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[GORCHAKOV, Nikolai M. Stanislavsky Directs.

New York: Funk &


Wagnalls, 1954. pp. 12-17]

O Que É um Diretor?

Na primavera de 1922, quando Vakhtangov ainda era vivo, mas estava acamado
havia vários meses, Stanislávski veio, sem aviso, nos assistir, numa matinê de domingo.
Estávamos apresentando peças de Tchekhov de um ato. Não me lembra, exatamente, o
motivo da visita dele. Provavelmente, compadeceu-se de nós, que estávamos
profundamente desgostosos com a doença séria e prolongada de Vakhtangov, ou, talvez,
quisesse ver uma de nossas apresentações no seu aspecto geral, já que nosso teatro levava
o nome de “Terceiro Estúdio do Teatro de Arte de Moscou”, o que significava que o TAM
era responsável pelo padrão de qualidade do nosso trabalho.
Ele nos disse, depois da apresentação, que tinha gostado dela. Permaneceu por
algum tempo no teatro, travando conhecendo conosco e, quando estava quase indo
embora, pedi permissão para acompanhá-lo até sua casa. Naquele ano, eu me formava na
nossa escola de teatro e, por sugestão de Vakhtangov, estava prestes a desenvolver meu
trabalho de conclusão do curso de direção: uma história de Dickens, A Batalha da Vida.
Era muito tentador, para mim, passar uma meia-hora a mais com Stanislávski.
Ele disse: “Vou agora à casa de Isadora Duncan, me despedir. Ela está indo para
a França. Você pode vir comigo até lá, se quiser.”.
Isadora Duncan tinha uma casa na Rua Kropotkin, onde morava e também tinha
seu estúdio. Entramos. Eu presenciei a despedida de Isadora Duncan e Stanislávski, que
levou quinze minutos. Eles conversaram em francês. O adeus foi muito afetuoso e
amigável.
Depois que saímos da casa dela, andamos pelo Gogol Boulevard. Stanislávski quis
saber sobre questões do nosso teatro e sobre nossos projetos profissionais e pessoais.
Sugeriu que nos sentássemos em um dos bancos ao longo do bulevar. Era um belo fim de
tarde de primavera. Ele perguntou, com sua invariável cortesia, se eu não estava com
pressa para ir a algum lugar. Ora, como eu poderia correr dele? Pedi permissão para
propor-lhe a questão que era a mais importante para mim: “O que é um diretor?”
Ele respondeu a minha pergunta com outra: “O que você está realmente ansioso
para saber é se você é um diretor? Quer saber se eu o considero um diretor. Bem, deixe-
me examiná-lo.”
Não era exatamente o que eu tinha previsto, mas eu não teria muito como escapar.
“Aqui estamos nós, sentados num banco no bulevar. Olhamos para a vida como
através de uma janela aberta. Pessoas passam por nós, incidentes acontecem ante nossos
olhos. Diga-me, agora, tudo o que você está vendo.”
Fiz uma tentativa e disse a ele o que me pareceu importante e interessante, a ponto
de chamar minha atenção. Devo confessar que não era muita coisa. Eu estava
envergonhado, por estar sendo examinado e por esta pergunta que me foi feita tão de
súbito. Eu não fiquei satisfeito com o meu relato e tampouco Stanislávski ficou.
“Você pulou muita coisa”. Ele nomeou uma porção de coisas que me tinham
escapado. Falou-me sobre o cocheiro que tinha chegado, cuja passageira era uma mulher
que estava, obviamente, trazendo uma criança doente para casa. Stanislávski reparou nas
lágrimas nos olhos da mulher. Falou de outros incidentes que aconteciam. Indicou que eu
me tinha esquecido de todos os sons que ele podia ouvir ao nosso redor. E, então, disse:
“Diga-me, que homem é este que vem em nossa direção?”. Eu olhei para o homem.
“Acho que ele é um contador ou algo assim. Parece muito arrumado e tem um
lápis no bolso superior. Sua pasta é limpa e ele é bem inquieto.”

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“Sua descrição cabe bem a um contador,” disse, “mas poderia caracterizar várias
outras profissões. E este? Quem você acha que é?”. Apontou para outro. Olhei para o
homem e disse: “Acho que é uma espécie de portador. Ele não parece ter pressa. Tem um
andar algo folgado. Há um envelope debaixo do seu braço. De repente, decidiu sentar-se
e, então, levantou-se num ímpeto e andou mais depressa, aí acenou com a mão, sentou-se
noutro banco e pegou um cigarro. Para mim, ele é um portador, enviado com uma
mensagem urgente.”
Stanislávski gostou mais desta vez. Disse que, com base nesta observação, seria
possível construir um personagem e uma situação dramática.
“E aqueles dois naquele banco, conversando?”, perguntou.
“Eles estão apaixonados”, respondi.
“Por que você acha isso?”
“Porque estão muito atentos um ao outro, mesmo nas pequenas coisas. Eles falam
mais com seus olhos que com suas bocas. Além disso, seus olhares um para o outro são
abruptos, assim como seus gestos.”
Stanislávski concordou que eles poderiam estar apaixonados.
“Agora, o que você sabe sobre este bulevar?”, perguntou-me.
Eu sei muito pouco sobre ele.
“O que você sabe sobre hoje? Qual a importância dele para Moscou e mesmo para
o mundo todo?”
Que azar! Eu não tinha nem lido o jornal naquele dia. Stanislávski tinha, e
cuidadosamente.
“O que você observou na casa de Isadora Duncan?”
“Eu estava muito entusiasmado,” respondi, envergonhado por não ter conseguido
responder à questão anterior, “vendo vocês dois, assistindo vocês se despedirem um do
outro; tudo o que eu sabia era que estava na presença de duas pessoas famosas e eu não
consigo dizer mais nada.”
“Você percebeu o elemento mais essencial – nós estávamos brincando de ser duas
celebridades internacionais – mas não entendeu para quem estávamos representando.
Você não reparou num senhor baixinho que estava sentado no canto da sala? Este homem
é o secretário especial de Duncan e estava tomando notas de tudo que via e ouvia. Ele vai
escrever um livro sobre a vida dela. Ela estava representando um papel e eu também.
Lembra-se de que conversamos em francês? Acha que nosso francês era bom?
“A mim, parecia-me que era muito bom”, respondi.
“Nós falávamos um francês bem ruim, fingindo que era excepcionalmente bom.
Quando estávamos no hall, ela apertou minha mão tão forte que ainda estou sentindo.
Você percebeu? Acho que ela gosta de mim e eu gosto muito dela. Você poderia ter
observado isto também. Você viu apenas o resultado da nossa atuação e não o que
estávamos representando e por que. O que você sabe sobre a Senhorita Duncan?”
“Tudo que sei é que ela dança descalça,” respondi.
A próxima pergunta foi a mais difícil para mim. “O que você sabe sobre mim?”,
Stanislávski perguntou.
Para esta questão eu, igualmente, nada tinha de razoável a responder.
“Nós acabamos de revisar o curso de direção,” ele disse. “O diretor não deve
apenas saber como analisar a peça, como orientar os atores na representação, como usar
os cenários que o cenógrafo lhe oferece, mas deve saber como observar a vida. Ele deveria
estar munido do máximo conhecimento possível de outros campos. Às vezes, este
conhecimento vem como resultado imediato das necessidades de uma peça específica,
mas é melhor armazená-lo. Podemos acumular nossas observações especificamente para
a peça, mas deveríamos, na verdade, desenvolver a capacidade de observar a vida e

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colocar nossas observações na estante do subconsciente. Mais tarde, elas deixarão o
diretor numa posição confortável.
“Você não é o primeiro a me perguntar o que é um diretor. Eu costumava
responder que o diretor é um alcoviteiro que une o dramaturgo ao teatro e, quando a peça
é bem-sucedida, traz felicidade aos dois. Mais tarde, passei a dizer que o diretor é uma
parteira que faz nascer o espetáculo, a nova criação de arte. À medida que a parteira fica
velha, ela, às vezes, torna-se uma feiticeira que conhece muita coisa. Aliás, parteiras são
muito observadoras na vida. Mas, atualmente, eu acho que o papel do diretor está se
tornando mais e mais complexo. A política é parte integrante das nossas vidas agora. Isto
significa que o horizonte do diretor inclui a estrutura do governo, os problemas da nossa
sociedade. Significa que nós, diretores de teatro, temos muito mais responsabilidade e
devemos pensar de modo mais amplo. Um diretor não pode se limitar a ser um mediador
entre o autor e a audiência. Ele não pode ser apenas uma parteira, meramente auxiliando
no nascimento do espetáculo. O diretor deve ter pensamento independente e deve suscitar,
com seu trabalho, as ideias necessárias à sociedade contemporânea. Eu tentei trabalhar
com essa perspectiva em Caim1. Encarreguei-me de fazer a plateia ponderar as ideias da
peça.”
E, com sua costumeira autocrítica, acrescentou, “Parece-me que não consegui.”
As qualidades que Stanislávski enumerou, para mim, nesta tardezinha de
primavera em 1922, como tão necessárias para um diretor – a habilidade de observar, de
pensar e de construir o trabalho de tal modo que suscite, na audiência, os pensamentos
necessários para a sociedade contemporânea – eram traços distintivos do próprio
Stanislávski, o diretor e o mestre do teatro, e, como eu entendi mais tarde, eram também
os problemas característicos do diretor soviético.

[Tradução do inglês: João Crepschi]

1
Peça de Lord Byron, publicada em 1821 e montada por Stanislávski em abril de 1920.

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