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Meg Silva1
INTRODUÇÃO
O que A Invenção do Nordeste tem que Mulher é todo mundo não tem?
Por que a peça teatral A Invenção do Nordeste me tocou e fez com que eu refletisse
acerca da padronização da identidade nordestina enquanto Mulher é todo mundo não
conseguiu me sensibilizar e me atravessou com o sentimento de frustração?
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O bolsonarismo surgiu no Brasil como uma linha ideológica alinhada à extrema direita representada
pelo atual presidente da República Jair Bolsonaro.
fato dele existir já é uma forma de resistência a toda essa hegemonia, por isso, haverá
dias que eu precisarei descansar, mas parar de lutar jamais. Por isso, ainda sigo e aceito
meus momentos de introspecção, pois eles são necessários para que meu sorriso seja
mais forte, para que meu caminhar continue incomodando, assim como de todas as
pessoas que partilham dessas mesmas batalhas. E A invenção do Nordeste para mim foi
isso: me deu mais força para continuar. Há peças de teatro que mal lembro dos seus
enredos, mas há outras que nos marcam e foi assim com esse espetáculo, ele tocou na
minha alma.
Pois bem, eu abro o e-mail enviado pela professora Anabela Mendes da
disciplina Análise do Espectáculo e aprecio a recomendação de assistir à peça de teatro
Mulher é todo mundo que como citado anteriormente diz que a produção artística
empoderar as mulheres negras de Guiné-Bissau3. Animo-me e excito-me em ir assistir
ao espetáculo, chego com antecedência, como ainda faltavam muito tempo para o início
da peça teatral, fui lanchar até que as portas do teatro se abrissem para que o público
pudesse adentrar e apreciar a produção artística. O espetáculo inicia-se percebo que há
um ator branco e uma atriz branca que são os protagonistas e uma atriz negra, a
princípio penso que eles são portugueses. No entanto, para nunca mais esquecer e de
fato foi algo nunca visto durante a minha história com o teatro: a atriz e o ator brancos e
portugueses interpretarem os principais personagens negros e de origem guineense.
Pensei que fosse apenas uma aliteração artística que tão logo seria explicada nas cenas
seguintes, mas, não, não mesmo, pasmem, a atriz e o ator portugueses e brancos
estavam representando o papel de guineenses negros! Eu gostaria de fato entender esta
opção ideológica que apenas acentua o racismo que há nas terras portuguesas. Uma das
explicações foi que não há profissionais de qualidade negros que pudessem interpretar
as personagens.
Outro ponto que me causou enorme desconforto, além de muitos, mas este foi o
que mais me marcou – há uma cultura na Guiné-Bissau em que as mulheres muito cedo
sofrem mutilação genital, isso foi retratado na peça de teatro, mas pela atriz branca e
portuguesa. Essa cena ficou desconectada do que o próprio espetáculo propõe, não
causou verdade, uma mulher branca falando como foi a experiência de mutilar sua
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Anteriormente, eu explicitei minha opinião sobre essa armadilha de oferta de empoderamento das
minorias. No entanto, essa questão é muito complexa e o seu desdobramento, inclusive, pode ser tema de
outro estudo.
genitália, não houve conexão, ou seja, a magia do teatro não aconteceu. A justificativa
foi que ela, a atriz e quem trabalha com artes dramáticas devem interpretar qualquer
personagem, mas não convence, principalmente quando a ideia é justamente sobre
empoderamento feminino e negro. A importância desta peça de teatro foi justamente
colocar no centro de discussão o feminismo negro, e pensar qual o caminho e forma
para falar no empoderamento das mulheres negras, Djamila Ribeiro (2017) nos
esclarece sobre isso ao dizer, que:
Escolhemos começar com o feminismo negro para explicitar os
principais conceitos e definitivamente romper com a ideia de que não
se está discutindo projetos. Ainda é muito comum se dizer que o
feminismo negro traz cisões ou separações, quando é justamente o
contrário. Ao nomear as opressões de raça, classe e gênero, entende-se
a necessidade de não hierarquizar opressões, de não criar, como diz
Angela Davis, em Mulheres negras na construção de uma nova utopia,
“primazia de uma opressão em relação a outras”. Pensar em
feminismo negro é justamente romper com a cisão criada numa
sociedade desigual, logo é pensar projetos, novos marcos civilizatórios
para que pensemos em um novo modelo de sociedade. Fora isso, é
também divulgar a produção intelectual de mulheres negras,
colocando-as na condição de sujeitos e seres ativos que,
historicamente, vêm pensando em resistências e reexistências
(RIBEIRO, 2017, p. 10).
Dessa forma, o que se apreende sobre o feminismo interseccional é que seu
conceito consiste em que o feminismo não se limita às mulheres brancas, cisgêneros, de
classe média e sem deficiências físicas e/ou cognitivas. A interseccionalidade foi um
termo utilizado pela professora universitária Kimberlé Crenshaw, em 1989, cujo
significado define-se, como a intersecção das diversas formas de opressões, a exemplo
das questões étnicas-raciais, gênero, classe, pessoas com deficiência, dentre outras.
Sobre isso Kimberlé Crenshaw (1989) explana da seguinte maneira:
“Bem, minha gente, quando existe tamanha algazarra é que alguma coisa deve
estar fora da ordem. Penso que espremidos entre os negros do sul e as mulheres do
norte, todos eles falando sobre direitos, os homens brancos, muito em breve, ficarão em
apuros. Mas em torno de que é toda essa falação? Aquele homem ali diz que é preciso
ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando
atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca
ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o
melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu
capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E
não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando
tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari
cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor
de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? E daí eles falam
sobre aquela coisa que tem na cabeça, como é mesmo que chamam? (uma pessoa da
plateia murmura: “intelecto”). É isto aí, meu bem. O que é que isto tem a ver com os
direitos das mulheres ou os direitos dos negros? Se minha caneca não está cheia nem
pela metade e se sua caneca está quase toda cheia, não seria mesquinho de sua parte
não completar minha medida? Então aquele homenzinho vestido de preto diz que as
mulheres não podem ter tantos direitos quanto os homens porque Cristo não era
mulher! Mas de onde é que vem seu Cristo? De onde foi que Cristo veio? De Deus e de
uma mulher! O homem não teve nada a ver com Ele. Se a primeira mulher que Deus
criou foi suficientemente forte para sozinha, virar o mundo de cabeça para baixo, então
todas as mulheres, juntas, conseguirão mudar a situação e pôr novamente o mundo de
cabeça para cima! E agora elas estão pedindo para fazer isto. É melhor que os homens
não se metam. Obrigada por me ouvir e agora a velha Sojourner não tem muito mais
coisas para dizer” (RIBEIRO, 2017, p. 13).
Considerações finais
REFERÊNCIAS:
ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. 5. ed.
São Paulo: Cortez, 2011.
CRENSHAW, Kimberlé. Desmarginalizando a intersecção entre raça e sexo: uma
crítica feminista negra da doutrina da antidiscriminação, da teoria feminista e da política
antirrascista In Gênero e Performance: textos essenciais vol. II. Maria Manuel Baptista e
Fernanda de Castro (org.). Coimbra: Grácio Editor, 2019.
FONTES, H. A invenção do Nordeste, descaminhos sísmicos de uma peça documental
do Grupo Carmin. Revista Observatório Itaú Cultural. n. 25, mai./nov. 2019.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Tradução Marta Lança. Editora Antígona:
Lisboa, 2014.
RIBEIRO, D. O que é: lugar de fala?. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017.
WANDERLEY, Hévilla; Luciana Aliaga. Os intelectuais e a questão nordestina.
AGENDA POLÍTICA, v. 9, p. 42-66-66, 2021.