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Introdução
1
Ao longo do trabalho usaremos as expressões sujeito poético, eu lírico e eu poético como nomeações de um
mesmo conceito, já que todas representam a voz que emana dos poemas.
outras atrocidades, condição que justifica o interesse da pesquisa pelo tema da memória da
cidade.
Nas análises empreendidas aqui será dada atenção às percepções e impressões dos
sujeitos líricos de Chagas e Cassas sobre a memória da cidade de Alcântara, com destaque para
os procedimentos adotados na construção poética. Tanto em um quanto em outro, a cidade de
Alcântara é protagonista da sua própria história, a qual possibilita refletir sobre o que Assman
considera como a “memória dos locais", já que os espaços se tornam sujeitos, “portadores de
recordação e possivelmente dotados de uma memória que ultrapassa amplamente a memória
dos seres humanos” (Assman, 2011, p. 317). Tudo que Alcântara foi, faz-se presente nas
pulsações do agora: nos espaços em ruína e em seus elementos urbanizados que resistem ao
tempo, bem como nas tradições culturais.
2
Termos usados por George Simmel em A metrópole e a vida mental para designar a atitude de indiferença do
homem frente às alterações no espaço urbano.
os referentes e encontra significados nos usos, nas relações, costumes, no modo como envolve
aquele que lê e busca experimentar a poesia.
Os poetas José Chagas e Luís Augusto Cassas operam por meio de imagens poéticas em
que sobressaem diferentes figuras de efeito estético, a partir de pontos estratégicos adotados
por seus sujeitos líricos, que se mostram andarilhos a percorrer os espaços e a capturar paisagens
que prefiguram histórias e memórias da cidade de Alcântara. Os versos de ambos seguem fluxos
descontínuos, sem obediência a formas fixas. Cada um à sua maneira adota olhar semelhante
ao do viajante a desbravar imagens antes imperceptíveis, o que justifica a percepção aguçada
em ambos, com acentuada presença de detalhes e singularidades.
À proporção que os sujeitos líricos se deslocam no presente de suas enunciações, em
meio a ruínas, silêncio e vazio, subjaz o sentido da cidade de outrora (sua imponência, poder
econômico, riqueza arquitetônica e efervescência). Desse modo, a memória vai tecendo o
passado que se deixa entrever nas ranhuras e dobras do próprio espaço. A memória passa a ser,
então, o fio que conecta tempo e espaço; é também articuladora dos elementos que compõem a
paisagem urbana com os sujeitos poéticos que a rememoram.
O subtítulo do livro de Chagas negociação do azul ou a castração dos anjos vai de
encontro ao título do poema de Cassas intitulado “Sermão de Diógenes santeiro contra a
castração dos anjos da Igreja da Matriz”. O eu poético de Chagas revela que em Alcântara os
anjos esculpidos precisavam ser castrados para terem o direito a adentrar o Reino de Deus e não
correrem o risco de excitarem os cristãos, com a ostentação de seus órgãos sexuais nos altares
das igrejas, “aquela eterna ereção angélica/talhada em dura madeira”, já “que o céu era feito de
inocência azul” (Chagas, p. 115), ou seria possível aos anjos a negociação do azul, insinuada
pelo próprio eu lírico? Em Cassas, o sujeito poético se coloca contra a castração, no entanto
isso não significa que este seja mais esperançoso que aquele. O eu lírico adverte os anjos:
Os que se castram
na carne e na madeira
não saberão do reino de Deus
[...]
- O que trouxestes:
os quebrados pêndulos
de uma hora incerta
[...]
O vento é um filho legítimo
De Alcântara
Só ele sabe a fala materna das águas
Mas é dispersivo e esquece
A leitura dos dias
Ignorando que a cidade
Em seus ricos anais
Fala de ricos anéis
Que se foram com os dedos do tempo
[...]
do silêncio
guardando o tom
e os sons
que são netos
do soneto antigo
a acompanhar Alcântara
no tempo
para chorar-lhe a cântaros
a triste sorte
O vento, então, “[...]é dispersivo e esquece/A leitura dos dias”. Com isso, o sujeito
poético expõe uma atmosfera triste à cidade que guarda o tom e os sons de seus antepassados,
“a acompanhar Alcântara/no tempo/para chorar-lhe a cântaros/a triste sorte”. Dessa maneira, o
que se dá a ver é o desmoronamento da cidade, decorrente da ruptura entre corpo e alma.
Segundo Tardivo e Pratschke (2016), a memória da cidade é marcada por uma série de
recordações sobre histórias do lugar, ressignificadas pelo sujeito que com ela interage. Nesse
sentido, no poema de Cassas intitulado Souvenirs3, o eu poético ressignifica o passado a partir
da condição do presente que a cidade adquirira: o de lugar de visitação:
O poema ironiza sobre o tipo de lembrança possível de se levar de Alcântara. Não tarda,
o eu poético mostra que tudo está visível na própria pele da cidade, sendo a “alma alcantarense”
revelada no “beco antigo” que expõe os casarões de pedra esvaziados ou comportando outras
funcionalidades; no “anjo barroco”, que se mostra nos altares das igrejas a velar as almas de
pessoas ilustres ali sepultadas; numa “taça de mar”, que lembra os antigos desbravadores,
porque da cidade mesmo, se impõe o vazio. Ao final, o eu poético adverte: “viajante que
passa/eterniza o teu momento: leva do azulejo um pensamento”. Segundo Assmann (2011):
No poema recortado, o verbo dormir, logo no início, remete à ideia de uma cidade
curvada sobre si mesma e que reflete, na paisagem, o passado colonial português. Tudo está, ao
mesmo tempo, dentro e fora de uma realidade que resiste às intempéries do tempo e do
abandono. Os elementos da cidade, como casarões, igrejas, assim como ruas de pedras e becos,
são suscetíveis à recuperação da memória da cidade, de modo que os souvenirs são possíveis
apenas na visão que se tem da paisagem a ser registrada no pensamento. Na concepção de
Milton Santos:
3
O título do poema está grafado em itálico no original.
O passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço é
singular: formado de momentos cristalizados por meio de objetos
geográficos atuais; essas formas-objetos, tempo passado, são igualmente
tempo presente enquanto formas que abrigam uma essência, dada pelo
fracionamento da sociedade total. Por isso, o momento passado está morto
como ‘tempo’, não porém como ‘espaço’ (Santos, 2007, p. 14).
Ruínas do Forte de São Sebastião. Fonte: Albani Ramos. In: Alcântara: alma e história (2011)
Única companhia:
A tela dos artistas
Ou a fotografia dos turistas.
Figura 02
Assim, tanto o Forte quanto o Pelourinho são elementos que acompanham a evolução
da cidade, logo, considerados patrimônio do lugar, dada à resistência e permanência em meio
ao vazio e ao silêncio. O Forte e o Pelourinho são a consagração de um patrimônio que menos
afirma o status do dominante e mais a conservação de uma memória de violência contra pessoas
escravizadas, em meio ao poder instituído no Maranhão colonial.
Vale dizer que muitos da força de trabalho negra mantêm-se inscrita nos elementos da
cidade, como nas ruas de pedra e nos grandes blocos de construções seculares que emolduram
o pelourinho. Os poderosos da cidade não pouparam esforços para adaptar o modelo europeu
nos seus casarões: “os azulejos ficaram em fachadas e as esquadrias de madeira nos fundos,
substituindo pedras por frisos de argamassa em torno de portas e janelas” (Lopes, 2013, p. 42).
As mãos escravizadas ecoam também nas paredes das cozinhas e nos subsolos dos
casarões, nas correntes e em outros instrumentos de tortura expostos no Museu da cidade.
Ecoam, de forma mais audível, nos elementos da cultura trazidos de África e que resistiram à
intolerância dos senhores detentores do poder, tendo a cidade o maior número de comunidades
quilombolas do Brasil. Como diz Chagas (1994, p.103), poeticamente: “Alcântara nos
recorda/mais pesadelo que sonho/[...] E lembra a quem ali chega/que em suor e sob açoites/o
brilho da pele negra/é que iluminava as noites”.
A tentativa de apagamento das marcas do povo escravizado, em detrimento do
avivamento de elementos que acentuam a opulência das classes dominantes é superada por meio
de incansáveis mecanismos de lutas e pelo registro do patrimônio imaterial, como por exemplo,
os saberes e as celebrações de festas populares e as formas de expressão do povo negro.
Segundo Abreu (1998), a memória da cidade diz respeito aos elementos urbanizados
que resistem ao tempo e acompanham a dinâmica do lugar, assim, “a partir dela, ou de seus
registros, pode-se enveredar pelas lembranças das pessoas e atingir momentos urbanos que já
passaram e formas espaciais que já desapareceram” (Abreu, 1998, p. 83). É nesse aspecto que
se destacam histórias, como a dos barões do Mearim e do Pindaré, que iniciaram construções
de casarões muito próximos à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, exclusivamente para disputar
a hospedagem de D. Pedro II que visitaria Alcântara, porém a ida do imperador à cidade nunca
foi confirmada e, de fato, não se concretizou, a ficar os casarões inconclusos à mercê da própria
sorte e do sarcasmo social. No poema de número 13, de Chagas, o sujeito poético fala do sonho
e da espera desse acontecimento que se perdera no tempo.
[...]
Hoje nas ruínas
dos palácios medra
o choro das quinas
de sonhos de pedra
O velho casarão
ainda espera Pedro.
Pedro não vem? Pedro vai chegar?
Quando Pedro vai chegar?
[...]
As janelas se interrogam
As portas mal se perguntam:
- Em que estranha latitude
anda Pedro a navegar?
O sujeito poético personifica o casarão que questiona seres, também inanimados (portas
e janelas), sobre o paradeiro de D. Pedro II. E os mesmos o fazem com uma certa intimidade,
como a demonstrar o envaidecimento e a pretensão de seus donos. O refrão “Pedro não está”, à
moda das cantigas trovadorescas, é a resposta dada a cada pergunta. “O velho casarão/ainda
espera Pedro”, em meio a janelas e portas escancaradas ao vento.
Figura 03
Figura 04
Ruína do palácio: recorte do portal em pedra de lioz portuguesa (Fonte: Silvana Pantoja)
Segundo Assmann (2011), os lugares, com seus artefatos, são geradores de memórias
tanto pelo valor social quanto cultural, como também pelo seu caráter de duração no tempo,
desencadeando novas memórias.
Mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim
fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito
significativos. E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na
medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma
continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de
indivíduos, épocas e culturas, que está concretizada em artefatos (Assmann,
2011. p. 318)
A memória da cidade diz respeito à soma das histórias, tradições e experiências que
moldaram a identidade do lugar. Ela é composta de elementos tangíveis e intangíveis,
incluindo monumentos, igrejas, construções históricas, manifestações culturais, lendas,
histórias orais, entre outros. Para Pierre Nora (2012), os lugares de memória comportam a
memória do grupo, construída através de lugares simbólicos que se tornam pontos de
referência para vivências tanto individuais quanto sociais; são construídos por meio de um
processo de seleção e negociação de elementos do passado, importantes para a identidade do
grupo. Mesmo diante de mudanças sociais e históricas, os lugares de memória são
importantes no fornecimento da história e permitem-nos reconectarmo-nos com o passado e
compreendermos melhor o presente.
Considerações finais
4
Expressão usada por Silvana Santos (2015) na sua tese de doutoramento em que analisa a memória da cidade
em obras dos poetas Ferreira Gullar e H. Dobal (nome artístico-cultural de Hindemburgo Dobal Teixeira),
respectivamente maranhense e piauiense.
os vínculos indissociáveis entre sujeito/cidade/memória, possíveis de realçar a importância
do patrimônio cultural. Nessa perspectiva, a preservação do patrimônio urbano depende da
construção da memória do lugar, ressignificada por diferentes vieses, sobretudo pelo fazer
literário, sendo as produções poéticas de Chagas e Cassas relevantes nesse processo.
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