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A idéia da peça e o trabalho do ator em Stanislavski

Nicolai N. Gorchakov

Em 4 de setembro de 1924, Gorchakov, começando seus estudos no Teatro de Arte de


Moscou, recém-formado como diretor pelo Estúdio de Vakhtanghov, apresentou para
Stanislavski a comédia A Batalha da Vida, direção de conclusão de seu curso. Depois da
apresentação, relata Gorchakov, Stanislavski teceu como introdução à análise propriamente
dita do espetáculo, os comentários abaixo. Foi para mim uma grande alegria ver na boca do
mestre considerações sobre as quais venho insistindo muito nos últimos anos. Tenho por
certo que o entendimento e o comprometimento intelectual com o espetáculo é fator
determinante para a qualidade da atuação. Roberto Mallet.

"A fim de que eu possa falar a vocês com toda franqueza", começou Stanislavski, "têm que
responder-me à seguinte questão: quantas vezes gostariam de representar essa peça?"

Sua pergunta surpreendeu-nos a todos, e por isso não sabíamos como responder.

"Sei que vocês gostam dessa peça", continuou, "pois já representaram-na muitas vezes com
êxito. Eu também gosto dela. O diretor analisou-a com acerto. Há muitos momentos
comoventes e cheios de sinceridade na atuação individual de vocês. Vocês merecem
representá-la. Mas estou interessado em saber quantas vezes gostariam de fazê-lo.
Quantos anos? Pretendem que a mantenhamos no repertório do Teatro de Arte de Moscou?

Sentimo-nos numa sinuca. Alguns de nós até começaram a rir por puro desconcerto.
Nossos sonhos não tinham ido tão longe.

"Só esperávamos que ela pudesse ser mantida durante uma temporada", eu disse.

"Isso é mau", replicou Stanislavski. "O artista deve trabalhar com a intenção de que sua
criação perdure. Vamos, digam-me, gostariam de representar essa peça duzentas vezes?"

"Claro que sim, Constantin Serguêievich."

"E fariam alguns sacrifícios para tanto?"

Embora a pergunta tenha sido formulada em um tom cálido e afetuoso, percebemos a sua
seriedade e instintivamente permanecemos em silêncio. Até o ator mais jovem e
inexperiente sabe quão fatal pode ser sua resposta. Mas sendo eu o mais velho da
companhia, e sabendo que a questão dos "sacrifícios" era dirigida a mim, em minha
condição de diretor, compreendi que tinha que falar.

"Peço-lhe que não se incomode conosco por não respondermos à sua pergunta
imediatamente, Constantin Serguêievich", eu disse. "Você provavelmente nos compreende
melhor do que nós mesmos. Diga-nos por favor o que precisamos fazer para melhorar
nossa atuação e conservar a peça no repertório o maior tempo possível."
"Estão todos de acordo com Gorchakov?", perguntou Stanislavski. Logo continuou: "Não
conheço vocês muito bem. Encontramo-nos pela primeira vez ao redor da mesa de trabalho
e não quero pôr a perder o começo de sua carreira de artistas. Prometo-lhes que a peça será
representada e que vocês estarão nela, mas não imediatamente."

Respondemos unanimemente que faríamos tudo o que ele achasse que devíamos fazer.

"Tratem de não ter que lamentar essa decisão dentro de uma hora", respondeu com certa
ironia.

Logo continuou: "Perderei muito pouco tempo em analisar os méritos de sua atuação. Por
favor, não me levem a mal. O tempo é breve de agora até o momento em que a peça deve
ser apresentada de novo. Todos vocês compreenderam bem o autor, e o diretor conduziu
com acerto o trabalho de criação dos personagens de Dickens. Vocês permaneceram fiéis
ao tema da obra e, por isso, a trama e a idéia ficaram claros para a platéia. Trabalhando em
consonância com o diretor, encontraram o ritmo adequado e resolveram seus problemas de
atuação com sinceridade e entusiasmo. A atuação de vocês estava inspirada por uma
devoção juvenil. Isso chega ao público, encanta-o e faz com que passe por alto os defeitos.
Vocês têm defeitos? Creio que sim, mas não estão conscientes deles. Não os sentem...
pelo menos ainda não. Minha tarefa consiste em apontá-los, convencer-lhes de que têm que
combatê-los, livrar-se de alguns e transformar outros em benefícios. O principal defeito é
sua juventude. Estranham que lhe diga isso? Não conseguem seguir o fio de meu
pensamento? Vou me explicar.

"A juventude é uma maravilhosa se vocês puderem conservá-la sempre, mas isto é difícil de
se fazer. É claro que me refiro à juventude interior. Não há uma só mulher de idade
madura entre vocês. Nessa montagem, mesmo os papéis de anciãos são representados por
atores jovens. Se essa mulher de idade madura de que eu falava estivesse sentada entre nós,
nós a ouviríamos suspirar profundamente e com simpatia em resposta às minhas palavras.

"Bem, agora analisemos o que significa ser jovem em cena. Isto não tem nada a ver com
maquiagens nem com a maneira de se vestir. Conhecemos muitos exemplos em que os
figurinos mais coloridos e a maquiagem mais juvenil só contribuíram para pôr em maior
evidência a idade do ator. Ao mesmo tempo, sabemos que um ator ou atriz maduros podem
desempenhar um papel juvenil sem a ajuda de maquiagem ou de figurinos chamativos,
desde que ele ou ela conheçam o segredo da juventude teatral. Vocês devem estar
surpresos agora, perguntando-se qual o sentido de falar-lhes isto sendo vocês jovens, e
justamente quando acabo de elogiá-los pelo frescor de sua representação. Digo isto agora
porque vocês não têm a menor idéia de quão rápido vocês e sua atuação podem envelhecer
sem que sequer se dêem conta disso.

"A primeira coisa essencial para conservar jovem uma representação", continuou, "é manter
viva a idéia da peça. Ela é a razão pela qual o dramaturgo a concebeu, e é a razão pela qual
vocês decidiram representá-la. Não se pode nem se deve atuar em cena, não se pode nem
se deve produzir uma peça pelo prazer de representá-la ou simplesmente de produzi-la.
Vocês têm que sentir-se comovidos em sua profissão. Têm que amá-la com devoção e
apaixonadamente, não por si mesma, não por seus lauréis, não pelo prazer e o deleite que
lhes dá como artistas. Têm que amar a profissão que escolheram porque ela lhes dá a
oportunidade de comunicar idéias que são importantes e necessárias para o público. Porque
lhes oferece a oportunidade de, através das idéias que vocês dramatizam e através dos
caracteres que personificam, educar o público e convertê-lo em membros da sociedade mais
sensíveis, mais sábios, mais úteis e melhores. Eis aqui um problema imenso para o teatro,
especialmente em nossos tempos, quando muitíssimas pessoas vêm pela primeira vez ao
teatro. Se esse público novo vê e ouve as respostas para seus problemas, aprenderá a amar
o teatro e o aceitará como uma coisa própria. Portanto, o primeiro passo para conservar a
juventude teatral é responder claramente para si mesmo à pergunta: Por que represento esta
peça?

"Hoje vocês sabiam o propósito que os levava à representação. Queriam impressionar-me


como atores. Cumpriram seu propósito. Quando vocês fizeram sua representação na
Escola Vakhtanghov, também conheciam o propósito: queriam ser reconhecidos como
atores maiores de idade, já graduados. Cumpriram este propósito também. Mas o que foi
suficiente ontem, o que foi suficiente hoje, não o será amanhã, quando apresentarem a peça
para o público em geral. É importante para os espectadores que os pensamentos e a vida
deles estimulem vocês e que os pensamentos que enchem a vida da cena estimulem-nos.
Ao público importa a idéia do autor e a apresentação e a interpretação que vocês façam dela
como artistas de teatro. A idéia tem sempre que ser vital e importante para o público de
hoje, e é necessário que vocês sejam capazes de reproduzi-la com um tom verdadeiro.
Devem manter viva a idéia e ser inspirados por ela em cada representação. Este é o único
caminho para conservar a juventude na representação e ao mesmo tempo a juventude de
vocês como atores. E verdadeiro trabalho de criação da idéia da peça (insisto na palavra
verdadeiro) exige do artista amplo e variado conhecimento, constante auto-disciplina, a
subordinação de seus gostos e hábitos pessoais às exigências da idéia, e algumas vezes
também certos sacrifícios."

In "Las lecciones de `régisseur´ de Stanislavski", Nicolai M. Gorchakov, tradução em


espanhol (sem o nome do tradutor), Ediciones Pueblos Unidos S.A., Montevideo, 1956,
págs. 45-48. Tradução de Roberto Mallet.

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