Honra”,
concedida pelo governo francês. Ao mesmo tempo, seu engajamento se dá aqui inteiramente sob a égide
das questões levantadas por Foucault na História da sexualidade ou ainda nos inúmeros artigos que o
filósofo escreveu para o Gay Pied, uma revista cujo nome o próprio Foucault escolhera. O “pé”, o pied,
transforma-se aqui numa espécie de alegoria do movimento e do devir, para além do “gueto” e
apontando para o “gozo”. Foucault dissera, a propósito, jogando com as palavras: “Para sair do vespeiro
(guêpier) dos guetos”.
“A vida política” de Daniel Defert aparece nesse livro como uma espécie de sismógrafo de nossa
história recente. Daí que ele se completa, na parte final, com um conjunto de textos do próprio Defert,
dedicados, na sua maioria, às questões relativas a sexualidade, homossexualidade e à AIDS. São textos
que reúnem o ardor da militância a uma posição política muito clara, a uma filiação teórica muito
precisa. Nesse sentido, Defert não é um comentador de Foucault, mas é alguém que, como poucos, soube
manejar muito bem a “caixa de ferramentas” do próprio Foucault, na medida em que se encontrou diante
de uma questão, de um problema – o das relações entre corpo, sexualidade e política, por exemplo – para
os quais aquela “caixa” continha preciosos instrumentos. No geral bem-humorado, às vezes melancólico,
mas sempre afirmativo do ponto de vista de suas posições políticas, Defert nos oferece uma espécie de
testemunho, o testemunho de uma época, cujo espírito insurreto não pode ser esquecido.
colaboraram nesta edição
Alexandre de Souza Piné mestre em Psicologia Clínica/PUC-SP
Ana Gebrim doutoranda em Psicologia Clínica/USP
Carina Ferreira Guedes mestre em Psicologia Social/USP
Carolina Cardoso Tiussi doutoranda em Psicologia Escolar/USP
Caterina Koltai doutora em Psicologia Clínica/PUC-SP
Christian Dunker livre docente Psicologia/USP

Diego Amaral Penha mestrando em Psicologia Social/PUC-SP


Ernani Chaves professor de Filosofia na UFPA
Flávio Ricardo Vassoler doutorando em Teoria Literária/USP
Giedre Moura psicanalista/Centro de Estudos Psicanalíticos
João Felipe G. M. S. Domiciano mestre em Psicologia Clínica/USP
Lucas Charafeddine Bulamah mestre em Psicologia Clínica/USP
Luciana K.P. Salum doutora em Psicologia Clínica/USP
Luiz Carlos Oliveira Jr crítico de cinema e pesquisador
Luiz Moreno Guimarães mestre em Psicologia/USP
Manuel da Costa Pinto jornalista e crítico literário
Marcela Rosenberg graduada em Psicologia/PUC-SP
Maria Teresa Guimarães de Lemos doutora em Linguística/Unicamp
Marta Quaglia Cerruti doutoranda em Psicologia Clínica/USP

Nina Virginia de Araujo Leite doutora em Linguística/Unicamp


Nora B. Susmanscky de Miguelez doutora em Psicologia Clínica/PUC-SP
Paulo Sérgio de Souza Jr doutor em Linguística/Unicamp
Pedro Ambra doutorando em Psicologia Social/USP
Raonna Martins mestranda em Psicologia Social/PUC-SP
Ricardo Goldenberg doutor em Comunicação e Semiótica/PUC-SP
Rodrigo Alencar doutorando em Psicologia Clínica/USP

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