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Resumo
Palavras-chave
Corpo do trabalho
1. Introdução
2. Desenvolvimento
O cinema brasileiro tem retratado o Nordeste do país desde a década de 1940.
Durante as décadas de 60 e 70, o Cinema Novo abraçou a temática nordestina,
apresentando narrativas sobre as secas do sertão e os nordestinos trabalhado res que
buscam uma vida digna, como em Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos e
“Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) de Glauber Rocha.
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PAIVA, Carla Conceição da Silva. A virtude como um signo primordial da nordestinidade: análise
das representações da identidade social nordestina nos filmes O Pagador de Promessas (1962) e
Sargento Getúlio (1983). Salvador: Universidade do Estado da Bahia, 2006.
discriminação econômica e política. O cinema brasileiro segue uma tendência da
literatura brasileira de firmar o homem nordestino sobretudo como sertanejo, num
contexto onde o coronelismo, a fome, a virtude, a mistura de religiosidade nordestina
como o catolicismo e o candomblé estão sempre presentes.
Nesse viés, surge a necessidade de explorar de que maneira filmes produzidos por
não nordestinos perpetuam esses estereótipos que atuam no imaginário dos
brasileiros, realizando um comparativo em relação a filmes de diretores nordestinos.
Dentre as diversas obras cinematográficas que tematizam o Nordeste, a primeira
escolha para análise é “Gonzaga – de Pai pra Filho” (2012), do diretor Breno Silveira,
natural de Brasília, por se tratar de uma figura tão representativa na construção imaginária
da região: Luiz Gonzaga.
O filme narra a história do relacionamento conflituoso entre Luiz Gonzaga (Land Vieira/
Nivaldo Expedito/ Adélio Lima), mais conhecido como o Rei do Baião, e seu filho,
Gonzaguinha (Julio Andrade), também um artista importante, mas que nunca teve seu
talento reconhecido pelo pai. Gonzaguinha era órfão de mãe e foi criado no Morro de São
Carlos, no Rio de Janeiro, pelos padrinhos Dina (Silvia Buarque) e Xavier (Luciano Quirino),
enquanto Gonzagão saía em turnê pela estrada. O pai teve impasses com demonstrações de
afeto devido a uma desconfiança sobre a paternidade do filho, e ainda, sua carreira
musical ocupava o maior espaço em sua vida. Gonzaguinha então cresceu revoltado com
o pai devido à ausência e aos embates entre eles, frutos de seus temperamentos fortes. No
início da trama, Gonzaguinha é procurado por sua madrasta Helena (Magdale Alves), que lhe
conta que seu o pai precisa dele. Gonzaguinha então viaja para Exu, a terra natal de Luiz
Gonzaga, mesmo hesitante. Nesse momento, a ideia de um acerto de contas entre eles surge.
Ao perceber a revolta do filho, Gonzagão começa a relatar sua história a ele, que não sabe nada
sobre o genitor. Gonzaguinha registra todo o relato por meio de um gravador, capturando
diversos desabafos e lembranças. A dupla – em meio a desentendimentos – traça uma
retrospectiva de suas vidas, marcadas por canções populares que contextualizam a narrativa.
O Sertão de “Gonzaga”
Baseada nas músicas de Luiz Gonzaga, a temática do sertão está marcadamente presente na
obra, visto que as letras dessas canções exprimem a ideia de partida do sertão e a saudade da
terra natal (Lá no meu pé de serra/ Deixei ficar meu coração/ Ai, que saudades tenho/ Eu
vou voltar pro meu Sertão4, canta Gonzaga). Com isso, entendemos que a partida do
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Canção “No Meu Pé de Serra” (1972), de Luíz Gonzaga.
imigrante nordestino que foge de uma natureza hostil de seu sertão natal é uma imagem
existente no imaginário do brasileiro. Na obra, um personagem idealizado manifesta um
sentimento agudo de saudades do ambiente rural em que viveu, enquanto o som da
sanfona e a melancolia dos acordes do fole potencializam essas percepções de tristeza e
saudade, assumindo gradativamente uma função identitária central no processo de
invenção de uma sonoridade nordestina. O elemento da música faz uma clara associação
entre o homem e a natureza, como se estes não se separassem. O sentimento de Gonzaga
é de apreço pela sua terra, de pertencimento e de conexão.
Figura 1 – Gonzaga tocando
Fonte: Globoplay
A imersão constante de Gonzaga em seu passado e memórias corroboram a ideia de
Nordeste como um espaço de atraso. A região é retratada com imutável, um espaço sem
modernidade e extremamente pobre.
Figura 2 – O sertão em Gonzaga, de Pai para Filho
Fonte: Globoplay
Ainda, fomenta-se o conceito de um ambiente tradicional, de preservação à ordem
patriarcal e as relações comunitárias. Durval (2001), em “A invenção do Nordeste e outras
artes”, defende que as canções de Gonzaga operam com a dicotomia entre o espaço do
Sertão e o das cidades. O Sertão é o lugar de pureza, dos meninos brincando de pipa e das
festas juninas, da tradição, ao mesmo tempo que é um lugar preso ao tempo cíclico da
natureza, que recusa mudanças mesmo com os avanços de um mundo globalizado, que é
bárbaro e pobre, que é de onde as pessoas partem em busca de melhores condições de
vida. Inclusive, o personagem Gonzaga no filme, assim como outros vários sertanejos que
fugiram do flagelo da seca, foi para o Sul em busca de uma nova perspectiva. Em uma
das cenas, o cantor relata: “Fui para o Rio de Janeiro tentar a sorte”. Viajou com a ilusão
de que alcançaria uma prosperidade imediata ao chegar no Sul, crença recorrente
relacionada ao chegar na “cidade grande”. Depois de um tempo, sente-se perdido e
frustrado: “Eu achando que ia voltar com o bolso forrado pro meu Pernambuco...”, ele
reclama.
O Homem de “Gonzaga”
No processo de estereotipia do homem nordestino, esta personalidade foi eleita como um
homem rude, embrutecido pela natureza, viril para resistir à seca e capaz de enfrentar
todo tipo de dificuldade.
Um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos;
um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise; um ser viril
[...] o nordestino é inventado como um tipo regional, como figura que
seria capaz de se contrapor às transformações históricas em curso desde
o começo do século, vistas como feminizadoras da sociedade e que
levavam a região ao declínio. (ALBUQUERQUE JR, 2003, p.162-163)
Partindo disto, alguns elementos narrativos do cinema revelam o nordestino com essa
personalidade forte, bruta e viril, cuja masculinidade é encarada como sinônimo de força.
Em uma das cenas de Gonzaga – de Pai pra Filho, podemos perceber um patriarcalismo
forte quando Luiz não deixa sua primeira mulher trabalhar. Ele se vê como o homem da
casa, que a ordena a mulher a ficar cuidando do lar e se coloca como único responsável
pelo sustento da família. Existe um contraste entre o casal, pois ela, nascida e criada no
Rio de Janeiro, teria uma visão mais progressista e moderna que a de Gonzaga, homem
sertanejo e antiquado.
Em outra cena, a mãe de Luiz diz que não quer “filho tocador”, e sim que ele “ajude na
enxada” para garantir o sustento da família. Mais uma vez, o nordestino é reduzido ao
rótulo do homem másculo, provedor. O trabalho braçal é mais valorizado que as
atividades culturais, que são vistas como “coisa de vagabundo”. Reforça-se ainda mais o
mito do Nordeste como local atrasado, isolado do contexto global, que prefere manter as
tradições a absorver as inovações.
Agora, em contraposição ao movimento de filmes com temática nordestina produzido por
não nordestinos, iremos analisar Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro, nascido e criado
em Pernambuco. Trata-se da história de Iremar (Juliano Cazarré), um vaqueiro de curral
do sertão de Pernambuco que produz roupas e tem o sonho de ser estilista. Intrigante que
somente com essa única ideia sintetizadora, já é possível visualizar um cenário que
provavelmente vai chocar-se com tudo que já foi observado no filme de Gonzaga. Iremar
trabalha de vaquejada em vaquejada lidando com os bois e preparando-os para os
espetáculos; para isso, viaja de caminhão o lado de Galega (Maeve Jinkings), sua filha
Geise (Samya de Lavor) e seus outros companheiros vaqueiros. Por onde passa Iremar
recolhe revistas, panos e restos de manequins e desenha modelos de roupas, já que sua
grande vontade é largar tudo para iniciar uma carreira como estilista no Pólo de
Confecções do Agreste.
Fonte: Netflix
Logo na primeira cena do filme, Iremar é visto recolhendo um manequim em meio ao
lamaçal da vaquejada. O que choca é a figura do sertanejo comumente lido como rústico
e rural sendo associado à moda, um conceito que no imaginário popular está tão distante
desse público – e muito mais próximo ao feminino. Então, o sertão nesse contexto existe
como um plano de fundo, uma mera condição, um aspecto secundário.
Figura 4 – Iremar coletando o manequim
Fonte: Netflix
Ainda, não existe um sentimento de afeto e/ou vínculo de Iremar para com o sertão. Ele
vive alheio a esta circustância e parece trabalhar com vaquejadas porque foi submetido
ao labor, em detrimento às condições de vida que teve. Sua paixão não é por sua terra, e
sim nos sonhos que alimenta. Ademais, a vontade do vaqueiro não é de se mudar do sertão
em busca de prosperidade no sudeste como foi a de Gonzaga, mas sim de trabalhar no
próprio Pernambuco em um de seus pólos de confecções. Esta escolha do diretor valoriza
a região como potência econômica.
3. Considerações Finais
O presente trabalho considerou o histórico brasileiro sobre a percepção da região
Nordeste, para fins de análise. Percebeu-se que foram criadas, ao longo do tempo,
construções imagético-discursas a respeito do território – principalmente o que
corresponde ao sertão – e do indivíduo do nordeste, geralmente vinculado à imagem do
homem. Entendemos que a simbolização do Nordeste de forma pejorativa, como o lugar
do atraso, da violência, do barbarismo e da miséria, foi um processo elaborado e
inventado. Desta forma, o questionamento sobre de que forma a disseminação desses
pressupostos é realizada no cinema brasileiro é muito válida, considerando os signos
presentes nas obras. Uma vez que esses estereótipos relacionados a signos de
nordestinidade foram estabelicidos gradativamente por pessoas não nordestinas, surgiu a
necessidade da análise de uma obra com temática nordestina produzida por este público,
em comparação a uma obra com a mesma temática, mas dirigido por uma pessoa
nordestina.
Os longa-metragens estudados foram Gonzaga – de Pai para Filho, do diretor braziliense
Breno Silveira, e Boi Neon, do penambucano Gabriel Mascaro. O primeiro porque traduz
explicitamente a propagação de imagens e visões acerca da identidade nordestina atrelada
à tendência de perceber o semiárido através do prisma da pobreza, seca e fome. As falas
de Gonzaga evidenciam o conceito de sertão que vive no imaginário popular, ao mesmo
que confirma os estereótipos fincados sobre o homem nordestino patriarcal, másculo e
rústico. Em contrapartida, Boi Neon foi escolhido como objeto de análise por seu caráter
subsersivo, que quebra paradigmas e propõe reflexões. O filme vai contra a inúmeras
idealizações enraizadas no imaginário popular sobre o Nordeste, o nordestino e o gênero
masculino. Mascaro induz o espectador a questionar rótulos, pois estes são reducionistas
por natureza. Observa-se, então, que existe uma movimentação por parte do cineasta
nordestino de compor novas representações acerca do Nordeste no cinema brasileiro,
fugindo da discriminação econômica, política e social que afligem a região. Ao mesmo
tempo, uma obra cinematográfica produzida por um não nordestino aparenta reforçar
preconcepções e estereótipos tão inadequados para serem atrelados à potência que é o
Nordeste. Citando Euclides da Cunha no livro Os Sertões, “o sertanejo é, antes de tudo,
um forte”.
REFERÊNCIAS
CASTRO, I. E. . Visibilidade da Região e do Regionalismo. A escala brasileira em
questão. In: Seminário internacional: Integração, região e regionalismo., 1994, São Paulo.
Integração, região e regionalismo., 1992. p. 155-169.
BOI NEON. Direção: Gabriel Mascaro. Produção: Desvia, Malbicho Cine, Viking Film
e Canal Brasil. Brasil: Imovision, 2015. 1 DVD. (101 min).
GONZAGA, DE PAI PARA FILHO. Direção: Breno Silveira. Produção: Globo Filmes.
Brasil: Warner Bros, Pictures, Downtown Filmes, 2012. 1 DVD. (120 min.)