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FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE

CURSO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

INTERLOCUÇÕES ENTRE PSICOLOGIA ANALÍTICA E


ALQUIMIA: ANÁLISE DO MANIFESTO “O CASAMENTO
ALQUÍMICO DE CHRISTIAN ROSENKREUTZ” À LUZ DA
HERMENÊUTICA SIMBÓLICA DE C.G.JUNG

CURITIBA
2019
MATHEUS RIBEIRO DE RAMOS

INTERLOCUÇÕES ENTRE PSICOLOGIA ANALÍTICA E


ALQUIMIA: ANÁLISE DO MANIFESTO “O CASAMENTO
ALQUÍMICO DE CHRISTIAN ROSENKREUTZ” À LUZ DA
HERMENÊUTICA SIMBÓLICA DE C.G.JUNG

Projeto de Monografia apresentado


como requisito para conclusão de
Graduação em Psicologia, Faculdades
Pequeno Príncipe - FPP.

Orientadora: Profª. Ms. Aline Cristina


Zocante Mamede.

CURITIBA
2019
Agradecimentos

Às Faculdades Pequeno Príncipe, por ter sido o meu cadinho alquímico


nesses cinco anos no qual me desenvolvi pessoalmente e profissionalmente.
Aos professores, colegas e amigos das Faculdades Pequeno Príncipe
com os quais compartilhei dúvidas e desabafos, e dos quais recebi apoio e
incentivo.
Aos meus pais e minha família por ser o meu suporte, e as pessoas com
as quais compartilho o amor em seu sentido mais puro.
Aos meus amigos, que são meus irmãos de alma e um presente do
universo para a minha caminhada.
À minha orientadora Aline, que possibilitou que eu me descobrisse um
pouco mais como pessoa e profissional, e com quem aprendi muito. Foi a
minha soror mystica em todo esse processo.
Aos frateres e sorores da Ordem Rosacruz, AMORC, que são parte
fundamental da minha vida desde a infância. Os conhecimentos que
compartilhamos juntos ressoam nesta pesquisa.
Sumário

1. INTRODUÇÃO ...........................................................................................................8
1.1. JUSTIFICATIVA .................................................................................................. 9
1.2. OBJETIVO .......................................................................................................... 9
1.3. OBJETIVOS ESPECÍFICOS ............................................................................... 9
1.4. MÉTODO .......................................................................................................... 10
2. DESENVOLVIMENTO ............................................................................................. 12
2.1 A ESTRUTURA E DINÂMICA DA PSIQUE E O PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO ...................................................................................................... 12
2.1.1 A função transcendente e o símbolo na auto regulação psíquica ............ 16
2.1.2 Progressão e regressão da libido e a vivência simbólica da
transformação no processo de individuação ...................................................... 18
2.2 A ALQUIMIA COMO REALIZAÇÃO DA PSIQUE NO PROCESSO DE
INDIVIDUAÇÃO ........................................................................................................................ 22
2.2.1 As operações e fases alquímicas como processo de individuação na
psique .................................................................................................................... 33
2.2.2 A polarização energética na coniunctio e o efeito da união dos opostos
para o desenvolvimento da consciência ............................................................. 42
2.3. O MOVIMENTO ROSACRUZ; E O MANIFESTO “O CASAMENTO ALQUÍMICO
DE CHRISTIAN ROSENKREUTZ” ........................................................................................ 47
2.3.1 Primeiro dia................................................................................................... 53
2.3.2. Segundo dia ................................................................................................. 55
2.3.3 Terceiro Dia................................................................................................... 59
2.3.4 Quarto dia ..................................................................................................... 63
2.3.5 Quinto dia ..................................................................................................... 68
2.3.6 Sexto dia ....................................................................................................... 71
2.3.7 Sétimo dia ..................................................................................................... 77
2.4. ANÁLISE SIMBÓLICA DO MANIFESTO “O CASAMENTO ALQUÍMICO DE
CHRISTIAN ROSENKREUTZ”; PRIMEIRO DIA – O CONVITE .................................... 79
2.4.1 Segundo dia – Os quatro caminhos ............................................................ 88
2.4.2 Terceiro dia – A balança dos artistas.......................................................... 94
2.4.3 Quarto dia – A fonte de Hermes; Decapitação das personagens régias .. 97
2.4.4 Quinto dia – Visita à Senhora Venus......................................................... 103
2.4.5 Sexto dia – Regeneração das personagens régias .................................. 107
2.4.6 Sétimo dia – O retorno à pátria.................................................................. 112
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 115
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................ 118
O Uno é todas as coisas e não é nenhuma delas. Ele é o princípio
(arché) de todas as coisas; e, se não é nenhuma delas, no entanto é todas as
coisas de um modo transcendente, pois, de certo modo, elas estão no Uno. Ou
melhor, nem todas estão nele, mas estarão. Então, como todas as coisas
provêm do Uno, que é simples e não tem em si multiplicidade alguma e nem
mesmo dualidade alguma? É pelo fato de nada haver nele que todas as coisas
provêm dele. Para que o Ser possa existir, o Uno não é Ser, mas sim o gerador
do Ser. Podemos dizer que este é o primeiro ato da geração: nada possuindo e
nada buscando em sua perfeição, o Uno transbordou e sua superabundância
produziu algo diverso dele mesmo. O que foi produzido voltou-se de novo para
a sua origem e, contemplando-a e sendo por ela preenchido, tornou-se a
Inteligência. O ato de ter-se detido e se voltado para o Uno deu origem ao Ser;
o ato de ter contemplado o Uno deu origem à Inteligência. O ato de ter-se
detido e se voltado para o Uno a fim de contemplá-lo tornou-o simultaneamente
Ser e Inteligência. Desse modo, tornando-se semelhante ao Uno por
contemplá-lo, repetiu o ato do Uno e emitiu um grande poder.

Plotino
8

1. INTRODUÇÃO

O Casamento Alquímico de Christian Rosenkreutz consiste em um


manifesto publicado pela Ordem Rosacruz no ano de 1616, na cidade de
Estraburgo, Alemanha. É possível extrair da obra diversas interpretações de
caráter psicológico, pois a ideia central deste manifesto rosacruciano é o
preparo de Christian Rozenkreutz para realizar o processo de regeneração do
Rei e da Rainha. Desde o momento do convite para realizar as núpcias reais, a
narrativa da obra envolve Rosenkreutz em um simbolismo de renascimento e
transformação, que será desenvolvido em sete dias, ou seja, etapas para
elaborar as fases e operações do processo alquímico e finalizar o opus com a
coniunctio. Essas fases e operações simbolizam o processo psicológico da
individuação, conceito central na obra de C.G.Jung.
De acordo com Jung (2015), individuação consiste em tornar-se quem
se é tornar-se único, isto e, tornar-se si mesmo. O objetivo principal deste
processo psicológico é o de retirar do Si Mesmo, que é o centro regulador da
psique, os conteúdos que constituem a persona como também diminuir a
influência dos arquétipos. Isso permite ao indivíduo o melhor desenvolvimento
de suas qualidades coletivas como ser humano. Este processo psicológico
acarreta na função transcendente, uma capacidade inata da psique para a
transformação. Jung enfatiza que esta função psíquica é o objetivo principal da
alquimia, na qual é possível relacionar o processo de transformação da
personalidade com a mistura e fusão de elementos nobres e vulgares, e em
termos psíquicos, das funções inferiores e superiores do consciente e
inconsciente.
Portanto, o “casamento alquímico” está relacionado ao trabalho dos
alquimistas em unir os opostos através da coniunctio, sendo que a maior
oposição para essa união está no relacionamento entre o masculino e o
feminino, ou seja, a anima como personificação do feminino na psique
masculina e o animus como personificação do masculino na psique feminina. O
momento de maior profundidade do processo de individuação consiste na
integração dessas instâncias na psique, em consonância com o Casamento
9

Alquímico de Christian Rosenkreutz esse processo está personificado nas


núpcias reais entre o Rei e a Rainha. (JUNG, 2012)
O opus Alquímico não está relacionado diretamente e unicamente aos
processos químicos desenvolvidos pelos alquimistas, mas personifica na
matéria processos e conteúdos inconscientes pela via da projeção psíquica. A
importância da análise do Casamento Alquímico de Christian Rosenkreutz se
justifica pelo fato da alquimia constituir em um fundamento histórico para a
Psicologia Analítica, e seu simbolismo representar o processo de individuação.
(JUNG, 2012)

1.1. JUSTIFICATIVA

De acordo com os estudos realizados por Jung, a alquimia simboliza


processos de transformação psíquica que coincidem com a individuação. O
entendimento do desenvolvimento humano na Psicologia Analítica é de
fundamental importância para a compreensão da dinâmica da psique na vida, e
em suas implicações psicoterapêuticas. A análise do manifesto “O Casamento
Alquímico de Christian Ronsekreutz” pode auxiliar nessa compreensão, pois os
seus símbolos estão alinhados ao objetivo do processo de individuação que é a
união dos opostos e a integração psíquica.

1.2. OBJETIVO

Relacionar o processo de individuação como realização da psique


através do Manifesto “O Casamento Alquímico de Christian Rosenkreutz” por
uma análise da hermenêutica simbólica de C.G. Jung.

1.3. OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Conceituar a estrutura e dinâmica da psique e o processo de


individuação. Transcorrer sobre a história da alquimia e sua relação com o
processo de individuação. Descrever a história do Movimento Rosacruz.
10

1.4. MÉTODO

A presente pesquisa está fundamentada metodologicamente em uma


revisão narrativa da literatura, segundo Rother (2007), esse método de
pesquisa utiliza fontes de informações bibliográficas ou por meios eletrônicos
para estruturar os resultados de pesquisas de outros autores, com a finalidade
de fundamentar teoricamente determinado objetivo. A revisão narrativa da
literatura possui um caráter amplo, ideal para descrever e colocar em
discussão o desenvolvimento de determinada temática, de acordo com ponto
de vista teórico e contextual. Portanto, em linhas gerais, a revisão narrativa
consiste na análise da literatura publicada e na análise crítica e pessoal do
autor.
De acordo com Penna (2005), o método de investigação da psique
utilizado por Jung apreende características do pensamento dialético,
fenomenológico, hermenêutico, associativo, analógico e imagético. Sendo que
as premissas da Psicologia Analítica estão condizentes com a estrutura da
metodologia qualitativa de pesquisa em diversos aspectos. Jung antecipa as
proposições dos principais articuladores da metodologia qualitativa de
pesquisa, estando também o seu pensamento em consonância com as
principais ideias de Heisenberg e Bohr, em relação à relatividade e incerteza do
conhecimento. Ele também concordava com o pensamento de Nietzsche em
relação ao método científico que exige objetividade excluindo todo o fenômeno
subjetivo da investigação científica, Jung considera o conhecimento e
autoconhecimento fatores atrelados e condicionados pela psique do cientista.
O método qualitativo propõe uma abordagem compreensiva e
interpretativa dos fenômenos, ou seja, essa metodologia fundamenta-se na
perspectiva fenomenológica de que o conhecimento surge de processos de
natureza dinâmica e que fluem dialeticamente. A metodologia qualitativa
estrutura as pesquisas em Psicologia Analítica, considera os fenômenos em
função do contexto em que serão investigados, onde tanto a objetividade como
a subjetividade serão consideradas em conjunto para o conhecimento do
fenômeno. (PENNA, 2005)
11

O fenômeno psíquico investigado pela Psicologia Analítica é o símbolo,


tanto em suas manifestações no inconsciente pessoal como no inconsciente
coletivo a partir dos arquétipos. Penna (2005) afirma que Jung considera a
realidade em que vivemos como uma dimensão simbólica, sendo tal realidade,
portanto, psíquica. A investigação dos fenômenos simbólicos é a principal
ferramenta de estudo da psique na Psicologia Analítica, pois é a partir do
símbolo que o acesso ao conhecimento dos conteúdos inconscientes torna-se
possível, pois “Sempre exprimimos através de símbolos as coisas que não
conhecemos”. (JUNG, 2008, p. 114).
O método da hermenêutica simbólica é utilizado na Psicologia Analítica
a fim de tornar mais amplos os conteúdos psíquicos que sejam obscuros e de
difícil análise, como é o caso das imagens arquetípicas, em especial as que
estão presentes na simbólica alquímica. É possível estabelecer uma relação
entre a hermenêutica com a fenomenologia da existência e com os sistemas de
interpretação dos mitos e dos símbolos. A palavra hermenêutica significa
interpretar, e o escritor Richard Palmer relacionou esse conceito ao deus
Hermes, indicando três variantes desse significado: a função anunciadora que
pretende exprimir, afirmar ou dizer, na qual é dada valorização à palavra dita e
declamada; a função explicativa dá ênfase ao aspecto discursivo, e consiste no
processo de trazer o significado dentro de um contexto e isso corresponde ao
Círculo Hermenêutico, que é o próprio movimento entre a pessoa e o assunto,
fazendo que cada um possa dar e receber o sentido do texto; a função de
traduzir é o ato de analisar e dar sentido para quem lê. (PALMER, 2006)
Segundo Nantes (2011), a chave hermenêutica na obra de Jung se
encontra em seus estudos alquímicos, sendo ela o próprio símbolo. Barreto
(2006), afirma que é pelo resgate da vivência simbólica da psique que é
possível ter acesso aos conteúdos do inconsciente, e desenvolver um sentido
da vida e conhecimento ampliado de si mesmo. É através do símbolo que Jung
se insere no pensamento hermenêutico contemporâneo.
12

2. DESENVOLVIMENTO

2.1 A ESTRUTURA E DINÂMICA DA PSIQUE E O PROCESSO DE


INDIVIDUAÇÃO

O processo de individuação é o conceito central da Psicologia Analítica,


e é a partir dele que C.G. Jung pensa o desenvolvimento psíquico, sendo
também em torno desse conceito que está estruturada a função do
inconsciente pessoal e inconsciente coletivo. Segundo Jung (2015), a relação
entre os processos do inconsciente com a consciência constitui-se em uma
relação de caráter compensatório, e estão organizados de maneira a formar
uma totalidade psíquica. Jung (2011) conceitua de maneira profunda e
estruturada essa totalidade, discorrendo também a respeito do seu simbolismo:
o Si-mesmo. Essa instância da psique constitui-se em uma personalidade
global, abarca, portanto, a consciência e o inconsciente, é também o centro
regulador da psique. O objetivo do processo de individuação é a de
desenvolver uma relação de plenitude entre o eu consciente e o Si-mesmo. O
eu consciente é apenas parte desse todo, sendo impossível uma consciência
total da totalidade. Segundo Jung:
É impossível chegar a uma consciência aproximada do si-mesmo,
porque por mais que ampliemos nosso campo de consciência,
sempre haverá uma quantidade de material inconsciente, que
pertence à totalidade do si-mesmo. Este é o motivo pelo qual o si-
mesmo sempre constituirá uma grandeza que nos ultrapassa. (JUNG,
2015, p. 67).

A individuação não possui como objetivo a perfeição, ou a elaboração


total dos conteúdos do inconsciente, pois, a consciência estrutura-se no
psiquismo a partir do inconsciente, ele vem a priori na psique. E o inconsciente
constitui-se em uma força de vida que nunca cessa. Jung (2015) enfatiza que
os conteúdos compensadores do inconsciente para o eu consciente possuem
todos os elementos necessários para a efetivação da autorregulação psíquica.
É possível observar na análise da psique que o desenvolvimento do processo
de individuação, segue de maneira orientada, ou seja, regulada pelo Si-mesmo,
para a finalidade de criar com o eu consciente a construção de uma
possibilidade de diálogo com o inconsciente.
13

O diálogo, a experiência entre o eu consciente com os conteúdos que


constituem a profundidade da psique, evidenciam a existência de instâncias
psíquicas que são opostas entre si. Sendo de importância para o processo de
individuação a relação e integração dos opostos na psique, porque é a partir
desse ponto que a alma ganhará impulso para a transformação, “a psique está
longe de ter uma unidade; pelo contrário, está em uma mistura borbulhante de
impulsos, bloqueios e afetos contraditórios” (JUNG, 2000, p. 111). Essa
possibilidade de transformação é desenvolvida através da função
transcendente. Jung (2011) conceitua o “transcendente” como uma função que
une conteúdos do consciente e inconsciente. Os conteúdos psíquicos que
fundamentam o inconsciente pessoal possuem relação direta com o eu
consciente, porque consistem em vivências relacionadas à experiência pessoal
de cada um, são os complexos, que se organizam em imagens ou ideias, em
torno de um núcleo arquetípico e são caracterizados por grande tonalidade
afetiva e emocional. Em contrapartida, existem os conteúdos do inconsciente
coletivo, isto é, os arquétipos, que de acordo com Jung (2000) são padrões
universais de comportamento, sintetizados na psique através de símbolos e
mitos.
Os complexos que estruturam o inconsciente pessoal já estiveram
conscientes na psique, no entanto, foram esquecidos e reprimidos no
inconsciente. Os arquétipos, por sua vez, nunca estiveram na consciência
sendo a sua origem coletiva e não individual. O conceito do arquétipo indica a
existência de determinadas formas na psique, que estão presentes em todo
tempo e lugar, são imagens inconscientes dos instintos, representando um
modelo básico de comportamento instintivo que surge na psique através da via
simbólica. Entretanto, apesar da natureza coletiva do arquétipo ele possui
diferentes matizes, que irão variar de acordo com a consciência individual na
qual ele se manifesta. (JUNG, 2000)
As imagens do inconsciente coletivo são expressas para a consciência
em caráter simbólico de proteção, cura e transformação. Isso está em
concordância com o fato dos conteúdos do inconsciente se movimentarem na
psique com a finalidade de compensar a unilateralidade da consciência, e
regular a psique em seu todo. Os arquétipos são conteúdos autônomos que
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não podem ser integrados unicamente por via racional, pois, o processo de
integração arquetípico na psique é simbólico e dialético. O processo simbólico
é uma vivência na imagem e da imagem, o que está em consonância com as
meditações realizadas pelos alquimistas, que também consistiam em um
diálogo interior com essas imagens, sendo possível estabelecer uma relação
do trabalho alquímico com a técnica da imaginação ativa, que busca
estabelecer relação com as imagens anímicas da psique tendo a finalidade de
ampliá-las e integrá-las na consciência, unindo as instâncias psíquicas que
estiverem em relação de oposição. (JUNG, 2000)
A anima e o animus são arquétipos do inconsciente coletivo e instâncias
opostas no psique. A anima é a personificação do feminino na psique
masculina e o animus a personificação do masculino na psique feminina,
portanto, o desenvolvimento a ser empreendido sobre essas instâncias é na
efetivação de relação entre o masculino e feminino presente em cada indivíduo.
Este momento do processo de individuação é profundo e exige grande
quantidade de energia psíquica para a elaboração do material simbólico
referente a essa relação. (JUNG, 2000)
A relação com a anima é um empreendimento de coragem, um teste
para as forças espirituais e morais do homem, sendo a anima um fator de
grande importância na psique masculina, pois ela mobiliza emoções e afetos,
ela intensifica, exagera, falseia e mitologiza todas as relações emocionais,
principalmente as relações do homem com o seu sexo oposto. A anima
enquanto arquétipo natural, conforme exposto por Jung (2000), constitui-se na
soma de todas as afirmações do inconsciente, da mente primitiva, da história
da linguagem e da religião, ela é o a priori dos humores, reações e de todas as
espontaneidades psíquicas:
Ela é algo que vive por si mesma, e o que nos faz viver; é uma vida
por detrás da consciência, que nela não pode ser completamente
integrada, mas da qual pelo contrário esta última emerge. Afinal de
contas, a vida psíquica é em sua maior parte uma vida inconsciente e
cerca a consciência de todos os lados. (JUNG, 2000, p.37).

Portanto tudo o que é tocado pela anima na psique torna-se numinoso,


pois ela auxilia a consciência a transcender a sua unilateralidade, e entrar em
relação com as imagens sagradas da alma, de acordo com Jung (2015), a
anima estrutura a possibilidade de diálogo entre consciente e inconsciente, ela
15

faz a ponte que permite a movimentação dos conteúdos inconscientes para a


consciência com a finalidade de integrá-los na psique. Pelo fato do
inconsciente ser uma grandeza que nos ultrapassa e cercar a consciência, a
relação com a anima é de vital importância, pois segundo Neumann (1974), a
constituição do inconsciente e a sua fenomenologia é feminina. Em linhas
gerais, a função da anima é de ser a guia do homem rumo aos conteúdos do
inconsciente.
Em contrapartida na mulher, a figura que estará em relação de
compensação com a consciência é o animus. A função do animus é a de
possibilitar um diálogo efetivo com o inconsciente. A relação da mulher com a
sua contraparte psíquica masculina desenvolve-se de acordo com a mesma
lógica no que se refere ao homem e a anima, a saber, é uma relação que deve
ser de caráter introvertido tendo como finalidade associar e integrar conteúdos
inconscientes:
A técnica de explicação com o animus é, em princípio, a mesma que
a da anima, só que neste se trata de opiniões. A mulher deve
aprender a criticá-las e mantê-las à distância, não com o intuito de
reprimi-las, mas investigar-lhes a procedência: penetrando mais
fundo em seu obscuro recesso, deparará com as imagens originárias,
do mesmo modo que o homem, ao explicar-se com a anima. (JUNG,
2015, p. 99-100).

A atitude consciente da mulher é estruturada de maneira mais pessoal


do que a do homem, ou seja, o mundo da anima é formado por pais e mães,
irmãos e irmãs, é um mundo que acolhe, gera relações e fraternidade. O
animus tem seu mundo constituído no povo, no Estado, nos negócios é um
mundo de opiniões, contrastando com a anima que produz caprichos. No
animus o geral antecipa-se ao pessoal, sendo a partir disso que o seu mundo é
composto por multiplicidades de fatores que são coordenados, ele apresenta-
se em uma pluralidade de pessoas e está voltado para as praticidades do
mundo, constituindo-se em uma energia ativa. Anima e animus como
arquétipos são autônomos e, sua total autonomia e falta de relacionamento e
desenvolvimento, podem prejudicar o processo de individuação da
personalidade. O trabalho a ser realizado em relação à personificação dessas
instâncias psíquicas consiste na conscientização de que elas são processos
internos, buscando gradativamente, diminuir as suas projeções para convertê-
las em pontes para os conteúdos do inconsciente. (JUNG, 2015)
16

2.1.1 A função transcendente e o símbolo na autorregulação psíquica

Segundo Jung (1984), existe uma falta de paralelismo entre consciente e


inconsciente, porque este último se comporta de maneira compensatória e
complementar em relação à consciência, sendo que Jung desenvolve a razão
dessa relação em quatro pontos:
1)os conteúdos do inconsciente possuem um valor liminar, de
sorte que todos os elementos por demais débeis permanecem no
inconsciente; 2) a consciência, devido as suas funções dirigidas,
exerce uma inibição (que Freud chama de censura) sobre todo o
material incompatível, em consequência do que, este material
incompatível mergulha no inconsciente; 3) a consciência é um
processo momentâneo de adaptação, ao passo que o
inconsciente contém não só todo o material esquecido do
passado individual, mas todos os traços funcionais herdados que
constituem a estrutura do espírito humano e 4) o inconsciente
contém todas as combinações da fantasia que ainda na
ultrapassaram a intensidade do liminar e, com o correr do tempo
e em circunstâncias favoráveis, entrarão no campo luminoso da
consciência. (JUNG, 1984, p.6)

A natureza determinada e dirigida da consciência é uma qualidade da


psique que foi conquistada relativamente tarde na história da humanidade, e
consiste em uma aquisição de especial importância para todos os avanços
sociais, morais, intelectuais e tecnológicos da sociedade humana. A
consciência enquanto função pressupõe intencionalidade, regularidade e
persistência do processo psíquico para a transformação, fato esse que
evidencia a unilateralidade da consciência nesse processo dirigido. (JUNG,
1984)
A unilateralidade é um fato inevitável no processo de desenvolvimento
psíquico, pois a vida civilizada exige atividade concentrada e dirigida da
consciência, tonando-se, no entanto, tal característica psíquica tanto vantagem
para que o desenvolvimento ocorra como desvantagem pelo fato de sempre
existir no inconsciente uma contraposição, um conteúdo psíquico oposto à
consciência e sua unilateralidade, o que acarreta em um evidente
distanciamento do inconsciente. Para que essa problemática do
desenvolvimento psíquico possa ser abordada, ou em partes resolvida de
maneira efetiva, levando em consideração a transformação da personalidade, é
necessário reconhecer a importância dos conteúdos do inconsciente e
17

investigá-los com a finalidade de diminuir a unilateralidade da consciência. A


consequência será a função transcendente e a autorregulação da psique.
(JUNG, 1984)
Segundo Penna (2003), o encontro entre os opostos consciente e
inconsciente ocasionados pela função transcendente gera uma tensão
energética na qual o símbolo será formado, e o mecanismo de autorregulação
da psique tende a neutralizar essa tensão energética com a finalidade de
estabelecer a homeostase do sistema psíquico. É a partir desse movimento
que consciente e inconsciente se aproximam no qual o ponto de encontro entre
os dois opostos é formado pela função transcendente. O símbolo gerado da
união entre as instâncias que estão em relação de oposição será uma síntese
dos opostos na psique “o símbolo é o caminho intermediário, em que se unem
os opostos em vista de um movimento novo, uma corrente de água que, logo
após uma longa seca, faz brotar fertilidade”. (JUNG, 2013, p. 492).
De acordo com Jung (2010), o símbolo é um transformador de energia,
ou seja, ele converte energia inconsciente em energia consciente, constituindo
uma característica simbólica de conversão de energia análoga da libido.
Significa que a libido enquanto energia psíquica está sujeita a diversas
formações simbólicas que têm como finalidade a sua transmutação na psique.
Essa transmutação, em linhas gerais, é realizada simbolicamente através da
união dos opostos que estão em busca de integração. Penna (2005) afirma que
a função do símbolo é de realizar essa síntese, união e conexão entre os
opostos, porque ele constitui-se em um canal que congrega aspectos do
âmbito pessoal e coletivo, trazendo para o indivíduo características do histórico
e universal da natureza do psíquico.
Penna (2005) enfatiza que o símbolo é resultado da tensão energética
entre os opostos na psique, entre consciente e inconsciente, e a sua
estruturação nessa tensão se dá pelo mecanismo da autorregulação na busca
de se estabelecer a homeostase do sistema psíquico. Essa busca de harmonia
no desenvolvimento da personalidade evidencia o fato de que a transformação
é um processo quintessencialmente psicológico, a necessidade de
transformação encontra-se na gênese da formulação simbólica. Na Psicologia
Analítica o símbolo é o principal fenômeno psíquico que permite a investigação
18

do inconsciente pessoal e coletivo, ele é uma expressão viva do inconsciente


para a consciência, e para que a transformação da personalidade possa
ocorrer, um confronto simbólico com o inconsciente torna-se necessário:
Dei o nome de função transcendente a esta mudança obtida através
do confronto com o inconsciente. A singular capacidade de
transformação da alma humana, que se exprime na função
transcendente, é o objeto principal da filosofia alquimista da baixa
Idade Média. Essa filosofia representa tal capacidade anímica pela
conhecida simbologia alquimista. Silberer, numa obra notável,
analisou detalhadamente o conteúdo psicológico da alquimia. Sem
duvida, seria um erro imperdoável se, de acordo com a opinião
vulgar, reduzíssemos a corrente espiritual alquimista a uma questão
de retortas e fornos de fundição. Certamente apresenta também esse
aspecto, como no início ainda hesitante da química científica. Tem,
entretanto, um lado espiritual que não deve ser menosprezado e um
valor psicológico insuficientemente reconhecido. Houve uma filosofia
alquímica precursora vacilante da moderna psicologia. Seu segredo é
a função transcendente, e a transformação da personalidade através
da mistura e fusão de elementos nobres e vulgares, das funções
diferenciadas e inferiores do consciente e do inconsciente. (JUNG,
2015, p. 110-111).

A problemática central tanto da alquimia como da Psicologia Analítica é,


a união dos opostos, isto é, a partir do momento que a psique movimenta-se no
sentido de integrar as instâncias psíquicas em relação de oposição, a
personalidade ganha impulso para a transformação e criação de uma nova
atitude que visa compensar a unilateralidade da consciência. Na filosofia
alquimista o novo que surge da conciliação dos elementos opostos é chamado
de pedra filosofal, o ouro filosófico, o elixir da vida, lumem christi dentre outros
nomes. Esses símbolos da alquimia geralmente expressam um sentido de
totalidade, plenitude, cura e transformação para a psique, sendo que
especialmente os símbolos da alquimia e seus processos para a obtenção da
meta sintetizam a conciliação dos opostos, questão de grande importância
ainda hoje, para o humano moderno, que cada vez mais se afasta das imagens
arcaicas do inconsciente coletivo que potencializam a transformação da
personalidade. (JUNG, 2009)

2.1.2 Progressão e regressão da libido e a vivência simbólica da


transformação no processo de individuação

De acordo com Jung (2010), a libido pode ser considerada a parir do


ponto de vista energético, isto é, a Psicologia Analítica a compreende como
19

energia psíquica que fornece a estrutura necessária para a dinâmica entre


consciente e inconsciente. A progressão e a regressão da libido constituem-se
nos fenômenos energéticos mais importantes da vida psíquica. A progressão
da libido está relacionada com o processo evolutivo do desenvolvimento
psicológico, e sua finalidade é a adaptação ao ambiente externo. Essa
característica do movimento da libido no sistema psíquico consiste em adaptar
determinada atitude psíquica às exigências do ambiente, tornando-a orientada
e unilateral. Entretanto, é esperado ocorrer que em determinado momento essa
atitude não atenda mais às exigências do ambiente, pois modificações externas
podem exigir da psique demandas diferentes que só podem ser apreendidas e
transformadas pela atitude correspondente:
Assim, a atitude sensível, que procura atender às exigências da
realidade por meio da intuição, pode facilmente deparar com uma
condição que só pode ser satisfeita mediante uma atitude mental, isto
é, uma anterior compreensão racional. Neste caso, a atitude intuitiva
é insuficiente. E assim também cessa a progressão da libido.
Extingue-se o sentimento de vida anteriormente existente, e em
compensação aumenta desagradavelmente o valor psíquico de certos
conteúdos do consciente, conteúdos e reações subjetivas tomam a
frente, o estado torna-se carregado de afetos e tendente a explosões.
Tais sintomas significam um represamento da libido. (JUNG, 2010, p.
44 – 45).

Com o cessar da progressão da libido a tensão entre os opostos


intensifica-se até que o processo de regressão ocorra, o que significa que esse
processo aumenta a perda de valor dos opostos conscientes, e
concomitantemente aumenta o valor dos opostos dos processos psíquicos que
não foram levados em consideração na adaptação, e por fim constituem-se em
elementos inconscientes. Com o transcorrer do processo de regressão da
libido, os elementos psíquicos que até então estavam inconscientes pelo fato
de serem incompatíveis com a função de adaptação da personalidade,
começam a ultrapassar o limiar da consciência. Esses elementos inconscientes
trazem à luz consciente tendências e características incompatíveis da
personalidade que possuem os germes necessários para a transformação
psíquica. (JUNG, 2010)
A função de adaptação consciente é apenas uma, ou seja, no caso da
personalidade possuir como função consciente o “pensamento” a tendência
natural da psique é a de fazer sucumbir no inconsciente à função oposta
“sentimento”, pelo fato de ocorrer uma subtração da libido na função inferior.
20

Portanto, a função inferior é ativada pela regressão atingindo a consciência de


maneira desadaptada e carregada de material inconsciente, o movimento do
processo de individuação é o de justamente fazer com que essa função,
gradativamente, movimente-se no sistema psíquico para compensar a
unilateralidade da função consciente. Vale salientar, que a função que será
trabalhada no processo psicoterapêutico é a função inferior, pois ela também
consiste em uma via para o inconsciente. À regressão cabe ativar fatos
inconscientes e ela tem como principal movimento fazer com que a consciência
entre em contato com as questões da alma, em compensação à adaptação
externa a regressão leva a personalidade à necessidade de adaptação ao
mundo psíquico interior, ocasionando assim processos de transformações das
características internas que estão em estado arcaico e indiferenciado:
Se lembrarmos que o motivo do bloqueio da libido foi a falha da
atitude consciente, poderemos compreender que os conteúdos
inconscientes ativados pela regressão são valiosos germes: eles
contêm os elementos pertencentes àquela outra função, excluída pela
postura consciente, que seria capaz de complementar ou substituir
eficazmente a insuficiente atitude inconsciente. Ao falhar o
“pensamento” enquanto função de adaptação - quando se trata de
uma situação à qual só se podemos adaptar-nos pelo “sentimento” -,
o material inconsciente ativado pela regressão contém justamente a
função “sentimento” que está faltando, só que ainda embrionária, ou
seja, arcaica e não desenvolvida. (JUNG, 2010, p. 48).

A transformação como processo psicológico torna-se um fator que


perpassa em todas as fases de desenvolvimento psíquico ao longo da vida, é
um processo natural e instintivo. Diferentemente das imagens de metamorfose,
transmutação e renascimento, as imagens de transformação evidenciam um
processo que se torna permanente para o indivíduo, preservando a
continuidade do seu desenvolvimento. É natural e esperado que a psique inicie
processos de transformação, sendo esse processo de grande importância para
a saúde psíquica. A psicopatologia é uma negação a essa transformação, ou
seja, o individuo falha ao iniciar e levar em desenvolvimento esse processo. As
imagens de transformação estão presentes de maneira ampliada tanto na
literatura, mitologia, alquimia, ritos, processos iniciáticos:
No Fausto de Goethe, o sempre mercurial Mefistófeles proclama o
segredo da vida e da criação como “Formação, transformação, eterna
re-criação do espírito eterno.” De um modo semelhante, no mito dos
“Regenerados do Céu”, dos nativos americanos da costa noroeste, os
heróis ancestrais descidos do céu são transformados em seres
humanos e animais assim que chegam à terra. Em seguida, estes
seres partem deste mundo e são transportados de novo aos céus, de
21

onde regressam para se materializarem de novo em formas


reconhecíveis. (ARAS, 2012, p. 778).

Este processo se dá de maneira sucessiva, em consonância com a


energia psíquica que se movimenta para frente e para trás, isto é, em
progressões e regressões:
As máscaras de transformação eram utilizadas muitas vezes em
cerimônias iniciáticas, que servem para transformar uma fase de vida
noutra, ou seja, a infância na idade adulta. Os antagonistas
arquetípicos, mascarados e desse modo transformados em animais
ou divindades sagradas, atormentam o iniciado, cuja morte e
renascimento o transformam permanentemente. Estes rituais e
cerimônias foram planeados para controlar as lesões psíquicas
possíveis durante as transposições críticas, e evitar transformações
negativas como dissociação da personalidade ou morte. A análise
moderna também funciona como como contentor de processos
transformacionais. (ARAS, 2012, p. 778).

O simbolismo alquímico também consegue ilustrar o processo de


transformação, a partir do movimento e relação de elementos nobres e
vulgares como o chumbo que se transforma em ouro, a pedra que por sua vez
transforma-se na pedra filosofal, e as sombras e os sentimentos de confusão
do sujeito se transformam no elixir da vida. Em concordância com o sistema
psíquico, os processos de transformação que nele ocorrem também são
espinhosos, pois é um processo que envolve perdas, depressão, ansiedade,
vulnerabilidade e movimenta diversos afetos para a consciência. Existe
também a mudança hormonal que segue em paralelo com as transformações
psíquicas. (ARAS, 2010)
Portando, Jung (2000) enfatiza que a transformação é um processo
natural do desenvolvimento psíquico que sempre irá ocorrer independente da
vontade ou aceitação do indivíduo, entretanto a resposta ao processo de
transformação irá variar de acordo com as disposições psíquicas de cada um
para o andamento do processo. Os sonhos constituem-se no principal meio de
anunciação do processo de transformação da psique, por serem mensageiros
dos conteúdos inconscientes e de todo o material psíquico que ainda encontra-
se em estado indiferenciado e caótico. A vivência da transformação no
desenvolvimento da individuação é um processo interno demorado e consiste
no renascimento em outro ser, ou seja, o “outro ser” que já existe em nós e que
é a personalidade futura com características mais amplas. Sendo que a
finalidade deste processo é o de aproximar o “eu” dessa personalidade mais
22

ampla que germina no inconsciente, todavia, a consciência tende a resistir ao


encontro entre as duas instâncias, pelo fato de comumente resistirmos na
apreensão da ideia de que não somos senhores dentro de nossa própria
psique. A transformação apenas começa a partir de um contato efetivo com as
instâncias inconscientes e que são estranhas à consciência. Em consonância
com o movimento de transformações da personalidade, o opus alquímico
representa a transformação da escuridão e dos elementos vulgares em
potenciais de vida e renovação, ou seja:
Uma substância negra obtida da mistura do mercúrio com enxofre
derretido o (Aethiops Mineralis) era cozida até libertar um vapor, que
era condensado num valioso pigmento da cor do sangue, o
vermelhidão ou cinábrio. Se o vapor não fosse capturado
corretamente, tudo o que restava era um resíduo negro. (ARAS,
2012, p. 778).

Psiquicamente, a sombra enquanto resíduo negro da personalidade


precisa ser trabalhado até que os seus potenciais ocultos de desenvolvimento
sejam libertados e integrados à psique. A transformação da fase alquímica
nigredo ao albedo repete-se ao longo do processo de individuação, o que
significa que a transformação apesar de ser um processo de mudanças
duradouras no desenvolvimento psíquico não se torna único na vida. Esse
processo consiste em um meio de atingirmos a totalidade da psique, ou ao
menos de estabelecermos um diálogo efetivo e saudável com ela. O objetivo
do processo é o de auxiliar a psique a atingir a plenitude no decorrer do
desenvolvimento da individuação. (JUNG, 2009)

2.2 A ALQUIMIA COMO REALIZAÇÃO DA PSIQUE NO PROCESSO DE


INDIVIDUAÇÃO

As origens antigas da alquimia datam do primeiro século d.C.


precisamente no Egito Antigo que recebia grande influência helenística, e os
principais centros que ajudaram a alquimia antiga a florescer encontravam-se
em Alexandria e em algumas cidade do Baixo Egito. A principal característica
da alquimia desta época são os aspectos químicos e espirituais, que apesar de
estarem em relação de oposição se complementavam para o sucesso do
desenvolvimento do opus alquímico. Os aspectos da alquimia estavam
relacionados com a prática realizada pelos artesões e sacerdotes que
23

trabalhavam no templo, assim como com as teorias aristotélicas e estoicas


sobre o fundamento da matéria, com o gnosticismo, com a astrologia babilônica
e em grande parte com a mitologia egípcia. A ideia da matéria como algo
sagrado ressoa na alquimia antiga também, evidenciando, especificamente, a
participação do ser humano no processo de transformação da natureza.
(PRIESNER, 2001)
As astrologias babilônicas e greco-romanas, de acordo com Priesner
(2001), influenciaram de maneira significativa a alquimia antiga, a partir dessa
influência consolidou-se a associação dos sete planetas a determinados
metais, como também se iniciou a classificação dos planetas em características
femininas e masculinas. Outro aspecto importante da alquimia antiga se
relaciona ao mito de Isis e Osíris. Osíris é a divindade da vegetação e da terra,
que foi morto e desmembrado para em sequência ser ressuscitado por sua
irmã-esposa Isis, este é um mito que representa os períodos de secas e
abundância ocasionados pelas inundações do Nilo:
Isis é também aquela que cura, que não apenas salva a Rê do
envenenamento, mas também recompõem a Osíris despedaçado.
Como tal personifica ela o Arcanum, por exemplo, o orvalho, ou a
aqua permanens, que reúne os elementos inimigos para formar um
todo único. Esta síntese é representada no mito de Ísis, “que reúne os
membros dispersos do seu corpo (Osíris) e os banha com suas
lágrimas e os coloca em um sepulcro escondido na margem do Nilo.
(JUNG, 2012, p. 40).

Este mito de morte e renascimento encontra consonância no trabalho


realizado pelos alquimistas com determinados metais, que deveriam ser
reduzidos a uma matéria neutra, para em seguida se realizar a união dos
componentes separados, com a finalidade de se obter um metal nobre e
incorruptível. Concomitantemente os alquimistas gregos adotaram a teoria
aristotélica dos elementos e de transformação porque oferecia a base teórica
para o aperfeiçoamento dos metais, seguindo tal linha de pensamento, os
alquimistas antigos pretendiam unir teoria e prática para o desenvolvimento do
opus. Para que esse desenvolvimento ocorresse de maneira efetiva era
necessário reduzir os elementos a sua prima matéria, e estar com a devida
atenção nas cores ocasionadas pelo processo alquímico, a nigredo que estava
relacionada à prima matéria, a albedo que se relaciona à prata, a citrinitas que
por sua vez se relacionava ao ouro, e alguns alquimistas mencionam a rubedo
24

que geralmente está relacionada à última etapa do processo de


desenvolvimento do ouro. Entretanto, já na alquimia antiga é possível observar
que o desenvolvimento do ouro e da pedra filosofal tinha um sentido
estritamente espiritual porque simbolizava a purificação da alma, fato que
ressoou em níveis variados na alquimia medieval, árabe e renascentista.
PRIESNER (2001)
De acordo com Eliade (1983), é possível traçar também paralelos entre
os mineiros e metalúrgicos antigos com o desenvolvimento da alquimia, pois é
comum entre os três trabalhos o processo de transformação da natureza. Os
mineiros e metalúrgicos antigos praticavam um procedimento de intervenção
no desenvolvimento do crescimento mineral, ao acelerar um processo natural
eles alteravam o tempo geológico para o tempo vital, ou seja, esse fato é um
prelúdio da responsabilidade do homem frente às transformações da natureza
tão evidentes na alquimia. O trabalho alquímico consistia, portanto, em um
empreendimento de transformação dos metais, em consonância com o trabalho
realizado pelos metalúrgicos que aceleravam o desenvolvimento dos minerais
que jaziam na terra em metais, o alquimista partia para a transformação de
todos os metais vulgares em nobres, ou seja, no ouro:
A nobreza do ouro é, portanto, fruto de sua maturidade; os outros
metais são comuns por estarem crus, não amadurecidos. Assim, se
quiser, a finalidade da Natureza é o acabamento perfeito do reino
mineral, sua última maturação. A transmutação natural dos metais em
ouro está inscrita em seu próprio destino. Em outros termos, a
Natureza tende à perfeição. Mas, partindo do fato de que o ouro é
portador de um simbolismo altamente espiritual (o ouro dizem os
textos hindus, representa a imortalidade), é evidente que uma nova
ideia elaborada por certas especulações alquímico-soteriológicas sai
à luz: a do alquimista como salvador fraterno da Natureza, a que
ajuda a cumprir sua finalidade, a alcançar o seu ideal, que é a
conclusão de sua sacralidade mineral, animal ou humana, chegando
à sua suprema maturidade, quer dizer à imortalidade e liberdade
absolutas (toda vez que o ouro é símbolo da soberania e da
independência). (ELIADE, 1983, p. 40).

Em contrapartida, a partir do Renascimento se iniciou o interesse pela


alquimia de caráter hermético e neoplatônico. A cosmologia do neoplatonismo
recebeu destaque para os seus conceitos de cunho espiritual tais como,
espírito, alma, alma do mundo, e principalmente a união final entre Deus e a
criação. A alquimia que se estabeleceu a partir do renascimento teve como
principal problemática o caráter filosófico da obra alquímica, isto é, o ouro que
25

os alquimistas da época buscavam não era o ouro material, mas o espiritual e


filosófico. O objetivo alquímico desta época era a transformação interior do ser
humano por intermédio da sua relação com Deus e com a natureza, e grande
parte das obras alquímicas renascentistas possui uma conotação
essencialmente espiritual e religiosa, tendo paralelos principalmente com o
Cristianismo. O terceiro manifesto da Ordem Rosacruz, intitulado de
“Casamento Alquímico de Christian Rosenkreutz” é fruto da alquimia
renascentista e possui relações com aspectos da alquimia antiga, teológicos,
astrológicos, herméticos, cabalísticos, e principalmente psicológicos.
(PRIESNER, 2001)
Jung não foi o primeiro a desenvolver interpretações psicológicas da
alquimia, todavia, o seu interesse pela temática começou a partir de 1910. Em
1912 Théodore Flournoy apresentou na Universidade de Genebra as primeiras
interpretações psicológicas da simbologia alquímica, logo em seguida,
especificamente em 1914, Herbert Silberer publicou a primeira obra extensa a
respeito da temática. Esses estudos serviram de base para a posterior
interpretação psicológica da alquimia segundo Jung. (SHAMDASANI, 2013)
Entretanto, a relação mais profunda e efetiva de Jung com a filosofia
alquímica iniciou-se após o seu contato com o texto chinês “O Segredo da Flor
de Ouro”, enviado a ele em 1929 por Richard Wilhelm em um momento de
grande importância para o desenvolvimento da Psicologia Analítica. Nessa
época Jung ocupava-se em estabelecer um fundamento empírico e histórico
para o inconsciente coletivo e toda a sua problemática. “O Segredo da Flor de
Ouro”, conforme analisado por Jung e Wilhelm, consiste em um tratado
alquímico, além de possuir um caráter taoista da ioga chinesa. A partir desse
texto Jung encontrou uma via de união entre a alquimia e os processos do
inconsciente coletivo, em especial com o processo de individuação e também
começou a desenvolver de forma profunda o conceito de “Si-mesmo”. (JUNG,
2013)
Em “O Segredo da Flor de Ouro”, Jung realizou um estudo inicial a
respeito da simbólica da mandala, tema que já o intrigava anteriormente pelo
fato desses símbolos comumente aparecerem nos sonhos de seus pacientes,
em especial nos sonhos, fantasias e alucinações de pacientes psicóticos. A
26

principal problemática que esses símbolos trazem é a questão da união dos


opostos no processo de desenvolvimento psíquico, pois conforme a análise de
Jung, a individuação consiste simbolicamente em um movimento circular, ao
redor de um centro que faz a integração dos opostos culminando na totalidade
da psique. Esse centro regulador da psique, conforme já exposto, é o Si-
mesmo, portanto, a mandala é um símbolo que expressa sentido de totalidade.
Geralmente a maioria das mandalas possui a forma de flor, roda ou cruz, tendo
pontos que apontam nitidamente para o quatérnio. De modo geral, o
simbolismo do Si-mesmo está associado a imagens circulares ou esféricas,
sendo que essas imagens estão em grande parte da iconografia alquímica.
(JUNG, 2013)
Os estudos em alquimia realizados por Jung fundamentam e ressoam
em toda a sua obra e em seus principais conceitos a respeito da psique.
Conforme exposto, Jung estrutura o desenvolvimento psíquico abordando-o
com base em relações psíquicas que são compensatórias, ele estrutura a
psique em pólos, em que toda instância psíquica consciente terá o seu
correspondente oposto inconsciente. E para que a transformação da
personalidade aconteça, a união dos opostos precisa ser efetivada. O objetivo
é de se estabelecer a vivência com a totalidade da psique, o Si-mesmo. A
filosofia alquímica encontra consonância com o processo de individuação da
psique, pelo fato do problema central que o alquimista se defrontava ser o
mesmo que está no cerne da individuação, isto é, a união dos opostos. (JUNG,
2009)
A compreensão de Jung, de acordo com Shamdasani (2013) a respeito
da simbólica alquímica, fundamenta-se em duas teses: que os alquimistas
praticavam uma forma de imaginação ativa quando meditavam sobre os textos
e outros materiais do opus em seus laboratórios, e que todo o simbolismo do
processo alquímico estava em consonância com o processo de individuação
que Jung já observava em seus pacientes:
A alquimia representa um duplo aspecto: por um lado, a obra
alquímica praticada no laboratório e, por outro lado, um aspecto
psicológico, em parte consciente e psíquico e, em parte inconsciente
e projetado nos processos de transformação da matéria. (JUNG,
2009, p. 282).
27

O opus alquímico não estava relacionado unicamente a experimentos


químicos, mas expressava em uma linguagem simbólica processos
psicológicos. Os alquimistas, de modo geral, buscavam compreender a matéria
em sua essência, fato esse que apesar dos inúmeros esforços no transcorrer
das épocas sempre se constituiu em algo desconhecido e obscuro. Quando os
alquimistas buscavam compreender a matéria por meio de vários processos,
projetavam o inconsciente em seu objeto de estudo, pois sempre projetamos
no que desconhecemos conteúdos que pertencem ao inconsciente, pelo fato
do inconsciente também ser uma grandeza que desconhecemos:
A rigor a projeção nunca é feita – ela acontece, ela simplesmente
está aí. Na obscuridade de algo exterior eu me defronto, sem
reconhecê-la, com minha própria interioridade ou vida anímica. A meu
ver, seria um erro reduzir a fórmula – tham ethie quam physice –
(moral tanto quanto física) à teoria das correspondências, fazendo
desta última sua causa (prius). Pelo contrário, essa teoria seria muito
mais uma racionalização da vivência da projeção. O alquimista não
pratica a sua arte por acreditar teoricamente numa correspondência,
mas tem uma teoria das correspondências pelo fato de vivenciar a
presença da ideia na matéria (physis). Minha tendência é portanto a
de acreditar que a verdadeira raiz da alquimia deve ser buscada
menos nas conceituações filosóficas do que nas projeções
vivenciadas de cada pesquisador. (JUNG, 2009, p. 256).

Von Franz (1987) também salientava a natureza psíquica do opus


alquímico, no qual se fundamentavam impressões espontâneas do
inconsciente com pouquíssimas interferências do consciente:
Os alquimistas estavam em uma situação completamente diferente.
Acreditavam que estudavam os fenômenos desconhecidos da
matéria – mais a diante darei os detalhes – e limitavam-se a observar
o que sucedia e interpretá-lo de algum jeito, mas sem nenhum plano
específico. Aparecia um torrão de alguma matéria estranha, mas
como eles não sabiam o que era, faziam uma conjetura qualquer, que
é óbvio seria uma projeção inconsciente, mas nisso não havia uma
intenção nem tradição definidas. Por conseguinte, se poderia dizer
que na alquimia as projeções de efetuavam de maneira mais ingênua
e impremeditada, e sem lhe realizar correção alguma. (VON FRANZ,
1987, p. 13).

O alquimista enquanto praticava o opus em seu laboratório vivenciava


experiências psíquicas via projeção, e essas experiências não estavam
relacionadas à matéria em si, mas ao seu próprio inconsciente. As experiências
alquímicas são essencialmente simbólicas, e a tendência da psique é a de
conhecer através de símbolos tudo àquilo que lhe escapa da consciência, fato
que complementa a compreensão da projeção de conteúdos psíquicos na obra
alquímica, pois “projeções deste tipo repetem-se sempre que o homem tenta
28

explorar uma escuridão vazia, preenchendo-a involuntariamente com formas


vivas” (JUNG, 2009, p. 257).
As formas vivas estão relacionadas com o personificar, e a partir do
momento que a psique empreende ação nesse sentido, os conteúdos do
inconsciente começam a atuar de maneira mais enérgica. O opus alquímico é
uma atuação do inconsciente na matéria, com a meta de transformação, e o
personificar auxilia o eu consciente na compreensão e integração dos símbolos
que decorre do encontro da psique com o que lhe é desconhecido. (JUNG,
2012)
De acordo com Hillman (2010), o personificar possui importância
fundamental para a imaginação, para a experiência religiosa e também para a
psicologia arquetípica, pois é através dele que o revivificar de nossas relações
com o mundo torna-se possível, o encontrar e o dialogar com as nossas
fragmentações ocorre e o impulsionar da imaginação a mostrar as suas
imagens mais profundas acontecem. O personificar é um cultivo da alma, é um
empreendimento de manter vivos os fenômenos da psique imaginal e buscar
um mundo com alma, onde possamos novamente vir a experimentar o mundo
como um campo psíquico:
Nesta perspectiva, personificar não é algo menor, um modo primitivo
de aprendizado, e sim algo refinado. Ele apresenta, em teoria
psicológica, a tentativa de integrar o coração no método e de retornar
os pensamentos abstratos e as coisas mortas a suas formas
humanas. Porque personificar é uma epistemologia do coração, um
modo de pensamento do sentimento, nós erramos em julgá-lo como
inferior, um pensar arcaico apropriado apenas para aqueles a quem
são admitidos uma linguagem emotiva e uma lógica afetiva –
crianças, loucos, poetas e primitivos. O método em psicologia não
deve impedir o amor de trabalhar, e é bobagem depreciarmos como
inferior os próprios meios pelos quais o amor compreende. Se nós
ainda não compreendemos o personificar, isso é porque nossa
principal tradição tem sempre tentado explicá-lo, ao invés de
compreendê-lo. (HILLMAN, 2010, p. 65-66).

Os alquimistas por sua vez, estavam intimamente ligados com o


personificar como meio que fundamentava a imaginatio e meditatio no
desenvolvimento do opus alquímico, porque o personificar é cultivado em e
através de imagens, trabalho este que é encontrado em toda a simbólica
alquímica por meio da imaginação, pois, “a imaginação enxerga as imagens
primordiais” (HILLMAN, 2010, p. 65). O alquimista então entrava em contato
com os arquétipos que orientam o processo de individuação, e, o personificar
29

exige diálogo e vivência na imagem, fato que era realizado pelos alquimistas e
constitui-se no principal meio para o desenvolvimento do opus. (JUNG, 2009)
Segundo Jung (2009), existe uma atitude espiritual em relação ao opus,
onde é possível traçar um paralelo entre as transformações alquímicas e o
desenvolvimento moral e intelectual do ser humano, fato esse comumente
tratado na alquimia, na qual a mente do artifex estava ligada à obra, não
apenas como mediadora dos processos de transformação, mas também como
origem e ponto de partida para a consumação da meta. A atitude mental do
alquimista frente ao opus era de essencial importância para o desenvolvimento
de ambos:
Alphidus diz o seguinte: Sabe, não poderás obter essa ciência sem
primeiro purificar o teu espírito diante de Deus, isto é, até que
erradiques toda corrupção do teu coração. Segundo a Aurora
Consurgens, a casa do tesouro da sabedoria hermética repousa
sobre o fundamento de catorze virtudes principais: saúde, humildade,
santidade, castidade, força, vitória, fé, esperança, amor, bondade,
paciência, moderação, atitude ou compreensão espiritual e
obediência. (JUNG, 2009, p. 282-283).

Através dessas virtudes nota-se que o adepto precisava vivenciar o


opus alquímico com uma atitude mental de devoção e sinceridade. Essas
características e virtudes psíquicas trazem à alquimia um caráter
essencialmente espiritual, pois, de modo geral o alquimista buscava também a
transcendência das coisas mundanas, empreendendo um trabalho de
renascimento, transformação e elevação do coração aos bens celestes. Para
que esse trabalho de transcendência ocorresse o alquimista realizava a
meditação e imaginação no decorrer do opus. A meditatio seguindo a
terminologia alquímica ocorre sempre que existe um diálogo interior com
alguém invisível, que pode ser Deus ou qualquer outro ser com características
espirituais. O diálogo ocorre geralmente quando o artifex necessita de auxílio
para a superação e conciliação dos opostos em seu próprio trabalho, buscando
assim um ponto de equilíbrio e plenitude. Este diálogo interno realizado pelos
alquimistas não é caracterizado como uma simples reflexão, mas sim como
uma experiência viva na imagem e com o “outro” existente em nós.
Psicologicamente a meditatio está relacionada ao diálogo criativo com o
inconsciente, no qual os conteúdos inconscientes passam para um estado
manifesto na consciência e mundo externo. (JUNG, 2009)
30

Assim a meditatio e imaginatio são de fundamental importância no opus,


porque era a partir delas que o alquimista vivenciava o próprio inconsciente e a
matéria, tendendo em um movimento de transformação desta última. A
imaginatio em um contexto psicológico traz a concretização de conteúdos
inconscientes que estão além do mundo essencialmente empírico, ou seja, são
conteúdos arquetípicos. Esses conteúdos arquetípicos com que o alquimista
entrava em contato são imagens que expressam características de
transformação, cura, reintegração, morte, renascimento. Estas imagens, por
sua vez, são encontradas no processo de individuação da personalidade,
sendo inclusive esse processo fundamentado por elas, concomitantemente o
ponto de transformação desse processo se dá através do símbolo, pois o
símbolo é sempre “duas coisas” possui em si “duas naturezas” que são os
opostos. Desse modo a rica simbologia da alquimia era fruto da imaginação do
alquimista que se movia, orientada arquetipicamente, para a integração dos
opostos em sua própria psique. (JUNG, 2009)
Hillman (2010) enfatiza que o mundo para o alquimista era vivenciado
como um campo psíquico no qual ele cultivava a própria alma, através da
fantasia e da imaginação. O artifex no decorrer do opus vivia psicologicamente
os conteúdos através de imagens, porque criamos imagens e a essência de
nossa psique consiste em imagens. A partir do diálogo com a fantasia, o
alquimista criava a possibilidade para o seu desenvolvimento interno. A
alquimia caracteriza-se como um exercício imaginal, na qual todos os seus
processos evidenciam um trabalho no sentido de cultivo da alma:
Cada uma das operações do alquimista como coisas como o sal, o
enxofre e o chumbo eram também com sua própria amargura, sua
combustão sulfúrica e sua lentidão depressiva. O fogo que ele zelava
e regulava com cuidadosa exatidão era a intensidade de seu próprio
espírito, seu interesse flamejante ou ausente. Através de fantasias
concretamente físicas os psicólogos alquímicos trabalhavam ao
mesmo tempo tanto na alma em seus materiais, quanto na alma em
si mesmos. (HILLMAN, 2010, p. 192).

De acordo com Edinger (1995), o cultivo da alma realizado pelo


alquimista relaciona-se com a ideia central da alquimia que é o opus. É o
trabalho geral realizado com a prima matéria para criar a pedra filosofal, o ouro
filosófico, o elixir da vida, dentre outras denominações para a meta. O opus
como demostrado anteriormente era vivenciado com uma forte atitude religiosa,
31

exigindo um caráter transpessoal da psique do alquimista, psicologicamente o


opus demostra de maneira simbólica o transcorrer do processo de
individuação, no qual a psique deve estar orientada para o Si-mesmo e não
para a unilateralidade do ego, “os alquimistas não se cansam de repetir que o
opus provém de uma coisa só, devendo retornar ao uno, sendo, portanto uma
espécie de movimento circular” (JUNG, 2009, p. 304 – 305).
Edinger (1995) aponta outro aspecto do opus que se relaciona com o
processo de individuação e com o processo psicoterapêutico, o opus era
realizado essencialmente de maneira solitária, o que está em paralelo com a
individuação que só pode ocorrer nos aspectos mais profundos de cada
indivíduo. O opus é compreendido também como contrário à natureza, ou seja,
apesar de ser considerado um processo com a sua gênese na natureza era
necessário o esforço e empreendimento do alquimista para a obra tomar forma
e atingir a meta. Concomitantemente, o desenvolvimento da consciência a
partir da psique inconsciente é um processo iniciado pela natureza, mas é
necessário um ego consciente para que o processo de individuação possa
ocorrer com toda a sua carga de transformação, a fim de criar uma consciência
de caráter mais amplo. A ideia que fundamenta o opus é essencialmente
simples:
O propósito é criar uma substância transcendente e miraculosa,
simbolizada de várias maneiras: como Pedra Filosofal, Elixir da Vida,
ou remédio universal. O procedimento é, em primeiro lugar, descobrir
qual o material adequado, a chamada prima matéria, submetendo-a
em seguida a uma série de operações que a transformarão na Pedra
Filosofal. (EDINGER, 1995, p. 29).

O termo prima matéria surgiu com os filósofos pré-socráticos, que


compartilhavam da ideia arquetípica de que o mundo foi criado a partir de uma
única matéria, e essa matéria recebeu diversas denominações, como fogo, ar,
terra, água, espírito, veneno, lápis, sombra, mar, lua, caos, dentre outras.
Entretanto, essa concepção do mundo como resultado de uma fonte única não
possui alicerce empírico, constituindo-se, portanto, da projeção de um
conteúdo psíquico. Vale salientar que a concepção da prima matéria carrega
em si o conflito de opostos e a possibilidade de conciliação entre eles, porque
comumente pensava-se que a prima matéria foi decomposta de sua unidade
para criar os quatro elementos físicos que fundamentam a nossa realidade. A
32

prima matéria relaciona-se com a psique pelo fato do ego consciente ter a sua
gênese a partir do inconsciente, que é indiferenciado, por vezes caótico, no
entanto uma potencialidade de vida. O ego desenvolve-se a partir da
diferenciação do todo inconsciente nas quatro funções psíquicas que estão em
relação de oposição e que estruturam a psique consciente, sendo elas a
intuição-sensação e pensamento-sentimento. Para que o processo
psicoterapêutico e de transformação da personalidade ocorram com sucesso
as características fixas e unilaterais da psique precisam ser reduzidas à sua
forma primeira e indiferenciada, é necessário um retorno à prima matéria.
Psicologicamente esse fato corresponde aos aspectos indiferenciados do
inconsciente e que não estão em uma relação fixa na personalidade, e por isso
possuem toda a carga de energia psíquica para a transformação. (EDINGER,
1995)
Os alquimistas sempre salientaram que a prima matéria não pode ser
produzida, pois ela já existe a priori e está em todo tempo e em todos os
lugares como um potencial para a transformação, questão que se relaciona
com o encontrar do material que será objeto de trabalho na psicoterapia. Ou
seja, o material que será trabalhado na análise pode ser encontrado em todas
as experiências cotidianas do indivíduo, sejam elas humores, afetos e demais
reações:
Apesar de seu grande valor interior, a prima matéria tem uma
aparência exterior desagradável, razão pela qual é desprezada,
rejeitada e atirada ao lixo. Trata-se a prima matéria como o servo
sofredor citado em Isaías. Psicologicamente, isso significa que a
prima matéria está na sombra, naquela parte da personalidade tida
como a mais desprezível. Os aspectos mais dolorosos e humilhantes
de nós mesmos são os próprios aspectos a serem trazidos à luz e
trabalhados. (EDINGER, 1995, p. 32).

Em relação à ubiquidade da prima matéria Jung (2009) demostra que o


fato dela ser encontrada em todo tempo e espaço relaciona-se ao fato da
projeção ocorrer de maneira contínua em toda parte:
Sir George Ripley, o alquimista inglês escreve: Os filósofos dizem aos
que buscam que pássaros e peixes nos trazem o lápis, todo o ser
humano o possui, ele está em todo lugar, em ti, em mim, em todas as
coisas no tempo e no espaço. Ele se oferece sob uma forma vil.
(JUNG, 2009, p. 336).

É da natureza da prima matéria apresentar características sem


fronteiras, sem limites e formas definidas no tempo e espaço, isso está em
33

consonância com a experiência do ego frente ao inconsciente. O diálogo com o


inconsciente expõe o ego a uma grandeza que ultrapassa a sua
unilateralidade, fato que comumente gera ansiedade no indivíduo, pois para
que o encontro com o inconsciente seja efetivo é necessário empreender um
mergulho profundo em si mesmo, para o desconhecido da própria psique.
Encontrada, a prima matéria, o alquimista a submetia a diversas operações
com a finalidade de transformá-la. Não existe um consenso na literatura
alquímica de quantas operações são necessárias para o desenvolvimento do
opus até a meta, entretanto, são sete as principais operações: calcinatio,
solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio. (EDINGER,
1995)

2.2.1 As operações e fases alquímicas como processo de individuação na


psique

É comum na literatura alquímica encontrar textos evidenciando que a


primeira operação do opus consiste na calcinatio, caracterizando-se como um
procedimento químico fundamentado em grande aquecimento com a finalidade
de retirar de determinado material toda a substância que possua um caráter de
volatilização, é uma operação diretamente ligada ao elemento fogo. O fogo
enquanto elemento da calcinatio tem um caráter purificador e embranquecedor,
pois atua na nigredo que consiste na matéria escura e caótica que precisa ser
transformada na albedo:.
O negrume ou nigredo é um estado inicial, sempre presente no início
como uma qualidade da prima matéria, do caos ou da massa
confusa; pode também ser produzido pela separação dos elementos
(solutio, separatio, divisio, putrefactio). Se o estado da divisão se
apresenta de início, como acontece algumas vezes, então a união
dos opostos se cumpre à semelhança da união do masculino e
feminino (chamado de coniungium, matrimonium, coniunctio, coitus),
seguido pela morte do produto da união (mortificatio, calcinatio,
putrefactio) e seu respectivo enegrecimento. A partir da nigredo, a
lavagem (ablutio, baptisma) conduz diretamente ao
embranquecimento, ou então ocorre que a alma (anima) liberta pela
morte é reunida ao corpo morto e cumpre a sua ressureição; pode
dar-se finalmente que as múltiplas cores (omnes colores) – a cauda
pavonis (cauda do pavão) – conduzem à cor branca e nua, que
contém todas as cores. (JUNG, 2009, p. 244).

A nigredo é a fase alquímica relacionada principalmente com a sombra


no processo de individuação, pois para que essa fase fosse concluída com
34

sucesso no opus era necessário que o alquimista encontrasse a prima matéria,


caracterizada como a substância em estado caótico e obscura que possuísse a
energia em potencial para a transformação. Sendo que a nigredo consistia na
fase do opus que os alquimistas dedicavam uma atenção diferenciada, porque
era justamente nela que se encontravam os fundamentos de todo o trabalho
alquímico. Assim é no processo de individuação também, a sombra como uma
estrutura da psique apresenta à personalidade os complexos, e demais
conteúdos psíquicos indiferenciados e inconscientes. Em linhas gerais isso
significa que tanto na alquimia como no processo de individuação o que dará
impulso para a transformação é justamente tudo aquilo que é vil, sujo, caótico,
inadaptado e doloroso. (HOFFMAN, 2006)
Edinger (1995) afirma que em relação à psicoterapia e ao processo de
individuação diretamente ligado a ela, a calcinatio consiste em um processo de
secagem dos complexos inconscientes, que simbolicamente estão
relacionados à água. Para que um processo de transformação ocorra na
psicoterapia é necessário que o terapeuta auxilie o paciente nesse processo de
secagem dos complexos, que se dá justamente por meio do afeto. Torna-se
necessário o paciente vivenciar os seus processos inconscientes de maneira
afetiva e emocional. A partir da expressão dos complexos os afetos que
surgirão desse processo se tornarão fogo, e secarão os complexos de toda
“água” inconsciente. É na experiência da vida que encontramos diariamente o
fogo da calcinatio, pois é no fogo que a natureza pode vir a passar por
processos de transformação, e o mesmo ocorre com o inconsciente, porque o
mesmo é essencialmente natureza:
Sulphur era o nome que a alquimia dava ao seu (fogo secreto), um
agente corante que era a chave para o opus porque realçava a
essência vital da matéria. O sulphur, enxofre, podia ser criativo,
infernal, curativo e fétido. O seu fogo é às vezes dourado e luminoso,
outras queima nas profundidades mas não liberta luz ou então brilha
mas não se consome – tudo formas de exprimir os desconhecido
(elemento inflamável) e (fator motor) por trás do mistério da
compulsão inconsciente e da vontade consciente. (ARAS, 2010, p.
84).

A operação da calcinatio, de acordo com Edinger (1995), é finalizada


quando a cinza branca é encontrada, esse produto final está relacionado com a
fase da albedo, que consiste em um embranquecimento posterior a nigredo. A
chegada a albedo era vista como um evento digno de comemoração pelos
35

alquimistas, por causa de sua importância no opus. Esta fase possui um


caráter agridoce, de um lado existe a sua dimensão que simboliza desespero,
morte, destruição. E em contrapartida simboliza renascimento e o valor máximo
da obra:
A Alquimia via na cinza, como no sal, um símbolo da albedo, a (terra
branca foliada), resultante da queima das impurezas – o desejo
libertado da compulsão, a amargura tornada sabedoria. Era a
substância do (corpo incorruptível) ou o (diadema do coração), a
simplicidade paradoxal do autoconhecimento. (ARAS, 2010, p. 728).

A solutio como operação também possui relevância especial no trabalho


alquímico, pois as imagens que a fundamentam simbolicamente estão
relacionadas com o elemento água, por exemplo, banho, inundações, batismo,
redemoinhos, afogamento e principalmente mar ou oceano. Psicologicamente a
operação da solutio representa uma relação de caráter mais acentuado entre o
ego e o inconsciente, ela demonstra um movimento da psique em dissolver a
partir do inconsciente as estruturas sólidas e fixas do ego que não permitem
mudanças, alquimicamente é um retorno à prima matéria. Portanto, a solutio
envolve redenção ao inconsciente, ao estado obscuro e caótico para que as
estruturas que não estão mais em consonância com o Si-mesmo possam ser
dissolvidas e transformadas. (HOFFMAN, 2006)
Jung (2012) compreendia a psicoterapia como um processo de solutio
entre paciente e terapeuta, porque este processo auxilia a psique do paciente a
entrar em contato com as atitudes e características fixas da personalidade que
pouco possibilitam o seu desenvolvimento. Para a individuação ocorrer o que
está em estado fixo na psique precisa movimentar-se para ocasionar processos
de transformação:
A análise e a interpretação dos sonhos confronta o ponto de vista da
consciência com as declarações do inconsciente, com o que se
arrebentam as molduras muito acanhadas da consciência reinante
até então. Esse afrouxar de concepções e atividades mentais
espasmódicas corresponde adequadamente à solutio e à separatio
elementorum pela aqua permanens, que já estava antes no corpo e
agora é (atraída sem engodos) pela arte. Esta água é uma anima ou
spiritus, isto é, uma (substância) psíquica, a qual por seu turno é
aplicada ao material resultante. Isso corresponde ao emprego do
sentido do sonho para esclarecer problemas existentes. Solutio é
definida neste sentido por Dorneus. (JUNG, 2012, p. 301)

De acordo com Edinger (1995) psicologicamente o Si-mesmo é o agente


da solutio, essa característica é experimentada de forma externa, que pode ser
36

um grupo ou o encontro com outra personalidade que possua um efeito de


solutio sobre o sujeito, ou internamente via projeção. Em linhas gerais, o Si-
mesmo como agente de dissolução simboliza um ponto de vista mais amplo e
superior por ser justamente a totalidade da psique:
A experiência da solutio (dissolve) problemas psicológicos mediante a
transferência da questão para o domínio do sentimento. Em outras
palavras, dá respostas a questões (irrespondíveis) ao dissolver a
obstrução da libido de que a questão era sintoma. (Edinger, 1995, p.
95).

Todas as operações alquímicas possuem aspectos superiores e


inferiores, a calcinatio no aspecto superior está relacionada ao início dos
processos de transformação empreendidos no decorrer do opus, e
psicologicamente no trabalho com os complexos inconscientes, já o seu
aspecto inferior é vivenciado como purgatório ou inferno no decorrer do
processo. Na solutio o aspecto superior está relacionado com a amplitude que
esse processo acarreta, pois envolve uma redução à prima matéria e a solução
de corpo e espírito em um único momento, psicologicamente o seu aspecto
inferior relaciona-se ao medo que o ego sente ao entrar em contato com o Si-
mesmo, pelo fato deste último ser uma grandeza que está além da psique
consciente. (EDINGER, 1995)
A partir do simbolismo do dilúvio, inundações, desmembramento e
fragmentações, a solutio também apresenta uma possibilidade de união dos
opostos que surgem deste processo, ou seja, é da solução no decorrer do opus
que a posterior separação dos elementos que possuirão utilidade dos que não
terão acontecerá. Após a separação os elementos úteis passarão por um
processo de conjunção, renovando o material do opus:
Como nos dizem explicitamente os mitos do dilúvio, o dilúvio vem de
Deus; quer dizer, a solutio vem do si-mesmo. Aquilo que vale a pena
salvar no ego é salvo. Aquilo que não merece salvação é dissolvido e
derretido a fim de ser recomposto em novas formas de vida. Por
conseguinte, o permanente processo vital renova-se a si-mesmo. O
ego comprometido com esse processo transpessoal cooperará com
ele e experimentará sua própria redução como um prelúdio à vinda da
personalidade mais ampla, a totalidade do si-mesmo. (EDINGER,
1995, p. 99).

A alquimia intuiu no dilúvio a dissolução das estruturas que não estão


em harmonia com o Si-mesmo, as imagens do dilúvio evocam um mundo que
retorna aos seus elementos naturais. Os dilúvios comumente ocasionam medo
pelo fato de evocarem forças assustadoras e imprevisíveis dentro de nós
37

mesmos. Essas forças são as ansiedades, afetos e complexos que nos


inundam a partir do inconsciente e submergem a consciência, para que
posteriormente o nascimento de novas estruturas psíquicas seja possível.
(ARAS, 2012)
Após a solutio o opus alquímico continua com a operação da coagulatio,
a coagulação dos elementos que passaram por solução na operação da
solutio. Igualmente às outras operações a coagulatio está relacionada ao
elemento terra. O objetivo desta operação na alquimia é o de tornar as coisas
fixas, não passíveis de volatilização, psicologicamente isto simboliza que para
um determinado conteúdo psíquico possuir ligação com o ego torna-se
necessário que esse conteúdo tenha localização fixa. (EDINGER, 1995)
A coagulatio na alquimia gerava a oportunidade do alquimista conseguir
trabalhar de maneira mais sólida com os elementos que estavam em processo
de transformação, pelo fato desta operação deixá-los tangíveis e legíveis para
o desenvolvimento do opus. O processo de desenvolvimento do ego a partir da
sua prefiguração que é o Si-mesmo também precisa de coagulatio para ocorrer
de maneira efetiva e saudável. O desenvolvimento e diferenciação do ego
assemelham-se ao surgimento de uma pequena ilha em um vasto mar que é o
inconsciente, portanto o ego necessita de coagulação e posição fixa na psique,
do contrário é submergido pelas forças inconscientes:
Nos mitos da criação, as ilhas representam os começos da
consciência, pequenos, vulneráveis pedaços de terra recém-surgidos
do fundo do mar cósmico que são de novo submersos com facilidade.
A ilha pode exprimir insularidade no sentido de alienação, auto-
absorção ou inacessibilidade, mas também um estado de introversão,
uma retirada abençoada de estímulos inundantes, ou a capacidade
de ficar só. A ilha abandona à sorte do que é mais vital no self. Ou
pode exprimir o espaço imprevisto e inviolável onde o tesouro do self
se encontra. (ARAS, 2012, p. 124).

O processo de coagulatio na psique também está relacionado com os


humores, afetos e complexos que agitam a consciência de todas as maneiras e
precisam ser integrados. Para que possamos desenvolver uma relação de
caráter mais objetivo com eles torna-se necessário a coagulação desses
elementos na psique. Fato que acontece justamente por meio das imagens dos
sonhos e da imaginação ativa, porque elas unem aspectos do mundo exterior
com os do mundo interior por meio de imagens análogas, e por isso têm um
afeito de coagulação nos materiais provenientes da alma, tornando visível e
38

tangível os conteúdos inconscientes, diminuindo o sofrimento no decorrer do


processo de individuação. (EDINGER, 1995)
A operação da sublimatio geralmente aparece no opus após a
coagulatio, existindo uma relação de grande importância entre as duas
operações na obra alquímica. A subliminatio está relacionada ao elemento ar,
“alquimicamente, no entanto, o ar é associado positivamente à sublimação, à
elevação do concreto ao seu sentido simbólico” (ARAS, 2012, p. 54), e ela
transforma o material pesado do opus em ar por intermédio da ascensão e
volatilização, ou seja, a partir desta operação uma substância de caráter
inferior se transforma em uma forma superior através de movimentos
ascendentes. Portanto, uma das principais imagens relacionadas à sublimatio
na alquimia é a ascensão:
Para o alquimista, o processo de sublimação era experimentado em
imagens simbólicas. Ele podia ver, por exemplo, um pássaro
elevando-se da matéria situada na parte inferior do pote para as
regiões superiores. Equipara-se o pote alquímico com o macrocosmo,
sendo sua parte inferior a terra e a superior, o céu. O sublimado sai
da terra e é transportado para o céu. (EDINGER, 1995, p. 136).

Comumente as imagens de ascensão estão relacionadas à elevação,


sublimação, libertação de pesos que empurram para baixo, são imagens
diretamente ligadas ao movimento para cima tanto em nível físico como
psíquico. A ascensão também possui relação com os processos de
transformação da psique, por evocar um movimento para o que é impessoal, e
arquetípico. Ela também simboliza o processo de volatilização de um sólido, ou
a transformação espiritual da matéria. Isso significa simbolicamente em tornar
conscientes projeções inconscientes, que têm como resultado padrões fixos de
comportamento que até então não permitiam mudanças, e na conscientização
de um fato estritamente psíquico que precisa de integração. (ARAS, 2012)
A imagem da descida também possui importância fundamental neste
processo, porque o movimento para os aspectos inferiores e infernais da mente
humana consistem em um ponto essencial para a realização da psique no
processo de individuação. A descida está relacionada aos “altos” e “baixos” do
desenvolvimento psíquico, e junto com o movimento de ascensão existe a
finalidade de separar o que é cima do que é baixo para por fim unificá-los, “o
salvador alquímico ascende da matéria para o espírito, une os opostos e desce
uma vez mais a terra como o elixir reanimador” (ARAS, 2010, p. 432).
39

Edinger (1995) considera que psicologicamente a sublimatio ocasiona no


indivíduo a possibilidade de ascensão do emaranhado mundo do ego que é
complexo, temporal e pessoal. Ela traz ao ego a elevação para perspectivas
mais amplas no processo de individuação, auxiliando-o a entrar em contato
com a psique arquetípica. Em contrapartida a sublimatio também vem
acompanhada de um movimento descendente, com o objetivo de não causar
dissociação patológica no ego, este movimento tem a tendência de criar
personalização dos conteúdos psíquicos. Esse fato evidencia uma relação
entre a sublimatio e a coagulatio, que no opus alquímico recebe a
denominação de circulatio. A circulatio em seu aspecto químico se relaciona
com o aquecimento de determinada substância em um frasco de refluxo. Após
o aquecimento os vapores sobem e se condensam, para em seguida o
conteúdo que sofreu condensação ser realimentado na parte inferior do frasco,
e assim se repete. No processo de individuação isso significa que:
No plano psicológico, a circulatio é um circuito repetido de todos os
aspectos do ser, que aos poucos gera a consciência de um centro
transpessoal que unifica os fatores em conflito. Há um trânsito pelos
opostos, experimentados alternativamente, repetidas vezes, até
verificar-se sua reconciliação. (EDINGER, 1995, p. 161).

A putrefatio e a mortificatio são termos alquímicos relacionados entre si,


sendo que não possuem referência empírica na química, o que significa que os
conteúdos relacionados a estas operações são projeções de imagens
psíquicas. Experiências de penitência, doença, abstinência, rigores infligidos ao
corpo e principalmente a morte estão diretamente relacionadas à mortificatio.
Em contrapartida as experiências com a putrefatio trazem imagens de
decomposição, desmembramentos e destruição do corpo orgânico. (EDINGER,
1995)
Nas imagens de decomposição estão relacionadas tanto a putrefatio
quanto a mortificatio, pois o decompor é o desdobramento de determinada
substância em seus elementos constituintes. É uma operação que envolve
desintegração, divisão, redução e destilação. O corpo orgânico que morre,
exala compostos malcheirosos e voláteis, todavia eles também sustentam vida
nova e possibilidades de transformação. O nojo que o odor da decomposição e
da morte ocasiona é uma via de levar a imaginação para dentro, para o próprio
inconsciente. Nas profundezas do inconsciente os elementos tendem a se
40

misturar, as fronteiras não existem, e os conteúdos em relação de oposição


descobrem a sua gênese na emoção humana, possibilitando a transformação e
realização da psique que se inicia através de um lamaçal, ou seja, a nigredo.
(ARAS, 2012)
As imagens da mortificatio de acordo com Edinger (1995), estão
relacionadas à sombra, que consiste no aspecto da personalidade que possui
os germes essenciais para a realização da psique. Apesar da sombra
essencialmente possuir elementos desagradáveis da vida psíquica, ela também
apresenta ao ego em processo de individuação oportunidades de
desenvolvimento, pois a partir das imagens de morte, tortura, apodrecimento
existe o lado oposto que carrega um sentido positivo como renascimento,
ressureição e principalmente transformação. Em relação ao estado caótico do
opus alquímico Jung salienta que:
O retorno ao caos era considerado pelos alquimistas como uma parte
da obra. É o estado da nigredo (negrura) e mortificatio (mortificação,
morte), seguido pelo ignis purgatorii (fogo do purgatório) e da albebo
(alvura). O espírito do caos é indispensável para a obra, e nem
sequer pode ser distinguido do Espírito Santo (ars donum spiritus
sancti – a arte é um dom do Espírito Santo), como também o Satanás
do Antigo Testamento representa um aspecto de Javé. O
inconsciente é bom e mau, ou nem bom nem mau. Ele é a mãe de
todas as possibilidades. (JUNG, 2012, p. 443).

O retorno ao caos no opus alquímico encontra consonância no


relacionamento do ego com a sombra da personalidade, onde os conteúdos
que serão submetidos à mortificatio possuirão um caráter infantil. O trabalho
psicoterapêutico realizado neste sentido será o de retirar da libido essas
características infantis e primitivas dando-lhes a possibilidade de
transformação. Como a sombra é projetada o que será essencialmente
trabalhado na mortificatio serão as projeções de cunho obsessivo da psique.
(EDINGER, 1995)
A mortificatio é vivenciada pelo ego como uma humilhação, fracasso e
dor, por envolver a integração de conteúdos psíquicos que sempre foram
projetados. Na simbólica alquímica esse processo é representado nas imagens
de mutilações, envenenamentos e desmembramentos. As experiências de
mortificatio em geral são impostas pela vida e é a partir delas que a psique
encontra valiosas possibilidades de desenvolvimento. (EDINGER, 1995)
41

Conforme aponta Hoffiman (2006), as imagens de ferimento, viúva (o),


órfão, estão relacionadas à operação da separatio. Pois a prima matéria com a
sua característica indiferenciada de elementos requeria um procedimento de
separação. A separatio possui relação com as operações químicas em
laboratório:
Considerava-se a prima matéria um composto, uma confusa mistura
de componentes indiferenciados e opostos entre si, composto esse
que requeria um processo de separação. Os vários processos físicos
e químicos realizados no laboratório alquímico fornecem imagens
para esse processo . Extraía-se metal do minério puro por meio do
aquecimento, da pulverização ou de vários recursos químicos. Muitas
substâncias ao serem aquecidas, dividem-se em uma parte volátil,
que se torna vapor, e num resíduo terroso que permanece. Os
amalgamas, por exemplo, quando submetidos ao aquecimento,
liberam o seu mercúrio como vapor e deixam o metal não volátil no
fundo do frasco. O processo de destilação separa um líquido mais
volátil de um menos volátil e a evaporação separa um solvente líquido
do sólido nele dissolvido. (EDINGER, 1995, p. 199).

A operação da separatio no aspecto psicológico está relacionada ao


processo de desenvolvimento da consciência a partir do inconsciente, e na
diferenciação das quatro funções psíquicas. O que será material da separatio
no início do desenvolvimento psicológico é a separação entre sujeito e objeto.
Esse movimento tem a finalidade de retirar o ego da participation mystique com
o inconsciente, o que levará a vida psíquica a tensão entre os opostos
ocasionados pela separação. Em essência a separatio tem como alvo a meta
do opus que é a coniunctio, a partir da purificação e diferenciação das atitudes
contaminadas pelos complexos inconscientes, a psique pode iniciar o seu
processo de transformação com a finalidade de integrar na consciência esses
aspectos inconscientes. Na alquimia este processo de conjunção está
relacionado às imagens da coniunctio, especificamente com a coniunctio
superior. (EDINGER, 1995)
É de fundamental importância para a coniunctio a transição para a fase
da rubedo, que consiste na última etapa para a obtenção do ouro no opus
alquímico, no processo de individuação esta fase está relacionada com a
integração dos opostos na psique. Esse movimento da psique envolve uma
maior atuação da consciência nos processos psíquicos inconscientes,
simbolizado no calor e vermelhidão característicos na fase da rubedo. A partir
da reação emocional da consciência em relação aos complexos, o diálogo com
o inconsciente intensifica-se, fato que auxilia no preparo do caminho para a
42

integração dos opostos na psique. Na alquimia a rubedo possibilita que rei e


rainha possam realizar as suas núpcias reais, ou casamento alquímico. (JUNG,
2012)

2.2.2 A polarização energética na coniunctio e o efeito da união dos


opostos para o desenvolvimento da consciência

A função psíquica da consciência está relacionada ao processo de


conhecer, o qual requer que a experiência indiferenciada e difusa seja cindida
entre um sujeito e objeto, conhecedor e conhecido. Isso está em consonância
com a divisão da unidade original que corresponde à descrição de Erich
Neumann sobre a separação entre os pais do mundo. A separação entre o pai
céu e a mãe terra está relacionada ao evento cosmogônico do nascimento da
consciência com suas potencialidades para conhecer. Esse processo de
separação entre sujeito e objeto precisa ser realizado para cada nova
ampliação da consciência, o ego quando está influenciado por um conteúdo
inconsciente apenas poderá se conscientizar dele através de um ato de
separação. O que ocasiona uma não identificação com esse conteúdo
psíquico, tornando possível o ato de conhecer. (EDINGER, 1993)
O processo de estruturação da consciência está relacionado com duas
formas de experiência: a de ser o sujeito conhecedor, e a de ser objeto
conhecido. O início da existência psíquica desenvolve-se no nível inconsciente
de objeto conhecido e apenas após o crescimento do ego na psique, que
chegamos ao estado de sujeito conhecedor. O conhecer está relacionado a
uma dinâmica de poder do Logos, no entanto esse processo também envolve
uma relação de estar com o objeto de conhecimento, o que é uma dinâmica de
vinculação e relação característica do Eros. O conhecer enquanto palavra para
designar a consciência é fruto de uma coniunctio entre Logos e Eros.
(EDINGER, 1993)
O objetivo de todo o opus alquímico é a coniunctio, que consiste na
união dos elementos em oposição no decorrer do trabalho realizado pelo
alquimista. Essa união tinha como finalidade criar a partir do encontro
energético de dois elementos distintos um terceiro elemento que pudesse unir
43

os opostos. Comumente a união dos opostos é representada no símbolo do


“casamento alquímico”, no qual o objetivo é coroar a obra e realizar a união
suprema entre os opostos. Psicologicamente a importância da união dos
opostos na psique está relacionada à possibilidade de um diálogo fluído com o
Si-mesmo, essa é uma experiência que auxilia o ego no processo de
individuação a atingir momentos de relação com a totalidade da psique. (JUNG,
2012)
O movimento de integração e polarização dos opostos gera o fluxo de
energia psíquica, que desenvolverá em conjunto a coniunctio a estruturação da
consciência. A coniunctio é caracterizada por elementos que se unem
amorosamente ou que estão em relação de inimizade, assim sempre que um
objeto de desejo causar atração a reação será com a finalidade de buscar a
união com ele, a satisfação desse desejo. E também podemos reagir contra o
objeto a partir do sentimento oposto de ódio. Portanto, a relação dos opostos
constitui-se simbolicamente em um dínamo, onde a partir das trocas
energéticas entre eles a psique se mantém ativa. (EDINGER, 2008)
A consciência que se estrutura entre as tensões dos opostos pode ser
caracterizada como causa e efeito da coniunctio, pois ela é uma função criada
em conjunto pelo ego e o Si-mesmo. É no movimento de diálogo entre
consciente e inconsciente que a ampliação da consciência desenvolve-se
progressivamente de maneira cíclica, processo esse que depende também de
como o ego irá integrar as experiências da vida externa com a interna. Isso
significa que as projeções do inconsciente precisam ser reintegradas na
psique, para que a relação com o Si-mesmo possa ser estabelecida de maneira
efetiva. (EDINGER, 2008)
Na alquimia a pedra filosofal é caracterizada como mediadora dos
elementos em relação de oposição, por exemplo, quente e frio, seco e úmido, e
duro e mole. Psicologicamente sempre que o ego se identifica com um dos
elementos em oposição o inconsciente faz com que o indivíduo entre em
confronto com o seu complemento oposto. Esse movimento ocasionado pelo
inconsciente auxilia o ego a desenvolver um contato com pontos de vistas
opostos, na alquimia o desenvolvimento desse ponto de vista acarretava na
44

criação da pedra filosofal. Para a Psicologia Analítica é um processo que


amplia a consciência:
O processo pelo qual uma série de conteúdos psíquicos – complexos
e imagens arquetípicas – faz contato com o ego e, dessa forma, gera
a substância psíquica da consciência, é denominado processo de
individuação. Esse processo tem como traço característico o encontro
dos opostos, vivenciado primeiramente como ego e inconsciente, eu
e não eu, sujeito e objeto, eu mesmo e o outro. Assim, podemos dizer
que, sempre que se vivencia o conflito entre atitudes contrárias, ou
quando um desejo e ideia pessoal estão sendo contestados por outro,
seja dentro ou de fora, existe a possibilidade de criar um novo
aumento de consciência. (EDINGER, 1993, p. 18).

Os conflitos da vida externa e interna que são solucionados de maneira


criativa, ocasionando um terceiro elemento transformado que é a solução dos
conflitos, é um processo acompanhado pelo sentimento de satisfação em
relação a esse aprimoramento psíquico. Tornando-se um exemplo de
ampliação contínua da consciência. Esse encontro entre o externo e o interno é
fundamental para o processo de individuação, e leva o ego e desenvolver uma
reflexão e entendimento a respeito dos conteúdos que não fazem parte dele,
ou que são opostos a ele. (EDINGER, 1993)
Diversas ideias míticas e simbólicas podem ser compreendidas como
um processo de desenvolvimento da consciência, todavia, o simbolismo
alquímico é mais pertinente para a compreensão desse processo psíquico pelo
fato de estar fundamentado nos estudos realizados por Jung. O alquimista
deveria encontrar a prima matéria e submetê-la a uma série de operações no
vaso alquímico, buscando como resultado uma substância transformada e
poderosa comumente denominada de pedra filosofal. Para a Psicologia
Analítica o procedimento alquímico está simbolizando o processo de
individuação, e a pedra filosofal a realização da psique e a consciência de
completude. A pedra filosofal também carrega o simbolismo da união dos
opostos, ela é o resultado de uma coniunctio geralmente representada pela
união do rei vermelho com a rainha branca. (EDINGER, 1993)
Segundo Edinger (1993), além das imagens sexuais que representam a
coniunctio, ela é também simbolizada na imagem da crucificação por não ser
um processo totalmente agradável. Os opostos geralmente são vivenciados
pelo ego como um conflito doloroso, entretanto a elaboração e vivência
contínuas desse processo promovem amplificações gradativas da consciência:
45

Jung fez duas constatações: de um lado, os problemas vitais


essenciais são racionalmente insolúveis, porque constituem um
confronto de opostos, por outro, se a pessoa suporta corajosamente
se problema, um dinamismo misterioso se põe em ação, permite que
o conflito seja superado e elabora uma síntese em nível superior.
Essa unidade consciente progride aos poucos através dos conflitos
provocados pela colocação dos opostos frente a frente. Produz-se,
então, cada vez, uma diferença de potencial e uma descarga de
energia. Essas provações se multiplicam naquele que deixou a norma
coletiva para seguir seu caminho pessoal. (HOFFMAN, 2006, p. 158).

Os textos alquímicos de Gerhard Dorn estruturam a coniunctio em três


graus. O primeiro grau recebe o nome de unio mentalis, e nele ocorre a união
da alma e do espírito após a separação de corpo e alma. Esse processo possui
um caráter duplo, pois, quando a alma separa-se do corpo ela une-se ao
espírito. O segundo estágio refere-se à unio mentalis, mas através de um
processo que reúne alma, espírito e corpo. O objetivo dessa estrutura acontece
no terceiro estágio denominado de unus mundus, onde a unidade alma-
espírito-corpo combina-se com o mundo. (EDINGER, 2008)
Jung (2012) afirma que psicologicamente a unio mentalis simboliza a
união intrapsíquica entre o intelecto, razão e Eros, representando o sentimento.
Essa operação alquímica na psique simboliza um progresso do conhecimento e
desenvolvimento pessoal, todavia, esse processo atinge o seu objetivo depois
da união com o unus mundus que representa a totalidade da operação. A
reunião dos elementos opostos alquímicos formava uma relação de unio
mentalis não apenas no homem, mas também em Deus que é “um” em todas
as coisas e o todo no qual se realizada a união dos opostos. Essa instância da
totalidade representa psicologicamente o Si-mesmo. O desenvolvimento da
unio mentalis é um processo de tornar-se “um” com a totalidade interior, ou
seja, corresponde ao processo de individuação.
De acordo com Jung (2012), os alquimistas buscavam alcançar a união
total dos opostos e consideravam esse processo fundamental para a cura de
todos os males, por isso procuravam preparar o caminho para o ser que une
em si os opostos. Esse processo era entendido como uma unificação entre a
posição espiritual com a corporal, representado principalmente no símbolo do
“casamento alquímico”. A união da posição espiritual com o corpo significa que
o conhecimento adquirido com a reintegração das projeções inconscientes
46

precisa ser aplicado no real. A segunda etapa da coniunctio está relacionada


com a realização do ser humano através de sua totalidade:
Então, o segundo estágio assume importância – reunindo a unio
mentalis com o corpo. Isso quer dizer que tudo o que tivemos de nos
dissociar no estágio anterior deve ser reincorporado num novo nível
de consciência. Você tem de fazer tudo que você fez antes, permitir
que as mesmas energias entrem, mas elas são, na realidade,
diferentes, porque estão acompanhadas pela consciência.
(EDINGER, 2008, p. 95).

A unio mentalis está relacionada com as projeções e identificações


inconscientes, que existem como algo natural e são aceitas sem nenhuma
crítica, entretanto o objetivo é que elas sejam retiradas conforme passam pelo
exame consciente e racional. Essa inconsciência primitiva era denominada
pelos alquimistas de nigredo, caos, ou massa confusa caracterizada por um
entrelaçamento entre corpo e alma difícil de desfazer. A partir da separatio a
alquimia demonstrava uma busca de libertar a alma e de criar uma posição
contrária, de natureza consciente e de acordo com a razão, com a finalidade de
estar além das influências do corpo. Todo esse processo tem o seu objetivo
atingido com a retirada das projeções enganosas, e através da diminuição da
identidade inconsciente dos objetos, possuindo relações com a psicoterapia
que ocasiona o desprender das projeções que iludem o sujeito em processo de
individuação e atrapalham o seu autoconhecimento. (JUNG, 2012)
Para Jung (2012), o terceiro grau da coniunctio é o unus mundus, que
consiste em uma união do ser humano com o mundo potencial da criação onde
não existiam pluralidades e dualidades, mas apenas o “um”. É um processo de
união que simboliza o Si-mesmo como origem da personalidade individual,
envolvendo-a no passado, no presente e no futuro. Essa ideia alquímica
relaciona o ser humano psíquico com o cosmo, e sofreu influências do
pensamento de Plotino que foi um dos primeiros filósofos que desenvolveu a
problemática do unus mundus:
Antes de todas as coisas, tem de existir o simples, diferente de tudo o
que dele advém, auto existente, e, no entanto capaz de estar
presente nessas outras ordens. Ele tem de ser uma autêntica
unidade: não apenas algo elaborado em uma unidade, e que seria
uma falsificação da unidade. Não é possível conhece-lo ou falar a
respeito dele. Ele é descrito como além do Ser ou Sobre Ser. Pois, se
ele não fosse algo simples, além de toda coincidência e composição,
não seria o primeiro princípio. Intocado pela multiplicidade, ele é
autossuficiente e o absolutamente primeiro, enquanto o que vem
depois precisa do que vem antes, e tudo o que não é simples precisa
47

do simples em si mesmo, como o próprio fundamento de sua


existência composta. (PLOTINO, 2000, p. 55-56).

Portanto o grau mais elevado da coniunctio é estabelecido através da


relação do alquimista com o unus mundus e a partir da produção da
quintessência, psicologicamente este processo representa uma síntese entre
consciente e inconsciente, o que resulta em mudanças gradativas e profundas
na consciência. (JUNG, 2012)

2.3. O MOVIMENTO ROSACRUZ; E O MANIFESTO “O CASAMENTO


ALQUÍMICO DE CHRISTIAN ROSENKREUTZ”

Harvey Spencer Lewis fundou e reativou a Ordem Rosacruz, AMORC,


na América, no ano de 1915 em San Jose – Califórnia, após ser iniciado ao
rosacrucianismo em 1909, na cidade de Toulouse. Esta é a maior organização
rosacruciana no mundo atualmente. Lewis estrutura as origens tradicionais
desta fraternidade antes da data de publicação da Trilogia de Manifestos no
século XVII que tornaram público o movimento rosacruz. O autor também
afirma que tradicionalmente a Ordem tem as suas origens nas Escolas de
Mistérios do Antigo Egito, estabelecendo a partir deste ponto a ligação mítica
entre os mistérios egípcios antigos e os ensinamentos rosacrucianos da
contemporaneidade:
Na Idade Antiga, a civilização egípcia alcançou um elevado grau de
conhecimento. No entanto, os mais profundos segredos do universo e
do ser humano não eram suscetíveis de preservação por meio de
registros apenas materiais, como em papiros ou nas paredes dos
templos. Sendo assim, os mais sábios organizaram classes ou
escolas de mistérios, que se localizavam em grutas isoladas ou
templos, e nas quais compareciam pessoas selecionadas por seu alto
grau de caráter a fim de compreender esse profundo conhecimento.
(LEWIS, 1987, p. 23-24).

É difícil de estabelecer o momento histórico exato do surgimento destas


escolas, todavia, a busca de conhecimento entre os egípcios coincidiu com a
observação e análise consciente dos eventos naturais da vida. As pessoas
desta época relacionaram a repetição cíclica de alguns fenômenos da
natureza, como o movimento do sol e a repetição das estações, com os
movimentos cíclicos de nascimento e morte em seu próprio ser. A partir disso
48

os estudos dos mistérios da natureza e do ser humano foram sistematizados


nessas Escolas de Mistérios, das quais a rosacruz era parte integrante.
(LEWIS, 1987).
O faraó Tutmés III da 18ª dinastia era um dos grandes iniciados nas
Escolas de Mistérios, e foi o responsável por organizá-las e estruturá-las em
uma única fraternidade. Após esse feito, Tutmés III foi oficialmente designado
Grande Mestre da organização. Setenta anos mais tarde, Akhenaton se tornou
o dirigente da fraternidade e se dedicou a organizar e atualizar os rituais,
paralelamente instaurou o monoteísmo como religião oficial do Egito. (LEWIS,
1987).
Partindo do Egito a Ordem expandiu as suas atividades para a Grécia,
com o auxílio dos ensinamentos de Pitágoras, e posteriormente para a Roma
Antiga por intermédio de Plotino. A chegada da Ordem no Ocidente foi
impulsionada pelos alquimistas e templários e demais pensadores ligados aos
ensinamentos herméticos. Apenas no século XVII a Ordem sai do anonimato e
inicia um novo ciclo de atividades na Europa. (LEWIS, 1987).
A partir da origem histórica, a trilogia de manifestos publicada pela
Ordem Rosacruz surgiu em um contexto de grande efervescência cultural na
Europa e principalmente na Alemanha, onde vários pensadores buscavam
desenvolver uma Reforma Mundial, que estivesse de acordo com as demandas
sociais, culturais, humanas, religiosas, espirituais e científicas da época. Os
manifestos são atribuídos ao Grupo de Tubingen, formado por pensadores
interessados em Cabala, Alquimia e Mística Cristã. Este grupo teria se
organizado em 1608, e incluía: Johann Arndt, Johann Valentin Andreae, Tobias
Hess, Abraham Holzel e demais teólogos e pensadores que tinham como
proposta o desenvolvimento de uma reforma parecida com a de Lutero e
Calvino. (MENDIA, 2016).
É possível apontar a influência de outros pensadores, além do Grupo de
Tubingen, no movimento que deu origem aos três manifestos. Entre eles está o
médico e mago inglês John Dee, autor de Monas Hieroglyphicas, com símbolos
que podem ser reconhecidos nos manifestos rosacruzes, especificamente no
Casamento Alquímico; o político e filósofo Francis Bacon que escreveu Nova
Atlântida, obra que engloba ideais em consonância com os dos manifestos; o
49

filósofo inglês Robert Fludd que produziu diversos textos elogiando a


Fraternidade da Rosacruz; e Michel Maier que foi um médico e filósofo alemão,
autor de obras com um simbolismo importante para o estudo do Esoterismo.
(MENDIA, 2016).
Após a publicação dos três manifestos a repercussão foi ampla em
diversos países, todavia na Alemanha foram duramente criticados. Os
membros das religiões institucionalizadas criticaram a Fraternidade Rosacruz
de obscurantismo, práticas mágicas e de serem indefinidos em relação à sua
religião. Essas percepções foram alimentadas pelo fato de que ninguém da
época sabia ao certo quem eram os rosacruzes, e quais eram os fundamentos
dos seus ideais. Mas levando em consideração o pensamento dos possíveis
influenciadores do grupo, pode-se desenvolver algumas considerações a
respeito da natureza religiosa da rosacruz, pois o movimento unia anglicanos,
luteranos e calvinistas. As publicações rosacruzes do século XVII e dos dias
atuais trazem influências de diversas tradições religiosas. (MENDIA, 2016).
Este período de publicações dos manifestos rosacruzes foi analisado por
Frances Yates, historiadora inglesa de estudos sobre o Renascimento, como
Iluminismo Rosacruz. O anúncio das atividades rosacruzes na Europa coincidiu
com um período histórico de transição entre o Renascimento e a revolução
científica do século XVII. Nesta fase a tradição hermético-cabalística do
Renascimento sofreu influências de outra tradição essencialmente hermética,
que era a alquimia. Portanto, os manifestos rosacruzes consistem em uma
expressão desta fase, combinando magia, cabala e alquimia, que foram
aspectos que influenciaram o novo iluminismo. (YATES, 2008).
De maneira sintetizada, o objetivo do movimento rosacruz para o século
XVII era estabelecer uma união entre o conhecimento científico e religioso.
Esta união aconteceu dentro do movimento a partir dos modos de expressão
religiosa presentes na alquimia, tendência que foi o resultado de união entre a
filosofia animista e vitalista do Renascimento. A alquimia era vista neste
período como uma forma mais idônea de vivenciar as experiências religiosas,
por causa do sentido de interiorização que os textos alquímicos traziam.
Portanto, o movimento rosacruz enfatizava que a alquimia era adequada para
50

vivenciar de maneira simbólica a experiência religiosa e concomitantemente à


matéria e à ciência. (YATES, 2008).
O movimento roasacruz influenciou de maneira considerável o progresso
empreendido no século XVII, pois a tradição hermético-cabalística como força
dinâmica da ciência renascentista deu impulso para a revolução científica da
época, com o objetivo de levar o ser humano a desenvolver de forma integral
as suas capacidades criativas:
É de se esperar que este tema complexo e rico do entusiasmo
alemão seja agora objeto de consideração séria como uma fase
importante da História europeia. O mais notável é, porém, a ênfase
que a Rosa-cruz dá ao iluminismo iminente indicado no título deste
livro. Ao mundo, que se aproxima do fim, está reservado um novo
iluminismo pelo qual o progresso do conhecimento, realizado no
decorrer da era que precedeu a Renascença, vai se propagar
enormemente. Serão fei-tas novas descobertas e uma nova época vai
irromper. E esse iluminismo reluz tanto para o interior como para o
exterior. É uma iluminação espiritual interior que desvela para o
homem uma nova possibilidade interior e faz que ele compreenda sua
dignidade, seu valor e o papel que deve assumir no plano divino.
(YATES, 2008, p. 171).

O primeiro manifesto intitulado de Fama Fraternitatis teve como


finalidade além de anunciar as atividades da Ordem Rosacruz evocar a
sociedade para uma Reforma Universal do Mundo Inteiro. Este manifesto
possui três textos com temáticas diferentes entre si, o primeiro chamado de “As
Notícias de Parnaso” evocava a necessidade da Reforma Universal. O
segundo consistia no objetivo central do manifesto e foi chamado de Fama
Fraternitatis, no qual os irmãos da rosacruz estavam dispostos a oferecer o
conhecimento regenerador desenvolvido por Christian Rosenkreutz, fundador
mítico do Movimento Rosacruz. O terceiro texto do manifesto era um convite
aos homens das ciências e demais soberanos da Europa para se unirem à
Ordem Rosacruz, e desenvolverem em conjunto a Reforma Universal. O
Confessio Fraternitatis foi o segundo manifesto, e consistia em uma confissão
dirigida aos Homens de Ciência da Europa. O conteúdo deste manifesto estava
ligado estritamente à religião, no qual foi redigida uma crítica ao fanatismo
religioso, em especial à Igreja Católica e ao próprio Papa. (MENDIA, 2016).
Christian Rosenkreutz recebe lugar de destaque nos três manifestos e é
abordado como figura mítica simbólica fundadora do movimento rosacruz.
Segundo o mito, Rosenkreutz era um monge alemão que desde muito cedo
empreendeu diversas viagens místico-iniciáticas pelo mundo, principalmente no
51

Oriente onde aprendeu várias correntes filosóficas. Com os conhecimentos


adquiridos sobre ocultismo, Rosenkreutz conseguiu prolongar a sua vida até os
106 anos de idade. Após o falecimento o seu corpo foi selado em uma tumba
por 120 anos, depois da descoberta de seu corpo a existência da Ordem
Rosacruz pôde ganhar publicidade. Esse é um rito simbólico que marca o início
de cada ciclo de funcionamento externo da fraternidade rosacruz.
(RODRIGUES, 2016).
A data de nascimento do personagem Christian Rosenkreutz é o ano de
1378 na região do Reno, Alemanha. Rosenkreutz se tornou órfão muito cedo e
foi enviado para um mosteiro Albigense no qual foi criado e educado em grego,
latim e hebraico. Aos 15 anos de idade sentiu-se impulsionado a realizar uma
viagem à Terra Santa. (RODRIGUES, 2016).
Em Damasco ele fez a sua primeira parada e passou um tempo longo na
cidade por causa de uma doença. Todavia, foi em Damasco, segundo o mito,
que ele entrou em contato com um grupo de sábios e foi iniciado nos mistérios
e arcanos árabes. Ao atingir os conhecimentos necessários continuou a sua
viagem pelos países árabes com a intenção de conseguir mais conhecimentos.
Neste período ele entra em contato com diversos países islâmicos, onde
desenvolveu uma relação com os “Sábios do Leste”, que lhe revelaram a
ciência harmônica e universal derivada do “Livro M”. Obra que traduziu.
(RODRIGUES, 2016).
Após as viagens Rosenkreutz estava esgotado e doente, entretanto, foi
curado pelos sábios que lhe transmitiram os conhecimentos arcanos e lhe
iniciaram nas ciências secretas. Atingida a sua cura e com toda a bagagem de
conhecimento adquirida, recebe a missão de propagar esse conhecimento pelo
mundo Ocidental a partir da criação de uma fraternidade secreta. Antes de
retornar à Alemanha ele empreende uma jornada para o Egito e Marrocos. Ao
se estabelecer no continente europeu estrutura uma fraternidade que só
poderia se tornar pública quando a humanidade estivesse preparada para
receber os seus ensinamentos. (RODRIGUES, 2016).
De acordo com os manifestos, Rosenkreutz notou que a seu
empreendimento seria grande, então recrutou sete auxiliares que juraram
lealdade, discrição, diligência e escreveram escritos fundamentais para a nova
52

fraternidade. Rosenkreutz foi além e desejou construir um Templo, que


retratasse de maneira simbólica as suas viagens e sua filosofia desenvolvidas
pelo Oriente. Em conjunto com outros irmãos, ele construiu a “Morada do
Espírito Santo” que consistia em um local para curar os doentes e consolar os
desesperados:
Terminada a construção do templo, cinco irmãos acharam que
estavam preparados para viajar pelo mundo, divulgando as suas
ideias, testando a veracidade de seus axiomas, aperfeiçoando seus
conhecimentos, curando doentes. Antes da viagem fizeram as
seguintes promessas: nenhum deles deveria professar outra coisa
além da cura dos doentes, e isso gratuitamente; nenhum deles seria
obrigado a usar nenhum hábito particular, mas seguir o costume do
país que estivesse; todo ano, no dia C. deveriam se reunir na “Casa
do Espírito Santo”, ou escrever informando o motivo de sua ausência;
as letras C.R.C constituíam-se na palavra chave e título, e deveriam
ser o seu selo, emblema e característica; a fraternidade permaneceria
secreta por cem anos. (MENDIA, 2016, p. 128-129).

O Terceiro Manifesto relata experiências mais intensas e profundas de


Rosenkreutz, consiste em um conto alquímico que traz a preparação do
personagem para o desenvolvimento da grande obra após a sua jornada
narrada nos manifestos anteriores. O Casamento Alquímico de Christian
Rosenkreutz foi publicado em alto-holândes, no ano de 1616, pelo editor Larare
Zetner, na cidade de Estrasburgo – Alemanha. Este Manifesto Rosacruz difere
dos anteriores pelo fato do seu conteúdo estar estruturado em um romance.
Christian Rosenkreutz não é o autor do Manifesto, mas é o personagem central
que narra uma experiência mística de sete dias, ocasionada a partir de um
convite entregue a ele para participar do casamento real do rei e a rainha. A
partir do primeiro dia ele passará por um processo de iniciação e purificação de
acordo com a simbologia alquímica e rosacruz. (OLIVEIRA, 2009).
Esta obra rosacruz aborda como tema central a alquimia, que possui o
objetivo no “casamento” entre os dois “eus” do ser humano, consiste em uma
união que forma um todo em que o indivíduo não é sacudido entre os seus
opostos internos. Christian Rosenkreutz é uma figura simbólica, e encontra-se
no início de experiências profundas, pois, ele deseja nascer para uma nova
vida após ter passado por um processo de purificação nas experiências
relatadas em Fama e Confessio Fraternitatis. (AMORC, 2015).
O romance do Casamento Alquímico discorre a respeito da viagem
mística de Christian Rosenkreutz no ano de 1459, estruturando esta história em
53

características poéticas e simbólicas e unindo também temas comuns da época


de sua publicação, como a alquimia, a astrologia, a religião, a alegoria, o
misticismo e a cabala. Christian Ronsekreutz é um termo, que significa Cristo
da Rosacruz, em grego Chrestos referia-se ao neófito e Christos ao purificado,
ungido e iniciado. (AMORC, 2015).
Após a sua jornada de sete dias e inúmeras provas, Christian
Rosenkreutz não conquista uma vitória absoluta ou transcendente. Não se
transforma em uma espécie de deus e ser imortal ou fica inacessível e
indiferente ao mundo. Entretanto, após a jornada ele vence e escapa do
orgulho, uma etapa é concluída e um novo ciclo começa onde tudo é diferente.
Com o final de sua peregrinação, Christian Ronsekreutz é feito “Cavaleiro da
Pedra de Ouro”, expressão simbólica utilizada pela Ordem Rosacruz. (AMORC,
2015).

2.3.1 Primeiro dia

Certa noite, antes do dia de comemoração da Páscoa, Christian


Rosenkreutz estava mergulhado em sua costumeira meditação noturna. Ele
estava prestes a preparar no próprio coração, em conjunto com o Cordeiro
Pascal, um bolo sem fermento e de formato grosseiro. De maneira súbita se
iniciou uma tempestade terrível que interrompeu as suas preces e lhe tiraram a
concentração. Entretanto, essas provações não lhe surpreendiam mais, então
tomou coragem e mergulhou novamente em sua meditação. (AMORC, 2015).
No decorrer da meditação foi interrompido por um anjo alado: uma
mulher de admirável beleza, com uma veste azul constelada de estrelas de
ouro como o próprio céu. Na mão direita ela segurava uma trombeta de ouro,
onde estava escrito um nome que Rosenkreutz não podia revelar. Já na mão
esquerda ela carregava um grande maço de cartas escritas em todos os
idiomas, que ela tinha a função de entregar em todos os países. As suas asas
eram grandes e belas, totalmente coberta de olhos. Ele não conseguiu
observar mais detalhes das asas por causa do sentimento de assombro que
havia penetrado até os seus ossos. Ela lhe entregou uma pequena carta e
colocou sobre a mesa, fazendo uma profunda reverência. No momento de
54

partir foi embora sem dizer uma única palavra, ao alçar voo tirou um som
estridente de sua trombeta que todo o morro que servia de firmamento para a
casa de Rosenkreutez estremeceu. (AMORC, 2015).
A carta que foi entregue estava lacrada por um pequeno selo no qual
continha uma cruz ansata e no centro possuía uma inscrição em latim: “in hoc
signo vinces”, ou seja, “por esse signo vencerás”. Com precaução,
Rosenkreutz abriu a carta, o conteúdo estava escrito em letras de ouro sobre
um fundo azul. Os versos eram os seguintes:
Este é o dia, este é o dia, este é o dia das Bodas Reais; Se a ela és
convidado por ter merecimento, se Deus te elegeu para a alegria.
Sobe então ao pináculo. Coroado com três templos imponentes para
contemplar a história. Toma muito cuidado! Se não te purificastes
com diligência, as bodas poderão te causar danos. Desgraça ao
vacilante, que se cuide aquele que é volúvel demais! (AMORC, 2015,
p. 143).

Após ler a carta, ficou atônito e quase perdeu a consciência, pois se


tratava do casamento que foi anunciado a ele sete anos antes por uma
aparição e que lhe causava grande desejo. Entretanto, não podia imaginar que
este casamento ocorreria em circunstâncias penosas e perigosas. Rosenkreutz
não se sentiu merecedor de guardar um tesouro tão fugidio e instável. Seu
corpo, sua conduta exterior e seu amor fraterno para com o próximo também
não estavam totalmente purificados. Ele passou por um momento de oscilação
entre o temor e a esperança, a nova missão que foi atribuída a ele lhe causava
pavor. Então recorreu ao método que corriqueiramente utilizava: após uma
fervorosa prece, deitou-se com a esperança que a Bondade Divina lhe
enviasse um anjo para trazer alívio em relação àquele delicado assunto.
(AMORC, 2015).
Após a prece, Rosenkreutz adormeceu e sonhou que estava preso no
fundo de uma torre escura por pesadas cadeias, junto com uma multidão de
outros prisioneiros. No fundo da torre não havia luz, e o clima entre todos era
de aflição, ele relata que ali eram todos celerados incorrigíveis. Depois de
passarem um tempo considerável naquela desgraçada situação, que se
assemelhava a um calvário, os prisioneiros ouviram o soar de muitos clarins e
o rufar de tambores. A cobertura da torre foi aberta e um ancião informou que
uma corda seria descida sete vezes ao fosso para quem conseguisse subir ser
libertado. Rosenkreutz conseguiu subir na sexta descida da corda. Na sétima
55

descida ao fosso a anciã, mãe do ancião que lançou a corda pela primeira vez,
consolou os prisioneiros que não conseguiram a liberdade. Informando que em
um tempo vindouro todos seriam iguais e teriam as mesmas oportunidades.
Logo em seguida o fosso foi fechado ao som de clarins e tambores, e
entregaram para cada um dos libertos sete moedas de ouro comemorativa e
viática. Em um lado da moeda estava gravada a imagem de um sol nascente, e
do outro havia a frase “Deus Lux Solis” , ou seja, Deus Luz Solar. No final
foram dispensados e incitados a servir os semelhantes sem revelar nada do
que lhe foi confiado. (AMORC, 2015).
Rosenkreutz ficou com dificuldades para caminhar por causa dos
ferimentos que os grilhões da prisão causaram em seus pés. Neste momento
os clarins começaram a tocar de maneira súbita, fato que lhe causou pavor e
fez com que acordasse sobressaltado. Apenas após certo tempo acordado que
percebeu que tudo foi um sonho. Ficou preocupado e impressionado e ainda
parecia sentir os ferimentos nos pés. De qualquer forma ele compreendeu que
Deus havia permitido a sua presença no casamento secreto e oculto. Então
preparou-se para a viagem, colocando uma veste de linho branco, circundou-se
com uma faixa vermelho sangue, colocada por cima dos ombros em forma de
cruz e colocou quatro rosas vermelhas no chapéu como sinal de identificação.
Como mantimentos para a viagem levou pão, sal e água, antes de partir
realizou uma prece pedindo proteção a Deus em sua caminhada, e jurou não
usar para proveito egoísta os ensinamentos que estava prestes a receber.
Assim termina o primeiro dia. (AMORC, 2015).

2.3.2. Segundo dia

Neste dia, ocorre a viagem de Rosenkreutz rumo ao Palácio do Rei.


Antes de entrar na floresta e adentrar nos caminhos, ele se depara com uma
placa fixada em uma das árvores com as seguintes advertências:
Saudações, ó estrangeiro; se nunca ouviste falar do Casamento do
Rei, pesa bem estas palavras: o Noivo te dá a opção entre quatro
estradas, todas levando ao Palácio do Rei, desde que não te afastes
do bom caminho. A primeira é curta mas perigosa e passa por vários
obstáculos que terás muita dificuldade em evitar. A segunda é mais
longa e te fará seguir atalhos sem te perderes: é plana e fácil, se não
te desvias para a esquerda nem para a direita, graças à bússola. A
terceira é a verdadeira estrada real; festas e espetáculos régios
56

suavizam a viagem. Mas apenas um em mil a têm escolhido. Nunca


um mortal pôde alcançar o Palácio do Rei pela quarta estrada, que
leva à morte do viajante e só convém aos corpos incorruptíveis.
Escolhe, pois, entre as três a que te convém, e persevera. Ficas
também advertido, seja qual for a tua escolha: em virtude de um
Destino imutável, não poderás voltar atrás, sob pena de perigos
mortais. Era isto que queríamos te revelar; se ignorares esta
advertência, não sabes de que perigos te lamentarás em teu
caminho! Se és culpado do menor delito contra as leis do nosso Rei,
eu te suplico, enquanto ainda é tempo, volta para tua casa pelo
mesmo caminho que já seguiste, o mais rápido possível. (AMORC,
2015, p. 154)

Após a leitura das advertências, Rosenkreutz perdeu toda a alegria e


começou a derramar lágrimas amargas. Indeciso, considerou se deveria
retornar ou tomar uma daquelas estradas. Meditou por um tempo a respeito do
seu merecimento e sentiu-se confortado com a libertação pela que passou na
masmorra. Depois de refletir por certo tempo sobre qual decisão tomar,
Rosenkreutz sentiu fome e sede, cortou então uma fatia de pão e neste
momento uma pomba branca se aproximou dele. Então ele lhe ofereceu um
pouco de pão e a pomba aceitou, no entanto um corvo negro, seu inimigo, viu-a
e precipitou-se sobre ela, desejando tomar posse dela, e a pomba teve de fugir.
Os dois voaram para a direção Sul, e Rosenkreutz sem pensar muito bem no
que estava fazendo, correu em perseguição ao corvo, e assim atravessou um
campo na direção mencionada; espantou o corvo e libertou a pomba.
Rosenkreutz adentrou por acaso no segundo caminho, e quando tentou voltar
para pegar o seu pão um forte vento lhe impediu ao ponto de lhe derrubar.
Todavia, ele seguiu a sua jornada com paciência, e apesar dos inúmeros
obstáculos e falsos atalhos que lhe apareceram, ele os evitou graças à sua
bússola, recusando-se a desviar da direção Sul um passo que fosse. (AMORC,
2015)
Seguindo o caminho, Rosenkreutz alcançou no final do dia um admirável
Portal Régio entalhado com inúmeras figuras e objetos maravilhosos, e na
parte superior estava fixada uma placa com a seguinte advertência: “Fora
daqui, afastai-vos, ó profanos.” Neste portal, havia um homem vestindo um
hábito azul celeste, que lhe recebeu e solicitou a carta-convite do primeiro dia,
perguntou-lhe o nome e se havia levado dinheiro o suficiente para comprar
uma insígnia. Em seguida Rosenkreutz respondeu que era irmão da Rosa-Cruz
Vermelha, e que sua fortuna era modesta, mas que o guardião poderia
57

examiná-la e pegar o que quisesse. O primeiro guardião escolheu a cabaça


com água e entregou a Rosenkreutz uma insígnia de ouro, na qual havia duas
letras gravadas: S.C. Antes de partir do primeiro portal o guardião lhe entregou
uma carta lacrada destinada ao guardião do segundo portal. (AMORC, 2015)
Rosenkreutz continuou o caminho até alcançar o segundo portal, que
era diferente do primeiro em relação às esculturas e nos símbolos que o
ornamentavam. Na placa fixada na entrada estava escrito: “Dai e recebereis.”
Um leão feroz estava acorrentado neste portal, quando ele viu Rosenkreutz
levantou-se e soltou um grande rugido, despertando o guardião do segundo
portal. O guardião disse para que Rosenkreutz não se entregasse ao medo e à
perturbação, afastou o leão e pegou a carta que ele trazia do primeiro portal.
Em seguida deu as boas vindas à Rosenkreutz e perguntou-lhe se ele tinha
como pagar o preço de mais uma insígnia. Como ele mais nada possuía,
ofereceu-lhe o seu sal, que foi recebido de muito bom grado. Na insígnia que
recebeu também estavam gravadas as duas letras: S.M. (AMORC, 2015)
Então um sino soou no interior do castelo e o guardião incitou
Rosenkreutz a correr o mais depressa possível para chegar a tempo de
adentrar. Ele conseguiu cruzar o terceiro portal ao mesmo tempo em que uma
bela vestal vestida de azul estava apagando todas as luzes atrás dela, e foi por
ela ter feito um pouco de luz em Rosenkreutz que ele conseguiu adentrar no
castelo sem se perder no caminho. Ao cruzar a entrada a porta foi fechada
bruscamente que parte de sua veste ficou presa e teve que ser deixada para
trás. As chaves da porta foram entregues à vestal, que as levou para o pátio
interno do castelo. Duas estátuas estavam sobre duas colunas laterais do
terceiro portal, uma de aparência feliz com a inscrição “congratulações” e a
outra de aparência triste com a inscrição “condolências”. Ao cruzar o portal, ele
precisou novamente informar o nome, que desta vez foi anotado em um
pequeno livro destinado a Sua Alteza o Noivo. E só após isso lhe foi dada a
primeira e verdadeira insígnia destinada aos convidados, era um pouco menor
que as anteriores, porém, mais pesada e tinha inscritas três letras “S.P.N.”
(AMORC, 2015)
Logo em seguida, recebeu sapatos novos, pois o piso do castelo era
todo feito de mármore claro, foi também barbeado e tesourado por dois pajens
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invisíveis, após terem terminado o processo levaram o cabelo cortado embora.


Mal Rosenkreutz conseguiu se recuperar do processo uma pequena
campainha começou a tocar, e segundo os pajens isso significava que a
reunião no castelo já iria começar. Eles lhe guiaram com suas tochas por todo
o caminho do castelo através de muitos corredores, portas e escadas em
caracol que terminavam em um grande salão, onde uma multidão de
convidados estava. Os convidados eram compostos de imperadores, nobres,
camponeses, ricos e pobres. Todos o conheciam como o irmão Rosa-Cruz, e a
maioria lhe disse que havia passado pelo caminho das rochas. Em seguida um
soar de trombetas invisíveis conduziram-nos à mesa, na qual cada um sentou-
se de acordo com a posição social que julgava ter direito. Rosenkreutz e outros
convidados só conseguiram um canto no final da mesa. (AMORC, 2015)
Foi servido a todos um grande banquete em conjunto com uma
agradável música, no entanto nenhum dos convidados conseguiu visualizar os
serviçais. Após o término do vinho e da comida, vários convidados começaram
a contar bravatas e gabolices, enquanto Rosenkreutz e alguns de seus
companheiros permaneciam em tranquila dignidade. Depois de meia hora, a
música cessou repentinamente e nada mais puderam ouvir. (AMORC, 2015)
Logo em seguida retumbou um rufar de tambores, trombones, clarins e
timbales e sobre um admirável trono de ouro, estava a mesma vestal que
adentrou com Rosenkreutz no castelo. Desta vez, ela usava uma veste
cintilante, branca como a neve, debruada com lantejoulas de ouro. Os pajens,
portadores de archotes acessos iluminavam o trono de ouro da soberba
senhora. Chegando ao meio do salão, ela desceu do trono e imediatamente
começou o seu discurso inicial, dizendo que o Rei e a Rainha já sabiam da
chegada dos convidados e que estavam alegres e desejavam do fundo de seus
corações que as bodas de cada um fossem realizadas com sucesso e sem
sofrimento. E continuou com um aviso de especial importância:
Para estas bodas, eles sinceramente esperam vós ver toda a
preciosa colheita recolher. E em tempos tão duros se rejubilam de
que tenham sido encontrados tantos eleitos, mesmo que os homens
tão cheios de impudência sejam. Que sua vulgaridade não consigam
abandonar, e ganhem acesso a lugares para onde chamados não
foram. Para que nenhum tratante escape, para que nenhum velhaco
se iluda, desejoso sem qualquer vergonha de nas núpcias puras logo
participar, para amanhã prepararmos a balança dos artistas onde
cada um facilmente se aperceberá do que em si próprio negligenciou.
(AMORC, 2015, p. 167 – 168)
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O discurso era uma advertência de que os convidados seriam pesados


na balança dos artistas e que aquele cuja confiança não fosse total deveria
deixar imediatamente o castelo, ou que não seguisse para os aposentos e
passasse a noite no salão de jantar. Rosenkreutz e mais oito convidados
resolveram ficar no salão de jantar, um dos pajens chegou logo em seguida
trazendo um rolo de cordas e designou para cada um o lugar que deveria ficar.
Amarrou os convidados, levou as luzes que iluminavam o salão e deixou-os no
escuro. (AMORC, 2015)
Em seguida todos adormeceram e Rosenkreutz sonhou que estava em
um vale, e via uma multidão incontável de pessoas presas ao céu por um fio
amarrado às suas cabeças. Alguns estavam suspensos demasiadamente altos,
outros mais baixos. Um velho esvoaçava pelos ares e cortava com uma
tesoura os fios de um ou de outro. Aquele que não estava muito alto caía sem
ruído, quem estava no alto caía de uma posição tão elevada que fazia a terra
estremecer. Já para alguns o fio se desenrolava aos poucos, e eles atingiam o
solo antes que o fio fosse cortado. Rosenkreutz estava se divertindo com as
quedas no sonho, uma em especial lhe causou maior alegria. Foi a queda de
uma pessoa que tinha se gabado de sua elevada posição, que antes de
despencar de modo lamentável levou consigo alguns de seus vizinhos. Ele
acordou de súbito com um companheiro, e ambos passaram a noite
conversando e esperando a chegada do dia. (AMORC, 2015)

2.3.3 Terceiro Dia

Os clarins e os tambores deram início ao terceiro dia, e a vestal


presidente reapareceu vestida de veludo carmesim, cingido com um cinto
branco, uma coroa verde de louros e um séquito de duzentos guerreiros
armados, vestidos de vermelho e branco. A vestal reconheceu Rosenkreutz
pelas suas roupas, e lhe disse algumas palavras de consolo. Em seguida
reuniu ele e os outros oito convidados em um local que pudessem visualizar a
balança, toda feita de ouro, que estava no centro do salão, ao lado dela foi
colocada uma mesa coberta de veludo vermelho, com sete pesos em cima: um
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peso grande, quatro pequenos, e dois grandes colocados bem à parte. A vestal
dividiu os convidados em sete fileiras e escolheu de cada fileira um convidado
para pesar os pesos. (AMORC, 2015)
Iniciando o processo, um pajem agrupou os convidados de acordo com a
categoria de cada um antes de fazê-los subir na balança. Primeiro subiram os
imperadores, nobre e sábios, e no final os falsos clérigos e os falsos
alquimistas. No final o número de convidados que conseguiu passar pelo
processo com êxito foi muito pouco, no entanto eles receberam da vestal uma
veste de veludo vermelho e um ramo de louros. Prosseguindo, chegou a vez
dos nove restantes que dormiram no chão do salão de jantar. Rosenkreutz foi o
oitavo a ter que equilibrar os pesos, e depois de ter conseguido realizar o
equilíbrio, recebeu o favor de libertar qualquer um dos convidados que não
conseguiram equilibrar os pesos. Ele decidiu libertar o primeiro imperador que
deu início ao processo, e neste instante a vestal percebeu a rosa que
Rosenkreutz segurava na mão. Por intermédio de seu pajem, ela lhe pediu a
rosa, e Rosenkreutz lhe deu de bom grado. (AMORC, 2015)
Às dez horas da manhã, iniciou-se um debate para decidir o
comportamento a ser adotado aos indignos, vários pareceres foram analisados,
no entanto especificamente o parecer de um príncipe amigo de Ronsekreutz foi
levado em consideração pela vestal. Segundo o príncipe, as pessoas de alta
posição deveriam ser levadas para fora do castelo; os das categorias seguintes
seriam expulsos nus; os da quarta seriam açoitados com varas e uma matilha
de cães seria posta a persegui-los; os que haviam dormido no salão poderiam
deixar o lugar sem nenhuma punição; e os que se comportaram de maneira
indecente na refeição seriam punidos no corpo e na alma. A execução da
sentença seria comunicada ao meio dia. (AMORC, 2015)
A todos foi concedida uma refeição, e a mesa estava coberta de veludo
vermelho e as taças eram de ouro e prata. Rosenkreutz e seus companheiros
receberam da parte do Noivo, um tosão de ouro com um leão alado sobre ele e
ocuparam uma mesa superior, onde conseguiam visualizar quem lhes serviam,
ao contrário dos convidados que não passaram no teste da balança. A vestal
chegou ao jantar adornada também com o tosão de ouro e com o leão, e
recebeu de um pajem uma taça de ouro, destinada pelo rei aos bem sucedidos
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no teste, a tampa da taça representava a deusa Fortuna. Os convidados que


não passaram no teste foram divididos em dois grupos. Ao primeiro grupo foi
dirigida a seguinte acusação:
Reconhecei que destes créditos com demasiada facilidade a livros
falsos e imaginários, que acreditastes demais em vós próprios e que
vos apresentastes neste castelo sem terdes sido chamados por
ninguém. E embora a maioria sem dúvida aqui estivesse para se
empanturrar e depois continuar uma existência de luxo e ostentação,
vós vos estimulastes mutuamente a vos cobrirdes de ridículo e
vergonha. Por isso mereceis ser castigados. (AMORC, 2015, p. 180)

Os indivíduos do primeiro grupo confessaram com humildade, e em


seguida as seguintes palavras foram dirigidas ao segundo grupo:
Em vosso foro intimo, em vossa consciência, como bem o sabeis,
havia a convicção de que éreis os autores de livros falsos e
imaginários que vos serviram para enganar e iludir vosso próximo,
para desviar de muitos a dignidade real. Sabeis, portanto, de que
figuras ímpias e enganadoras fazeis uso. Como não poupastes
sequer a Santíssima Trindade e vos servistes dela para lograr as
coisas e as pessoas, vemos agora as práticas que vos permitiram
enganar os verdadeiros convivas e abusar dos ingênuos. Cada um de
vós sabia que vivia no deboche, no adultério, na indisciplina e em
toda sorte de desonras e comportamentos contraditórios aos
costumes de nosso Reino. Sabíeis, em suma, que rebaixáveis sua
Majestade até diante do homem comum. Confessai, portanto,
publicamente desmascarados, que sois culpados de alta traição, vós,
mentirosos e celerados, que mereceis ser separados das pessoas
honestas e severamente punidos. (AMORC, 2015, p. 180 – 181)

O julgamento foi realizado em um anfiteatro de madeira que foi montado


no jardim do castelo, o anfiteatro tinha quatro níveis sobrepostos, com bancos
em semicírculo. No primeiro nível uma cortina de tafetá branco fazia parte da
decoração, o segundo nível estava vazio e descoberto e os dois últimos tinham
cortinas de tafetá vermelho e azul. Os bem sucedidos no teste, o prisioneiro
liberto e a Vestal assistiram do segundo nível do anfiteatro o julgamento, no
primeiro nível estavam o Rei e a Rainha, mas que não podiam ser vistos por
causa das cortinas de tafetá branco. No julgamento alguns foram libertados, no
entanto lhes foi proibido voltarem ao castelo novamente. Outros condenados
foram despidos, e o procedimento variou de acordo com os crimes: alguns
foram mandados embora nus; em outros foram amarrados guizos e sinetas; e
os demais foram expulsos a golpes de chicote. Os últimos condenados foram
enforcados, decapitados e afogados. (AMORC, 2015)
No final do espetáculo, às quatro horas, Rosenkreutz e os demais
convidados que passaram no teste contemplaram um unicórnio branco com
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uma faixa dourada, que se aproximou da fonte do jardim e ali se ajoelhou nas
duas patas dianteiras. De pé na fonte havia um leão, que pegou a espada
desembainhada que tinha sob as garras e a partiu em duas; os pedaços caíram
na fonte. Depois ele rugiu, e uma pomba branca trouxe no bico um ramo de
oliveira, e entregou ao leão que se apressou em engoli-lo, o que o acalmou.
(AMORC, 2015)
Após todos esses acontecimentos, receberam permissão para visitar
algumas partes importantes do castelo antes de conhecerem o Rei no dia
seguinte. Todos os convidados foram acompanhados pelos seus pajens.
Rosenkreutz começou visitando os túmulos dos Reis, o que lhe ensinou mais
que todos os livros, e neste local se encontrava uma maravilhosa fênix. Em
seguida visitou a biblioteca e por fim uma sala espaçosa que continha no
centro um globo terrestre de trinta pés de diâmetro, foi permitido a ele visitar o
interior do globo, onde no centro não havia nada além de uma tábua redonda
que servia de assento para contemplar os ornamentos que ali dentro havia.
Rosenkreutz passou tempo considerável dentro do globo que quase perdeu o
horário do jantar. (AMORC, 2015)
Após o jantar, dois jovens com archotes precederam uma procissão
com sete vestais, sendo a última uma Rainha. Um grupo de quatro vestais; a
primeira estava com os olhos voltados para o chão, como sinal de humildade; a
segunda também era uma vestal de atitude casta e pudica; a terceira teve um
sobressalto ao adentrar no salão, porque ela não conseguia controlar suas
alegrias; a quarta expressava seu amor e generosidade através de buquês de
flores que trazia nas mãos. Depois dessas vestais apareceram mais duas,
vestidas de maneira mais luxuosa. A primeira tinha uma veste toda azul,
semeada de estrelas de ouro; a outra estava vestida toda de verde, com listras
vermelhas e brancas. A procissão chegou ao final quando uma vestal apareceu
caminhando sozinha, a sua cabeça estava coroada e seu olhar estava mais
voltado para o céu do que para a terra e todos acharam que se tratava da
Rainha das núpcias, mas não era o caso. Em seguida todos caíram de joelhos
diante dessa vestal, que logo depois lhe disse que deveriam na verdade elevar
os olhos ao Criador, buscando infundir-se de seu supremo poder para
perseverar na senda. (AMORC, 2015)
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Os pesos que foram utilizados na balança dos artistas ainda estavam lá,
e a Rainha deu a ordem para que fossem levados para a primeira sala do
castelo. A vestal de Roenkreutz e seus amigos pegaram o peso da Rainha, e
levaram-no para ser suspenso na primeira sala. No centro dessa sala erguia-se
um genuflexório, ao redor do qual todos se ajoelharam formando um círculo e
todos rogaram preces para que as bodas se cumprissem para a glória de Deus.
Na segunda sala a vestal suspendeu o peso de Rosenkreutz e lhe encaminhou
para os seus aposentos na companhia de seu pajem. Ao dormir, Rosenkreutz
teve um sonho no qual passava a noite toda a sacudir uma porta, até que
finalmente conseguiu abrir. E despertou com a luz do dia. (AMORC, 2015)

2.3.4 Quarto dia

O quarto dia inicia-se com a visita à Fonte de Hermes, para a qual


Rosenkreutz foi conduzido pelas mãos por sua vestal. Quando chegou ao local
reconheceu o leão dos dias anteriores, mas naquele momento ele tinha trocado
a sua espada por uma enorme placa gravada que tinha a seguinte inscrição:
Príncipe Hermes, após todos os males infligidos ao gênero humano
decididos por Deus: com a ajuda da arte, tornada remédio cujo
objetivo é benéfico, fluo neste lugar. Aquele que puder, que beba de
minhas águas, nelas se banhe o que o deseje; que as perturbe o que
ouse. Irmãos, bebei e vivei. (AMORC, 2015, p. 204)

Após terem se lavado na fonte e tomado alguns sorvos de suas águas


em uma taça de ouro, foram conduzidos a voltarem para o salão com a vestal,
para colocarem novas vestes, todas ornadas de ouro e flores. Receberam
também um tosão de ouro guarnecido de pedras preciosas. Nele estava
pendurada uma pesada medalha de ouro, tendo em um lado representados o
Sol e a Lua e do outro lado as seguintes palavras “a radiação da Lua igualará a
do Sol; e este será sete vezes mais brilhante do que agora” (AMORC, 2015, p.
205).
Precedidos pela vestal e pelos músicos, eles subiram 365 degraus e
chegaram ao alto, em um salão onde sessenta vestais os aguardavam. Uma
sineta retiniu e uma bela vestal apareceu e entregou para cada convidado uma
coroa de louros, e à vestal principal, um ramo. A cortina que ocultava o Rei e a
Rainha foi erguida, Rosenkreutz ficou impressionado com os adereços que a
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Rainha utilizava, eram tão brilhantes que ficou impossível contemplá-la. Foi
solicitado ao Casal Real para que cada convidado se apresentasse por si
próprio, e depois da apresentação cada um foi acompanhado por sua vestal até
a porta de saída do salão. Neste local se encontravam três admiráveis tronos
reais organizados em semicírculo; o do meio estava acima dos outros. No
primeiro trono estava um rei de barbas grisalhas acompanhado de sua esposa,
que possuía uma admirável beleza; no terceiro trono havia um rei negro no
auge do seu vigor, e ao seu lado uma anciã sem coroa, mas coberta por um
véu; no trono do meio estavam dois adolescentes que usavam uma coroa de
louros, e acima deles estava suspensa uma coroa. Rosenkreutz não os achou
tão belos quanto os havia imaginado. (AMORC, 2015)
Próximo ao trono mais alto, um pequeno cupido voava ao redor da coroa
e brincava com ela, às vezes ameaçava atirar nos convidados com seu arco e
flecha e se mostrou muito travesso. Diante da Rainha estava um altar de
radiante beleza, e nele havia um livro negro apenas dourado nas bordas. Ao
lado do livro havia um círio sobre um castiçal que ardia sem cessar, os
convidados não teriam percebido que se tratava de uma chama se o cupido
não se divertisse soprando-a de vez em quando; havia também um globo
terrestre girando sobre si mesmo; um pequeno carrilhão tendo em cima uma
pequena fonte de onde escorria continuamente um fio de água límpida cor de
sangue; por fim uma caveira que servia de refúgio a uma serpente branca que
nunca saía de sua morada. (AMORC, 2015)
Depois que saíram da sala onde foi feita a apresentação ao Rei, foram
fazer a primeira refeição do dia. Neste momento apareceu novamente o cupido,
que foi enviado por sua Majestade Real com ordem de fazer os convidados a
tomar um gole da bebida que havia em uma taça de ouro. No meio tempo, um
baile foi improvisado e Rosenkreutz assistiu a tudo como espectador, pois seu
espírito mercurial se recusava a participar na dança pelo fato de há muito
tempo ter esquecido essa arte. A vestal principal logo anunciou que uma peça
teatral seria realizada com o objetivo de agradar Sua Majestade Real antes de
sua partida, e que todos estavam convidados a participar do espetáculo no
Templo Solar. (AMORC, 2015)
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Foi formado um cortejo real até ao Templo Solar, na frente vinha a


Rainha desconhecida que os convidados tinham visto na véspera, ela estava
vestida de cetim branco e usava apenas uma joia, que consistia em uma cruz
minúscula; esta Rainha ocupava um lugar entre o jovem Rei e sua noiva.
Estavam presentes também seis vestais que traziam as joias do Rei, que
outrora se encontravam no pequeno altar. Em seguida vinham os três reis, com
o noivo no meio, e as três rainhas vinham atrás dos reis; apenas a rainha do
meio estava vestida toda de preto e o cupido carregava a cauda de seu
vestido. No final vinham as vestais e para fechar a procissão, o velho atlas.
Chegando ao Templo do Sol, todos tomaram os seus lugares e Rosenkreutz e
seus amigos sentaram-se em um estrado que foi erigido próximo ao Rei e a
Rainha. Instaram-se à direita dos reis. A peça teatral estava dividida em sete
atos, e forneceu a todos inúmeros conteúdos para meditação. (AMORC, 2015)
No primeiro ato aparece um velho rei rodeado por serviçais; uma
pequena arca que estava flutuando sobre as águas é trazida para diante de
seu trono. A arca é aberta, e nela contém uma criança com algumas joias e
pedaços de pergaminhos endereçados ao rei. Ao ler a carta o rei começa a
chorar, pois o reino de sua prima foi conquistado pelo Rei dos Mouros e toda a
sua descendência estava morta, exceto aquela criança. O rei sempre desejou
casar o seu filho com a filha da rainha e jurou ódio eterno contra o Mouro e
seus cúmplices; e ao mesmo tempo ordena que a criança seja criada com
ternura e preparada para a futura guerra contra o Mouro. Esses preparativos,
assim como a preparação da educação da menina fundamentam todo o
primeiro ato, e no entreato há um combate entre um leão e um grifo, no qual o
leão consegue vitória. (AMORC, 2015)
O segundo ato é marcado pela chegada do Mouro, descrito como negro
e pérfido e que com enorme ira toma conhecimento que seu crime fora
descoberto. O Mouro também consegue raptar a menina que outrora foi
resgatada das águas, ele desejava a estrangular imediatamente logo após o
rapto, todavia é enganado por seus próprios servos. O ato termina com o
triunfo do Mouro. (AMORC, 2015)
No terceiro ato ocorre a convocação de um grande exército sob o
comando do rei, para travar a guerra contra o Mouro. O exército seria
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comandado por um jovem cavaleiro. Ocorre a invasão ao reino mourisco, a


jovem é resgatada da torre graças ao poder das armas. Chegando novamente
ao seu lar, a jovem agradece à Sua Majestade por tê-la resgatado mais de uma
vez e que também se sente grata de ser a eleita para tornar-se a esposa de
seu jovem filho. A jovem jura fidelidade ao rei e assim começa os preparos das
núpcias reais. O entreato começa com a apresentação dos quatro animais que
Daniel certa vez viu em um sonho. (AMORC, 2015)
No quarto ato o reino perdido é restituído à jovem, e acontece a festa de
coroação. Durante muito tempo ela passeia pelo palco e não se sente
confortável na presença dos nobres e embaixadores. O Mouro, logo sabendo
da conduta desconfiada da jovem não perde a oportunidade. Como ela não era
velada o suficiente, logo se deixou seduzir por promessas falsas, a ponto de
desconfiar até mesmo de seu rei, e caiu gradativamente sob a influência do
Mouro mais uma vez. Isto ocorre, e o Mouro consegue a submissão de todos
os seus reinos. Nesta cena, o Mouro ordena que a jovem seja atada nua,
demasiadamente açoitada, e por fim, condenada à morte. Em seguida ela é
atirada nua em um calabouço, onde seria morta por envenenamento. O veneno
não causa efeito, no entanto o seu corpo é tomado pela lepra. O entreato é
marcado pela apresentação de uma estátua de Nabucodonosor, toda coberta
de emblemas. (AMORC, 2015)
No quinto ato o filho do rei é informado da atitude do Mouro e do destino
de sua esposa. Ele recorre ao pai, que envia embaixadores e outros
encarregados para consolá-la na masmorra, e também para repreendê-la por
causa de sua atitude. A jovem não aceita a visita e deseja tornar-se concubina
do Mouro. O entreato é conduzido por um coro de bufões armados que
constroem rapidamente um globo terrestre e logo em seguida o desmontam.
(AMORC, 2015)
Sexto ato; o jovem rei trava um combate contra o Mouro, no qual este
último é derrotado. Logo após, ele liberta a sua noiva e começa a se preparar
para as núpcias, e a confia aos cuidados de um intendente e capelão. O
intendente a faz sofrer terríveis suplícios, e o padre movido por grande
arrogância quer dominar o mundo e o jovem rei toma conhecimento de sua
conduta. Ele envia uma pessoa que destrói todo o poder do padre e começa a
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preparar a noiva para as núpcias. No entreato é apresentado um elefante


artificial, carregando uma torre cheia de músicos. (AMORC, 2015)
Sétimo ato; acontece o Casamento Real, no qual o povo clama: Viva
esposo, Viva esposa! Por esses gritos eles são feitos Rei e Rainha da peça
teatral, e os atores desfilam pelo palco cantando em coro:
O bem amado tempo enorme alegria nos traz, pelas núpcias do Rei:
cantai todos, pois; bem aventurado o doador. Eis que lhe é confiada a
bela noiva há tanto esperada. Alcançamos aquilo por que lutamos.
Feliz o espírito da previsão. Seus bons pais satisfeitos estão. Por ela
velaram eles, pelo tempo que foi necessário. Na honradez prosperai.
Que muitos filhos de vosso sangue nasçam. (AMORC, 2015, p. 218 –
219)

Terminada a peça teatral, todos foram convocados mais uma vez ao


banquete. Desta vez foi permitido que Rosenkreutz e seus amigos se
sentassem à mesa do Rei. Tudo ocorria com muita calma, no entanto algo na
atmosfera do local fez com que Rosenkreutz pressentisse algum perigo
iminente; a música não estava mais sendo tocada. No fim da ceia o Rei
solicitou que lhe trouxessem um livro que estava no altar. Em seguida ele
perguntou a todos os convidados se eles permaneceriam com ele para o
melhor e para o pior, todos concordaram e assinaram o livro. Depois desta
cerimônia, foi trazida uma fonte cristalina com uma taça de cristal da qual
beberam todos. Este procedimento foi chamado de “A prova do silêncio”.
(AMORC, 2015)
Todas as personalidades reais estenderam as mãos aos convidados, e
lhes disseram que se não permanecessem fieis, jamais os veriam novamente.
De súbito, uma sineta tocou e todas as personalidades reais ficaram pálidas,
depois trocaram as vestes brancas por negras, e toda a sala foi decorada de
veludo negro, também o soalho e o palco que havia sido construído no fundo
do salão foi coberto de preto. A vestal presidente apareceu e vendou os olhos
das personalidades reais com seis lenços de tafetá preto, e logo em seguida os
serviçais trouxeram seis caixões; no meio dos caixões foi colocado um cepo
preto. Prosseguindo o processo adentrou ao salão um homem alto e preto
como azeviche, trazendo nas mãos um machado. O velho rei foi o primeiro a
ser decapitado, e sua cabeça foi enrolada em um pano preto; o sangue foi
recolhido em uma grande taça de ouro e foi colocada junto com o cadáver no
caixão. As outras personalidades reais passaram pelo mesmo processo, e
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após serem decapitadas o homem negro se retirou seguido por um


companheiro que o decapitou quando chegaram ao umbral. A cabeça do
homem negro foi colocada em uma caixa. (AMORC, 2015)
Ao observar todo o processo, Rosenkreutz considerou que aquelas
bodas tinham sido realmente sangrentas. A vestal presidente percebeu que
grande parte dos convidados estavam desesperados com o ocorrido, e lhes
pediu para que se mantivessem calmos. Ela disse: “A existência deles está
agora em vossas mãos e, se me seguirdes, essa morte se tornará uma grande
fonte de vida.” (AMORC, 2015, p. 222). Depois deste conselho, os convidados
foram conduzidos pelos pajens até os seus respectivos aposentos.
O quarto de Rosenkreutz dava para um lago, que ele conseguia
observar por inteiro, pois sua cama ficava ao lado da janela. Após soarem as
doze badaladas da meia noite, ele viu um enorme fogo sobre o lago; então
observou ao longe sete navios se aproximando. Acima dos navios havia
chamas que às vezes desciam até a superfície da água, para Rosenkreutz se
tratava dos espíritos dos decapitados. Atracados, os seis caixões e a caixa
foram levados para os navios, e a vestal presidente estava presente.
Colocados os caixões nos navios, todos os fogos se apagaram e as seis
chamas foram reunidas para voarem para o alto mar; e em cada navio foi
colocado apenas uma pequena luz de vigia. Para finalizar o processo, a vestal
presidente voltou ao castelo e trancou todas as suas entradas. Rosenkreutz era
o único convidado que tinha uma janela que dava para o lago, e foi o único
também que presenciou aquele momento. Após várias especulações
adormeceu. (AMORC, 2015)

2.3.5 Quinto dia

Com o término da noite iniciou-se o agradável e tão esperado dia para


Rosenkreutz. Como de costume ele foi ao salão, mas lá não havia ninguém,
então solicitou ao seu pajem que lhe conduzisse para outras partes
desconhecidas do castelo. O pajem lhe levou à sala subterrânea, que estava
fechada com uma porta de ferro com a seguinte inscrição: “Aqui jaz Vênus”.
Após a porta ser aberta, o pajem o guiou por um corredor escuro que se
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assemelhava ao interior de um forno. Ele explicou que os caixões do dia


anterior foram retirados daquele lugar. O que mais chamou a atenção de
Rosenkreutz foi um mausoléu extremamente rico que estava no centro do
salão, ele era um túmulo triangular e continha em seu centro uma bacia de
cobre polido, o restante era feito de ouro e outras pedras preciosas. A bacia de
cobre abrigava um anjo que segurava em seus braços uma árvore
desconhecida, da qual pingavam sem parar gotas que caíam na bacia. Quando
um dos frutos da árvore caía na bacia eram dissolvidos imediatamente em uma
água que escorria para três recipientes de ouro. Esse altar estava
fundamentado em cima de três animais, uma águia, um leão e um boi.
Rosenkreutz perguntou ao seu pajem o que tudo aquilo significava, e ele
respondeu: “Aqui jaz Vênus, a bela senhora que de muitos homens de mérito
arruinou a felicidade, a honra, a salvação e a alegria”. (AMORC, 2015, p. 226)
Em seguida o pajem lhe mostrou um alçapão de cobre vermelho, e
desceram mais alguns degraus até que chegaram a um leito entre colunas,
luxuoso e fechado por admiráveis cortinas. O pajem afastou uma delas e então
Rosenkreutz viu a Senhora Vênus, deitada em sua nudez, esplêndida e bela.
Vênus estava totalmente imóvel e não podia ser tocada, então o pajem fechou
novamente as cortinas e voltaram a subir as escadas. Ao subir, Rosenkreutz
aproveitou para examinar melhor cada porta, e descobriu a presença de
pequenas lamparinas de pirita, o calor que elas irradiavam fazia a árvore
derreter-se de maneira ininterrupta; e a mesma não deixava de produzir novos
frutos. O pajem então lhe disse: “Ouve, o que escutei o Atlas revelar ao Rei:
quando a árvore tiver acabado de derreter, eu despertarei para gerar um Rei”.
(AMORC, 2015, p. 227)
Antes de retornaram ao salão de jantar, o cupido apareceu no recinto e
colocou um forte cadeado no alçapão de cobre pelo qual haviam entrado, e
disse que não poderia deixar impune o fato de quase terem surpreendido a sua
querida mãe. Ele colocou uma de suas flechas para ser aquecida nas
lâmpadas e depois picou a mão de Rosenkreutz. Logo em seguida começou a
preparação dos caixões das personalidades reais, o que na verdade era uma
fraude, pois os caixões foram levados na noite anterior e apenas Rosenkreutz
viu, ele não compreendeu muito bem para o que serviriam aqueles novos
70

caixões. Cada caixão era guardado por oito homens mascarados, e foram
levados ao mausoléu que ficava no centro do famoso jardim do castelo, e lá
foram enterrados em seis covas; as lápides foram colocadas no recinto e
lacradas. Terminados os falsos funerais, a vestal presidente fez um discurso,
no qual dizia que os convidados não poupassem esforços para auxiliar na
ressureição das personalidades reais. E para realizar esse processo, deveriam
ir até a torre do Olimpo, onde poderiam obter o remédio necessário para o
objetivo. (AMORC, 2015)
Os convidados seguiram para o ancoradouro onde seis navios estavam
atracados, todas as vestais prenderam neles ramos de louros e repartiram os
convidados pelos sete navios. Cada um dos navios possuía um grande
pavilhão e um signo particular, cinco deles estavam marcados pelos signos dos
Cinco Corpos Regulares, o de Rosenkreutz estava marcado pelo globo. Na
frente encontrava-se o navio A, que na opinião de Rosenkreutz transportava o
Mouro e dozes músicos, e o seu signo era uma pirâmide. Ao lado dele estavam
os navios B,C e D. Rosenkreutz encontrava-se no navio C, e no centro
estavam as mais belas embarcações, E e F que estavam ornamentadas com
ramos de louro, e suas bandeiras foram pintadas com as imagens do Sol e da
Lua. O navio G transportava quarenta vestais. (AMORC, 2015)
Ao adentrarem no alto mar, sereias, ninfas e deusas do mar os
aguardavam para lhes enviar uma jovem Nereida, que tinha como objetivo lhes
entregar um presente em homenagem pelas bodas. O presente consistia em
uma pérola engastada, grande, redonda e com belo brilho, jamais vista no
velho mundo. Após terem aceitado o presente, a ninfa solicitou que
concedessem uma audiência à suas companheiras e esperassem por algum
tempo. Todos concordaram e os navios foram posicionados com os maiores no
centro e os outros ao redor, de modo a formar um pentágono. Feito isso, as
ninfas formaram círculos e cantaram em coro:
Nada nesta terra é melhor do que o belo e nobre amor que nos iguala
a Deus; e que tudo ilumina. Assim, ao Rei este canto enviamos, que
todo o mar ecoe, nós perguntamos, vós respondeis. Quem nos
transmitiu a vida? O amor. Quem nos concedeu a graça? O amor.
Onde está a nossa origem? No amor. Como ficamos quando o
perdemos? Sem amor. Quem nos gerou? O amor. Por quem somos
nutridas? Pelo amor. Quem são os nossos pais? O amor. Como
explicar sua paciência? Pelo amor. Que permite que nos dominemos?
O amor. Pode-se igualmente encontrar o amor? Pelo amor. Onde
revela ele suas boas obras? No amor. Quem pode unir dois espíritos?
71

O amor. Cantemos, pois, em plena voz, para o amor glorificar; que


ele se digne crescer em nossas altezas reais. Seus corpos jazem, a
alma lá está. Se ainda vivermos, por sua graça fará Deus com que,
tal como seu amor e sua grande graça tão brutalmente os separou;
assim também as chamas do amor com júbilo os reunirão. Esta dor
em profunda alegria, ainda que precisos sejam milhares de gerações,
eternamente será transmutada. (AMORC, 2015, p. 232 – 233)

Terminado o canto, as ninfas receberam como recompensa uma


auriflama vermelha e se espalharam pelo mar, neste momento Rosenkreutz
começou a sentir as primeiras manifestações da picada do cupido e dá um
conselho aos leitores do Casamento Alquímico: “Se alguém quiser ouvir o meu
conselho, que evite o leito de Vênus. Cupido não tolera isso”. (AMORC, 2015,
p. 234) Após algumas horas de navegação, os convidados chegaram à torre do
Olimpo, esta se erguia em uma ilha com forma de um quadrado regular e
estava rodeada por uma muralha sólida e espessa. Logo todos foram
conduzidos ao laboratório da torre, onde tiveram que triturar e lavar ervas e
pedras preciosas para extrair a seiva e a essência, com isso encheram frascos
de vidros que estavam devidamente preparados. Os convidados tinham que
trabalhar na ilha para preparar tudo o que fosse necessário para a ressureição
das personalidades reais. Enquanto isso seis vestais lavavam os cadáveres na
primeira câmara do laboratório. (AMORC, 2015)
Com o fim dos trabalhos deste primeiro dia no Olimpo, Rosenkreutz foi à
noite observar longamente o mar e observou sete chamas percorrendo o mar
vindo se colocar no alto da torre. Ele ficou assustado, pois o vento se elevou e
o mar ficou agitado; as nuvens ocultaram a Lua e a alegria se transformou em
medo. Rosenkreutz voltou aos seus aposentos por que não ousava enfrentar
mais uma vez tão densa escuridão. Ele adormeceu ao agradável murmúrio de
uma fonte que corria no laboratório. (AMORC, 2015)

2.3.6 Sexto dia

No dia seguinte pela manhã, um velho entrou para assegurar que os


preparativos estavam finalizados e os experimentos realizados corretamente,
em seguida ele colocou todos os frascos em uma caixa. Neste momento
chegaram jovens trazendo escadas, cordas e grandes asas, que seriam
sorteadas entre os convidados e deveriam ser utilizadas para subir aos níveis
72

superiores da torre; Rosenkreutz ganhou uma corda. A primeira sala tomava


toda a extensão da torre e possuía seis belos oratórios, e os convidados foram
distribuídos nos mesmos com o pedido de que orassem pela vida do Rei e da
Rainha. Cumprido este dever, doze músicos trouxeram até a sala um objeto de
forma alongada, que era parecido com uma fonte. Rosenkreutz observou que
ele continha os cadáveres das personalidades reais e que a parte inferior da
caixa formava um oval grande o suficiente para abrigar seis corpos deitados
um sobre o outro. (AMORC, 2015)
A Presidente trouxe uma caixa, as serviçais ramos, pequenas lâmpadas
e algumas tochas acesas. As tochas foram distribuídas entre os convidados, e
lhe foi solicitado que formasse um círculo ao redor da fonte. Para dar
prosseguimento ao processo, a Presidente pegou um objeto circular e o
colocou na pequena caldeira superior, a qual fechou com uma tampa; em
seguida aspergiu as águas preparadas pelos convidados na noite anterior. A
fonte começou a funcionar e seu conteúdo correu para uma pequena caldeira,
através de quatro condutos. Na parte inferior da caldeira foram colocadas
lâmpadas, que tinham como finalidade aquecer a caldeira e fazer a água
começar a ferver. (AMORC, 2015)
No momento que a água começou a se agitar, passou a gotejar sobre os
cadáveres; a temperatura era tão alta que os dissolveu e transformou em
líquido. Como a caldeira possuía diversos orifícios em sua periferia, as vestais
introduziram nelas pequenos ramos que eram irrigados pela fonte, e o líquido
que escorria desse processo na bacia era amarelo. Essa operação teve a
duração de duas horas e a fonte fluía constantemente dela mesma. Com o
passar do tempo o jato tornou-se fraco. (AMORC, 2015)
Quando a fonte parou, a Presidente mandou trazer o globo de ouro.
Havia na fonte uma torneira na base que permitia transferir para ao globo toda
a matéria que foi dissolvida pelo grande calor da água em circulação; o líquido
era de uma cor vermelha muito forte. Depois de transferido o conteúdo para o
globo a caldeira foi aberta, e Rosenkreutz não sabia dizer se havia sobrado
algum resíduo utilizável dos cadáveres. No entanto, a água que foi recolhida no
globo era muito pesada e foi preciso seis homens para levantá-lo. Após esses
processos os companheiros de Rosenkreutz compartilharam com ele a
73

convicção de que os cadáveres ainda repousavam no jardim do castelo e de


que não sabiam o que pensar ao certo sobre as operações que estavam sendo
realizados no laboratório. Rosenkreutz agradeceu a Deus pelo momento que
presenciou da janela de seu quarto no dia anterior, e que agora lhe ajudava a
compreender as operações realizadas pela Presidente. (AMORC, 2015)
Quando chegou a segunda sala da torre, Rosenkreutz viu o globo
suspenso por uma corrente no centro do teto da sala. Esta sala era totalmente
envidraçada e as portas tinham a sua superfície coberta por um grande
espelho polido. Com as janelas abertas para o Sol e as portas abertas para
expor os espelhos, acontecia uma refração artificial na qual o sol dardejava
todos os seus raios sobre o globo suspenso no centro da sala. Depois do globo
ser aquecido ao ponto desejado todos esperaram ele resfriar. Esta operação
terminou às sete horas, e posteriormente foi realizada uma refeição para os
convidados. (AMORC, 2015)
Após o globo ter resfriado, foi colocado no chão e em seguida todos
discutiram como fendê-lo, pois a ordem era de dividi-lo em duas partes iguais.
Os convidados chegaram à conclusão de que seria melhor realizar o
procedimento com uma ponta de diamante. No momento de abrir o globo,
todos observaram que a matéria vermelha tinha desaparecido e em seu lugar
havia um grande ovo, branco como a neve. Todavia, apesar do sucesso da
operação a Presidente temia que a casca ainda estivesse muito frágil. Todos
estavam reunidos em círculo ao redor do ovo admirando-o, mas a Presidente
solicitou que ele fosse levado para outra sala. (AMORC, 2015)
Chegando à terceira sala da torre, havia um grande caldeirão de cobre
vermelho cheio de areia amarela, e era aquecido por um fogo brando. O ovo foi
colocado no caldeirão para que amadurecesse. O caldeirão tinha a forma de
um quadrado, e em um dos seus lados estava escrito: “Prescrição. Toma
betume fundível liquefeito e pulverizado; pela música e pelo fogo a
forma/aparência é elevada à do ouro ou ao estado do ouro”. No outro lado:
“Saúde. Neve. Lança”. No terceiro lado: “F.I.A.T”. E no último lado: “Aqui, o
Fogo: o Ar: a Água: a Terra. Das santas cinzas de nossos Reis e de nossas
Rainhas, eles não nos poderão tirar. A multidão fiel dos químicos, nessa urna
os reuniu”. (AMORC, 2015)
74

O ovo amadureceu e uma ave quebrou-lhe a casca, expressando grande


alegria apesar de estar cheia de sangue e ser disforme. Em seguida a ave foi
levada à areia quente para ser alimentada com o sangue dos decapitados, que
foi diluído em uma água apropriada, esse procedimento fez com que a ave
crescesse rapidamente. A ave estava furiosa e acometia as suas garras em
todas as direções e suas penas eram totalmente pretas. Foi levada a ela a
segunda refeição, que também consistia no sangue de alguma personalidade
real, logo em seguida as penas pretas caíram e foram substituídas por brancas
como a neve. A ave instantaneamente se acalmou, mas não permitia que
chegassem muito perto de seu recinto, então foi lhe servida a terceira refeição
que deu à suas plumagens cores esplêndidas. Após esse processo a ave se
tornou mansa e mostrou doçura para com os convidados. (AMORC, 2015)
Terminado esse processo, a Presidente solicitou que o jantar fosse
servido, pois a parte mais difícil do opus estava concluída, entretanto ela
estava preocupada com o estágio da fusão e buscava descobrir qual dos
convidados seria útil para concluir esse estágio. Concluída a refeição, a quinta
sala foi aberta, e nela havia sido preparado para a ave um banho que foi tingido
com um pó branco. No início do banho a ave foi mergulhada em um local frio, e
ficou muito satisfeita com o procedimento, mas com o aquecimento devido ao
calor das lâmpadas os convidados tiveram demasiado trabalho para mantê-la
calma. No final do processo a ave perdeu todas as suas penas negras na água,
e sua pele tonou-se lisa e branca; a água que consumiu totalmente as suas
plumas tingiu-as de azul. Para finalizar o processo foi acesso um grande fogo
sob o caldeirão, com a finalidade de evaporar a água por meio da ebulição; o
que restou foi uma matéria azul que foi retirada para ser triturada e
transformada em pó com uma pedra, para ser aplicada em todo o corpo da
ave. Após a aplicação a ave tornou-se totalmente azul, com exceção da cabeça
que permaneceu da cor branca. Em seguida a ave foi decapitada por um dos
companheiros de Rosenkreutz. Entretanto, neste momento não fluiu nenhuma
gota de sangue. Apenas depois, quando lhe abriram o peito, o sangue jorrou
fresco e claro como uma fonte de rubis. Posteriormente a ave foi queimada e
as suas cinzas limpas e guardadas em uma caixa. E assim terminou o trabalho
da quinta sala. (AMORC, 2015)
75

Os convidados receberam a ordem para subirem ao sexto nível, no


centro do local havia um pequeno altar onde Rosenkreutz e três de seus
companheiros colocaram parte das cinzas. Após observar esse ato, a
Presidente começou o seguinte discurso:
Caros senhores, estamos na sexta sala. Só há mais uma, antes de
chegarmos ao terno de nossos esforços e podermos voltar para o
castelo e despertar nossas mui misericordiosas Altezas. Eu gostaria
que todos aqui presentes se comportassem de maneira a me permitir
proclamar vossos louvores junto aos veneráveis Rei e Rainha, para
que fôsseis gratificados com a recompensa adequada. Mas, para
meu desagrado, notei – disse ela apontando para mim e mais outros
três – quatro obreiros preguiçosos e indolentes. Não desejando no
entanto, devido ao meu amor por todos, leva-los à merecida punição,
quero, para não deixar impune tanta preguiça, tomar a seu respeito
esta única decisão: que eles sejam excluídos da sétima operação, a
mais admirável, sem qualquer outra dívida a quitar diante de Sua
Majestade Real. (AMORC, 2015, p. 247 – 248)

Entretanto, a situação tomou um rumo diferente, passando pelo umbral


os músicos lhes disseram para que se alegrassem e que os seguissem pela
escada rumo a sétima e última sala. Neste recinto havia um velho que foi
designado para auxiliar na operação final, a Presidente colocou as cinzas em
um segundo recipiente, encheu o escrínio com outra substância e falou:
“Precisei enganar um pouco os outros artistas. Sigamos agora nosso velho
mestre, sem refrear o ardor que nos anima.” (AMORC, 2015, p. 249)
O trabalho de Rosenkreutz e seus três companheiros consistia em
umedecer as cinzas da ave com a água que haviam preparado anteriormente
até que ela se transformasse em uma pasta fina. Em seguida ela deveria ser
introduzida sobre o fogo até ficar bem quente, com a finalidade de ser derretida
em dois moldes antes de deixá-la esfriar por certo tempo. Nesse tempo os
convidados à sétima operação observavam os procedimentos que os outros
companheiros faziam na sexta sala. Eles estavam atarefados em volta de um
forno, cada membro deveria avivar o fogo soprando-o com o auxílio de um
tubo. (AMORC, 2015)
Após os moldes terem resfriado apareceram duas estatuetas de cor
claras, quase transparentes. Nos moldes havia um pequeno rapaz e uma
pequena menina de quatro polegadas de comprimento; eles não eram duros e
sim macios feitos de carne humana, apesar de estarem sem vida. Rosenkreutz
estava convicto de que a estátua da Senhora Vênus foi feita do mesmo
material. Posteriormente as crianças foram deitadas em duas almofadas de
76

cetim, e o velho ordenou que fosse derramado incessantemente, gota a gota,


na boca das estátuas, o sangue da ave que foi recolhido na taça de ouro. A
partir desse procedimento o tamanho delas começou a aumentar
gradativamente, a ponto de terem sido colocadas em uma mesa guarnecida de
veludo branco. Atingiram o tamanho adulto, os cabelos eram crespos e
dourados. (AMORC, 2015)
Todavia, os corpos do casal eram desprovidos de calor e sensibilidade,
estavam totalmente inertes. O velho logo em seguida cobriu totalmente os seus
corpos e colocou ao redor da mesa vários archotes, pois não queria que os
convidados perdessem o momento que em as almas desceriam para aqueles
corpos. Todos esses fatos aconteciam no sótão, que em sua parte inferior era
formado por seis meias esferas, sendo a do meio um pouco mais alta e
possuindo um orifício circular. (AMORC, 2015)
Depois de várias cerimônias, seis vestais adentraram na sala, cada uma
trazendo um clarim envolto em uma substância verde fluorescente que parecia
uma grinalda. O velho pegou um clarim e colocou na boca de um dos
cadáveres, de modo a fazer coincidir o a parte superior do objeto com o orifício
circular do sótão. Como parte do procedimento a grinalda ou coroa em volta do
cadáver se inflamou e o orifício foi aberto. Neste momento uma chama clara
desceu a toda velocidade indo incorpora-se no cadáver. A operação foi
repetida três vezes para cada um dos cadáveres, logo em seguida as luzes
foram apagadas e eles retirados do local envoltos em uma coberta. No novo
local em que se encontravam ficaram em estado de repouso por longo tempo.
(AMORC, 2015)
Passada meia hora, a Presidente foi verificar o comportamento dos
outros convidados que estavam de bom humor. Ela contou à Rosenkreutz e
seus companheiros, que aos outros convidados foi designada a tarefa de
trabalhar o ouro, que não era a mais nobre, necessária e melhor. Quando todos
estavam em silêncio, aguardando o casal despertar, o Cupido surgiu voando
entre o casal e perturbou-os até que despertassem. Eles ficaram espantados
com o despertar repentino. (AMORC, 2015)
A Presidente saudou o Jovem Rei e a Jovem Rainha que ainda estavam
um pouco lassos, e em seguida lhe entregou belas vestes. O Rei agradeceu a
77

todos de maneira muito graciosa. Rosenkreutz e seus companheiros foram


obrigados a acompanhar as jovens personalidades reais até o navio, eles
tomaram os seus lugares na companhia de algumas vestais e do Cupido,
partindo apressadamente logo em seguida. Após esse processo, Rosenkreutz
participou do jantar e em seguida conseguiu descansar profundamente em seu
quarto, o suave murmúrio do mar induziu-o a um doce sono. (AMORC, 2015)

2.3.7 Sétimo dia

Rosenkreutz acordou às oito horas da manhã, e se reuniu com os seus


companheiros na sala interna abobadada da torre, onde foram entregues a eles
vestes de cor amarelo vivo e seus Tosões de Ouro. A Presidente lhes informou
que tinham sido sagrados cavaleiros da Pedra de Ouro. No verso da medalha
de ouro que cada um recebeu continham as seguintes palavras: “A arte
servidora da natureza”, e “A natureza filha do tempo”. (AMORC, 2015, p. 256)
Realizadas as comemorações, eles adentraram em seus navios que no
total eram doze. As bandeiras representavam os doze signos do Zodíaco, a de
Rosenkreutz continha o signo de Libra. O mar estava perfeitamente calmo e a
viagem transcorria de maneira muito agradável, os navios navegavam de
maneira muito rápida e não tinham se passado mais do que duas horas quando
um vigia anunciou que via o mar inteiramente coberto de navios. As
embarcações estavam indo ao encontro deles, e consistia em uma frota de
quinhentos navios; um deles tinha um brilho parecido com o do ouro e
transportava o Rei e a Rainha, e eram cercados por nobres senhores e
donzelas. (AMORC, 2015)
Quando a distância entre os navios diminuiu, Atlas se apresentou em
nome do Rei e perguntou se o presente para a Majestade Real estava pronto.
O velho que havia auxiliado os convidados nas operações anteriores entregou
ao Rei e à Rainha um precioso escrínio que foi confiado à guarda do Cupido
que não parava de voar ao redor do casal. Entregue o presente, todos
navegaram por muito tempo até chegarem a novas costas, onde ficava o
primeiro portal que Rosenkreutz precisou passar no início de sua jornada.
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Neste portal encontrava-se o guardião vestido de azul, sobre o qual o Rei fez o
seguinte comentário:
Era um célebre e eminente astrólogo, que tinha sido beneficiado com
favores do Rei meu primo. Ora, aconteceu que ele agiu mal com a
Senhora Vênus, uma vez que a contemplara em seu leito. Como
punição, tinha recebido a função de guardião do primeiro portal, até
que aparecesse alguém para libertá-lo. (AMORC, 2015, p. 259)

Rosenkreutz perguntou se era possível libertar o guardião, e recebeu


uma resposta positiva, mas que seria necessário encontrar alguém que tivesse
cometido a mesma falta com a Senhora Vênus. Esta afirmação atingiu
Rosenkreutz, pois sabia que era justamente ele esse culpado, em seguida
entregou uma súplica ao Rei sem dizer mais nenhuma palavra. Imediatamente
o Rei chamou Atlas para que tomasse conhecimento da carta e fosse até o
guardião para completá-la com maiores informações. Quando Atlas retornou de
sua missão, o rei solicitou que Rosenkreutz lesse a súplica. Nela continham as
observações que Vênus tinha sido desvelada por um dos convidados do Rei, e
o guardião rogava à Sua Majestade que fizesse uma investigação para
descobrir o criminoso. Caso a conclusão fosse contrária, ele aceitaria a
continuar na função de guardião pelo resto da vida. (AMORC, 2015)
O Rei mandou que buscassem o guardião, e neste tempo todos foram
conduzidos a um salão de grande pompa para ser realizada a ceia daquele dia.
O crime de Rosenkreutz e a súplica a ele relacionada causaram tristeza geral,
especialmente nas personalidades reais. Terminada a ceia, poltronas foram
trazidas e organizadas em círculo no salão. Nelas todos se sentaram junto ao
Rei, à Rainha, ao Velho, à Presidente e às vestais. Atlas se colocou no centro
do círculo e continuou a cerimônia lendo as seguintes páginas de um admirável
livro:
1 – Senhores cavaleiros, jurai consagrar a Ordem, que é vossa,
somente a Deus, vosso Criador, e à sua serva Natureza, não ao
diabo ou qualquer outro espírito. 2 – Repudiai toda devassidão,
luxúria e impureza; não mancheis vossa Ordem com esses vícios. 3 –
Auxiliados por todos aqueles que dela são dignos e que dela se
mostrem ter necessidade. 4 – Não vos servireis da honra que vos é
concedida para conquista de honrarias terrenas ou da celebridade. 5
– Não vivereis mais tempo do que Deus deseje. (AMORC, 2015, p.
263)

Logo em seguida todos foram sagrados Cavaleiros, e foi-lhes concedido


o poder de dominar a ignorância, a pobreza e a doença. Terminado esse
79

processo, foram todos conduzidos a uma capela, na qual cada um deveria


escrever o próprio nome e outras coisas que julgasse apropriado. Rosenkreutz
escreveu: “A mais elevada ciência é a de nada saber, Christian Rosenkreutz,
Cavaleiro da Pedra de Ouro, ano 1459”. (AMORC, 2015, p. 264)
Depois foi solicitado a todos que formulassem um desejo, e Rosenkreutz
declarou-se disposto a assumir a total responsabilidade pelo seu crime, para
libertar o guardião. O Rei e a Rainha ficaram impressionados com o desejo de
seu hóspede predileto, e disseram que era impossível contrariar uma antiga
tradição. O Rei disse que não haveria outro perdão senão o de libertar o
guardião e tomar o lugar dele, até que outro hóspede cometesse o mesmo
crime para permitir que Rosenkreutz retornasse a sua pátria. Após pensar em
como seria a sua vida como guardião, ele colocou o anel que era utilizado pelo
antigo guardião, e foi aconselhado a se conformar com a sua nova função e
seguir todas as prescrições. Atlas e o mestre da torre o conduziram para um
esplêndido aposento, no qual três leitos o esperavam. Rosenkreiutz acreditou
que na manhã seguinte estaria no portal, mas foi conduzido novamente à sua
pátria. (AMORC, 2015)

2.4. ANÁLISE SIMBÓLICA DO MANIFESTO “O CASAMENTO ALQUÍMICO DE


CHRISTIAN ROSENKREUTZ”; PRIMEIRO DIA – O CONVITE

Segundo Campbell (1997), Christian Ronsekreutz pode ser


compreendido como heroi alquímico do terceiro manifesto rosacruz, e a sua
aventura inicia-se através de um mero acaso que se dá a partir da visita de um
anjo até sua casa. Esse momento faz Rosenkreutz entrar em contato com
forças que não são totalmente compreendidas por ele. O anjo que lhe entrega
o convite ao casamento real é o arauto de sua aventura, essa fase da jornada
do heroi corresponde ao “chamado da aventura”. O arauto comumente anuncia
o chamado para um empreendimento grande e histórico, e também pode
marcar o nascimento da iluminação religiosa. No caso de Rosenkreutz, o anjo
lhe anuncia que as bodas reais poderão ser responsáveis pelo “despertar do
seu eu”, pois, o chamado tem como característica retirar os véus dos mistérios
de transfiguração, o que equivale a um ritual ou passagem espiritual que
80

quando completo acarreta em morte seguida de renascimento, fato que é


característico dos processos alquímicos. O anjo tocava uma trombeta como
instrumento de proclamação celestial, e esse ser mítico simboliza o arauto da
psique que está pronta para os processos de transformação:
O seu nome deriva do grego angelos, que significa (aquele que
anuncia ou conta, mensageiro), e são agentes de revelação
sobrenatural, da proclamação, da ajuda e da orientação. São
enviados para nos abordar na forma de sonhos, visões e estados
meditativos; manifestam-se através de vozes ou coros celestiais, em
forma humana ou animal, como machos, fêmeas ou andróginos,
estrelas, nuvens ou fogueiras. As suas grandes asas simbolizam o
acesso a regiões divinas de conhecimento e de informação que nos
são vedadas a não ser no deslumbrante e angélico momento. (ARAS,
2012, p. 680).

O momento de meditação no início do manifesto corresponde com a


meditatio e imaginatio dos alquimistas. A meditatio ocorre quando um diálogo
interior com alguém celestial é estabelecido, que pode ser Deus, a própria
pessoa ou um anjo de caráter benigno. Esse diálogo interior de Rosenkreutz
enquanto alquimista não era uma simples reflexão, mas um diálogo vivo e
criativo com o “outro” existente em nós. Psicologicamente, esse processo está
relacionado com o diálogo estabelecido com o inconsciente, no qual os
conteúdos indiferenciados passam de um estado inconsciente para um estado
manifesto. A imaginatio complementa esse processo, pois, coloca o alquimista
em uma relação entre o inconsciente e a matéria que está em transformação
através da imaginação. A partir disso o alquimista vivenciava o mundo como
um campo psíquico. (JUNG, 2009).
A jornada de Rosenkreutz começa na véspera da Páscoa, que marca a
época do equinócio dando início a primavera, no hemisfério norte. Grande
parte das operações alquímicas é iniciada na primavera. Muitas culturas e
civilizações antigas deram aos equinócios uma importância especial, esses
momentos eram vistos como oportunidades de integrar-se com as forças da
natureza e do cosmos. Na cultura Cristã as datas comemorativas para os
processos de nascimento, morte e ressureição estão em consonância com os
equinócios e com o drama cósmico pelo qual passa o Sol nesse processo.
(ARAS, 2012).
Rosenkreutz ao receber a carta do anjo percebe que o selo consiste em
uma cruz ansata, com uma inscrição dizendo “por este signo vencerás”. A cruz
81

ansata possui a parte superior do braço vertical formada por um laço, e é um


símbolo da imortalidade e da alma. Ela simboliza a conciliação dos contrários e
a integração dos princípios ativos e passivos. Seu significado representa
também a chave que fecha o arcano para os profanos. Este símbolo carrega a
ideia básica da alquimia que é a reconciliação dos opostos. (CHEVALIER;
GHEERBRANT, 2008).
O conteúdo da carta que Rosenkreutz recebe possui um significado
essencial para o primeiro dia do manifesto, e também a reação do personagem
ao conteúdo que recebeu. Essa carta enfatiza a posição espiritual e moral que
o adepto precisa assumir diante do opus alquímico, e relaciona-se ao processo
de individuação, “... toma muito cuidado! Se não te purificastes com diligência,
as bodas poderão te causar danos. Desgraça ao vacilante, que se cuide aquele
que é volúvel demais!” (AMORC, 2015, p. 143).
O opus alquímico exige do adepto não apenas inteligência, mas um
trabalho com as suas qualidades morais e espirituais. O casamento alquímico,
enquanto arquétipo na alquimia não se trata apenas da transformação e união
do par real, ele simboliza também paralelamente o processo de individuação do
adepto. O conteúdo da carta recebida por Rosenkreutz, relacionada à
individuação, mostra que a união com a sombra e com a anima representa uma
dificuldade considerável e não pode ser empreendida de maneira volúvel. A
integração dos opostos que então é evidenciada por esse processo conduz à
constelação de conteúdos arquetípicos compensadores, o que significa que a
psique entra em contato com experiências numinosas. (JUNG, 2013).
Rosenkreutz sente medo no início da obra por não estar totalmente
purificado em pensamentos e atitudes, e não se percebe como merecedor de
participar do casamento real e de guardar os seus segredos, por ainda ser
volúvel demais. A ajuda que Rosenkreutz pede a Deus é uma característica da
vivência espiritual e religiosa dos alquimistas em relação ao opus. O sonho que
ele tem como prisioneiro no fundo de uma torre, relaciona-se com a fase da
nigredo e com a operação da calcinatio, simbolizando o contato e integração da
sombra no processo de individuação. O momento caótico, obscuro e confuso
acontece no fundo da torre, onde ele e os outros prisioneiros se percebiam
como indivíduos que possuíam má índole, ou que eram maus e perversos e por
82

isso estavam presos. O que predomina nesse ambiente é a força instintiva dos
prisioneiros para conseguirem a liberdade, o que tinha como consequências
ferimentos físicos nas tentativas de fuga. (JUNG, 2009).
Portanto, o sonho com a torre marca a nigredo e calcinatio na jornada de
Rosenkreutz. A nigredo relaciona-se com a sombra e com o momento inicial de
purificação que o alquimista deveria passar no começo do opus alquímico,
como também com a obtenção da prima matéria que será objeto de
transformação no opus. A prima matéria de Rosenkreutz consiste em seus
pensamentos, na sua moral e em tudo àquilo que ele desconhece de si mesmo
e que possui um caráter confuso e caótico. Já a calcinatio está simbolizada
nesse sonho na característica instintiva de Rosenkreutz e dos demais
prisioneiros para saírem da torre e passarem por um processo de purificação, o
fogo da calcinatio está relacionado à libido, ao desejo e ao instinto. Aspectos
que tiveram grande influência nesse momento inicial do opus. (JUNG, 2009).
O diálogo com o inconsciente, simbolizado neste primeiro dia, começa
com os conteúdos do inconsciente pessoal e dos que constituem a sombra,
após essa etapa segue-se com os conteúdos arquetípicos do inconsciente
coletivo. Esse diálogo tem como objetivo diminuir a dissociação e
unilateralidade da consciência, e para que ele seja atingido é necessário haver
um conflito de opostos na psique tornando possível a unificação e a totalidade.
Além da tomada de consciência dos opostos, esse processo acarreta na
experiência do “reconhecimento de outro” em si mesmo, que consiste em um
aspecto com natureza de difícil compreensão e com vontade diferente da
psique objetiva. Este aspecto simbolicamente representa o gênio, deus e o que
se oculta no mais íntimo de cada um, seja de maneira psíquica ou somática.
Os alquimistas representaram esse aspecto no Mercúrio, como uma fonte de
todos os opostos e representação de cada traço do inconsciente. (JUNG,
2013).
A sombra representada na experiência da torre por Rosenkreutz
corresponde a uma personalidade negativa do eu, ou seja, ela é composta por
todas as características de existência desagradável e deplorável, e pelo fato de
serem inconscientes sombra e anima se relacionam. O problema dos opostos
ocasionado pela sombra possui papel fundamental na alquimia, conduzindo à
83

unificação dos opostos no decorrer do opus através do arquétipo do


„casamento alquímico”. Os principais opostos são representados na alquimia
na forma de masculino e feminino, anima e animus, e possuem como objetivo a
unificação na qual os contrários desaparecem e formam a totalidade. (JUNG,
2009).
Segundo Hillman (1995), a advertência que Rosenkreutz recebe no
convite para o casamento real simboliza a prudência e cuidado necessários
para o trabalho com a anima. O anjo feminino na função de arauto que
apareceu para ele enfatiza que o processo pelo qual ele passará é interior e
consiste em uma vivência com o desconhecido. Em relação ao processo de
individuação, isso significa que o objetivo da análise do inconsciente é atingir
um aspecto em que os conteúdos inconscientes não permaneçam nesse
estado, e não continuem sendo expressos à consciência como fenômenos da
anima. O objetivo é tornar a anima uma função de relação com o inconsciente.
A prudência, nesse sentido, consiste no fato da anima enquanto função, ser
uma ponte para os conteúdos desconhecidos do inconsciente, ela é uma figura
do fundo obscuro da psique. E a sua integração leva à consciência esses
conteúdos indiferenciados, arquetípicos e numinosos que possuem grande
energia psíquica, pois são também conteúdos autônomos do inconsciente até
mesmo quando são integrados à consciência:
Anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma
função psicológica do homem e da mulher. Sua autonomia e falta de
desenvolvimento usurpa, ou melhor, retém o pleno desabrochar de
uma personalidade. Entretanto, já podemos antever a possibilidade
de destruir sua personificação, pois os conscientizando podemos
convertê-los em pontes que nos conduzem ao inconsciente. Se não
os utilizarmos intencionalmente como funções, continuarão a ser
complexos personificados e nesse sentido terão que ser
reconhecidos como personalidades relativamente independentes.
(JUNG, 2015, p. 101).

A relação do ego com a anima e o animus, de acordo com Jung (2011),


mobiliza os aspectos inconscientes à consciência para serem integrados, e
mobiliza as características fixas e estáticas da personalidade para serem
transformadas a partir de um encontro criativo com o inconsciente. Essa
dinâmica da psique ocasiona também a relação entre ego e Si-mesmo, e
comumente esse relacionamento é vivenciado pelo ego como derrota ou ferida.
O Si-mesmo enquanto totalidade da psique amplia a percepção do ego a
84

respeito de sua própria realidade, é um processo de crescimento que tem como


objetivo diminuir a unilateralidade da consciência de maneira gradativa e
cíclica. Os ferimentos que Rosenkreutz sofreu na cabeça e nos pés no
momento de sair da torre simboliza esse processo, a partir daquela situação
ele entrou com contato com as suas profundidades inconscientes, porque o
anjo feminino simboliza um aspecto de sua anima enquanto arauto para a
jornada rumo ao desconhecido que ele empreenderá, e a caos da prisão na
torre representa as características da sombra. Essa reintegração das projeções
inconscientes à consciência causa feridas psíquicas no ego:
A alquimia representava isto como a nigredo, um ferimento de sol, rei
ou leão – todos símbolos de atitudes reinantes da consciência. Do
mesmo modo, quando o patriarca bíblico Jacob luta com o anjo de
Deus, sofre um ferimento na coxa, um encontro deslocado com o
divino. Na verdade, as feridas podem ser a passagem para um drama
iniciático ou representar o ponto numinoso onde a relação entre o self
e os outros solidifica de acordo com novos termos. As feridas são
aberturas através das quais as energias ambivalentes das estruturas
profundas emergem à consciência, ou, por outro lado, se apoderam
da personalidade com amargura e desespero. (ARAS, 2012, p. 734)

O momento que Rosenkreutz consegue sair da torre através da


elevação da corda pela sexta vez, está relacionado ao processo de sublimatio
na alquimia. Esse é um processo de elevação no qual uma substância de
caráter inferior se transforma em algo superior por intermédio de um
movimento ascendente. A sublimatio vivenciada por ele consistia em uma
elevação do emaranhado confinador da prisão na torre, e o êxito nesse
processo faz com que Rosenkreutz desenvolva uma perspectiva mais ampla de
si mesmo. Esse processo de sublimação na alquimia é compreendido como
uma experiência de purificação dos elementos, psicologicamente ele simboliza
o retirar gradativo da influência inconsciente de determinados conteúdos
psíquicos. O movimento de ascensão da sublimatio na individuação consiste
em levar à consciência as projeções inconscientes, mobilizando a psique a
transformar padrões enraizados de comportamento. Após o período de
purificação na torre, ele conquista a sua liberdade e começa a transformar os
aspectos fixos, estáticos e sombrios de si mesmo em sua jornada alquímica. O
ato de sair da torre simboliza um progresso rumo a uma personalidade com
perspectivas mais amplas. (EDINGER, 1995).
85

Como comemoração Rosenkreutz recebeu uma moeda viática, na qual


em um dos lados estava gravada a imagem de um sol nascente, e do outro
lado escritos que diziam “Deus, Luz Solar ou Deus, Louvado Sempre”. De
acordo com Peres (2005), a moeda viática que ele ganhou neste momento
simboliza a Eucaristia que é recebida por aqueles que estão prestes a deixar a
vida terrena, e se preparam para passar para a vida eterna. Ela é recebida no
momento da passagem, e o corpo e sangue de cristo morto e ressuscitado
encerram em si a semente da vida eterna e o poder da ressureição. Jung
(2011) relaciona o rito da Eucaristia com o processo de individuação, este rito
possui símbolos de morte, renascimento, ressureição e principalmente
transformação. A moeda viática dada à Ronsenkreutz faz parte de um rito
eucarístico, e simboliza que os processos pelos quais ele passará em sua
jornada o conduzirão para momentos de renascimento e transformação, esses
símbolos também se relacionam com a operação da mortificatio na alquimia.
Em suas vestes Rosenkreutz usa uma faixa em forma de cruz nos
ombros, e no chapéu colocou quatro rosas como sinal de identificação. Ambos
os símbolos, a rosa e cruz, evocam o número quatro e quaternidade. A cruz é
um sinal de Deus, e caracteriza em si mesma a quaternidade e o sentido de
totalidade. De acordo com os símbolos espontâneos do inconsciente, a cruz
como quaternidade está relacionada ao Si-mesmo, ou seja, com a totalidade da
psique. O simbolismo da cruz também se relaciona com o conflito entre Cristo e
o Diabo, entre o céu e o inferno, correspondendo à quaternidade:
A quaternidade é um arquétipo que se encontra, por assim dizer, em
toda a parte e em todos os tempos. É pressuposto lógico em todo e
qualquer julgamento de totalidade. Quando se quiser pronunciar um
julgamento desta espécie, ele deverá ter quatro aspectos. Por
exemplo: para designar a totalidade do horizonte, devemos
mencionar os quatros pontos cardeais. A tríade é um esquema
ordenador artificial, e não natural. Por isso trata-se sempre de quatro
elementos, de quatro qualidades primitivas, de quatro cores, de
quatro castas na Índia, de quatro caminhos (no sentido da evolução
espiritual) no Budismo. Por esta razão há também quatro aspectos
psicológicos de orientação psíquica, além dos quais nada de
fundamental se pode dizer. (JUNG, 2011, p. 74)

A quaternidade enquanto arquétipo está relacionada e estrutura as


quatro funções de orientação psíquica, onde três das funções estão ao alcance
da consciência e a quarta é indiferenciada e inconsciente. O objetivo da
dinâmica do inconsciente em relação à função inferior é de desenvolvê-la
86

gradativamente, todavia, um desenvolvimento total da função inferior na


consciência não é possível pelo fato de ser oposta à função principal. Na
psicoterapia e no processo de individuação, o trabalho será o de tornar a
função inferior menos desadaptada, e isso se dá através da integração dos
conteúdos inconscientes que ela leva à consciência. A função inferior se
relaciona à prima matéria na alquimia, pois ela é a porta de entrada para os
conteúdos indiferenciados do inconsciente. E é a partir do encontro com esses
conteúdos que o ego em processo de individuação pode se transformar.
Portanto, a quaternidade evoca o sentido de totalidade que os alquimistas
buscavam no opus. (JUNG, 2011)
Rosenkreutz leva como provisão para os outros dias, pão, sal, e água,
que representam o elemento vegetal, mineral e purificador da vida. O pão está
relacionado ao corpo de cristo, símbolo que expressa na Consagração em
conjunto com o vinho, a coniunctio da alma e do corpo. A ingestão de
alimentos, em linhas gerais, está relacionada simbolicamente à necessidade de
integrar uma relação com o Si-mesmo, o ato de comer o pão é uma referência
aos símbolos da Eucaristia. O pão enquanto corpo de cristo está em
consonância com o Si-mesmo, e consiste em um alimento da imortalidade
segundo a tradição cristã. Diversos sacramentos estão relacionados às
operações alquímicas, neste caso o sacramento da Santa Comunhão é a
operação da coagulatio na alquimia, “do ponto de vista do simbolismo da
coagulatio, compartilhar do alimento eucarístico significa a incorporação, por
parte do ego, de uma relação com o Si-mesmo” (EDINGER, 1995, p. 129).
O sal na alquimia filosófica é compreendido como um princípio cósmico,
na quaternidade ele possui o lado feminino que é lunar e o lado superior
luminoso, sendo designado diversas vezes como uma das substâncias do
arcano. Esta substância também possui relação com a terra nostra, expressão
usada pelos alquimistas para expressar o arcano:
A passagem de Mylius diz: O que resta no fundo da retorta é o nosso
sal, isto é, nossa terra, e é de cor preta, um dragão que devora a sua
própria cauda. Pois o dragão é a matéria que resta após a destilação
de sua água, e aquela água é chamada de cauda do dragão, e o
dragão é a sua negrura, e o dragão é embebido em sua água e
coagula, e deste modo devora a sua cauda. (JUNG, 2012, p. 253)

É possível estabelecer relações entre o sal e a água, especificamente


com a água do mar, e o significado mitológico do mar corresponde ao estado
87

inicial e caótico do mundo, ele simboliza a matriz e útero de todas as criaturas.


O sal, portanto, surge dos minerais marinhos e é amargo por causa de sua
origem. Para os alquimistas o sal penetra tudo, e essa característica faz com
que ele seja compreendido como uma substância do arcano, pelo fato de ser
encontrado em todos os lugares. Ele representa o Eros enquanto princípio
feminino que faz tudo se relacionar entre si de maneira harmoniosa, os
alquimistas consideravam o sal o espírito e a luminosidade dos corpos
(albedo). (JUNG, 2012).
O simbolismo da água é de essencial importância na alquimia, este
elemento está relacionado à operação da solutio, que tinha como objetivo
transformar a substância do opus em água, primeiramente dissolvendo e
depois coagulando. A água na solutio era vista como um retorno à prima
matéria, sendo a água considerada como um útero para que esse retorno fosse
realizado. Psicologicamente, são símbolos que representam a mobilizam os
conteúdos estáticos da personalidade a um exame ao inconsciente, que é a
matriz original e prima matéria de toda a psique. (EDINGER, 1995)
Rosenkreutz continua a sua jornada e roga a Deus para que lhe auxilie,
e promete não revelar nada do que lhe seria confiado e nem usar dos
conhecimentos para fins egoístas, mas sim para difundir Seu nome, pois
“Tornados públicos, os segredos perdem seu valor; e, profanados, fazem com
que se perda a graça. Portanto: não atireis pérolas aos porcos, nem preparais
para um asno um leito de rosas.” (AMORC, 2015, p. 139). Este aviso antecede
o início da jornada de Rosenkreutz, e a sua razão se dá pela necessidade de
participar de um mistério, sem o qual a vida carece de sentido. O conteúdo que
é guardado em segredo no opus evidencia um motivo psíquico, sendo o
segredo o próprio mistério. O fato de ocultar algo simboliza algo de indizível e
inconsciente, ou seja, trata-se de um conteúdo inconsciente que ainda não
pode tornar-se consciente:
Mais brevemente: trata-se da presença de algo inconsciente que está
a exigir da consciência sempre de novo consideração e atenção. Ao
por em ação o interesse, se possibilita a percepção continuada e a
assimilação daquelas influências e efeitos do que é mantido em
segredo. Para a orientação da vida isso representa uma vantagem,
porque os conteúdos do inconsciente se relacionam de modo
compensatório com a consciência, e quando percebidos e
conhecidos, produzem um balanceio, que se revela como fomentador
da vida. (JUNG, 2012, p. 305)
88

De acordo com Jung (2012), o mistério do opus alquímico relacionado à


individuação é uma questão das exigências da consciência moral que o
processo de individuação acarreta nos indivíduos. Portanto, com o transcorrer
de sua jornada, Rosenkreutz terá sete dias para trabalhar com os mistérios da
transformação e do renascimento, sendo o sete um número que expressa o
sentido de totalidade neste processo. Por fim, a cor azul que predomina no
primeiro dia traz o sentido de beleza sobrenatural, transcendência religiosa ao
espiritual, simbolicamente ele está associado às sombras e às profundidades
no processo de transformação da psique. (ARAS, 2012)

2.4.1 Segundo dia – Os quatro caminhos

A tensão que Rosenkreutz sente ao se deparar com os desafios dos


caminhos a serem escolhidos, pode ser relacionada à “recusa do chamado”
que estrutura a jornada do heroi. O caminho que ele escolherá para chegar até
ao castelo do Rei consiste em momento de provação moral e de possibilidade
de renascimento em um novo mundo. Esse acontecimento assusta o
personagem por não sentir-se merecedor dos ganhos que a jornada poderá lhe
trazer. Todavia, essa fase da jornada do heroi não encontra maiores
ressonâncias no Casamento Alquímico, pois Rosenkreutz prossegue
rapidamente com a sua aventura rumo ao Palácio Real. Todos os quatro
caminhos possuem um guardião que protege o mundo em cada uma das
quatro direções, o caminho escolhido por ele é o segundo que segue para a
direção sul. Esse momento de escolha do caminho se relaciona à fase da
“passagem do primeiro limiar”, caracterizada pelos guardiões que defendem o
caminho a ser percorrido, e pelo fato de além dele existirem as trevas, os
perigos e o desconhecido. Isso está simbolizado no Casamento Alquímico nas
advertências que Rosenkreutz recebe antes de adentrar em um dos caminhos.
(CAMPBELL, 1997)
A escolha pelo segundo caminho aconteceu por acaso, se deu no
momento em que Rosenkreutz partiu em perseguição ao corvo para libertar a
pomba e atravessou o campo para a direção sul. A pomba é um símbolo da
paz, da esperança e dos bons agoiros, as principais grandes deusas mães do
89

amor na antiguidade, como Ishtar da Babilônia, Atargatis fenícia e Afrodite


grega, assumiam a forma de uma pomba. Em Roma, a deusa do amor era a
portadora da morte tranquila representada como Venus Columba, Venus a
Pomba, cujas catacumbas eram conhecidas como pombais. Simbolicamente,
as pombas são os pássaros do amor, e desde sempre foram associadas à
atração e à devoção em caráter místico e erótico que une as coisas em um
campo fértil. Na alquimia a pomba representa a alma que se eleva da água
caótica da nigredo, ou que desce dos céus para se juntar a ela. É a mediadora
da coniunctio entre as nossas aspirações elevadas e espirituais com a
contraparte da vida que borbulha nas profundezas do material. Em alguns
mitos da Babilônia e do judaísmo, uma pomba sobrevoa as águas do dilúvio
carregando um ramo de oliveira no bico, como um sinal de renovação. A
pomba também fecunda a Virgem Maria, representando um evento do Espírito
Santo, e depois no batismo de Jesus o consagra como humano-divino. (ARAS,
2012)
Os corvos são animais extremamente inteligentes, possuem a
capacidade de fabricar armas para encontrar alimentos, e desenvolveram no
ciclo da evolução uma linguagem especialmente complexa. Simbolicamente
eles são os pássaros dos mistérios velados, se tornaram conhecidos por
comerem carne em decomposição e por arrancarem os olhos de cadáveres. Os
corvos dos deuses nórdicos Odin, Hugin e Munin que representam o
pensamento e a memória, viajam como xamãs pelos nove mundos,
observando a superfície das coisas para levar a verdade oculta aos
conhecimentos dos deuses. Na alquimia, a fase da nigredo é designada pelo
artífice como o “corvo” ou a “cabeça do corvo”, representada na imagem de um
corvo no ombro de um esqueleto que se encontra sobre um sol negro, e
também nas imagens de pássaros rapinando um local com cadáveres
humanos. Os corvos evocam a mortificação e putrefação, representando o
processo de sermos reduzidos às veracidades psicológicas como elas
realmente são. (ARAS, 2012)
De acordo com Jung (2012), o corvo ou a cabeça do corvo são
denominações na alquimia para a nigredo, ou para a nigredo da putrefatio,
mortificatio, separatio e solutio. O símbolo do corvo pode representar também a
90

“parte pelo todo”, e indicar a “parte principal”, que é o princípio, ou seja, a caput
mortum (cabeça morta) que em seu sentido original simboliza a cabeça morta
de Osíris com tendências para o preto, e posteriormente o mercúrio dos
filósofos alquimistas que é caraterizado pela morte e ressureição ou
transformação em um corpo incorruptível. No Novum Lumem Chemicum se diz:
Ó nosso céu! Ó nossa água e nosso mercúrio! Ó cabeça morta ou
escória do nosso mar [...] E estes são os apelidos da avezinha de
Hermes que nunca descansa. Esta avis Hermetis (ave de Hermes) é
o corvo, do qual se diz: e sabei que a cabeça ou principio da arte é o
corvo que voa sem asas na escuridão da noite e na claridade do dia.
Ele é um espírito inquieto que não dorme, o lápis aereus et volatilis (a
pedra área e volátil), e portanto um ser de natureza formada de
opostos. Ele é o “céu” e ao mesmo tempo a “escória do mar. (JUNG,
2012, p. 329 – 330)

O corvo representa opostos em si, pelo fato de ser uma ave carrega o
simbolismo da ascensão e elevação para o que é imaterial, e ao mesmo tempo
simboliza a matéria em seu estado caótico. Para o cristianismo o corvo
consiste em uma alegoria para o diabo. Portanto, o corvo é um símbolo da
parte negra da alma e a pomba representa a parte luminosa e branca, a
albedo. A batalha entre o corvo e a pomba no segundo dia simboliza um
processo de tensão entre os opostos representada pela nigredo e a albedo,
fases essenciais para o desenvolvimento do opus alquímico. A libertação da
pomba representa de acordo com o seu simbolismo, o prelúdio de um estado
de iluminação ou da alvorada de uma nova personalidade desconhecida na
consciência através do processo de individuação. (JUNG, 2012)
Rosenkreutz precisa passar por três portais antes de chegar ao castelo
do Rei, e em cada portal ele recebe três insígnias com alguns dizeres
significativos para o objetivo do opus nesta obra. No primeiro portal, está
afixada uma placa com a advertência “Fora daqui, afastai-vos, ó profanos”, que
fortalece o fato de que os alquimistas vivenciavam o opus alquímico como algo
sagrado, e que apenas os verdadeiros iniciados à arte alquímica poderiam ter
acesso. A alquimia enquanto tradição hermética sempre manteve os seus
mistérios velados, enfatizando que somente os escolhidos achariam a chave de
compreensão de seus conteúdos. A primeira insígnia que ele recebe possui a
inscrição “S.C”, que significa “Constância pela santidade, amado noivo,
esperança, caridade”. O guardião reforça com Rosenkreutz que ele se lembre
do conteúdo desta insígnia no decorrer da trajetória, ela representa a retidão
91

moral e espiritual que o opus exige do adepto, como também que os


conhecimentos adquiridos nesta trajetória sejam usados para o bem comum e
não para fins egoístas. (JUNG, 2009)
Chegando ao segundo portal, Rosenkreutz encontra um leão
acorrentado na entrada que soltou um grande rugido quando o viu, e por
consequência acordou o segundo guardião. O leão possui um rico significado,
o jogo de luz e sombras que se formam em suas peles e a agressividade
natural destes felinos formam uma ambivalência simbólica. Os grandes felinos
comumente aparecem juntos com criaturas míticas, como o unicórnio ou o
dragão, fato que evoca as tensões dos opostos na natureza, ou seja, as
energias da alma, do espírito e do corpo. Os leões que vivem nas savanas são
os mais sociáveis entre os grandes felinos, o pelo amarelado e a juba que
circunda a cabeça do macho encontra associação ao ouro, ao esplendor solar,
á sobrevivência heroica, ao soberano salvador. Nos desertos do Egito, os leões
representam sentinelas do que está além do horizonte e todas as energias de
dissolução e da existência. Sekhmet a deusa leoa é o olho vigilante do deus
solar Ré; sua respiração é o vento quente que passa pelo deserto e seu corpo
possui um brilho ardente. Na alquimia existe o leão verde que devora o Sol,
evoca o significado de que as energias mercuriais furtivas da psique em sua
base mais instintiva em algum momento podem dominar o calor do intelecto, ou
seja, é um processo que sujeita a mente aos terrores da escuridão e
decadência. (ARAS, 2012)
O leão na alquimia é um sinônimo do mercurius e ao mesmo tempo uma
fase de transformação dele, o leão com características ígneas representa o
processo que se dá na emoção passional que consiste na primeira etapa de
conhecimento dos conteúdos do inconsciente, o que pode levar a explosões
emocionais decorrentes da desadaptação desses conteúdos ao mundo externo
por causa da inconsciência. Este animal também é simbolizado na alquimia
como uma substância do arcano, que recebe a designação por um lado de
terra, e do outro de corpus immundum “corpo imundo”. Ele é entendido também
como arcano pelo fato de ser considerado uma tríade de mercurius, isto é, Sol
e Sulphur tendo o mesmo significado que o dragão, a águia, o rei, o espírito e o
corpo. Já o leão de coloração verde consiste no meio para a união entre os
92

símbolos do Sol e da Lua, e vale salientar que a emoção representada pelo


leão pode unir como pode separar ainda mais os opostos. (JUNG, 2012)
Após o leão acordar o segundo guardião, Rosenkreutz recebe uma
insígnia com as letras inscritas “S.M”, que significam “Pelo estudo de um
homem merecedor. Para ser dado ao Noivo. Sal mineral, sal menstrual”. O sal
também é considerado uma substância do arcano, e consiste em um princípio
que faz as coisas se relacionaram de maneira harmoniosa, o que traz
consequências positivas para a união dos opostos no opus alquímico, pois ele
contém elementos da água e do fogo, “com relação a isso diz Picinellus: dois
elementos, que atiçam entre si uma inimizade implacável, se encontram unidos
maravilhosamente no sal”. (JUNG, 2012, par. 320) O sal se relaciona ao Cristo
a partir de uma especulação alquímica que começa com Jacob Boehme, que
fundamenta o significado do sal como sabedoria. Na antiguidade o sal era
sinônimo de gracejo, inteligência e espírito. O Antigo Testamento traz o sal
como significado moral, e o Novo Testamento enfatiza esse significado em
diversas passagens. O sal nos dois livros é símbolo da compreensão, do
entendimento e da sabedoria. De modo geral, os alquimistas enfatizavam que o
sal é uma substância imprescindível para o sucesso no processo alquímico:
Nas alegorias místicas nos nossos sábios se diz: quem trabalhar sem
o sal, não poderá ressuscitar os mortos. Quem trabalhar sem o sal,
distende um arco sem corda. Deve-se, pois, saber aqui que os sábios
nomeados precisam de bem outro sal do que são esses minerais
vulgares. Chamam esse sal até de medicina. (JUNG, 2012, par, 322)

O sal no Casamento alquímico possui um simbolismo especial por estar


associado ao processo de regeneração do Rei no opus, por isso o guardião
deste portal diz à Rosenkreutz guardar essa insígnia para a Majestade Real.
Posteriormente chegando ao terceiro portal ele observa duas estátuas, uma
delas com a aparência feliz e com a inscrição “congratulações”, e outra de
aparência triste tendo a inscrição “condolências”. Essas inscrições representam
os paradoxos que o contraste da união dos opostos acarreta na alquimia, para
que essa união seja realizada o alquimista não poderia apenas trabalhar com o
conjunto de opostos, mas deveria expressá-los juntos. O que estrutura a psique
e impulsiona o ego para o processo de individuação são as forças
ambivalentes presentes no inconsciente:
Surpreendentemente, o paradoxo pertence ao bem espiritual mais
elevado. O significado unívoco é um sinal de fraqueza. Por isso a
93

religião empobrece interiormente quando perde ou reduz seus


paradoxos; no entanto, a multiplicação destes últimos a enriquece,
pois só o paradoxal é capaz de abranger aproximadamente a
plenitude da vida. A univocidade e a não contradição são unilaterais e
portanto não se prestam para exprimir o inalcançável. (JUNG, 2009,
p. 28)

No terceiro portal, o personagem também recebe a terceira insígnia com


os seguintes dizeres “Para ser dada nas núpcias do noivo, cura através da
natureza”, que se relaciona ao processo de regeneração do rei e da rainha no
sexto dia, estruturado em operações alquímicas que levam à coniunctio. Em
seguida ele consegue entrar no castelo, que na obra simboliza o vaso
alquímico no qual serão realizadas as operações e transformações das
substâncias. Este vaso precisa ser totalmente redondo e possuir a estrutura de
um ovo, para que a substância transformada no seu interior possua também
esta forma. É a partir dele que nascem o filius philosophorum e a pedra
miraculosa. Todavia, apesar de suas características de vaso e retorta ele é
considerado pelos alquimistas mais como uma ideia mística e um símbolo, que
representa o processo para realizar a união dos opostos. (JUNG, 2009)
O castelo em conjunto com a fortaleza são símbolos femininos, é
considerado que no interior de cada um deles estão ocultos os tesouros ou a
verdade. Rosenkreutz entra no castelo do Rei buscando pela verdade nas
núpcias reais. Este símbolo representa o cuidado e a proteção com o sagrado
dentro de nós mesmos, o castelo representa na fantasia que o Si-mesmo vive
em seu interior resguardado como um tesouro. A alquimia retrata em seus
símbolos o vaso hermético como um castelo, que protegia o conteúdo a ser
transformado no opus e ao mesmo tempo evitava que o material volátil
escapasse e coagulasse antes do momento correto. (ARAS, 2012)
Rosenkreutz e os outros convidados recebem mais um aviso em relação
à preparação e purificação que as núpcias alquímicas exigem. O significado
psicológico desta passagem está em consonância com a problemática que o
convite do primeiro dia levantou, ou seja, é um processo que representa a
integração da anima e da sombra no processo de individuação, questão que
não deve ser empreendida de maneira superficial e sem cuidado. O alquimista
Dorneus considerou que a alquimia consiste em um processo de transformação
moral e intelectual do ser humano, pensamento que está em concordância com
o ocorrido após a passagem do jantar no segundo dia. Rosenkreutz e alguns
94

de seus amigos não foram para os aposentos do castelo, pois consideraram


que ainda lhes faltava purificação moral para isso. O sonho no final deste dia
simboliza que o opus exige do alquimista uma atitude espiritual em relação a
ele, psicologicamente as pessoas que caíram de suas elevadas posições
representam que quanto mais unilateral for a consciência e os conteúdos
psíquicos relacionados a ela, maior é impacto para o ego quando o
inconsciente mobiliza esses conteúdos para a transformação. (JUNG, 2009)

2.4.2 Terceiro dia – A balança dos artistas

Após cruzar o limiar, o heroi adentra no caminho de provas que consiste


em uma paisagem povoada por formas ambíguas, na qual uma sucessão de
provas será colocada para ele concluir. Nesta fase, de maneira velada, o heroi
é auxiliado pelo conselho, pelos seus amuletos, e pelos personagens secretos
da ajuda sobrenatural que havia encontrado no início da jornada. Ao mesmo
tempo, ele descobre que existe uma forma positiva que o sustenta e indica o
caminho em sua transformação sobre-humana. Psicologicamente, iniciar o
caminho de provas é um processo de dissolução, transcendência e
transformação das imagens infantis e arcaicas do nosso passado. Os sonhos
enquanto mensageiros desse processo para o ego possuem os perigos, as
provações, os auxiliares e guias secretos, que refletem em suas formas não
apenas a síntese da situação inconsciente, mas também fornecem a indicação
do que o ego deve fazer para prosseguir com o processo de individuação.
Rosenkreutz iniciou o seu caminho de provas, de maneira bem sucedida, no
momento em que passou no teste da balança dos artistas, um processo que
consistia em verificar a retidão moral e espiritual do adepto para prosseguir na
jornada e realizar o opus alquímico:
A provação é um aprofundamento do problema do primeiro limiar e a
questão ainda está em jogo: pode o ego entregar-se à morte? Pois
muitas cabeças tem essa hidra circundante: cortada uma delas, duas
outras se formam, exceto se for aplicado ao coto mutilado, o
cauterizador apropriado. A partida original para a terra de provas
representou tão somente o início da trilha, longa e verdadeiramente
perigosa, das conquistas de iniciação e dos momentos de iluminação.
Cumpre agora matar os dragões e ultrapassar surpreendentes
barreiras, repetidas vezes. Enquanto isso, haverá uma multiplicidade
95

de vitórias preliminares, êxtases que não podem reter e relances


momentâneos da terra de maravilhas. (CAMPBELL, 1987, p. 62)

O terceiro dia, como nos dois anteriores, traz como uma questão
importante para a obra à atitude espiritual que o alquimista precisava ter em
relação a ela. Essa atitude significa que existe uma relação íntima e direta
entre o estado mental do adepto e o opus alquímico. O alquimista Dorneus
relata em Philosophia meditativa, que um indivíduo só poderá transformar os
outros em “Um”, se ele antes já tiver se transformado em “Um”. Isso significa
que o objetivo do trabalho alquímico é o de atingir a essência das coisas
através da totalidade, a qual psicologicamente é simbolizada pelo Si-mesmo. A
busca pela unidade na alquimia é o que fornece a direção para o adepto seguir,
em consonância ao processo de individuação a busca pela unidade é que
orienta o ego a constituir uma relação com o Si-mesmo. Diversos autores na
alquimia relacionam o opus à psique e suas funções, eles enfatizam o estudo
de livros e a meditação dos seus conteúdos para um bom entendimento do
processo:
Assim, Richardus Anglicus escreve em seu Correctorium fatuorum:
consequentemente, todos aqueles que desejam alcançar o benefício
desta Arte, devem dedicar-se ao estudo e haurir a verdade nos livros
e não nas fábulas inventadas ou obras mentirosas, porquanto esta
arte não será considerada verdadeira (muito embora o ser humano
esteja sujeito a muitas ilusões), a não ser depois de concluídos os
estudos e do conhecimento das palavras dos filósofos. (JUNG, 2009,
p. 269 – 271)

Os convidados que não passaram no teste da balança dos artistas foram


condenados justamente por não atenderem aos requisitos e às advertências
para o processo de purificação antes de serem conduzidos às núpcias
alquímicas. O terceiro dia consiste em um procedimento de preparo do adepto
para a realização da obra e de separação daqueles que não estavam prontos.
Diversos alquimistas comentaram a suspeita da projeção de seus conteúdos
internos na matéria que estava sendo transformada. Era condição fundamental
que o alquimista estivesse à altura da tarefa a ser concluída, ou seja, ele
deveria realizar antes em si próprio o processo que submeteria posteriormente
a matéria. O adepto deveria estar totalmente presente na obra e possuir
semelhanças com ela, do contrário ele não conseguiria trilhar o caminho para a
realização do opus. Os convidados condenados no Casamento Alquímico
foram enforcados, afogados, decapitados e alguns foram mandados embora
96

nus. Esse procedimento simboliza psicologicamente, as consequências que um


encontro não harmonioso e direcionado com o inconsciente pode acarretar no
ego, causando um efeito de dissolução de sua estrutura. Por este motivo os
adeptos foram advertidos diversas vezes sobre os riscos que a falta de preparo
para as núpcias alquímicas poderiam causar. (JUNG, 2009)
Com o término dos testes, os adeptos que conseguiram obter um
resultado positivo foram levados a contemplar um unicórnio branco que estava
junto com um leão no jardim do castelo. O unicórnio era tranquilo, e fazia uma
reverência ao leão que rugia ferozmente até que uma pomba lhe levou um
ramo de oliveira para que se acalmasse. Na alquimia o leão e o unicórnio são
símbolos do mercurius, o chifre do unicórnio simboliza o princípio que leva
todas as coisas à transformação e à perfeição. Quando o unicórnio é
representado no opus alquímico, ele recebe as características de uma
substância transformadora dos corpos imperfeitos à completa maturação e
purificação. Através desse simbolismo, o unicórnio era entendido pelos
alquimistas como salvador e libertador. O chifre desse animal é a sua essência
simbólica, que significa força, saúde e vida, é um princípio masculino e ao
mesmo tempo consiste em um receptáculo, que significa o feminino. Portanto,
o unicórnio é um símbolo unificador de opostos e exprime a natureza dupla do
arquétipo:
Em Chymische Hochezeit (Bodas químicas), tal como no brasão da
Inglaterra, leão e unicórnio aparecem lado a lado: alquimicamente
eles são símbolos do Mercurius, assim com na igreja representam
alegorias de Cristo. O leão e o unicórnio indicam a tensão interna dos
opostos no Mercurius. O leão, sendo um animal perigoso, é
semelhante ao dragão. Este, tem que ser morto; quanto ao leão, tem
que pelo menos ter as patas cortadas. O unicórnio também deve ser
domado; por ser um monstro, possui um significado simbólico
superior e sua natureza é mais espiritual do que a do leão. (JUNG,
2009, p. 483)

Após contemplar os animais no jardim, Rosenkreutz e seus amigos são


direcionados a conhecerem os aposentos e salas secretas do castelo, em todo
o caminho eles são acompanhados pelas vestais. Elas simbolizam a anima no
papel de guia para o inconsciente, as vestais ajudaram os convidados a
conhecerem a parte interna do castelo e ao mesmo tempo iniciaram junto a
eles um processo de contemplação e oração para que as bodas reais fossem
realizadas com sucesso. Sendo essa uma característica da anima enquanto
97

arquétipo que direciona o homem a estabelecer um diálogo com o interior da


psique. (JUNG, 2009)
No final do processo de testes e purificação para poder participar do
opus, Rosenkreutz sonha que tentava abrir uma porta com muita dificuldade,
terminando o sonho quando a abriu e acordou com a luz do dia. Este sonho
sucinto simboliza que ele acabou de concluir uma etapa de sua jornada e está
pronto para iniciar uma nova. A porta enquanto símbolo está sempre entre os
limites do conhecido e desconhecido, psicologicamente ela marca o ponto de
encontro entre o mundo interior e exterior. Ela também pode representar
aberturas de consciência para o transcendente, e um meio de transição de um
local para o outro. Após acordar deste sonho, Rosenkreutz adentrará cada vez
mais nos mistérios das bodas reais. (ARAS, 2012)

2.4.3 Quarto dia – A fonte de Hermes; Decapitação das personagens


régias

O quarto dia inicia-se com a visita de Rosenkreutz e seus amigos à


Fonte Hermética, que representa um local de purificação e conhecimento. A
fonte também se relaciona com o símbolo de Hermes – mercúrio, que possui
significado importante na alquimia. O seu símbolo material consistia no metal
mercúrio que era caracterizado por qualidades ambíguas, ou seja, era o único
metal que se mantinha em estado líquido à temperatura ambiente. Ele era
considerado a essência divina do mundo, em alguns momentos fixo e em
outros volátil, carrega a essência simbólica do Sol e da Lua, da prata e do ouro,
e por isso é compreendido como hermafrodita. Pensadores como Newton e
Boyle acreditavam que o mercúrio era à base de todos os outros metais, e que
poderia ser encontrado em todos eles desde que fosse aplicado o método
correto. Mercúrio também carrega o símbolo da “água permanente”, que
significa a água primordial da criação sobre a qual o espírito de Deus se movia.
Ele é o princípio por excelência de todas as transformações, o mais potente de
todos os solventes podendo eliminar qualquer outro metal, no entanto era a
partir dele que os metais transmutados nasciam. Mercúrio era chamado de
“água da ressureição” e “fonte do batismo”. (HAEFFNER, 2004)
98

A alquimia simbolicamente representa um processo de purificação e


transformação psíquica para a conquista de uma vida plena, Hermes –
mercúrio era o guia das almas, o salvador que leva o indivíduo das sombras à
luz da realização final. Ele sempre esteve na origem, nos meios e no fim de
todo o processo alquímico, sendo considerado uma representação da própria
pedra filosofal que transmutava os opostos em si mesma, o chumbo em ouro, a
carnalidade em espiritualidade. (HAEFFNER, 2004)
As características do Hermes clássico aparecem posteriormente na
versão tardia de mercurius. De um lado isso ocorreu através de um processo
inconsciente, e de outro a partir de uma experiência espontânea vivenciada
com a finalidade de fazer uma interlocução com este deus pagão por
intermédio do sincretismo da divindade romana Mercúrio com o Hermes Grego.
Mercurius é entendido como o mensageiro dos deuses, é o hermeneuta que
interpreta para os homens os conteúdos ocultos ou de difícil entendimento. A
fonte hermética também representa mercurius como água, ele comumente é
destacado como o mercurius philosophicus e substância arcana, sendo ele o
próprio objeto do processo. De acordo com as suas características de fluidez e
propriedades de evaporação “Hg” é designado por água, com representações
que podem variar entre “água da vida”, “água branca” ou “água seca”.
Entretanto, quando os alquimistas se referiam ao “Hg” metal, eles enfatizavam
a representação simbólica desta substância designada como mercúrio
“filosófico”, o arcano de transformação da alquimia que representa uma
projeção inconsciente, que se desenvolve sempre que a inteligência tenta
desvendar determinada grandeza desconhecida sem o entendimento suficiente
da essência de seu objeto de investigação. (JUNG, 2011)
De acordo com o simbolismo de Hermes – mercúrio, a fonte hermética
representa um momento de transformação e purificação pelo qual Rosenkreutz
passou no opus. O banho e o ato de beber das águas de Hermes na fonte se
relacionam ao processo de individuação pelo fato de ser através de mercurius
que a união dos opostos acontece, ele é o agente dessa transformação. Após
os procedimentos na fonte, Rosenkreutz recebe novas vestes e um tosão de
ouro que de um lado continha o Sol e a Lua do lado oposto. Este tosão
simboliza um processo de coniunctio entre as propriedades do Sol e da Lua,
99

porque mercurius é o pacificador e unificador dos elementos que estão em


relação de oposição, através dele a unidade pode ser vivenciada. (JUNG,
2012)
Terminado o processo de purificação na fonte hermética, Rosenkreutz é
conduzido a conhecer as personalidades reais, que são descritas como três
casais. Os três tronos estão organizados no recinto em forma de círculo,
simbolismo que expressa o sentido de totalidade buscado no opus alquímico. O
altar próximo aos tronos representa o catalisador do que é sagrado, e a
representação em miniatura do templo e do universo. O círio que ardia de
maneira ininterrupta é um símbolo da eterna luz divina, e o globo girando sobre
si mesmo consiste em uma representação da totalidade como meta de todo o
processo. A fonte da qual jorrava o líquido cor sangue é um local de
purificação, sendo o sangue o fluído primordial da vida e símbolo do nosso
sentimento pela sacralidade do cosmos. Na caveira enquanto morada da
serpente existe a problemática da relação de opostos e complementariedade
que existe entre o ser humano e a serpente. O crânio é um símbolo da morte
física e prelúdio do renascimento em uma vida de nível superior, a serpente
concomitantemente simboliza a transformação e renascimento, todavia com um
alcance mais profundo. Elas representam o olho inconsciente da psique que
enxerga onde a consciência já não é mais capaz de adentrar, suas
características também estão associadas à morte ou à psique instintiva, a
serpente é um símbolo dos processos ocultos de transformação inconsciente.
Portanto, essas imagens relacionadas às personalidades reais, simbolizam que
o casamento alquímico em consonância ao processo de individuação, estão
direcionados à totalidade e à união dos opostos através da coniunctio. (ARAS,
2012)
A peça teatral que se inicia logo em seguida possui sete atos, assim
como a narrativa do Casamento Alquímico. Ela demonstra de maneira sucinta
a trajetória para a consumação do casamento real dos personagens. O Rei
Mouro é uma representação do enxofre negro que consiste na designação
pejorativa para a substância ativa masculina do mercurius, o que indica uma
natureza saturneo-escura, ou seja, o mal. Ele sequestra a filha do Rei e faz
dela sua concubina (meretrix), o que é também uma analogia à escuridão ativa
100

na matéria, e simboliza o maniqueísmo presente na alquimia, isto é, o conflito


universal entre o bem e o mal, e o entendimento da matéria como um reino
carnal e de sombras. A meretrix é um símbolo conhecido na alquimia como
uma das designações da substância do arcano:
Por fim gostaria de mencionar ainda a filha do rei no espetáculo do
Chymische Hochezeit, a qual, como sponsa escolhida, por causa de
sua vaidade é aprisionada pelo rei dos mouros. Ela concorda em
tornar-se concubina dele, manifesta-se, portanto, como uma
verdadeira meretrix. (JUNG, 2012, p. 69)

No terceiro ato da peça, a princesa é resgatada e jura fidelidade ao rei,


este ato termina com a apresentação dos quatro animais de Daniel. O primeiro
animal da visão de Daniel é um leão, que aparece em pé, como se fosse um
homem e lhe foi entregue um coração humano. O segundo animal é um urso, o
terceiro uma pantera e o quarto um animal de rapina com aparência
monstruosa. Os quatro animais representam funções psíquicas que
sucumbiram aos apetites mais destrutivos, o animal que tomou formas
monstruosas simboliza o poder que reconduz a quarta parte humana à
inconsciência. Isto simboliza a quarta função psíquica inferior que carrega
conteúdos do inconsciente à consciência, especificamente conteúdos
relacionados à sombra. Esta tetrassomia em Daniel representa um arquétipo
de uma imagem de totalidade que é dividida em quatro aspectos, e
posteriormente reunida na unidade. Simbolismo que mais uma vez está em
consonância com a ideia básica da alquimia, na qual tudo procede do uno, se
divide em quatro elementos e no final deve retornar à unidade. (JUNG, 2011)
O desfecho da peça teatral é a luta do Rei contra o Mouro, com a vitória
do primeiro e consequentemente o segundo resgate da esposa prometida que
até então estava em situação de meretrix. O Rei é um símbolo solar que
representa a consciência, e o Rei dos Mouros simboliza a fase da nigredo, o
caos e as sombras no opus alquímico. A vitória do Rei sobre o Mouro
representa um processo de transcendência e conscientização da nigredo, ou
seja, uma fase do opus foi concluída e a substância do arcano (a meretrix) foi
libertada e agora pode ser transformada através do casamento real. (JUNG,
2012)
Após o término da peça teatral todos foram convocados à sala onde era
realizado o banquete, todavia toda a sala foi decorada com um veludo preto, as
101

personalidades reais colocaram roupas pretas e foram vendadas com um tafetá


da mesma cor, e logo em seguida um homem alto e preto como azeviche entra
na sala com um machado. As personalidades reais foram decapitadas. Neste
momento todos os adeptos entraram em pânico e começaram a chorar,
simbolicamente esta é a fase da nigredo comumente representada pela cor
preta. Esta cor ao mesmo tempo em que envolve, engole, ela é o abismo, os
buracos, a melancolia e a morte. A cor preta é obscenidade, decomposição e
tudo o que é sujo, entretanto, o sujo pode ser o próprio solo do qual surge a
vida através da fertilidade. No Antigo Egito, a cor preta simbolizava a morte e a
vida, em consonância com o sedimento preto deixado pelo Nilo que inunda e
fertiliza a terra. O preto é símbolo dos terrores da vida e recintos de cura e de
iniciação. A partir do período Hein do Japão, no qual o budismo e taoísmo
atingiram o seu ponto máximo de desenvolvimento, deriva a compreensão de
que o preto simboliza a sublimação e purificação de todas as emoções
humanas, ele é o caos primordial. O fundamento para muitas formas de
transformação é o preto, no opus alquímico ele representa a nigredo, que é um
estado de desorientação, exaustão, dúvida interna, depressão, desunião e
confusão. Entretanto, os alquimistas enfatizavam que a nigredo não era motivo
para desespero, mas de alegria. Era a partir dela que uma conjunção com o
potencial ilimitado da mente se tonava possível, e simbolizava um encontro
gradativo com o Si-mesmo. Em consonância com este simbolismo a vestal
presidente reafirma com os alquimistas para que eles não se assustem, pois o
momento da decapitação e nigredo se tornarão em uma grande fonte de vida.
(ARAS, 2012)
Segundo Jung (2012), a decapitação também consiste em um símbolo
importante, é considerada uma separação da inteligência do grande sofrimento
e dor que a natureza causa à alma. Pode ser compreendida como a
emancipação da função do pensar que reside na cabeça, ou uma libertação da
alma das cadeias da matéria. Em Dorneus este símbolo corresponde à unio
mentalis in superatione corporis, ou seja, uma união mental por meio da
superação do corpo. Através da decapitação das personagens régias, é
estabelecido o primeiro estágio da coniunctio, que consiste na união da alma e
do espírito e simultaneamente a separação do corpo e alma, ou seja, é uma
102

operação dupla na qual a alma separa-se do corpo e une-se posteriormente ao


espírito:
Para possibilitar a nova união futura, o espírito (mens) deve ser
separado do corpo (distractio), o que equivale a uma morte voluntária
(voluntaria mors), pois somente se pode unir o que está separado.
Dorneus imagina com essa (distractio), manifestamente, uma
distinção e separação do que está misturado; este último significa o
estado em que a afetividade aprisionada no corpo influencia
perturbando a razão (ratio) do espírito. Mas a separação tem em vista
subtrair o espírito e a afetividade (Gemut) ao influxo das emoções, e
com isso estabelecer uma positio (posicionamento) espiritual superior
à esfera turbulenta do corpo, o que conduz primeiro a uma
dissociação da personalidade e uma violenta correspondente do
homem meramente natural. Este primeiro passo significa tanto
filosofia estoica como psicologia cristã, e é imprescindível em vista da
diferenciação da consciência. Também a moderna psicoterapia se
serve dessa distinção, ao objetivar afetos e instintos e confrontá-los
com a consciência. (JUNG, 2012, p. 280)

Esse simbolismo significa que o primeiro estágio essencial da


conunctio, isto é, a dissociação entre o polo espiritual e corporal da psique
precisa ser completa. Após esse processo, espera-se que o indivíduo se torne
imune de ser possuído pelas “afeições corporais”. Apesar de ser um estágio de
cisão, pois as imagens que o representam geralmente são as de decapitações,
o término do processo significa que as afeições que perturbam a individuação
foram contidas. A unio mentalis enquanto primeiro estágio da coniunctio
simboliza o processo de tornar-se a totalidade, o “um” interior. Dorneus a
considerava uma compensação entre os opostos através da superação do
corpo, ela é uma igualdade entre os ânimos e situa-se além do instinto e
afetividade. Psicologicamente, portanto, este é um processo de diferenciação e
desenvolvimento da consciência, o conselho que a vestal presidente fala para
os alquimistas que estão desesperados com as decapitações simboliza que
apesar desse processo ocasionar cisão e sofrimento, é ele que possibilitará o
encontro com o Si-mesmo e possibilidades mais amplas de transformação para
a psique. Esse simbolismo também se relaciona à operação da mortificatio, na
qual se buscava a morte seguida de renascimento. Através dessas operações
se entende que o ego precisa ser separado de suas projeções, conscientizá-las
para depois integrá-las. (JUNG, 2012)
O quarto dia termina com a preparação dos caixões das personagens
régias para a viagem no lago, fato que apenas Rosenkreutz conseguiu
observar. O lago é um símbolo da terra dos mortos, de toda a vida que
103

desaparece na substância fluida e na escuridão de suas águas. Quando


estamos à beira da água e observamos a superfície, construímos forma ao
sonho, à reflexão, à imaginação e para outras dimensões internas de nós
próprios. Isso faz com que o lago, de maneira simbólica, seja a porta de
entrada para os opostos da dimensão inconsciente da psique. É através do
lago que os corpos das personagens régias viajarão rumo à regeneração e aos
graus posteriores da coniunctio. (ARAS, 2012)

2.4.4 Quinto dia – Visita à Senhora Venus

O quinto dia se inicia com a visita de Rosenkreutz à Venus, e este


momento se relaciona com a fase “O encontro com a deusa” na trajetória do
heroi. As últimas etapas da aventura, quando todas as barreiras foram
vencidas, geralmente são representadas através de um casamento místico
entre a alma do heroi com a Rainha-Deusa do Mundo. É algo realizado na crise
no nadir, no zênite, nos cantos mais extremos da terra, no tabernáculo do
tempo ou nas profundidades mais escuras do coração. Acteon na mitologia
grega foi um exímio caçador, criado e treinado pelo Centauro Quíron. Certo dia,
estava caçando em uma floresta quando se deparou com o refúgio de Diana,
que consistia em uma suave fonte que se ampliava em um poço circundado por
grama. Naquele momento Diana e suas ninfas se banhavam na fonte e Acteon
viu a deusa desnuda, fato que deixou Diana furiosa. Posteriormente a deusa
molhou as mãos e aspergiu a água no jovem caçador, que foi transformado em
um cervo como consequência de sua imprudência. (CAMPBELL, 1997)
O místico hindu Ramakrishna (1836-1866), foi um sacerdote do templo
erigido à Mãe Cósmica em Dakshineswar. A deusa era representada no templo
nos aspecto benigno e maligno, os quatro braços exibiam os símbolos de seu
poder universal. A mão esquerda segurava um sabre sujo de sangue, a inferior
segura pelos cabelos uma cabeça humana decapitada; a mão direita superior
está elevada fazendo um gesto que significa “não tema”, e a inferior é
estendida de maneira a conceder graças. O nome desta deusa é Kali, que
simboliza o poder cósmico, a totalidade do universo e a harmonização entre os
opostos. Ela combina em si mesma o terror e a destruição absoluta, a
104

segurança e o sentimento materno. A deusa cria, preserva e ao mesmo tempo


destroi. (CAMPBELL, 1997)
Rosenkreutz foi avisado pelo seu pajem que o local aonde adentraria era
o recinto em que Venus jazia, e que a deusa arruinou a felicidade de muitos
homens de mérito. Todavia, o alquimista comtemplou a deusa desnuda
enfurecendo Cupido, seu filho, que lhe picou com uma de suas flechas como
punição pelo ato inconsequente. A revelação do caráter sublime da deusa
apenas pode ser suportado por pessoas com percepções mais ampliadas. Em
frente a homens com pouca expressão, ela reduz o seu caráter sublime e
aparece de acordo com as características pouco desenvolvidas deles.
Comtemplar a deusa em sua plenitude não é algo a ser feito de maneira
inconsequente, pois pode se trazer um terrível acidente para aqueles que não
estão preparados espiritualmente. Acteon não era um jovem santo, mas um
atleta sem preparo de como deveria comtemplar a deusa, ou seja, sem as
sutilezas dos sentimentos humanos infantis, do desejo e do medo. Rosenkreutz
apesar de sua sabedoria e moralidade bem desenvolvida, foi punido por não
estar preparado para comtemplar Venus:
A mulher representa, na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade
do que pode ser conhecido. O heroi é aquele que aprende. À medida
que ele progride, na lenta iniciação que é a vida, a forma da deusa
passa, aos seus olhos, por uma série de transfigurações: ela jamais
pode ser maior do que ele, embora sempre seja capaz de prometer
mais do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe
pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-
lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e o seu objeto,
serão libertados de todas as limitações. A mulher é a guia para o
sublime auge da aventura sensual. Vista por olhos inferiores, é
reduzida a condições inferiores; pelo olho mau da ignorância, é
condenada à banalidade e à feiura. Mas é redimida pelos olhos da
compreensão. O heroi que puder considerá-la tal como ela é, sem
emoção indevida, mas com a gentileza e a segurança que ela requer,
traz em si o potencial do rei, do deus encarnado, do seu mundo
criado. (CAMPBELL, 1997, p. 199)

Para chegar até Venus, Rosenkreutz precisou passar por arcadas


subterrâneas, em cuja porta a inscrição “Aqui jaz Vênus” estava escrita em
cobre. Na sepultura triangular havia um caldeirão feito de cobre, esta sepultura
era sustentada por três animais: a águia, o boi e o leão, “são os símbolos
teriomórficos de três evangelistas. O quarto é o anjo que ocupa a posição
especial que na trindade cristã pertence ao diabo. Inversão dos valores morais:
o que em cima é mau, é bom embaixo e vice-versa.” (JUNG, 2011, p. 198). Os
105

animais em questão simbolizam a ambivalência simbólica na deusa sepultada,


isto é, uma relação de opostos e que possui como meta a conjunção na
totalidade. H. Silberer considerou que a conjunção é a ideia central do opus
alquímico, para os adeptos isso se realizava sempre a partir de uma união de
elementos opostos. Através da união era esperado atingir a meta do processo
alquímico que consistia na produção do ouro, ou de algum material parecido
com ele. Todavia, quando os alquimistas falavam da “união entre as
naturezas”, “liga” entre o ferro e o cobre e combinação entre “S” e “Hg” eles
queriam indicar o caráter essencialmente simbólico do opus. “Fe” (ferro)
representa Marte e “Cu” (cobre) é Venus, a união entre os dois opostos era
considerado um caso amoroso, a coniunctio das naturezas que se abraçam.
(JUNG, 2012)
Venus está relacionada simbolicamente com a nossa capacidade de
reconhecer o que existe de valor no meio de coisas que são “descartáveis”, ela
nos ajuda a direcionar energia para o que realmente importa. O princípio
feminino de Venus é o da criação, em contrapartida com o feminino da Lua que
cuida do que foi criado. Quando o chumbo/saturno, chega ao estágio
cobre/venus, depois de ter passado pela operação de dissolução na fase da
nigredo, na purificação da albedo e vivificação na citrinitas, a energia psíquica
se encontra disponível para unir o homúnculo que estava preso no chumbo no
início do opus alquímico. A meta, portanto, é a de unir o homúnculo à
imortalidade, pois o sentido da vida de acordo com esse simbolismo é a
vivência do estado mental em que constantemente nos beneficiamos da
presença de Deus. Psicologicamente é um processo de integração com o Si-
mesmo. (VON FRANZ, 1979)
Alguns alquimistas enfatizavam a importância de um ambiente saudável
e cheio de beleza para que a união dos opostos pudesse acontecer. A beleza
destroi qualquer energia que provoque condicionamento, deixando livre o
caminho para que os metais consigam se unir de maneira correta. A visita de
Rosenkreutz à Senhora Venus representa que sem essa deusa não existe
transformação no opus alquímico, pois é necessário que o amor e o desejo
estejam presentes como propulsores da coniunctio. Fato que é representado
pela canção das ninfas no navio, na qual ressaltam a importância do amor para
106

o nascimento, para a transformação e para a união entre dois espíritos. (VON


FRANZ, 1979)
A viajem marítima que Rosenkreutz faz para realizar o processo de
regeneração das personagens régias e consequentemente o casamento
alquímico representam que a coniunctio não acontece todas às vezes por uma
união direta, ou seja, ela precisa de um meio para que possa ocorrer.
Mercurius é considerado um meio de união, ele consiste na anima mediadora
entre o corpo e o espírito, e o mesmo significado é dado aos sinônimos de
mercurius. A água do mar é um símbolo frequentemente ligado como o lugar
no qual se realiza o casamento alquímico:
Faz parte do casamento régio a viagem marítima, como descreve
Christian Rosenkreutz. Este motivo alquímico, como se sabe, foi
incluído por Goethe na segunda parte do Fausto, onde serve de base
para expor o sentido e a aparição da festa egeia. K. Kerenyi elaborou
daí o conteúdo arquetípico da festa em uma brilhante interpretação
amplificada. O cortejo das nereidas em sarcófagos romanos faz
destacar-se o “nupcial” e o “sepulcral”. Faz justamente parte das
concepções fundamentais dos antigos mistérios [...] de uma parte a
identidade de casamento e morte, e de outra parte de nascimento e
surgimento da vida, a partir da morte. (JUNG, 2012, p. 267)

Os navios que foram preparados para a viagem marítima possuem


símbolos importantes. Cinco dos navios estavam marcados com insígnias que
representavam os Cinco Corpos Regulares de Platão. Os sólidos platônicos
são poliedros convexos que possuem o mesmo número de lados em todas as
faces, e em todos os lados é possível chegar ao mesmo número de arestas.
Platão associa a origem do universo a cada um dos sólidos, ele compartilhava
da ideia de que Deus criou a vida a partir de quatro elementos básicos: a terra,
o fogo, o ar e a água. E para cada uma das formas geométricas associou um
destes elementos. O tetraedo foi relacionado ao fogo, pois possui o menor
número de faces e maior estabilidade, pensava-se que seu átomo teria a forma
de um poliedro de quatro lados. Hexaedro foi relacionado à terra, pelo fato de
suas faces quadradas serem colocadas lado a lado de maneira perfeita,
garantindo estabilidade. Ao ar foi relacionado o octaedro, Platão considerava
que o átomo do ar era formado por um poliedro de oito faces, possuindo maior
mobilidade e era intermediário entre o fogo e a água. O icosaedro representa a
água, e como o octaedro também possui grande mobilidade. A quinta forma é o
107

dodecaedro que Platão relacionou à totalidade do universo, que segundo ele


seria a “alma do mundo”. (CADAMURO e ARAÚJO, 2013)
Assim como os corpos regulares, quatro das operações alquímicas
também estão relacionadas aos quatro elementos: calcinatio (fogo), sublimatio
(ar), solutio (água) e coagulatio (terra), sendo a pedra filosofal um quinto
elemento que uni em si mesmo todos os opostos representando a totalidade do
opus. Questão que está em consonância com a forma geométrica dodecaedro
que simboliza a totalidade de todas as outras formas de Platão. O Sol e a Lua
na insígnia dos maiores navios representam respectivamente a relação entre a
força ativa e passiva na natureza, psicologicamente é uma coniunctio entre
animus e anima, ou entre a consciência e inconsciente. O navio em que se
encontra Rosenkreutz carrega a imagem do globo, e representa que toda a
viagem marítima para realizar a coniunctio final é orientada para a totalidade.
No processo de individuação, a realização da psique acontece na conjunção de
suas partes na unidade: o Si-mesmo. (JUNG, 2009)

2.4.5 Sexto dia – Regeneração das personagens régias

O sexto dia consiste no processo de regeneração do Rei e da Rainha.


De início a vestal presidente trouxe uma caixa oval em que estavam abrigados
os cadáveres, colocou a caixa sobre a fonte. Fechou a caixa e aspergiu nela a
água preparada na noite anterior. A fonte foi aquecida e começou a funcionar,
todo o seu conteúdo sairia por quatro condutos até a caldeira. No decorrer
deste processo foi solicitado que todos estivessem organizados de maneira a
formar um círculo ao redor da fonte. O vaso alquímico nesta operação é
representado pela caixa oval na qual estavam os cadáveres. Era essencial no
opus que o vaso possuísse esse formato, pois o sentido do processo alquímico
era reunir os opostos na unidade, questão que é representada na forma
redonda e oval do vaso alquímico. Concomitantemente, o pedido para os
adeptos se organizarem em círculo ao redor da fonte expressa também a meta
do processo que é direcionada à superação dos opostos na unidade. Aquecer
a fonte para dissolver os cadáveres representa a operação inicial da calcinatio,
que possui o objetivo de retirar da matéria a ser transformada toda a água ou
108

substância passível de volatilização. A calcinatio dos cadáveres tem como


objetivo lhes retirar a essência, e purificar a substância que será utilizada na
regeneração real. Psicologicamente esta operação se relaciona à introdução do
afeto no início do processo psicoterapêutico, que tem como finalidade purificar
os complexos da influência do inconsciente. Consiste no aquecimento inicial
para conscientizações gradativas no processo de individuação. (EDINGER,
1995)
Após a água atingir a temperatura correta, passou a gotejar sobre os
cadáveres que foram dissolvidos e transformados em líquido. Esta operação
consiste na solutio na qual os sólidos são transformados em água, e de acordo
com alguns alquimistas é a principal parte do processo no opus. Em diversos
textos o trabalho alquímico é representado pela frase “solve et coagula”
(dissolve e coagula), pois a essência da arte alquímica fundamenta-se na
separação e na solução, como também na composição e solidificação. No
estado inicial as substâncias estão em luta entre si, sendo o trabalho do adepto
buscar maneiras corretas de reconduzir novamente à unidade os elementos
que estão em relação de oposição, é um retorno à prima matéria e ao estado
indiferenciado original. Portanto esse processo ilustra que para as
personalidades régias serem transformadas, os seus corpos precisam ser
reduzidos ao estado primário e original, consiste em um retorno à unidade para
finalidade de renascimento. No processo psicoterapêutico e na individuação,
esta operação representa que os aspectos fixos e estáticos da consciência não
podem ser transformados sem um retorno desses conteúdos ao exame
inconsciente, que os mobilizará na psique para a transformação. A prima
matéria é um símbolo do inconsciente que existe antes do nascimento do ego e
da diferenciação das quatro funções psíquicas na consciência, ele é o estado
original da psique. O líquido que foi formado pelo derretimento dos cadáveres
era amarelo, esta cor simboliza que o intelecto é o início e fim do opus
alquímico, a cor amarela indica que o ser humano é a maior e principal força no
processo. De acordo com o alquimista Dorneus, o amarelo representa que a
inteligência humana é a essência formadora do opus, geralmente ela está
associada às cores azul, vermelho e verde que também simbolizam funções
psíquicas. O processo de síntese das quatro cores significa a integração da
109

personalidade, ou a união das quatro funções psíquicas que são representadas


pelo quatérnio. (JUNG, 2012)
Quando a fonte parou o conteúdo dissolvido com o calor do fogo foi
colocado em um grande globo de ouro. O líquido que foi colocado nele era de
cor vermelha. Em seguida o globo estava suspenso em uma sala envidraçada
para ser aquecido pelos raios solares, procedimento que marca a operação da
sublimatio. Após o resfriamento do globo ele foi aberto e em seu interior
encontrava-se um ovo branco. O ovo foi levado a um caldeirão quadrado de
cobre para que amadurecesse um pouco mais antes de ser aberto. A rubedo
está simbolizada neste processo no líquido vermelho que foi colocado no
globo, sendo que o significado desta cor para os alquimistas é o enxofre, a
energia ardente do desejo humano. Psicologicamente a rubedo está
relacionada à integração da personalidade. O processo de resfriamento do ovo
está relacionado à operação da coagulatio que tem como objetivo transformar
um líquido em sólido. É uma operação relacionada ao elemento terra, na qual
serão novamente reunidas às substâncias que não desapareceram na
operação da solutio, a coagulatio, portanto, é a operação relacionada aos
processos de criação. Em relação ao processo de individuação, os conteúdos
que foram levados ao exame inconsciente na operação da solutio precisam ser
novamente coagulados no ego, ou seja, após a transformação serão
conscientizados. O movimento psíquico promove a possibilidade de
desenvolvimento do ego. A tempestade, a tensão da ação na vida e as
experiências cotidianas solidificam a personalidade. (EDINGER, 1995)
O ovo é um símbolo que em diversos ritos de criação representa a
origem do universo que contém tudo em si próprio, simboliza processos de
regeneração e renascimento. Em consonância com a vida que foi concebida
em um ovo, nos antigos rituais os iniciados eram isolados em uma gruta para
que se “incubassem”, até que se curassem e fossem renascidos para o mundo
exterior. A origem, o início, o simples é representado pelo ovo, ele é o centro
misterioso à qual as energias do inconsciente se movimentam em forma de
espiral, em um processo que consiste em levar luz e a substância vital. A
alquimia representa o embrião contido na gema do ovo como o ponto solar do
110

qual tudo tem sua origem, é a quintessência que é colocada em movimento


pelo calor da dedicação consciente ao processo de individuação. (ARAS, 2012)
No momento em que o ovo foi aberto, havia dentro dele uma ave de
plumagem negra e temperamento furioso. Foi dado á ave como refeição o
sangue das personalidades régias decapitadas, as penas tornaram-se brancas
e depois coloridas. Em seguida a ave foi banhada em uma água quente para
retirar as plumagens negras, o que restou do procedimento quando a água
evaporou foi um resíduo azul que foi aplicado em todo o seu corpo. Para
finalizar a ave foi decapitada e queimada, suas cinzas foram guardadas em
uma caixa. Esta ave é o pavão, que na alquimia expressa à beleza interior e a
perfeição da alma, ele é um símbolo da capacidade de renascimento. Em
outros processos de regeneração do Rei na alquimia, a carne do pavão contém
atributos da imortalidade e do rejuvenescimento e por isso os personagens
reais se alimentam dela. No Casamento Alquímico de Rosenkreutz a
ressureição das personagens régias acontece a partir das cinzas do pavão. Ele
é sinônimo da lápis, que consiste na substância de transmutação e meta do
opus alquímico. A cauda do pavão simboliza a integração de todas as cores, ou
seja, a união dos opostos na unidade. Ela é símbolo de que a reconciliação dos
contrários está para acontecer. (JUNG, 2012)
Com o final deste processo, Rosenkreutz e três de seus companheiros
foram separados dos outros alquimistas para realizarem a processo final da
fusão. O trabalho consistia em umedecer as cinzas do pavão até se tornarem
pastas, e aquecê-las ao fogo para serem derretidas em dois pequenos moldes.
Após terem resfriado ganharam a forma de um pequeno menino e uma
pequena menina, eles eram macios e feitos de carne humana. Foram
alimentados com o sague do pavão que estava guardado em uma taça após a
decapitação. Através de esses alimentos eles crescerem até a forma adulta,
todavia ainda não possuíam vida e sensibilidade. Em seguida foi colocado um
clarim na boca de cada cadáver de modo a coincidir com o orifício circular do
sótão, através desse procedimento uma chama clara desceu e entrou nos
corpos. O casal despertou com Cupido voando ao redor deles e perturbando
lhes o sono. (AMORC, 2015)
111

De acordo com Edinger (1995), a decapitação das personagens régias


no quinto dia marcou o primeiro grau da coniunctio, na qual psicologicamente
significa que quando uma projeção ou identificação se rompe, uma parte da
psique separa-se de seu recipiente concreto, é um processo que envolve
dissociação. No entanto, esta operação final do sexto dia ilustra o segundo
grau da coniunctio, onde a unio mentalis que combina alma e espírito une-se
finalmente ao corpo. É um processo que em termos psíquicos simboliza que
tudo o que foi separado no estágio anterior, precisa ser reincorporado
novamente através de um novo nível de consciência. As projeções que se
separam da psique no primeiro grau da coniunctio serão integradas de forma
regenerada, pois passaram por um processo de purificação do inconsciente,
sendo o objetivo da coniunctio o aumento gradativo de consciência. O corpo a
ser reanimado é um símbolo e representa o ego como corpo da psique. A
chama clara que desceu aos corpos é a alma simbolizando o fato de que o ego
precisa ser purificado das influências do inconsciente. A alma é compreendida
na alquimia como anima corporalis que mora no sangue, ela está relacionada
ao inconsciente porque este último é o intermediário entre a consciência e as
funções fisiológicas do corpo. Em relação ao processo de purificação do ego:
O processo de diferenciação entre o eu e o inconsciente corresponde
à mundificatio (purificação) e, assim como esta é a condição
necessária para que a alma possa retornar ao corpo, este último
também é indispensável, se quisermos evitar que o inconsciente
exerça influências destrutivas sobre a consciência do eu. De fato, é o
corpo que dá limites à personalidade. A integração do inconsciente,
só é possível, se o eu aguentar. Assim, o que parece ser um esforço
válido para o alquimista, isto é, a unificação do corpus mundum
(corpo puro) com a sua alma, também o é para o psicólogo após ter
conseguido livrar a consciência do eu da contaminação com o
inconsciente. Na alquimia, a purificação se faz através de uma
múltipla destilação; na psicologia, através da separação radical do ser
(eu) humano comum de todas as interferências inflacionárias do
inconsciente. Este trabalho exige minucioso exame de consciência e
autoeducação, e, aquele que consegue, está em condição de
transmiti-lo aos outros. Tal como o alquimista purifica o corpus de
todas as superfluitates no fogo em seus mais altos graus, e submete
o Mercurius à tortura de passar de passar de uma câmara nupcial à
outra, e assim também o processo psicológico da diferenciação não é
um trabalho fácil, pois requer muita paciência e perseverança.
(JUNG, 2011, p. 181)

Segundo Jung (2011), os homunculus (homenzinhos) que foram criados


nesta operação representam o nascimento da criança divina, o homem interior
que nasce a partir da morte do corpo. A prima matéria que é a massa confusa
112

no início do opus, após passar pelo processo de ordenamento nas operações


tem os seus elementos reconciliados e atinge o “um”, ou seja, a lápis, o qual é
simultaneamente o homunculus. Após o nascimento dos homunculus eles
foram alimentados com o sangue do pavão decapitado. O sangue é sinônimo
da aqua permanens (água eterna) que é extraída da prima matéria e devolve a
vida ao corpo morto. Com o crescimento dos corpos, e a reunião da alma
neles, Rei e Rainha renasceram novamente unificados em um único casal, e
não três. A alquimia representa no Rei e na Rainha um processo de renovação
psíquica, ou seja, as atitudes da consciência que já não promovem mudanças
na personalidade sofrem o destino do “velho rei” que é imerso nas águas,
incinerado, decomposto ou decapitado visando a sua posterior regeneração. A
cúpula entre o Rei Sol com a Rainha Luna sugere também uma união entre o
consciente e inconsciente, através da qual ambos serão transformados.
Portanto, a conjunção é um abraço mortal que simboliza a “concepção” da
pedra filosofal e une em si mesma os opostos, “é o amanhecer de uma nova
ordem que regula o centro da personalidade.” (ARAS, 2012, p. 470)

2.4.6 Sétimo dia – O retorno à pátria

No início do sétimo dia, Rosenkreutz é consagrado Cavaleiro da Pedra


de Ouro e recebeu também um Tosão de Ouro como símbolo de seus feitos no
opus alquímico. Simbolicamente os cavaleiros representam a conquista
espiritual e o perfeito domínio das questões naturais. O ideal da cavalaria
consiste em um acordo de lealdade absoluta para as crenças e compromissos
aos quais a vida está submetida. O juramento que ele fez neste dia é símbolo
da solidariedade que invoca o ser divino ou pessoal como garantia. A moeda
recebida simboliza a alma, pois a alma traz impressa em si mesma a marca de
Deus, em consonância com a moeda que carrega a marca do soberano. Os
navios que foram preparados para a viagem de partida eram doze, este
número representa o cosmos em seu ciclo espaço-temporal, e simboliza
sempre um ciclo concluído e realização final. (CHEVALIER; GHEERBRANT,
2008)
113

Desde o começo de sua jornada, Rosenkreutz passou por diversas


provas e processos de purificação para realizar a meta do opus alquímico, isto
é, o casamento sagrado dos opostos. A sua trajetória no sétimo dia é coroada
pelo êxito e ele recebe as devidas recompensas por ter auxiliado no processo
de regeneração do Rei e da Rainha. Rosenkreutz ser consagrado Cavaleiro da
Pedra de Ouro, de acordo com o simbolismo desta imagem, também está
relacionado com o fato dele ter atingido o estado Rosacruz do ser. O símbolo
da Rosacruz consiste em uma cruz dourada com uma rosa vermelha fixada no
centro. É um símbolo que na tradição rosacruz expressa à união harmoniosa
entre os opostos, e se relaciona ao terceiro e último grau da coniunctio que
consiste no unus mundus (mundo uno). De acordo com o alquimista Dorneus, o
mais alto grau da coniunctio é a união do ser humano ao mundo uno, que para
ele é designado como o mundo potencial e não manifesto do primeiro dia da
criação, onde não existia duplicidade e multiplicidade, mas apenas a unidade
total. Este mundo em potencial é o mundo arquetípico. (JUNG, 2012)
Fílon o Judeu, considerava o homem um “pequeno céu” que carrega em
si mesmo muitas semelhanças com as coisas das estrelas representando
assim a ideia do ser humano como microcosmos que possui a sua unidade
psíquica representada no universo enquanto totalidade. Plotino no Tratado das
Enéadas desenvolve diversas considerações a respeito da essência da alma,
onde diz que todas as almas individuais constituem uma única alma e que a
unidade presente na alma corresponde à encontrada no ser em geral. A ideia
da unidade da alma se baseia de forma empírica na estrutura psíquica comum
a todas as almas, ou seja, a do mundo arquetípico como potencial não
manifesto da psique. Pensamento que está em consonância com a concepção
alquímica do unus mundus que o considera como a potência inicial do mundo
na qual nada ainda havia sido separado. Portanto, Rosenkreutz consagrado
Cavaleiro da Pedra de ouro é a consumação da conjunção com este mundo em
potencial. Segundo o ponto de vista psicológico esta etapa da coniunctio
consiste em uma síntese da consciência com o inconsciente, é uma relação
plena entre ego e Si-mesmo, a realização do ser humano total. (JUNG, 2012)
A vivência da essência e da perfeição na unidade está em consonância
com as experiências vivenciadas no mysterium inefabile (mistério inefável) na
114

unio mystica (união mística) no Tao, ou na vivência no Satori do Zen, sendo a


partir dessas experiências que atingimos o subjetivo em extremo no qual
falham todos os critérios da razão. Estas vivências ainda hoje continuam sendo
um mistério da vida psíquica empírica, e apenas pode ser compreendida pela
psicologia como uma experiência numinosa. A ideia da totalidade simbolizada
por essas vivências possui importância psicoterapêutica, porque apreende
através de um conceito o estado psíquico que consiste em uma ponte para
transpor a dissociação entre consciente e inconsciente. Psicologicamente, a
problemática alquímica corresponde à integração do inconsciente na
consciência, em um processo em que os dois se modificam. Através dessa
relação, ocorre uma ampliação da consciência, e uma melhora da situação
psíquica total, pois o jogo de opostos ocasionado pela contraparte inconsciente
foi superado. O conflito que antes era inconsciente torna-se consciente,
cabendo agora à consciência a solução do conflito. Todavia, para solucionar o
estado conflituoso da consciência é necessária uma vivência do Si-mesmo,
para o processo ser corretamente direcionado. O terceiro grau da coniunctio
representa que a conscientização e integração das projeções inconscientes
foram concluídas, colocando o ego em harmonia com as orientações do Si-
mesmo para o processo de individuação. (JUNG, 2012)
No final do dia, Rosenkreutz seria punido por ter observado a Senhora
Venus desnuda, todavia ele foi poupado e lhe foi dada a oportunidade de
retornar à sua pátria e colocar em prática os ensinamentos que recebeu. Este
momento da jornada do heroi se relaciona à “passagem pelo limiar do retorno”,
fase que enfatiza a experiência de completude pela qual passou o heroi. A
tarefa a ser empreendida agora, é a de levar ao reino humano comum às
experiências vivenciadas além do umbral. O desafio de Rosenkreutz em seu
retorno será o de traduzir em uma linguagem do mundo, os pronunciamentos
das trevas, o sentido multidimensional ao qual foi exposto em sua jornada, e
principalmente comunicar às pessoas a mensagem que existe no vazio gerador
de todas as coisas, ou seja, o “Um”. A partir deste ponto, Rosenkreutz pode ser
compreendido como heroi alquímico. (CAMPBELL, 1997)
115

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A alquimia consiste em um fenômeno histórico ricamente complexo,


simbólico e alegórico que exerceu influência em diversas culturas. Ela passou
pela tradição egípcia, chinesa-hindu, alexandrina, árabe até chegar a Idade
Média e a partir dela influenciou de maneira sucinta, o desenvolvimento do
humanismo e iluminismo do Renascimento. Isto ocorreu pelo fato de que
alguns dos principais pensadores do período renascentista estarem ligados às
tradições herméticas, da qual a alquimia faz parte. É importante salientar esse
ponto de influência da alquimia, pois ela é mais do que um compilado de
símbolos obscuros e operações de difícil entendimento. Em sua filosofia ela
representa um processo de regeneração e transformação do ser humano
através das mais variadas experiências da vida. Sendo este processo
simbolizado nas operações e fases do opus alquímico.
Através dos símbolos da alquimia, C.G.Jung conseguiu descrever o
processo de individuação em seus aspectos mais essenciais, como também
encontrou um fundamento histórico para a Psicologia Analítica. O opus que
significa a trabalho geral realizado pelo alquimista com a prima matéria irá
coincidir com o processo de desenvolvimento psicológico que Jung já
observava em seus pacientes, isto é, a individuação. A razão dessa relação
fundamenta-se no fato de que existe uma consonância entre o objetivo do
processo de individuação com o do opus alquímico. O ponto culminante do
desenvolvimento psíquico ocorre quando se estabelece uma síntese entre
inconsciente e consciente, tendo como consequência a vivência na totalidade
simbolizada pelo Si-mesmo. A alquimia representa este processo através da
união dos elementos em oposição através da coniunctio e do casamento
alquímico, sendo a lapis o produto final dessa união que sintetiza em si mesma
os opostos. Portanto, essa relação entre o opus alquímico e a individuação
acontece pelo fato do opus ser um processo essencialmente simbólico, e a
transformação psíquica na individuação ser estruturada e vivenciada através de
símbolos, e conforme os estudos de Jung, muitos desses símbolos são
alquímicos.
116

Através da análise do manifesto “O Casamento Alquímico de Christian


Rosenkreutz” foi possível estabelecer a relação dos seus principais símbolos
com o processo de individuação. A decapitação dos reis e das rainhas, as
operações realizadas em laboratório para a regeneração do rei e da rainha e a
conjunção da alma no corpo ressuscitado consistem nos símbolos centrais do
manifesto. Essas operações expressam que o processo de individuação ocorre
no ego, causando em suas estruturas diversas modificações que são
mobilizadas pela influência dos encontros gradativos com o inconsciente. O
significado dos símbolos de decapitação, afogamento ou incineração dos
personagens reais, também pode ser abordado através do entendimento de
que as atitudes fixas da consciência que não permitem mais mudanças
significativas na personalidade precisam morrer para dar lugar ao novo. É um
processo de morte seguida de renascimento, que a alquimia demonstrou no
apodrecer, no sofrer e no morrer do corpo e dos elementos no opus alquímico.
Isso representa que o processo de individuação é agridoce, ou seja, ao mesmo
tempo em que transforma as atitudes estáticas da personalidade ocasiona um
aumento gradativo de consciência que modifica as estruturas já solidificadas do
ego. O aumento de consciência traz plenitude e possibilita vivenciar as
experiências da vida através de percepções ampliadas e transformadas, por
outro lado, leva sofrimento ao ego, pois dissolve as suas ilusões e transmuta as
suas estruturas. O processo de desenvolvimento psíquico é acompanhado com
um pouco de dor, fato que a alquimia representou no símbolo da nigredo e no
estado caótico inicial da obra.
O opus alquímico consiste em uma projeção do processo de
individuação na matéria, por esse motivo, os alquimistas podem ser
considerados como antigos cultivadores da alma pelo fato de vivenciarem o
mundo como um campo psíquico e simbólico. Ao cultivar a alma eles entraram
em contato com aspectos psicopatológicos da psique, que são fundamentais
como propulsores e prima matéria de todo processo de transformação.
Christian Rosenkreutz demonstra com a sua jornada alquímica para os
psicólogos, que o trabalho para se unificar os opostos e atingir a totalidade
causa dor à alma, e que isso é esperado que aconteça, pois é algo
fundamental para o processo.
117

Através da análise simbólica do “Casamento Alquímico de Christian


Rosenkreutz”, esta monografia apresentou a relação das operações alquímicas
no opus com o processo de individuação como realização da psique. Apesar da
alquimia nos dias atuais não existir como antigamente, os seus símbolos que
consistem em arquétipos ainda encontram-se presentes nos processos
psíquicos do homem moderno. O objetivo final do opus é a realização da
coniunctio em seus três graus, e seu término é a conjunção da alma-espírito e
corpo à totalidade. Psicologicamente esse é um processo que tem como
objetivo reorganizar as fragmentações da alma à unidade da psique. No
sentido psicoterapêutico é um processo essencial, porque a experiência
integral dos opostos desenvolve e amplia a consciência. A compreensão da
simbólica alquímica é importante para o profissional da psicologia que trabalha
com a abordagem junguiana, pelo fato da alquimia ser considerada o
fundamento histórico dessa linha teórica. Como também por ser o objetivo do
opus um símbolo do que é esperado no processo de individuação, isto é, as
integrações psíquicas.
118

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