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PAISAGEM E HERANÇA CULTURAL ALÉM MAR NA POESIA

MARANHENSE: PATRIMÔNIO EM RUÍNA

Silvana Maria Pantoja dos Santos (UEMA/Bolsista de Produtividade CNPq)

Introdução

A cidade é interligada a fatores históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais, a


partir de relações interpessoais, que contribuem para o seu dinamismo. À proporção que a
cidade se moderniza, surgem diferentes formas de o homem com ela se relacionar. Partindo
desse pressuposto e mediante os diversos meios de testemunhar a cidade, é possível refletirmos
sobre a cidade na literatura, já que esta é capaz de transfigurar a realidade a partir dos efeitos
estéticos e de sentido que lhe são peculiares. O caráter ficcional da literatura atribui sentido aos
lugares, não só pelas representações, mas também pela tradução de sensibilidades e
sociabilidades dos seus agentes (Pesavento, 2002).
Nessa perspectiva, o objetivo do trabalho é compartilhar resultados parciais da pesquisa
desenvolvida na Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, Brasil, por meio da Bolsa de
Produtividade financiada pelo CNPq, cujo propósito é compilar e analisar obras de poetas
contemporâneos maranhenses com ênfase na valorização do passado histórico-cultural; uma
tentativa de preservação da memória da cidade que se entrelaça à memória individual e coletiva.
Para este trabalho foi feito o recorte a envolver as obras Alcântara: negociação do azul ou a
castração dos anjos, de José Chagas, publicada em 1994, e A paixão segundo Alcântara e novos
poemas, de Luís Augusto Cassas, 1985, obras separadas no tempo por nove anos, mas que se
aproximam-se pela leitura que fazem da memória cultural da mesma cidade. As abordagens
terão como suporte teórico o pensamento Abreu (1998), que possibilita compreender o conceito
de memória da cidade; Pesavento (2002), que trata das marcas do tempo sobre o espaço;
Asmann (2011), que aborda os espaços de memória, e outros.
Importante dizer que a memória da cidade envolve elementos urbanos que resistem ao
tempo e acompanham a evolução da cidade. A cidade é atravessada pela história e pela cultura,
que ressoam na paisagem e nela deixa seus vestígios. No caso das cidades maranhenses, os
vestígios do passado histórico estão presentes em casarões coloniais com suas fachadas
azulejadas, nas ruas com seus calçamentos de pedra, nos becos, fontes, sobrados, mirantes,
dentre outros elementos.
O escritor José Francisco de Chagas é do Estado da Paraíba, Brasil, radicalizado no
maranhão desde 1948. Iniciou a sua produção literária com a obra Canção da expectativa
(1955) e dedicou parte da sua arte poética à paisagem e aos motivos maranhenses, com destaque
para a cidade de São Luís - MA. Ingressou na Academia Maranhense de Letras em 1974,
assumindo a Cadeira nº 28; é jornalista, poeta, cronista, com mais de 20 (vinte) publicações
literárias. Dentre as suas obras poéticas, destacam-se: Os telhados (1972), Maré/memória
(1973), Lavoura azul (1974), Os canhões do silêncio (1979), Apanhados do chão (1994),
Azulejos do tempo patrimônio da humana idade (1999).
O livro Alcântara: negociação do azul ou a castração dos anjos (1994) do poema é
divido em três partes: a primeira, intitulada “Uma advertência”, inclui uma breve justificativa
sobre a gênese da obra; a segunda, “A primeira queda (o tempo)” e a terceira, “A segunda queda
(o espaço)”, são formadas por longos poemas sem títulos, identificados por números, com
abordagens sobre a condição da cidade de Alcântara – Maranhão, Brasil, no contexto
espaço/temporal. O livro contempla poemas nascidos das próprias ruínas da cidade, uma forma
de ressentir o tempo e a ação dele sobre a paisagem. Na última parte, Chagas dedica uma longa
passagem poética ao destino da cidade em meio à base aeroespacial implantada em Alcântara
que se surpreende “com o fantasma show/espacial/ e o aparato eletrônico que se arma/sobre a
cultura violada de um povo/perdido no tempo” (Chagas, 1994, p. 290).
O poeta Luís Augusto Cassas nasceu na cidade de São Luís – Maranhão, Brasil. Integrou
o Movimento Antroponáutico da geração de 1970 na capital maranhense, grupo formado por
Arlete Nogueira, Viriato Gaspar, Raimundo Fontenele, Chagas Val, Valdelino Cécio.
Posteriormente, juntaram-se ao grupo outros nomes significativos, como Rossini Corrêa e
Laura Amélia Damous, todos escritores do Maranhão. Esses jovens poetas propuseram novas
experimentações linguísticas que, de certo modo, abalaram os preceitos da poesia tradicional
produzida no contexto maranhense até então. A partir das inovações linguísticas, Cassas
desenvolveu um estilo próprio, com interesse pelo tema da condição humana, por meio da
dialética entre o sagrado e o profano, a imanência e a transcendência, além da preferência pelo
tema da cidade e o modo como o homem com ela se relaciona. O destaque na sua produção
poética é para a linguagem que transita entre a irreverência, a provocação e a crítica, sem perder
de vista os efeitos estéticos, próprios do fazer poético.
O poeta tem uma vasta produção, com destaque para: República dos Becos, sua primeira
obra (1981), Rosebud (1990), O vampiro da Praia Grande (2002), O Retorno da Aura, Liturgia
da Paixão (1994), Ópera Barroca (1998), Titanic-Boulogne: a Canção de Ana e Antonio
(1998), Bhagad-brita: a canção do beco (1999). Em 2012, reuniu sua produção poética em dois
volumes intitulados A poesia sou eu. O livro Quatrocentona: código de posturas & imposturas
líricas da cidade de São Luís do Maranhão, de 2021, é a sua mais recente publicação. O poeta
é atuante nas redes sociais e publica periodicamente poemas na sua página digital. O livro A
Paixão Segundo Alcântara e novos poemas (1985, 1ª ed.; 2006, 2ª ed.) reúne 39 poemas com
extensão variada, com todos os títulos em caixa alta e em negrito, como em um chamamento
que ecoa em alto e bom som para tornar audível a voz alcantareira. O vocábulo “paixão” deriva
do latim “passio” que significa sofrimento, o que remete à ideia da dolorosa chaga da própria
cidade em meio à decadência e ruína. Assim, o sujeito lírico1 de Cassas revolve as entranhas da
cidade, que passou da glória econômica ao declínio, como diz José Américo Costa (2006, p. 12-
13) no prefácio da obra: “As entranhas de pedra da cidade arruinada dão à luz aos versos fortes
e proféticos de uma poesia social e mística, que decanta a cidade em sua condição perene”.
O eu poético de Cassas, assim como o de Chagas, problematiza a incerta presença da
base aeroespacial em Alcântara e lamenta o destino da cidade. Diz o eu poético: “Em discurso
unânime e desolador demonstraram angústia e expectativa ansiedade e temor com o inditoso
destino a que terão de se submeter e ao qual não escapam órfica sina sequer as pedras e a poeira
das estradas” (Cassas, 2006, p. 69). Na condição de poetas contemporâneos, Chagas e Cassas
carregam aquilo que Agamben (2009) denomina de inadequação, no sentido de serem homens
do seu tempo e, portanto, olham para o momento presente e questionam aquilo que lhe causam
estranhamento.
A cidade de Alcântara está localizada a 16 km de São Luís, capital do Maranhão, Brasil,
separada pela baía de São Marcos, cujo acesso, a partir da capital, dá-se via mar. No século XIX
a cidade de Alcântara foi a sede da economia do Maranhão, o que resultou em uma paisagem
composta por grandes casarões de propriedade de barões e coronéis, ricos fazendeiros, com
grande influência política no Estado. Com a decadência econômica, a cidade de Alcântara se
transformou em um lugar esvaziado e sem perspectiva de crescimento. O nome da cidade é em
homenagem ao Primeiro Imperador do Brasil, D. Pedro (1822-1831), e Rei de Portugal com o
título de D. Pedro IV (1826-1834). A cidade foi Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN) como Cidade Histórica e Monumento Nacional.
O centro histórico de Alcântara comporta um dos acervos culturais do Estado, sendo o
patrimônio um lugar de prática de memória de valor simbólico, por meio de seus bens materiais
e imateriais. Mas o que se tem percebido na paisagem dessa cidade histórica é o abandono do
seu acervo arquitetônico: com desabamento dos casarões, furto dos azulejos, pichações, dentre

1
Ao longo do trabalho usaremos as expressões sujeito poético, eu lírico e eu poético como nomeações de um
mesmo conceito, já que todas representam a voz que emana dos poemas.
outras atrocidades, condição que justifica o interesse da pesquisa pelo tema da memória da
cidade.
Nas análises empreendidas aqui será dada atenção às percepções e impressões dos
sujeitos líricos de Chagas e Cassas sobre a memória da cidade de Alcântara, com destaque para
os procedimentos adotados na construção poética. Tanto em um quanto em outro, a cidade de
Alcântara é protagonista da sua própria história, a qual possibilita refletir sobre o que Assman
considera como a “memória dos locais", já que os espaços se tornam sujeitos, “portadores de
recordação e possivelmente dotados de uma memória que ultrapassa amplamente a memória
dos seres humanos” (Assman, 2011, p. 317). Tudo que Alcântara foi, faz-se presente nas
pulsações do agora: nos espaços em ruína e em seus elementos urbanizados que resistem ao
tempo, bem como nas tradições culturais.

O desmoronamento da memória da cidade: vazio e silêncio de uma cidade na poética de


Chagas e Cassas.
A partir da atenção dada ao espaço, a percepção ganha força na poesia de Chagas e
Cassas, a tornar evidente o efeito da visão sobre as coisas vistas. Octavio Paz (2012) afirma que
o sentido da imagem poética se desdobra sobre si mesma, o que a dota de autonomia, posto que
construída com linguagem, sendo o poema a própria linguagem. Dessa maneira, o poeta cria
representações da realidade que possibilitam pensar sobre a condição do homem, da existência
e das coisas e objetos circunstanciais no tempo e espaço.
Nesse sentido, há uma ressalva para o poeta pela sua forma peculiar de observação do
mundo. Sua capacidade de dar amplitude a determinados fatos e a carga emocional que o atinge
ao se deparar com coisas e pessoas dão a ele um diferencial em relação a sua atitude blasé e
automatismo2. O poeta, diante de um mundo de homens estilhaçados, busca compreender as
pulsações da vida e das coisas, por meio da percepção voltada para as mudanças. A consciência
da fragmentação e a perda da totalidade são emblemas da modernidade e da vida na cidade, que
operam grande impacto na atitude mental dos sujeitos.
Nesse sentido, o poeta contemporâneo experimenta um novo fluxo de escrita, com um
eu-lírico que anseia por uma totalidade impossível e se depara com a angústia do vazio e da
solidão. Na poesia, o leitor e o escritor participam de um jogo de sentidos, visto que o texto
poético se apresenta por meio de uma linguagem que se ampara em um contexto que extrapola

2
Termos usados por George Simmel em A metrópole e a vida mental para designar a atitude de indiferença do
homem frente às alterações no espaço urbano.
os referentes e encontra significados nos usos, nas relações, costumes, no modo como envolve
aquele que lê e busca experimentar a poesia.
Os poetas José Chagas e Luís Augusto Cassas operam por meio de imagens poéticas em
que sobressaem diferentes figuras de efeito estético, a partir de pontos estratégicos adotados
por seus sujeitos líricos, que se mostram andarilhos a percorrer os espaços e a capturar paisagens
que prefiguram histórias e memórias da cidade de Alcântara. Os versos de ambos seguem fluxos
descontínuos, sem obediência a formas fixas. Cada um à sua maneira adota olhar semelhante
ao do viajante a desbravar imagens antes imperceptíveis, o que justifica a percepção aguçada
em ambos, com acentuada presença de detalhes e singularidades.
À proporção que os sujeitos líricos se deslocam no presente de suas enunciações, em
meio a ruínas, silêncio e vazio, subjaz o sentido da cidade de outrora (sua imponência, poder
econômico, riqueza arquitetônica e efervescência). Desse modo, a memória vai tecendo o
passado que se deixa entrever nas ranhuras e dobras do próprio espaço. A memória passa a ser,
então, o fio que conecta tempo e espaço; é também articuladora dos elementos que compõem a
paisagem urbana com os sujeitos poéticos que a rememoram.
O subtítulo do livro de Chagas negociação do azul ou a castração dos anjos vai de
encontro ao título do poema de Cassas intitulado “Sermão de Diógenes santeiro contra a
castração dos anjos da Igreja da Matriz”. O eu poético de Chagas revela que em Alcântara os
anjos esculpidos precisavam ser castrados para terem o direito a adentrar o Reino de Deus e não
correrem o risco de excitarem os cristãos, com a ostentação de seus órgãos sexuais nos altares
das igrejas, “aquela eterna ereção angélica/talhada em dura madeira”, já “que o céu era feito de
inocência azul” (Chagas, p. 115), ou seria possível aos anjos a negociação do azul, insinuada
pelo próprio eu lírico? Em Cassas, o sujeito poético se coloca contra a castração, no entanto
isso não significa que este seja mais esperançoso que aquele. O eu lírico adverte os anjos:

Os que se castram
na carne e na madeira
não saberão do reino de Deus

[...]

- O que trouxestes:
os quebrados pêndulos
de uma hora incerta

(CASSAS, p. 50. Negrito nosso)


Ao proferir o sermão, o sujeito lírico mostra as consequências da castração, qual seja, a
não aceitação dos anjos no reino de Deus, pois estes “Ficarão à porta do paraíso”, metáfora da
condição, também, de uma cidade castrada, cuja condenação é ficar estagnada, às margens da
modernização e do progresso. A castração anuncia que a prosperidade não é mais possível a
uma terra sem Deus para conduzi-la, terra essa que se desfaz na sua própria existência, tendo
sua queda confirmada no tempo e no espaço.
Os anjos/cidade, na condição de castrados, tornam-se “(Pássaros sem asas/na incerta
gravidade/de um céu sem eternidade)”. Mas os anjos não se rendem à punição dos que os
castram, antes, proferem um pedido de clemência no poema, também de Cassas, intitulado
“Resposta dos anjos castrados a Diógenes santeiro, fabricante de santos”:

Misericórdia: não retireis


todo o amor do coração
ou o corpo se derreterá.

Não resgateis por empréstimo


a mágoa e o desespero
senão a alma implodirá
[...]
Ó sudário tornado cupim:
relicário das oito chagas do mundo
esculpidas no sofrimento coletivo
[...]

(Cassas, 2006, p. 52)

Chama a atenção a redundância anunciada no título em torno da expressão “santeiro,


fabricante de santos”, cujo propósito, supomos, é desfazer a ambiguidade que a palavra poderia
gerar, já que “santeiro” também pode designar o beato, aquele que se torna santo pela sua
devoção. A resposta aparece em tom de oração em que os anjos castrados suplicam pela
preservação do corpo e da alma, o que se tornaria possível por meio do amor e dos corações
pacíficos dos homens, assim “o sexo desabrochará lilás”.
Corpo e alma têm uma relação de interdependência: o corpo abriga a alma que dele
precisa para se expandir, já que no pensamento neoplatônico a alma é pensada como horizonte,
linha infinita entre céu e terra. Em contrapartida, a alma é responsável pelo sopro da vida no
corpo que, por sua natureza, é sensível, frágil e efêmero. Assim como os anjos, a cidade de
Alcântara, castrada na sua beleza e imponência, clama pela preservação do seu corpo e alma,
dilacerados pelos mesmos motivos expostos pelos anjos.
Corpo/alma - do anjo, da cidade - tecidos por uma fina camada, cuja ligadura é
necessária. Quebrada a vértebra, desfaz-se a cola, arranca do corpo a alma, soterram-se as
partes do corpo e a alma, etérea, se esvai. O que era uno desmorona-se no abismo, ou como diz
o eu poético: “[...] o corpo se derreterá” e “a alma implodirá”. Resta a dor presente na imagem
poética “Ó sudário tornado cupim”, dor que se revela no imaginário coletivo diante da perda da
glória, da união entre corpo/alma da cidade.
Em meio ao “derretido” e ao “implodido”, o eu poético de Chagas busca no vento um
testemunho da (uni)cidade corpo/alma de Alcântara, mas o vento, assim como o tempo, é
também causador de mudanças, sendo os mesmos indiferentes às suas ações.

[...]
O vento é um filho legítimo
De Alcântara
Só ele sabe a fala materna das águas
Mas é dispersivo e esquece
A leitura dos dias
Ignorando que a cidade
Em seus ricos anais
Fala de ricos anéis
Que se foram com os dedos do tempo

(Chagas, 1994, p. 28/29)

[...]
do silêncio
guardando o tom
e os sons
que são netos
do soneto antigo
a acompanhar Alcântara
no tempo
para chorar-lhe a cântaros
a triste sorte

(Chagas, 1994, p. 39)

O vento, então, “[...]é dispersivo e esquece/A leitura dos dias”. Com isso, o sujeito
poético expõe uma atmosfera triste à cidade que guarda o tom e os sons de seus antepassados,
“a acompanhar Alcântara/no tempo/para chorar-lhe a cântaros/a triste sorte”. Dessa maneira, o
que se dá a ver é o desmoronamento da cidade, decorrente da ruptura entre corpo e alma.
Segundo Tardivo e Pratschke (2016), a memória da cidade é marcada por uma série de
recordações sobre histórias do lugar, ressignificadas pelo sujeito que com ela interage. Nesse
sentido, no poema de Cassas intitulado Souvenirs3, o eu poético ressignifica o passado a partir
da condição do presente que a cidade adquirira: o de lugar de visitação:

Dorme em toda alma alcantarense


um beco antigo/um anjo barroco
E uma saudade portuguesa

Uma taça de mar


que sirva de oráculo e rota
aos descobrimentos do sublime
[...]
Cidade de prateleiras vazias
de vidraças vazias
de lembranças vazias

(Cassas, 2006, p. 31)

O poema ironiza sobre o tipo de lembrança possível de se levar de Alcântara. Não tarda,
o eu poético mostra que tudo está visível na própria pele da cidade, sendo a “alma alcantarense”
revelada no “beco antigo” que expõe os casarões de pedra esvaziados ou comportando outras
funcionalidades; no “anjo barroco”, que se mostra nos altares das igrejas a velar as almas de
pessoas ilustres ali sepultadas; numa “taça de mar”, que lembra os antigos desbravadores,
porque da cidade mesmo, se impõe o vazio. Ao final, o eu poético adverte: “viajante que
passa/eterniza o teu momento: leva do azulejo um pensamento”. Segundo Assmann (2011):

Mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda


assim fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito
significativos. E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na
medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma
continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de
indivíduos, épocas e culturas, que está concretizada em artefatos
(Assmann, 2011. p. 318).

No poema recortado, o verbo dormir, logo no início, remete à ideia de uma cidade
curvada sobre si mesma e que reflete, na paisagem, o passado colonial português. Tudo está, ao
mesmo tempo, dentro e fora de uma realidade que resiste às intempéries do tempo e do
abandono. Os elementos da cidade, como casarões, igrejas, assim como ruas de pedras e becos,
são suscetíveis à recuperação da memória da cidade, de modo que os souvenirs são possíveis
apenas na visão que se tem da paisagem a ser registrada no pensamento. Na concepção de
Milton Santos:

3
O título do poema está grafado em itálico no original.
O passado passou, e só o presente é real, mas a atualidade do espaço é
singular: formado de momentos cristalizados por meio de objetos
geográficos atuais; essas formas-objetos, tempo passado, são igualmente
tempo presente enquanto formas que abrigam uma essência, dada pelo
fracionamento da sociedade total. Por isso, o momento passado está morto
como ‘tempo’, não porém como ‘espaço’ (Santos, 2007, p. 14).

Diferentemente do tempo que arrasta tudo em direção a um grande vácuo dando às


coisas um lugar no passado, o espaço as atualiza no presente. O que torna o espaço singular é a
capacidade que tem de reter o passado, como diz Santos: cristalizando-o nos objetos
geográficos. As ruínas do Forte de São Sebastião, por exemplo e o pelourinho, em frente às
ruínas da Igreja de São Matias, concentram, nas suas fissuras, vestígios memorialísticos, sendo
eles incapazes de apagar as marcas da história do lugar, ainda que sob perspectivas diferentes.
Em Chagas, o eu poético anuncia: “O Forte é hoje/um campo alastrado/de canhões mortos/um
chão penetrado/de memórias avulsas”. As ruínas também concentram os vestígios do “trabalho
duro” de “mãos escravizadas” (Chagas, 1994, p. 255).
Figura 01

Ruínas do Forte de São Sebastião. Fonte: Albani Ramos. In: Alcântara: alma e história (2011)

Sobre o pelourinho, o eu lírico de Cassas (2006, p. 40), no poema Código penal, de


forma irreverente, registra acerca do julgamento e condenação dele: “[...] Ato sumário/após o
veredito/cumpre-se o rito/5 chicotadas pela pele dos escravos açoitados/10 chicotadas/pelo riso
dos fidalgos nas sacadas [...]”. No poema ocorre a convocação de tipos sociais (beatas,
catraieiros, sineiro desempregado), bem como de elementos dos altares e da paisagem de
Alcântara para darem o veredito, seguido das sanções, suspensão da execução da sentença e,
por fim, da penalidade, cujo destino é o de ser “enterrado de pé/ – fragmentos da fé” em que:
Será exposto
à visitação pública.
(Ironia da República)

Única companhia:
A tela dos artistas
Ou a fotografia dos turistas.

(Cassas, 2006, p. 42)

Figura 02

Pelourinho da praça central de Alcântara (Fonte: Silvana Pantoja)

Assim, tanto o Forte quanto o Pelourinho são elementos que acompanham a evolução
da cidade, logo, considerados patrimônio do lugar, dada à resistência e permanência em meio
ao vazio e ao silêncio. O Forte e o Pelourinho são a consagração de um patrimônio que menos
afirma o status do dominante e mais a conservação de uma memória de violência contra pessoas
escravizadas, em meio ao poder instituído no Maranhão colonial.
Vale dizer que muitos da força de trabalho negra mantêm-se inscrita nos elementos da
cidade, como nas ruas de pedra e nos grandes blocos de construções seculares que emolduram
o pelourinho. Os poderosos da cidade não pouparam esforços para adaptar o modelo europeu
nos seus casarões: “os azulejos ficaram em fachadas e as esquadrias de madeira nos fundos,
substituindo pedras por frisos de argamassa em torno de portas e janelas” (Lopes, 2013, p. 42).
As mãos escravizadas ecoam também nas paredes das cozinhas e nos subsolos dos
casarões, nas correntes e em outros instrumentos de tortura expostos no Museu da cidade.
Ecoam, de forma mais audível, nos elementos da cultura trazidos de África e que resistiram à
intolerância dos senhores detentores do poder, tendo a cidade o maior número de comunidades
quilombolas do Brasil. Como diz Chagas (1994, p.103), poeticamente: “Alcântara nos
recorda/mais pesadelo que sonho/[...] E lembra a quem ali chega/que em suor e sob açoites/o
brilho da pele negra/é que iluminava as noites”.
A tentativa de apagamento das marcas do povo escravizado, em detrimento do
avivamento de elementos que acentuam a opulência das classes dominantes é superada por meio
de incansáveis mecanismos de lutas e pelo registro do patrimônio imaterial, como por exemplo,
os saberes e as celebrações de festas populares e as formas de expressão do povo negro.
Segundo Abreu (1998), a memória da cidade diz respeito aos elementos urbanizados
que resistem ao tempo e acompanham a dinâmica do lugar, assim, “a partir dela, ou de seus
registros, pode-se enveredar pelas lembranças das pessoas e atingir momentos urbanos que já
passaram e formas espaciais que já desapareceram” (Abreu, 1998, p. 83). É nesse aspecto que
se destacam histórias, como a dos barões do Mearim e do Pindaré, que iniciaram construções
de casarões muito próximos à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, exclusivamente para disputar
a hospedagem de D. Pedro II que visitaria Alcântara, porém a ida do imperador à cidade nunca
foi confirmada e, de fato, não se concretizou, a ficar os casarões inconclusos à mercê da própria
sorte e do sarcasmo social. No poema de número 13, de Chagas, o sujeito poético fala do sonho
e da espera desse acontecimento que se perdera no tempo.

[...]
Hoje nas ruínas
dos palácios medra
o choro das quinas
de sonhos de pedra

Nem Pedro nem padre


nem pedra ou padrão
nada há que se enquadre
nesse sonho vão

(Chagas, 1994, p. 207)

Na primeira estrofe, fragmentos das construções arruinadas lamentam os sonhos


petrificados, e “o choro das quinas” vai ao encontro dos lamentos daqueles que idealizaram tais
empreendimentos. A decepcionante espera é reforçada pela anáfora negativa da estrofe
seguinte, em forma de um renitente vazio expresso através do uso da aliteração, que se desdobra
em um “sonho vão”. No poema “Ruínas da casa do imperador”, o eu lírico de Cassas, em tom
irônico, também recorre ao episódio que se eternizou na paisagem arruinada da parte central da
cidade.

O velho casarão
ainda espera Pedro.
Pedro não vem? Pedro vai chegar?
Quando Pedro vai chegar?

[...]
As janelas se interrogam
As portas mal se perguntam:
- Em que estranha latitude
anda Pedro a navegar?

(Cassas, 2006, p. 28 e 30)

O sujeito poético personifica o casarão que questiona seres, também inanimados (portas
e janelas), sobre o paradeiro de D. Pedro II. E os mesmos o fazem com uma certa intimidade,
como a demonstrar o envaidecimento e a pretensão de seus donos. O refrão “Pedro não está”, à
moda das cantigas trovadorescas, é a resposta dada a cada pergunta. “O velho casarão/ainda
espera Pedro”, em meio a janelas e portas escancaradas ao vento.

Figura 03

Ruínas do palácio (Fonte: Silvana Pantoja)

Figura 04
Ruína do palácio: recorte do portal em pedra de lioz portuguesa (Fonte: Silvana Pantoja)

Segundo Assmann (2011), os lugares, com seus artefatos, são geradores de memórias
tanto pelo valor social quanto cultural, como também pelo seu caráter de duração no tempo,
desencadeando novas memórias.

Mesmo quando os locais não têm em si uma memória imanente, ainda assim
fazem parte da construção de espaços culturais da recordação muito
significativos. E não apenas porque solidificam e validam a recordação, na
medida em que a ancoram no chão, mas também por corporificarem uma
continuidade da duração que supera a recordação relativamente breve de
indivíduos, épocas e culturas, que está concretizada em artefatos (Assmann,
2011. p. 318)

A memória da cidade diz respeito à soma das histórias, tradições e experiências que
moldaram a identidade do lugar. Ela é composta de elementos tangíveis e intangíveis,
incluindo monumentos, igrejas, construções históricas, manifestações culturais, lendas,
histórias orais, entre outros. Para Pierre Nora (2012), os lugares de memória comportam a
memória do grupo, construída através de lugares simbólicos que se tornam pontos de
referência para vivências tanto individuais quanto sociais; são construídos por meio de um
processo de seleção e negociação de elementos do passado, importantes para a identidade do
grupo. Mesmo diante de mudanças sociais e históricas, os lugares de memória são
importantes no fornecimento da história e permitem-nos reconectarmo-nos com o passado e
compreendermos melhor o presente.
Considerações finais

As experiências dos sujeitos com a cidade permitem a ressignificação de histórias e


memórias, as quais os levam a depositar impressões sobre a paisagem, em tempos e
contextos diferentes. As vivências produzem significados e resultam em memórias
compartilhadas, que se tornam herança histórico-cultural de um determinado lugar.
Os espaços representados nas obras Alcântara: negociação do azul ou a castração
dos anjos e em A paixão segundo Alcântara e novos poemas constituem a coluna vertebral
de tempos idos, em um longo fluir poético traçado nos poemas. Os espaços vazios e
silenciosos (ou silenciados), reavivados nas obras, entrelaçam-se à leitura que deles
fazemos, e contribuem para uma indagação sobre os modos como os mesmos eram vividos
no contexto colonial brasileiro, bem como sobre os seus destinos iminentes.
Nas referidas obras, os sujeitos líricos adotam “perspectivas de dentro”4 para
interpretar e reafirmar suas experiências com a cidade de Alcântara e, por conseguinte, com
as memórias que dela emanam e, com isso, produzir significados. O olhar de dentro
possibilita enxergar melhor as alterações da paisagem provocadas pela ação do tempo que
resultou no abandono da cidade de Alcântara, decorrente da sua decadência econômica e da
necessidade de atenção ao patrimônio urbano.
O tempo se esvai, mas o espaço avoca a missão de acolher o passado, que se deixa
entrever nas formas urbanizadas e nas ruínas. Na poesia de Chagas e de Cassas, os elementos
espaciais alcantarenses surgem perpassados por temas sociais, cristalizados nos objetos
geográficos, no dizer de Milton Santos (2007), tanto de atores representativos do poder
instituído na cidade, quando de sujeitos escravizados, importantes para a sua formação.
Conforme Martins (2006, p. 45), o direito à memória compreende uma dimensão
política cidadã que implica em reformular relações entre os sujeitos e as produções culturais.
Desse modo, a responsabilidade de incorporar o valor da tradição e do patrimônio, em
diversos níveis de segmentos, perpassa inúmeras instituições, desde as governamentais,
familiares, escolares e outras, na preservação da memória do lugar.
Dessa forma, a obras Alcântara: negociação do azul ou a castração dos anjos, de
José Chagas e A paixão segundo Alcântara e novos poemas, de Luís Augusto Cassas revelam

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Expressão usada por Silvana Santos (2015) na sua tese de doutoramento em que analisa a memória da cidade
em obras dos poetas Ferreira Gullar e H. Dobal (nome artístico-cultural de Hindemburgo Dobal Teixeira),
respectivamente maranhense e piauiense.
os vínculos indissociáveis entre sujeito/cidade/memória, possíveis de realçar a importância
do patrimônio cultural. Nessa perspectiva, a preservação do patrimônio urbano depende da
construção da memória do lugar, ressignificada por diferentes vieses, sobretudo pelo fazer
literário, sendo as produções poéticas de Chagas e Cassas relevantes nesse processo.

Referências
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