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L'lnitiation

Cadernos de Documentação Esotérica e Tradicional


Revista do Martinismo e das Diversas Correntes Iniciáticas

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Nº 6 Julho / Setembro de 2002
-

Zaratustra - Uma mensagem grandiosa

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-------� ·

Revistafandada etn 1888 por Papus (Dr. Gérard Encausse)


Reativada em 1953 pelo Dr. Philippe Encausse
. NESTE NúMERO: .
L'Initiation . ' " � '

Cadernos de Documentação N° 6 - Julho / Setembro de 2002


Esotérica e Tradicional
Revista do Martinismo e das Editorial 2
Diversas Correntes Iniciáticas Mário Willrnersdorf J r.

EDIÇÃO EM LiNGUA PORTUGUESA Que é um iniciado? 3


Nº6 Papus
Julho / Setembro de 2002

Zaratustra 8
Diretor Internacional
Yves-Fred Boisset (França) Uma mensagem grandiosa (1 ª parte)
Robert Delafolie
Editor
Mário Willmersdorf Jr.
Definição geral do amor 19
Design e Diagramação Papus
J.C. Mello I Idéia Digital

Jornalista responsável Sâr Hiéronymus - 24


Marco Antonio Coutinho (MT: 13518) O homem que não sabia nada
Revista fundada em 1888 por Papus Marco Antonio Coutinho
(Dr. Gérard Encausse) e reativada
em 1953 por Philippe Encausse. O discurso teosófico de Jacob Boehme 34
Uma publicação trimestral Pierre Deghaye
de Gnosis Editorial

Diretores
O Tarô (3ª parte) 53
Carlos Alberto S. Almeida Suzy Vandeven
Luiz Carlos Fraga
Mário Willrnersdorf Jr. As Origens da Grande Loja Ópera
" " 60
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As matérias assinadas ndo refletem,


necessariamente, a opinião editorial de
L'lnitiation, sendo de inteira
responsabilidade de seus autores.

ZARATUSTRA

1
EDITORIAL �---

UMA MENSAGEM GRANDIOSA

com Zaratustra e com sua grandiosa mensagem - nossa matéria de


E capa deste número - que buscamos lançar luz sobre a história dos
grandes avatares da humanidade, naturalmente envoltos em todo o sim­
bolismo que sempre cercou a verdadeira tradição, protegendo-a dos sim­
ples olhares curiosos. É ela, a linguagem dos símbolos, a única que con­
segue reter a essência de todas as grandes verdades muitas vezes veladas e
falseadas pelas palavras. E é através desta linguagem cifrada dos símbolos
que são transmitidos os mistérios, que se perpetua a tradição.

Aquele que sabe cala; não trombeteia verdades - age. Como agiu Sâr
Hiéronymus tão bem retratado pela pena inspirada de nosso novo colabo­
rador e companheiro de longa data, o jornalista Marco Antonio Coutinho,
que também lança seu olhar sobre a FUDOSI e seu real significado na
história das ordens iniciáticas.

Oferecemos ainda a você, neste número, uma alentada matéria, da maior


importância e alcance, voltada ao estudo da teosofia em Jacob Boehme,
nome que está na origem de praticamente todos os movimentos da
tradição ocidental, dos rosacruzes aos martinistas, passando pelos maçons.
E se o assunto é Maçonaria, você também vai ter a oportunidade de ler
um estudo dos mais interessantes sobre As Origens da Grande Loja
Tradicional e Simbólica Ópera, pouco conhecida entre nós.

E assim, passeando pela tradição e nobre arte, L1nitiation vai cumprindo o


papel a que se propôs, de levar sempre aos seus leitores os grandes estu­
diosos e cronistas do oculto, colocando sutilmente em suas mãos a chave
para desvendá-lo...
Mário Willmersdorf]r.

2
QUE É UM INICIADO?
Papus
ma das causas mais freqüentes da aparente obscuridade dos estudos de
U ciência oculta é incontestavelmente a confusão dos termos empregados
pelos que abordam estas questões. É indispensável, portanto, inicialmente,
definir de maneira clara as palavras que nos propomos a empregar, sob pena
de incidir no erro que acabamos de assinalar.

Poucos termos se prestam tanto à confusão quanto Iniciado. Uns


consideram o iniciado como o ser excepcional, apontado com veneração por
todos os autores de ocultismo; outros não vêem nele senão um significado
bem menos elevado e que pode ser aplicado bem genericamente.

Basta que nos reportemos à acepção primitiva da palavra para vermos que o
último parecer é o verdadeiro. Na verdade o título de iniciado indicava, na
Antiguidade, simplesmente um homem instruído e os graus de instrução
variavam de acordo com o caso, sem que o título geral de iniciado sofresse
jamais a menor alteração.

O iniciado nos pequenos mistérios possuía uma instrução equivalente à hoje


ministrada pela Universidade; o iniciado nos grandes mistérios aprendia
sucessivamente a existência e o, manejo das grandes forças ocultas da
natureza. Atingido o summum dessa instrução, ele recebia o título de
vidente, de profeta ou de adepto.

Assim Iniciado e Adepto são dois termos que designam respectivamente o


começo e o apogeu da carreira do ocultista.

Portanto todos os homens instruídos assumiam, na antiguidade, o título de


iniciados e os títulos de filhos da mulher, filhos da Terra, filhos dos deuses,
filhos de Deus1, designavam sua elevação hierárquica na ordem dos
conhecimentos humanos.

Sem querermos nos deter no ensinamento que eles recebiam, não podemos
omitir um ponto muito importante.

1 Ver La Mission des Juifs (A Missão dos Judeus) de Saint-Yves d' Alveydre - Éditions Traditionelles.

3
QUE É UM INICIADO

A doutrina ensinada era, sobretudo, sintética e a busca da Unidade universal


lhes era indicada como meta de seus esforços.

Por outro lado, ensinava-se-lhes a acomodar o ensino aos temperamentos


diversos dos povos que eles eram freqüentemente encarregados de organizar
enquanto legisladores. É por isto que vemos as leis de Orfeu, de Moisés, de
Licurgo, de Sólon, de Pitágoras serem tão diferentes na aparência, quando
todos esses homens beberam seus ensinamentos numa mesma fonte. A
perda desses dados conduz nossos legisladores contemporâneos à ruína e à
escravidão das nações que eles querem organizar, todas de uma mesma
maneira.

O povo possuía, portanto, uma religião ou uma organização social em


relação absoluta com seu temperamento próprio, o que era um excelente
meio de fazer feliz; o homem instruído, ao contrário, sabia naturalmente
que existia apenas uma religião, da qual todos os cultos eram adaptações,
como as cores são os aspectos diversos de uma só e única luz branca.

Desta forma a guerra religiosa era praticamente desconhecida na


antiguidade, já que nenhum homem inteligente sequer cogitaria disto;
somente o povo era capaz dessas infantilidades.

A Sociedade antiga aparece-nos agora em todo o esplendor de sua


organização unitária e compreendemos porquê o iniciado pode entrar em
todos os templos e fazer sacrifícios a todos os deuses, em comunhão com os
sacerdotes e todos os cultos, que nele reconheciam o filósofo da unidade,
como eles.

Os ignorantes sectários que pretendem hoje falar de religião acusam de


Politeísmo, sem compreender que os cristãos de hoje parecem ao buscador
ingênuo mais politeístas do que qualquer outra seita.

Ima ginemo-nos um homem instruído mas ignorante de nossos costumes


religiosos, que fosse subitamente chamado a fazer um estudo a esse respeito,
tendo por guias apenas os monumentos. Vejam se as conclusões não seriam
estas:

"A Religião desses povos curiosos parece consistir principalmente na


adoração de um velho, de um supliciado e de um cordeiro. Todos os seus

4
QUE É UM INICIADO

templos apresentam essas imagens. Adoravam ainda vanos deuses


encontrados em seus altares, sob os nomes de São Lourenço, São Luís, etc ...
Além do que ofereciam sacrifícios de flores em botão a uma deusa que
parece ser a da natureza e que eles chamam de Maria. São encontradas ainda
várias imagens de animais em seus altares, um cão, ao lado de um deus
inferior, São Roque, e até mesmo Ufll porco acompanhando um outro deus,
Santo Antônio. Há ainda cervos (São Huberto), cordeiros, etc ... Eles parecem
haver adorado particularmente este animal, que freqüentemente
representam deitado sobre um livro".

Estas conclusões nos fazem rir e dar de ombros. Pois bem, que idéia faria um
iniciado antigo, instrutor de Moisés ou de Pitágoras, acusado pelo sábio
contemporâneo de adorar cebolas ou crocodilos!

O argumento de politeísmo e de idolatria prova apenas uma coisa: a


ignorância ou a má fé dos que o empregam. É preciso deixar esses recursos
aos padres de aldeia e aos membros da sagrada congregação do Índex.

O papel do iniciado antigo era primordialmente social. Os iniciados


formavam no mundo inteiro uma fraternidade de inteligência unida por
uma doutrina unitária. É esta fraternidade que todas as sociedades secretas
buscam, de certo modo, reconstituir.

Mas todos esses trabalhos têm para nós, em suma, apenas um interesse
secundário. A Antiguidade, por mais atraente que seja o seu estudo, nunca
excitará tanto a nossa atenção quanto a nossa sociedade atual. É portanto
nela que devemos ver agora o iniciado.

Digamos, preliminarmente, que é muito fácil ser um iniciado. Para isto


basta conhecer os dados mais elementares da Ciência Oculta e compreender,
graças a ela, a necessidade imperiosa da união fraternal de todos os homens.
Estes dados podem ser adquiridos pelo trabalho pessoal ou pelas sociedades
iniciáticas. Isto requer algumas palavras de explicação.

Se percebemos bem a diferença capital que atribuímos aos termos iniciado e


adepto, é fácil deduzir daí que se pode formar, até um certo ponto, iniciados;
mas que não se pode formar adeptos. Os raros homens dentre tantos, que
chegam a esse estado, só podem fazê-lo por suas próprias forças.

5
QUE É UM INICIADO

O ideal de uma sociedade iniciática é, pois, indicar aos seus membros, da


melhor maneira possível, o caminho do aperfeiçoamento, sem nunca poder
ir além desta indicação.

A doutrina ensinada deve dirigir-se principalmente a esta fraternidade, fonte


de rodos os desenvolvimentos posteriores do ser humano.

Na prática, a sociedade deve envidar todos os seus esforços para realizar


entre seus membros o objetivo por ela perseguido, e para fazer de cada um
deles um apóstolo militante e, portanto, um verdadeiro iniciado.

Dois grandes meios são empregados para o ensino na iniciação; esses meios,
diferenciando particularmente as escolas de iniciação de fonte oriental das
de fontes ocidental, indicam com muita facilidade a proveniência de um
centro oculto.

O Oriental age principalmente pela meditação, ou seja, o objetivo a ser


atingido é fazer com que cada indivíduo crie sua doutrina sintética, sua
maneira de ver o Universo e sua constituição; o Oriental dá ao seu aluno um
texto bem curro e bem sintético sobre o qual o aluno deve meditar longas
semanas; muitas vezes meses. O resultado desta meditação é Liberar
paulatinamente os princípios ana líticos contidos no versículo e cnar uma
doutrina fazendo-a, por assim dizer, sair de si mesma.

O Ocidental procede de uma maneira diferente. Ele dá inicialmente ao seu


aluno uma pilha de livros sobre a questão e é somente quando este tiver lido
boa parte deles que é instigado a condensar rodas essas opiniões e todas essas
idéias diferentes em um resumo sintético.

As duas partes chegam ao mesmo resultado: o Oriental desenvolvendo um


texto sintético; o Ocidental condensando textos analíticos.

Digamos, enfim, que algumas sociedades praticam esses processos ao


mesmo tempo, escalonando-os gradativamente.

Seja de que forma for, o primeiro, eu diria mesmo o único objetivo buscado,
é instigar o aluno a criar, ele mesmo, uma doutrina pessoal.

Inicialmente, pouco importa que esta doutrina seja ou não excelente em

6 -- ---
QUE É UM INICIADO

todos os pontos. O importante é que ela exista. Fornecendo suas bases


gerais, a Sociedade evita, assim, os erros fundamentais.

Tendo o iniciado, desta forma, uma criação pessoal, ele a modifica de acordo
com os estudos ulteriores.

Vê-se por aí a inconsistência dos ensinamentos prodigalizados por


sociedades que perderam totalmente esta base indispensável. A Franco­
maçonaria é um exemplo chocante disto. Ela quis praticar a fraternidade
universal sem criar inicialmente homeµs capazes de compreender seu
alcance. Desta focma, não tardou a transformar-se em corpo político e está
à beira de sua dissolução, se não retornar energicamente ao seu objetivo
primitivo através de uma rápida reorganização.

A utilidade social dos iniciados é incontestável. Imagine-se a possível


grandeza das gerações futuras se a unidade se realizar.

O socialista quer agir sobre as massas para realizar a fraternidade cup


necessidade ele sentiu tão bem. A iniciação dirige-se, antes de tudo, às
inteligências menos numerosas, mas mais úteis como ação.

O dia em que o padre católico, tornado um iniciado, souber receber em sua


igreja, como um igual, o iniciado ortodoxo, o iniciado muçulmano e o
iniciado budista, a fraternidade dos povos estará bem perto de ser realizada
na prática.

Talvez esse dia esteja muito distante; talvez, ao contrário, ele se aproxime
mais rápido do que imaginamos. É temerário ter esperança nesta união dos
·

povos?

É possível que seja de fato uma utopia, um ideal que jamais atingiremos;
mas nesta época de exagerado positivismo é tão consolador viver no ideal,
que na verdade não me arrependo de sonhar com a união dos iniciados
precedendo um pouco a união de todos os homens na paz e na harmonia.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição .francesa


de l:lnitiation em 1889.

7
ZARATUSTRA
Uma Mensagem Grandiosa!
1 ª PARTE

Robert Delafolie

A
o correr do tempo, notadamente há vinte e cinco séculos,
temas essenciais foram utilizados para o pior e o melhor na
arte e na história, nas mitologias e correntes intelectuais, sociais,
espirituais. Mas é uma mesma mensagem sob as mais diversas
formas, das quais uma das mais diretamente explícitas é a de
Zaratustra, de seus epóptas, discípulos e epígonos ou herdeiros os
mais diversos nas gnoses, nas igrejas, nas heresias, etc.

Cenário criado por Karl Friedrich Schinkel para a produção da A Flauta Mágica da Ópera
de Berlim de 1815. Ao fundo o Templo de Zarastro encimado por uma esfinge.

ZOROASTRO, ZARASTRO, ZARATUSTRA


Na primeira metade do século XVIII, Jean-Philippe Rameau, o grande
mestre da música francesa da época, fez representar sua ópera Zoroastro;
corria o ano de 1749.

8
ZARATUSTRA

Na segunda metade do mesmo século XVIII, Zoroastro reaparecia em V iena


sob o nome de Sarastro e sob os traços do grão-sacerdote do Templo da
Sabedoria e da Fraternidade dos servidores dos deuses Íris e Osíris.

Tratava-se então de A Flauta Mdgica de Wolfgang Amadeus Mozart,


iniciado na franco-maçonaria austríaca desde 1784. A Flauta Mdgica, cujo
libreto é de outro franco-maçom austríaco, Emanuel Schikaneder, foi
montada em 1791. Pode-se dizer que uma outra cooperação fraternal
anterior preparou, direta ou indiretamente, o caminho de Die Zauberjlote.
Citemos o "T hamos", "a trompa mág_ica", "Oberon", outra história de
trompa mágica, e todo um conjunto de trompas, liras, harpas e flautas ou
cítaras encantadas.

Sabemos que Oberon, rei dos elfos, tornou-se ainda mais conhecido graças
a Carl Maria von Weber. As obras em questão.são às vezes muito diferentes
entre si, mas todas adotam estilos fantásticos de contos de fadas ou de
magia, a serviço de mensagens esotéricas, alquímicas ou herméticas, todas
iniciáticas. O mesmo se aplica à Viagem de Inverno de Schubert ou a O
Paraíso e a Peri de Schumann, ou ainda ao Sonho de uma noite de verão de
Mendelssohn. A mesma conjuntura estará presente nas diferentes versões de
Fausto e, seguramente, no festival cen1co sagrado Parsifol, esse
desdobramento ritual e espiritual, tão religioso e misterioso, oculto como
todas as obras de Richard Wagner. O mesmo se aplica para A Mulher sem
sombra de Richard Strauss e Hugo von Hofmannsthal. Todas obras de
altíssima envergadura, de extrema elevação.

Seguramente há outras, mundo a fora (um bom número, mas não tão
considerável), cuja ambição é orientada para a suprema harmonia, além das
contingências, ao mesmo tempo intemporal e incorpórea, em toda parte e
em lugar algum.

Mas se a célebre A Flauta Mdgica con str ui u-se de fato no coração de


atividades fraternais, notadamente das quatro lojas de V iena: "Verdade­
Unidade", "Verdadeira Concórdia", "Esperança Coroada" e "Benfazeja'' (a
loja de Mozart), dar-se-ia de maneira inteiramente diferente a elaboração,
no século XX, do poema sinfônico de Richard Strauss Assim falou
Zaratustra, que é a ilustração musical (soberba e aterrorizante) que o músico
alemão quis dar à obra de seu compatriota Friedrich Nietzsche.

9
ZARATUSTRA

Zoroasrro, Zarastro, Zaratustra, uma única figura, três vezes a mesma. Um


grande mistério! O das profundezas vertiginosas por detrás de um olhar dos
mais enigmáticos e sibilinos. E, no entanto, trata-se aqui do homem de luz,
da mais límpida, mais transparente e mais ofuscante das luzes. Ofuscante é
bem a palavra. Luz tão clara, tão brilhante, que não se a vê, ou não se a vê
tal como ela é, o que dá no mesmo.

Mas antes de nos afastarmos da arte, do teatro e da literatura do século


XVIII ao século XX, retornemos um instante aos três, Zoroastro, Zarastro,
Zaratustra, líricos e poéticos ou sinfônicos e, especialmente, ao que é dito
de primordial e de fundamental no libreto de A Flauta Mágica de Mozart,
Gebler, Gieseke e Schikaneder... passagens geralmente não citadas ou feitas
de maneira tão rápida que pouco nelas se vê, especialmente do essencial.

NARRATIVA
DA ESPOSA DO
MESTRE DO MUNDO
Ora, eis aqut três
palavras capitais e
significativas, quando
(2ª parte, 3° ato, 1 ܪ
cena) 1 a Rainha da
Noite, conduz as Três
Damas da Noite e
revela à sua filha
Pamina - na parte
. '"""" falada - o seguinte:
Cenário para a produção de A Flauta Mágica de Viena. em " ... Teu pai, o Mestre do
1791. Tamino (à esquerda) e Papageno (à direita), se mundo, despojou-se
encontram com as Três Damas da Rainha da Noite que
voluntariamente do Sol
haviam acabado de matar o dragão que ameaçava Tamino.
de sete auréolas, atual­
mente envergado por Zarastro, depois deixou propriedade e posse
para mim e para ri. O círculo solar das Sete auréolas, que engloba o
Universo, foi deixado i1 direção dos homens sábios, apenas aos
iniciados... "

En1 outras palavras, Mundo e Hornern tnis con,o se encontran, no estado


atual - ocupados em conquistar e adquirir, em estado de dominação quer

1 Libreto da Librairie de l'Acacia 1911/1913 de J.·G. Prud'homme e Jules Kienlin.

10
ZARATUSTRA

brutal, quer banal, ilegal ou legal - não estão em pos1çao de ascender à


Altíssima Ordem de uma existência superior, a da Verdadeira Vida de uma
Humanidade ideal e Real ainda e sempre a vir.

Há igualmente aqui uma alusão direta à pequenez da humanidade, ao tamanho


sempre pequeno e estreito de suas ambições, mesmo as maiores, face à
Harmonia suprema da Beleza total, de suas obsessões, cada uma delas limitada
por objetivos, bens, necessidades, uma visão obstinada e limitada a si e aos seus
(nação, raça, casta - natureza, pessoa, espécie - clã, tempo, espaço).

Condenação sem apelo do egoísmo individual ou social (pseudo-altruísmo)


que se encontra na "Tetralogiá' de Wagner, onde os autoproclamados deuses
gigantes e anões são, afinal de contas, todos nanicos. Um anão sobre um
tamborete é sempre um anão.

NIETZSCHE
Ao lembrar que Tamino é considerado por Zarastro como sendo "melhor e
mais que um príncipe: um homem", que o mesmo Tamino encantou com
sua flauta os mundos animal e natural, depois foi conduzido por Pamina,
saída da noite, para o santo templo, observemos ainda que em Assim falou
Zaratustra Nietzsche exalta certos temas a propósito de uma elite total fora
das nações, naturezas, raças e castas, da "Morte de Deus" ou melhor, dos
sucedâneos de Deus, com os quais se contenta a humanidade, do "Homem
Superior" (fora de categorias, dirigido e dirigente) que não é o super­
homem dominante, mas seu contrário liberado dos objetivos, bens e
necessidades ordinários, da "Liberdade e da Luz" (indissociáveis), da
"Vitória sempre vulgar" do homem social, fraco e covarde, do "Civilizado,
que é o Disfarçado", de "seus amigos Águia e Serpente" ou dos "Bovinos que
se instruem".

Quantas palavras misteriosas, ao mesmo tempo a,gudas e ambíguas, que


devem ser preciosamente re-estudadas e reconsideradas!

Acrescentemos que Nietzsche, já bastante sibilino e obscuro (é o menos


que se pode dizer), potencializa ainda mais estas características se
considerarmos as influências complexas, nos arranjos e desarranjos,
obras de sua irmã superativa Elisabeth. Como se pode saber exatamente
em que circunstâncias e sob que influências foram criados O nascimento
da Tragédia e O Alegre Saber, ou Humano muito humano como Ecce

11
ZARATUSTRA

homo, assim como a Genealogia da Moral e Além do Bem e do Mal, e


ainda O Anticristo, O caso Wágner, O crepúsculo dos ídolos com O viajante
e sua sombra, ou ainda Auroras, a sombra de Veneza e enfim,
principalmente, A vontade de poder? Sim, quem então? Os deuses gregos?
Indianos? Iranianos, ou outros? Schopenhauer ou Wagner? Cosima
Liszt, Lou Salomé ou Elisabeth Forster Nietzsche? Aqui, como de resto
em toda parte, está presente na história do mundo e dos homens a
extraordinária desordem, no eterno retorno, das mais elevadas aspirações
e inspirações, e dos mais perigosos erros e persistências ou poderes!
Quanta coisa para refletir...

AS GRANDES CORRENTES ESPIRITUAIS


E no âmago mesmo de nossa existência, desse mundo desordenado,
mitigado (como diziam os cátaros), no oceano das inúmeras correntes ideais
e sociais ou intelectuais, a presença contínua, simultaneamente divergente e
convergente dos movimentos espirituais essenciais na arte, na tradição, na
iniciação, na religião.

Restam finalmente muito poucos (apenas alguns) de uma amplidão


planetária, ou seja, aqueles, digamos, majoritários:

•as religiões do Antigo e do Novo Testamento;


•o hinduísmo (Vedas, Upanishad, Mahabarata, etc.);
•o budismo (especialmente Hinayana);·
•o taoísmo
•o zoroastrismo (maniqueísmo e dualismo, hoje Guebes e Parsis);
•as grandes mitologias do Norte e do Sul da Europa
(especialmente em torno dos mitos da Tuléia e do Graal).

Naturalmente as expressões majoritárias e minoritárias são, de uma certa


maneira, arbitrárias, e não necessariamente justas (principalmente para o
budismo), mas trata-se principalmente de um estado de espírito. Poder-se­
ia ainda dizer exotéricas e esotéricas, ou melhor, diretas e indiretas,
especificando que as segundas, sem tocar diretamente milhões de
humanos, tiveram um peso acentuado na História, precisamente por suas
múltiplas influências indiretas extraordinariamente variadas, em toda
parte e em todas as épocas, para o melhor e para o pior, de acordo como,
por quem e por que, eles foram (e são) recebidos, percebidos, utilizados,
praticados, aplicados.

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ZARATUSTRA

RECONSTITUINDO O CURSO DA HISTÓRIA


Ao reconstituir o curso da História, surge uma evidência dessa presença
contínua, de conseqüências consideráveis, infinitamente diversificadas, com
efeitos por vezes antagônicos.

... Uma idéia ... e mil efeitos... contrários...

Exemplo monumental: o das grandes ideologias políticas e filosóficas opostas,


no decorrer do século XX, inicialmente como pano de fundo, posteriormente
no proscênio, desta formidável guerra de trinta anos: 1914/1945.

Todos sabem que não há efeitos sem causas. Eis pois o mundo romântico do
século XIX (arte, teatro, cultura, natureza, história).
Depois, seguindo a volta atrás, eis outros encontros espetaculares ou,
quando menos, determinantes:
os Réaux+Croix2 no século XVIII e os Iluminados da Baviera

os Rosa+Cruzes no século XVII e os Iluminados de Avignon.


Ninguém ignora as influências incalculáveis, freqüentemente contraditórias,


do que foram as Luzes e os Iluminados da França e da Alemanha, no século
XVIII, e suas tão contrastadas repercussões!

Depois, ainda antes e ao longo dos séculos, até o m1c10 da era cristã, não
passam de·múltiplos protagonistas coletivos, um depois do outro, aliados,
associados, amigos ou inimigos, ainda bem no primeiro plano ou, 'lO
contrário, no pano de fundo da cena mundial, sob as formas diversas de
igrejas, gnoses, heresias, cismas, etc..

Quem esqueceria, dentre tantos outros, no século XVI, a aventura trágica,


louca e sanguinolenta dos anabatistas, ultra-extremistas de Munster
engajados no frenesi de uma guerra civil fanática contra as diversas correntes
católicas e protestantes, por uma vez reunidos (não por muito tempo)
quando eram inimigos mortais durante as terríveis guerras religiosas.

Três séculos antes são as grandes ordens de cavalaria, monges-soldados,


templários, teutônicos, São João, São Tiago, Santa Maria... ou Haschishins...

2 Último grau do rito Ellus Cohen. A palavra "Réaux", do francês antigo, significa "rubro",
cor associada ao primeiro Adão, aquele de antes da queda. (N.T.)

13
ZARATUSTRA

Depois, no cerne das epopéias cruzadas, coneses e cavaleirescas, irradia o


fenômeno prestigioso, espalhado sobre um milênio, de uma exemplar
iniciação: a da cerimônia e da celebraç5o da Sagração dos Reis de França,
inspirada simultaneamente na tr:igédia grega, na cavahria crista e na
tradição faraônica do Egito imperial (especialmente com as duas coroas
reais).

Mas o mundo visível dos reis faz-se acompanhar por esse mundo invisível
dos loucos - suscitando os Loucos de Deus - do rei, dos ofícios, das
cidades, etc., mas mais especialmente organizados em sociedades secretas
muito sérias, esotéricas, herméticas e disciplinadas num ritual que é de fato
um chamado à ordem original, ao mesmo tempo que a exaltaç5o de uma
elite fora do normal e totalmente independente, deliberadamente
indiferente a toda escala social.

Outra questão enigmática (e confusa), a das relações dos Templários (ligados


ao mito do Graal e da T ávola Redonda) e dos Teutônicos (ligados ao mito
da Hiperbórea e de Tuléia) e também das outras ordens, com a heresia
complexa dos valdenses e albigenses, bogomiles e paulinos, cátaros e redes
dualistas do século Xl ao século XJII e, bem mais cedo, bem depois e antes
de Jesus Cristo, interconexões na multidão das multiplicidades gnósticas ou
de seitas secretas, tais como as dos essênios e dos terapeutas, ou
comunidades pré-cristãs, judaicas, pagãs, arianas ou alquímicas-herméticas.

Quais correntes, precisamente, atravessaram os grupos do deserto de Engadi,


em Qumrán, sobre o mar Morto, ou de Nag-Hamadi no Alto Egito.?

É num conjunto tão vasto que encontramos a epopéia da contestação


radical e total de Mazdak, no Irã, por volta do final do século V, de sua
tentativa revolucionária integral e de sua retomada fundamental, unindo
um comunismo institucional social e religioso, do qual não se soube jamais
discernir realmente o que havia de maniqueísta, de zoroastriano ou de
mazdeano. Ele foi principalmente o discípulo de Zaratust, de fato um
homônimo de Zaratustra, e fervoroso sectário de uma doutrina mística,
vegetariana e coletivista inspirada p elos grandes temas iranianos expostos no
decorrer de mais de mil anos, das épocas aquemênidas, selúcidas, arsacidas
e sassânidas, temas da transfiguração do mundo liberto de sua natureza
misturada-mitigada, de toda dor, de toda infelicidade e de toda miséria
moral e material, todas devidas à cegueira egocêntrica mundana, humana e

14 --
-
ZARATUSTRA

terrena, chaga e tara gerais dos vivos. Mesmas idéias e ideais que
encontramos ou descobrimos em inúmeras correntes quer judaicas, quer
cristãs, islâmicas, quanto gnósticas e seus derivados, voltadas para o sublime.

Agitador e utopista particularmente fanático e austero, Mazdak anunciava­


se como o continuador de Man.i (ou Manes), o prestigioso profeta do
dualismo iraniano e ariano que irá inspirar a infinidade de grandes heresias
e cismas da Idade lv1édia no Oriente e no Ocidente, lembrando sempre as
numerosas nebulosas das redes gnósticas disseminadas séculos antes em
torno do Mediterrâneo e em outras partes.

UM MUNDO COMO ESTE? NÃO É O MUNDO VERDADEIRO!


Deste leque doutrinal singular da história humana, incrivelmente variado
no tempo e no espaço, emerge, expresso de mil maneiras, um ponto comum
que une todas as forças, por mais díspares que sejam, numa constatação
muito clara que é a seguinte:

"O mundo tal como é, tal como o vemos e vivemos, é


um mundo deteriorado e, quando menos, viciado, e
mais nitidamente um mundo doente. Para ser mais
direto, esse mundo não é verdadeiro ou não passa de
uma cópia, de uma paródia, a degradação pura e
simples ou, na melhor das hipóteses, a caricatura
muito distante de um mundo verdadeiro, ou ainda de
um hiper-mundo sem relações com o que dele
conhecemos de cruel, fútil e infantil".

É quando encontramos, por volta de 750 anos antes da era cristã e 750
anos após a ruptura indo-iraniana, a mais conhecida das origens da
multiplicidade de todos esses movimentos de uma importância capital,
tanto interna quanto externamente às igrejas, religiões, instituições e
organizações espirituais ou político-sociais.

Donde, no século VIII a.C., após Moisés e os Vedas, ao mesmo tempo


em que Homero e certos episódios da Bíblia - mas antes de Pitágoras
e da teogonia de Hesíodo, tsquilo, Sófocles, Eurípedes, e antes também
de Jina Mahavira, antes de Sidarta Gautama, o Buda, antes de Confúcio
e de Lao-Tsé - nasceu na antiga Pérsia, no seio do clã Spitana,
Zaratustra, o Homem de Luz, ou Zoroastro, a estrela de ouro.

15
ZARATUSTRA

ZARATUSTRA
O acontecimento se
desenrola em Bactra. A
região de Bactriana
encontra-se entre o Irã
interior e o Irã exterior,
cercada pelo Turme­
nistão, Turquestão, e
pelos países Uzbe­
q uistão, Tadjiquistão,
Afeganistão e Paquistão
na verdade o
Zaratustra ou Zoroastro, o Homem de Luz, nasceu na
cruzamento dos via­
antiga Pérsia, no clã Spitana, antes de o mundo co­
jantes da Arábia, do
nhecer Pitágoras, Buda, e Lao-Tsé
Egito, da
da Grécia,
Rússia e da Europa rumo à Ásia central, Mandchúria, Mongólia e China e
Japão, ou vice-versa.

Como para todos os grandes profetas, luzes da humanidade e do mundo e


tornados mitos universais - onde, aliás, se mesclam o pessoal e o impessoal
em sua individualidade - a vida e, sobrerudo, nascimento e infância de
Zaratustra, associam a lenda e a história.

No que tange ao domínio da lenda, é muito comum encontrar os mesmos


acontecimentos fabulosos em torno dos mais consideráveis personagens e,
principalmente, as similitudes em Zaratustra, o Jina Mahavira, o Buda Sidarta
Gautama e Jesus de Nazaré, seja entre um ou dois dentre eles, seja entre os três.

Entre as narrativas lendárias sobre Zoroastro, fala-se de sua mãe cercada por
uma auréola luminosa, de um anúncio misterioso feito por um anjo, de um
miraculoso nascimento virginal ou concepção em sonho, e de várias
tentativas sucessivas de eliminá-lo em sua infância, pelo gládio ou por uma
fogueira, pelo tropel de uma tropa de vacas ou de cavalos, os quais aliás o
salvam ao invés de perdê-lo.

Mas as narrativas históricas sobre as grandes luzes do Mundo e da


as mes.mas semelhan ças que as lendas.
I-Iurnanidadc: tt:In

Assim, com Zoroastro, da mes111a forn:ia que 1nais rarde com Mahavira,

16
ZARATUSTRA

Gautama e Jesus, manifestam­


se duras controvérsias com os
· mestres, doutores, sumidades
de sua época, na verdade a
propósito da letra e do espírito.

Similarmente manifesta-se nele


uma tenaz desconfiança em
relação aos rituais materiais e
uma oposição radical e total
aos sacrifícios de sangue,
donde ser acusado de sub­
versão geral e de desordem
moral, social, e até mesmo
mental!
A Anunciação de Fra Angélico (séc. XVI) - Maria
Em cada um deles, como para recebe, como a mãe de Zoroastro, o anjo da
. Zaratustra, ocorre um 1so- Anunciação. O nascimento divino será comum a
lamento no deserto, na praticamente todos os grandes avatares
montanha ou alhures - de qualquer forma fora do mundo; uma atitude
ascética e mística, uma existência solitária e pastoral, e a busca de algum tipo
de gnose essencial além das "gnoses" históricas.

NÃO ABOLIR, MAS CUMPRIR A LEI


E sempre, de uma maneira ou de outra, a proclamação do profeta de que,
apesar das aparências, ele não veio abolir, mas sim cumprir sua lei.

O que subentende plenamente a existência de uma lei humana enaltecida


pelas autoridades e instituições civis e religiosas ou morais, culturais,
políticas, em todos os países em cada época, mas afinal de contas, não
aplicada nem praticada. Fala-se, e as coisas param aí.

Portanto, não abolir, mas cumprir o que não o é, e unir a V ida e o Verbo até
então contraditos em ato (ou ausência de ato), por aqueles mesmos que
deveriam vivê-lo e não o fazem.

Existe, aliás, uma espécie de consenso de fato entre dirigentes e dirigidos


con1pensando a ausencia absoluta de realização efetiva por todo t:ipo de rit:os
(religiosos ou laicos) substituindo os princípios a serem vividos.

17
ZARATUSTRA

Nascido em uma família senhorial sacerdotal (clã Spitana), tal como o Buda
(Gautama) e, de uma certa maneira, Jesus (Realeza de Davi) ou Mahavira,
o Jain, Zaratustr'l não destrói absolutamente; ele vem, ao contrário, idealizar
e realizar o espírito de uma lei que até então só tinha sido proclamada e
esquecida ou, ao mesmo tempo, negligenciada.

Aqui não há uma verdadeira surpresa, mas o espanto sempre renovado de


uma única constatação geral, de um único comportamento e, na verdade,
de uma única mensagem diante do mundo, que encontram sempre, aliás, as
mesmas oposições e incompreensões das categorias, tanto dirigentes quanto
dirigidas, da sociedade humana de todos os tempos e de toda parte em nosso
atormentado planeta.

No que se refere aos rituais matena1s, fica muito claro que estas vozes
totalmente elevadas acima do tempo, do espaço, das pessoas, estão tão
afastadas do formalismo e do conformismo dos crentes quanto da
negligência, consciente ou não, dos incrédulos.

Não se reprovam aos rituais materiais a excessiva evocação do espírito, mas


o fazê-lo de maneira insuficiente. Não o laxismo, mas o anti-laxismo
absoluto.

Afinal de contas, trata-se do supremo testemunho de um culto eterno e de


um ritual espiritual interior e, principalmente, sempre presentes consigo, na
rua, na vida e não em tais ou quais circunstâncias de tempo e de lugar.

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 3 de 2000


da edição francesa de Llnítíation.

(Contínua no próximo número)

18
DEFINIÇÃO GERAL DO AMOR

Papus

entemos estabelecer uma definição geral do Amor, suficientemente


T ampla para englobar tanto as manifestações do amor no mundo físi­
co quanto no mundo moral, e suficientemente precisa para agradar. .. os
filósofos.

Determinemos inicialmente o caráter do amor. Buscaremos a seguir os obje­


tos de sua ação, depois seu meio e, por último, seu fim. Eis aí seguramente
uma via cara à Senhora Filosofia; tudo o que nos resta é percorrê-la da me­
lhor maneira ao nosso alcance.

Inicialmente, qual é o caráter bem peculiar do amor? Qual a sua manifes­


tação suficientemente universal para ser idêntica em qualquer lugar?

É uma tendência à aproximação, à união, um impulso especial caracteriza­


do de maneira assaz sugestiva por Jacob Boehme sob o nome de adstringên­
cia, e que nos surge bem mais claramente sob o termo atração. O amor é
uma atração; é mesmo a ATRAÇÃO em seu sentido mais lato; trate-se da
afinidade dos corpos químicos ou dos impulsos anímicos do ser humano, é
sempre e em toda parte o mesmo fenômeno: a atração, manifestação essen­
cial do amor.

Mas como iremos caracterizar os objetos sobre os quais se exerce essa


atração?

Sem nos determos nos mil detalhes peculiares à atração em cada um dos
planos da natureza, iremos buscar o termo mais universal que possamos
encontrar, pois trata-se de estabelecer uma definição geral.

Ora, a primeira idéia que vem à mente é que o amor é a atração dos con­
trários. No entanto, basta um pouco de reflexão para mostrar que aí vai um
exagero e talvez um erro. A ciência demonstrou hoje, com segurança quase
absoluta, que as forças físicas não passam de modalidades DA FORÇA, e que
cada uma dessas forças se manifestava sob dois aspectos aparentemente con­
trários. mas definitivarnente derivados de uma mesma origem. Assim, a ele-

19
DEFINIÇÃO GERAL DO AMOR

tricidade positiva e a eletricidade negativa não passam de manifestações dife­


rentes de uma mesma força. O mesmo se dá com o quente e o frio, a luz e
a sombra, etc. Tudo isto se resume, em última análise, a estados específicos
do movimento - de acordo com a bela teoria de Louis Lucas. Mas para que
não nos percamos em abstrações científicas, perguntemo-nos se o homem e
a mulher - que representam respectivamente o pólo positivo e o pólo ne­
gativo da humanidade - são o que se poderia chamar de contrários. Os
pólos contrários se atraem, direis; de acordo, numa primeira análise. Mas
refletindo um pouco não tardamos a constatar que o termo "contrário"
traduz mal o pensamento que se busca exprimir. A mulher com pleta o
homem; o homem a mulher; mas não se pode dizer que - pelo menos
filosoficamente - a mulher seja a inimiga do homem e o homem o inimi­
go da mulher. Todas as nossas leitoras protestariam contra semelhante inter­
pretação.

Completar e não opor-se, comp lementar e não contrário - tal é o termo


que devemos adotar. Platão irá nos acrescentar curiosas observações a esse
respeito1• Primitivamente - nos diz o grande filósofo que citamos de
memória - o ser humano era composto de indivíduos em forma de bolas,
tendo ambos quatro braços e quatro pernas e possuindo ambos os dois
sexos. Tendo esse ser se revoltado contra Deus e sido vencido em sua luta, e
em testemunho dessa queda, Deus separou o ser humano em duas metades;
assim foram criados os homens e as mulheres, contando cada um apenas
com duas pernas e dois braços e constituindo assim metades do ser original.
Cada uma dessas metades busca completar-se para reconstituir a unidade
perdida: daí o amor.

Essa queda analisada por Platão atingiu - a crermos nos místicos da esco­
la de Jacob Boehme e nos Martinistas - não somente o homem, mas toda
a Natureza: daí a criação de todas essas metades que, sob os nomes de Sóis
e de Planetas, de reinos e de forças, depois de corpos químicos ou de seres
animados, buscam em todos os planos e em rodos os mundos complemen­
tar-se.

Poderíamos prosseguir nesta análise por muiro tempo, mas acreditamos


havermos justificado a escolha de nosso termo e resumiremos o estado pre­
sente de nossas pesquisas dizendo: o Amor é a atração dos

1 Vide O Banquete.

20
DEFINIÇÃO GERAL DO AMOR

Complementares. Temos o caráter e os objetos da ação; vejamos o meio.

Como se exerce essa atração dos complementares?

Uma das tendências mais generalizadas do espírito humano é a de desprezar


quase sempre a pesquisa dos meios, dos intermediários, quando ele perce­
beu a causa e os efeitos.

É por isto que se ridicularizou muito os cabalistas e os alquimistas, que ensi­


navam existir um intermediário encarregado de assegurar as relações da alma
e dos corpos; intermediário por eles chamado de Mediador plástico.

Pretendeu-se e ainda se pretende nas obras clássicas de filosofia, que esse


intermediário foi inventado unicamente para contornar uma explicação
difícil.

Ora, então não vemos todos os dias o químico sendo levado a misturar inti­
mamente o óleo e a água - imagens analógicas da alma e do corpo - por
meio (quer dizer, por intermédio) do potássio, para constituir o sabão? Um
químico que afirmasse que o potássio é o mediador plástico do óleo e da
água não seria motivo de chacota, mas zomba-se da afirmação dos alquimis­
tas.

Mas, perguntareis, que foi feito do amor em tudo isto?

Estamos mais que nunca nele, porque tocamos na meta. Entre o amor,
princípio de toda atração, e o corpo, princípio de roda passividade ao impul­
so atrativo, existe um intermediário que chamaremos de universal, pois ele
se aplica a toda a natureza.

Esse intermediário desempenha o mesmo papel que a eletricidade quando


da transmissão de uma descarga. Ele une os complementares e repete estri­
tamente em um deles as modificações imprimidas pelo outro. A atração cor­
responderá então um meio de ação universal. Como escolher um termo
melhor que este, que designa os fenômenos do amante: o magnetismo?

A parcela forte tem amor ou afinidade pelo amante. Nessa tendência atrativa,
essencial, reside somente o an1or. Mas é graças à influência exercida por esse

amante sobre o campo de forças ambientes, graças ao que chamamos o fluído

21
DEFINIÇÃO GERAL DO AMOR

magnético (que, como o calor, a luz ou a eletricidade é apenas uma modalidade


do movimento) que esse amor pode realizar-se, passar de potencialidade a ato.

Chamaremos, portanto, de magnetismo universaF o meio de realização do


amor em todos os planos e diremos, resumindo tudo o que precede:

O amor é a atração dos complementares por meio do magnetismo universal.

Inútil lembrar que, da mesma forma que a palavra atração tem seu nome
alterado segundo os planos de ação (coesão, afinidade, instinto, etc.), a
palavra magnetismo afetará um sem número de expressões específicas no
plano da ação. Retenhamos apenas que, na animalidade e na espécie
humana, é a força nervosa que representará a adaptação a esse plano do
magnetismo universal.

Resta-nos apenas determinar uma conseqüência para finalizar a análise do


amor, tal como destacamos no início deste estudo. Conhecemos o caráter, o
objeto e o meio de ação do amor; resta-nos buscar sua meta, seu fim.

Qual o objetivo do amor? A resposta e esta pergunta é imediatamente


fornecida pelo bom senso: uma criação.

É aqui que começa a dificuldade. O amor tem por objetivo uma criação;
mas em nossa opinião seria um erro grosseiro pensar que a criação almejada
é sempre material, física.

O objetivo do amor pode consistir na criação de um sentimento bastante


durável, para persistir, às vezes, até a morte. O amor pode assim comprazer­
se na criação de uma idéia, na realização de um ideal. É agora que podemos
apreender toda a grandeza da análise de Platão.

Há diferentes amores, ou melhor, há diferentes planos nas manifestações do


amor, não somente para a matéria orgânica, mas também para os organis­
mos animais e para o homem.

Na humanidade o amor principia no amor da alma pelo corpo, no qual


retém a força nervosa; prossegue no amor da criança por sua mãe, do

2 Os cabalistas e os alquimistas deram a esse princípio o nome bem poético de Luz astral.

22 ---
DEFINIÇÃO GERAL DO AMOR

homem pela mulher a111ada; mas pode também se elevar até o amor do
artista por seu ideal: a Beleza; do sábio por seu ideal, a Verdade; ou do mís­
tico por seu ideal: a Divindade.

De todas essas manifestações do amor resultará uma criação; mas com quão
pouca freqüência essa criação será material! Na grande maioria dos casos ela
será intelectual e a idéia criada na obra de um Colombo, pelo amor à ver­
dade, será tão vivaz e, ousamos dizê-lo, tão viva, quanto qualquer criança
resultante do amor de um homem por uma mulher. Da mesma forma que
o apaixonado está pronto a sacrificar sua vida pelo objeto amado, não está
Colombo pronto a tudo superar para satisfazer sua paixão intelectual e não
está o artista pronto a suportar a miséria para atingir seu ideal?

E se quisermos uma prova ainda mais palpável da existência dessas criações


intelectuais, a mulher no-la forneceria imediatamente.

Não fica a mulher - que por natureza intui as grandes verdades - enciu­
mada, quando ama de verdade, do amor do artista por esse ideal que ela não
conhece, mas em quem sente uma rivalidade ainda mais perigosa, pois o
tempo só faz aumentar os encantos dos amores intelectuais? Consultem
todos os nossos romancistas sobre esse ponto e lembrem-se da Obra de
Émile Zola na qual esse fato é admiravelmente estudado.

Poderíamos ainda desenvolver nossa definição por longo tempo; mas nossa
intenção é mais indicar do que explorar inteiramente o campo das deduções
possíveis. Assim paramos por aqui, dando a definição geral que obtivemos:

O AMOR É a atração dos complementares POR MEIO do magnetismo


universal e EM VISTA de uma criação espiritual ou material.

Esta matéria foi publicada originalmente nos No. 4 de 1894


da edição .francesa de I..:Initiation.

23
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

Marco Antonio Coutinho

As manifestações do esoterismo tradicional no Ocidente devem


muito a Emile Ddntinne. Pouco conhecido das novas gerações de
iniciados, Hiéronymus, como era chamado, foi a figura do mestre
espiritual por. excelência. Após fortalecer as mais importantes
tradições esotéricas do mundo ocidental, ele retornou ao silêncio e à
solitude que tanto amava, para terminar seus dias em estudo e
meditação.

m 21 de maio de 1969, no interior da Bélgica, um ancião de nome Émile


E Dantinne aguardava a chegada da morre. Ao
seu lado, velando por ele, sua filha Marie­
Louise pôde ouvi-lo sussurrar as últimas
palavras: "A gente não sabe nada... "

É possível que aquele velhinho


que acabava de falecer não
soubesse realmente tudo. Afinal
de contas, quem é que sabe?
Mas naquele dia, com a morte
de Dantinne, desaparecia
também um homem que foi
considerado um mestre entre
os mestres, o Príncipe da
Iniciação Ocidental: Sâr
Hiéronymus. Da vida pessoal
do mestre pouco se sabia,
mesmo na época de sua maior
influência, que se estendeu
principalmente entre os anos
20 e 50. Durante esse
período,
enigmática
Hiéronymus
a
de
figura
Sâr
aparecia
# Émile Dantinne paramentado como
tão sarnente por ocasião lmperator R+C da Europa.

24
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

dos cenáculos e conventos secretos das ordens tradicionais, quando ele fazia
valer sua autoridade e conhecimentos, para orientar os dirigentes das mais
antigas confrarias de estudantes de mistérios do Ocidente. O Grande Mestre
da AMORC para a França na época, Hans Grüter, inquietou-se com tanto
mistério, e chegou a comentar numa carta: "Não conhecendo nem o seu
nome profano, nem o seu endereço, perguntei ao nosso grande amigo
Mallinger como poderia lhe fazer· chegar uma palavrinha". Jean Mallinger
era Sâr Elgin, braço direito de Hiéronymus, e um dos raros interlocutores
do mestre que podia ter acesso à sua vida pessoal. Hiéronymus era secreto
por natureza. Se, por um lado, aqueles que participavam de suas atividades
iniciáticas nada conheciam sobre sua vida privativa, tampouco os que o
conheciam pessoalmente sabiam qualquer coisa de suas atividades
tradicionais.

MESTRE ROSACRUCIANO, MARTIN/STA E PITAGORJCIANO


Sâr Hiéronymus nasceu em 19 de abril de 1884, em Huy Sur Meuse, na
Bélgica. Foi batizado na Igreja Católica Romana, à qual permaneceu fiel até
o fim de seus dias. Embora tenha interrompido seus estudos aos dezesseis
anos de idade, para sustentar a família, retomou-os mais tarde, na
Universidade de Liege, onde tornou-se um especialista em línguas orientais.
O nomem mysticum "Sâr Hiéronymus", sob o qual ele ficou mais conhecido,
era conseqüência direta de sua posição nos meios esotéricos europeus. Sâr,
título reservado a alguns dirigentes ou iniciados de alto grau no mundo da
iniciação, é de origem egípcia, e significa Filho do Sol (Sa filho e R', ou
=

Rá, ou ainda Rê =Sol). Ao lado desse título, os dirigentes que tinham o


direito reconhecido de usá-lo apunham um nome sagrado. Assim, por
exemplo, Harvey Spencer Lewis ficou conhecido como Sâr Alden, Jeanne
Guesdon como Sâr Puritia, e Léon Lelarge como Sâr Agni. Quanto a
Dantinne, continuou impessoal até na adoção de seu nome sagrado:
Hiéronymus significa simplesmente... "nome sagrado"!

Na vida civil, Émile Dantinne era bibliotecário de sua cidadezinha, e


funcionário do "Télégraphes et Téléphones". Essas atividades pareciam
proporcionar-lhe tudo aquilo de que necessitava: silêncio, estudo,
tranqüilidade e anonimato. E foi nesse clima de vida quase monástica que
Dantinne empreendeu sua fulgurante jornada iniciática. Desde os
primeiros estudos aos pés de seu mestre, Josephin Péladan (Sâr
Merodack), até a venerável posição de Imperator da Rose+Croix da
Europa, ele percorreu um caminho de muito sacrifício, muito estudo, e

25
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

organizou dedicadamente as mais


importantes ordens esotéricas na
Europa. Dentre elas, a Rosa-Cruz, o
Martinismo e o Pitagorismo.

As atividades rosacruc1anas de
Dantinne foram herdadas diretamente
de seu mestre Péladan. O discípulo
reorganizou a obra empreendida por
seu predecessor, através da Ordem
Rosa-Cruz Universal, ou Interna, que
era composta por três graus: Escudeiro,
Cavaleiro e Comendador. Esta
nomenclatura se explica facilmente.
Ao contrário de algumas ramificações
rosacrucianas igualmente importantes
- que acentuam mais a via do
alquimista a Rosa-Cruz de
Foto de Emile Dantinne pertencente à
Hiéronymus enfatizava a via
"Coleção M.L. Délntinne", de pro­
cavaleiresca. Para ele "a R+C é uma
priedade de sua filha.
ordem de cavalaria cristã, fiel à tradição
do cristianismo, que se considera como a guardiã do Espírito Santo".

Para ingressar na Rosacruz Interna, no entanto, era necessário que os


aspirantes passassem pelas provas de uma outra organização, concebida
como uma espécie de átrio, de pátio externo, a Ordem Rosacruz
Universitária, freqüentada principalmente por estudantes, e composta de
nove graus: Zelator, Theoreticus, Practicus, Philosophus, Adeptus Minor,
Adeptus Major, Adeptus Exemptus, Magister Templi e Magus. Uma vez
concluído o grau de Magus, o aspirante poderia postular admissão à
Rosacruz Universal, ou Interna, sem ter qualquer certeza de que seria
realmente recebido. Hiéronymus foi também um alto iniciado na tradição
pitagoriciana, e despertou na Europa a Ordem Pitagoriciana, a qual ficou
também conhecida, na época, como Ordem Hermetista Tetramegista e
Mística (O.H.T.M.), ou ainda Ordem de Hermes. A Ordem Pitagoriciana
era coordenada pelo Quadrado da Perfeição, formado pelo Sublime Grão­
Mestre da Ordem e seus três secretários ou Superiores Incógnitos, e compunha­
se de quatro graus. Os três primeiros Loja Pitagoriciana, Soberano
-

Captt-ulo Ocuft.ist-a e Grande Areópago Hermetista - eram presididos, cada

26 -·----
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

um, por um dos Superiores Incógnitos. O quarto e último grau - Sublime


Consistório Luminoso - funcionava sob a supervisão direta do próprio
Grão-Mestre da Ordem. Tardiamente, Dantinne foi iniciado nos ritos do
Martinismo. Primeiramente na Ordem Martinista e Sinárquica, e depois na
Ordem Martinista Tradicional (no Brasil, Tradicional Ordem Martinista).
Entretanto, até hoje pairam dúvidas sobre uma eventual filiação do mestre
à Maçonaria. Alguns historiadores sugerem que Dantinne veria com maus
olhos a abolição do conceito do Grande Arquiteto do Universo pc.,r
determinados grupos maçônicos europeus (particularmente na França), mas
que poderia ter-se filiado a um dos ritos de Mênfis-Mizraim,
eminentemente místicos e diretamente ligados à tradição esotérica do
Antigo Egito.

SACERDOS IN /ETERNUM
De todo modo, durante muitos anos, Émile Dantinne animou as atividades
tradicionais da velha Europa, e dedicou-se profundamente às suas pesquisas
pessoais. Ele era um especialista na Medicina Espagírica, uma forma de arte
terapêutica baseada nos princípios da alquimia. Conhecia também em
profundidade os princípios do magnetismo psíquico (técnicas que deram
origem à moderna hipnose) e a arte da radiestesia. Conta-se mesmo que,
durante a 2ª Guerra Mundial, ele teria colaborado com a Resistência,
colocando seus conhecimentos radiestésicos a favor de seu amigo Léon
Lelarge (Sâr Agni), membro destacado na luta contra os nazistas, para ajudá­
lo nos projetos de sabotagem e destruição ferroviária.

A respeito de suas habilidades psíquicas, seu principal discípulo, Jean


Mallinger (Sâr Elgin), conta algumas passagens bastante curiosas. A respeito
de uma delas, Mallinger diz: "Ele possuía um dom singular, que seu falecido
amigo Léon Lelarge e eu mesmo pudemos verificar com nossos próprios olhos:
podia fazer parar rapidamente a chuva e enviar as nuvens para outra região.
Sem dúvida, isto parecerd inverossímil para alguns; entretanto, com a melhor
boa fe, só posso dizer que vi!"

Mas o maior dos mistérios relativos a Sâr Hiéronymus aconteceu num belo
dia de maio de 1933 e deixou sem ação mesmo os seus discípulos e
colaboradores mais íntimos. De repente, sem qualquer explicação, ele
decide abandonar tudo! Resolve cessar todas as suas atividades esotéricas,
sem dizer em nenhum momento o porquê desse estranho gesto. Numa carta
a Lelarge, Jean Mallinger dá uma idéia do desespero que tomou conta de

27
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

todos. "Eu lhe perguntei francamente a respeito - diz Mallinger. Esta


notícia, vinda de um iniciado que é sacerdos in &ternum parece-me tão
surpreendente, que prefiro acreditar numa prova cruel". A resposta de
Hiéronymus é uma só: "Tratai de sondar o insondável que nos dá a mão por
sobre o muro".

Não se sabe ao certo o que aconteceu. Se foram os insistentes pedidos dos


discípulos, ou o fruto de suas reflexões pessoais, mas o fato é que
Hiéronymus voltou atrás em sua decisão. Da mesma forma repentina, e sem
qualquer explicação. Na verdade, ele saiu da crise com um estranho e
renovado vigor. Dá uma nova dimensão ao esoterismo na Bélgica,
intensifica seus contatos com os confrades além das fronteiras de seu país e
mesmo do continente, e dá nascimento àquilo que ficaria conhecido como
a grande obra de sua vida: a Federação Universal das Ordens e Sociedades
Iniciáticas - FUDOSI .

Os PRIMEIROS PASSOS
Na verdade, Hiéronymus já vinha aprofundando, desde alguns anos antes,
seus laços de amizade com representantes de outras ordens esotéricas.
Dentre esses contatos, destacaram-se especialmente os maut. idos com
Harvey Spencer Lewis - Imperator de um ramo rosacruciano das Américas,
a AMORC - e com François Jollivet Castelot, homem de profunda visão
social e presidente da Sociedade Alquímica de França. Desses contatos
surge, então, uma estreita ligação e, logo, lima franca colaboração, que serão
as bases apropriadas para a formação da FUDOSI. Num gesto de
reconhecimento, Hiéronymus oferece a Lewis um diploma de honra da
Faculdade Livre de Filosofia Iniciática, sob os auspícios da Ordem Soberana
da Rosa+Cruz Ocultista e Dourada, e da R+C Universitária da Bélgica,
onde atesta os conhecimentos do Imperator R+C das Américas no
Hermetismo Egípcio, na Ciência Oculta e Cabalística, e na Magia Ritual,
manifestados no interesse da humanidade. A seguir, inicia Spencer Lewis no
13° Grau R+C, e dá os primeiros passos, abrindo as atividades do Convento
Internacional das Ordens e Fraternidades Iniciáticas, do qual participam
apenas as ordens rosacrucianas. Pouco depois, faz abrir o Convento do
Supremo Conselho Internacional da Ordem Maçônica de Mênfis-Mizraim.
Paralelamente, acontece uma assembléia martinista, durante a qual
. Hiéronymus e Lewis, juntos, são recebidos na Ordem Martinista e
Sinárquica. Todas essas preliminares dão nascimento à FUDOSI, que
trabalha sob a coordenação de um conselho supremo especialmente eleito e

28
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

composto de três imperatores: Sâr Hiéronymus (Émile Dantinne, lmperator


da Europa), Sâr Alden (Harvey Spencer Lewis, lmperator das Américas) e Sâr
Yésir (Victor Blanchard, lmperator para o Oriente e para as ordens afiliadas).

VOLTANDO AO SILf.NCIO
A FUDOSI realizou o seu trabalho durante dezessete anos, e foi
particularmente maltratada durante a 2ª Guerra Mundial, com a perda de
alguns de seus oficiais, mortos em combate, nos campos de concentração,
ou pela Gestapo, sob tortura. Mas para Dantinne, o final da Guerra foi
especialmente árido. Por um mal-entendido, e sob o calor e o entusiasmo da
libertação, ele foi '"injustamente acusado de colaborar com os nazistas. Os
mais afoitos cortaram rente e à força a sua bem cuidada barba, e Dantinne
não reagiu. Chocado com a acusação, ele apenas chorava copiosamente, sem
�onseguir falar. Foi a .�- }.: :
Julgamento e seu · '"",,�
advogado, Jean Mallinger · ·

(Sâr Elgin), provou diante


de todos que Dantinne
não apenas estava acima
de tão sórdida acusação,
como havia participado
ativamente da Resistência.
Ele aceitou silencio­
samente os pedidos
oficiais de perdão por
parte do governo belga,
mas nunca mais quis
retomar o cargo de
bibliotecário de Huy Sur
Meuse, do qual fora
suspenso durante o
processo, e que tentaram
lhe devolver rapidamente,
depois de sua absolvição.

Com a dissolução da
FUDOSI, no início dos _:�
anos 50 (vide anexo sobre
·' '

Foto de Emile Oantinne pertencente


a Federação), Hiéronymus ao acervo pessoal de sua filha.

29
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

desapareceu novamen(e no silêncio e no ;inonim:Ho que ele (anw amava. Ao


que se diz, viveu seus úhimos dias estudando e medicando em Huy Sur
Meuse, calvez ao lado de sua filha Marie-Louise e alguns poucos discípulos,
não na solidão, mas na sofitude que parecia ser ;i sua vocação. Cenamente
viu com sa(isfação os resultados de seu trabalho florescerem nos anos que se
seguiram, seus ideais de transformação social pela cultur;i e pelas artes
tradicionais.

E foi talvez assim satisfeito que, no dia 21 de maio de 1969, com a idade de
85 anos, Émile Dantinne, Sâr Hiéronymus, "o homem que não sabia nada",
tratou de sondar o insondável que nos dá a mão por sobre o muro.

FUDOSI - uma federação de iniciados

m 14 de agosto de 1934, representantes de quawrze das mais impor­


Etantes fraternidades tradicionais do Ocidente reuniam-se em Bruxelas,
Bélgica. Estavam abertos os trabalhos da Federatio Universafis Dirigens
Omnes Ordines Societastes que Initiationis, chamada mais correntemente
Federação Universal das Ordens e Sociedades Iniciáticas, a FUDOSI.
Representadas nesse convento de abertura figuravam as seguintes ordens:
Ordem da Rosa-Cruz Universal (ou Interna), Ordem Cabalística da Rosa­
Cruz, Confraria dos Irmãos Iluminados da Rosa-Cruz, a AMORC da
América e seu círculo de cavaleiros da Milícia Crucifera Evangelica, a
Ordem Antiga e Mística da Rosa-Cruz (Suíça), Sociedade Alquímica de
França, Ordem dos Samaritanos Incógnitos, Ordem Hermetista
Tetramegista e Mística (ou Ordem Picagoriciana), Ordem Martinista e
Sinárquica, Fraternidade dos Polares, Ordem Maçônica Oriental de Mênfis­
Mizraim (chamada da "estrita observância") e Ordem Maçônica Mista de
Mênfis-Mizraim. Constituído um Supremo Conselho Consultivo, formado
por doze membros das ordens representadas, este procedeu à eleição dos crês
imperatores da Federação, e foi organizada uma Grande Chancelaria, por
meio da qual Marc Lanval (Sâr Héfios) possibilitaria a comunicação cons­
tante entre as fraternidades-membros.

A FUDOSI foi a concretização de um sonho de Gérard Encausse (Papus),


projetado em 1908, por ocasião do Congresso Espiritualista, que o falecido
mestre havia presidido. Suas principais metas eram, por assim dizer, a sepa-

30 -----
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

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1
Altos dignitários da FUDOSI reunidos em conclave

ração do joio e do trigo, numa época em que - mais ou menos como acon­
tece hoje - aventureiros, de boa ou má-fé, criavam a seu bel prazer ordens
"iniciáticas" sem qualquer fundamento e sem quaisquer raízes tradicionais
no passado. Além disso, os delegados da Federação pretendiam também
colaborar para a trànsformação social, através da cultura, da ciência, dos
princípios esotéricos e das artes tradicionais.

Mas nem tudo foram flores na vida da FUDOSI. Além das agruras da 2ª
Guerra Mundial - que perseguiu duramente a Federação, forçando-a à
clandestinidade - houve conflitos internos que culminaram em pelo menos
três expulsões e, mais tarde, em pelo menos urna reconciliação. Entretanto,
apesar desses poucos embates, o organismo prosseguiu em harmonia os seus
trabalhos até 14 de agosto de 1951. Nesse meio-tempo, outras ordens ingres­
saram nos trabalhos, e algumas se afastaram. Um dos imperatores - Harvey
Spencer Lewis (Sâr Alden) - faleceu prematuramente e foi substituído por
seu filho, Ralph Maxwell Lewis (Sâr Validivar). A díssolução da FUDOSI,
depois de dezessete anos de atividades, foi conseqüência da conclusão, pelos
delegados, de que ela já havia cumprido o seu papel e não tinha mais motivos
para continuar ativa. Alguns incidentes contribuíram particularmente para
essa evidência. Um deles foi a discordância entre Sâr Hiéronymus e St.1

31
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

Validivar a respeito de um ponto doutrinário importante: a disposição dos


corpos físicos dos iniciados, após o seu falecimento. Para Validivar, assim
como para a AMORC, o mais recomendável seria a cremação, uma maneira
rápida, simples e eficiente de se cumprir o ciclo natural de dissolução. Para
Hiéronymus - e para a R+C Universal - a cremação era um processo rápi­
do demais para a consciência em desprendimento final, e deveria ser evitada.
Longe de considerarem esses e outros incidentes corno rivalidades, os dois
imperatores, assim como os demais delegados da Federação, chegaram à con­
clusão de que a FUDOSI poderia, a partir daí, correr o risco de fazer uma
organização prevalecer sobre a outra, contrariando dessa forma os seus
próprios estatutos, que previam total independência das ordens-membros.

Assim, assinaram a ata de dissolução os representantes das seguintes ordens


- que compunham então a FUDOSI em sua fase final: Ordem da Rosa­
Cruz Universal, Ordem da Rosa-Cruz Universid.ria, Ordem Pitagoriciana,
Ordern Martinista e Sinárquica, AMORC, Ordem Martinista Tradicional,
Igreja Gnóstica Universal, Sociedade de Estudos e Pesquisas Templárias,
Ordem Cabalística da Rosa-Cruz, Sociedade de Estudos Martinistas, União
Sinárquica da Polônia e a Militia Crucifera Evangelica.

Hoje em dia, pouco se sabe a respeito da sobrevivência dessas organizações.


Algumas foram legal e tradicionalmente absorvidas pela AMORC, para escapar
a um possível desaparecimento, pelas limitações do pós-guerra. Este seria, por
exemplo, o caso da Rosa-Cruz Universitária, que estaria perpetuada na
AMORC através da sua Universidade Rose-Croix. A Ordem Pitagoriciana
encontra-se representada hoje em alguns poucos grupos: apresenta uma
ressonância muito específica na OST I (uma expressão atual da antiga Ordem
do Templo), em alguns cenáculos muito secretos espalhados pela Europa -
notadamente Suíça, Bélgica e Itália - e perpetua-se também pela própria
Ordem Hermetista Tetramegista e Mística (dita Ordem de Hermes, ou Ordem
Pitagoriciana), que mantém grupos fechados na Bélgica. Há ainda uma carta
patente em poder da AMORC, que dá a esta ordem poderes para reconstitu­
ição de um ramo da tradição de Pitágoras. Esse documento foi concedido,
ainda nos tempos de atividade da FUDOSI, ao próprio Harvey Spencer Lewis.
Entretanto, ao que tudo indica, jamais foi formalmente utilizado, ao menos
como ordem devidamente constituída. Quanto à Militia Crucifera Evangélica,
sabe-se que trabalhou até há pouco tempo junto à AMORC como um restri­
to círculo de cavaleiros, com funções exclusivamente operativas e militantes.

32 --·---
O HOMEM QUE NÃO SABIA NADA

Dos movimentos martinistas, o mais ativo é a Ordem Martinista Tradicional,


que atua hoje sob parrainage da AMORC. Embora em menor escala - mas
com atividades igualmente importantes - a Ordem Martinista e Sinárquica
encontra-se também presente rias Américas e na Grã-Bretanha. Quanto à
União Sinárquica da Polônia, parece ter desaparecido completamente, em­
bora haja quem lhe atribua uma participação secreta nas grandes transfor­
mações sociais polonesas da década de 80. O Martinismo permanece ativo
também por meio dos círculos martinistas livres, uma forma bastante tradi­
cional de organização, mas cuja participação na FUDOSI foi aparentemente
inexistente. No que toca à Rosa-Cruz Universal, de Hiéronymus, nunca
mais se ouviu falar dela. Mas há autores que sugerem que a Ordem teria
entrado não num adormecimento, mas em silêncio, e existiria até hoje, de
forma muito secreta, sob uma fachada talvez editorial. Segundo Gérard
Galtier, ela teria sobrevivido à FUDOSI, e funcionaria hoje sob a forma de
círculos autônomos e confidenciais, e também por meio de livres iniciadores,
trabalhando isoladamente, que se encontram com seus confrades apenas de
tempos em tempos. A revista belga L1nconnues, hoje não mais publicada,
teria sido uma de suas manifestações externas.

No final do século passado, mais especificamente nos anos 80, algumas


ordens tradicionais - agora não apenas do Ocidente, mas também do
Oriente Médio, do Extremo Oriente e da África Negra - teriam dado iní­
cio a conversações, no sentido de criarem uma nova federação. Tratava-se da
FIMIT (Féderation Internationale des Mouvements Initiatiques et
Traditionnels). Não se sabe que rumo tomaram tais entendimentos. É pos­
sível que os dias de hoje - um pouco abusivos, é verdade - exijam a
existência de uma nova FUDOSL Mas talvez seja preciso que surja alguém
à altura de Émile Dantinne, para empreender, com sabedoria e yustiça, um
trabalho que poucos homens, além de Sâr Hiéronymus, poderiam realizar.

Matéria inédita publicada pela primeira vez


na edição lusófona de I..:lnitiation

33 -- -
O DISCURSO TEOSÓFICO DE JACOB BOEHME

Pierre Deghaye

cradição que iremos aqui evocar é a


A da teosofia alemã. Seu fundador
foi, na verdade, Jacob Boehme (1575-
1624). Ela se perpetuou, muito tempo
após a sua morte, na filosofia sagrada de
Friedrich Christoph Oetinger (1702-
1782), depois na obra de Franz von
Baader (1765-1841). É, no entanw, ao
discurso teosófico em Boheme que esta
exposição será consagrada.

A teosofia de Boehme é uma teologia


mística. Ela se articula sobre um grande
tema da mística cristã: o nascimento de
Deus na alma humana, que cor­
responde ao segundo nascimento do
homem. Mas, por outro lado, o teósofo
descreve igualmente o nascimento de
Deus anteriormente à criação de Adão.
Antes de engendrar-se nas almas Jacob Boehme, o fundador
humanas, Deus nasce numa alma da teosofia alemã
universal que Boehme diz eterna1 e que
se situa, na verdade, entre a Eternid:ide perfeita e o tempo de nosso mundo.
Esta alma primordial é emaruda qu:indo da criação da alma humana.

A alma eterna não é, de imediam, o lug:ir onde Deus poder;) nascer, da mesma
forma que nossa alma hum:ina não
em seu estado primitivo nesse mundo,
é,
o templo do glorioso acontecimento. É necess:írio que essa morada seja
construída. A alma universal se forma a partir de graus sucessivos, que são em
número de sete. O teósofo descreve a fo r m açã o desse mundo original, que será

1 O;, rri/Jus p,.fncipiis 1 O, 37, P"'ra os diacurcas d" Eloh"m<i r<irnetemos às ohrns completas: Samtliche
Schriften, 11 volumes, Stuttgart, Frommann, 1955 1961, fac-símile da edição de 1730, com
introdução de Will-E::rich Peuckert. Para c'lda obra. indicamos eventualmente a parte (algarismos
romanos), seguida pelo capítulo e, enfim, pelo parágrafo.

34
JACOB BOEHME

o primeiro lugar da manifestação divina. Há uma analogia perfeita entre essa


cosmogonia mística e a instauração do reino de Deus na pessoa humana.

Deus nasce ao mesmo tempo em que se edifica seu templo. Não poderia
haver revelação fora desse nascimento de Deus e dessa fundação. Para que a
Divindade se revele, é necessário que Deus nasça e que ao mesmo tempo se
edifique a casa que Deus irá habitar. ·A revelação de Deus é seu nascimento
e seu estabelecimento. Ela se cumpre inicialmente na alma eterna. E irá se
reproduzir nas almas humanas.

O discurso místico se aplica ao nascimento de Deus na alma humana. No


entanto Boehme emprega a mesma linguagem quando evoca o divino
engendramento na alma eterna. O que se dá anteriormente à existência das
almas criadas, aparece como uma projeção às avessas da experiência
espiritual do homem.

Em suma, Deus não se revela nunca numa alma que não seja o lugar da
manifestação primordial ou o fundo da pessoa humana. É por isto que a
ciência de Deus, que se oferece no plano da alma primordial emanada, é
também uma teologia mística. No entanto a palavra teosofia é a que melhor
traduz a objetivação, ao nível da alma eterna, da revelação recebida na
subjetividade do homem. O discurso místico é o discurso teosófico.

A alma eterna é a alma de Deus. Deus se reveste dessa alma como de um


corpo para se manifestar. A alma emanada é o corpo sutil no qual Deus nasce
no começo de suas vias. Aplicada a este nascimento, a teologia mística
torna-se uma teosofia. Mas o mesmo se dá quando ela fala de Deus
nascendo na alma humana, porque o advento do reino de Deus no homem
é descrito segundo o modelo da cosmogonia primordial. A revelação é, nos
dois planos, ao mesmo tempo, uma cosmogonia e uma teogonia.

O discurso teosófico é o desígnio do homem sobre Deus manifestado no


mundo criado e no mundo emanado. Ou, se o homem fala de Deus, é
porque Deus lhe fala. O objeto da teosofia é também o discurso de Deus.

A palavra de Deus está fixada na Bíblia. O discurso teosófico não se cria ex

nihilo2• Ele se constitui materialmente a partir da Escritura. Entretanto a


revelaça:o escrita permaneceria letra n1orta se Deus não falasse também cm

2 A expressão latina ex nihi/o significa a pertir de alguma coisa. (N.T.)

35
JACOB BOHEME

nós. O lugar no qual Deus se comunica segundo sua palavra, não é somente
a página do livro, é também, e principalmente, o santuário da alma.

Deus fala na alma eterna, depois na alma humana. Mas a alma eterna está
compreendida na alma humana. Ela é seu núcleo precioso. O homem
representa assim, quando realizado, a plenitude da manifestação divina. O
homem é o livro no qual o discurso de Deus se enuncia inteiro. A totalidade
da revelação está no homem3.

Emanada ou criada, a alma não é somente o lugar do discurso divino. Ela é


o seu fruto. Ela é a palavra de Deus, como a Escritura, mas sob um outro
aspecto. A alma eterna é o Verbo pro.ferido ao nível da emanação4• A alma
humana é o Verbo reexprimido sob uma forma criada5.

Deus se faz conhecer por seu Verbo, por um lado, na materialidade da


Escritura, por outro, nos dois planos da cos mogon ia: a emanação e a
criação. O Verbo de Deus se exala e produz a alma. É sob a vestimenta da
alma que Deus se manifesta. É por intermédio da alma que a Divindade se
torna perceptível. Não há aproximação de Deus que não seja no fundo de
uma alma. É lá que refulge o Espírito.

Para Boehme a alma não é um princípio imaterial. Ela é a substância d.a qual
procedem todas as coisas. A alma é uma substância, ou seja, um tecido de
qualidades ou de propriedades sensíveis. A substância da alma é sua
sensibilidade. Para Boehme, a alma é sempre uma alma sensível, mesmo
quando ela é habitada pelo Espírito de Deus.

A realidade da alma está nas qualidades sensíveis que pré-existem às coisas


e que determinarão seu ser particular. Mas a alma é também o sensorium
graças ao qual estas qualidades são percebidas. O próprio Deus se dota
deste sensorium a fim de avaliar como ele será percebido. Sem a realidade
sensível de uma alma, não haveria nenhuma comunicação entre a
Divindade e qualquer ser.
Naturalmente deve-se distinguir entre dois níveis dos sentidos. A alma

3 Psychologia vera (Viertzig Fragen von der Seelen) 1, 153; Epistolae theosophicee 20, 3.
4 Mysterium Magnum 6, 19.
5 lbid. 15, 16.

31�
JACOB boehme

tenebrosa possui apenas uma sensibilidade grosseira. A alma luminosa se


define pelos sentidos espirituais e pelas percepções que lhe convêm. Boehme
transpõe os dados da espiritualidade no plano de uma alma universal que
aparece como a alma de Deus conhecendo-se a si mesma, ao mesmo tempo
em que é conhecido.

A alma é a vestimenta sensível com a ·qual o Espírito se cobre para tornar-se


perceptível. O Espírito puro é absolutamente indiscernível. O Espírito só
pode ser apreendido se ele irradia na substância de uma alma. É da realidade
sensível da alma que se alimenta o discurso sobre Deus. Falamos de Deus
seguindo as qualidades sensíveis que sua presença faz desabrochar em nós, e
os sentidos que ela exalta. Mas toda essa realidade sensível é
conseqüentemente a matéria do discurso que o próprio Deus pronuncia. É
por ela que Deus se expressa de maneira viva, substancial. Se Deus só se
expressasse na palavra escrita ele não seria conhecido.

Deus fala. Sua


' palavra proferida é o mundo emanado, depois o mundo
criado. O mundo emanado é a substância da alma eterna da qual Deus se
reveste, como de um corpo, para manifestar-se. Saída da boca de Deus, a
palavra é esse corpo. Depois a palavra se reexprime. Ela é então o mundo
criado, saído da substância primordial. A natureza criada é a forma
exteriorizada da primeira palavra. O primeiro mundo permanece, porém,
o núcleo do segundo. Ternos, portanto, dois textos e duas leituras do
discurso de Deus. O texto aparente é nosso mundo criado, visível. Sua
materialidade corresponde àquela da Escritura. E sob essa aparência
enuncia-se o discurso místico de Deus. Para entendê-lo é preciso
reencontrar a realidade primeira da palavra.

A alma é a natureza6. A alma eterna é a natureza eterna. Nossa natureza em


processamento. Ela é a sua periferia. A natureza eterna é o núcleo da nossa
natureza visíveF. As duas naturezas são a substância do discurso de Deus.
Elas são, ao mesmo tempo, a realidade concreta de nosso discurso sobre
Deus, em dois níveis diferentes.
A natureza perfeita encontra-se oculta sob a aparência de nosso mundo.

6 De electione gratiae 9. 6.
7 De triplici vita hominis 5, 16; Sex puncta theosophica IV, 6, 11; Mysterium Megnum, Vorrede
(prefácio), par. 3-5; Apologia contra Balth. Tilken 1, par. 179.

37
JACOB BOEHME

Apesar da ruptura de nível, h;1 entre os dois planos do discurso divino uma
analogia sem a qual a realidade superior escaparia totalmente ao homem.
Nossa natureza remete à natureza eterna da qual ela é o reflexo. É assim que
no símbolo, o corpo aparente, representado pela letra, remete a u1n outro
corpo. Em Boehme a noção de símbolo se define segundo esta analogia
entre duas realidades sensíveis, uma das quais é transparente em relação à
outra. A vida divina se exprime na realidade superior. É nessa perspectiva
que a teosofia se apresenta como uma teologia simbólica.

A teosofia toma seus símbolos da nossa natureza e ela os explicita por uma
outra natureza que é o lugar próprio da revelação. A teosofia é uma filosofia
da natureza elevada à categoria de uma teologia. O teósofo transpõe a
natureza. Ele faz dela uma supranatureza que é a natureza divina CUJOS
eleitos tornam-se partícipes e da qual nosso mundo é o reflexo.

Por um lado, nossa natureza é transposta. Mas, por outro, ela permanece o
que ela é. Há, pois, duas naturezas, cada uma das quais representa um lugar
ontológico e um modo do discurso divino.

Nosso mundo é um texto que re1nete a um outro texto. É um escrito que


remete não diretamente ao Espírito, que ele não permite atingir, mas a uma
outra escritura que o manifesta. O Espírito, em si, é inatingível. Ele só se
apreende irradiando em um corpo.

A dualidade não é simplesmente entre o escrito e o Espírito. Ela se encontra


entre dois modos de realidade sensível que representam dois níveis da
palavra. Boehme não opõe somente o Espírito e o corpo. J:.. oposição é entre
dois corpos, um que ofusca o Espírito, o outro que o exprime na luz.

O teósofo encontra na Bíblia o texto do discurso divino que se materializa


em nossa natureza visível. A Bíblia e o livro da natureza se confirmam. Os
símbolos contidos na Escritura e os que nos oferece o espetáculo de nossa
natureza, são os mesmos. O exemplo mais eloqüente é o do fogo e da luz.
Quando se encontra escrito na Bíblia que Deus é um fogo consumidor, esse
fogo é exatamente aquele que se manifesta na natureza. O mesmo se dá
quando o texto bíblico afirma que Deus é a luz. Para o teósofo, a Bíblia fala
da natureza. Deus só se revela n;i. natureza8. Fora da natureza, a Divindade
permanece um Absoluto p ara sen1pre não cognoscível, como o En-Soph, o

8 De e/ectione gratiae 9, 12.

38
JACOB BOEHME

Infinito dos cabalistas.

A palavra de Deus toma corpo nos dois mundos, um emanado, o outro


criado. A alma humana compreende as duas naturezas. Ela é inicialmente a
natureza criada. Em seguida ela é, ao menos em poder, a natureza eterna.
Sobre esses dois planos, quer falemos do homem, quer da natureza, é o
mesmo discurso. O corpo visível do homem representa a natureza criada.
Ele é a letra do texto divino. O corpo de luz, que é o fruto do segundo
nascimento, é a substância mística desse discurso.

Eis, pois, os diferentes aspectos de um discurso que chamamos o discurso


teosófico. Iremos precisá-los, abordando-os na seguinte ordem: o discurso
sobre o nascimento de Deus na alma humana, o discurso sobre Deus ao
nível da revelação suprema no ciclo setenário da natureza eterna, o discurso
de Deus nas duas naturezas.

* *

A teosofia de Boehme apresenta-se como uma teologia inspirada. Ora, a


inspiração que a teosofia se reivindica não é um carisma ocasional. Se o Espírito
Santo anima seu discurso, é porque Deus nele estabeleceu-se de maneira
habitual. A experiência da qual ele tira proveito é a do segundo nascimento9. O
homem nasce novamente e, ao mesmo tempo, Deus nasce nele, tendo elegido
domicílio em sua alma transformada. Boehme parte desse duplo nascimento.

Boehme escreve para leitores. Como será ele compreendido?

Na verdade somente os eleitos que tiverem o privilégio do mesmo


nascimento poderão perceber realmente seu propósito. As almas só se
comunicam perfeitamente entre elas se cada uma tiver chegado ao nível
mais elevado do Ser. Elas então se compreendem porque todas são uma
mesma carne, um mesmo corpo.

Todo homem que nasce de Deus se encarna numa carne incorruptível,


absolutamente distinta da sua carne mortal. O corpo de luz que ele reveste
representa a natureza perfeita tornada a substância de uma alma humana.

9 Epistolae theosophicae 20. 19-27.

39
JACOB BOEHME

Esse corpo glorioso é a alma encarnada. Sua carne é a natureza divina da


qual os eleitos se tornaram participantes10• A alma superior que o habita é a
Sabedoria. É desta natureza tornada sua própria carne que emana a palavra
do homem nascido de Deus11•

Esta palavra é o Verbo divino, reexprimido pelo homem. É na natureza


divina da qual ele fulgura, que se funda a legitimidade do discurso místico,
sua objetividade e sua universalidade. No entanto, para percebê-la quando
ela é proferida por outrem, é necessário tê-la já recebido em seu próprio
âmago. A comunicação entre as almas só pode ser sua comunhão segundo a
graça irradiada em cada um. A natureza perfeita é a substancia da graça.

A universalidade do discurso só é detiva ao nível das almas renovadas. De outro


modo, cada um só exprime a si mesmo, s egu ndo seu eu insignificante. Ele é
incapaz de dizer a verdade porque ela n:ío esd nele. Ele emite apenas uma
opinião. A verdade é una. As opiniões s:J.o neccss:iriamente contraditórias.

Entretanto Boehme se dirige também a criaturas que ainda não estão


regeneradas. Para elas, seus escritos têm um valor de despertar. Em todo
homem há a semente que a voz de Deus projetou no seio de Eva no paraíso,
após a queda, e que cresceu no seio de Maria12• Todas as almas são chamadas
à maternidade de Maria. Na obra escrita do teósofo o verbo humano renova
a promessa feita no paraíso: a semente da mulher esmagará a cabeça da
serpente. Na Bíblia, esta palavra anuncia o nascimento do homem novo.
Naturalmente a promessa não é senão a letra da palavra. Entretanto,
revivificada pelo Espírito, a letra desperta as almas.

Boehme anuncia o reino de Deus na perspectiva do fim dos tempos que ele
acredita próximo. Ora, o advento do reino de Deus é a multiplicação das
conversões. Não se trata de um advento que sobreviria independentemente
dos homens. É necessário que cada um nasça de novo. Boehme se dedica a
despertar as almas para provocar esses nascimentos segundo o Espírito de
Deus. Sua teologia mística e seu discurso profético caminham paralelamente.
Boehme não escreve apenas para os outros. Sua obra é um memorial no qual
ele objetiva sua experiência para si mesmo13• Seguindo esta finalidade, seu

1 O Segundo 2 Pedral. 4; De triplici vita hominis 6. 97-98.


11 /nformatorium novissimorum (Von den Letzten Zeiten) li, par. 40.
12 Segundo Gênese 3. 5. Ver nosso estudo Marie dans /'oeuvre de Jacob Boehme (Maria na obra de Jacob
Boehme). Cahiers de l'Université Saint Jean de Jerusalém, 6. Paris. Berg lnternational. 1980, p. 123.

40 --
--
JACOB BOEHME

escrito assume um valor de absoluto. Mas como objetivar o que se desenrola


no fundo mais secreto da pessoa? Para retomar a própria expressão de
Boehme, como escrever o Espírito14?

Boehme afirma haver recuperado o uso da língua primordial que possuía


Adão e que lhe permitiu nomear as coisas. Esta língua se perdeu. Ela é, no
entanto, devolvida ao homem que hasce do alto. Boehme a chama a língua
da natureza15. Trata-se, bem entendido, da natureza divina, anterior e
transcendente à nossa natureza. Essa natureza superior é a dos anjos.
Segundo seu corpo celeste, Adão era, ele próprio, um anjo. A língua da
natureza que ele falava, era a língua dos anjos.

O homem novo é o anjo manifestado na pessoa do fiel. Boehme se identifica a


esse homem novo que fala a língua dos anjos. No entanto ele se exprime em
alemão, considerando que o idioma de seus pais, como o hebraico, está próximo
da língua primordial16• Na verdade, Boehme se restringe a interpretar as palavras
alemãs segundo o conhecimento que sua maestria da língua primordial é suposta
dar-Lhe. Se essa língua celeste é ouvida, ela não é, efetivamente, reproduzida.

Na realidade Boehme se exprime numa língua simplesmente humana. Seu


discurso não ultrapassa os limites da linguagem dos homens segundo sua
natureza sensível. Os homens falam segundo sua sensibilidade. Ora, o que
caracteriza esta última é a alternância entre qualidades, propriedades ou
estados contrários: o amargo e a doçura, a aflição e a alegria, a luz e as trevas,
etc. Por outro lado, para Boehme, a inteligência do homem só se exerce por
seus sentidos, em qualquer nível que seja: a razão do homem terrestre é parte
integral de seus sentidos grosseiros, enquanto que o espírito do homem
novo se manifesta segundo seus sentidos espirituais. Esta diferença de nível
não deve nos escapar, mas permanece que em Boehme, é sempre a

13 Mysterium Magnum, Vorrede (prefácio), par. 1O.


14 Aurora. 3, 25.
15 Epistolae theosophicae 4, 27; ibid. 28. 11; Mysterium Magnum35, 47-48. Ver Wolfgang Kayser,
Bohmes Natursprache und ihre Grundlagen, em Euphorion, 31, 1930, pag. 521-562; Ernst Benz, Zur
metaphysischen Begründung der Sprache bei Jakob Bdhme, ibid., 37, 1936, pág. 340-357. O estudo
de Wolfgang Kayser foi traduzido (N.T.- para o francês) por Jean Launay na revista Poétique, Paris,
Seuil, 1972, nº 11, pág. 337-366, sob o título: La doctrine du langage natruel chez Boehme et sés
sources. Ver também Paul Hankameer. Die Sprache, ihr Begriff und ihre Deutung im 16, und 17,
Jahrhundert, Bonn, 1927.
16 Aurora 8, 73; Mysterium pansophicum 7, 6-1O.

41
JACOB BOEHME

sensibilidade que comanda o discurso. Afinal de contas, a inteligência, a


sensibilidade e o discurso são parte de um todo.

O Verbo de Deus fala no fundo da alma a língua da natureza. Iluminado


por esse discurso, Boehme interpreta as palavras alemãs. Que faz ele,
basicamente? Ele as corta em duas. Na palavraBarmherzigkeit (misericórdia),
por exemplo, distingue entre um e lemento tenebroso (Barm) e um outro
luminoso (herzigkeit)17• O processo parece ingênuo, mas mostra bem que
para Boehme, a natureza da linguagem se define sempre seguindo a
alternância dos contrários. E é o elemento tenebroso que vem inicialmente.
Para o teósofo, as trevas sempre precedem a luz. Ora, o Ser só se manifesta
no modo do discurso. Antes de revelar-se na luz, o Ser oculta-se nas trevas.
Antes de afirmar, o discurso nega.

A natureza perfeita, divina, é a própria substância da misericórdia. Ela é a


graça que se faz carne no homem novo. Ora, nesta altura, a dualidade
subsiste. Ela reina em toda natureza. Simplesmente, no reino da natureza
acabada, as trevas são ocultas na luz, como a noite no dia, enquanto que, ao
contrário, era a luz que não era visível. A dualidade permanece, é ela que
rege a natureza comq o discurso. A natureza é o discurso. É o Ser que se
exprime, que está inicialmente oculto, mas cuja finalidade é manifestar-se.

As trevas são sinônimas da discórdia. Quando a luz reina, a natureza é


harmoniosa. É uma outra natureza que é então manifestada. Entretanto as
qualidades sensíveis que formam sua substância são as mesmas que
anteriormente. Simplesmente, em lugar de opor-se, elas se unem
temperando-se mutuamente. Elas formam, assim, uma totalidade
harmoniosa 18.

Para o homen1, o supren10 conhecimento é a percepção desta hannonia no


seio da natureza perfeita, da qual ele mesmo tornou-se participante. Não há
conhecimento mais elevado. Deus n5o se revela fora de sua natureza.
Também não há discurso que o supere de maneira válida.

O homem novo é o homem encarnado segundo a natureza acabada que se


tornou sua própria carne. Seu corpo precioso é a fonte da revelação, pois ele é

17 Aurora 8, 72-79.
18 lbid. 8, 11-12.

42 --
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JACOB BOEHME

sensibilidade que comanda o discurso. Afinal de contas, a inteligência, a


sensibilidade e o discurso são parte de um todo.

O Verbo de Deus fala no fundo Ja alma a língua da natureza. Iluminado


por esse discurso, Boehme interpreta as palavras alemãs. Que faz ele,
basicamente? Ele as corta em duas. Na palavra Barmherzigkeit (misericórdia),
por exemplo, distingue entre um elemento tenebroso (Barm) e um outro
lurninoso (herzigkeit)17• O processo parece ingênuo, mas mostra bem que
para Boehme, a natureza da linguagem se define sempre seguindo a
alternância dos contrários. E é o elemento tenebroso que vem inicialmente.
Para o teósofo, as trevas sempre precedem a luz. Ora, o Ser só se manifesta
no modo do discurso. Antes de revelar-se na luz, o Ser oculta-se nas trevas.
Antes de afirmar, o discurso nega.

A natureza perfeita, divina, é a própria substância da misericórdia. Ela é a


graça que se faz carne no homem novo. Ora, nesta altura, a dualidade
subsiste. Ela reina em toda natureza. Simplesmente, no reino da natureza
acabada, as trevas são ocultas na luz, como a noite no dia, enquanto que, ao
contrário, era a luz que não era visível. A dualidade permanece, é ela que
rege a natureza comq o discurso. A natureza é o discurso. É o Ser que se
exprime, que está inicialmente oculto, mas cuja finalidade é manifestar-se.

As trevas são sinônimas da discórdia. Quando a luz reina, a natureza é


harmoniosa. É uma outra natureza que é então manifestada. Entretanto as
qualidades sensíveis que formam sua substância são as mesmas que
anteriormente. Simplesmente, em lugar de opor-se, elas se unem
temperando-se mutuamente. Elas formam, assim, uma totalidade
harmoniosa 18•

Para o homem, o supren10 conhecimento é a percepção desta hannonia no


seio da natureza perfeita, da qual ele mesmo tornou-se participante. Não há
conhecimento mais elevado. Deus n:io se revela fora de sua natureza.
Também não há discurso que o supere de maneira válida.

O homem novo é o homem encarnado segundo a natureza acabada que se


tornou sua própria carne. Seu corpo precioso é a fonte da revelação, pois ele é

17 Aurora 8, 72-79.
10 /bid. 8, 11-12.

42
JACOB BOEHME

de revestir-se dela para nela manifesrar-se.

A Divindade fora da natureza é a pura transcendência. Boehme não coloca


absolutamente em causa essa transcendência que é a Eternidade er eita, t f
2
sem começo nem fim. No entanto ela é para sempre incognoscível . E por
isso que ela escapa ao nosso discurso. Ela não tem nome. Falando com toda
propriedade, não se pode chamá-la Deus22. A Divindade suprema não se
manifesta. Para Boehme, Deus é Deus revelado. É a Divindade que se revela
no ato, quer dizer, cumprindo suas obras, inicialmente no mundo emanado,
depois na criação. O Deus de Boehme só se revela em suas obras. Mas fora
dessa revelação, dessa realização, a Divindade não é Deus.

Boehme evoca de maneira distante a Divindade que as teologias dogmáticas


apresentam como o Deus. Alguém cuja solidão é absoluta, a eternidade
perfeita, na qual ele não conseguiria ter movimento e que é superior às suas
obras, mesmo as mais elevadas. Ora, esse Deus cujos teólogos fazem objeto
de seus ensinamentos, é para ele totalmente incognoscível.

O discurso humano trai sua impotência quando ele atinge Deus em si. Os
atributos que os teólogos enunciam tradicionalmente parecem
insignificantes. Quer-se apresentar a Divindade suprema como o Deus Uno,
cuja unicidade é uma solidão que a torna incapaz de conhecer-se a si
própria, por não comunicar-se com seres para neles manifestar-se. Diz-se
que ela é imutável, sua imobilidade não é senão uma ausência de vida. O
Um primordial não é o Deus vivo23. Seu silêncio é o de uma Eternidade sem
voz. A Divindade suprema não é o Verbo que fala24. Em suma, essa pura
Deidade não é senão o nada25.

Quando Boehme fala do Nada, não o faz à maneira do Mestre Eckhart26.


Sua teosofia não se liga à tradição da teologia negativa que remonta ao
Pseudo-Denys. Esta última se fundamenta numa teologia positiva que a
precede. Antes de ser o Nada, Deus é o Ser. É por ser uma superabundância

21 De triplici vita hominis 4, 87.


22 De incarnation verbi li, 1, 8-9.
23 lbid li, 4, 9.
24 De triplici vita hominis 3, 21.
2'5 De sfgnatur1:1 rerum :J, 2.
26 Ver nosso estudo Jacob Boehme ou de la difficulté du discours sur Dieu, Recherches de Science
rnligieuse, Paris, janvier-mers 1979, tomo 67, nC1mero 1, pág. 12-13.

44
JACOB BOEHME

de Ser que a Deidade é evocada como se ela fosse o Nada; nenhum nome
lhe convém mais. Em Boehme dá-se o contrário. O Nada é o que ainda não
é o Ser e que só o será ao termo de um caminhar. Todo o movimento da
economia divina vai do Nada ao Ser que é a encarnação de Deus nas suas
obras. Em Mestre Eckhart dá-se o inverso: passa-se do Ser ao Nada.

Boehme não faz distinção entre as obras de Deus e a vida divina,


considerada na sua pura intimidade. Não há verdadeira vida Divina senão
em Deus manifestado em suas obras. E mesmo ao nível mais elevado, as
obras devem ser ditas exteriores: opera ad extra. De fato, desde o momento
em que a Divindade começa a manifestar-se, ela sai de si mesma27. Sua
primeira efusão dá nascimento à natureza eterna.

É exatamente ao primeiro movimento da Divindade diante de sua


manifestação que se prende o verdadeiro discurso sobre Deus. Alguma coisa
vai nascer, onde o Nada poderá manifestar-se28. Ao mesmo tempo em que
se formará essa alguma coisa que será uma morada para a Divindade. O
próprio Deus vai nascer. A pura Deidade ainda não é Deus.

A primeira fase da emanação primordial é negativa. Ela manifesta a espera de


Deus sentida dolorosamente como sua ausência. A Divindade inacessível não
é mais evocada dentro de um propósito abstrato que era um falso discurso. Eia
é agora o Deus oculto, ou seja, um Deus que se recusa. Ela não é mais uma
claridade ideal. O Deus absconditus é uma transcendência tenebrosa e temível.

Deus oculto por que? A criatura ainda não existe. Seguramente, mas a
emanação primordial só tem sentido diante do homem e de toda a criação
que ele irá representar. Se a Divindade sai de si mesma, é apenas com ó fim
de ser conhecida pelo homem e de nele conhecer-se.

O Deus absconditus se identifica às trevas com as quais se vela. A manifestação


divina começa na noite. Para Boehme as trevas são sinônimas de pavor. As trevas
manifestadas na raiz da natureza eterna são o arquétipo do inferno. Nesse primeiro
início, a Divindade manifesta-se segundo sua cólera. As trevas são a expressão da
cólera de Deus, enquanto que a luz será a forma visível de seu amor. O Deus
oculto é o Deus que, recusando-se à criatura, parece consagrá-la às penas eternas.

Boehme tem consciência de blasfemar ao colocar as trevas antes da luz. Não

27 Sex puncta mystc


i a IV. 6, 7; Ouaestiones theosophicae 1, 2.
28 Mvsterium pansophicum li.

45
JACOB BOEHME

é a linguagem do diabo que dá a prioridade ao seu reino? Boehme acusa-se


de falar co1no Satã29. Entretanto ele usa resolutamente esse discurso.

Boeh1ne 1nostra Deus revelando-se no ato, quer dizer, à medida que suas
obras se realizam - inicialmente no mundo emanado, em seguida no
mundo criado. A vida divina se exprime nesta realização. Ela se manifesta,
pois, segundo um porvir, e não mais no ato puro da teologia medieval que
se concebia além de qualquer mudança, de qualquer movimento, de
qualquer tensão. A vida divina se revela seguindo aspectos sucessivos
representados nos sete graus da natureza eterna.

Certamente se os aspectos da vida divina são inicialmente revelados


isoladamente: um após o outro, eles aparecem reunidos no sétimo grau do
ciclo septiforme. Então o porvir cessa. Na plenitude final, todos os graus são
simultâneos. Entretanto o discurso teosófico exprime perfeitamente essa
contemporaneidade, pois ele se baseia na sucessão que descreveu
anteriormente. Reúne-se o que se havia inicialmente separado. Isto é a
marcha normal do discurso humano.

O que o discurso teosófico descreve de maneira brilhante não é uma


perfeição dada a priori, mas o movimento do qual ela é o termo. Por outro
lado, ele se engana quando contra sua própria lógica, se dirige ao soberano
bem que as teologias definem segundo sua pureza primeira. Na pena de
Boehme, a noção pretensamente objetiva desse Deus das teologias
dogmáticas esvazia-se de todo conteúdo. Ele permanece uma entidade vaga
que não é mais o Deus bom, senão o princípio das trevas, uma divindade
cuja claridade não é a luz3°. Aplicado à divindade suprema, o discurso
teosófico a reduz a uma brancura fantasmagórica. Ele é impróprio porque
ultrapassa seus limites. O Deus único, de quem o teósofo pode falar com
validade, é aquele que nasce numa alma.

Para que Deus não permaneça o Deus desconhecido, é necessano que ele
revista uma alma. O Deus sobre o qual discorrem os teólogos, não passa de
u1na Divindade sem alina, uma abstração sem vida. O Deus das teologias
dogmáticas não é o Deus vivo.
O discurso sobre Deus só é pertinentemente aplicado a um Deus que nasce.

29 Aurora 23. 23.


3:0 D@ incarnatione verbi li, 1, 8-9.

46 -----
JACOB BOEHME

Ora, o nascimento de Deus é também o discurso de Deus. Nascendo numa


alma, Deus se exprime a si próprio segundo seu Verbo.

A pura Deidade é a Eternidade sem voz. A Divindade que se empenha no


ciclo da natureza eterna é o Verbo que fala. E a natureza emanada é, ela
própria, o Verbo proferido, formado31• A natureza que se forma é o sopro
que, saído da boca de Deus, assume·a consistência da palavra.

É o Verbo locutor que forma a natureza eterna. Desde o primeiro começo


das obras divinas, Boehme a chama verbum fiat32• Antes de ser o demiurgo
de nosso mundo, esse Verbo operário é o autor da natureza eterna. Ao termo
de sua realização, a natureza original é o mundo dos anjos. Ela é o céu
habitado por Deus ou a terra celeste. O mundo celeste da natureza eterna é
a palavra formada, fixada para ser a permanência do Espírito.

O Verbo é o agente da Sabedoria divina. Ele executa o projeto divino que é


edificar o templo que Deus poderá habitar. Depois, na consistência da sua
palavra, o Verbo é ele próprio a morada por ele construída. Ele é a forma, o
corpo no qual a Sabedoria de Deus cintila. Entretanto, permanecendo esse
corpo, ele se reexprime para fazer-se o arquiteto de uma outra morada, que
é nosso mundo. Por um lado ele cria este mundo. Por outro, identifica-se a
ele: ele é o Verbo criado33. Mas, uma vez ainda, ele se reexprime, no seio
mesmo desse mundo, do qual ele é o criador, e que é à sua imagem. A
palavra criada enuncia-se novamente, para uma segunda criação. Ela recria
o homem fazendo-o nascer uma segunda vez. Ela recria o mundo para a
consumação do tempo. Nossa natureza cessa então de existir e a natureza
eterna é novamente manifestada em sua perfeição.

A natureza criada procede da natureza emanada. Ela é o seu reflexo, e é também


o envoltório que impede de apreendê-la verdadeiramente. Ela é a letra que dá
a aparência ao Espírito, mas que ao mesmo tempo no-lo subtrai. Ela é nosso
corpo perecível que é a assinatura da alma34, mas também sua prisão. Para que
a alma se complete é necessário que esse corpo exploda e que se crie um outro
corpo. Seguramente nosso corpo perecível é querido por Deus que, comovido
por seu amor, nos chama à existência para manifestar-se em nós. No entanto

31 Clavis specialis; Mysterium Magnum 16, 17.


32 lbid. 3. 8
33 Ouaestiones theosophicae 6, 14; Christosophia (Der Weg zu Christo), VI, 3, 14.
34 Mysterium Magnum 19, 28.

47
JACOB BOEHME

ele representa apenas um estado trans1tono de nossa encarnação. Ele não é


nosso verdadeiro corpo. Da mesma forma a letra da Escritura é uma primeira
encarnação do sentido. Mas o texto deve ser reescrito. Através da letra o
discurso divino se renova. O que Boehme apresenta em seus escritos é uma
nova forma do discurso de Deus. É o discurso da consumação do tempo, no
termo da história do mundo e do devir individual.

A primeira encarnação, aquela que produz os corpos duros e compactos, é


simbolizada ao nível dos arquétipos na primeira fase da natureza eterna. A
Divindade p roduz a natureza para se comunicar e sua vonrade é o fato de
seu amor. Entretanto, para engendrar o Ser, no qual ela id manifestar-se,
para fazer existir essa alguma coisa a partir do
Nada da pura rranscendência,
a Divindade aliena seu Verbo.De acordo com seu amor, a Divindade quer
expandir-se en1 um mundo a vir, mas para que esse mundo seja, é necessário
um notável fechamento no Infinito. A liquidez original congela, endurece,
se opacifica. O amor divino se traduz inicialmente por um efeito contrário
à sua finalidade que será de expandir todas as coisas. O .amor quer fazer
brilhar a luz e produz as trevas. A vontade manifestada pelo Verbo é
contraditória. Há duas vontades adversas, um;1 que endurece os corpos e
outra que visa a destruí-los para deles libertar-se35.

A dualidade afirma-se, pois, desde o primeiríssimo começo da rnanifestação


divina. Ela é inicialmente a Discórdia universal, sinônimo de trev;1s. Depois,
na segunda fase da natureza eterna, ela se resolve numa consonância
simbolizada por um corpo de cristal que é a imagem da vida perfeita36. O
cristal é uma água fixada em um corpo e que, no entanto, se expande37. Da
1nesma forma a luz se comunica, permanecendo sempre em sua própria
morada. O corpo de cristal é um corpo de luz.

O que se resolve no plano da natureza eterna é, por antecipação, o drama da alma


e do corpo. Os dois se opõem e depois se unem. Mas esta união só se realiza
graças a uma renovação total de uma e de outro. É uma alma completamente
transformada que se une a um outro corpo, tendo sido o primeiro abolido.
Temos assim uma primeira encarnação, cujo produto é uma natureza

35 De tnp!ici vita hominis 7, 43.


36 O corpo celeste de Adão era um corpo de cristal; vide De electione gratiae 5, 35, e De signatura
rerum 1 ·1, 51.
37 Boehme utiliza o símbolo do mar de cristal do Apocalipse 4, 6, que ele aplica da mesma forma à
nova terra, unindo asslrn as noções de fixidez e de fluidez; vide Mysterium Magnum 37, 38.

48
JACOB BOEHME

trevosa, depois uma segunda, graças à qual o Espírito se une plenamente


a um corpo para fazê-lo resplandecer. O caminhar do Verbo de Deus se
cumpre segundo essas duas encarnações. O discurso divino obscurece o
sentido, antes de elucidá-lo, em um corpo que será um símbolo de
perfeita transparência. Antes de ser uma morada inteiramente aberta e
luminosa, a palavra divina é uma prisão. Segundo seu Verbo, a imagem
de Deus é dupla. De um lado, o Verbo produz as trevas. Do outro, ele
manifesta o amor e a luz.

O discurso de Deus se desdobra na alma eterna, repetindo-se, em seguida,


nas almas humanas. Enquanto essas almas não forem renovadas, o Verbo só
engendrará nelas a imagem de um Deus que não passará de uma
transcendência tenebrosa e que só lhe inspirará medo. Esse Deus parecerá
devotá-las ao inferno. Ele se identificará com o fogo da geena; será o fogo
que consome. Por outro lado, para as almas transformadas, regeneradas,
Deus será o verdadeiro Deus, e Deus que é o amor e a luz.

A ambigüidade do discurso divino se traduz, em Boehme, pela paráfrase do


salmo 18, segundo a versão de Lutero: Deus é santo com os santos e perverso
com os perversos. Da forma em que se reexprime nos seres, o Verbo proferido
é tanto o princípio do mal, segundo a cólera, quanto o princípio do bem,
segundo a graça38• É por isto que a verdadeira gnose é o conhecimento do
bem e do mal. Não que Deus seja, em si mesmo, o mal. Mas o bem não
poderia manifestar-se sem o mal, da mesma forma que a alegria sem a aflição.

A finalidade do discurso divino é fazer resplandecer a luz. Entretanto sua


gestão determina que as trevas precedam a luz. O discurso de Deus
acomoda-se ao discurso do homem que deve reexprimí-lo.

* * *

Esboçamos aqui os três aspectos do discurso teosófico: discurso sobre o


nascimento de Deus na alma humana, discurso teológico sobre Deus
considerado ànteriormente à criação, discurso de Deus nas obras.
Finalmente esses três aspectos se reduzem a dois: o discurso de Deus e o
discurso do homem que o reexprime.
Há, nesses dois discursos, a mesma alternância de ocultação e de transparência do

38 Salmos 18. 27; De electione gratiae 6. 36-37.

49
JACOB BOEHME

sentido. Começa-se pela opacidade da mensagem. Depois o texto é novo e é


transparente. A transparência é, no entanto, inerente aos corpos. Ela não é
absolutamente a imaterialidade do Espírito puro. Para que Deus se revele, seu
pensan-iento se encarna. Toda a manifestação divina não é senão a encarnação do
sentido. De acordo com seu desenrolar exemplar ao nível da natur= eterna, ela
chega aos anjos, que são os pensamentos de Deus encarnados em corpos de luz39.

A encarnação do pensamento de Deus faz-se segundo dois corpos. O primeiro


é negativo; é um símbolo de trevas. Ele será destruído. Entretanto ele remete
a um outro corpo, do qual ele é o reflexo. A realidade reporta-se não a uma
sobrenaturalidade que será absolutamente incorporal, mas a um outro corpo.
Naturalmente há uma ruptura total de nível entre os dois corpos. Porém a
finalidade do discurso é sempre objetivar um pensamento em um corpo.

O discurso de Deus retomado pelo discurso humano é o sopro que emana da


boca divina. Este sopro representa ao mesmo tempo uma vontade, um
pensamento, uma sensibilidade. Ele se coagula e é assim que se formam todas
as coisas, emanadas ou criadas40. Ele se fixa, depois é novamente a vida que
jorra e que faz eclodir a matéria solidificada. Mas, na consumação dos tempos,
ele produz a carne do corpo glorioso. A luz é, ela mesma, esse corpo. A
Sabedoria, alma da luz41, personifica o Espírito que permanece transcendente
à sua manifestação, mas que o Verbo torna perceptível dando-lhe um corpo. A
natureza perfeita é o corpo de Deus representado pela Sabedoria42.

Esse corpo é o texto último da revelação. Par:i manifestar-se Deus se atribui


um corpo que representa a realização de suas obras. O corpo de Deus é a
alma eterna tornada plenamente visível. O autor desse corpo é o Verbo,
executor das obras divinas. Sua alma mais eminente é a Sabedoria.

A teosofia de Boehme é um;-i mística do corpo espiritual. O discurso


teosófico é a enunciaç5.o progressiva desse corpo.

Urbino, julho de 1982

39 Ouaestiones theosophicae 6, 5.
40 Mvstenltm M<1gnum 61. 45
41 De electione gratiae 3. 21-22.
42 Representada pelo puro elemento, a natureza perfeita é o corpo da Sabedoria. Ver De tribus
principiis, 22, 25.

!íO
JACOB BOEHME

BIBLIOGRAFIA SUMÁRIA EM LÍNGUA FRANCESA


I. Obras de Jacob Boehme em tradução francesa

• L'Aurore naissante. Trad. Louis-Claude de Saint-Martin. Milano, Arché,


1977.
• Des Trois Principes de l'Essence divine. Trad. L.-Cl. de Saint-Martin. Paris,
Editions d'Aujourd'hui, 1985 (2 tomes).
•De la Tripie Vie de l'Homme. Trad. L.-Cl. de Saint-Martin. Paris, Editions
d'Aujourd'hui, 1982.
• Les Quarante Questions sur !'Ame. Trad. L.-Cl. de Saint-Martin. Epilogue
de Bernard Gorceix. Paris, Arma Artis, 1984.
•De l'lncarnation de Jesús-Christ. Trad. Anonyme. Milano, Arché, 1976.
• De la Base sublime des Six Points Théosophiques. Trad. L.-Cl. de Saint­
Martin. Cahiers de l'Hermétisme: Jacob Bohme. Paris, Albin Michel, 1977.
• Mysterium pansophicum. Trad. L.-Cl. de Saint-Martin. lbid.
• De la Signature des Choses. Trad. Avec supplément par Sédir. Milano,
Arché, 1975.
• Le Livre des Sacrements (De Testamentis Christi). Trad. Daniel Renaud.
Lausanne, Editions l'Age d'Homme, 1984.
• Mysterium Magnum. Trad. S. Jankélévitch, avec deux emdes de Nicolas
Berdiaeff. Paris, Editionns d'Aujourd'hui, 1978 (4 tomes)
• Les Epftres théosophiques. Trad. Avec introduction par Bernard Gorceix.
Monaco, Editions du Rocher, 1980.
• Clef ou Explication des divers points et termes principaux. Trad. Anonyme.
Milano, Arché, 1977.
• Confessions. Anthologie d' oeuvres traduites avec préface, notes et
commentaires par Aléxis Klimov. Paris, Fayard, 1973.

II. Obras em língua francesa sobre Jacob Boehme

• Koyré, Alexandre. La Philosophie de Jacob Boehme. Paris, Vrin, 1971


(premiere éditon en 1929).
• Berdiaeff, Nicolas. Etudes sur Jacob Boehme. Dans: J. Boehme, Mysterium
Mágnum. Paris, Editions d'Aujourd'hui, 1978 (vide acima)
• Kayser, Wolfgang. La doctrine du langage naturel chez Jacob Boehme.
Poétique II. Paris, Seuil, 1972.
•Wehr, Gerhard - Deghaye, Pierre.Jacob Boehme. Cahiers de l'Hermétisme.
Paris, Albin Michel, 1977 (deux etudes et une bibliographie).
• Deghaye, Pierre. La consommation du temps selon Jacob Boehme. Dans:

51
JACOB BOEHME

Apocalypse et sens de l'Histoire. Cahiers de l'Université Saint Jean de


Jérusalem 9. Paris, Berg international, 1983.
• Daghaye, Pierre. La naissance de Dieu ou La Doctrine de Jacob Boehme.
Paris, Albin Michel, 1985.
• Deghaye, Pierre. L'homme virginal selon Jacob Boehme. Dans: L'Androgyne.
Cahiers de l'Hermetisme. Paris, Albin Michel, 1986.

ALGUMAS DEFINIÇÕES PINÇADAS DA


TERMINOLOGIA DE JACOB BOEHME
Amor
É o coração de Deus, seu verbo, os nomes Jesus e Jeová; no homem,
é a morada de Deus; na criação, é a quinta forma da natureza. É,

enfim, o meio, o objetivo e o procedimento da regeneração, nossa e


do mundo inteiro.

Egoísmo
Chamado também PROPRIEDADE, Egotismo: é uma imagem do diabo;
constitui o tormento dos danados e é o caminho mais curto do
demônio para nossa alma.

Línguas
Há cinco alfabetos pnnc1pa1s: o da natureza, o hebraico, o grego, o
latim e o do espírito.

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 2 de 1987


da edição francesa de l:Initiation.
OTARÔ

Estudo sumário dos 22 arcanos maiores


Su.zy Vandeven

VI. TYPHERETH - 0 ENAMORADO


"Toda causa produz efeitos, todo efeito tem uma causa" - diz a Lei d o
Kybalion.

Partindo desta lei imutável, se o Número 5, ímpar e positivo é uma causa,


devemos, pois, encontrar na 6a Lâmina, seu efeito, o passivo.

A Lâmina 6 é ilustrada por um enamorado hesitando entre duas vias: a do


Espírito e a da Carne. Mas, guiado pelo Amor que aponta para ele a sua flecha
de ouro (alegoria do alto da Lâmina), ele faz sua escolha e dá um sentido à sua
vida (hesitação simbolizada pelas cores contrastadas de sua vestimenta).

O 6 representa pois "a Vontade afirmada" na via adotada, preferida, eleita, a


Via da Direita, Via CR1STICA.

Podemos ver nas pinturas do Caminho do Calvário seguido por nosso


Divino Mestre, o CRISTO levando Sua cruz apoiada (portanto dinâmica,
giratória, viva) sobre seu ombro direito. Sua Cabeça (Espírito) identifican­
do-se com o centro dessa Cruz, indicando o trabalho de rotação e de direção.

O Abade Alta, em seus Commentaires sur saint Paul (Comentários sobre São
Paulo - pág. 131) nos di�: "Sobre esse Fundamento, esse Caminho, os
Cristãos, soldados do CRISTO, não constroem todos com ouro, prata,
pedras preciosas, mas também com madeira, feno, palha; o dia do advento
do Senhor irá mostrar pelo FOGO o que valerá a obra de cada um".

Ele diz ainda: "Os espirituais são aqueles que sentem neles a presença de
DEUS como Fonte de seu ser e que se unem com desejo, amor, ação, à ação
de Deus neles e em todo o Universo; são os Templos de Deus".

A lição é aparentemente simples: bem sabemos que quanto mais abrirmos


nosso Espírito, nosso coração, mais nossas obras serão belas, mas... fazemos

IStO.;>

53
O TARÔ

Os 4 tempos do Cristão, e conse­


qüentemente do Martinista, são:
pugar-se, pedir, receber, agir porque
toda a Vida Divina está no Espírito de
Caridade.

Na árvore sefirótica o 6 é Typhereth, a


Beleza, o ideal absoluto, o Vau.

Aprendemos o significado dos dois


Ternários: Ponta para cima: Fogo.
Ponta para baixo: Agua.

Se unimos dois triângulos por sua


base, formando um losango, espelho
ternário, constatamos que Typheret faz
face a Ketber e, por isto, se une pela
ponta à Unidade.1

É por isto que se diz: "O


Enamorado conduz à Unidade pelo
Amor realizado".

Mas levemos mais além o jogo de nos­


sos dois ternários: na Lâmina 6 nós os vemos penetrar-se um no outro. Dá­
se então o grande e maravilhoso mistério da Estrela de Salomão, simbolizan­
do a união do Pai e ela Mãe, ele DEUS e ela Natureza, elo Espírito único e
da Alma universal, elo Fogo procriador e da água geradora.

Nada resiste a essa Potência, essa União. Nós, pobres Humanos, dis­
poríamos dela se tivéssemos recebido efetivamente nosso grau de Mestre.

Constatamos também, de passagem, que esses dois Triângulos só podem


encontrar seu equilíbrio perfeito se a União for plena e total.

Não esqueçamos que o 6 é o Número do Homem. É o Número da Luta,

1 "Se ti ÜUCJUiado e um quaterniirio passivo, o Losango é um qLJatsrnário ativo". (Robert Fludd)

5·1
O TARÔ

do Trabalho, da Liberdade, do Amor. É a Vontade unida à Energia para


cumprir o Ato criador.

"O 6 - disse Louis-Claude de Saint-Martin - ilustra o mecanismo do ato


Voluntário da personalidade consciente que é o Homem de Desejo".

No início deste trabalho dissemos que o 6 era uma Lâmina passiva, um


Efeito. É a Realização em potência, a célula da abelha, por exemplo, que só
se anima quando o ovo se rompe nela.

O Enamorado, o Vau, o 6, é o Iniciado cujo aprendizado está concluído.


Nele tudo suplica: o Sopro suplica. Mas que seria o Sopro se a Inteligência
não suplicasse com ele?

O Enamorado sabe querer e amar; ele pode trabalhar na Grande Obra. Nós
o veremos, aliás, dirigir sua vida na Lâmina seguinte - o 7 - onde seu
"olho" e sua "orelha" abertos o aconselharão.

Escudemos agora as cores e os símbolos da Lâmina: nosso personagem está


dividido entre a Rainha: a Virtude e a Bacante: o Vício. Ele escolheu.
Podemos dar-nos conta da sua maneira de estar à ordem do Bom Pastor,
gesto que implica a Caridade total, o esquecimento de si, a interdição
absoluta de querer para seu benefício pessoal, de encontrar-se à disposição
de todos, todo o tempo, em todos os lugares.

Esse Enamorado não terá também a retidão traçada diante do seu caminho,
simbolizado pela ponta de um Triângulo Retângulo?

Atenção, meus Irmãos e minhas Irmãs Marrinistas! Pensem nesse gesto


augusto quando, ao entrar no Templo, como o Enamorado, você faz este
sinal de Amor perfeito.

As cores da indumentária de nosso jovem indicam bem que Ele faz seu tra­
balho. Por que?

Vejam os braços em forma de Cruz dinâmica: o braço direito terminadc


nesse pequeno punho rosa (símbolo de Amor perfeito), punho colocado
de tal maneira que forma o eixo de rotação porque, bem sabemos, para
retornar à Unidade da qual partimos, é necessário ter feito uma volta

55
O TARÔ

completa. Daí a idéia das palavras simbólicas: Tora - Roda - Tarô.

Por que - diriam vocês - o Amor que lança a flecha na direção do


Homem significa AMOR DIVINO?

Vejam suas asas azuis (Inteligência divina), seu arco, sua aljava, Sc1as flechas
de ouro (Sabedoria divina), essa Estrela cuj a s 6 pontas são rosas (A m o r Ideal,
Rosa): essa cor misteriosa feita de Luz e de Fogo, e 6 são verdes, do Verde
formado do Amarelo e do Azul (Vitalidade, C;iridade, Regeneração). Tudo
isto indica que falamos de Psiqué e não de Eros.

"O Justo irá da Fé à Vid;:i" ( H a b :1cl u c 1 1 /4 - São P:1ulo - Cartas aos


Romanos).

Meus Irmãos e n1inhas Irmãs, pelas vinte e duas letras sagradas hebraicas,
que são as mensagens vibrantes e vivi/
icantes, vivas de nossos grandes
Instrutores, iremos da Fé à Vida. Se
queremos ser verdadeiros Martinistas,
verdadeiros Cristãos, temos que viver
nossa Fé, porque é-se rico pelo bem
que se faz, belo pela beleza
_ que se dá,
que se propaga, que se semeia, e nada,
absolutamente nada decepciona nesse
domínio.

VII. A CARRUAGEM - ZAIN


A FÉ ergue montanhas. Temos cons­
ciência da Força que podemos ter se
tivermos realmente fé em nosso Ideal?
Que não se poderia fazer com seu
coração?

O abade Alta, em seus comentários


�tlbl'e São Paulo (Carta aos Romanos)
diz: "O futuro ainda está por ser feito,
e o dever agora é a santificação, quer
dizer, a submissão cio corpo ao espírito

56
OTARÔ

e a união do espírito com DEUS. Somente pagando esse preço poderemos


adquirir a vida eterna e simultaneamente nossas três vitalidades - física,
psíquica e intelectual - numa harmonia que irá assegurar-nos para sempre
uma felicidade perfeita e constantemente crescente.

"Mas nunca conseguimos; mal entramos no caminho da Vida, percebemos


isto o tempo todo: a harmonia não acontece. É contínuo o esforço para con­
duzir ao alto nossa alma que nosso corpo de carne puxa sempre para baixo".

É somente esta transformação, meus Irmãos e Irmãs, que faz de nós


Cristãos, e é o resultado da Via Crística relevada pela Luz gerada por JESUS
CRISTO, força cósmica transmutadora e redentora, que faz de um filho do
Homem um FILHO de DEUS.

Louis-Claude de Saint-Martin escreve: ''A Ciência Única é uma iniciação e uma


ordem de coisas tal que provoca, no homem, a transformação de todo o seu ser'.

Que sugestões mais belas poderiam nos ser oferecidas para começar a exegese
da nossa Lâmina 7, a Carruagem, o Carro de Hermes, o Zain do tarô?

Mas também que doloroso trabalho de parto para ser um dia abençoado,
eleito FILHO de DEUS, ou seja, nascido do Espírito de DEUS...

Se o Queremos (Lâmina 5) verdadeiramente, nós o Podemos (Lâmina 6) e nós


Ousamos (Lâmina 7).

Nossa Arma? - Nosso Livre-arbítrio. Nosso Archote? - O CRISTO.


Nosso Objetivo? A Perfeição, a Reintegração no seio do Pai.
-

E iremos nos Calar (Lâminas 8 e 9), uma vez nosso trabalho concluindo no
retorno à Unidade.

O Iniciado age e se cala, porque ele sabe que nascemos neste mundo seguin­
do os desejos do sangue, da carne e da vontade do Homem; que não nasce­
mos segundo Deus Qoão, I, 3) tendo, conseqüentemente, que Renascer.

O 7 é a Chave da 3ª Tríade, a da Realização. 7 é um ato e, como tal, repre­


senta um Princípio duas vezes desenvolvido, ou seja, acionado e realizado
objetivamente.

57
OTARÔ

7 é a criatura tomando consc1encia da sua Natureza Verdadeira; 7 é o


Iniciado que retornou às suas relações com seu Princípio... Que revelação!

PAPUS diz: "O 7 é como a estrela de seis pontas, montada sobre um pivô".
Esse pivô é, portanto, de uma importância capital, j á que ele permite o tra­
balho efetivo da Estrela.

Pode-se dizer, então, que este pivô é, de certa maneira, uma Pedra Angular.
É o Mestre da Carruagem, é o construtor da Obra, é o Grande Arquiteto
que, reportando-se ao Princípio Masculino fecundador, ao Fogo Universal
invisível, anima misteriosamente todas as coisas.

7 é o Núcleo da Personalidade sobre quem tudo retine; é o Centro, é o


Coração.

Diz Jacob Boehme: "As 7 propriedades especiais por meio das quais todas as
coisas se cumprem são: as 3 superiores: Fogo, Luz, Som (é o Triângulo) e as
4 últimas: Desejo, Amargor, Angústia, Substancialidade (quaternário)".

Em adição teosófica 1 +2+3+4+5+6+7 = 28. Reduzindo: 2+8 10. =

Reduzindo ainda: 1 + O = 1. O 7 é pois, exatamente o número do Homem


Superior.

O 7 é toda a Cabala; é o resumo de todas as coisas. Os 7 primeiros números


são as chaves de toda a Ciência Universal.

Quanto há a ser dito sobre o Setenário!: os 7 dias da Criação; os 7 dons do


Espírito; os 7 Anjos do Apocalipse; as 7 cores do Arco-íris; as 7 notas musi­
cais, etc.

7 é também o Enxor
f e dos Alquimistas herméticos 3+4, o Princípio Motor
da Natureza ou do Calor Universal.

"Os Números - diz Papus - são Seres e as cifras são suas vestes".
Tentemos, pois, encontrar o Ser, a substância desses Números.

Vejamos nossa Lâmina 7. Esquematicamente podemos representá-la como Oswald


Wirrh em seu notável Tàrot des Jmagiers: as 2 Esfinges: 1 força ativa (direita), 1 força
passiva (esquerda): l força equilibrante (central) que controla e conduz.

58
OTARÔ

Tudo é movimento (rodas) e trabalho, mas sentimos, adivinhamos que o


Homem, de pé sobre esse carro, é o seu Mestre Inconteste, o REI. Ele coman­
da. Tudo está nele e por ele.

Paracelso afirma a propósito do 7: "É a espiritualidade ativà'.

O Mestre da Carruagem é solar. Seu disco de ouro colocado no centro do


dossel de azur e de rosa o afirma. Ele Quer, e quanto mais sua vontade se afir­
mar, mais sua autoridade se fará sentir sobre o que é lunar. Ele pode e Ousa.

Sua coroa é o diadema do Adepto (3 estrelas de Ouro). Seu cetro é o emble­


ma da Sabedoria. Sua couraça o protege e o envolve; o Thurim e o Thumin
e as 5 tachas de ouro indicam sua Quintessência.

O Globo alado dos egípcios, emblema da sublimação, avizinha-se do


Lingam fecundando o Cteis, símbolo da união perfeita e frutífera realizada
no seio dos 4 Elementos (Cubo do Carro).

Que força, mas também que Serenidade, que Harmonia nesse belo rosto!

Esforcemo-nos para compreender bem sua magnífica lição.

Também nós temos a possibilidade de nos trabalhar, lembrando bem que


em todos os homens existem as duas polaridades, que podemos harmonizá­
las, mas que nos é inicialmente necessário desenvolver - e principalmente
- nossa Passividade antes de nossa Atividade.

Nada podemos dar se nada temos a dar! Solve - Coagula.

Amém!

Esta matéria foi publicada originalmente nos Nos. 3 e 4 de 1993


da edição francesa de Llnitiation.

59
AS ORIGENS DA GRANDE LOJA
TRADICIONAL E SIMBÓLICA "ÓPERA"

André Gavet

T
raçar um esquema histórico da G :. L:. T:. S:. "Óperà' quarenta
anos após sua fundação permitirá a todos os que se interessam pelo
movimento maçônico - pelo menos assim o esperamos -melhor discernir
o lugar de cada um no que podemos chamar a galáxia das obediências.

Talvez seja útil lembrarmos, de início, que o grupo original da criação da


obediência, em 1958, não contava com mais de trinta maçons decididos,
enquanto que hoje a G:. L :. T:. S:. "Ópera" agrupa dois mil e qui­
nhentos maçons em cento e trinta e quatro lojas.

Infelizmente pouquíssimos desses trinta ainda figuram nas colunas. A


idade, sem dúvida, mas também a morte, tiveram seu papel nesse contex­
to e apenas alguns - num momento ou noutro - se afastaram por razões
somente por eles conhecidas. O que permite afirmar, afinal de contas, que
hoje nos encontramos diante da constatação de um êxito.

Mesmo não sendo nosso intuito começar este trabalho de maneira triste,
com um necrológio, não podemos deixar de evocar dois dos nomes mais
marcantes dessa epopéia. O primeiro, que deixou este mundo baixo em
1965, é Pierre de Ribeaucourt, cujo nome está estreitamente ligado a esta
obediência como um elo incontornável da cadeia que a liga, através dos
séculos, às próprias origens da maçonaria. O segundo, igualmente desa­
parecido, é Abel Hermand. Foi ele o vínculo mantido com o que se con­
vencionou chamar a Ordem Interior do Regime Escocês Retificado. Duas
figuras inesquecíveis para uma homenagem das mais merecidas.

Organização das mais JOVens, dizíamos. Sim, pois a criação de uma obe­
diência sob o nome de "Grande Loja Independente e Regular para a França
e as Colônias Francesas" data somente de 1913. Mas ela é o ponto de par­

tida do que viria a tornar-se a G:. L:. T:. S:. no imediato pós-guerra,
depois G .·. L : . T : S : Bi11cau, após a dsão ele 1958 (ver 111ai" adiante).
. .

li()
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

Mas por que então, uma vez separadas de Bineau, ter conservado o título
de G:. L:.T:. S:.? Simplesmente porque os dissidentes consideravam-se
como únicos herdeiros e depositários do espírito francês que havia prevale­
cido quando da criação da obediência em 1913. Os dois descendentes dire­
tos de seu criador Édouard de Ribeaucourt, Pierre, seu filho e Eduard, seu
neto, estavam entre os mais ativos da causa.

E porque Ópera? Simplesmente porque um deles podia dispor de um local


situado no endereço do "círculo Republicano", no número 5 da avenida da
Ópera, em Paris, e por ser indispensável um endereço oficial para o registro
na prefeitura do pedido de criação de uma nova associação. Lá nasceria a
G:.L:.T:.S:..

Retornemos à criação de 1913. No que se refere a ela, tratava-se do coroa­


mento de um longo caminhar marcado por aquelas múltiplas peripécias,
das quais toda a história da maçonaria, muito humana neste sentido, está
amplamente salpicada. Nela encontra-se tudo e seu contrário, por pouco
que a olhemos nos detalhes, mas ela é também - se a observarmos d.J
ponto de vista de Sirius - um sulco, como aquele que sabia traçar em seu
tempo o agricultor com sua sólida parelha de bois.

Documentos raros, freqüentemente incompletos, por vezes contra­


ditórios e recheados de linguagem particular, criptografados, trucados e
tendenciosos. Não é fácil posicionar-se diante deles, que armam não
poucas ciladas para o historiador. Podemos nos consolar, pois desta
forma o essencial foi, sem dúvida, colocado ao abrigo do olhar dos pro­
fanos, encarregando-se apenas a alegoria da mensagem confiada à lin­
guagem dos símbolos.

A loja conhecida sob o nome de "Centro dos Amigos", e que· traz o número
1 da G:. L:.T:. S:. "Ópera", está impregnada de uma história que é a
de roda a obediência. Ela pode ser também considerada como um vetor
privilegiado do Regime Escocês Retificado, de sua origem aos nossos dias.

A destruição da Ordem do Templo em 1314 é: um fato histórico. Se a trans­


missão da sua mensagem pelos cavaleiros mandatários permanece discutí­
vel, é indiscutível o fato de que, ao acolher esses fajões, Robert Bruce, rei
da Escócia, criou em seu reino a Ordem de Santo André do Cardo da

61
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

Escócia. Permanece igualmente discutível que os ditos emiss:mos de


Jacques de Molay tenham lá depositado a referida mensagem.

Como é também discutível ter a Ordem do Cardo sobrevivido ou não às


trágicas flutuações da história da Escócia e da Inglaterra. É no entanto
incontestável o fato de Tiago II, expulso por seu genro, ter-se estabelecido
no castelo de Saint-Germain-en-Laye em 1688. Assim como o fato de
haver lá instituído uma loja azul1, na qual alicerçou-se um capítulo de
Mestres Escoceses de Santo André.

Como a partir de lá a Tradição se desenvolve na França, passa pela Turíngia,


depois pela Alemanha, e por quais príncipes e gentis-homens, que casa­
mentos, quais relações amistosas ou militares, são ainda pontos discutíveis.
Mas a partir daí as obras não faltam e cada um pode nelas referenciar-se,
segundo sua sensibilidade.

A publicação do famoso "Discurso de Michel de Ramsay", por volta de


1735, tende a estabelecer sobre bases históricas as origens cavaleirescas do
que é então chamado de a Arte Real. Ele contribui para expandir o
Escocismo no seio das numerosas oficinas que, a partir de Saint-Germain­
en-Laye e em cerca de trinta e sete anos, proliferaram em toda a França.
Proliferação das oficinas, mas também proliferação paralela de altos graus
mais ou menos fantasistas. Reina a maior confusão na Europa, assim como
na França, nesse desenvolvimento quase anárquico.

Quando de sua estada em Paris em 1745, o barão de Hund, que se diz


depositário de luzes iniciáticas de origem templária - sugadas, seja dito, ao
passar junto aos maometanos de Jerusalém - as transmite a oficinas supe­
riores. É a partir de 1756 que esse regime ganha uma grande projeção
através de toda a Europa, minado, no entanto, em vários pontos, por
influências externas, clericais ou outras. E é em 1763, quando da reunião
de um convento em Aldenberg, na Turíngia, que surge codificada a "Estrita
Observância Templárià'.

Um novo convento deveria, no entanto, reunir-se em 1772, nove anos mais


tarde, em Kohlo, em cu jo decorrer o duq ue Ferdinando de Brunswick foi

1 Uma loja azul é a que recebe os maçons dos três primeiros graus: aprendizes, companheiros e
mestres.

62 · ·---
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

eleito grão-mestre da "Estrita Observância Templária". Seguiu-se um outro


em 1775, em Brunswick, outro ainda em 1778, em Wolfenbütel, e um em
Dresden. No decorrer de tantos debates e confrontos formata-se um novo
regime, em cujo seio parece haver-se dissolvido a "Estrita Observâncià'.

Isto sem esquecer o memorável Convento das Gálias, em Lyon, em dezem­


bro de 1778 .- cuja importância capital sobre os destinos da Ordem não
tem mais que ser demonstrado - nem o papel preponderante do místico
Jean-Baptiste Willermoz, confluente de duas correntes espirituais do mar­
tinismo e do martinezismo. Lá foram elaborados dois documentos de
importância capital, dentre os quais "o código maçônico das Lojas reunidas
e retificadas na Françà' para as lojas azuis.

Lá, igualmente, foram definitivamente abandonadas as pretensões à he­


rança política e secular dos Templários, sendo na mesma oportunidade
confirmada a tradição templária; construir o Templo místico. Abandono e
confirmação a partir dos quais nasceu e foi adotada, pelo menos em parte,
a menção de Retificado, atribuída depois ao regime escocês ao qual nos refe­
rimos. Sua repercussão foi de tal monta que o duque de Brunswick decidiu
fazer dela beneficiário o conjunto da maçonaria em toda a Europa conti­
nental, decisão que está na origem da convocação do Convento de
Wilhemsbad, aberto em 20 de julho de 1782.

Mas onde se coloca, nisto tudo, o "Centro dos Amigos"? Paciência, vamos
chegar lá. Estamos apenas demorando um pouco mais, e esta longa marcha,
que não passa de um atalho bem sucinto, tem por único objetivo situar o
"Centro dos Amigos" com as origens distantes da maçonaria evocadas ante­
riormente. Esse vínculo é bem anterior à criação da "Grande Loja
Independente e Regular para a França e as Colônias Francesas", em 1913.

Esse vínculo, que talvez se comece a perceber, passa ainda por um caminho
eivado de numerosas ciladas. A Revolução Francesa - que interrompeu
momentaneamente o fabuloso desenvolvimento da maçonaria em geral,
para prodigalizar-lhe talvez um ainda maior no fim dos distúrbios - não
é, sem dúvida, a menor delas. Sabemos que um "Grande Oriente" estava
estabelecido com um contingente considerável, antes mesmo do Convento
das Gálias. Ele reunia sob sua autoridade particularmente as lojas militares,

63
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

que abrigavam numerosos guardas suíços, de quem também se sabe o lugar


ocupado sob o Amigo Regime.

Uma delas - que recebeu sua patente constitutiva no Oriente das Guardas
Suíças em 24 de julho de 1778, sob o título distintivo de "Guilherme Tell"
- foi confirmada por um ato do "Grande Oriente" de 1 O de abril de 1789.
A maior parte de seus membros desapareceu tragicamente em 1 O de agos­
to de 1792, literalmente massacrados, quando do assalto das Tulherias. Eles
repousam em paz sob o relvado da capela expiarória do jardim Luís XVI,
em Paris.

Seus irmãos franceses sobreviventes não quiseram esquecê-los e solicitaram


ao "Grande Oriente" a autorização p:1ra se reunirem sob um outro título
distinto. É quando surge o nome de "Centro cios Ami gos". Urna loja que
irá reunir-se, a partir de então, conrra ventos <.: marés, trabalhando no
começo do Rito Francês. Mas em 24 de outubro de 1807 eb pede para
adotar o "Regime Escocês Retificado ele Dresden", como era às vezes
chamado à época.

Entretanto a guerra dilacerou ainda mais toda a Europa e a maçonaria não


escapou à tormenta, ficando inclusive sensivelmente abalada. Willermoz,
que escapou por pouco ao massacre em 1793, não depôs armas. Alguns
chegam a sugerir que poderia ter sido ele (que contava então quase noven­
ta e cinco anos) quem atraiu os respons<-iveis do "Centro dos Amigos" para
esse reagrupamento. Uma carta de 1 O de setembro de 181O parecia conter
a prova disto. Nela ele declara, dirigindo-se ao príncipe de Hesse-Cassel:

"... acabo de referir-me a um estabelecimento maçônico


formado em Paris em 1808 e que eu em seguida inclusive
constituí em Prefeitura provisória. Ele prospera lá sob o
título de loja do Centro dos Amigos; é uma sementeira
que já nos prestou grandes serviços. Porque é pelo apuro
dos principais membros desta Loja - que foram então
deputados junto a mim em Lyon para obter e copiar os
rituais, instruções e documentos de todos os graus do
Regime - que devemos a honra e a indiscutível van­
tagem de ter agora um protetor, um Chefe e um Grande­
Mesue Nacional do Rcgin1e Retificado na França, na pes­
soa do Sereníssimo Irmão de Cambacéres, Príncipe, etc.

64
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

Que era, já há alguns anos, Grande-mestre das lojas do


Rito Escocês dirigidas pelo Grande Oriente de França".

O Grande Oriente aquiesceu e a partir de então, o "Centro dos Ainigos"


não mais deixaria o Regime Escocês Retificado. De 1808 a 1814 seus tra­
balhos são conduzidos no seu mais puro espírito. Mas a queda do Império
traz à instituição um golpe de tal forma severo, que se chega a temer, por
um momento, o desaparecimento da loja e do regíme na França.

A dispersão dos seus arquivos é confirmada por um documento datado de


1837, que nos revela ainda que - da mesma forma que hoje existem aque­
les que nela ingressam para colocar em seus cofres os escudos, mais ou
menos honestamente dissimulados - três velhos membros do "Centro dos
Amigos" voltaram-se então para Genebra, solicitando a ajuda dos Corpos
superiores da franco-maçonaria suíça para o restabelecimento do Priorado
de Neustrie.

Uma vez obtida ºesta ajuda, os tres Irmãos lançam mãos à obra em 1839
mas, desafortunadamente, por pouco tempo; eles seriam colocados em
adormecimento dois anos mais tarde, confiando desta vez os arquivos e
rituais à Prefeitura de Genebra.

Abre-se então um triste período de calúnias e de perseguições por parte


da Igreja romana que conduz, por reação, a maçonaria a um materialis­
mo ostentatório, do qual ainda se sofre hoje. É votada no Convento do
"Grande Oriente de França'', em 1877, uma resolução que "decide não
mais fazer da crença no Grande Arquiteto do Universo um ar tigo de ft
maçônica". A fórmula é suprimida dos documentos da Ordem e conduz,
desde então, a uma ruptura das relações com as potências maçônicas do
resto do mundo.

Finalmente, após uma morte aparente de setenta anos, o "Centro dos


Ainigos" renasce em 1910, tal como uma fénix, sob o impulso de um certo
número de membros do "Grande Priorado da Suíça".

Em 1911 é assinado um acordo entre o Grande Oriente e o Grande


Diretório de Genebra: o Grande Oriente autoriza novamente o "Centro

65 ---
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

dos Amigos" a trabalhar com os antigos rituais. O rito suscita então um


grande interesse e a loja prospera rapidamente. Excessivamente, talvez?
Porque, dez anos depois, a autorização de utilizar o dístico
"À Glória do
Grande Arquiteto do Universo" é-lhe brutalmente retirada. E ei-la cons­
trangida ao exílio para manter seu rito na pureza original.

E, por esse grande atalho, eis-nos de volta a 1913 e à criação, sob a égide
do "Centro dos Amigos'', da "Grande Loja Independente e Regular para a
França e as Colônias Francesas". "I..:Anglaise", número 204, de Bordeaux, e
"Saint-George" não tardam a juntar-se ao "Centro dos Amigos". Seria já a
chegada do cavalo de Tróia da Grã-Bretanha, que levaria ao predomínio
inglês e à inevitável cisão de 1958? Não ousaríamos afirmá-lo; mas, quem
sabe? Seu primeiro Grande Mestre foi Édouard de Ribeaucourt, pai de
Pierre, cuja men1ória evocan1os anteriormente.

Finda a 1 ª Guerra Mundial, a obediência se desenvolve com bastante re­


gularidade. Não iremos dar maior destaque aos chamarizes e outras vicissi­
tudes que assinalaram esse desenvolvimento. Lá, como em toda parte,
trata-se apenas de homens; e por vezes os colares entravam mais do que dis­
tinguem os homens. Daí ser a humilde divisa dos Templários - os das
Cruzadas, dos quais alguns se pretendem depositários - bem freqüente­
mente mal empregada: "Non nobis, Domine... " (Não para nós, Senhor.. .)

Apenas vinte e um anos passados e sobrevém outr:i guerra. Abre-se então


um período no decorrer do qual será mais v:rntajoso neg:ir su:i filiação
maçônica do que constituir arquivos. A cabeça sobre o cepo não era uma
imagem de retórica naqueles tempos de comoção. E seis anos de adorme­
cimento deixam um período desesperadamente oco para a História.

A partir da retomada dos trabalhos, imediatamente após a Libertação, o


interminável título de 1913 é devolvido :1 "Grande Loja Nacional
Francesa", ponto!

A máquina evolui com um ronco de moinho. As lojas são numerosas e as


admissões vão de vento em popa. A regra determina que se reúna anual­
mente um convento. O de 1958 abre em 22 de fevereiro. E aí abando­
na1nos a história pela anedota, mas uma anedota que irá abrir uma história.
A história da "Grande Loja Tradicional e Simbólica Ópera".

66 - -
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

Não se sabe bem porque, mas a atmosfera está um pouco tensa no início
do convento. A tal ponto que a palavra é secamente recusada a vários de­
legados de lojas, a partir do exame do relatório financeiro. Um projeto de
modificação do regulamento geral havia sido regularmente depositado e
devia ser submetido ao exame, mas parece que tudo havia sido arranjado
para que os delegados de lojas não .fossem informados com a antecedência
necessária para conhecer seu exato teor e o objetivo proposto.

O incidente tornara-se inevitável e, após um sem número de pouco glo­


riosas peripécias, ocorreu uma ruptura e algumas lojas abandonaram a obe-
·

diência.

Abre-se então um período brilhante, o vento vivo prec1p1ta-se violenta­


mente. "La France", loja adormecida desde o entre-guerras, vai ser desper­
tada por irmãos ilustres como Robert Ambelain, Philippe Encausse, Pierre
Marie!, lrénée Séguret e alguns outros. As recepções se sucedem. O rigor é,
no entanto, a regra, e qualquer afastamento no desenrolar das cerimônias é
apontado e, se necessário, rapidamente corrigido.

Cinco anos depois a obediência é reconhecida e recebida em toda parte.


Quinze lojas - sete das quais em Paris, uma em Saint-Germain-en-Laye,
uma em Dunquerque, três em Lille, uma em Lyon, uma em Nancy, uma
em Estrasburgo, e até mesmo uma em Leopoldville (que ainda não se
chamava Kinshasa) - figuram na matrícula.

Recolhidos das mãos de um ilustre irmão bastante idoso, que os detém


desde 1935, documentos incontestáveis possibilitam o despertar da Ordem
lnterna2• Isto vai permitir, enfim, a esse querido e velho "Regime Escocês
Retificado" reconstituir sua rede e desenvolver-se como talvez jamais havia
conseguido desde o convento criador de 1 782.

A "G:.L:.T:.S:. "Ópera", novo nome da "G:.L:.T:.S:. Ópera"


conta atualmente com cento e trinta e quatro lojas (algumas delas em ou­
tros países) e dois mil e quinhentos membros. O que é modesto em relação
a outras obediências melhor implantadas e mais ruidosas. Deve-se, no
entanto, lamentar-se um lugar tão modesto e uma certa ausência de poder?

2 A Ordem Interna agrupa os graus cavaleirescos do Regime Escocês Retificado.

67
ORIGENS DA GRANDE LOJA "ÓPERA"

O poder na cidade na verdade não faz parte - ou, pelo menos, não deve­
ria fazê-lo - da busca do maçom. A pureza da mensagem recebida per­
manece, ou deveria permanecer, sua única preocupação e podemos muito
bem contentar-nos em transmitir, como o recebemos, lembrando-nos sim­
plesmente do adágio que Édouard de Ribeaucourt3 tanto gostava de citar:

''.É a única riqueza que cresce quando se divide".

Passar, em quarenta anos, de trinta e cinco a dois mil e quinhentos mem­


bros pode parecer para alguns um resultado modesto. Talvez possa ser, mas
é que então muitas folhas mal presas se soltaram com o passar dos anos. O
que, no entanto, não impediu a árvore de fortificar seus galhos: o Regime
Escocês Retificado está solidamente plantado no seio da Federação Ópera,
da qual permanece o pilar central.

Gostaria de concluir deixando com vocês um pensamento forte. Ele não


tem muito a ver com o tema deste artigo e não é, infelizmente, meu.
Ignoro, inclusive, quem seja seu autor. Mas ele merece a atenção e todos
poderão meditar à vontade.

DOS CENTO E TREZE

há os que fazem alguma coisa


há os que nada fazem
há os que crêem fazer alguma coisa

há três que fazem alguma coisa


há dez que fazem conferências sobre o que fazem os três
há cem que fazem conferências sobre o que dizem os dez

acontece que um dos cento e dez vem explicar a maneira


de fazer a um dos três

então um dos três interiormente se exaspera e exteriormente sorri.


Mas ele se cala, pois não tem o hábito da palavra;
de resto, há algo a ser feito.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição francesa


de L:Initiation no número 1 de 1998.

3 Trata-se do neto do fundador da Grande Loja . . . . em 1913.


As Preces de Louis-Claude de Saint-Martin1

PRECE III

sposo de minh'alma, tu por quem ela concebeu o santo desejo da


E sabedoria, vem ajudar-me tu mesmo a dar nascimento a esse filho bem­
amado que eu não poderia jamais amar com demasiada ternura. Tão logo
ele tenha visto o dia, mergulha-o nas águas puras do batismo do teu espíri­
to vivificante, a fim de que ele seja inscrito no livro da vida, e que seja para
sempre reconhecido como um dos fiéis membros da Igreja do Altíssimo.
Aguardando que seus fracos pés tenham a força para sustentá-lo, toma-o nos
teus braços como a mais terna mãe, e preserva-o de tudo o que poderia per­
turbá-lo. Esposo de minh'alma - tu que não se conhece jamais se não se
for humilde - reverencio o teu poder e quero confiar apenas nas tuas mãos
esse filho do amor que me deste. Apoia-o tu mesmo, quando ele começar a
ensaiar seus primeiros passos. E quando estiver em uma idade mais avança­
da e suscetível de compreendê-la, instrui-o da honra que ele deve ao seu pai,
para que tenha longos dias sobre a terra; inspira-lhe o respeito e o amor pelo
poder e pelas virtudes daquele que lhe deu o ser. Esposo de minh'alma,
inspira-me primeiro a mim a alimentar continuamente esse filho querido
desse leite espiritual que tu mesmo formas em meu seio; que eu não cesse
de contemplar em meu filho a imagem de seu pai, e em seu pai a imagem
de meu filho, e de todos os que possas em mim engendrar no curso inin­
terrupto de todas as eternidades. Esposo de minh'alma, tu que não se co­
nhece jamais se não se for santificado, serve ao mesmo tempo de mentor e
de modelo a esse filho do teu espírito, a fim de que em todos os tempos e
em todos os lugares, suas obras e seus exemplos anunciem e manifestem sua
celeste origem; em seguida pousarás tu mesmo sobre sua cabeça a coroa da
glória, e ele será para os povos um monume.nto eterno da majestade do teu
nome. Esposo de minh'alma, tais são as delícias que tu preparas para aque­
les que te amam e que buscam unir-se a ti. Pereça para sempre aquele que
vier a me pressionar para romper nossa santa aliança! Pereça para sempre
aquele que quiser incitar-me a preterir-te por um outro esposo! Esposo de

1 As duas primeira preces de Saint-Martin foram publicadas no número 5 da edição lusófona de L'lnitiation.

69
AS PRECES DE L.C. DE SAINT-MARTIN

minh'alma, torna-me tu mesmo para teu próprio filho; pois que ele e eu não
somos senão um aos teus olhos, e versa abundancen1ence sobre um e outro
as graças que somente do teu amor nós dois podemos receber. Não posso
mais viver se não permites à voz de meu filho e à minha unirem-se juncas
para cantar eternamente teus louvores, e para que nossos cânticos sejam
como rios inesgotáveis engendrados incessantemente pelo sentimento das
ruas maravilhas e do teu inefável poder.

PRECE IV

S
enhor, como ousaria olhar-me um inst:J.nte sem fremir de horror diante
da minha miséria? Habito em meio às minhas próprias iniqüidades, que
são o fruto dos meus abusos em todos os gêneros e que se tornaram como
minha veste: abusei de todas as minhas leis, abusei da minha alma, abusei
do meu espírito e abuso diuturnamente de todas as graças que teu amor não
cessa de prodigalizar todos os dias sobre tua ingrata e infiel criatura. É a ti
que eu devia tudo oferecer e tudo sacrificar, e nadá oferecer ao tempo que
está diante de teus olhos como os ídolos, sem vida e sem inteligência e, no
entanto, não cesso de tudo oferecer ao tempo e nada a ti; e é por isso que
me precipito antecipadamente no horrível abismo da confusão que é con­
sagrada apenas ao culto dos ídolos e onde teu nome não é conhecido. Fiz
como os insensatos e os ignorantes do século, que empregam todos os seus
esforços para aniquilar os temíveis mandatos da justiça e fazer de modo a
que esta terra de provação por nós habitada, não seja mais aos seus olhos
uma terra de angústia, de trabalho e de dor. Deus de paz, Deus de verdade,
se a confissão dos meus erros não for suficiente para que tu m'os perdoes,
lembra-te daquele que quis deles encarregar-se e lavá-los no sangue do seu
corpo, do seu espírito e do seu amor; ele os dissipa e os apaga, desde que se
digne a fazê-los aproximar da sua palavra. Como o fogo consome todas as
substâncias materiais e impuras - e como esse fogo que é sua imagem -
ele volta para ti com sua inalterável pureza, sem· conservar nenhuma marca
das máculas da terra. É somente nele e por ele que se pode fazer a obra da
minha purificação e do meu renascimento; é somente por ele que tua santa
majestade pode contemplar o homem; e é por isto que tu queres operar
nossa cu1·a e no�sa salvação, pois ao empregar os olhos do seu amor que tudo

purifica, tu não vês mais no homem nada de disforme, tu não vês nele nada
além daquela centelha divina que se assemelha a ti e que teu santo ardor
atrai perpetuamente a si como uma propriedade da tua divina fonte. Não,

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AS PRECES DE L.C. DE SAINT-MARTIN

Senhor, tu só podes contemplar o que é verdadeiro e puro como tu; o mal


é inacessível à tua visão suprema. Eis porque o homem maldoso é como o
ser do qual não mais te lembras e que teus olhos não poderiam fixar, já que
ele não tem mais qualquer relação contigo; e eis, no entanto, este abismo de
horror onde não tenho medo de fazer minha morada. Não há outra alter­
nativa para o homem: se ele não é perpetuamente lançado ao abismo da tua
misericórdia, é o abismo do pecado e da miséria que o inunda; mas antes
não voltou seu coração e seus olhares desse abismo de iniqüidade, que ele
encontre esse oceano de misericórdia no qual tu fazes nadar todas as criat­
uras. É por isto que me prosternarei diante de ti em minha vergonha e no
sentimento do meu opróbrio; o fogo da minha dor calcinará em mim o abis­
mo da minha iniqüidade. E então não existirá mais para mim senão o reino
eterno da tua misericórdia.

Esta matéria foi publicada originalmente no N° 2 de 2002


da ediçãofrancesa de 1.:Initiation.

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1 O PENSAMENTO DE LOUIS-CLAUDE DE SAINT-MARTIN '

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"Quem irá negá-lo? Quando os escritores não são bem


sucedidos a culpa é dos temas e não dos meios".

"Mortais, somente no silêncio do vosso pens::imenro se pode encontrar ::i

paz da natureza".

"Meditarei todos os dias estas palavras:


"Nas comunicações o espírito está fora de nós.
"Nas nossas considerações de inteligência ele está acima de nós.
"No exercício de nossos poderes, ele está abaixo de nós.
"No sonambulismo ele está distante de nós.
"Somente pela ação, a prece e a caridade ele está em nós, perto de nós e

em nosso redor".

"Pagaste o tributo ao Espírito? Se não o pagaste, que paz esperas?"

"O nome saiu da vida e gerou a palavra".

"Ciência, ciência, és excessivamente simples para que os sábios e as pessoas


do mundo possam suspeitar de ti".

"Que justiça terrível é a justiça de Deus, pois há casos em que a própria


prece seria uma ofensa!"

"Deus não seria o rei da glória, o rei da paz, se não fosse o rei da justiçà'.

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