Você está na página 1de 11

A Representação da Figura do Nordestino e do Espaço Sertão em

Filmes Brasileiros: Uma Análise Sobre as Discrepâncias Entre


“Gonzaga, de Pai para Filho” e “Boi Neon”1
¹Trabalho apresentado para fins de creditação na disciplina Temas selecionados em cinema brasileiro, do curso de
Comunicação Social da UESC.

Brenda Evaristo Reis Santos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Resumo

Este estudo objetiva estimular a reflexão sobre a construção das representações


nordestinas identificadas no cinema brasileiro, considerando crenças reducionistas
que foram perpetuadas enquanto identidade cultural no imaginário popular. Através da
análise fílmica e sociológica do longa-metragem “Gonzaga, de Pai pra Filho” (2012), do
diretor braziliense Breno Silveira, e de “Boi Neon” (2015), do pernambucano Gabriel
Mascaro, o presente artigo pretende analisar se os estereótipos propagados sobre o sertão
e a figura nordestina por não nordestinos (que definiram a identidade deste povo durante
o século XX) ainda são reproduzidos na produção cinematográfica de cineastas não
nordestinos. Ainda, busca-se analisar como a temática é abordada numa obra dirigida, em
contrapartida, por um habitante do Nordeste. Para tanto, se fez necessária uma pesquisa
bibliográfica e a observação empírica dos filmes.

Palavras-chave

Cinema; Nordeste; nordestino; estereótipos;

Corpo do trabalho

1. Introdução

O primeiro registro que encontramos do termo “nordestino” vem de 1919, no Diário de


Pernambuco, quando o jornal se referiu ao deputado Ildefonso Albano, do Ceará.
Inicialmente utilizada para nomear habitantes de uma área compreendida entre Alagoas e
Ceará e ocasionalmente de Piauí e Maranhão, a nomenclatura foi ganhando força ao longo
do tempo, entrelaçando-se a uma identidade regional que foi se afirmando de forma muito
lenta. Pelo menos até os anos 30, outras designações também eram comuns, como
paroraras ou arigós, sertanejos, brejeiros, matutos e praieiros, termos que revelam as
associações e pressupostos que já eram vinculados ao perfil dos habitantes da região
Nordeste do Brasil. O professor Iná Elias Castro (1994, p. 164) em “Visibilidade da
Região e do Regionalismo” explica que no início, a noção de regionalismo no Brasil
estava ligada a questões provincianas e locais, carregando frequentemente fagulhas de
separatismo. Ele foi marcado sobretudo por seu viés naturalista que considerava as
diferenças entre os locais do país como reflexo da natureza, do meio e da raça. Nessa
perspectiva, as variações de clima, de composição racial do povo, de vegetação,
justificavam as diferenças de hábitos, de práticas sociais e políticas. Neste primeiro
instante, o discurso regionalista estabeleceu um corte muito abrangente, dividindo o país
basicamente em “Norte” e “Sul”.
No entanto, com a regionalização do mercado de trabalho com o fim da escravidão, o
início da industrialização e o crescimento da migração nordestina para o Sul e Sudeste do
país (principalmente São Paulo) no fim da década de 1930, o Brasil ganhou uma nova
feição e formou-se um cenário favorável para a discussão de questões como identidade,
raça e caráter nacional. Para Durval Albuquerque Jr.2, a região Nordeste que emerge na
“paisagem imaginária” do país nas primeiras décadas do século XX foi uma “elaboração”,
uma “invenção”: “[...] o Nordeste quase sempre não é o Nordeste tal como ele é, mas é o
Nordeste tal como foi nordestinizado.” (DURVAL, p. 311). O processo – que não se deu
de forma ordenada – para que a região Nordeste se constituísse numa unidade imagética
e discursiva foi pautado por inúmeras práticas, discursos e imagens “nordestinizantes”
que surgiram de maneira dispersa, influenciados pelas circunstâncias históricas e
econômicas do país. Dentre estas, podemos citar algumas que foram determinantes: a
decadência da economia açucareira nordestina; a seca de 1877-1879 que ganhou
repercussão nacional através da imprensa; a relação de poder e os conflitos entre Norte-
Sul; e a condução administrativa excludente do Estado em relação ao Norte e Nordeste,
no que diz respeito a investimentos, a política fiscal, a construção de obras públicas e a
política de mão-de-obra.
Todos esses acontecimentos trouxeram à tona a idealização do sertão nordestino
marginalizado e a identidade regional nordestina – determinadas características e
estigmas morais, culturais, simbólicos e sexualizantes, geralmente associadas à figura
masculina – que começa a ser assumida e se generaliza. O exercício da esteriotipia do
nordestino associonado ao contexto socio-econônomico da região relaciona atributos
negativos ao ruralismo e cria estigmas como: o nordestimo tabaréu, violento, fanático,
2
Durval Albuquerque Júnior é graduado em Licenciatura Plena em História pela Universidade Estadual da Paraíba
(1982), mestre em História pela Universidade Estadual de Campinas (1988) e doutor em História pela Universidade
Estadual de Campinas (1994). Atualmente é professor permanente do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Pernambuco, professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É autor do
livro “A Invenção do Nordeste e suas Artes”.
rude, sofrido, messiânico, incapaz, miserável, preguiçoso, que nascem da necessidade do
Sul – historicamente racista e xenofóbico – se afirmar como educado, moderno, capaz,
rico, produtivo e racional, pela diferença. Por sua vez, o sertão é visto como um lugar
atrasado, miserável e pobre em ecossistemas. Para Valdênio Freitas Meneses, doutor em
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRJ), “esse imaginário do Nordeste como região de
seca, fome, retirantes, coronelismo e messianismo foi amplamente difundido pela
imprensa do Sul do país. Esses elementos estão vivos até hoje”, lembra.
Todas essas construções imagéticas sobre o Nordeste e os traços sociais e naturais
característicos da região somados à existência de figuras emblemáticas nordestinas
marcadas na história tornaram possível que o nordestino e o sertão fossem amplamente
trabalhados, referenciados e representados na arte, na música, na literatura, no teatro, na
televisão, no rádio e no cinema. Partindo desse ponto e considerando a construção assídua
de estereótipos xenofóbicos por todo o país, o presente artigo busca fazer uma análise de
como esse perfil social do nordestino é simbolizado e como se dá a representação do
sertão nordestino em filmes brasileiros, através da observação e comparação entre um
filme de autoria de não nordestinos: Gonzaga, de Pai para Filho (2012) e uma obra de
autoria nordestina: Boi Neon (2015).

2. Desenvolvimento
O cinema brasileiro tem retratado o Nordeste do país desde a década de 1940.
Durante as décadas de 60 e 70, o Cinema Novo abraçou a temática nordestina,
apresentando narrativas sobre as secas do sertão e os nordestinos trabalhado res que
buscam uma vida digna, como em Vidas Secas (1963) de Nelson Pereira dos Santos e
“Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) de Glauber Rocha.

Ao longo do tempo, o nordestino aparece muitas vezes associado a signos como a


seca e a pobreza no cinema nacional. Nas telenovelas, é comum nos depararmos
personagens que imitam o sotaque nordestino forçado e acentuado e que utilizam um
conjunto de gírias pouco usuais. Muitas vezes, o nordestino também é apresentado
como um homem forte e corajoso no audiovisual, capaz de enfrentar inúmeras
mazelas. A pesquisadora Carla Paiva 3 afirma que os filmes categorizam uma
pluralidade de imagens, marcadas e reconhecidas por estereótipos fincados na

3
PAIVA, Carla Conceição da Silva. A virtude como um signo primordial da nordestinidade: análise
das representações da identidade social nordestina nos filmes O Pagador de Promessas (1962) e
Sargento Getúlio (1983). Salvador: Universidade do Estado da Bahia, 2006.
discriminação econômica e política. O cinema brasileiro segue uma tendência da
literatura brasileira de firmar o homem nordestino sobretudo como sertanejo, num
contexto onde o coronelismo, a fome, a virtude, a mistura de religiosidade nordestina
como o catolicismo e o candomblé estão sempre presentes.
Nesse viés, surge a necessidade de explorar de que maneira filmes produzidos por
não nordestinos perpetuam esses estereótipos que atuam no imaginário dos
brasileiros, realizando um comparativo em relação a filmes de diretores nordestinos.
Dentre as diversas obras cinematográficas que tematizam o Nordeste, a primeira
escolha para análise é “Gonzaga – de Pai pra Filho” (2012), do diretor Breno Silveira,
natural de Brasília, por se tratar de uma figura tão representativa na construção imaginária
da região: Luiz Gonzaga.
O filme narra a história do relacionamento conflituoso entre Luiz Gonzaga (Land Vieira/
Nivaldo Expedito/ Adélio Lima), mais conhecido como o Rei do Baião, e seu filho,
Gonzaguinha (Julio Andrade), também um artista importante, mas que nunca teve seu
talento reconhecido pelo pai. Gonzaguinha era órfão de mãe e foi criado no Morro de São
Carlos, no Rio de Janeiro, pelos padrinhos Dina (Silvia Buarque) e Xavier (Luciano Quirino),
enquanto Gonzagão saía em turnê pela estrada. O pai teve impasses com demonstrações de
afeto devido a uma desconfiança sobre a paternidade do filho, e ainda, sua carreira
musical ocupava o maior espaço em sua vida. Gonzaguinha então cresceu revoltado com
o pai devido à ausência e aos embates entre eles, frutos de seus temperamentos fortes. No
início da trama, Gonzaguinha é procurado por sua madrasta Helena (Magdale Alves), que lhe
conta que seu o pai precisa dele. Gonzaguinha então viaja para Exu, a terra natal de Luiz
Gonzaga, mesmo hesitante. Nesse momento, a ideia de um acerto de contas entre eles surge.
Ao perceber a revolta do filho, Gonzagão começa a relatar sua história a ele, que não sabe nada
sobre o genitor. Gonzaguinha registra todo o relato por meio de um gravador, capturando
diversos desabafos e lembranças. A dupla – em meio a desentendimentos – traça uma
retrospectiva de suas vidas, marcadas por canções populares que contextualizam a narrativa.

O Sertão de “Gonzaga”
Baseada nas músicas de Luiz Gonzaga, a temática do sertão está marcadamente presente na
obra, visto que as letras dessas canções exprimem a ideia de partida do sertão e a saudade da
terra natal (Lá no meu pé de serra/ Deixei ficar meu coração/ Ai, que saudades tenho/ Eu
vou voltar pro meu Sertão4, canta Gonzaga). Com isso, entendemos que a partida do

4
Canção “No Meu Pé de Serra” (1972), de Luíz Gonzaga.
imigrante nordestino que foge de uma natureza hostil de seu sertão natal é uma imagem
existente no imaginário do brasileiro. Na obra, um personagem idealizado manifesta um
sentimento agudo de saudades do ambiente rural em que viveu, enquanto o som da
sanfona e a melancolia dos acordes do fole potencializam essas percepções de tristeza e
saudade, assumindo gradativamente uma função identitária central no processo de
invenção de uma sonoridade nordestina. O elemento da música faz uma clara associação
entre o homem e a natureza, como se estes não se separassem. O sentimento de Gonzaga
é de apreço pela sua terra, de pertencimento e de conexão.
Figura 1 – Gonzaga tocando

Fonte: Globoplay
A imersão constante de Gonzaga em seu passado e memórias corroboram a ideia de
Nordeste como um espaço de atraso. A região é retratada com imutável, um espaço sem
modernidade e extremamente pobre.
Figura 2 – O sertão em Gonzaga, de Pai para Filho

Fonte: Globoplay
Ainda, fomenta-se o conceito de um ambiente tradicional, de preservação à ordem
patriarcal e as relações comunitárias. Durval (2001), em “A invenção do Nordeste e outras
artes”, defende que as canções de Gonzaga operam com a dicotomia entre o espaço do
Sertão e o das cidades. O Sertão é o lugar de pureza, dos meninos brincando de pipa e das
festas juninas, da tradição, ao mesmo tempo que é um lugar preso ao tempo cíclico da
natureza, que recusa mudanças mesmo com os avanços de um mundo globalizado, que é
bárbaro e pobre, que é de onde as pessoas partem em busca de melhores condições de
vida. Inclusive, o personagem Gonzaga no filme, assim como outros vários sertanejos que
fugiram do flagelo da seca, foi para o Sul em busca de uma nova perspectiva. Em uma
das cenas, o cantor relata: “Fui para o Rio de Janeiro tentar a sorte”. Viajou com a ilusão
de que alcançaria uma prosperidade imediata ao chegar no Sul, crença recorrente
relacionada ao chegar na “cidade grande”. Depois de um tempo, sente-se perdido e
frustrado: “Eu achando que ia voltar com o bolso forrado pro meu Pernambuco...”, ele
reclama.

O Homem de “Gonzaga”
No processo de estereotipia do homem nordestino, esta personalidade foi eleita como um
homem rude, embrutecido pela natureza, viril para resistir à seca e capaz de enfrentar
todo tipo de dificuldade.
Um homem de costumes conservadores, rústicos, ásperos, masculinos;
um macho capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise; um ser viril
[...] o nordestino é inventado como um tipo regional, como figura que
seria capaz de se contrapor às transformações históricas em curso desde
o começo do século, vistas como feminizadoras da sociedade e que
levavam a região ao declínio. (ALBUQUERQUE JR, 2003, p.162-163)

Partindo disto, alguns elementos narrativos do cinema revelam o nordestino com essa
personalidade forte, bruta e viril, cuja masculinidade é encarada como sinônimo de força.
Em uma das cenas de Gonzaga – de Pai pra Filho, podemos perceber um patriarcalismo
forte quando Luiz não deixa sua primeira mulher trabalhar. Ele se vê como o homem da
casa, que a ordena a mulher a ficar cuidando do lar e se coloca como único responsável
pelo sustento da família. Existe um contraste entre o casal, pois ela, nascida e criada no
Rio de Janeiro, teria uma visão mais progressista e moderna que a de Gonzaga, homem
sertanejo e antiquado.
Em outra cena, a mãe de Luiz diz que não quer “filho tocador”, e sim que ele “ajude na
enxada” para garantir o sustento da família. Mais uma vez, o nordestino é reduzido ao
rótulo do homem másculo, provedor. O trabalho braçal é mais valorizado que as
atividades culturais, que são vistas como “coisa de vagabundo”. Reforça-se ainda mais o
mito do Nordeste como local atrasado, isolado do contexto global, que prefere manter as
tradições a absorver as inovações.
Agora, em contraposição ao movimento de filmes com temática nordestina produzido por
não nordestinos, iremos analisar Boi Neon (2015), de Gabriel Mascaro, nascido e criado
em Pernambuco. Trata-se da história de Iremar (Juliano Cazarré), um vaqueiro de curral
do sertão de Pernambuco que produz roupas e tem o sonho de ser estilista. Intrigante que
somente com essa única ideia sintetizadora, já é possível visualizar um cenário que
provavelmente vai chocar-se com tudo que já foi observado no filme de Gonzaga. Iremar
trabalha de vaquejada em vaquejada lidando com os bois e preparando-os para os
espetáculos; para isso, viaja de caminhão o lado de Galega (Maeve Jinkings), sua filha
Geise (Samya de Lavor) e seus outros companheiros vaqueiros. Por onde passa Iremar
recolhe revistas, panos e restos de manequins e desenha modelos de roupas, já que sua
grande vontade é largar tudo para iniciar uma carreira como estilista no Pólo de
Confecções do Agreste.

O Sertão de “Boi Neon”


Enquanto a trama acontece, o cenário ao fundo é o sertão nordestino – porém, não
representado como o lugar árido, da seca, pobreza e miséria, e sim meramente como um
espaço rural. O foco não é no ambiente, mas sim nos personagens, e mesmo nas poucas
cenas em que a paisagem é contemplada em planos abertos, a imagem exibida é de uma
natureza verde, rica e vasta.
Figura 3 – O sertão em Boi Neon

Fonte: Netflix
Logo na primeira cena do filme, Iremar é visto recolhendo um manequim em meio ao
lamaçal da vaquejada. O que choca é a figura do sertanejo comumente lido como rústico
e rural sendo associado à moda, um conceito que no imaginário popular está tão distante
desse público – e muito mais próximo ao feminino. Então, o sertão nesse contexto existe
como um plano de fundo, uma mera condição, um aspecto secundário.
Figura 4 – Iremar coletando o manequim

Fonte: Netflix
Ainda, não existe um sentimento de afeto e/ou vínculo de Iremar para com o sertão. Ele
vive alheio a esta circustância e parece trabalhar com vaquejadas porque foi submetido
ao labor, em detrimento às condições de vida que teve. Sua paixão não é por sua terra, e
sim nos sonhos que alimenta. Ademais, a vontade do vaqueiro não é de se mudar do sertão
em busca de prosperidade no sudeste como foi a de Gonzaga, mas sim de trabalhar no
próprio Pernambuco em um de seus pólos de confecções. Esta escolha do diretor valoriza
a região como potência econômica.

O Homem de “Boi Neon”


A figura de Iremar engloba muitas subjetividades. É palpável a estranheza proposital que
o Gabriel Mascaro se propõe a lançar no espectador quando relaciona um sertanejo
vaqueiro com a moda. Seus sonhos não representam o estereótipo do homem nordestino
másculo, grosseiro, inculto e rústico. Além disso, a personagem feminina em maior
evidência no filme, Galega, trabalha como caminhoneira (profissão muito associada ao
universo masculino) ao mesmo tempo que performa um espetáculo sexy em boates, é mãe
e explora a sexualidade dela como qualquer outra mulher e está longe dos papéis
domésticos geralmente ligados a elas – enquanto a loira ceonserta o motor do caminhão,
por exemplo, Iremar lava e pendura as roupas. Nesse sentido, observamos uma quebra de
papéis de gênero – ou, nas próprias palavras do diretor, existe uma “dilatação de gênero”,
em que a pessoa é separada dos padrões que a sociedade designa para o homem e para a
mulher. Isto fica claro quando o jovem Júnior (Vinícius de Oliveira) é inserido na
narrativa, tornando-se parte do time de vaqueiros. Júnior também tem comportamentos
“estranhos” para uma pessoa como ele. Sua preocupação com a aparência é extrema: usa
aparelho nos dentes e alisa os cabelos com cuidado, todos os dias, enquanto se admira no
espelho. Novamente, os rótulos masculinos e nordestinos são excluídos, permitindo o
espectador a refletir sobre a complexidade da vivência humana.
Desafiando outra convenção, Iremar não é homossexual: isso fica nítido durante a cena
de sexo no final do filme, entre Iremar e seu interesse romântico, Geise.
O ambiente de Boi Neon é um ambiente em que coexistem a delicadeza e a brutalidade.
Criei um personagem ficcional que acumula esta dupla jornada que
mistura no ofício a força e delicadeza, a bravura e a sensibilidade, a
violência e o afeto. No filme proponho não necessariamente a inversão
de gênero, mas a dilatação destas representações. A partir da
ritualização do ordinário, tento não fazer destes deslocamentos de
gênero algo sensacionalista, mas sim normalizar essas curvas.
(MASCARO, 2016)

Desta forma, o público é levado a questionar as convenções difundidas em outros filmes


que representam o nordestino, identificando que existem nuances e especificidades que
os padrões e estereótipos historicamente apagam. O filme mostra que as pessoas são
muito mais complexas do que parecem ser, e que reduzir um ser humano a um rótulo é
empobrecer nossa riqueza e potencial.

3. Considerações Finais
O presente trabalho considerou o histórico brasileiro sobre a percepção da região
Nordeste, para fins de análise. Percebeu-se que foram criadas, ao longo do tempo,
construções imagético-discursas a respeito do território – principalmente o que
corresponde ao sertão – e do indivíduo do nordeste, geralmente vinculado à imagem do
homem. Entendemos que a simbolização do Nordeste de forma pejorativa, como o lugar
do atraso, da violência, do barbarismo e da miséria, foi um processo elaborado e
inventado. Desta forma, o questionamento sobre de que forma a disseminação desses
pressupostos é realizada no cinema brasileiro é muito válida, considerando os signos
presentes nas obras. Uma vez que esses estereótipos relacionados a signos de
nordestinidade foram estabelicidos gradativamente por pessoas não nordestinas, surgiu a
necessidade da análise de uma obra com temática nordestina produzida por este público,
em comparação a uma obra com a mesma temática, mas dirigido por uma pessoa
nordestina.
Os longa-metragens estudados foram Gonzaga – de Pai para Filho, do diretor braziliense
Breno Silveira, e Boi Neon, do penambucano Gabriel Mascaro. O primeiro porque traduz
explicitamente a propagação de imagens e visões acerca da identidade nordestina atrelada
à tendência de perceber o semiárido através do prisma da pobreza, seca e fome. As falas
de Gonzaga evidenciam o conceito de sertão que vive no imaginário popular, ao mesmo
que confirma os estereótipos fincados sobre o homem nordestino patriarcal, másculo e
rústico. Em contrapartida, Boi Neon foi escolhido como objeto de análise por seu caráter
subsersivo, que quebra paradigmas e propõe reflexões. O filme vai contra a inúmeras
idealizações enraizadas no imaginário popular sobre o Nordeste, o nordestino e o gênero
masculino. Mascaro induz o espectador a questionar rótulos, pois estes são reducionistas
por natureza. Observa-se, então, que existe uma movimentação por parte do cineasta
nordestino de compor novas representações acerca do Nordeste no cinema brasileiro,
fugindo da discriminação econômica, política e social que afligem a região. Ao mesmo
tempo, uma obra cinematográfica produzida por um não nordestino aparenta reforçar
preconcepções e estereótipos tão inadequados para serem atrelados à potência que é o
Nordeste. Citando Euclides da Cunha no livro Os Sertões, “o sertanejo é, antes de tudo,
um forte”.

REFERÊNCIAS
CASTRO, I. E. . Visibilidade da Região e do Regionalismo. A escala brasileira em
questão. In: Seminário internacional: Integração, região e regionalismo., 1994, São Paulo.
Integração, região e regionalismo., 1992. p. 155-169.

ALBUQUERQUE JR, D. M. d. . A invenção do Nordeste e outras artes. 4ª ed. Recife:


FJN; Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2009. P. 1 -340.

VASCONCELOS, C. P. . A Construção da Imagem do Nordestino/Sertanejo Na


Constituição da Identidade Nacional. In: Encontro de Estudos Multidisciplinares em
Cultura, 2, 2006, p. 1-13.

ALBUQUERQUE JR, D. M. d. . Nordestino, uma invenção do falo, uma história do


gênero masculino. Maceió: Catavento, 2003.

LEAL, Wills. O Nordeste no Cinema. João Pessoa: Ed. Universitária/FUNAPE/UFPB,


V.1. 1982.

BOI NEON. Direção: Gabriel Mascaro. Produção: Desvia, Malbicho Cine, Viking Film
e Canal Brasil. Brasil: Imovision, 2015. 1 DVD. (101 min).

GONZAGA, DE PAI PARA FILHO. Direção: Breno Silveira. Produção: Globo Filmes.
Brasil: Warner Bros, Pictures, Downtown Filmes, 2012. 1 DVD. (120 min.)

MEIRELES, Aldalberto. Gabriel Mascaro: "Boi Neon é um filme sobre a


transformação". 2016. Disponível em: <https://atarde.com.br/a-tarde-
/cineinsite/gabriel-mascaro-boi-neon-e-um-filme-sobre-a-transformacao-748817>.
Acesso em 5 de mar. De 2023.
VALLE, Leonardo. O que está por trás da xenofobia contra nordestinos? 2022.
Disponível em: <
https://www.institutoclaro.org.br/cidadania/nossas-novidades/reportagens/o-que-esta-
por-tras-da-xenofobia-contra-nordestinos/>. Acesso em 3 de mar. De 2023.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Cultrix-MEC, 1973.

Você também pode gostar