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C A MPONESA

Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br

C /RN
Re vi s R N - AAC
ta da A
s so ciaçã o d e s d o C a mpo d o
e Apo io à s Co muni da d

Ano I - Número
01 - Novembr
o de 200
9

Soberania
Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
alimentar
Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”

Marília Leão
Alimentação saudável é um
direito humano inviolável

1
Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br

Editorial

A
Revista Camponesa é uma publicação semestral, de distribuição gratuita, e
visa fortalecer o trabalho que esta instituição e seus parceiros desenvolvem
no âmbito da agroecologia, economia solidária e gênero no RN, em particu-
lar, na região do Mato Grande e no município de São Miguel do Gostoso. A
Revista proporciona debater temas essenciais para a vida das pessoas na contempo-
Esta publicação foi realizada com raneidade ao mesmo tempo em que dá visibilidade à ação realizada pela AACC/RN
apoio da Fundação Konrad Adenauer e suas parcerias, acreditando que as questões que dizem respeito aos agricultores
Fortaleza. O seu conteúdo não expressa e agricultoras familiares têm a ver com o conjunto da sociedade. Assim fortalece
necessariamente a opinião da Fundação
Konrad Adenauer. sua missão de “contribuir com a autodeterminação das agricultoras e agricultores
familiares do Rio Grande do Norte através dos processos de agroecologia, economia
solidária e convivência com o semiárido”.
Nesta primeira edição, a Revista discute o tema “Soberania Alimentar” e
conta com a colaboração dos seguintes pesquisadores, especialistas e/ou ativistas
Conselho editorial: do movimento social: Carlo Petrini, sociólogo, jornalista e presidente da Fundação
Antonia Geane Costa Bezerra Slow Food; Angela Küster, coordenadora do Projeto Agricultura Familiar, Agro-
Bethânia Lima Silva ecologia e Mercado (AFAM) desenvolvido pela Fundação Konrad Adenauer (KAS);
Emerson Inácio Cenzi Henrique Carneiro, professor do Curso de História da Universidade de São Paulo
Haroldo Gomes da Silva (USP); Francisca Eliane (Neneide), coordenadora da Rede Xique Xique de Comer-
Paulo Segundo e Silva cialização Solidária; Severina Carvalho, nutricionista; e Marília Leão, presidente
da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (ABRANDH) e conselheira
Textos: representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Bethânia Lima Silva Nutricional (CONSEA).
Haroldo Gomes da Silva Além das entrevistas, a Camponesa traz uma reportagem de Bethânia
Lima sobre alguns experimentos em soberania alimentar e agricultura familiar
Fotografia: em São Miguel de Gostoso e um artigo de Emerson Cenzi sobre o Censo Agro-
Rodrigo Sena pecuário 2006, entre outros. A poesia “Cálice da Natureza”, na contracapa, é de au-
Bethânia Lima Silva toria do poeta potiguar, Janduhi Medeiros, retirada de seu livro “Mensageiro das
Haroldo Gomes da Silva Oiticicas”, de 2007.
Neste número, contamos com a colaboração especial de Mariana Gui-
Revisão: marães na tradução da entrevista a Carlo Petrini além do empenho, solidariedade e
Bethânia Lima Silva apoio de toda a equipe de trabalho da AACC/RN. Mas esta publicação não seria pos-
Haroldo Gomes da Silva sível sem a valiosa colaboração da Fundação Konrad Adenauer, a quem a AACC/RN
Ariana Lopes Correia de Paiva agradece.
Esperamos que esta Revista se constitua em alimento para a alma de espíri-
Projeto gráfico tos livres desejosos de construir relações saudáveis, harmônicas e duradouras das
e Diagramação: pessoas entre si e na relação com o meio ambiente em que vivem. Como diz Luís da
Robson Nunes Câmara Cascudo:
De todos os atos naturais, o alimentar-se foi o único que o homem cercou de
Impressão: cerimonial e transformou lentamente em expressão de sociabilidade, ritual político,
Offset Gráfica aparato de alta etiqueta. Compreendeu-lhe a significação vitalizadora e fê-la uma fun-
ção simbólica de fraternidade, um rito de iniciação para a convivência, para a confiança
Tiragem: na continuidade dos contatos (História da Alimentação no Brasil, p.36).
2000 exemplares
A todas e todos uma ótima leitura e uma passagem de ano muito feliz!
C A MPONESA
Re vi s
ta da A do RN
- AAC
C /RN
ampo
s so ciaçã o de Apo io à s Co muni dad e s d o C

Ano I - Número
01 - Novembr
o de 200
9

Soberania
Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos
alimentar
Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”

Marília Leão
Alimentação saudável é um
direito humano inviolável

2 Foto capa: Rodrigo Sena


Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br

NESTA EDIÇÃO
Entrevistas
04 Carlo Petrini
Alimentos bons, limpos e justos

07 Angela Küster
O modelo é a agricultura familiar agroecológica

09 Henrique Carneiro
O modelo alimentar do fast-food é pernicioso

11 Neneide Lima
“Eu gosto de ser trabalhadora rural”

15 Severina Araújo
Alimentação equilibrada é essencial para a vida

16 Marília Leão
Alimentação saudável é um direito humano inviolável

Reportagem
20 Quando o alimento é mais gostoso
Com o apoio da AACC/RN, famílias rurais de São Miguel do Gostoso vivenciam a
agricultura familiar de forma organizada e baseada na agroecologia

Seções
19 Curtas
29 Para Aprofundar
31 Artigo: Emerson Cenzi - A agricultura familiar alimenta o Brasil

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Entrevista: Carlo Petrini

Alimentos bons, limpos e justos


Na opinião de Carlo Petrini vivemos um momento de crise econômica,
energética e agrícola e o futuro da alimentação exige mudanças nos hábitos
de consumo pois a maior parte dos danos que a nossa terra sofreu até agora se
deve à produção de alimentos

O
“ poder que o consumidor possui simplesmente pelo fato de escolher dia-
riamente o próprio alimento é inacreditável: exercitá-lo com consciência e
responsabilidade é um dever, um ato de civilidade, em relação a si próprios,
às próprias famílias, às próprias comunidades e aos próprios povos”, afirma
Carlo Petrini, presidente do movimento Slow Food. Na entrevista que concedeu à Cam-
ponesa, considera que “estamos vivendo tempos muito difíceis” e que “é necessário re-
definir todo o sistema atual, baseado no consumo”. Afirma ainda que “o bom, o limpo
e o justo são os três adjetivos que definem em modo elementar as características que
deve ter um alimento para responder a exigências de nós, ecogastrônomos” e que a
principal via pela qual realiza “um percurso em relação ao bom, limpo e justo é aquela
da economia para o re-posicionamento dos consumos e das produções agrícolas”.
Carlo Petrini é italiano, estudou sociologia na Universidade de Trento e logo
se envolveu com a política local e com o trabalho associativo. Entre suas muitas cria-
ções está a Universidade de Ciências Gastronômicas, em Pollenzo e Colorno, a primeira
instituição acadêmica a oferecer um acesso multidisciplinar nos estudos da alimenta-
ção; é ele também que está por trás do Terra Madre, fabuloso encontro de 5.000 produ-
tores de todo o mundo, ocorrido em Turim, para discutir problemas comuns e suas
possíveis soluções. O seu último trabalho Buono, Pulito e Giusto. Principi di uma Nuova
Gastronomia foi publicado em 2005 pela editora Einaudi e em 2009 foi traduzido para
o português pela SENAC de São Paulo (Brasil) com o título “Slow Food, princípios da
nova gastronomia”. No livro, Petrini descreve o desenvolvimento da teoria da “ecogas-
tronomia”. O livro também foi traduzido para o inglês, francês, espanhol, alemão e po-
lonês. Em 2001, seu livro Le ragioni del gusto foi publicado pela Laterza e em 2003 foi
traduzido para o inglês como The Case for Taste pela Columbia University Press. Em
janeiro de 2008 foi o único italiano a aparecer na lista das ‘50 People Who Could Save
the World’ (50 pessoas que poderiam salvar o mundo) realizada pelo prestigiado jornal
inglês The Guardian.

Camponesa – O que é o movimento Slow a beneficiar-se deste prazer: uma atitude Camponesa – Como tem sido a aceitação no
Food? Como surgiu? que chamamos de ecogastronomia, capaz Brasil e, em particular, no Nordeste?
Na metade dos anos 80, o frenesi de unir o respeito e o estudo da cultura O Brasil - um país que possui uma
consumista tinha invadido totalmente a enogastronômica sustentando aqueles que extraordinária biodiversidade agrícola, gas-
Itália, de tal forma que se estava perden- atuam em todo o mundo para defender a tronômica, cultural e lingüística – há diversos
do o contato com a terra, as tradições, as biodiversidade agroalimentar. anos tornou-se um interlocutor fundamental
próprias receitas, em poucas palavras, as Partimos de 1986 do Piemonte, na do Slow Food. Em 2003 o Prêmio Slow Food
raízes da identidade de cada um de nós. Itália, para nos tornarmos em 1989 uma asso- para a Biodiversidade foi concedido à tribo
Quisemos iniciar da mesa, do alimento não ciação internacional que conta hoje com 100 indígena Krahô, na Amazônia nasceu uma das
visto simplesmente como nutrimento, mas mil sócios em 130 países. primeiras Fortalezas internacionais (o Guaraná
como elemento de prazer decorrente da Nativo dos Sateré-Mawé) e em 2004 o Ministé-
possibilidade de apreciar as diversas recei- rio do Desenvolvimento Agrário do Brasil assi-
tas e sabores, reconhecer as variedades dos
“Para garantir alimentos nou um acordo que oficializou uma longa rela-
locais de produção e dos artesãos, respeitar bons, limpos e justos, o con- ção de amizade e colaboração. Mas o grande
os ritmos das estações e a convivência. Hoje desafio do Slow Food no Brasil é a mobilização
estamos convencidos da necessidade de as-
sumidor deve começar a se de todos os setores da sociedade, e temos con-
sociar um novo sentido de sensibilidade ao sentir co-produtor” seguido superar este desafio com a criação de
prazer e à reivindicação do direito de todos novos Convivia, os núcleos locais de sócios, e o

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envolvimento cada vez maior de chefs, jovens “Comer torna-se um ‘ato dos sistemas produtivos agroalimentares – as
e acadêmicos que juntos poderão permitir a comunidades do alimento representam um
inserção do pequeno produtor na própria co- agrário’, e selecionando exemplo brilhante do que poderia significar
munidade. Hoje temos no Brasil cerca de 600
sócios e este número vem crescendo exponen-
alimentos de boa qualidade, pronunciar as palavras “economia local” ou
“economia da natureza”.
cialmente. No Nordeste, temos importantes produtos com critérios de Trata-se de pequenos produtores,
projetos para a defesa da sua biodiversidade
ambiental e cultural, como a Fortalezas do Ar-
respeito pelo ambiente criadores, pescadores, coletores de produtos
silvestres, artesãos do mundo agroalimentar
roz Vermelho do Vale do Piancó na Paraíba e e pelas tradições locais, que a cada dois anos apresentam os seus tra-
do Umbu no sertão baiano. Chefs de Fortaleza
e Salvador estão se unindo a acadêmicos do podemos favorecer a biodi- balhos em nível local na grande sede mundial
de Terra Madre4, em Turim (www.terramadre.
Maranhão e sócios espalhados ao longo de es- versidade e uma agricultura org). As comunidades do alimento geral-
tados do Nordeste brasileiro promovendo uma mente atual na cadeia curta, ou em cadeias
área com uma riqueza ainda pouco reconhe- igualitária e sustentável” longas altamente sustentáveis e baseadas
cida e valorizada. no conhecimento recíproco dos envolvidos.
complexa esfera de sentimentos, recorda- A comunidade é o local, o contexto, no qual
Camponesa – Na visão do movimento Slow ções e aspectos determinantes de identidade, pode-se realizar o conceito de “adaptação lo-
Food, qual o futuro da alimentação? decorrentes do valor afetivo do alimento; cal” que teorizou Wendell Berry5. É necessário
Estamos vivendo tempos muito limpo, ou seja, produzido sem estressar a pressionar o quanto for possível para re-posi-
difíceis, a crise que estamos atravessando é terra, respeitando os ecossistemas e o ambi- cionar produções e consumos, vida social e
ao mesmo tempo econômica, energética e ente; justo, que quer dizer conforme com os tradições sem renunciar ao comércio e à troca
agrícola. Não podemos considerá-la e en- conceitos de justiça social nos ambientes de que nos garantem a rede, mas fortalecendo as
frentá-la como se fosse um momento de pas- produção e de comercialização. comunidades locais e as suas características
sagem. É necessário redefinir todo o sistema de funcionamento.
atual, baseado no consumo. É muito recente a 1A Global Footprint Network foi criada em 2003 e
dedica-se a estimular o surgimento de um mundo no qual todas as
notícia do Global Footprint Network1 de que pessoas tenham oportunidade de viver satisfeitas, dentro das possibi-
4 A rede Terra Madre é constituída por todos aqueles
que querem agir para preservar, encorajar e promover métodos de
o overshoot day2 aconteceu no dia 25 setem- lidades da capacidade ecológica da Terra. É responsável pela “Pegada
produção alimentar sustentáveis, em harmonia com a natureza, a
Ecológica”, que mede o grau em que as demandas ecológicas das eco-
bro, ou seja, o dia que teremos terminado de nomias humanas respeitam ou ultrapassam a capacidade da biosfera
paisagem e a tradição.
5 Wendell Berry é um ensaísta americano, autor de
consumir as reservas que a natureza nos dis- de fornecer bens e serviços.
livros como Know That What You Eat You Are (“Saiba que o que Você
2 Uma semana após o estouro da bolha econômi-
ponibilizou para o ano em curso. A cada ano, co-financeira, no dia 23 de setembro, ocorreu o assim chamado
Come, Você É”) e Life is a Miracle (“A Vida é um Milagre”).
o dia no qual entramos em débito ecológico e Earth Overshoot Day, quer dizer, “o dia da ultrapassagem da Terra”.
de excesso de consumo antecipa-se no calen- Grandes institutos que acompanham sistematicamente o estado da
Terra anunciaram: a partir deste dia o consumo da humanidade, em
Camponesa – Qual o papel do consumidor
dário. Em 1986, ano do primeiro alarme, o 2008, ultrapassou em 40% a capacidade de suporte e regeneração na promoção de uma cultura do gosto e da
overshoot aconteceu em 31 de dezembro. Em do sistema-Terra. Ou seja, a humanidade está consumindo um pla-
neta inteiro e mais 40% dele que não existe.
convivência?
1995 a falência ecológica aconteceu no dia 21 3 O Millennium Ecosystem Assessment (Avaliação A esfera sensorial do homem con-
do Milênio de Ecossistemas, MA) foi pensado para fornecer parte
de novembro. Dez anos depois as contas com da informação científica necessária para a implementação da Con-
temporâneo claramente empobreceu. O tato,
a natureza entraram no vermelho já no dia 2 venção da Diversidade Biológica, da Convenção do Combate à De- o gosto e o odor sofreram uma profunda re-
sertificação e da Convenção das Áreas Húmidas. O MA foi lançado
de outubro. Agora retrocedemos até o dia 25 a nível mundial pelo Secretário Geral das Nações Unidas em Junho
gressão. O tempo cada vez mais escasso e a
de setembro: consumimos 40% a mais do que de 2001. É uma avaliação multi-escala, consistindo em avaliações velocidade das nossas vidas nos estão privan-
interligadas aos níveis global, sub-global e local. Existem cerca de
a terra pode gerar. Em 2050, se a crise ener- 15 avaliações sub-globais aprovadas, entre as quais as da Noruega,
do dos instrumentos que nos podem consen-
gética não nos tiver obrigado a adotar a sa- do Sul de África, da América Central e da China. A Avaliação Portu- tir um conhecimento mais profundo, variado
guesa foi iniciada em Maio passado e irá decorrer até meados de
bedoria ecológica para manter as contas em 2005. É liderada pelo Centro de Biologia Ambiental da Faculdade
e autêntico do mundo que está à nossa volta.
paridade, teremos necessidade de um pla- de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL). Por isso, treinar novamente os nossos senti-
neta gêmeo para usar como supermercado dos e aguçar a percepção, são os principais
e retirar as matérias-primas, água, florestas e Camponesa – Como se vinculam os con- instrumentos que pequenos e grandes con-
energia. ceitos de soberania alimentar e economia sumidores devem possuir para se re-apropriar
Se pensarmos ainda que a maior solidária? De que forma o movimento Slow da própria capacidade de decidir com qual ali-
parte dos danos que a nossa terra sofreu até Food se relaciona com eles? mento nutrir-se. Destas considerações, nasce
agora se deve à produção de alimento, como A principal via pela qual realizar um o projeto de Educação do Gosto, destinado a
se nota no relatório da ONU Millennium Eco- percurso em relação ao bom, limpo e justo é educar as crianças para desenvolver a sensori-
system Assesment3, entendemos que a forma aquela da economia para o re-posicionamen- alidade, fazendo-as compreender a importân-
como nos relacionamos com a gastronomia é to dos consumos e das produções agríco- cia dos produtos alimentares como parte inte-
central para o nosso futuro. las. A economia de mercado, assim como a grante da cultura das sociedades.
Comer torna-se um “ato agrário”, e conhecemos e como está organizada graças Com relação ao grande público, a
selecionando alimentos de boa qualidade, também às dinâmicas da globalização, está melhor ideia foi sem dúvida a dos Laboratóri-
produtos com critérios de respeito pelo am- revelando enormes limites econômicos. Seja os do Gosto, que recolhem exigências do con-
biente e pelas tradições locais, podemos fa- do ponto de vista da sustentabilidade das suas sumidor contemporâneo: o desejo do contato
vorecer a biodiversidade e uma agricultura atividades, seja por seu modo de gerar rique- direto, da prova em uma degustação guiada,
igualitária e sustentável. Bom, limpo e justo za. Os seus maiores expoentes são conscientes enfim, a recuperação da sensorialidade; a
são os três adjetivos que definem em modo que “anti-ecologia” começa evidenciar-se cada aproximação do alimento como diversão e
elementar as características que deve ter um vez mais como uma “anti-economia”. ato gratificante mais do que necessidade ou
alimento para responder às exigências de nós, Em um quadro deste tipo – cujas obrigação nutricional; o suprimento da curio-
eco-gastrônomos. Bom, relaciona-se com as causas devem ser identificadas também nas sidade em relação aos alimentos, às vezes rara
sensações de prazer derivadas das qualidades mudanças que sofreram o sistema agrícola e preciosa, unido à gratificação intelectual de
sensoriais de um alimento, mas também à mundial, na industrialização, na centralização conhecer a história e a particularidade.

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Para garantir alimentos bons, lim- “A esfera sensorial do homem do. Conferências, laboratórios, degustações,
pos e justos, o consumidor deve começar a atividades de educação do gosto para crian-
se sentir co-produtor. O tempo do consumi- contemporâneo claramente ças e adultos e, sobretudo a possibilidade de ir
dor terminou: ele literalmente consome o a fundo nos argumentos ligados ao alimento
mundo e é figura chave da sociedade base-
empobreceu” que hoje se encontram nos discursos de todo o
ada na economia de mercado resultando, mundo mas somente em nível superficial, sem
para sua infelicidade, em ser o cúmplice prin- mais estão na base do nosso futuro produtivo aprofundamento. No entanto, o movimento de
cipal do massacre que a terra está sofrendo. se quisermos frear as mudanças climáticas. As ideias que lançamos não se limita somente à
Educando-nos, conhecendo os produtos, os notícias que nos chegam são, no entanto muito estrutura associativa, com Terra Madre nasceu
próprios produtores, as técnicas para alimen- mais preocupantes e, sobretudo, relacionam-se uma rede mundial de pessoas que valorizam a
tar-se melhor e poluir menos, o co-produ- menos com este simples compartimento mas diversidade do nosso planeta e que atuam para
tor, inserido em sua comunidade, torna-se com a modalidade abrangente de produção preservá-lo, para nós e para as gerações futuras.
concretamente e individualmente o motor e de fluidez das reservas. Deve-se então não No próximo 10 de dezembro, para celebrar os 20
de uma verdadeira mudança. O poder que o reiniciar como se nada acontecesse, não in- anos do nascimento do Slow Food, uma grande
consumidor possui simplesmente pelo fato sistir no relançamento de consumos que não jornada de mobilização acontecerá em todo o
de escolher diariamente o próprio alimento podem ser a solução para esta crise. É ne- mundo envolvendo sócios e líderes de todos os
é inacreditável: exercitá-lo com consciência e cessário repensar o modelo de produção que convivia, pequenos produtores, criadores e pes-
responsabilidade é um dever, um ato de civi- todos nós escolhemos e que acreditamos ser cadores de todas as comunidades do alimento
lidade, em relação a si próprios, às próprias único e indiscutível e ter a coragem de confiar e das Fortalezas, professores e estudantes de
famílias, às próprias comunidades e aos novamente nas economias de pequena esca- hortas escolares. Cada um poderá promover o
próprios povos. la, as únicas em condição de dar uma resposta tema central da filosofia do Slow Food: o acesso
eficaz e radical à situação atual, as únicas em a um alimento bom, limpo e justo; a biodiver-
Camponesa – Há quem diga que as raízes da condição de serem auto-suficientes porque sidade; a produção em pequena escala; a so-
fome e da desnutrição no Brasil associam- mantêm uma estreita relação com a própria berania alimentar; o conhecimento das línguas,
se a duas dimensões interdependentes de terra, as próprias tradições, os próprios ali- das culturas e das tradições; a produção que
uma mesma crise de nosso modelo de de- mentos. respeita o meio ambiente; o comércio équo e
senvolvimento: baixo poder aquisitivo da sustentável. Em programa haverá pequenos
população e insuficiência de produção de Camponesa – Como as pessoas podem par- encontros e grandes eventos: degustações e
alimentos para o consumo interno. À luz ticipar do movimento Slow Food? jantares, filmes e concertos que ressaltam a im-
da experiência do movimento Slow Food, Slow Food é uma associação, então portância de um alimento bom, limpo e justo;
como enfrentar essas questões? o primeiro passo é tornar-se sócio, desta forma visita a produtores de Terra Madre, campanhas
O respeito pelo meio ambiente, a cada um pode participar das iniciativas do de sensibilização, atividades de educação ali-
tutela dos territórios, a pureza das águas, a de- próprio Convivium, os grupos locais nos quais mentar e do gosto; encontros entre produtores,

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fesa das variedades vegetais e das raças ani- a associação está organizada em todo o mun- cozinheiros, jovens e outros.

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Entrevista: Angela Küster

O modelo é a agricultura
familiar agroecológica
É preciso fortalecer a soberania alimentar optando pelo consumo de produtos
advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da própria região

O
modelo econômico adotado no Brasil parte do pressuposto de que a natureza
está disponível por tempo indeterminado e os custos da degradação dos solos,
da água e do ar ficam para a sociedade enquanto uns poucos enriquecem. Um
novo modelo de desenvolvimento deve “optar mais claramente pela agricultura
familiar agroecológica”, diz Angela Küster. A agricultura familiar deve produzir comida e
não agrocombustíveis, as sementes crioulas devem ser protegidas, o consumidor deve
ser mais seletivo e preferir produtos advindos da agricultura familiar, agroecológicos e da
própria região. O Brasil precisa de mais envolvimento de todos e todas, desde as pequenas
ações que cada um deve fazer no cotidiano – gastar menos água, produzir menos lixo, an-
dar mais a pé – até o envolvimento nas questões políticas”, conclui.
Angela Küster é doutora em Ciência Política pela Universidade Livre de Berlim. Foi as-
sistente de coordenação e informação das organizações ambientalistas no “Fórum Clima”, em
1995. Em 1989 e 1992 realizou pesquisas em Angola e desde 1996 reside no Brasil, em Fortaleza,
Ceará, onde desenvolveu sua tese de doutorado com apoio da Fundação Heinrich Böll. Desde
2001, coordena projetos da Fundação Konrad Adenauer, escritório Fortaleza. É autora do livro
Democracia e Sustentabilidade – experiências no Ceará, Nordeste do Brasil, publicado pela Funda-
ção Konrad Adenauer, em 2003.

Camponesa – O que é o Projeto Agricultura de políticas públicas; articulação de redes agro- assistencia técnica, falta de infraestrutura e de
Familiar, Agroecologia e Mercado (AFAM) e ecológicas e certificação participativa. organização social.
quais os resultados alcançados por ele até Dentre os resultados alcançados
o presente momento? pelo Projeto AFAM destacamos os indicado- Camponesa – Que avanços a senhora visu-
O Projeto Agricultura Familiar, Agro- res de análise relacionados diretamente ao aliza no fortalecimento da agricultura fa-
ecologia e Mercado – AFAM é co-financiado processo de formação de multiplicadores: 182 miliar e na reforma agrária no Nordeste? O
pela União Europeia e coordenado pela agricultores/as familiares, jovens e técnicos que ainda falta fazer no âmbito das políti-
Fundação Konrad Adenauer Stiftung, tendo formados como agentes multiplicadores em cas públicas?
atualmente como parceiros o Núcleo de Inicia- agroecologia, difundindo e multiplicando No país estão em curso dois modelos
tivas Comunitárias – NIC, o Instituto Sesemar, conhecimentos agroecológicos; 880 agricul- de agricultura – a agroindústria e a agricultura
a Agência de Desenvolvimento Local – ADEL e tores familiares usando tecnologias agroecológi- familiar. Houve avanços no apoio a agricultura
o Centro de Ciências Agrárias da Universidade cas na produção; reflorestamente de três áreas; familiar, mas a agroindústria recebe um inves-
Federal do Ceará - UFC. O Projeto tem por ob- 3 unidades demonstrativas implementadas nos timento muito maior. O Brasil precisa optar
jetivo contribuir com a melhoria da qualidade territórios; 3 cartilhas utilizadas em 09 estados mais claramente pela agricultura familiar agro-
de vida de agricultores(as) familiares no nor- do Nordeste em cursos e outros eventos. ecológica como novo modelo, forçando a agro-
deste do Brasil, com o fortalecimento da orga- indústria a abandonar a produção aos custos da
nização social da agricultura familiar ecológica Camponesa – Que desafios a experiência saúde e do meio ambiente, exportando os bens
e sustentável, viabilizando o acesso aos mer- deste projeto identifica para o fortaleci- públicos para outros países, deixando a devasta-
cados, apoiar processos de sistemas de garan- mento da agricultura familiar no Nordeste? ção dos solos e a poluição da água para trás.
tia participativos e a construção participativa Um dos maiores desafios é a descon- O mesmo vale para a reforma
de conhecimentos agroecológicos. tinuidade de programas governamentais e de agrária. Ela não foi feita de forma decisiva, com
O Estado do Ceará é composto por projetos da sociedade civil, além da precária a integração das políticas públicas para viabi-
184 municípios. Deste total, o projeto AFAM lizar a sustentabilidade dos assentamentos.
atua diretamente em 39 municípios, em três Hoje consta, que a maioria é improdutiva, mas
territórios no Ceará que são: Maciço de Batu- “O desenvolvimento é en- isso porque demora muito tempo para colocar
rité, que congrega 13 municípios; Sertão Cen- tendido como ‘crescimento’ a infraestrutura necessária nos assentamen-
tral, com 07 municípios; e Vales do Curu e Ara- tos. Às vezes, as comunidades esperam 5, 10
catiaçu, com 18 municípios. Trabalhamos nos e assim ainda estamos longe ou 20 anos para receber água, luz, estradas,
eixos de ação: fortalecimento da organização
solidária dos agricultores familiares; construção
de um outro modelo de escolas e outros equipamentos. Assim mesmo,
depois da regularização, as terras continuam
participativa do conhecimento agroecológico; desenvolvimento” improdutivas. E ainda existem muitas terras na
melhoria do acesso aos mercados; formulação mão de poucos empresários.

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Camponesa – Em sua opinião, a agricultura “O Brasil precisa optar mais 19 da Lei nº 10.696 e regulamentado pelo
familiar deve produzir energia usando plan- Decreto 4.772, ambos de 02 de julho de
tas e sementes? Por quê? claramente pela agricultura 2003, tendo como objetivo incentivar a
A opção por agrocombustíveis é in- agricultura familiar. Suas ações envolvem
coerente, primeiro porque ainda tem milhões
familiar agroecológica como a aquisição de produtos da agricultura fa-
de pessoas sofrendo de fome, enquanto se novo modelo” miliar, que são distribuídos para pessoas
destinam áreas enormes para a plantação de em situação de insegurança alimentar ou
cana de açucar e sementes oleosas com o ob- qual a senhora é uma das elaboradoras, a formam estoques estratégicos. Compon-
jetivo de locomover automóveis. obra “História da Alimentação no Brasil”, do o Fome Zero, essas ações integram-
Segundo porque não teve um in- de Luís da Câmara Cascudo, é citada como se a um leque mais amplo de políticas
vestimento maior em tecnologias alternati- referência do tema. Em que medida esta voltadas ao fortalecimento da segurança
vas, nem no transporte público, pois o Brasil obra ajuda a pensar a soberania alimentar alimentar e nutricional do país. Em sua
optou pelo transporte rodoviário ao invés no Brasil? opinião, qual o alcance e o impacto desse
de investir em outros meios como a ferro- O livro “História da Alimentação no Programa na agricultura familiar da
via. Agora, com a descoberta de petróleo Brasil” aborda de uma maneira bastante clara região Nordeste?
no fundo do mar, o agrocombustível voltou a relação da alimentação com a cultura de um O PAA teve um impacto significa-
ao segundo plano, mas não se discute como grupo, evocando a dualidade entre o banal e tivo para a agricultura familiar. Ele incen-
mudar o sistema de transporte de forma que o sagrado contido nela. Certamente esta é a tivou os agricultores a se organizar melhor
se viabilize a mobilidade da sociedade de grande contribuição de Câmara Cascudo para para poderem comercializar coletivamente.
forma coletiva e sem poluir o ambiente, nem a compreensão da soberania alimentar. A compra direta oferece uma oportunidade
explorar as terras. Existem alternativas a es- para acessar o mercado ao mesmo tempo
sas duas opções. Mas o transporte não é dis- Camponesa – Atualmente, muitos governos, em que estimula as prefeituras a comprar
cutido de forma objetiva, o carro não é um têm declarado o seu interesse em preservar produtos dos seus municípios e da região.
meio de transporte, é um fetiche da individu- o ecossistema global e construir um novo Além disso, oferece uma alimentação mais
alidade moderna, um objeto de desejo, que equilíbrio, aderindo ao chamado “desen- saudável para os alunos nas escolas. Ainda é
se procura manter a todo custo. volvimento sustentável”. No plano teóri- difícil para muitos agricultores se organizar
co, é quase consensual a tese de que é e vencer as burocracias para entrar no Pro-
Camponesa – Na região Nordeste do Bra- necessário um novo modelo de desen- grama, mas é importante e como já virou lei,
sil, as sementes crioulas – sementes com volvimento. Por outro lado, há quem se que as prefeituras têm que comprar 30% da
uma grande variedade genética, por serem pergunte: se é desenvolvimento, pode merenda escolar no município, espera-se que
selecionadas nos plantios ao longo de gera- ser sustentável? Como a senhora se posi- o PAA continue nos próximos governos.
ções e adaptadas às condições locais – foram ciona nesse debate?
substituídas por sementes compradas ou Realmente, o conceito de “de- Camponesa – Que papel joga o consumi-
distribuídas pelos governos. Quais as con- senvolvimento sustentável” foi mais um dor na afirmação do princípio da sobera-
seqüências disso e como os agricultores compromisso para conseguir acordos entre nia alimentar?
familiares têm enfrentado essa situação? os governos e empresas, mas o desenvolvi- O papel do consumidor é decisivo
Precisamos urgentemente de um mento é entendido como “crescimento” porque ele tem o poder de comprar ou não
movimento nacional e internacional para sal- e assim ainda estamos longe de um outro um produto. Optando por alimentos industri-
var as sementes crioulas, que estão se perden- modelo de desenvolvimento. As mudanças alizados e/ou importados fragiliza a sobera-
do. De acordo com a FAO (1989), os agricultores são lentas e o processo dos acordos interna- nia alimentar. Ao contrário, para fortalecer a
utilizavam cerca de dez mil espécies de plantas cionais está tomando já décadas, sem que soberania alimentar deve-se optar pelo con-
na agricultura. Atualmente, se estima que 90% vejamos medidas mais drásticas para preve- sumo de frutas, verduras e outros produtos,
da produção agrícola fazem uso de apenas nir as mudanças climáticas e a degradação de preferência da agricultura familiar, agro-
120 espécies. Dessa forma, o agroecossistema ambiental. O problema é que construímos ecológicos, da própria região e considerando
fica vulnerável, favorecendo pragas e doenças, um modelo econômico na hipótese de que as épocas de safra.
alterações climáticas locais e globais, intensifi- a natureza – a terra, a água e o ar – está eter-
cado a erosão e o declínio da produtividade. namente disponível e só entram nos custos Camponesa – Como a senhora tem visto a
Estamos, como muitas outras inicia- de produção a chamada matéria-prima e o participação das mulheres nas experiên-
tivas no Nordeste, procurando conscientizar trabalho. Os custos da poluição dos solos, cias de agricultura familiar no Nordeste?
os agricultores sobre as desvantagens das se- da água e do ar ficam para a sociedade e Que significado tem esta participação?
mentes híbridas e transgênicas. Um exemplo é todos estamos pagando por isso de alguma A participação das mulheres au-
a rede de sementes na Paraíba, as sementes da forma, enquanto poucos enriqueceram. O mentou consideravelmente e muitas vezes
paixão, como são chamados por lá, são guarda- desenvolvimento poderia até ser susten- são elas, que iniciam a produção agro-
das. Muitas comunidades têm construído casas tável, mas seguramente não dessa forma. ecológica nos seus quintais, garantem a se-
de sementes ou bancos de sementes, onde es- E na palavra em português, poderíamos gurança alimentar da família e ainda levam
tocam e trocam as sementes. Na Paraíba avan- deixar o “des” fora, que é até negativo, e os produtos para as feiras. As mulheres são
çaram também com uma lei, que reconhece as falar mais de um envolvimento. Precisamos cada vez mais reconhecidas como agriculto-
sementes crioulas como sementes, e não como do envolvimento de todos e todas desde ras e a agroecologia mudou a vida de muitas
grãos. Assim se viabiliza que o Governo possa as pequenas ações que cada um deve fazer delas, mostrou perspectivas para a sua eman-
distribuir as sementes crioulas. Precisamos no cotidiano – gastar menos água, produzir cipação. Precisamos, agora, também aumen-
de iniciativas como essas nos outros estados menos lixo, andar mais a pé – até o envolvi- tar a participação dos jovens, para que eles
nordestinos. mento nas questões políticas. tenham também orgulho de serem agricul-
tores e agricultoras e não deixar mais as suas
Camponesa – Na cartilha “Agroecologia Camponesa – O Programa de Aquisição de terras para tentar sobreviver nas grandes ci-
– garantindo a segurança alimentar”, da Alimentos – PAA foi instituído pelo Artigo dades superlotadas.

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Entrevista: Henrique Carneiro

O modelo alimentar do
fast-food é pernicioso
Comer é um ato social na medida em que o alimento revela
a forma como as sociedades se abastecem e se organizam
política, social e culturalmente

O
“ modelo alimentar do fast-food derivado de uma cadeia
alimentar agroindustrial é pernicioso do ponto de vista da
saúde e da autonomia e identidade cultural dos povos da ter-
ra”, afirma Henrique Carneiro, que considera o livro “História
da Alimentação no Brasil”, de Luís da Câmara Cascudo, o “mais impor-
tante, pela amplitude e erudição” na historiografia da alimentação no
Brasil apesar do “ecletismo teórico” e de “um excessivo empirismo”.
Nesta entrevista à Revista AACC/RN, Henrique Carneiro afirma ainda
a condição onívora do ser humano embora, no século XX, as popula-
ções dos países ocidentais tenham retomado o vegetarianismo por in-
fluências orientais mas, também, como “atitude de crítica ao modelo
agroindustrial devido a suas conseqüências nefastas do ponto de vista
socioambiental”.
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo
(USP), com a tese Afrodisíacos e alucinógenos nos herbários modernos:
a história moral da botânica e da farmácia séculos XVI ao XVIII, Henrique
Carneiro é professor de História Moderna da USP, tem experiência na
área de História, onde leciona e desenvolve pesquisas em História da
Alimentação, das Bebidas e das Drogas. Entre suas principais publicações
estão os livros: Comida e sociedade. Uma história da alimentação. Rio de
Janeiro: Campus, 2003, e Pequena enciclopédia de história das drogas e
bebidas. 1. ed. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier, 2005.

Camponesa – Qual a finalidade do ato um excessivo empirismo, não diminuem a ausência de liberdades durante o próprio
de comer? Em que medida “somos o que importância desta obra. regime militar.
comemos”?
Obviamente, os organismos vi- Camponesa – Como esta obra pode ajudar a Camponesa – Historicamente, que relação
vos se alimentam para repor a energia pensar a soberania alimentar no Brasil? se estabelece entre o consumo de alimen-
perdida e constituir os seus corpos. Mas Este aspecto é menos presente tos de origem animal e a dieta vegetari-
esse ato biológico nutritivo se torna o mais no livro de Cascudo, mais voltado para ana? O ser humano é, por essência, um ser
importante socialmente, revelando tanto a os aspectos socioculturais do que para a carnívoro? Quais as conseqüências disso?
capacidade econômica das sociedades se elaboração de políticas concretas relativas O ser humano, desde a domesti-
abastecerem, como a forma social e política ao tempo presente, no sentido político o cação dos grãos e dos animais, na chamada
de dividirem a comida e os demais produtos autor foi bastante conservador e vincu- revolução neolítica, viveu predominante-
e, de forma talvez ainda mais significativa, lado aos poderes vigentes, sem grande mente de cereais e outros produtos vegetais.
plasmando um conjunto de hábitos e regras crítica aos aspectos de injustiça social e de A carne sempre foi alimento de luxo, aris-
culturais sobre os alimentos. tocrático. Apenas no século XX que os deriva-
“O modelo agroindustrial dos da carne se tornaram um consumo pre-
Camponesa – Que lugar ocupa a obra dominante em certos países industrializados,
“História da Alimentação no Brasil”, de globalizado traz danos so- como os EUA, causando diversos problemas
Luís da Câmara Cascudo, na historiogra- de saúde, tais como obesidade e males car-
fia da alimentação no Brasil?
cioambientais irreparáveis, diovasculares.
É até hoje, certamente, o livro mais devido ao uso excessivo O ser humano é onívoro. O debate
importante, pela amplitude e erudição. Suas sobre o consumo de carne é muito antigo.
debilidades: um ecletismo teórico e mesmo
de fertilizantes” Os hinduístas condenam a carne. Pitágoras

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“O modelo alimentar do
fast-food derivado de uma
cadeia alimentar agroindus-
trial é pernicioso do ponto
de vista da saúde e da auto-
nomia e identidade cultural
dos povos da terra”
no Ocidente, e depois Plutarco e, na Idade
Média, os cátaros, hereges combatidos e
massacrados pela Igreja, foram todos vege-
tarianos. No século XX, houve uma retoma-
da do vegetarianismo nos países ocidentais
devido a mudanças culturais, abertura à in-
fluências orientais e uma atitude de crítica
ao modelo agroindustrial devido a suas
conseqüências nefastas do ponto de vista
socioambiental.

Camponesa – Nesses tempos de globaliza-


ção, observa-se a ocorrência de uma pa-
dronização cada vez maior dos produtos
consumidos, dos comportamentos alimen-
tares e dos gostos. Caminhamos para for-
mas de alimentação idênticas entre dife-
rentes povos? Que implicações têm isso?
O modelo agroindustrial globalizado
traz danos socioambientais irreparáveis, devi-
do ao uso excessivo de fertilizantes, alterando
o ciclo do nitrogênio e produzindo eutrofia
nas águas, e também do uso de agrotóxicos,
monocultura e sementes transgênicas, que,
diferentemente da agricultura familiar, levam
a desigualdade social, concentração de renda,
poluição, aumento do aquecimento global.
Além disso tudo, o modelo alimentar do fast-
food derivado de uma cadeia alimentar agro-
industrial é pernicioso do ponto de vista da
saúde e da autonomia e identidade cultural dos
povos da terra.

Camponesa – Que desafios se apresentam


à pesquisa historiográfica no campo da
alimentação?
A maior de todas é obter fontes,

Próximo número da
pois quanto mais remoto o período histórico
mais as fontes são escassas. Depois é pre-
ciso diferenciar os grupos sociais internos
a cada sociedade, pois as suas práticas e
representações alimentares não são as mes-
mas. Finalmente, é preciso comparar sempre
Camponesa:
Eleições 2010:
e o máximo possível para tentar escapar dos
particularismos e tentar alcançar descrições
mais dinâmicas e abrangentes que devem
ir em direção de uma história “total”, como
dizia Lucien Febvre1, fugindo de uma histo-

o que vem lá?


riografia que faça dos próprios alimentos um
sujeito histórico.

1 Lucien Febvre, nascido em 22 de julho de 1878 e


falecido em 11 de setembro de 1956, foi um historiador francês,
co-fundador da chamada “Escola dos Annales”.

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Entrevista: Neneide Lima

“Eu gosto de ser trabalhadora rural”


Francisca Eliane de Lima conta como surgiu a experiência produtiva do Grupo de
Mulheres Decididas a Vencer, do Assentamento Mulunguzinho, em Mossoró, e
mostra as mudanças que este acontecimento provocaram em sua vida e na vida
de outras mulheres da região

N
“ o início, a gente não pensava em grupo de
produção. A gente pensava em ir atrás dos direi-
tos. Por que as mulheres eram tão isoladas das
discussões do Assentamento?”, afirma Neneide
Lima, em entrevista concedida à Camponesa, na sede da
Rede Xique Xique de Comercialização Solidária, em Mos-
soró (RN). Neneide fala de onde vem a alimentação das
pessoas que vivem no Assentamento Mulunguzinho, de
como surgiu o grupo produtivo, o que e como produz, o
destino da produção do grupo, a distribuição dos resul-
tados do trabalho, as dificuldades, os apoios recebidos,
as influências que marcam sua trajetória, as mudanças
ocorridas em sua vida e na própria comunidade a partir
dessa experiência. Diz do seu prazer em trabalhar com a
terra e com firmeza acrescenta “não queríamos produzir
só para livrar as hortaliças de produtos químicos e não ter
mais nenhuma preocupação com nada. A gente queria ir
além disso. A gente queria ter um produto agroecológi-
co, não pensar só no valor monetário mas noutras rela-
ções de economia solidária, de agroecologia, da questão
do meio ambiente.”
Neneide Lima é assentada do Assentamento
Mulunguzinho, em Mossoró (RN), onde vivem 112
famílias e cerca de 500 habitantes, e é integrante da
coordenação da Rede Xique Xique de Comercializa-
ção Solidária.

Camponesa – O Assentamento Mulun- compra fora do assentamento são produtos cebolinha, cenoura, beterraba... Só não temos
guzinho, em Mossoró/RN, é constituído que a gente não produz, como arroz, massas o que não é de nossa região, como a batatinha.
por 112 famílias. De onde vem a alimenta- (o macarrão, por exemplo). Têm pessoas que ainda compram batatinha,
ção dessas famílias? O que é produzido e E têm as hortaliças. Como eu sou chuchu, mas o que a gente tem no assenta-
consumido no próprio assentamento? do grupo de mulheres, onde a gente produz mento dá conta. Têm pessoas que têm a di-
A alimentação do assentamento também hortaliças, o Assentamento também versidade no seu quintal. Minha mãe mesmo
vem muito de produtos adquiridos na cidade disponibiliza hortaliça. Tanto eu tenho pra tem a horta dela no quintal. Também é muito
de Mossoró. Como Mulunguzinho fica neste consumo como também o pessoal do As- raro as pessoas no Assentamento comprarem
município, as pessoas vêm fazer feira aqui, em sentamento compra lá na horta. Do coentro à ovo, tem muita galinha lá, tanto se consome a
Mossoró. Só que tem muita coisa que é produ- carne quanto o ovo.
zida lá no Assentamento. Por exemplo: eu não “A gente queria ter um
compro fruta porque hoje, nessa época, eu Camponesa – Você participa do Grupo de
tenho sirigüela, caju, mamão, manga, goiaba,
produto agroecológico, não Mulheres Decididas a Vencer, constituído
acerola. Tudo isso tem no Assentamento, além pensar só no valor monetário por mulheres do assentamento Mulun-
dos produtos que são de sequeiro, de roçado. guzinho. Como surgiu o grupo?
Só compra feijão quem não planta ou quem mas noutras relações de O grupo surgiu a partir da partici-
planta mas tem uma colheita pequena. Quan- economia solidária, de agro- pação de algumas mulheres num evento que
do o meu lote não dá milho, eu compro milho teve aqui em Mossoró, há alguns anos, pro-
do vizinho. Milho e feijão, que são de sequeiro, ecologia, da questão do meio movido pelo Centro Feminista 8 de Março1 e
a gente compra dentro do próprio assenta- ambiente” pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais. E,
mento quando não planta. O que a gente nesse encontro, elas perceberam que existiam

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vários outros grupos de mulheres organizados “O grupo de mulheres surgiu 2 A Marcha Mundial das Mulheres é uma ação do
movimento feminista internacional de luta contra a pobreza e a violên-
e que no Assentamento Mulunguzinho não cia sexista. Sua primeira etapa foi uma campanha entre 8 de março e
existia grupo. Isso foi por volta de 1994. Minha a partir dessa concepção de 17 de outubro de 2000. Aderiram à Marcha 6000 grupos de 159 países
e territórios. As manifestações de encerramento desta primeira fase da
mãe participou dessa atividade, ela era presi-
dente do Assentamento, eu não era inserida
auto-organização e da von- Marcha no dia 17 de outubro de 2000 mobilizaram milhares de mulheres
em todo o mundo, nesta ocasião foi entregue a ONU um abaixo assinado

no processo ainda. tade de dar visibilidade às com cerca de 5 milhões de assinaturas em apoio às reivindicações da
Marcha. Maiores informações: www.sof.org.br/marcha/.
Elas voltaram desse evento decidi-
das a formar um grupo de mulheres dentro
mulheres dentro do Assenta- 3 O Grito dos Excluídos é uma manifestação popu-
lar carregada de simbolismo, é um espaço de animação e profecia,
do Assentamento. Nessa época, não tínhamos mento na luta por direitos” sempre aberto e plural de pessoas, grupos, entidades, igrejas e movi-
mentos sociais comprometidos com as causas dos excluídos. Maiores
ainda nem agrovila. Cada qual morava nos informações: www.gritodosexcluidos.org/.
seus lotes, nas suas casas, e elas andaram a pé sa que fosse iniciativa nossa, que dependesse
nos lotes, de carroça, e conseguiram juntar um do nosso esforço e que também não nos ti- Camponesa – Como se dá a organização do
número de mulheres, e convidaram o Centro rasse de nossas raízes, que era ser trabalha- trabalho no grupo produtivo?
Feminista 8 de Março pra fazer uma reunião dora rural, lutar com a terra, produzir. Foi aí O grupo surgiu com a horta e hoje
com as mulheres. E foi aí que tivemos a nossa que chegamos nas hortaliças, que também nós temos um sistema de produção integrado.
primeira reunião, pra realmente ter um grupo iriam servir pra nossa alimentação. Mas qual Trabalhamos com três produtos ou três ca-
de mulheres no Assentamento. hortaliça? Dessa hortaliça convencional? deias: apicultura, hortifrutigranjeiro e capri-
No início, a gente não pensava em Na época, hortaliça estava no auge, as hor- novinocultura. O grupo de caprino envolve
grupo de produção. A gente pensava em ir taliças orgânicas. Era 8% mais caro no mer- o grupo de mulheres e outras pessoas do as-
atrás dos direitos. Por que as mulheres eram cado e nós pensávamos em ganhar dinheiro, sentamento, trabalha desde a parte de abate
tão isoladas das discussões do Assentamento? em melhorar de vida. E foi aí que a gente até o beneficiamento. O grupo de apicultura é
Da discussão de crédito, de ser sócia da asso- chegou na horta orgânica. Se queremos hor- só o nosso grupo de mulheres. Como a apicul-
ciação porque só quem podia se associar eram ta orgânica, vamos ver no grupo de mulheres tura tem uma demanda pontual, não é perma-
os homens, raramente se tinha uma mulher (30 mulheres), quem se interessa, quem nente, a gente faz a revisão de 15 em 15 dias,
como titular, apenas aquelas que não tinham quer participar. Eu sei que ficamos com nove e faz a colheita no tempo da colheita, três por
marido. Minha mãe foi presidente porque ela mulheres. Começamos nesse projeto, cercar ano. Que é nisso que hoje eu estou participan-
era titular do lote mas a maioria das outras o terreno, adubação natural e as primeiras do porque eu estou liberada pelo grupo para a
mulheres ficavam só em casa, não participa- sementes. Tivemos cursos de formação em coordenação da Rede Xique Xique de Comer-
vam das reuniões. agricultura orgânica porque a gente era acos- cialização Solidária4.
Depois de muito tempo de orga- tumada ao padrão convencional; e cursos de Tem a parte de hortifrutigranjeiros.
nização, a gente percebeu que vinha crédito contabilidade, como fazer a gerência. Hoje, trabalha-se de 6h:30 até 11h e de 15h:30
pras famílias, que era dito que era pra famí- No decorrer do processo, percebe- até às 17h:30. Tem todo um calendário de
lia, mas só quem tinha direito de comprar, de mos que não queríamos produzir só para atividades: desde ações que fazemos juntas
mexer com o dinheiro eram os homens. E foi livrar as hortaliças de produtos químicos e (canteiro, limpar a área...) até outras individu-
aí que reivindicamos ao Centro Feminista 8 de não ter mais nenhuma preocupação com alizadas. Toda terça-feira é dia de plantar can-
Março um encontro de trabalhadoras rurais nada. A gente queria ir além disso. A gente teiro pois trabalhamos no sistema de entrega
onde o tema fosse “Geração de Renda para as queria ter um produto agroecológico, não de cestas, tem que ter planejamento semanal
Mulheres”. E aí foi quando a gente veio para pensar só no valor monetário mas noutras para que todo mês tenha aquela cesta. Tem as
esse encontro e foram convidados vários gru- relações de economia solidária, de agroeco- mulheres que raleiam, as que plantam mudas,
pos de mulheres e várias agências financiado- logia, da questão do meio ambiente. Che- a que cuida da bandeja. E, além da produção
ras. E teve uma agência que se interessou pelo gamos a ter mais de 60 variedades de coisas em si, a gente é quem faz a gestão, aí tem a
grupo de Mulunguzinho. dentro da horta. Ficou um negócio muito contabilidade, tomar de conta dos recibos, das
1 Centro Feminista 8 de Março é uma organização
cheio, muito diverso. Teve um período que notas. Esse manejo é feito entre essas cinco
feminista que acompanha grupos de mulheres e jovens mulheres resolvemos trabalhar só com 15 produtos mulheres.
da periferia de Mossoró, assentamentos da zona rural da cidade e
municípios vizinhos da região. Articula também atividades, cursos,
porque não tínhamos condições de ficar com A horta produz alface, coentro, ce-
seminários e palestras junto aos movimentos sociais rurais e urbanos. tanta produção. bolinha, beterraba, cenoura, jerimum, rúcula,
Maiores informações no site: www.cf8.org.br.
berinjela, pimentão, toda essa variedade.
Camponesa – O grupo produtivo: o que e Camponesa – Quantas mulheres partici- Além disso tem as frutas, temos mamão, goia-
para quem produzir? pam do grupo atualmente e o que o grupo ba, manga, acerola. E outras coisas, como a
Tivemos muita reunião pra dis- produz? macaxeira.
cutir o que a gente queria. A gente pensou Nós temos o grupão e o grupo produ- 4 A Rede Xique-Xique de Comercialização Soli-
daria constituída em 2003, é resultante de um processo de con-
em beneficiar uma fábrica de doces porque tivo. O grupão discute essa parte organizacio- strução coletiva com participação de grupos produtivos de áreas
existia um megaprojeto de irrigação lá em nal, essa parte que discute direitos, saúde, rei- reformadas de nove municípios: Apodi, Baraúna, Grossos, Gover-
nador Dix-Sept Rosado, Janduis, São Miguel do Gostoso, Mossoró,
Mulunguzinho, que até hoje ainda existe. vindicações para o Assentamento, participa da Serra do Mel e Touros. Em sua maioria, esses grupos são formados
Como estava no início, pensamos em fazer Marcha Mundial das Mulheres2, do Grito dos Ex- por mulheres, que produzem mel de abelha, castanha de caju,
artesanato de palha, sisal e sementes, marisco, além de derivados
doces das frutas que vinham desse projeto cluídos3, do Encontro dos Trabalhadores Rurais, da caprinocultura e hortifrutigrangeiros, seguindo os princípios
e, também, desse recurso a gente ia comprar que está muito na discussão política e do As- da agroecologia. A Rede tem sede em Mossoró, cidade-pólo da
Região Oeste do Estado do Rio Grande do Norte.
freezers, uma estrutura e tal. Depois refle- sentamento, e temos o grupo produtivo. Hoje o
timos: “Ora, vamos começar uma coisa pra grupo produtivo tem só 5 mulheres e o grupão Camponesa – Qual o destino da produção
depender dos outros, dos homens?”. A gente tem pouco mais de 20 mulheres. do grupo?
continuaria dependendo dos homens. E ain- O grupo de mulheres surgiu a par- A alimentação no próprio Assenta-
da bem que a gente desistiu disso porque até tir dessa concepção de auto-organização e da mento e a Rede Xique Xique de Comercialização
hoje ainda não vi fruta desse projetão. vontade de dar visibilidade às mulheres dentro Solidária, para o grupo de consumidores que te-
Depois pensamos em criar galinhas do Assentamento na luta por direitos, por igual- mos, a quem fazemos a entrega de cestas.
mas logo desistimos. A gente queria uma coi- dade. Só depois é que surgiu o grupo produtivo. Quando decidimos produzir hor-

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Camponesa - Novembro de 2009 www.aaccrn.org.br

taliças já pensamos em pra quem íamos “Se hoje nós temos crédito, ria técnica com as agrônomas. Hoje, até a Pre-
vender. O Centro Feminista 8 de Março, a Terra feitura disponibiliza um agrônomo que está lá,
Viva5, a AACC/RN, a COOPERVIDA6 começaram como trabalhadoras rurais, é também, junto.
a convidar pessoas que gostariam de con-
sumir hortaliças. Marcavam uma reunião
porque alguém se organizou 8 A Visão Mundial é uma organização não governa-
mental cristã, brasileira, de desenvolvimento, promoção de justiça
com essas pessoas e nós vínhamos. Era uma e foi buscar isso” e assistência, que, combatendo as causas da pobreza, trabalha com
crianças, famílias e comunidades a fim de que alcancem seu poten-
festa. A gente vinha para o que chamávamos cial pleno. Dedica-se a trabalhar lado a lado com as populações mais
de “assembleias” pra discutir a quem iríamos pelas hortaliças não pensamos nisto. Hoje nos vulneráveis e a servir a todas as pessoas, sem distinção de religião,
raça, etnia ou gênero. Nos mais de 100 países onde atua, a Visão
entregar essas verduras. Antes da Rede Xique preocupamos muito em como poupar, como Mundial trabalha com uma ferramenta chamada Programa de De-
Xique, criamos a “Associação dos Parceiros da reduzir, a história das “coberturas mortas”7, senvolvimento de Área – PDA. A tecnologia do PDA fortalece nas
comunidades as noções de cidadania, mobilização comunitária e
Terra – APT”. A gente produzia o que as pes- todo esse manejo. Essa é uma dificuldade pela defesa de direitos, com foco nas áreas de educação, saúde e segu-
soas queriam, entregávamos a cesta padrão qual a gente paga caro. Por isso que hoje a rança alimentar, desenvolvimento econômico, agroecologia, orga-
nização comunitária, promoção de justiça, formação sociopolítica e
e, nessas assembleias, discutíamos o preço. horta não tem um rendimento melhor. compromisso cristão, além de socorro e reabilitação em situações
Toda semana a pessoa recebia uma cesta, que Outra coisa é a mão-de-obra de emergência. É a esta ferramenta que Neneide está se referindo.
Maiores informações: www.visaomundial.org.br/.
tinha tudo o que produzíamos no Assenta- porque nós escolhemos uma atividade, que
mento e a gente entregava nas entidades. Es- a maioria das mulheres dentro do assenta- Camponesa – A Rede Xique Xique de Co-
sas pessoas do grupo de consumidores eram mento não tem condições de trabalhar, por mercialização Solidária, que atualmente
de classe média, pessoas da universidade, serem idosas ou terem muitos filhos. Por conta com mais de 50 grupos participantes,
médicos etc. Chegamos a entregar de 50 a 60 mais que as pessoas pensem que a igual- teve seu início na experiência de organiza-
cestas por semana. As pessoas vinham pegar dade já existe mas a gente sabe que ainda ção, produção e comercialização do Grupo
nas entidades. tem muita desigualdade, as mulheres não de Mulheres Decididas a Vencer. Como a
Atualmente, o grupo de consumi- tem com quem deixar os filhos. Como a Rede Xique Xique fortaleceu o trabalho do
dores tem cerca de 30 a 40 participantes. Varia horta necessita de mão-de-obra diária, te- Grupo de Mulheres Decididas a Vencer?
muito. Algumas pessoas se mudam, outras mos muita dificuldade. Tentamos agora en- Quando a gente começou com a “As-
saem do grupo e depois voltam. volver algumas jovens mas o trabalho é muito sociação de Parceiros da Terra – APT”, tivemos
5 O Centro de Apoio ao Desenvolvimento da Agri- pesado. A gente disse que elas ficariam na muitos intercâmbios. Fomos visitar uma ex-
cultura Familiar - Terra Viva, foi constituído em 03 de outubro de parte mais maneira de limpar os canteiros, periência em Fortaleza, juntos com outros
1997, por um grupo multidisciplinar de profissionais autônomos,
inicialmente sob o nome de Cooperativa de Trabalho para a Agricul- limpar com a mão, ralear, mas elas não grupos de Apodi, e lá nessa visita, percebemos
tura Familiar do Oeste Potiguar - Terra Viva. O Centro Terra Viva vem conseguiram. Não queríamos funcionárias, que existia também entrega de cestas e que
desenvolvendo, ao longo desses anos, ações baseadas em metodo-
logias sintonizadas com as características dos trabalhadores e das queríamos pessoas que se sentissem donas, não era só hortaliça. Tinha queijo, galinha,
trabalhadoras dos assentamentos da Reforma Agrária e comunidades parte do processo. outras coisas. E a gente veio com a ideia de
rurais, nos mais diversos programas e projetos de assessoria técnica e
capacitação. Maiores informações: www.terravivarn.org.br/. Um dos critérios que a gente usa criar isso aqui em Mossoró. De deixar de ser o
6 A Cooperativa de Assessoria e Serviços Múltiplos para entrar no grupo de produção é que, grupo de Mulunguzinho, que entregava cestas,
ao Desenvolvimento Rural – COOPERVIDA é uma entidade que
desenvolve suas ações voltadas para o desenvolvimento rural, numa pelo menos, a pessoa passe pelo grupo de e pensar em algo maior, que envolvesse outros
perspectiva agroecológica, pautada na equidade de gênero e gera- mulheres pra ter o convívio de trabalho com grupos, outras cooperativas, outras pessoas.
ção, que tem como missão “trabalhar atividades que promovam o
desenvolvimento sustentável, considerando a cultura e os recursos outras pessoas. Junto a isso, o PDA (da Visão Mun-
naturais existentes, promovendo/potencializando a transformação
7 “Cobertura morta “ é a prática agrícola de cobrir a dial) estavam pensando em construir uma
da sociedade, mediante a construção de novos valores que pos-
sibilitem a igualdade de gênero e etnia, melhorando a qualidade
superfície do solo com uma camada de material orgânico, como a Central de Comercialização para os grupos
palha ou cascas que sobraram de outros cultivos. Visa proteger o solo
de vida e o exercício da cidadania”. Maiores informações: http://
do impacto direto das chuvas e da radiação solar mediante a colo- e famílias que acompanhavam. Existia uma
coopervidarn.org/?pagina=acoopervida.
cação de materiais diversos sobre a sua superfície. Ajuda também a produção e não tinha onde as pessoas escoar
manter a umidade do solo, dificulta o aparecimento do mato, evita
Camponesa – Como o resultado da a evaporação da água e mantém o ponto de aeração do solo que é a esta produção. Decidimos somar com a ideia
produção se distribui entre as partici- circulação do ar nos espaços do solo, essencial a respiração das raízes do PDA, chamar outras entidades e construir
das plantas e demais organismos vivos.
pantes? essa Central juntos. Achamos o nome Central
Cada pessoa tira, durante o dia, o Camponesa – O grupo conta com algum muito pesado e juntos pensamos em construir
que necessita pra se alimentar. Isso é uma tipo de assistência ou apoio? Como isso algo que estivesse a altura dos trabalhadores
coisa. acontece? e trabalhadoras, artesãos, grupos urbanos e
A outra coisa, o dinheiro que a gente Nós nunca ficamos sem assessoria. rurais. Não queríamos um mercado conven-
apura vendendo hortaliças, em primeiro lugar, Por mais que as entidades passem por dificul- cional, queríamos uma coisa diferente, onde
é destinado às despesas da horta. Não temos dades, a gente sempre teve apoio ou direta- as relações fossem diferentes. Aí pensamos no
subsídio, a horta se mantém com os próprios mente em assessorias ou em projetos especi- espaço de comercialização solidária e numa
recursos. A gente paga energia, que é altís- ais dessas entidades que eu citei. A AACC/RN carta de princípios que regulasse a participa-
sima porque temos um poço de 1.500m, um sempre contribuiu com tudo que nós temos ção nessa construção.
poço que estava desativado e nós reativamos. e somos. O Centro Feminista 8 de Março tem Nasce a Rede Xique Xique de Co-
Energia do poço e da irrigação da horta. Paga- duas agrônomas que acompanham o grupo. mercialização Solidária
mos esterco (antes a gente ia buscar no cur- O Centro Terra Viva teve um período que dava Começamos a construir isso. O PDA
ral), hoje um carro vem direto deixar; o frete assessoria no Assentamento e também tinha tinha um projeto que bancava o aluguel de
do carro. Terminou isso, tirou o dinheiro das a preocupação de passar lá na horta, de saber um espaço e começamos a ter essa dinâmica
despesas, o que sobra a gente divide em par- como a gente estava. Tem o PDA Margarida de formação e, também, de comercialização.
tes iguais entre as cinco mulheres. Alves8 que sempre está por lá. E a gente tem Surgiu o espaço. Como a gente não perdeu
até consumidores mesmo que ajudam, dando essa dinâmica de se reunir, de dialogar, dis-
Camponesa – Quais as principais dificul- assessoria quando a gente precisa. semos: “Não queremos só o espaço”. Não adi-
dades enfrentadas pelo grupo, atualmente? Relação com as Universidades, visi- anta trazer os produtos de Apodi, São Miguel
Já passamos por muitas dificuldades. tas de alunos. Atualmente, a assessoria vem do Gostoso e não ter uma dinâmica em cada
Por estarmos no semiárido, a necessidade de mais diretamente do Centro Feminista 8 de município. Foi aí, depois de um ano, em 2004,
água é muito grande e quando nos decidimos Março, na parte de organização e de assesso- que construímos a Rede Xique Xique. O es-

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critório da Rede é em Mossoró mas a rede é “A Marcha Mundial das ia ajudava as outras armando as redes nos pés
formada pelos núcleos. E a Rede adquiriu essa de árvores pra poder garantir que as mulheres
dinâmica. Mulheres é, pra mim, o estivessem. Hoje temos uma relação boa, um
Com isso, pudemos nos aproximar diálogo, as mulheres dizem: “De primeiro eu ia
de outros grupos. A Rede fortaleceu nessa in-
espelho com que me identi- deixar o lanche do meu marido, hoje ele vem
tegração com outras pessoas porque éramos fico porque é quem me deixar o meu”. Quer dizer, hoje a gente já tem
sós. Hoje, trabalhamos fortemente a agro- esse reconhecimento.
ecologia, a economia solidária e o feminismo
fortalece como mulher” Terminei meus estudos, passei um
porque a Rede Xique Xique bebe muito da ção, você percebe que não é assim. Hoje, se ano e meio fazendo supletivo, saía da horta,
fonte dos grupos de mulheres organizados. as mulheres tiveram direito ao primeiro voto não dava nem pra tomar banho direito, pega-
Têm muitos grupos na rede e a gente con- é porque alguém lutou pra isso. Se hoje nós va um ônibus, saía do Assentamento, vinha
segue se entrelaçar nesses temas que a Rede temos crédito, como trabalhadoras rurais, é aqui pra Mossoró, voltava, o ônibus atolava no
hoje trabalha. porque alguém se organizou e foi buscar isso. caminho, eu ajudava a empurrar o ônibus pra
Não é porque foi dado, é porque alguém lu- poder chegar em casa mas consegui terminar.
Camponesa – Qual a relação da Rede Xique tou por isso. Quando você começa a se formar, Tem toda essa história também de como eu
Xique com as instituições de apoio às co- começa a perceber isso. As coisas não caem cresci como pessoa, na militância e nos meus
munidades rurais? O que precisa melhorar do céu e não são dadas, alguém lutou pra que estudos, mas com a cabeça centrada no As-
nesta relação? elas estivessem ali. sentamento, nada de querer ir embora de lá,
Desde o início até hoje, as instituições A formação no movimento de de querer sair porque eu gosto de lá. Eu gosto
tem um papel fundamental na Rede porque mulheres de ser trabalhadora rural, gosto de trabalhar
hoje a gente considera a Rede Xique Xique Minha formação veio a partir do com a terra, de ser apicultora, pra mim isso é
como de produtores e produtoras, de artesãos movimento de mulheres. Hoje, a Marcha muito importante. Não perder essa identidade
e artesãs, mas se não fossem as parcerias a Rede Mundial das Mulheres é, pra mim, o espelho porque se eu estou hoje aqui foi a partir do
não existia. Mesmo que as assistências técnicas, com que me identifico porque é quem me for- grupo e o grupo é meu alicerce. O grupo é que
parcerias e entidades de apoio não tenham talece como mulher, e faz com que sempre eu me dá sustentação porque se um dia eu dis-
direito a voto na Rede porque são os trabalha- esteja lutando. Eu casei com 14 anos, tive meu ser que não sou mais do grupo, acabou meu
dores e trabalhadoras que tomam as decisões primeiro filho com 15. Percebi como eram as alicerce, caiu minha casa.
finais, mas essas entidades trazem formação relações familiares e que as pessoas tinham
em economia solidária, agroecologia e dão sua direitos iguais, poderiam dialogar. Camponesa – Pela sua experiência, em que
contribuição pra gente poder estar aqui. As mudanças são muitas. Eu dizia essa participação das mulheres melhorou
No início da Rede, o Conselho Di- que não participava de nada por causa dos o desenvolvimento do assentamento, as
retor ou os grupos que vinham, só vinham meninos. Mas fui me dizendo: “Pra eu par- relações entre as pessoas, o trabalho?
porque essas assessorias estavam por trás ticipar, meus filhos têm de participar porque Se você chegar em Mulunguzinho, o
apoiando. Hoje, as pessoas que assumem eu não tenho com quem deixar”. Eu não povo diz que o assentamento só é visto porque
e defendem a Rede Xique Xique o fazem tinha esse diálogo familiar que hoje já existe existe o grupo de mulheres. Dentro do assenta-
porque tiveram formação. E, assim, as as- dentro do Assentamento. Se você chegar mento você tem que brigar pelo seu espaço.
sessorias são muito importantes para que a hoje e perguntar as mulheres da horta se Têm pessoas que defendem mas têm pes-
Rede sobreviva. elas fazem alimentação quando chegam soas que criticam, também. Não é tudo as mil
em casa, você vai escutar que não. Já tem maravilhas, como também dentro do grupo.
Camponesa – Que mudanças a participação diálogo com os maridos. As mulheres dizem: Quem quer formar grupo, tem que ter jogo
no grupo provocou em sua vida pessoal, na “Meu marido só fazia o almoço, hoje ele faz de cintura e respeitar as diferenças porque a
relação com a família e com a comunidade? até o pé da porta”. gente discute, a gente briga, também. Agora
Eu devo muito de minha formação “Eu gosto de ser trabalhadora rural” tem que ser adulta pra quando sair do portão
a essas assessorias que fazem parte da Rede. Eu comecei armando rede debaixo dos (tem um portão lá) ser as mesmas amigas. Um
Minha formação política, de gostar do que galpões pra poder participar de uma reunião empreendimento com várias donas é difícil, é
faço, do que desenvolvo porque quando a de capacitação com minhas filhas. Hoje, todas muito mais fácil ter uma que manda e as outras
gente vive no assentamento e que não tem as mulheres que participam da horta e que que obedecem, mas ter várias que mandem, é
essa formação acha que as coisas caem do já participaram, dizem: “Eu criei meus filhos difícil porque cada uma quer mandar do seu
céu. E quando você passa a ter uma forma- aqui”. A gente tinha até um berço. E pra onde jeito, tem suas diferenças.

VISITE O SITE DA
FUNDAÇÃO KONRAD ADENAUER:
www.kas.de/brasil

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Entrevista: Severina Araújo

Alimentação equilibrada é
essencial para a vida
Alimentos saudáveis, sem agrotóxicos, garantem o bom funcionamento do
organismo e são cada vez mais essenciais no tempo em que vivemos

O
ato de comer exige cuidados especiais. Para Severina Araújo, nutricionista,
“o alimento deve ser escolhido para a nutrição de cada célula que compõe
o nosso organismo e não simplesmente como fonte de calorias”. Na época
em que vivemos, onde a oferta de alimentos é cada vez maior e menos
nutritiva, é preciso encontrar tempo para se alimentar de forma saudável pois como
afirma ela: “A alimentação equilibrada é fator essencial na manutenção de funções
vitais básicas, além de prevenir e ajudar a tratar inúmeras doenças da vida moderna”.
Severina Araújo é nutricionista, com pós-graduação em Nutrição Social, Nutrição
Clínica e Tecnologia de Alimentos e Nutrição, trabalha no Centro de Reabilitação In-
fantil (CRI) e na Clínica São Marcos.
Camponesa - As opções alimentares são senhora vê essa situação e qual a conse- horário suficiente para alimentar-se, devido a
definidas pela cultura, ou seja, pelos homens qüência disso para nossas vidas? longa jornada de trabalho.
e mulheres que a compartilham, também o Nossos hábitos alimentares vêm so-
alimento escolhido constrói a pessoa que o frendo grandes mudanças nos últimos anos, Camponesa - Qual a importância de se
ingere, que se busca construir no ato alimen- com uma enorme distância entre a alimenta- consumir alimentos sem agrotóxicos? Que
tar. Por isso é que se fala que “somos o que ção e hábitos alimentares saudáveis, a oferta conseqüências podem advir do consumo
comemos”. Dentro dessa perspectiva, que de alimentos está cada vez maior, porém bem de agrotóxicos?
cuidados deve-se ter com o ato de comer? menos nutritiva e com uma carga de produ- Os alimentos sem agrotóxicos per-
Devemos utilizar alimentos sau- tos químicos e gorduras trans  promovendo a mitem um bom funcionamento orgânico. Os
dáveis bem variados que possam suprir as praticidade e gerando desequilíbrios funciona- agrotóxicos são substâncias estranhas ao nos-
necessidades de proteínas (substâncias que is com prejuízo para o organismo, concorrendo so corpo, “xenobióticos” que levam a intoxi-
servem para formar e reparar as células),  com os nutrientes das células e deixando mais cação orgânica e conseqüentemente dese-
lipídeos (fonte de energia que serve para fun- vunerável á doenças. quilíbrios funcionais gerando principalmente
ção, manutenção e integridade das membra- uma baixa imunidade deixando o sistema de
nas celulares,do sistema imunológico e forma- Camponesa - Há quem afirme que uma defesa debilitado.
ção dos hormônios), glicídeos, que fornecem dieta centrada na carne é geradora das
combustível contínuo para o funcionamento principais doenças que levam ao óbito nas Camponesa - Ter comida em abundância é
do sistema nervoso central, vitaminas (regu- sociedades ocidentais, como cardiopatias, sinônimo de nutrição? Quais as diferenças
ladoras do metabolismo, convertem lipídeos diabetes, vários cânceres e pressão alta. entre passar fome e ser desnutrido ou mal
e glicídeos em energia e colaboram na forma- Como a senhora vê esta situação? nutrido?
ção de osso e tecidos) e minerais, que regulam A carne é um alimento protéico que Comida em abundância não é
o ritmo cardíaco, respiratório e comunicação pode ser utilizado em nossa alimentação, sinônimo de nutrição, existe uma enorme dis-
neural. Esses nutrientes em harmonia são fun- porém a quantidade e freqüência de ingestão tância entre alimentar-se e nutrir-se. A escolha
damentais para um bom funcionamento do deve ser moderada por diversos motivos; um do alimento é muito importante, cada alimen-
nosso organismo. deles é que a grande quantidade de proteína to se destaca pelo nutriente que ele contém
de origem animal na refeição acidifica o ph em maior quantidade. Os nutrientes agem em
Camponesa - Quais os princípios de uma sanguíneo, aumentando a excreção de nutri- conjunto nas nossas células, portanto, ser des-
alimentação saudável? Quais são os ali- entes como, por exemplo: excreção urinária nutrido ou mal nutrido vem do desequilíbrio
mentos considerados saudáveis? de cálcio, de oxalatos e de ácido úrico que for- da carência ou excesso de alimentos.
Escolher o alimento indispensável mam os cálculos renais.
para a formação de cada célula que compõe o or- Camponesa - Que mensagem a senhora
ganismo, e não simplesmente utilizar como fonte Camponesa - Na sua prática de nutricionista, deixa aos nossos leitores?
de energia, cada célula do organismo necessita quais as principais dificuldades que as pessoas A alimentação equilibrada é um
pelo menos de 44 nutrientes para sua função nor- enfrentam para seguir uma dieta saudável? fator essencial na manutenção de funções
mal. Os alimentos considerados saudáveis são os As principais dificuldades encontra- vitais básicas, além de prevenir e ajudar a
naturais sem agrotóxicos e sem aditivos químicos. das são seguir horários regulares de alimen- tratar inúmeras doenças da vida moderna,
tação, fracionar as refeições durante o dia e lembrando que temos cerca de 100 trilhões
Camponesa - Observamos, atualmente, de células no corpo e cada uma delas exige
em tempos de globalização, a ocorrên- “Existe uma enorme um suprimento constante e diário de nutri-
cia de uma padronização cada vez maior entes para funcionar com perfeição e poder
dos produtos consumidos, dos comporta-
distância entre alimentar-se alcançar seu potencial pleno em todo o me-
mentos alimentares e dos gostos. Como a e nutrir-se” tabolismo orgânico.

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Entrevista: Marília Leão

Alimentação saudável é um
direito humano inviolável
Nossa alimentação está cada vez mais padronizada em todo mundo e os
alimentos vão deixando de ser um meio de reproduzir a vida e as culturas para
se tornarem meras mercadorias

A
necessidade de maiores investimentos nas políticas públicas de desenvolvi-
mento agrário, em particular às que favorecem a agricultura camponesa e fa-
miliar, o incentivo ao associativismo e cooperativismo como também a pro-
moção da agroecologia e da economia solidária, na opinião de Marília Leão,
são essenciais para garantir o direito humano à alimentação saudável e adequada.
Segundo ela, “é preciso reafirmar que as raízes da fome estão no modelo econômico e
de desenvolvimento vigente no mundo”, o que desafia a sociedade a pensar para além
de um outro modelo de desenvolvimento agrário, sendo imprescindível repensar o
“próprio modo de organização da economia”. Mas ressalta que “isso só será possível
com muita luta política, tanto dos movimentos sociais de massa como de organiza-
ções que trabalham com foco em políticas públicas e nas instituições formais da de-
mocracia”. Entre as muitas formas de luta, o consumo consciente se apresenta como
uma delas pois “o poder do consumidor urbano é enorme e ele precisa saber disso”,
afirma Marília.
Marília Leão é Especialista em Políticas Públicas e Mestre em Nutrição
Humana. Atualmente preside a Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos
(ABRANDH) e é conselheira representante da sociedade civil no Conselho Nacional
de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA).

Camponesa - Os pilares mais fundamen- hoje que mais de 80% da população brasilei- e no fortalecimento da produção familiar?
tais da soberania alimentar incluem o ra vive nas áreas urbanas e que qualquer É imperativo ampliar o compromis-
reconhecimento e o cumprimento do di- movimento desse contingente tem um alto so dos governos em destinar recursos expres-
reito à alimentação e o direito à terra; o poder de transformação da realidade. As- sivos para as políticas públicas de desenvolvi-
direito de cada nação ou povo a definir a sim, começar a discutir como podemos pro- mento agrário que fortaleçam a agricultura
sua própria política agrícola e alimentar, mover a soberania e segurança alimentar e camponesa e familiar por meio de medidas
respeitando o direito dos povos indígenas nutricional enquanto consumidores urba- de acesso à terra e ao território, à água e às
aos seus territórios, os direitos dos pesca- nos conscientes, politizados e militantes da sementes crioulas; ao crédito; à infraestrutura
dores tradicionais a áreas de pesca, etc.; causa poderá gerar impactos importantes na e serviços; à educação, capacitação e assistên-
um refúgio das políticas de comércio sociedade em curto, médio e longo prazo. cia técnica que articulem o conhecimento for-
livre, com uma concomitante maior prio- mal com as culturas e os saberes locais; que in-
ridade de produção alimentar para mer- Camponesa - Muitos pesquisadores con- centivem o associativismo e o cooperativismo;
cados locais e nacionais, e o fim da venda temporâneos tentam relacionar sistemas que promovam a agroecologia e a economia
abaixo do preço de custo (dumping); re- sociais e sistemas ecológicos para enfren- solidária; e que garantam o controle de toda a
forma agrária genuína; e práticas agrícolas tar os desafios alimentares do século XXI. cadeia alimentar, da produção à distribuição,
sustentáveis, com base nos camponeses, Como conciliar soberania alimentar e o dentre outras etapas. Os programas públicos
ou agroecológicos. O que nós, habitantes manejo sustentável dos agroecossistemas devem ainda fortalecer as organizações da so-
de centros urbanos, temos a ver com a so- com base nos princípios da agroecologia ciedade civil como forma de contribuir para a
berania alimentar? consolidação de espaços públicos plurais e a
O debate sobre soberania e segu- “As grandes empresas participação ativa, democrática e informada.
rança alimentar e nutricional no contexto
dos centros urbanos é muito interessante e agrícolas não cultivam ali- Camponesa - Nesses oito anos de governo
nos remete a questões novas e necessárias, mentos, elas produzem mer- Lula, em que estágio se encontra a disputa
pois estamos condicionados a pensar a entre o modelo agroindustrial, baseado na
questão quase sempre da perspectiva da cadoria, e aí reside a questão produção monocultural em larga escala
produção agrícola camponesa e familiar,
daqueles que vivem nas áreas rurais e quase
crucial do atual modelo de voltada para exportação, e o modelo de
agricultura praticado pelos camponeses
nunca dos consumidores urbanos. Sabemos desenvolvimento do Brasil” e pequenos agricultores? Que avanços e

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“Não podemos, portanto, aquisição de alimentos da agricultura familiar, do capitalismo financeiro e das empresas
como o PAA (Programa de Aquisição de Ali- transnacionais sobre todos os aspectos da
pensar apenas em mudar o mentos) que apenas no ano de 2008 executou agricultura e do sistema alimentar dos países
R$ 551,7 milhões. e do mundo. Desde o controle das sementes
modelo de desenvolvimento a venda cada vez maior de agrotóxicos, até
rural, mas o próprio modo de Camponesa - Há quem diga que as raízes da a compra da colheita, o processamento dos
fome e da desnutrição no Brasil associam- alimentos, transporte, distribuição e venda
organização da economia” se a duas dimensões interdependentes de ao consumidor, tudo já está em mãos de um
que dificuldades pode-se apontar? uma mesma crise de nosso modelo de de- número reduzido de empresas. Os alimen-
A concentração de terras no Brasil senvolvimento: baixo poder aquisitivo da tos deixaram de ser um meio de reproduzir
aumentou no Governo Lula e continua entre as população e insuficiência de produção de a vida e a cultura das pessoas, tornaram-se
mais altas do mundo. O modelo hegemônico alimentos para o consumo interno. Como apenas mercadorias.
no campo, baseado no agronegócio de ex- enfrentar essas questões?
portação e nos monocultivos, se radicalizou e Em primeiro lugar, é preciso reafir- Camponesa - Como fazer a passagem dos
colocou o Brasil como o maior exportador de mar que as raízes da fome estão no modelo atuais padrões de desenvolvimento rural
alimentos do mundo. Por exemplo, a maior econômico e de desenvolvimento vigente ou de sistemas de produção de baixa sus-
empresa de carne bovina do mundo, inclusive no mundo. As políticas de desenvolvimento tentabilidade para modelos de agricul-
com ramificações em vários países, é brasilei- têm se pautado em interesses do mercado fi- tura e de manejo rural que privilegiem e
ra. Não faltou fomento para as monoculturas nanceiro e dos grandes conglomerados mul- incorporem princípios, métodos e tecno-
de cana, para agrocombustíveis, eucalipto tinacionais e não na garantia de direitos e da logias de base ecológica?
para papel e soja para rações animais. O plan- dignidade humana. Nesse contexto, o ali- O desafio é enorme, pois o modelo
tio da cana de açúcar avança sobre as áreas mento é visto como mercadoria e não como hegemônico na indústria da alimentação (in-
de cultivos de alimentos e tem aumentado um direito humano cuja garantia é obrigação cluindo todas as suas dimensões, da produção
o desmatamento da Amazônia, e a devasta- dos Estados. Atualmente, o mundo produz agrícola à venda dos produtos, passando
ção de outros biomas, como o Cerrado e o alimentos em quantidade suficiente para to- pelo processamento, pela publicidade,
Pantanal, além de ainda trazerem consigo o dos. O que ocorre é que muitos não têm aces- pela distribuição etc) hoje é um dos pilares
trabalho escravo ou semi-escravo. O número so a eles. Milhões de pessoas não possuem do capitalismo, é uma das suas indústrias
de famílias assentadas pela Reforma Agrária rendimentos ou outros meios para comprar mais rentáveis e que maior número de pes-
empacou nos últimos anos (136 mil em 2006, ou produzir os alimentos que necessitam soas, empresas e instituições envolvem.
68 mil em 2007 e 70 mil em 2008). Ainda as- para viver com dignidade. No mundo todo, Não podemos, portanto, pensar apenas
sim, os movimentos sociais que defendem a estima-se que, depois da crise dos preços dos em mudar o modelo de desenvolvimento
Reforma Agrária vêm sendo criminalizados, alimentos (2007/2008), mais de um bilhão de rural, mas o próprio modo de organiza-
os trabalhadores do campo continuam com pessoas têm o seu direito humano à alimen- ção da economia, que precisa ser focado
dificuldades de acesso a muitas políticas tação adequada violado, isto é, convivem dia- no desenvolvimento da sociedade como
públicas, entre outros problemas. Então, o riamente com o flagelo da fome, em situação um todo, e não apenas de um punhado de
balanço no campo da soberania e segurança de insegurança alimentar permanente. empresas e seus acionistas. Alternativas
alimentar e nutricional não é positivo. Mas não No Brasil, ainda temos fome no país existem e mostram que são capazes de se
podemos deixar de fazer justiça e reconhecer das supersafras. O balanço líquido das calo- tornarem padrão: as experiências de eco-
que tivemos avanços em alguns setores, como rias mínimas necessárias para cada brasileiro nomia solidária, com algumas funcionando
por exemplo: as estatísticas oficiais mostram a ou brasileira consumir é positivo, tanto é há décadas e com indicadores de eficiência
redução da fome, da desigualdade social, e re- que somos um dos maiores exportadores financeira até melhores do que os bancos
fletem o aumento da renda entre os mais po- de alimentos. Ou seja, temos um problema e instituições tradicionais do mercado; os
bres; além disso, a desnutrição infantil aguda de acesso aos alimentos, determinado pela projetos de agroecologia, que inclusive têm
foi virtualmente eliminada do país. O fato de pobreza e vulnerabilidade social. Mas a criado um novo nicho de mercado, o dos
o Governo Federal ter colocado o combate à questão é: que alimento é esse que estamos produtos orgânicos, que hoje já são uma
fome como uma de suas prioridades acabou produzindo em larga escala? Que modelo alternativa de negócio rentável e possuem
gerando algumas conquistas importantes: agrícola é esse que produz muitas “calorias”, um mercado consumidor crescente, entre
(i) a aprovação de uma Lei Federal (LOSAN – mas que traz juntos os resíduos – como os outros exemplos possíveis, mostram que é
Lei n° 11.346 de 15/09/2006), formulada com agrotóxicos – que causam doença e morte? possível construirmos um outro modelo de
a participação ativa da sociedade civil e que As grandes empresas agrícolas não cultivam organização social, no campo e na cidade. Mas
tem como objetivo a garantia do Direito Hu- alimentos, eles produzem mercadoria, e aí isso só será possível com muita luta política,
mano à Alimentação Adequada; (ii) a insti- reside a questão crucial do atual modelo tanto dos movimentos sociais de massa
tucionalidade permanente para o CONSEA de desenvolvimento do Brasil. Nas últimas como de organizações que trabalham com
Nacional como espaço de aperfeiçoamento décadas, temos assistido ao avanço vigoroso foco em políticas públicas e nas instituições
da democracia, da participação social e do formais da democracia.
exercício propositivo das políticas públicas na “Falamos muito da preser-
área da segurança alimentar e nutricional; (iii) vação da natureza, e é claro Camponesa - Em 2008, o Brasil tornou-se
a adoção de nova lei que fomenta a compra o maior consumidor mundial de venenos
de alimentos da agricultura familiar por pro- que isso inclui o ser humano, agrícolas (733,9 toneladas), ultrapas-
sando os Estados Unidos (646 milhões
gramas públicos de alimentação escolar (Lei
n° 11.947/09 de 16/16/2009); (iv) a política
mas falamos pouco da eco- de toneladas). Há que se deve isso e que
de transferência de renda, que efetivamente logia humana, da preserva- implicações têm para os consumidores?
têm contribuído para reduzir a extrema po- Isso se deve, novamente, ao mode-
breza urbana e rural (Programa Bolsa Família);
ção da saúde dos homens e lo agrícola vigente, que só enxerga os lucros
(v) a adoção de novas políticas públicas de mulheres” possíveis ao final da próxima safra. Isso se

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deve às empresas e ao mercado dos agrotóxi- “Estar livre da fome e ter a “mercadoria” que der mais lucro ao capi-
cos que não encontram barreiras concretas talista. Este prognóstico é sombrio, mas de
para entrarem no Brasil. Muitos agrotóxicos acesso regular e permanente fato, caminhamos para esta situação. Nossa
que são proibidos nos Estados Unidos, na alimentação está cada vez mais padronizada
União Europeia e na China conseguem regis-
a uma alimentação adequada em todo mundo, não comemos necessaria-
tro no Brasil. Isso é inaceitável! Num encon- e saudável é um direito fun- mente o que queremos, mas sim alimentos
tro recente, quando discutíamos o aumento de má qualidade, a preços que são contro-
do consumo de frutas, legumes e hortaliças
damental de cada brasileiro lados pelas bolsas de valores dos grandes
pela população - alimentos importantes ou brasileira” países. As tradições culinárias de nossos po-
na promoção da saúde - muitos dos espe- vos estão se perdendo. Só há uma maneira
cialistas presentes defendiam a tese de que milhares de famílias sem terra lutam por de reverter o processo: apoiar e ampliar a
devemos iniciar uma campanha nacional condições dignas de viver, trabalhar e pro- pequena produção, a produção agrícola
por um país livre do uso de agrotóxicos na duzir. Os dados nos confirmam a importân- camponesa e familiar, pois é ela que ga-
produção das frutas, legumes e hortaliças cia da realização de uma verdadeira e efetiva rante a biodiversidade, a continuidade da
e na conseqüente adoção dos princípios da Reforma Agrária. produção em qualquer tempo, a preserva-
agroecologia. Todos os presentes, entre nu- ção da cultura local e saúde dos alimentos
tricionistas, pesquisadores, produtores cam- Camponesa - Nesses tempos de globaliza- na sua forma tradicional. A produção agrí-
poneses, gestores governamentais e militan- ção, observa-se a ocorrência de uma pa- cola camponesa e familiar pode resolver,
tes sociais foram unânimes em defender esta dronização cada vez maior dos produ- ao mesmo tempo, a crise econômica – ge-
tese como a única saída para a promoção da tos consumidos, dos comportamentos rando milhares de empregos permanentes a
agricultura familiar e a sustentabilidade do alimentares e dos gostos. Caminhamos um custo muito mais baixo do que os em-
meio ambiente e da ecologia humana. Aliás, para formas de alimentação idênticas pregos industriais – e a crise alimentar, com
este é um ponto: falamos muito da preserva- entre diferentes povos? Que implicações a produção de alimentos saudáveis voltados
ção da natureza, e é claro que isso inclui o ser têm isso? para o mercado interno.
humano, mas falamos pouco da ecologia hu- Há cerca de 20 anos, vi uma charge
mana, da preservação da saúde dos homens numa revista americana que mostrava uma Camponesa - Que papel joga o consumi-
e mulheres. raposa muito dócil dentro de um galinheiro, dor na afirmação do princípio da sobera-
dormindo serenamente ao lado das galinhas, nia alimentar?
Camponesa - Segundo o Censo Agro- com o seguinte título: “Isso é a globalização”. O consumidor urbano precisa estar
pecuário 2006, divulgado no último dia 30 Então é isso: a globalização serviu aos in- informado sobre o seu importante papel na
de setembro pelo IBGE, a concentração da teresses dos países mais fortes, das espertas cadeia alimentar. O consumo consciente e a
terra, no Brasil, aumentou: a área ocupada raposas capitalistas, dos países bem posicio- cobrança por alimentos oriundos da agro-
pelos estabelecimentos rurais de mais de nados economicamente, dos países desen- ecologia e da produção sustentável, que
mil hectares concentra mais de 43% do volvidos com situação social e econômica promove famílias e pessoas que defendem
espaço total, enquanto as propriedades bem resolvida. A globalização serviu ao a natureza, podem causar uma revolução
de menos de 10 hectares ocupam menos grande capital, para crescer e se ampliar no campo da soberania e segurança alimen-
de 2,7%. No entanto, estas propriedades cada vez mais. Vejam quantas fusões de tar e nutricional. Na realidade, o poder do
menores, onde se encontra a agricultura grandes empresas ocorrem a cada ano no consumidor urbano é enorme e ele precisa
familiar são as principais responsáveis Brasil. As pequenas empresas de alimen- saber disso. Vale ressaltar que estar livre da
pelo abastecimento dos itens da cesta tos, as cooperativas de produtores foram fome e ter acesso regular e permanente a
básica. Como a senhora analisa esses dados todas compradas por gigantes multinacio- uma alimentação adequada e saudável é
e outros apresentados pelo Censo Agro- nais dos alimentos. E, então, se no campo um direito fundamental de cada brasileiro
pecuário 2006? da produção agrícola, na indústria de ali- ou brasileira, indispensável à realização de
Eles confirmam o que já citamos mentos, na distribuição e no varejo dos ali- todos direitos consagrados na Constituição
acima: a concentração do capital e das em- mentos temos concentração, o resultado é Federal. É um direito humano inviolável e
presas nas mãos de poucos donos, o que que caminhamos para uma dieta cada vez é uma obrigação do Estado Brasil garantir
gera a brutal desigualdade social e econômi- mais monótona – com menos variedade de este direito a todos(as) que vivem no ter-
ca do Brasil. Por outro lado, sabemos que alimentos – e vamos comer o alimento ou ritório nacional.

Calendário das Feiras Agroecológicas e de Economia Solidária


Núcleos da Rede Xique Xique:
Governador Dix Sept Rosado - Domingo Tibau - Domingo
Baraúna - Domingo São Miguel do Gostoso - Segunda-feira
Janduís - Segunda-feira Apodi - Sábado Jucuri - Sábado
Mossoró - Sábado
Rede de Comercialização Solidária Xique Xique
Rua Mário Negócio, 158A- Centro - Mossoró-RN- Cep: 59610-080
e-mail: redexiquexique@gmail.com - fone(084) 3316-1315

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o agronegócio”. 70% do feijão, 87% da man- dial de venenos agrícolas. Foram despejados
dioca, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 713 milhões de toneladas! Média de 3.700
50% do de aves. Mesmo em lavouras voltadas quilos por pessoa. Esses venenos são de ori-
para a exportação, a agricultura familiar tem gem química e permanecem na natureza. De-
um espaço de destaque. É o caso do milho, gradam o solo. Contaminam a água. E, sobre-
cultura na qual possuía uma participação de tudo, se acumulam nos alimentos”, escreve
46%. O mesmo ocorre com o café, cujo peso João Pedro Stédile, economista e integrante
é de 38%. da coordenação nacional do Movimento dos
3ª Ação Internacional da Sem Terra (MST), em artigo publicado no jor-
Marcha Mundial nal O Globo, 24-09-2009.
Censo Agropecuário 2006 (3): a
Com o tema “Seguiremos em mar- concentração da terra
cha até que todas sejamos livre”, a Marcha Sobre o consumo de carne
Mundial das Mulheres está preparando a sua A concentração da propriedade
terceira Ação Internacional para 2010. Com privada da terra no Brasil, em vez de diminu- “Os chineses compõem 20% da
as articulações e discussões girando em tor- ir, está aumentando. Em matéria assinada população do mundo, mas têm apenas 6% da
no de quatro campos de ação para as ativi- por Jacqueline Farid, o jornal Estado de terra arável e 6% da água doce. Os brasileiros
dades que serão desenvolvidas no próximo São Paulo, de 30 de setembro, demonstra: têm tudo: muitas terras, muita água (cerca de
ano: Autonomia econômica das mulheres, “A concentração e a desigualdade regional 20% da água do mundo ou mais). Os indianos
Bens comuns e serviços públicos, Paz e des- é comprovada pelo índice de Gini da estru- começam a entrar no paraíso do Mc’Donalds.
militarização e Violência contra as mulheres; tura agrária do país. Quanto mais perto esse Eles eram, desde muitos séculos atrás, vege-
as militantes da MMM no Brasil já estão en- índice está de 1, maior a concentração. Os tarianos, mas agora muitos deles começam a
volvidas em atividades preparatórias para a dados mostram um agravamento da concen- comer carne. E, em 20 anos, haverá mais indi-
execução do calendário 2010. tração de terra nos últimos 10 anos. O Censo anos que chineses. Pense que os indianos têm
Uma das ações internacionais será do IBGE mostrou um Gini de 0,872 para a ainda menos terra e água por pessoa do que os
no período de 8 a 18 de março de 2010, e de- estrutura agrária brasileira, superior aos ín- chineses. Então, quando estes povos mudam
verá reunir 3 mil mulheres numa caminhada dices apurados nos anos de 1985 (0,857) e o hábito de comer, sentimos isso no mundo
de Campinas a São Paulo. 1995 (0,856). “De acordo com o Instituto, en- inteiro, sobretudo no Brasil, porque o país tem
quanto os estabelecimentos rurais de menos muita terra e água. Quando você ”consome
de 10 hectares ocupam menos de 2,7% da carne, precisa de muito mais terra e água do
Censo Agropecuário 2006 (1) área total ocupada pelos estabelecimentos que quando consome verduras, grãos, frutas,
rurais, a área ocupada pelos estabelecimen- nozes, etc. Com o boom econômico da China,
A área ocupada pelos estabeleci- tos de mais de 1.000 hectares ocupam mais agora eles têm muito dinheiro para, por exem-
mentos rurais de mais de mil hectares concen- de 43% da área total.” plo, comprar terras. Eles compram no Brasil e
tra mais de 43% do espaço total, enquanto as na África e muito barato!”. A afirmação acima
propriedades de menos de 10 hectares ocu- é de Luc Vankrunkelsven, filósofo e teólo-
pam menos de 2,7%. A gritante desigualdade Índice de Produtividade Rural go, consultor independente da Federação
consta do Censo Agropecuário 2006, divul- Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras
gado, após mais de 10 anos da última edição, Índices de produtividade são in- na Agricultura Familiar do Brasil, em entrevista
no dia 30 de setembro pelo Instituto Brasileiro dicadores usados para verificar se proprie- para o IHU-Online, em 13/08/2009.
de Geografia e Estatística (IBGE). Utilizando- dades rurais são utilizadas de forma racional
se do índice de Gini, o estudo mostra a ferida e adequada - condições para a chamada
aberta da concentração de terras no país e função social, parâmetro para desapropria- Merenda escolar produzida
a falta de estímulo ao pequeno agricultor. O ção visando à reforma agrária. Sua atualiza- por agricultores familiares
censo revela ainda a opção por um projeto ção está prevista na Constituição Federal de
primário-exportador em detrimento da re- 1988 e na Lei Agrária, de 1993, com o intuito Em agosto, o deputado estadual
alização da reforma agrária. de garantir a função social da propriedade Fernando Mineiro (PT) realizou audiência
da terra. pública para discutir a Lei 11.947, de julho
A liderança nacional do Movimento de 2009, que dispõe sobre a compra dos
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vê produtos da agricultura familiar para a ali-
Censo Agropecuário 2006 (2): a a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito mentação escolar. Segundo a lei federal, pelo
agricultura familiar produz mais (CPMI), criada em outubro/2009, como uma menos 30% dos alimentos consumidos na
em menos terra represália da chamada “bancada ruralista” às merenda escolar devem ser produzidos por
pressões do movimento para que o governo agricultores familiares. Representantes de
A simples comparação do destino federal altere os índices de produtividade rural mais de 20 municípios estiveram presentes,
da produção de nossas terras, entre o que em vigor no País. além de inúmeras entidades e cooperativas
tem origem nos latifúndios e o que é gerado de agricultura, no evento que ocorreu na As-
pela agricultura familiar (pequenas proprie- sembleia Legislativa do Rio Grande do Norte.
dades rurais), prova que o direito humano
Agrotóxicos no seu estômago
O parlamentar explicou que para participar
fundamental à alimentação do povo é ga- “Na safra passada, as empresas desse programa, os agricultores familiares
rantido  pela última e não pelos primeiros. transnacionais, e são poucas (Basf, Bayer, têm que se organizar através de associações
A agricultura familiar chega a responder por Monsanto, Du Pont, Sygenta, Bungue, e cooperativas, além de garantir a continui-
“até 70% da produção” que integra a cesta- Shell química...), comemoraram que o Brasil dade da produção e a qualidade dos produ-
básica, assim superando, “em muitos casos, se transformou no maior consumidor mun- tos comercializados.

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Quando o alimento
é mais gostoso
Com o apoio da AACC/RN, famílias rurais de São
Miguel do Gostoso vivenciam a agricultura familiar
de forma organizada e baseada na agroecologia

Por Bethânia Lima

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A
simpática cidade de São Miguel VEJA – O Melhor do Brasil, São Miguel do soberania alimentar, foi concebida pela Via
do Gostoso está localizada a cerca Gostoso foi apontada como o melhor “Novos Campesina (movimento camponês mundial
de 100km de Natal, a capital do Destinos” da região Nordeste. que luta pela dignidade e acesso à terra) e
Rio Grande do Norte. São Miguel Com características do semiárido está na Declaração de Nyélény – Fórum Mun-
do Gostoso nasceu em setembro de 1884, nordestino, o município integra o território dial pela Soberania Alimentar – 2007. É um
mas só passou a ser município em 1993, pois, do Mato Grande, junto com outros 15 mu- conceito que tem sido adotado em todo o
até então, pertencia ao município de Touros. nicípios. Em São Miguel do Gostoso, as chu- mundo devido sua importância.
A primeira reação das pessoas que não a vas costumam se concentrar entre os meses Os crescentes investimentos e,
conhecem, ao ouvir seu nome, é: “Por que de fevereiro e julho; já entre setembro e principalmente, o avanço do agronegócio,
Gostoso?”. A cidade foi batizada com esse dezembro é rara a ocorrência das chuvas. nesses últimos anos, fragilizam a agricul-
nome em virtude de um vendedor ambu- Apresentando mudanças na sua tura familiar camponesa e a soberania ali-
lante que tinha uma risada tão contagiante história local e com muito que ensinar para mentar dos povos, provocam o aumento do
que os moradores denominavam de “gos- outros lugares do país, o município tem se uso de agrotóxico nos plantios, incentivam
tosa”. Sob o signo do riso, os moradores de tornado referência diante experiências de- a mecanização dos processos agrícolas e
São Miguel, ainda comunidade de Touros, senvolvidas por parte da população, dis- reforçam o esgotamento das fontes e dos
passaram a chamar o local de “Gostoso”. São tribuída entre a sede do município e cerca recursos naturais que levam ao comprome-
Miguel do Gostoso. de 20 comunidades e assentamentos ru- timento da biodiversidade. As experiências
Cidade com uma população de rais. São inúmeras as famílias rurais do mu- dos trabalhadores e trabalhadoras rurais de
pouco mais de 9 mil habitantes (IBGE, 2009). nicípio que estão envolvidas em trabalhos São Miguel do Gostoso vão na contramão
Seu Índice de Desenvolvimento Humano que refletem na soberania alimentar delas desse movimento, afirmando que “um outro
(IDH) é de 0,558 – o que a deixa na 165º e, indiretamente, de outras pessoas do mundo é possível”.
posição na escala dos 167 municípios no Rio município.
Grande do Norte, e na 5240º posição quando Áreas rurais conquistadas
comparada aos 5561 municípios do Brasil. A noção de soberania alimentar no município
Com uma taxa de alfabetização de 56,1%
(Idema, 2000), percebe-se que a situação do A soberania alimentar é um direito Cerca de metade da área do mu-
município não é tão alegre. Pelo contrário, é dos povos a alimentos nutritivos e cultural- nicípio de São Miguel do Gostoso é consti-
delicada com referência a alguns aspectos. mente adequados, acessíveis, produzidos de tuída de assentamentos rurais. Foram cria-
Embora, sua localização litorânea, tenha ren- forma sustentável e ecológica, e seu direito dos seis assentamentos federais nos últimos
dido destaque na mídia nacional. Em 2008, de decidir seu próprio sistema alimentício 12 anos com o apoio do Instituto Nacional
por exemplo, na edição especial da Revista e produtivo. Essa abrangência da noção de de Colonização e Reforma Agrária – INCRA/

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apoio do INCRA e do Movimento dos Tra-


balhadores Rurais Sem Terra – MST, para a
criação do Arizona. Com uma área de 5.914
hectares, o assentamento fica a 15 Km da
sede do município e está dividido em três
agrovilas: Paraíso, Arizona e Novo Horizon-
te. A divisão em agrovilas foi uma forma de
descentralizar a estrutura administrativa do
assentamento, e ainda facilitar o acesso aos
lotes. Cada agrovila conta com 60 famílias,
aproximadamente, e cada família possui uma
casa de alvenaria e um lote de 25 hectares.
Com o acesso a terra, as famílias
de agricultores e agricultoras cultivam
milho, feijão e roça para autoconsumo, e
para comercialização os plantios maiores
são de abacaxi e caju.

Agroecologia fortalece a
agricultura familiar
RN. Várias comunidades rurais também fa- Reduto refletia a situação de vários outros No intuito de contribuir com a
zem parte do município, sendo algumas lugares e de outras famílias, que buscavam autodeterminação das agricultoras e agri-
mais antigas do que a própria cidade. É o a terra para o sustento familiar. “Trouxeram cultores familiares do Rio Grande do Norte,
caso da comunidade de Reduto, com mais jagunços e nos expulsaram, e acabaram com a Associação de Apoio às Comunidades do
de 300 anos, e cerca de 80 famílias morado- os plantios, mas conquistamos apoios e a Campo do RN (AACC/RN) vem atuando junto
ras. “Quase todo mundo tem uma tirinha de terra foi desapropriada, em 1999”, relembra a alguns grupos do Assentamento Arizona e
terra, do mar para dentro. Nós nos reunimos orgulhoso o apicultor. de comunidades de São Miguel do Gostoso.
e plantamos na terra que não tinha dono, Com uma história mais pacífica de A instituição, juntamente com os grupos,
depois eles foram aparecendo”, diz o apicul- conquista da terra, as famílias do Assenta- tem apostado nos processos agroecológicos,
tor Gonçalo Miranda. A “peleja” pela terra em mento Arizona, em 1996, contaram com o organizacionais e de economia solidária. Em

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fins da década de 90 e início dos anos 2000, a


AACC/RN passou a desenvolver e apoiar gru-
pos e famílias nos processos produtivos de
Entrosado com a participação
transição agroecológica.
A agroecologia foi o ponto de par-
tida para a reinserção e superação dos agri-
no meio rural
cultores e agricultoras familiares, diante das João Eudes Rodrigues da Silva, 23 anos, morando temporariamente
dificuldades vividas no meio rural. Assimi-
lada e vivenciada como algo que vai além
na sede da cidade, São Miguel do Gostoso. É natural da comunidade de
do conceito científico, a agroecologia tem Tabua, e é para lá que ele voltará, em breve

E
sido trabalhada e disseminada como uma
prática de muito respeito às relações huma- nvolvimento e emoções. Não há como
nas e ambientais. “A Agroecologia resgata o não perceber na voz, no olhar e na
que de há de mais valioso para mulheres e narração da sua história, que o jovem
homens que vivem no campo, o valor dos João Eudes é dedicado e apaixonado
saberes e costumes, ou seja, o valor das pelo que faz. Tem algumas datas gravadas na
pessoas. Com isso, a agroecologia a partir memória, não como símbolo de presunção e
do seu princípio que é pra mim o funda- exibição, mas como significado de conquista
mental - a diversidade, de produção, de e partilha de algo importante para várias pes-
participação (mulheres e homens), tenta al- soas, como foi o primeiro dia de realização da
cançar o elementar para a manutenção das Feira Agroecológica e da Economia Solidária
pessoas que vivem no campo, a segurança de São Miguel do Gostoso – o dia 28 de agosto
alimentar”, comenta a integrante da equipe de 2006.
da AACC/RN, a engenheira agrônoma, Ivi Com apenas 23 anos, João Eudes é
Aliana Carlos Dantas. um dos Coordenadores do FOPP – Fórum de
“A agroeocologia é a preservação Participação Popular nas Políticas Públicas,
da natureza”, frisa a agricultora Sônia Maria Coordenador do Núcleo de São Miguel do
Pereira, da Agrovila Paraíso. Em Paraíso, dois Gostoso da Rede Xique Xique, e foi eleito re-
grupos de mulheres desenvolvem trabalhos centemente Conselheiro Tutelar da Criança e
de cultivo de hortas e criação de pequenos do Adolescente do município.
animais no sistema agroecológico. O Grupo “Eu comecei a participar de movi-
Unidas Venceremos é constituído por cinco mento muito cedo, eu tinha uns 12 anos e
mulheres e, desde 2002, desenvolve ativi- morava na Tabua e já coordenava o grupo
dades produtivas com o apoio da AACC/RN. de jovens da minha comunidade”, relembra
Já o Grupo de Mulheres Juntas Venceremos João Eudes. A participação no FOPP, segundo Encontros de Agroecologia e Mesas de Soli-
está formado por quatro mulheres, que atuam João, também foi conseqüência desse entro- dariedade e isso se deve à nossa organização”,
há pelo menos quatro anos, e também desen- samento e gosto pelas atividades em grupo, afima João Eudes.
volvem trabalhos agroecológicos. Com vários “fui um dos escolhidos pela comunidade para A sua colaboração junto ao Núcleo da
princípios em comum, essas mulheres já es- ir representá-la no fórum, e foi lá que conheci Rede Xique Xique também percorre a mesma
tiveram durante um tempo desenvolvendo o trabalho da AACC/RN”. lógica de dedicação e estímulo à organização
ações conjuntamente, e devido a esse tra- Selecionado no espaço do FOPP, dos grupos produtivos do município, que têm
balho, elas foram vencedoras, em 2008, do em 2004, para ser estagiário da AACC/RN e a agroecologia e a economia solidária como
Prêmio Valores do Brasil, concedido pela integrar um projeto temático que buscava fontes dos trabalhos e realizam a feira agro-
Fundação Banco do Brasil. trabalhar com o protagonismo juvenil, João ecológica. “Não somos só uma feira”, defende
A premiação gerou um recurso para diz ter aprendido e ensinado muita coisa. “O João. Além da produção diferenciada, baseada
as mulheres e elas converteram uma parte que eu aprendia de agroecologia no estágio, no comércio justo e no reconhecimento dos
dele em recursos para o trabalho. “Compra- eu repassava para o grupo de jovens que tra- valores do trabalho da mulher, por exemplo, a
mos sementes, mangueiras, expressores e balhava com horta na comunidade”, afirma. diferença da feira também está na proposta de
estamos investindo na produção de salgados A socialização, a solidariedade e reflexão das temáticas que cercam a vida em
e bolos”, diz a agricultora Maria do Socorro a força estão entrelaçadas na vida de João sociedade.
Gomes, do Grupo Juntas Venceremos. Eudes, e os caminhos percorridos até agora “No dia 9 de março de 2009, as mu-
Com uma larga experiência no tra- mostram isso. Enquanto coordenador do lheres fizeram uma ação durante a feira agro-
balho agroecológico, essas mulheres agricul- Fórum de Políticas Públicas, ele avalia que “o ecológica para comemorar o Dia Internacio-
toras já enfrentaram muitos obstáculos para FOPP é um instrumento da sociedade para nal da Mulher e quando eu cheguei em casa,
chegarem onde estão hoje. Maria Salete e Sô- cobrar e dar oportunidades; ele é um espaço para o meu espanto, eu ouvi o meu pai dizer
nia Maria, do Grupo Unidas Venceremos, res- político social e econômico que possibilita emocionado que a feira tinha sido muito bonita
gatam que para conseguir a permissão de uso conquistas à população de São Miguel do Gos- com a atividade das mulheres”, relata João.
da terra coletiva para fazerem a horta, foi preci- toso”. Reconhecer e saber identificar as dificul- Com a agenda cheia de planos para
so muita negociação com a associação, porque dades temporárias para o funcionamento de o futuro, uma das intenções de João Eudes é
as mulheres não tinham o poder de participa- um espaço da sociedade civil também é algo estudar agronomia, “penso em fazer o curso
ção e nem eram reconhecidas. “Hoje em dia, avaliado pelos participantes do fórum. “A or- e implementar o meu saber aqui em São
a associação já conta com seis mulheres na ganização é fundamental para termos o FOPP Miguel”, confessa. “Eu aprendi nesses anos
coordenação, em um total de 12 pessoas”, diz existindo, passamos por momentos delicados, todos de participação que é possível ter vida
Salete. A área destinada aos grupos é de um assim como temos nossas ações de destaque digna e oportunidades no meio rural”, encerra
hectare e meio para cada um dos grupos. porque já realizamos Encontros de Juventude, sorridente a conversa.

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O processo de assistência ao tra-


balho agroecológico possibilitou, e ainda
possibilita, que todo o contexto vivido pelas
mulheres tenha passado por mudanças. “A
gente trabalha pela segurança alimentar”,
diz convicta Dona Salete. Com a oportuni-
dade de aprenderem e discutirem técni-
cas para a melhor execução do trabalho no
campo, as agricultoras costumam participar
de eventos e viagens para conhecer histórias
semelhantes às delas. “Quando uma de nós
vai conhecer uma experiência, na volta essa
pessoa repassa para as outras o que apren-
deu, e saímos multiplicando e testando na
nossa área”, conta Sônia.
“A gente não trabalha com quei-
magem nem com trator, e desde que me en-
tendia de gente trabalhava assim, com meus
pais, e não sabia que era agroecológico”, con-
fessa rindo Dona Salete. Valorizar e resgatar
práticas antigas e descobrir novas possibili-
dades que garantam a qualidade do plantio
é uma tarefa que as agricultoras também to com as hortaliças e as frutíferas plantamos esterco produzido pelos animais serve para
executam no campo. “Quando dá praga a muitas flores também na horta, para que os enriquecer a terra.
gente perde por completo o plantio porque insetos não estraguem os canteiros”, explica
a gente não usa veneno. Usamos caldas, nim, Sônia Tenório. Provocando mudanças de hábitos
alho, pimenta e cobertura morta para que A relação de sustentabilidade e
tudo dê certo com a terra e com o produto”, partilha é bem interessante, porque o que
conta a agricultora Francisca Tenório. Ter hábitos saudáveis e consumir
acaba se estragando ou dando em excesso
A diversidade cultivada na horta é aproveitado para os animais que os gru- alimentos sem agrotóxicos são práticas que
das mulheres é mais uma ferramenta apren- pos criam. Frutas como mamão, bananas e essas famílias vão adotando e estimulando
dida, para que o plantio responda de forma resto de hortaliças são repassados para os à vizinhança a adotar. “Desde o tempo que
saudável à dedicação do trabalho delas. “Jun- porcos, ovelhas e galinhas. Assim como, o começamos a cuidar da horta que o café da

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manhã da minha família é vitamina ou suco”,


destaca Sônia.
Já a agricultora Maria Matias, do
Uma jovem aprendiz que
Grupo de Mulheres Maria, da Agrovila Arizo-
na, confessa que nem conhecia algumas das transforma a realidade local
hortaliças que hoje em dia consome muito.
“Eu não sabia como era a rúcula, e agora eu Maria Katiana Barbosa da Silva, 22 anos, moradora do
adoro comer”, diz a agricultora. Assentamento Arizona, em São Miguel do Gostoso
O Grupo Maria é composto por

E
quatro mulheres, e além da horta, elas tam-
bém criam galinhas. Por enquanto, a maioria m 2003, com apenas 16 anos de
da produção da horta agroecológica é con- idade, Maria Katiana Barbosa da
sumida pelas famílias dessas mulheres. “É Silva conheceu o trabalho da AACC/
um produto saudável que eu tenho na mesa RN; com vontade de acompanhar as
para a minha família”, ressalta Maria Matias, ações da instituição, ela passou a participar
mais conhecida por Dadá. de capacitações e cumprir a agenda de proje-
Com a assessoria da AACC/RN, o tos desenvolvidos para fortalecerem a juven-
trabalho de apicultura também é desen- tude nas organizações e nos espaços comu-
volvido junto a alguns grupos. Desenvolver nitários, provocando ainda a capacitação em
o trabalho com a apicultura traz o comple- temáticas como: agroecologia, organização e
mento do mel para as famílias. A partir da gênero. A partir do momento em que passa
produção, o mel é utilizado pelas famílias a se integrar às discussões entre a juventude
para vários fins, dentre eles: adoçar comi- e as mulheres do assentamento, ela passa
das como bolos e vitaminas, preparo de também a conhecer outros espaços e movi-
lambedores e rechear pães e biscoitos. “Uma mentos, tais como o FOPP (Fórum de Partici-
das sobremesas boas para a gente é comer o pação Popular nas Políticas Públicas) e a Mar-
mel com farinha”, diz a apicultora Lucineide cha Mundial das Mulheres - MMM. Envolvida
Menezes, da comunidade de Reduto. pelas oportunidades de discutir temáticas
que “tinham a ver” com a sua realidade, e o
Alternativa que respeita a local em que vivia, ela foi conhecendo e cada
vez mais participando.
diversidade ambiental “Quando conheci a Marcha já comecei
a me envolver, porque percebi que as temáticas
Com três grupos, a AACC/RN tra-
e a proposta do movimento tinham a ver com a
balha a perspectiva agroecológica na api-
minha vida, e com a vida das outras mulheres
cultura. Na comunidade de Reduto, o grupo
que eu conhecia no assentamento”, diz Katiana.
é bem heterogêneo, sendo formado por
Batalhar contra as dificuldades enfrentadas
jovens e adultos, homens e mulheres. No
pelas mulheres, e buscar a instrução e o esclare-
Assentamento Arizona, nas Agrovilas Novo
cimento a partir da compreensão e do debate tem coordenações que costumam compar-
Horizonte e Arizona os grupos também são
em torno de assuntos como: violência sexista e tilhar as responsabilidades. Lidando ainda
formados por jovens e adultos, sendo tam-
exploração trabalhista, só nutrem a importân- com pique e ritmo, Katiana acompanhou
bém de caráter misto.
cia do fortalecimento e da identidade enquan- também o surgimento do “Batuk Feminista”,
“A gente tem cuidado com o lixo e
to mulher para Katiana, que passa a participar um grupo de jovens que toca batucada e faz
com o desmatamento”, explica a apicultora
de várias atividades com o apoio da AACC/RN e o seu som a partir de instrumentos reciclados.
Maria das Dores Cardoso, conhecida por
das suas instituições parceiras. Elas estão sempre animando e espalhando
Dorinha. A apicultura sendo desenvolvida
Integrada às mulheres do assenta- o batuque musical e político pelos eventos
na linha agroecológica consegue diminuir
mento, e com ideias para colaborar com a que acontecem na cidade. O que deveria ser
as queimadas na região, consequentemente
organização, Katiana viu vários grupos de somente uma ação de lazer, tornou-se uma
aumenta e preserva a mata nativa e a sua
mulheres aparecerem no município em bus- atividade de reflexão.
diversidade. “Temos muita flor por perto
ca de melhorias para suas vidas. “Os grupos Em um curto período de luta pelas
do nosso apiário, é comum encontrar o
de mulheres surgem e vão além do trabalho melhorias e qualidade de vida das mulheres
cajueiro, coqueiro, mangueiras e a carnaú-
produtivo e das discussões das políticas públi- e da juventude, Katiana é uma multiplica-
cas”, destaca a jovem. E é com esse ritmo, dora e disseminadora das possibilidades de
organização e poder de participação que as transformar para melhor a realidade local.
mulheres de São Miguel do Gostoso se tor- Morando no assentamento Arizona desde
nam referencial para o território do Mato 1998 com sua família, ela sabe reconhecer a
Grande. “Somos organizadas e cobramos as importância da sociedade civil para decidir
responsabilidades cabíveis aos poderes; nas e resolver o que é o melhor. “Sei que todos
discussões de saúde e educação somos referên- esses esforços vêm transformando a minha
cia”, argumenta. vida e recebo essas influências porque
Com pique para o engajamento e acredito nisso”, assegura a garota que com
atuação nos espaços de decisões, Katiana é a firmeza diz querer estudar, para cada vez
Coordenadora de Jovens do Sindicato dos(as) mais atuar e ser capaz de contribuir com a
Trabalhadores(as) Rurais do município, e uma melhoria das comunidades, dos assenta-
das Coordenadoras do FOPP – já que o fórum mentos e do município.

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ba”, diz Gonçalo, mais conhecido como Seu Eudes Rodrigues, um dos coordenadores água de qualidade para beber e cozinhar os
Dadá, de Reduto. do FOPP. alimentos. O reservatório é capaz de arma-
Reconhecido como um instrumen- zenar 16 mil litros de água da chuva, e pode
Espaço de aprendizagem to muito importante para a sociedade civil, garantir água para as famílias do semiárido
a organização é visível no fórum a partir das por uns seis meses durante o ano.
e decisão
discussões temáticas existentes e dos en- Uma das etapas de execução do
caminhamentos e decisões tomadas. “Reivin- programa é justamente a definição das famí-
Todas as pessoas inseridas nesses
dicamos o que é nosso por direito, e às vezes, lias a serem beneficiadas, pois critérios devem
projetos desenvolvidos pela AACC/RN, tam-
bém fazem parte do Fórum de Participação chegamos a incomodar”, diz João Eudes. ser atendidos, e é justamente no FOPP, um
Popular nas Políticas Públicas – FOPP. Esse Com representação e diversidade, espaço civil e democrático, que a população
espaço surgiu em 1999, a partir da necessi- o FOPP é o espaço para definir quem deve se de São Miguel do Gostoso discute quem deve
dade da sociedade civil de se reunir e discu- capacitar em determinadas temáticas, quais ser contemplado. “A gente só tomava água
tir melhorias para o município, visando rei- as datas que merecem ser comemoradas salgada, e com a cisterna mudou tudo”, fala a
vindicar e controlar a aplicação das políticas pela população, quem pode participar de agricultora Maria Matias, da Agrovila Arizona.
públicas para o bem estar da população no intercâmbios e eventos. E assim, o investi-
âmbito municipal. mento na participação vai cada vez mais se Diversos produtos, cores
O FOPP tem uma coordenação consolidando. “As mulheres do município
e sabores
composta por seis pessoas da sociedade civil são beneficiadas pelas discussões do FOPP,
e se reúne uma vez por mês. porque temos participação e conquistamos
Também foi a partir do Fórum de
Com o objetivo de afirmar a auto- esse espaço”, diz Maria Katiana Barbosa, uma Participação Popular nas Políticas Públi-
nomia e o empoderamento dessas pessoas, das coordenadoras do fórum. cas que as discussões dos(as) agricultores
a AACC/RN apoia esse espaço e recorre a e agricultoras foram convergindo para a
ele para definir a execução de parte dos Água transformada em cidadania necessidade de uma feira agroecológica na
projetos aprovados para serem desen- cidade. “Discutimos no FOPP a vontade de
volvidos no município. “Nesses dez anos de Executando o Programa 1 Milhão ter uma feira em separado da feira conven-
existência e resistência, conseguimos mais de Cisternas, desde 2001, a AACC/RN já cons- cional, para mostrar e garantir às pessoas a
de dois milhões de reais para investimento truiu em parceria com as famílias rurais de São qualidade dos nossos produtos”, fala a agri-
no município. Isso é o que contamos, e em Miguel do Gostoso 583 cisternas. cultora Maria Socorro.
termos de atores locais e aprendizados é O propósito é levar um pouco mais Conhecer a experiência de outras fei-
imensurável o que conseguimos”, diz João de cidadania para as famílias que não tinham ras que já existiam, e espaços que trabalhavam

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na perspectiva da economia solidária era o que trabalham com a economia solidária pensar na autoestima dessas pessoas que
diferencial. “Fomos conhecer a experiência e a agroecologia, e oferece uma gama de fazem cursos, trocam experiências e sabem
da Rede Xique Xique no Oeste Potiguar, e produtos que contempla: hortaliças, frutas, que o que fazem é muito importante para
amadurecemos as discussões e a articulação mel, doces, salgados, roupas e artesanato. muita gente”, diz Andrée-Anne Raboud,
em São Miguel do Gostoso”, resgata João Nem todos os grupos participam efetiva- moradora de São Miguel do Gostoso, e
Eudes Rodrigues. Fortalecer os princípios mente da feira, pois alguns produtos não são consumidora dos produtos agroecológicos
solidários na economia e na produção agro- comercializados com a mesma praticidade da feira. O Núcleo da Rede Xique Xique já
ecológica foram coisas básicas para a cria- das frutas, por exemplo. Porém, o Núcleo é está trabalhando pela certificação partici-
ção do Núcleo da Rede Xique Xique de São composto por todo o pessoal que está nos pativa dos produtos agroecológicos dos
Miguel do Gostoso, a partir da experiência grupos e não se preocupa somente com os grupos, e para isso vem desenvolvendo,
da feira que começou a dar certo e a mobili- momentos de comercialização, porque a par- com a colaboração dos consumidores e
zar cada vez mais as pessoas. ticipação e integração do Núcleo envolvem a consumidoras, as etapas necessárias para
“O lançamento da Feira Agro- discussão e a formação em eventos e outras alcançar a certificação.
ecológica e da Economia Solidária de São atividades que servem para a instrução das Com a opção por desenvolver a
Miguel do Gostoso aconteceu no dia 28 de pessoas. Com a dinâmica de estarem sem- agricultura familiar baseada na agroecolo-
agosto de 2006, uma segunda-feira”, resgata pre debatendo a respeito das fragilidades e gia e na economia solidária, os agricultores
João Eudes. O dia oficial da Feira é a segun- avanços, as pessoas que integram o Núcleo e as agricultoras do município de São Miguel
da-feira, em local específico, numa das ruas costumam se reunir uma vez no mês para do Gostoso vêm alimentando o sonho pos-
principais do município, com barracas pa- conversarem. sível, de que a soberania alimentar pode ser
dronizadas e identificadas, e as pessoas tam- “Nossa vida melhorou com a fei- garantida. Ainda que os resultados alcança-
bém com roupas específicas para a feira. ra porque não temos mais prejuízo com dos até agora sejam um trajeto pequeno da
Lançada em 2006, porém com os a produção, não temos mais a pessoa do longa estrada de trabalho e conscientização
grupos se reunindo há pelo menos um ano; atravessador”, reflete o agricultor Francisco a ser percorrida, o caminho é traçado com
a feira vem se consolidando e apresentando Clemente, mais conhecido por Tiquinho e alegria e sorrisos.
resultados de que é possível criar uma rela- integrante da Coordenação da Rede Xique Para desenvolver os programas
ção de comércio confiável, ética e de res- Xique. A integridade com que os produ- e projetos institucionais ao longo desses
peito entre os(as) produtores(as) e os(as) tores e produtoras trabalham e legitimam anos, a AACC/RN tem contado com a parce-
consumidores(as). “Somos organizados, pa- a feira, é algo notório porque os consumi- ria de várias instituições que apoiam a orga-
dronizados e as pessoas sentem essa diferença dores e consumidoras de São Miguel do nização social, as tecnologias de beneficia-
na feira”, resume João, um dos coordenadores Gostoso também reforçam e acreditam mento, a economia solidária e a produção
do Núcleo da Rede Xique Xique de São Miguel nessa relação e nos princípios democráti- agroecológica. Dentre estas parcerias, estão:
do Gostoso. “A minha família consome os cos e justos da economia solidária e da Fundação Konrad Adenauer, União Europeia,
produtos, e costumo vender também tudo o agroecologia. Um produto de qualidade Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras,
que trago para a feira”, diz satisfeito o agricul- e mais saudável, por não conter nenhum Fundação Genéve Tiers Monde, Sebrae, As-
tor Damião Pedro, da comunidade de Tabua. tipo de agrotóxico é motivo para cativar sociação do Programa 1 Milhão de Cisternas,
O Núcleo local da Rede Xique Xique clientes. “Temos que incentivar a agricul- Ministério do Desenvolvimento Agrário e o
é formado por uma diversidade de grupos tura familiar com o produto sadio, e ainda Ministério do Trabalho e Emprego.

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Para
Ap ro f u n d a r

Monoculturas da Mente História da Alimentação


Perspectivas da Biodiversidade no Brasil
e da Biotecnologia
Autor: Shiva, Vandana Autor: Cascudo, Luís da Câmara
Editora: Global Editora Editora: Global Editora
Assunto: Ciências Biológicas - Ecologia Assunto: Ciências Sociais - Antropologia
Sinopse: De maneira séria e corajosa, Vandana Sinopse: 'História da alimentação no Brasil' chama
Shiva tece suas críticas aos programas de biotecno- a atenção dos estudiosos pela sua ideia, conteúdo e
logia e de monoculturas impostos por grandes pela apresentação dos temas. A obra dá oportuni-
empresas ou cooperativas, financiadas principal- dade a todos os interessados e curiosos em
mente por agências internacionais que destroem a biodiversidade e abafam culinária de conhecer o que se comeu e bebeu no Brasil, sob a influência de
milênios de saber da humanidade. Em 'Monoculturas da mente', com uma várias etnias, principalmente a portuguesa, a indígena e a africana. Luís da
linguagem de fácil compreensão, a autora expõe seus argumentos a favor da Câmara Cascudo pesquisou e selecionou os antigos costumes universais
proteção da biodiversidade e sobre as implicações da Biotecnologia e as comparando-os com o do Brasil, bem como a fabricação de objetos de uso
consequências da predominância global do tipo de saber científico do no preparo da alimentação e até a padronização de horários de refeições,
ocidente para a agricultura. suas superstições e crendices.

Geografia da Fome O Mundo Segundo


O Dilema Brasileiro - Pão ou Aço a Monsanto
Autor: Castro, Josué de Autor: Robin, Marie-Monique
Editora: Civilização Brasileira Editora: Radical Livros
Assunto: Geografia Assunto: Ciências Biológicas - Ecologia
Sinopse: 'O mundo segundo a Monsanto'
Sinopse: Um ensaio sobre o fenômeno da fome apresenta os perigos do crescimento das planta-
generalizada, numa época em que esta se torna ções de transgênicos, e a verdade escondida por
cada vez mais visível em tempos de globalização. trás da empresa que tem 90% das sementes OGMs
Josué de Castro foca seu estudo no continente americano, dando especial patenteadas e apresenta-se como uma 'empresa agrícola'. Essa hegemonia
atenção à fome no Brasil. coloca a multinacional norte-americana no centro do debate sobre os
benefícios e os riscos do uso de grãos geneticamente modificados.

Comida e Sociedade
Slow Food - Princípios Uma História da Alimentação
da Nova Gastronomia Autor: Carneiro, Henrique
Autor: Petrini, Carlo Editora: Campus
Editora: SENAC São Paulo Assunto: Culinária-Gastronomia
Assunto: Culinária-Gastronomia
Sinopse: A alimentação é, após a respiração e a
Sinopse: 'Slow Food' preconiza uma nova gastro- ingestão de água, a mais básica das necessidades
nomia. Ao gastrônomo cabe o papel que Carlos humanas. Mas como 'não só de pão vive o homem',
Petrini denomina 'coprodutor' - alguém conhece- a alimentação, além de uma necessidade biológica,
dor da agricultura e pecuária; das condições dos é um complexo sistema simbólico de significados
trabalhadores do campo; da procedência dos produto. Ser uma pessoa ativa sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos etc. 'Comida e
na mudança do planeta - rejeitar alimentos provenientes de exploração Sociedade - Uma História da Alimentação' abrange, portanto, mais do que a
humana, de meios de transporte poluidores em excesso, de empresas que história dos alimentos, de sua produção, distribuição, preparo e consumo. O
arruínam culturas locais ao se instalarem nas comunidades. Tudo isso para que se come é tão importante quanto quando se come, onde se come, como
que um mundo mais justo e sustentável se torne realidade. se come e com quem se come. As mudanças dos hábitos alimentares e dos
contextos que cercam tais hábitos é um tema intrincado que envolve a
correlação de inúmeros fatores.
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Articulação Nacional da Agroecologia – ANA


www.agroecologia.org.br A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
reúne movimentos, redes e organizações engajadas em experiências concre-
tas de promoção da agroecologia, de fortalecimento da produção familiar e
de construção de alternativas sustentáveis de desenvolvimento rural.

Rede Ecovida de Agroecologia


Rede Pardal www.ecovida.org.br Agricultores familiares, técnicos e consumidores
www.redepardal.org.br Constituída em 1999, a Rede Programa de reunidos em associações, cooperativas e grupos informais que, juntamente
Assessoria Rural para o Desenvolvimento e a Autonomia do Local, conhecida com pequenas agroindústrias, comerciantes ecológicos e pessoas compro-
por Rede Pardal, no Rio Grande do Norte, surgiu da necessidade de uma metidas com o desenvolvimento da agroecologia, organizados em torno da
ação mais integrada e articulada entre nove instituições, que assessoram Rede Ecovida com o objetivo de desenvolver e multiplicar as iniciativas em
áreas de assentamentos e comunidades rurais no estado, que possuem e, agroecologia; estimular o trabalho associativo na produção e no consumo de
reafirmam até hoje, afinidades políticas e institucionais, a saber: AACC/RN, produtos ecológicos; articular e disponibilizar informações entre as organiza-
Centro Padre Pedro, Centro Terra Viva, Centro Proelo, Ceacru, Coopervida, ções e pessoas; aproximar, de forma solidária, agricultores e consumidores;
Techne, CPT e Sertão Verde. estimular o intercâmbio, o resgate e a valorização do saber popular.

Fazendo a Agroecologia
O DVD “Fazendo a Agroecologia” apresenta as experiências desenvolvi-
das através da agreocologia e da economia solidária narradas em seus
espaços naturais, o que ajuda a perceber a importância dessas ações e a
possibilidade das trocas e de uma qualidade de vida para as pessoas.
Trabalho com a agricultura familiar com mais responsabilidade, ética e
compromisso com o meio ambiente e as relações sociais é o que vem
sendo feito e pode ser acompanhado nesse vídeo executado pela Rede
Pardal que teve ainda o apoio do MDA – Ministério do Desenvolvimento
Agrário, através da Secretaria de Agricultura Familiar.

Brasil - Transição para o verde


O DVD “Brasil: Transição para o verde e os desafios dos
Semeando Agroecologia combustíveis” tem o objetivo de discutir o tema da
O vídeo Semeando Agroecologia é uma síntese das Agricultura familiar e dos biocombustíveis – conside-
experiências agroecológicas vivenciadas por diversos rando riscos e oportunidades. A gravação aconteceu no
grupos produtivos espalhados por assentamentos e estado do Rio Grande do Norte, e foi elaborado de
comunidades rurais do Rio Grande do Norte e assessora- maneira participativa, simples e objetiva. O DVD serve
dos pela Rede Pardal nesses seus 10 anos de existência. É como um suporte para provocar a reflexão e o debate
possível ousar dizer que toda essa dinâmica de produção, sobre o tema, a partir da apresentação da complexidade
respeitando a natureza e buscando uma relação direta da situação no RN. As várias realidades agrícolas do RN
com quem consome, alimentado pelo espírito da são mostradas, a partir de imagens e depoimentos de
agroecologia e da economia solidária, significa a pessoas das regiões Oeste e do Mato Grande. Produção
construção social de uma nova agricultura. da AACC e da Agrônomos e Veterinários Sem Fronteiras.

Outras Publicações

Soberania Alimentar Agroecologia Cartilha Fazendo a


Uma resposta às mudanças climáticas Garantindo a Segurança Alimentar Agroecologia
Autores: Anamuri - Associação Nacional de Mulheres Autor: Projeto Agricultura Familiar,
Rurais Indígenas (Chile), Redes/Amigos da Terra - Agroecologia e Mercado / Desenvolvimento Autor: AACC/RN
Programa Uruguai Sustentável (Uruguai), SOF Sustentável da Agricultura Familiar no
-Sempreviva Organização Feminista (Brasil), Sinopse: A Cartilha “Fazendo a Agroecologia -
Nordeste
Programa Cone Sul Sustentável. Construindo processos de transição agroeco-
Sinopse: Esta cartilha visa apresentar a Soberania Sinopse: Este caderno pretende contribuir lógica” tem por objetivo discutir o tema da
Alimentar. Bandeira de luta da Via Campesina, a Sobera- para o debate no contexto político desse agroecologia a partir da compreensão dos
nia Alimentar propõe o direito dos povos, países e direito humano básico para que se cumpram agricultores e das agricultoras envolvidas em
Estado de definir suas políticas agrícolas e alimentares, os outros direitos da Declaração das
Organizações Unidas e dos Objetivos do processos de transição agroecológica. A cartilha
assim como de proteger sua produção e cultura no foi produzida pela Rede Pardal, e contou com o
âmbito da alimentação. Isso significa que o povo deve Milênio, entre as quais se destaca o combate à
ter o direito de decidir o que comer e como produzir. As fome no mundo, que passa pelos hábitos apoio da Secretaria da Agricultura Familiar do
prioridades se tornariam, portanto, a produção local de alimentares de cada um e cada uma. Acessível Ministério do Desenvolvimento Agrário
alimentos e o acesso à água, aos recursos naturais, à no site: (MDA/SAF) e do Conselho Nacional de Desen-
terra e às sementes. Acessível no site: www.agroecologia.inf.br/biblioteca/Cartilha
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www.sof.org.br/arquivos/pdf/portugues_completo.pdf %2003.pdf volvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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Artigo

A agricultura familiar
alimenta o Brasil
Por Emerson Cenzi

H
á alguns anos, ao assistir uma
palestra da professora Nazaré
Wanderley, naquela ocasião pro-
fessora da UFRPE, ampliei con-
sideravelmente minha compreensão sobre
a agricultura familiar e o sentido da reforma
agrária no Brasil. Na ocasião, a professora re-
latava sobre uma pesquisa que realizou sobre
assentamentos rurais e o viver neles. Uma de
suas conclusões foi que para a maior parte das
famílias o estar vivendo no meio rural, numa
área de assentamento e o fato de serem agri-
cultores e agricultoras familiares, significa “ter
onde viver e o que comer”. Este é o sentido
inicial, apenas uma centelha, mas que toma
dimensões gigantescas quando analisada em
nível de país. Não se está falando somente de
conquistar casa e comida. Tal afirmação pos-
sui, na verdade, uma relação direta sobre a so-
berania alimentar e econômica da agricultura
familiar, pois os resultados deste “viver e ter o
que comer” produzem resultados diretos no
desenvolvimento do país. “Os números do IBGE perspectiva, a mídia tem um papel fundamen-
Por décadas, no Brasil, a imagem tal a desempenhar no sentido de valorizar as
que se faz da agricultura familiar é a de que mostram que a agricultura iniciativas desenvolvidas pelos agricultores e
ela é atrasada, não possui nem desenvolve
tecnologia nos seus processos de produção,
familiar é mais produtiva, agricultoras familiares, muitas vezes unidos
em pequenas associações ou até em grupos
não nos serve. Porém, os dados do Censo gera mais emprego e renda, informais de produção, organizando-se em ex-
Agropecuário 2006 vêm contrariando isso, periências de economia solidária, estabelecendo
mostrando que a agricultura familiar ocupa outra
produz a maior parte da relações de trabalho e produção a partir de uma
posição. Os números do IBGE mostram que a cesta básica no país, ou perspectiva de respeito aos homens e mulheres
agricultura familiar é mais produtiva, gera que ali vivem. Experiências que, geralmente,
mais emprego e renda, produz a maior parte seja, a agricultura familiar se desenvolvem nos quintais, sob os cuidados
da cesta básica no país, ou seja, a agricultura alimenta o país” atentos do núcleo familiar, principalmente das
familiar alimenta o país. Podemos avançar mulheres e em sintonia com o meio ambiente,
mais um pouco afirmando também que ela 34% do arroz, 58% do leite , 59% do plantel de respeitando os limites da natureza.
é mais saudável, pois consegue, quando as suínos, 50% das aves, 30% dos bovinos e, ainda, O censo vem, portanto, afirmar que
condições lhe são dadas, produzir um produto 21% do trigo. O valor médio da produção anual nossa luta pela consolidação de políticas
agroecológico, coisa que o grande latifúndio da agricultura familiar foi de quase R$ 14 mil. para agricultura familiar como o Programa
nunca poderia proporcionar. Isso significa soberania e segurança alimentar de Aquisição de Alimentos (PAA), o Programa
O resultado do Censo Agropecuário não apenas para a agricultura familiar, mas para Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), as
2006 vem nos confirmar que viver no meio as cidades também, pois a maior parte desta iniciativas de Assistência Técnica e Extensão
rural significa efetivamente contribuir com produção é consumida nas cidades. Rural (ATER) de Assistência Técnica, Social
o desenvolvimento do país. A agricultura fa- Apoiar efetivamente a agricultura fa- e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), bem
miliar consegue empregar 75% da mão-de- miliar é enfrentar duas grandes batalhas, uma como também pelo convencimento da socie-
obra da agricultura quando o latifúndio ocupa é a luta por políticas de Estado, que cada vez dade civil, para que seja mais aberta e com-
uma área três vezes maior e emprega menos mais percebam e incorporem as necessidades preenda a importância da agricultura familiar,
(apenas 25 % da mão-de-obra). Apesar disso, efetivas de se subsidiar os agricultores e agri- se colocam como fundamentais para a sobera-
a agricultura familiar ainda responde por 38% cultoras familiares como forma de distribuir nia alimentar não só da agricultura familiar, mas
do valor total da produção, sendo cerca de 75% renda e proporcionar soberania alimentar. de todos os brasileiros e brasileiras.
destes referentes a produção da cesta básica A outra, que se relaciona com a primeira, é
dos brasileiros/as. É responsável ainda por 87% trabalhar para que a sociedade em geral re- Emerson Cenzi é graduado em Tecnologia
da produção nacional de mandioca, 70% da conheça e apóie a agricultura familiar pois de Cooperativismo (UFRN) com mestrado
produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, ela é a responsável por alimentar o país. Nesta em Ciências Sociais (UFRN)

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CÁLICE DA NATUREZA

A consciência busca, brandamente,


Acordar o beija-flor que invade o amanhecer...
Despertar um sonho divino, encantador,
Na esperança da soberana caatinga sobreviver.

Precisamos erguer o ramo da civilidade na campina


Para combater a desertificação que abate o juremal...

A fumaça da olaria que tisna as nuvens do entardecer,


Alegra o forno do egoísmo com flores de funeral.

Por que será que o semi-árido é degredado?


O homem selvagem não tem sensibilidade
De passarinho, não voa pelas copas da alegria
Nem pensa na felicidade da floresta.

Floresta que oferta o vinho à vida


No orvalho que adoça o cálice da flor,
Onde o beija-flor degusta a natureza divina.

A poesia “Cálice da Natureza” é de autoria do poeta potiguar,


Janduhi Medeiros, e está no livro “Mensageiro das Oiticicas”, de 2007

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