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RESPEITEM NOSSO OXENTE E A NOSSA PELE PRETA

Meg Silva1

RESUMO: Este trabalho trata-se do relato de experiência da autora ao assistir duas


peças de teatro que retratam realidades de grupos socialmente excluídos. Os respectivos
espetáculos referem-se: A invenção do Nordeste e a Mulher é todo mundo. O primeiro
foi assistido enquanto eu realizava um curso livre de teatro ministrado pelo diretor
teatral Luiz Antônio Rocha promovido pela agência Army, no Rio de Janeiro, e o
segundo quando eu estudava o mestrado em Estudos de Teatro, em Lisboa, Portugal, na
Faculdade de Letras, da Universidade de Lisboa.

Palavras-chave: Teatro. Nordeste. Identidade nordestina. Interseccionalidade. Raça.


Gênero.

INTRODUÇÃO

A peça de teatro A invenção do Nordeste é embasada na tese de doutorado, A


invenção do Nordeste e outras artes, de Durval Muniz de Albuquerque Jr., que aborda a
questão ficcional da criação da região Nordeste. O autor defende a ideia de que os nove
estados nordestinos foram resultados de uma ficção construída com o intuito da
manutenção dos privilégios de políticos e fazendeiros e sustentada pelos poderes
hegemônicos, a exemplo das autoridades políticas e dos meios de comunicação social.
A partir da estória de dois atores que irão disputar o papel de um personagem nordestino
em uma obra de audiovisual, o espetáculo discorre acerca do imaginário social
pejorativo criado do Nordeste. Os dois atores passam sete semanas em preparação com
um diretor e ao longo desses dias a narrativa faz uma crítica muito sarcástica de como o
mainstream das produções artísticas e a sociedade retratam pessoas nordestinas.
Inicialmente, os atores indagam as pessoas da plateia se nós conhecemos como o
Nordeste foi inventado. A tese da qual dialoga com a obra explana que a região
nordestina surgiu pela necessidade de justificar a criação de recursos públicos
direcionados para as regiões atingidas pela seca. Com isso, as autoridades políticas
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, do Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC/UFBA), da Universidade Federal da Bahia. E-mail:
megmacedo@ufba.br.
demarcaram os nove estados que compõem para integrar o Nordeste, sem a
sensibilidade de compreender as especificidades de cada região. Assim, a identidade
nordestina passou a ser uma imagem ficcional que resultou dos interesses escusos de um
pequeno grupo de pessoas que se beneficiariam com essa jogada política. Ao final da
peça teatral é realizado um bate papo com o elenco e a diretora, o que é muito
interessante, pois é possível de uma certa forma sair do papel de quem apenas especta
para refletir em conjunto as impressões ocasionadas pela obra. No meu caso específico
que sou nordestina e passei por várias diásporas, inclusive naquele momento
encontrava-me morando no Rio de Janeiro, então muitos dos assuntos abordados desde
a xenofobia mais explícita até a mais velada eu já tinha vivenciado e presenciado
acontecer com pessoas amigas e parentes. O que me fez refletir é que muitas vezes em
nosso meio social evitamos colocar o dedo na ferida, seja por falta de consciência,
preparo, base emocional e até mesmo medo de sofrer retaliações, no entanto, a arte tem
esse poder de pautar essas discussões sérias e de nos sensibilizar.
A diretora pensou em fazer o espetáculo após a eleição de Dilma Rousseff, em
2014, período em que houve muitos ataques xenófobos contra pessoas nordestinas. A
produção artística de fato conseguiu nos fazer pensar sobre a criação dessa imagem
única do Nordeste, que não mostra a diversidade dos nove estados e do quanto isso
reverbera no Sul e Sudeste do nosso país, inclusive corroborando com a xenofobia.
Hevilla Wanderley e Luciana Aliaga (2021) refletem sobre essa questão, ao
problematizarem acerca das visões intelectuais e a imagem constituída do Nordeste:
É possível perceber na construção discursiva-imagética da região
nordestina a configuração de uma unidade homogênea e
indiferenciada que passa ao largo da imensa variedade cultural,
linguística, política e econômica desta expressiva porção do território
que agrega nove estados brasileiros. Não apenas a homogeneização da
região, mas a sua constituição como categoria explicativa do “atraso”
socioeconômico e cultural distorce e vela a permanência de relações
de dominação entre as regiões no país. Todos esses elementos, com
efeito, serviram de base ideológica para a construção de relações de
hegemonia e subalternidade regional no Brasil (ALIAGA e
WANDERLEY, 2021, p. 06).
Eu pude notar que a acidez da peça de teatro igualmente causou desconfortos nas
pessoas sudestinas, de modo que elas mesmas nunca tinham pensado em situações
sociais que desencadeavam em ações de preconceito, pois o ato de discriminar não é
necessariamente violento da perspectiva física. Portanto, muitas circunstâncias causam
inúmeros constrangimentos que somente quem as sentem na pele sabe das suas
proporções.
Ver dois atores nordestinos em disputa me levaram para lugares do passado,
justamente por, inclusive, ter vivenciado situações xenófobas e de testemunhar
acontecer com outras pessoas nordestinas. Lembro de assistir o ensaio de uma peça de
teatro que no elenco participava uma mulher pernambucana e que toda vez que ela
falava era motivo de riso. Em muitos momentos eu recriminava e retrucava, mas
também não era levada a sério e os risos permaneciam sem muita cerimônia, a desculpa
era sempre culpabilizando a vítima, como se ela fosse o ser exótico que somente pela
sua existência justificava a chacota. Ou seja, é uma forma redutora de desumanização,
como se houvesse grupos hierárquicos, os que podem ser alvos de preconceito
disfarçados de humor, ações que podem ser consideradas como xenofobia recreativa e
os que têm o poder de deliberar essas brincadeiras.
Uma prática muito comum em atrizes e atores nordestinos era disfarçar o
sotaque quando iriam fazer testes. Eu era muito jovem quando fui morar em São Paulo,
apenas tinha acabado de completar 14 anos. Se para esses artistas que eram pessoas
muito mais velhas que eu não era perceptível a xenofobia, para mim ainda muito
ingênua, também, não se caracterizava em consciência de classe, porém em poucos dias
já pude julgar como atitudes preconceituosas. Ao menos não se discutia sobre xenofobia
tão abertamente, o que com o tempo eu fui percebendo é que pairava um certo receio
em revidar. Assumo que muitas vezes eu tinha que me impor, o que, bem verdade,
acontecia era que eu não me deixava abater pelas micro violências e não levava
desaforo para casa, eu reagia, mas o perigo morava justamente no fato que eu era
considerada inofensiva, uma garotinha que estava a falar demais, apenas isso. Lembro
que em muitas situações era sugerido que se amenizasse o sotaque, o que também me
causava estranheza era que quando uma personagem oriunda do Nordeste era
interpretada por uma nordestina se pedia que acentuasse a forma de falar.
Dessa forma, uma espécie de manter o estigma de como se o Nordeste só era
representado pela aquela ideia do lugar da fome, da escassez, com uma única cultura,
esqueciam da diversidade que há entre os nove estados. Em São Paulo se referia e ainda
se refere ao nordestino como baiano, todo nordestino é baiano e no Rio de Janeiro como
paraíba.
Essas figuras, signos, temas que são destacados para preencher a
imagem da região, impõem-se como verdades pela repetição, o que
lhes dá consistência interna e faz com que Tal arquivo de imagens e
textos possa ser agenciado e vir a compor discursos que partem de
paradigmas teóricos os mais diferenciados. Vamos encontrar as
mesmas imagens e os mesmos enunciados sobre o Nordeste em
formulações naturalistas, positivistas, culturalistas, marxistas,
estruturalistas (ALBUQUERQUE, 2011, p. 62).
Tudo isso dialoga com as confrontações que os dois personagens do espetáculo
vivenciam. Ambos são atores e nordestinos, eles se deparam com a grande ficção do
Nordeste e a estranheza que isso causa, inclusive fazendo com que eles questionem suas
próprias identidades. Esse processo também pode ser denominado de desidentificação,
do qual a sujeita e o sujeito muitas vezes como uma forma de passar desapercebido
pelos seus algozes disfarçam as suas características mais marcantes. No que tange aos
dois personagens isso decorre de uma maneira até repleta de contradições, pois
enquanto um dos atores é considerado pouco nordestino e precisa realçar a sua
identidade, o outro é visto como nordestino demais. Durante a narrativa é feito até uma
crítica ácida de que nada adiantaria os esforços de ambos se no final das contas quem
ficaria com o papel era algum galã global carioca, como Cauã Reymond.

Peça de teatro A mulher é todo mundo

A sinopse da produção artística informa que o espetáculo aborda os processos de


imigração das mulheres negras de Guiné-Bissau para Portugal, destacando as suas
preocupações e vivências. Dentre os principais objetivos da peça teatral é contribuir
com o empoderamento das mulheres negras africanas.
Minha primeira desilusão foi quando vi uma peça de teatro que fala de
empoderamento feminino negro e ter em seu elenco secundário atrizes e atores negros e
os dois protagonistas que a narrativa sugere serem negros, oriundos da Guiné-Bissau,
serem representados por pessoas brancas. Logo perguntei-me: O que é isto? Para quê,
saí do quentinho do meu lar para ver esta peça? Do ponto de vista ideológico, esta foi a
pior decisão que poderia ser tomada, se quer dá voz e corpo às mulheres negras
guineenses como propõe a sinopse foi justamente o contrário que aconteceu. Aliás, já é
um pouco problemático essa questão de dá voz às minorias, sendo que essas vozes
sempre existiram, mas, em verdade, nunca foram ouvidas. Eu não sou perfeita, sei disso,
mas tento ao máximo adotar uma postura antirracista, há um poema de Sojourner Truth,
nomeado como “On woman’ dress poem”, que pode exprimir a composição estética,
política, social e ideológica que Mulher é todo mundo constitui-se:

Quando vi mulheres no palco


na Convenção Pelo Sufrágio da Mulher,
no outro dia,
Eu pensei,
Que tipo de reformistas são vocês?,
com asas de ganso em vossas cabeças,
como se estivessem indo voar,
e vestida de forma tão ridícula,
falando de reforma e dos direitos das mulheres?
É melhor vocês mesmas reformarem a si mesmas
em primeiro lugar.
Mas Sojourner é um velho corpo,
e em breve vai sair deste mundo
em outra,
e vai dizer
quando ela chegar lá,
Senhor, eu fiz o meu dever,
e eu disse toda a verdade
ela não guardou nada
(RIBEIRO, 2017, p. 15).

Ou seja, nesse contexto o espetáculo Mulher é todo mundo tem um grande


potencial para ser uma produção artística empoderada, mas como bem disse Truth antes
as pessoas que o pensaram e o viabilizaram precisam “reformarem a si mesmas”. Eu
penso que ninguém nasça empoderado e desconstruído, mas se estivermos abertos e
tivermos empatia, ajuízo que possamos aprender uns com os outros, para criar uma
sociedade mais igualitária e, assim, construir um mundo melhor. Nesse trecho abaixo,
do livro Crítica da Razão Negra, o autor Achille Mbembe (2014) explana um pouco
sobre a invisibilidade negra versus o privilégio branco:
A fantasia do Branco age, deste ponto de vista, como constelação de
objetos de desejo e de sinais públicos de privilégio. Estes objectos e
sinais implicam tanto o corpo corno a imagem, a linguagem e a
riqueza. Aliás, sabe-se que qualquer fantasia procurará sempre
instituir-se no real enquanto verdade social efectiva. A fantasia do
Branco teve sucesso, porque, por fim, tomou-se o cunho de um modo
ocidental de estar no mundo, de uma determinada figura de
brutalidade e crueldade, de uma forma singular de predação e de uma
capacidade desigual de submissão e de exploração de povos
estrangeiros (MBEMBE, 2014, p. 87).

O que A Invenção do Nordeste tem que Mulher é todo mundo não tem?

Por que a peça teatral A Invenção do Nordeste me tocou e fez com que eu refletisse
acerca da padronização da identidade nordestina enquanto Mulher é todo mundo não
conseguiu me sensibilizar e me atravessou com o sentimento de frustração?

A invenção do Nordeste, eu fui assistir na companhia dos meus colegas de curso


livre de teatro da agência Army do Rio de Janeiro e com o nosso professor e diretor
teatral Luiz Antônio Rocha. Marcamos de nos encontrar no teatro da Firjan, eu fui a
primeira a chegar e fiquei aguardando. Aos poucos meus colegas foram se
aproximando, conversamos, rimos e em um momento bonitinho um deles segurou
minha mão e disse que estava muito ansioso porque era a primeira vez que ele assistia a
uma peça de teatro, pediu que não o largasse e ficasse do seu lado nesse momento, foi o
que fiz. Entramos e seguimos em direção as nossas poltronas, após o terceiro sinal
iniciou o espetáculo.
Os atores nos indagam se nós sabemos como o Nordeste foi criado. E, assim
começa a se descortinar toda espécie de sentimento, sensações e pensamentos críticos
sobre como a sociedade cria seus próprios monstros. A xenofobia que conhecemos não
é uma reação neutra e fortuita, ela tem razão de ser, a imagem do Nordeste que
conhecemos ela foi criada com propósitos escusos para beneficiar pequenos grupos da
elite agrária. O autor Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2011) relata sobre isso, ele
diz que:

O Nordeste nasce da construção de uma totalidade político-cultural


como reação à sensação de perda de espaços econômicos e políticos
por parte dos produtores tradicionais de açúcar e algodão, dos
comerciantes e intelectuais a eles ligados. Lança-se mão de topos, de
símbolos, de tipos, de fatos para construir um todo que reagisse à
ameaça de dissolução, numa totalidade maior, agora não dominada
por eles: a nação. Unem-se forças em torno de um novo recorte do
espaço nacional, surgido com as grandes obras contra as secas.
Traçam-se novas fronteiras que servissem de trincheira para a defesa
da dominação ameaçada. Descobrem-se iguais no calor da batalha.
Juntam-se para fechar os limites de seu espaço contra a ameaça das
forças invasoras que vêm do exterior. Descobrem-se "região" contra a
"nação" (ALBUQUERQUE JR., 2011, p. 80).
Mas essa imagem única do povo nordestino tem suas origens ainda anterior a
essa reforma citada por Muniz. Em 1902, Euclides da Cunha, quando veio a Bahia com
a missão de realizar a cobertura jornalística da Guerra de Canudos ao descrever o
sertanejo criou um arquétipo repleto de estereótipos que desumanizava e inferiorizava
os nordestinos e serviu/serve ao imaginário social até os dias atuais, assim como
Henrique Fontes (2019) discorre:

criação euclidiana alimenta um imaginário que foi repetido à exaustão


pela literatura, pelas artes plásticas, música, teatro, cinema e, mais
recentemente, pelas novelas e séries televisivas. Se é o Nordeste que
precisa ser retratado, há sempre uma cara, uma paisagem, uma cor que
aparece pintada ou descrita. Você certamente já imaginou algo
semelhante. Consegue visualizar um tom ocre? Uns galhos secos? Um
chão de terra rachada? Um homem em trajes de vaqueiro? E, se essa
imagem tivesse som, você ouviria uma musicalidade particular na
fala? Um jeito engraçado ou rude de se expressar? Se foram essas as
imagens que lhe vieram à mente, elas não surgiram por acaso
(FONTES, 2019, p. 53).
A peça de teatro além de fazer a análise do passado faz a ligação com a
atualidade, principalmente com acontecimentos políticos da contemporaneidade. Haja
vista que a diretora tomou a decisão de produzi-la após os vários ataques xenófobos no
ano de 2014 quando Dilma Rousseff foi eleita a Presidenta do Brasil e obteve mais
votos no Nordeste. O humor ácido também é um dos elementos que compõem o
espetáculo, o que nos arrancou muitas gargalhadas, mas igualmente nos fez pensar de
forma crítica nos preconceitos que podem ser escancarados. No entanto, os sutis, os
mais velados de certo modo quando procedem podem parecer inofensivos, mas são tão
perigosos tanto ou até pior, pois seus efeitos na formação das subjetividades de quem os
vivenciam são irreparáveis e doem.
Quando os dois atores por meio da competição tentam mostrar quem é o mais
nordestino dentre ambos, essas cenas causam momentos de reflexão. A princípio
provoca em um dos atores uma espécie de crise, pois ele começa a questionar a sua
própria identidade que em relação a do outro e o espelho do outro, ele duvida da sua
“nordestinidade”. Isso também faz a plateia refletir sobre os motivos pelos quais o
personagem sertanejo é mais nordestino do que o outro. O que é ser afinal nordestino?
Há muitos estereótipos negativos em torno da identidade nordestina. O que também
reduz as pessoas nordestinas como se elas fossem todas iguais. O espetáculo traz muito
bem essas questões, além de propor que façamos uma reflexão de nossos próprios
preconceitos.
Após assistirmos à peça de teatro nos questionamos o quanto o preconceito está
enraizado e estruturado, o que também nos fez refletir sobre nossos próprios atos. No
caso, eu era a única nordestina presente na turma, exceto o elenco e a diretora; nós
falamos sobre a identidade nordestina, das especificidades e particularidades de cada
estado, mas que o Sudeste insiste em pensar que somos todos iguais, falamos da Bahia,
das diferenças culturais, das imagens criadas do Nordeste, foi uma conversa regada a
risadas, bem leve, mas sem perder a sua importância e seriedade.
A invenção do Nordeste, é uma obra necessária, principalmente nesse momento
que estamos vivenciando, pois atualmente as pessoas que fazem parte de grupos
historicamente excluídos da sociedade sofrem vários ataques. O ano em que eu assisti
ao espetáculo era um ano de eleição, 2018, e eu me encontrava no epicentro do
bolsonarismo2, no Rio de Janeiro. O cenário já estava denso e sombrio, a energia era
muito pesada. A minha percepção era de que se criou uma atmosfera do medo,
justamente para aprisionar as pessoas, mantê-las em cativeiro, pois fica muito mais fácil
manipular a massa quando ela se sente amedrontada. Ainda duas semanas antes de
assistir ao espetáculo, eu lembro ter lido em uma matéria sobre duas pessoas que
moravam perto de mim terem sido espancadas por serem nordestinas.
A verdade que eu sempre convivi com essas notícias. Desde adolescência
quando fui morar em São Paulo sabia da existência dos skinheads que atacavam pessoas
negras, nordestinas, lbtqiap+, pessoas com deficiência, mulheres, punks e todas as
pessoas que fogem da norma padrão, mas nunca deixei que qualquer resquício de medo
me impedisse de viver, e eu vivia intensamente, da mesma no Rio de Janeiro. Nessa
guerra eu estou na linha de frente, então tenho ciência que meu corpo é político, só o

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O bolsonarismo surgiu no Brasil como uma linha ideológica alinhada à extrema direita representada
pelo atual presidente da República Jair Bolsonaro.
fato dele existir já é uma forma de resistência a toda essa hegemonia, por isso, haverá
dias que eu precisarei descansar, mas parar de lutar jamais. Por isso, ainda sigo e aceito
meus momentos de introspecção, pois eles são necessários para que meu sorriso seja
mais forte, para que meu caminhar continue incomodando, assim como de todas as
pessoas que partilham dessas mesmas batalhas. E A invenção do Nordeste para mim foi
isso: me deu mais força para continuar. Há peças de teatro que mal lembro dos seus
enredos, mas há outras que nos marcam e foi assim com esse espetáculo, ele tocou na
minha alma.
Pois bem, eu abro o e-mail enviado pela professora Anabela Mendes da
disciplina Análise do Espectáculo e aprecio a recomendação de assistir à peça de teatro
Mulher é todo mundo que como citado anteriormente diz que a produção artística
empoderar as mulheres negras de Guiné-Bissau3. Animo-me e excito-me em ir assistir
ao espetáculo, chego com antecedência, como ainda faltavam muito tempo para o início
da peça teatral, fui lanchar até que as portas do teatro se abrissem para que o público
pudesse adentrar e apreciar a produção artística. O espetáculo inicia-se percebo que há
um ator branco e uma atriz branca que são os protagonistas e uma atriz negra, a
princípio penso que eles são portugueses. No entanto, para nunca mais esquecer e de
fato foi algo nunca visto durante a minha história com o teatro: a atriz e o ator brancos e
portugueses interpretarem os principais personagens negros e de origem guineense.
Pensei que fosse apenas uma aliteração artística que tão logo seria explicada nas cenas
seguintes, mas, não, não mesmo, pasmem, a atriz e o ator portugueses e brancos
estavam representando o papel de guineenses negros! Eu gostaria de fato entender esta
opção ideológica que apenas acentua o racismo que há nas terras portuguesas. Uma das
explicações foi que não há profissionais de qualidade negros que pudessem interpretar
as personagens.
Outro ponto que me causou enorme desconforto, além de muitos, mas este foi o
que mais me marcou – há uma cultura na Guiné-Bissau em que as mulheres muito cedo
sofrem mutilação genital, isso foi retratado na peça de teatro, mas pela atriz branca e
portuguesa. Essa cena ficou desconectada do que o próprio espetáculo propõe, não
causou verdade, uma mulher branca falando como foi a experiência de mutilar sua
3
Anteriormente, eu explicitei minha opinião sobre essa armadilha de oferta de empoderamento das
minorias. No entanto, essa questão é muito complexa e o seu desdobramento, inclusive, pode ser tema de
outro estudo.
genitália, não houve conexão, ou seja, a magia do teatro não aconteceu. A justificativa
foi que ela, a atriz e quem trabalha com artes dramáticas devem interpretar qualquer
personagem, mas não convence, principalmente quando a ideia é justamente sobre
empoderamento feminino e negro. A importância desta peça de teatro foi justamente
colocar no centro de discussão o feminismo negro, e pensar qual o caminho e forma
para falar no empoderamento das mulheres negras, Djamila Ribeiro (2017) nos
esclarece sobre isso ao dizer, que:
Escolhemos começar com o feminismo negro para explicitar os
principais conceitos e definitivamente romper com a ideia de que não
se está discutindo projetos. Ainda é muito comum se dizer que o
feminismo negro traz cisões ou separações, quando é justamente o
contrário. Ao nomear as opressões de raça, classe e gênero, entende-se
a necessidade de não hierarquizar opressões, de não criar, como diz
Angela Davis, em Mulheres negras na construção de uma nova utopia,
“primazia de uma opressão em relação a outras”. Pensar em
feminismo negro é justamente romper com a cisão criada numa
sociedade desigual, logo é pensar projetos, novos marcos civilizatórios
para que pensemos em um novo modelo de sociedade. Fora isso, é
também divulgar a produção intelectual de mulheres negras,
colocando-as na condição de sujeitos e seres ativos que,
historicamente, vêm pensando em resistências e reexistências
(RIBEIRO, 2017, p. 10).
Dessa forma, o que se apreende sobre o feminismo interseccional é que seu
conceito consiste em que o feminismo não se limita às mulheres brancas, cisgêneros, de
classe média e sem deficiências físicas e/ou cognitivas. A interseccionalidade foi um
termo utilizado pela professora universitária Kimberlé Crenshaw, em 1989, cujo
significado define-se, como a intersecção das diversas formas de opressões, a exemplo
das questões étnicas-raciais, gênero, classe, pessoas com deficiência, dentre outras.
Sobre isso Kimberlé Crenshaw (1989) explana da seguinte maneira:

A questão é que as mulheres Negras podem experienciar a


discriminação de inúmeras maneiras. A contradição surge quando
supomos que as suas denúncias de exclusão devem ser unidirecionais.
Como analogia, consideremos o tráfego num cruzamento indo e vindo
em todas as quatro direções. Do mesmo modo que o tráfego num
cruzamento, a discriminação pode fluir em todas as direções. Um
acidente num cruzamento pode ser causado por qualquer um dos
carros, viajando em qualquer uma das direções e, às vezes, por todos
eles. Da mesma forma, se uma mulher Negra é prejudicada por estar
na intersecção, a sua lesão pode resultar tanto da discriminação sexual
quanto da discriminação racial. (CRENSHAW, 1989, p. 66).
Ainda sobre o feminismo interseccional Djamila Ribeiro (2017) ao citar diz,
como é preciso aprender a tirar proveito desse lugar de outsider, pois
este espaço proporciona às mulheres negras um ponto de vista especial
por conseguirem enxergar a sociedade através de um espectro mais
amplo. Não à toa, ao pensar conceitos como interseccionalidade e
perspectivas revolucionárias, essas mulheres se propuseram a pensar
novas formas de sociabilidade e não somente nas opressões estruturais
de modo isolado. Seria como dizer que a mulher negra está num não
lugar, mas mais além: consegue observar o quanto esse não lugar pode
ser doloroso e igualmente atenta também no que pode ser um lugar de
potência (RIBEIRO, 2017, p. 27).
Foi com muito pesar e tristeza que escrevi as minhas impressões sobre o
espetáculo Mulher é todo mundo. Mas faço um convite às pessoas que atuam e pensam
o fazer teatral, para que trabalhem dentro de si questões ainda não muito bem
elaboradas das quais são tão delicadas e que retratam pessoas, principalmente no
espectro da marginalização e do preconceito: coloquem mais humanidade sobre o que
realizam. O mundo precisa mais de empatia, e as produções artísticas são extensões do
que somos. Há uma frase de Carl Jung que eu gosto muito e diz o seguinte: “conheça
todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas
outra alma humana.”
Por fim, terminarei esse texto com um discurso de Sojourner Truth, ela foi
batizada com o nome de Isabella Baumfree, mas adotou esta nova denominação, em
1843. Ela nasceu em um cativeiro de Swartekill, na cidade de Nova York e transformou
dor em luta ao tornar-se abolicionista afro-americana, escritora e ativista dos direitos da
mulher. Segue abaixo seu discurso:

“Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve
estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as mulheres do
norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, muito em breve, ficarão em
apuros. Mas em torno de que é toda essa falação? Aquele homem ali diz que é preciso
ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando
atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca
ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o
melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu
capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E
não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando
tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari
cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor
de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? E daí eles falam
sobre aquela coisa que tem na cabeça, como é mesmo que chamam? (uma pessoa da
plateia murmura: “intelecto”). É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os
direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se minha caneca não está cheia nem
pela metade e se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte
não completar minha medida? Então aquele homenzinho vestido de preto diz que as
mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não era
mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De Deus e de
uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele. Se a primeira mulher que Deus
criou foi suficientemente forte para sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então
todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de
cabeça para cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor que os homens
não se metam. Obrigada por me ouvir e agora a velha Sojourner não tem muito mais
coisas para dizer” (RIBEIRO, 2017, p. 13).

Considerações finais

Eu enquanto espectadora crítica e de uma pessoa que além de apreciar a arte


decidi tê-la como objeto de estudo, bem como por também já ter estado no papel de
artista possuo um método que igualmente pode ser considerado como ritual para assistir
a peças de teatro. A princípio escolho os espetáculos pela temática e complemento com
a sinopse, antes de ver não leio nada sobre, não leio críticas, reportagens, resenhas,
absolutamente nada, muito menos busco informações sobre a equipe profissional,
procuro ir isenta e vazia de qualquer informação e/ou impressões acerca do espetáculo.
Eu faço isso, pois o que de início estabeleço é uma relação de alma com a produção
artística, alimento o espírito, ela tem que cumprir sua função principal: me sensibilizar.
Posteriormente, passada essa relação de alma, eu leio os materiais que são
disponibilizados pelo corpo técnico do trabalho, a exemplo de folders, muitos produzem
fotografias, catálogos, resumos da narrativa, e a partir disso vejo quem está por trás de
toda produção: atrizes, atores, a direção, a dramaturgia etc.
Com isso, estruturo os meus pensamentos críticos sobre a obra e após ter
formulado as minhas impressões pesquiso sobre o que os estudiosos e críticos da área
escreveram sobre o trabalho e faço analogias com as minhas percepções. Esse é o
processo ritualístico quando me proponho a ver um espetáculo e outras linguagens
artísticas, mas o primeiro passo é sempre relativo como a obra me atravessa. Em ambas
as produções artísticas o atravessamento foi distinto, enquanto a primeira me fisgou
desde o início, a segunda me causou desconforto. Ao passar pelas primeiras impressões
e seguir para as partes seguintes, A invenção do Nordeste conseguiu garantir o que se
propôs inicialmente que foi fazer com que as pessoas saíssem das suas zonas de
conforto e confrontassem seus próprios preconceitos e desconstruíssem os estereótipos e
estigmas em relação ao Nordeste e as pessoas nordestinas.
Já A mulher é todo mundo traiu o que se propôs a fazer que era falar sobre as
vivências das mulheres africanas em Portugal, com vista ao empoderamento feminino
negro. Mas esse não cumprimento do que foi visado pelo espetáculo descortinou o que
os portugueses dizem que nas terras portuguesas não existe: o racismo. Além de ter
desvelado o racismo estrutural, também estava atrelado a xenofobia, o que configura
que a tentativa de combater à discriminação não foi alcançada, mas abriu espaço para a
discussão, pois como afirma a pesquisadora Lia Vainer Schucman: “a ideia de que o
racismo é um “problema de negros” é uma forma do branco ganhar benefícios a partir
do racismo e se desresponsabilizar deste problema social”. Então quando a branquitude
se mostra aberta para discutir seus próprios preconceitos que esse processo possa iniciar
uma reforma pessoal. Porém, não adianta se propor a lançar ao debate e não se
transformar, negando-se a assumir que há racismo, então a discussão será infrutífera.
Para uma mudança real é necessário que antes de tudo ela parta de nós mesmos. A arte é
o nosso espelho.

REFERÊNCIAS:

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed.
São Paulo: Cortez, 2011.
CRENSHAW, Kimberlé. Desmarginalizando a intersecção entre raça e sexo: uma
crítica feminista negra da doutrina da antidiscriminação, da teoria feminista e da política
antirrascista In Gênero e Performance: textos essenciais vol. II. Maria Manuel Baptista e
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