Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Dois Rios, João Batista Santiago Sobrinho. Belo Horizonte: Crisálida, 2018. 72p.
Dois Rios, de João Batista Santiago Sobrinho, foi publicado pela Editora
Crisálida, em março de 2018 e seu colofão foge do rigor de apresentar apenas as
informações de praxe sobre a data, o papel e tipologia utilizada. Podemos encontrar
entre as informações técnicas algo como pistas sócio-histórico-geográficas que formam
um curioso mapa de fechamento do livro, veja o que está escrito sobre o ano de 2018:
“ano em que se celebram cerca de 323 anos de Belo Horizonte, lugar de muitos
córregos, todos cobertos (1695); 174 de Friedrich Nietzsche (1844-1900); 151 anos da
narrativa da Viagem de canoa do Rio das Velhas ao oceano Atlântico, de Richard
Burton (1867); 110 anos de João Guimarães Rosa (1908-1967); 98 anos de João Cabral
de Melo Neto (1920-1999); 15 anos da descobertura do ribeirão Cheonggyecheon, em
Seul, Coréia do Sul (2003); 11 anos da cobertura do ribeirão Arrudas (2007)”. Um leitor
atento irá perceber que isto é um mapa escondido para melhor apreender a leitura do
livro, tal qual um easter egg, aquelas surpresinhas feitas pelos programadores de jogos
eletrônicos ou sites, que escondem no jogo ou na tela comandos para que os jogadores
ou usuários mais sagazes que os descubram recebam prêmios ou tenham surpresas que a
maioria dos jogadores não conseguem ter. É exatamente a ampliação da experiência de
leitura dos poemas que a decifração deste mapa (ou parte dele) busca incitar nos
leitores.
Mas esse mapa não se apresenta no início do livro, e sim no final, na última
página, no colofão, que quase ninguém lê. A cronologia crescente dos elementos
citados, e seu entrelaçamento, até chegar ao evento mais recente, é digna de uma
pequena análise, mas rapidamente podemos perceber ligações entre o passado, não
muito distante, e a atualidade. O cenário é a cidade de Belo Horizonte, com pouco mais
de 300 anos, uma cidade moderna. Não é Juruáia, não é Rio Pomba, cidades onde o
autor viveu (se ele desejasse se referir a elas, encontraria eventos para linká-las ao
mapa) ele abre suas observações falando de uma Belo Horizonte que enterra seus rios.
Não é nenhuma outra cidade, mas também pode ser que sejam todas as outras
metrópoles, que têm posturas asfixiantes. É a cidade grande o centro nevrálgico de Dois
Rios. Nietzsche é citado na sequência, uma referência filosófica do autor, explicitada
também na “minibio”, onde se é citado: “Mesmo antes de conhecer Nietzsche achava
que o esquecimento é uma forma de saúde”
Acreditamos que esse João, autor de Dois Rios, foi fortemente influenciado por
estes dois “João”, o Guimarães Rosa e o Cabral de Melo Neto, e se manteve
estilisticamente entre esses dois, como se fosse a terceira margem do rio, parafraseando
o título do conto de Rosa, se fazendo também um rio poético com esta obra,
alcançando-os e dando sequência à mesma linha, como disse Mário Alves Coutinho, nas
orelhas do livro sobre João Sobrinho “como fizeram os poetas realmente grandes, antes
dele”. Acho que a citação da descobertura de um rio em Seul e a cobertura do rio
Arrudas, que fecha o mapa de indicações, não necessita de muitos comentários, apenas
ressaltamos a brutalidade cáustica dos eventos contraditórios dessa modernidade que
nos embasbaca e assola, no que tange ao cuidado e manutenção do elemento mais vital à
vida que é a água, que são os rios, e essas duas intervenções tão díspares.
“Jogar a palavra
é idêntico a jogar um rio
consoante a contingência
por forma que for:
No espaço arbitrário,
os rios caem finitos
onde cair é infinito.
Os versos iniciais fazem referência ao vidro, uma repetição, e esse vidro nos
remete às ideias das vitrines em Passagens, de Walter Benjamin, das construções do
1
ÁVILA, Affonso – O lúdico e as projeções do Mundo Barroco I – São Paulo: Perspectiva, 1994.
3
ambiente parisiense do início do século XX, as ruas das cidades. Na página 13 a crítica
às construções e à essa geografia modificada se expressa nos versos, que tratam das
enchentes que a cidade de Belo Horizonte sofreu e ainda sofre: “O rio insípido,/ um
risco,/aquífero confinado/ conduto sob pressão/invade a via de cimento/ à qual toma por
terra. / Do jeito que vergaram a água/ vergariam um trilho a frio./ Não conforme os fins/
(circo, marketing, mídia) / mas conforme os meios/ e a lógica de um corpo/ quando
domesticado”.
É também interessante notar que leituras recentes nos despertaram o olhar para
perceber uma bruma de concretismo que se faz presente na singela visualidade da
página 31, na segunda estrofe:
5
o jugo, começando internamente, pela formação de nossa identidade, de uma
subjetividade que seja forte. Como disse Affonso Ávila, “Hoje como ontem, é a astúcia
do jogo criativo contra a intolerância castradora do jugo”. A leitura desta obra nos
mostra o quanto o barroco se renova, mesmo sem citá-lo, pois isso faz parte do jogo de
resistência, onde a arte poética precisa ser empunhada para a defesa dos nossos mais
altos ideais.
Referências Bibliográficas: