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FRAGMENTOS DOS DIÁLOGOS DE ALTOS ESTUDOS QUE

TEVE JEAN-CLAUDE-CARRIERE (DRAMATURGO E


ROTEIRISTA) COM OS ALUNOS DA ESCOLA INTERNACIONAL
DE CINE YTV – SAN ANTONIO DE LOS BAÑOS – LA HABANA –
CUBA
Tradução: Zeca Nunes Pires

... Gostaria de contar como foi minha entrada para o mundo do cine. Tinha
24 anos, bastante jovem, no ano de 55,56, era estudante dos Estúdios
Superiores de Literatura e História de Paris e já havia publicado uma
novela, não extraordinária, mas publicada, e meu editor, que se chama
Robert Lafont, foi um grande editor de Paris, tinha um contrato com
Jacques Tati. Jacques Tati foi um diretor-autor de películas cômicas muito
boas em Paris, “As Férias do Sr. Hulot” e “Meu Tio”. Jacques Tati era
muito bem considerado e Robert Lafont disse aos autores desse tipo de
publicação que, iria publicar uma novela, e Tati teria que eleger o escritor.
Uma novela baseada no filme “As Férias do Sr. Hulot”. Era o contrário do
que estou fazendo hoje. Escrevi um ensaio, um capítulo de dez páginas, e
Tati tinha o direito de eleger, e me elegeu. Um dia, tinha 25 anos, muito
emocionado fui ver Jacques Tati que tinha a estatura de um mestre,
realmente, de cinema: toquei na porta e me atendeu. Era um homem muito
alto e tinha como 45 a 50 anos. Estava terminando o filme “Meu Tio” e
muito simpático me disse: “Que você sabe de cinema”? “Bom, adoro
filmes, vou à cinemateca três vezes por semana, sou um amante dos
filmes”. Me cortou e disse “Sim, mas de cinema, de fazer cinema, que
conheces”? Então, respondi a verdade, “nada”. De repente chamou a
Suzanne, que é o nome da senhora que era sua editora, Suzanne Baron que
é muito minha amiga hoje. Entrou Suzanne, me apresentou e me disse “este
jovem senhor vai escrever um livro sobre um filme, baseado em um filme;
você tem que ensiná-lo como se faz um filme”. Podem imaginar meu
entusiasmo e Suzanne muito simpática me disse “vem comigo”, e me
conduziu a uma sala de montagem e meu primeiro contato com o cinema
foi uma moviola, essa máquina misteriosa, extraordinária, nunca antes
havia ouvido falar de uma moviola e me disse Suzanne – que tinha 32 anos,
muito jovem, “sente-se, por favor”, e sentei na frente da máquina, e me
ensinou como funcionava a alavanca que permite ir para trás e adiante, a
vitória sobre o tempo, para mim era uma maneira de milagre e depois de 10
minutos de familiarizar-me com a máquina, Suzanne me disse, “agora, um
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momento” e pegou a primeira bobina do filme. “As Férias do Sr. Hulot”,
colocou-a sobre a máquina e pela primeira vez na vida me ensinou um
roteiro, o roteiro do filme. E pôs o roteiro sobre a máquina e me disse essa
frase que jamais esqueci, “todo problema é passar deste para este”, do
papel para a película. Foi uma mulher muito inteligente porque me disse
em uma frase essencial, a mudança de matéria, a mudança do papel à
película. Isso é uma forma de alquimia, a mudança que comporta uma
história, o material em si, se deve mudar. Depois começou a ensinar-me os
detalhes, como uma cena de uma coisa escrita, pode ser uma cena de uma
coisa filmada em uma película.

Acho que passei oito dias com Suzanne, e de vez em quando Jacques Tati
nos visitava, e também seu assistente, que se chamava Pierre Etaix. Esse foi
o meu primeiro contato com cinema, quero dizer, foi um contato técnico,
não foi um contato teórico, a teoria já conhecia da Cinemateca de Langlois,
das leituras e das conversas. Mas o meu primeiro contato foi uma coisa
necessária, tinha que conhecer a máquina, a moviola e também podia ver as
mudanças efetuadas durante a filmagem, desde o roteiro até a película...

... Como é o trabalho com Buñuel?

Devo dizer para começar que depende do filme. Escrevemos nove roteiros,
seis dos quais são filmes, três foram abandonados por várias razões. Por
exemplo, falecia um produtor, falta de dinheiro, mas dos seis, três são
adaptações de romances: “Diário de uma Camareira”, “A Bela do Dia”, e
“Esse obscuro objeto de Desejo” – e três são roteiros originais, sem existir
antes “A Via Láctea”, “O Discreto Encanto da Burguesia” e “O Fantasma
da Liberdade”. O trabalho não é o mesmo. Quando se trata de uma
adaptação há algo que já existe, há algo, há uma história, há um princípio e
um final. Podemos mudar tudo, mas há algo menos para discutir. E
começamos sempre com qualquer diretor para discutir, para falar, para
buscar qual filme que o diretor quer fazer. É minha atitude com todos os
diretores. Por exemplo, Don Luís tinha escolhido “Diário de uma
Camareira”. Para mim era um romance como “A Bela do Dia”, sem nada
de extraordinário realmente, interessante, não ruim, mas não era uma obra
de mestre. Eu perguntada, por meses e meses “mas que coisa interessa a um
homem como Don Luís nessa novela?” E tratar de encontrar-lo como
Diretor, e algumas vezes o diretor não sabe como iniciar. Há um
sentimento impreciso do que gosta na história, no romance, e estamos

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buscando juntos, e o primeiro ponto acho que foi decidido na primeira
semana. O romance é a história de uma camareira que vai de uma casa à
outra casa, de um mestre a outro mestre, acho que são como oito ou dez
postos. E minha primeira idéia foi reunir tudo em uma casa, para dar à
história muito mais de concentração e todos os personagens que estão no
filme estão no romance, mas em diferentes casas, casando a tal com a
fulana, o homem de botas estava em outra casa na novela, e colocamos
todos os personagens principais, menos o coronel. Colocamos todos os
personagens interessantes para nós na mesma casa, e não somente na
mesma casa, e não na mesma família. Esse é um princípio de adaptação que
vale para muitas ocasiões, de concentrar, de não divagar com os
personagens que não parecem interessantes, de esquecê-los e concentrar a
ação sobre os quatro ou cinco personagens mais importantes para o diretor
e para mim também. Quero dizer, é um duplo caminho de buscar o que é
interessante para nós na novela e buscar ao mesmo tempo o que interesse
ao diretor. É uma maneira de conhecer o diretor, porque de alguma maneira
o diretor vai fazer um filme, e é uma maneira de olhar o diretor, quando se
propõe algo, de ver sua reação. E pouco a pouco e dia a dia, ver se
realmente estamos no caminho. Essa é a base do trabalho juntos; o
contrário seria discutir sem fim, tratar de defender sua posição, seu gosto
pessoal, de ser cego para as reações do outro. É difícil, mas é o essencial de
trabalhar a dois ou três, mas não de trabalhar só. Essa foi a primeira
solução...

... A coisa essencial era a de improvisar antes de escrever, improvisar e


atuar pode-se dizer, porque finalmente depois de cinco, dez, quinze vezes
repetir a mesma cena com pequenas alterações, com mudanças, afinando a
cena pouco a pouco e cada vez “going back” no princípio da cena, é
necessário, não se pode começar no meio de uma cena, isso não se pode
fazer. Quando a primeira parte de uma cena parece feita e boa para
continuar se necessita voltar ao início e dizer depois de três ou quatro horas
de atuar, de improvisar com gritos, rindo discutindo algumas vezes, não
estávamos sempre de acordo, vinha o momento quando via a possibilidade
de tomar algumas notas, para não esquecer o que encontrava-se bom no
diálogo.

Isso não se pode esquecer, o que se improvisa, isso é uma lei, o que se
improvisa pode-se esquecer muito facilmente e nunca pode-se encontrar

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através da memória ou da reflexão. Necessita-se tomar notas
imediatamente, esse é um conselho muito bom, porque algumas vezes
esquecia-se de tomar notas e isso se perdia.

De vez em quando eu dizia a Don Luís, “paremos por um momento,


necessito escrever isso, senão vamos esquecer, e Don Luís fumava um
cigarrinho vendo-me escrever notas, mas notas, realmente sei escrever
notas assim muito depressa, mas com frases de diálogos precisas.

A noite, após a janta, eu ficava duas ou três horas, para realmente escrever
ao final de cada dia as cenas. Mas escrevendo-as precisamente com tudo,
com a descrição da ação, dos vestidos, do que se passa, do tempo, da luz e
com todo o diálogo. Escrevendo a máquina com duas cópias. Nesse tempo
não havia Xerox, que é uma maravilha para os roteiristas. E agora não
escrevo à máquina, tenho uma escrita muito legível. Bom, o primeiro
trabalho do dia seguinte, pela manhã era sempre reler o que havíamos feito,
improvisado, no dia anterior, e algumas vezes se deixava, porque não nos
parecia o que no dia anterior nos parecia bom, e de vez em quando
guardávamos, e depois a mesma coisa para outro dia. Essa era a maneira de
trabalhar basicamente...

... Há uma palavra do poeta surrealista Andrés Breton que eu gosto muito.
Um dia um poeta, quase esquecido hoje, que se chamava Saint Porolú,
francês, dos anos 20, tinha o costume de escrever lindas imagens. Para
dizer uma jarra, dizia “o ovo de cristal”, dizia coisas assim, no idioma de
poeta, linguagem de poeta, e um dia um crítico escreveu um artigo sobre
Saint Porolú dizendo “quando Saint Porolú diz o ovo de cristal, quer dizer a
jarra, a jarrinha quando escreve quer dizer isso” banalizando tudo, e André
Breton lhe enviou uma carta de insultos, era sua especialidade, uma carta
muito famosa na história do surrealismo e onde se encontra essa frase: “o
que conta não é o que Saint Porolú queria dizer, o que conta é o que eu
digo”. Essa é uma perfeita frase para falar dos filmes de Don Luis. Mas
realmente, posso jurar, Don Luis não queria dizer nada, não tinha um
discurso secreto que tratava de comunicar por imagens de cinema, era
realmente um cineasta de improvisação, de instinto, mas de um instinto tão
rico que dizia muito. Surrealista, poderia ser a definição de uma atividade
surrealista. Por exemplo, o fato de caminhar pelas ruas sem saber aonde ir,
sem saber de onde vem, sem saber se trata de um sonho ou não, e sem

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saber aonde vai, isso é uma liberdade completa para qualquer espectador,
de colocar sua própria colaboração no filme...

... buscando essa possibilidade de cumplicidade, essa possibilidade de


encenar algo estranho, mas não totalmente impossível. Isso é muito
importante para um filme como “O Discreto Encanto”. Quando estávamos
trabalhando no roteiro sempre se tratava de encontrar idéias interessantes,
originais, mas não impossíveis, não sobrenaturais, há uma fronteira
bastante estreita entre o que era possível para Don Luís e o que não era
possível. E para escrever “O Discreto Encanto” trabalhamos por dois anos,
não todo o tempo, mas acho que escrevemos mais de seis diferentes versões
do roteiro antes de chegar a um ponto que nos parecia bastante equilibrado.
Por exemplo, se vocês se recordam do filme, a cena do teatro foi uma idéia
que já tinha antes de começar a trabalhar no roteiro, de meu trabalho com
Pierre Etaix, e na primeira vez que trabalhamos no roteiro contei a Don
Luís, uma idéia muito sensível: um grupo de amigos vai comer em um
lugar onde não há ninguém para recebê-los e há um grande telão
escondendo uma possível janela e um determinado momento o telão se abre
e estamos sobre uma cena de um teatro e no outro lado do telão há muita
gente aplaudindo. E a primeira vez que contei a Don Luís, ele me disse
“não, é impossível, demasiado impossível, realmente na vida normal um
equívoco deste tipo parece realmente impossível”. Bom, para mim estava
claro, impossível, mas interessante: tínhamos o direito de veto, de dizer não
sem discutir e assim ganhar tempo. Não se necessita as razões, o
sentimento, porque a mim me parece um pouco menos bom, porque não é
não, e isso era uma tradição para Don Luís desde o início de seu trabalho
com Salvador Dali em “O cão andaluz”. Era uma lei de trabalho surrealista
também. Mas se, por exemplo, estamos trabalhando os dois, tu me dás uma
idéia, e se vejo uma possibilidade ligeira de explicar esta idéia desde um
ponto de vista ideológico, social, econômico, filosófico, fora a idéia. Uma
idéia que se pode explicar é uma má idéia. É dizer, falando de “Um cão
andaluz”, de uma atividade surrealista, essa é a razão do porquê do poder
de veto, é dizer não como um reflexo. Era a regra de trabalho, e também,
para o “Discreto Encanto” de uma maneira diferente, porque se tratava de
um filme produzido por um produtor. O “Um cão andaluz” foi produzido
por Don Luís com o dinheiro de sua mãe. Depois da primeira versão do
roteiro, nos separamos por dois ou três meses e depois voltamos a
encontrar-nos outra vez na Espanha, para começar a trabalhar na segunda

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versão do roteiro, e chegamos ao mesmo ponto da cena do teatro, que não
existe. Outra vez, esperando que Don Luís tivera esquecido, outra vez o
contei de outra maneira minha “gag”, do telão, e a resposta foi “não, isso é
impossível”. Nestes momentos não havia ainda sonhos no filme. Mas na
terceira versão, meses depois, outra vez contei a história do teatro, mas
apresentando-la como um incidente, como uma história verdadeira,
autêntica, foi impossível, mas como um sonho sim. E desde o momento que
Don Luís aceitou, como era a idéia, comecei a trabalhar os detalhes do
diálogo, pus o diálogo de Don Juan Tenório no filme; essa é uma resposta a
questão de como se trabalha...

... Pergunta – Seus roteiros são muito detalhados quanto à descrição das
imagens que aparecem na tela?

Isso necessita uma larga resposta, é uma boa pergunta. Quando eu comecei
a escrever roteiros nos anos 60, os roteiros estavam cheios de indicações
técnicas, do diafragma, da objetiva, e muitas vezes decupagem muito
precisas de todos os planos. Por exemplo, os roteiros de Tati, de Cluzot,
dos grandes diretores dos anos 50, eram filmados nos estúdios, e era
possível tomar o roteiro que se chamava “Bíblia”, e encontrar no roteiro
tudo o que se necessitava para fazer um filme. Mas este tipo de roteiro não
se podia ler senão pelos técnicos de cinema. Senão era realmente
impossível, cheio de técnica. E quando trabalhei pela primeira vez com
Don Luís sobre o “Diário de uma Camareira” eu tinha o costume, costume
não, porque havia feito somente duas películas, com Pierre Etaix, de
estabelecer um roteiro perfeito, um roteiro com decupagens, com todas as
precisões, indicações de tudo, e trabalhando com Don Luís por três meses
não havíamos falado de um shooting-script nunca. Quero as cenas escritas,
interior/refeitório/tarde, e tudo o que passa no refeitório, com todos os
detalhes de vestidos, de ação, um pouco da decoração e todo o diálogo, mas
sem nenhuma indicação técnica. E no final do roteiro, e no último dia de
trabalho Don Luís me disse, “favor dar-me o roteiro, vou fazer a
decupagem hoje e te darei amanhã”.

Para mim, era impossível compreender como fazer uma decupagem numa
noite, sabendo que Don Luís dormia muito cedo, era impossível. Para mim
uma decupagem era um trabalho de semanas e semanas, e de realmente
pensar, de tratar de compreender com o diretor qual seria o plano melhor, o
movimento de câmera mais adequado para o que se queria transmitir, e não

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podia compreender o que Don Luiz queria fazer. No dia seguinte me deu o
roteiro e eu vi que havia na margem do roteiro dois ou três números sem
outras indicações que os números, e lhe perguntei o que queria dizer. “Isso
não é uma decupagem, isso são números sem nenhuma necessidade”, e me
respondeu, “sim, claro. Eu, em minha decupagem tomo a decisão de fazer
um plano geral, um travelling, uma panorâmica, quando conheço o cenário,
o lugar onde se vai filmar a película”.

Não necessitava realmente uma decupagem, porque tinha experiência e


uma sabedoria muito grande, uma maestria, mas me disse, isso nunca
esqueci, “mas o diretor de produção necessita dos números para fazer o
plano de filmagem, e quando leio, o que fiz ontem, ler o roteiro e ver mais
ou menos quantos números necessito para tal cena e tal cena, e colocado os
números, mais ou menos, creio que será o mesmo número de nomes de
planos. Onde começará o plano e onde terminará, isso não sei, mas para o
diretor de produção isso é precioso”.

Pergunta: Se, o número de tomadas, os planos, não o número de


seqüências, é para dar facilidade ao diretor de produção de estabelecer um
plano de trabalho, porque sabe o diretor, mais ou menos, quanto tempo se
necessita para filmar um número. Que margem de improvisação deixavam?

Depende. Da ação nada, realmente nada, toda a ação se encontrava no


roteiro. A decupagem toda era realmente decidida no “platô”, durante a
rodagem. Sabem que, por tradição, há duas maneiras, basicamente muito
diferentes, de considerar o trabalho de um roteirista. Uma é dizer: tudo está
no roteiro, o roteiro é o filme. “A Bíblia” (como se chama este tipo de
roteiro) fazer um filme, uma película, filmá-la, é tomar um roteiro e
traduzir o roteiro em terminologia de cinema. Isso é uma tradição muito
estabelecida, bem fixa, muito velha, que tem “Casta de Nobreza”, outra
tradição, a minha, é dizer: um roteiro é um roteiro, um roteiro quer dizer
que dá todo o necessário para fazer um filme, mas fazer um filme é algo
mais que filmar um roteiro; algo totalmente diferente da escritura deve
ocorrer quando se filma. Por exemplo, se pode comparar a mariposa que
voa. Antes da mariposa está a larva. A larva contém tudo da mariposa,
contém as cores, a substância, mas não pode voar.

Para mim um bom roteiro, não é um bom roteiro assim como a “bíblia”,
como se diz, porque um roteiro não se vai esquecer, não é uma coisa que

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se vai publicar, um roteiro é um coisa que muito pouca gente vai ler,
excetuando as de cinema, que não se vai publicar e que vai desaparecer ,
que vai ser esquecido, destruído muitas vezes para que exista o filme. E
para mim realmente um bom roteiro é um roteiro que permite existir um
bom filme. É tudo, mas uma maneira de ver totalmente diferente da
primeira. Quero dizer que o roteirista não está a serviço do roteiro senão a
serviço do filme. E isso é uma grande diferença. . .

... Acho que há duas coisas a considerar no início do trabalho de escrever


um roteiro: um é o interesse da história, o que vai dizer a história e a
outra é a necessidade de contar essa história e não outra, há sempre um
porquê, porque você vai fazer um filme, a escrever um roteiro e não
outro. Há uma maneira de ver o interesse, é o momento de contar essa
história, essa é a primeira consideração; a história é interessante para os
outros, para os demais? Para mim não importa. Claro que assim deve ser,
não me é impossível escrever se não me interessa ; mas o interesse é uma
coisa comum que se deve compartilhar com os outros . Não é a mesma
coisa escrever um romance. Tenho muitos amigos que são bons
romancistas, e que realmente, como o dinheiro a investir para publicar um
livro é muito menos que para fazer um filme, pode-se perfeitamente
conceber escrever um romance como se escreve um poema, sem ter
conta da necessidade de uma certa quantidade de gente. Mas nas artes de
representação que são o teatro, cine, televisão, necessita-se
absolutamente chegar a um contato com o público tanto quanto se
possível, a única maneira é o interesse. Não há nenhuma tirania, nenhuma
obrigação, não se pode obrigar alguém a vir assistir um filme que não
gosta se não lhe interessa, essa é uma primeira coisa a considerar. A
segunda é como se pode fazer. Estou escrevendo um roteiro que não é
literatura, senão a primeira forma de um filme; não é a forma definitiva, é
uma coisa, um objeto, que quando o filme está pronto, vai esquecer-se o
roteiro, destruir-se, queimar-se, colocá-lo nos armários. Quero dizer que
todo mundo que está no roteiro, deve-se conhecer; o roteirista deve saber
como se pode fazer o filme. Em outras palavras, tem que conhecer as
técnicas do cinema; não está se escrevendo para ser lido, senão que para
que o roteiro seja um filme. Pode-se dizer que a literatura é perigo
número um para o roteirista. Um roteiro é uma coisa escrita que se lê e

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que se deve ler, mas se lê e se esquece, não se publica, não vai ser um
livro, e há pouca gente que irá ler, e as leituras do roteiro serão todas
diferentes. Um ator vai buscar algo em um roteiro, o diretor, o chefe de
produção outra coisa, o produtor outra coisa. Poderia se dizer de outra
maneira; que não é uma empresa, uma obra egoísta, escrita para si
mesmo, senão para os demais. E claro, quando me perguntam, como eu
disse hoje ou ontem, “o que pode ensinar em uma escola de cinema para
os roteiristas? Eu respondo, “TUDO”. Todas as técnicas de cinema são
necessárias e também outra coisa que se pode considerar, mas é o
mesmo, o número dois é conceber ou fazer, é como uma necessidade, um
roteiro, antes que chegue ao público, tem que passar através de uma
equipe de cinema e de atores, e principalmente o mesmo que no teatro, e
os atores e o diretor e os técnicos de cinema vão por necessidade
transformar o roteiro, mudar o material do papel à celulóide. Pode-se
dizer que há intermediários entre o roteirista e o público, e isso é uma
necessidade, e não podemos mudar e não devemos mudar; é dizer, que é
um trabalho comum. Um filme tem o diretor da obra, que é o diretor, um
autor que é o roteirista ou os roteiristas, e talvez o diretor com o roteirista
e essa é a melhor solução. E há que esquecer o orgulho do autor que diz,
“o filme está todo no roteiro”; não é verdade. Há duas maneiras
tradicionais de considerar o trabalho do roteirista, o roteiro, essa coisa
que se chama roteiro. Uma é dizer isso, “o autor do filme é o roteirista”. O
trabalho do diretor e dos técnicos é tomar o roteiro onde tudo está
escrito, e fazer a operação técnica que consiste em rodar o filme. Há outra
maneira de ver o trabalho, é dizer que o roteiro é uma proposta para um
filme, seguro que tudo está aqui. Mas algo novo, diferente e forte tem
que ocorrer durante a rodagem; é uma nova forma de dar-lhe vida a um
roteiro que não tem vida ainda.

Pergunta: como uma reescritura?

Sim, como uma mariposa e uma larva; a larva tem tudo, mas não pode
voar, a mariposa vem da larva e quando a mariposa se vai voando a larva
morre, fica uma coisa seca.

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Pergunta: até agora tens falado de roteiros originais e quando se realiza
uma adaptação de um romance já escrito, como roteiristas qual é esse
processo?

Quando se trata de uma adaptação de um romance ou de uma obra de


teatro, e também uma vez escrevi uma obra de teatro baseada em um
roteiro de cinema, fiz uma obra de teatro que funcionou muito bem.
Temos que voltar às considerações primordiais. A primeira pergunta é “o
tema do romance é interessante”, segunda “há aqui a possibilidade de um
filme”? E é tudo.

Quero dizer que o romance que escolhemos, tu és o diretor, e eu sou o


roteirista, tu vens dizer “aqui um romance que eu gosto, gostaria de dar-te
para que leias”, a leio e gosto também; temos algo em comum, há um
pequeno território em comum que nós dois gostamos, há uma base, algo
que se pode desenvolver.

Pergunta: como provas o que estais dizendo, que não se pode escrever se
não é interessante ao público? Como provas que é interessante?

É puramente instintivo, não sei. Vou te contar uma história que é chata e
outra que é interessante. O problema é que uma história de vez em
quando, as boas não, mas algumas histórias podem ser interessantes para
algumas pessoas e não para outras. Outra coisa é que algumas pessoas já
podem conhecer a história, a solução de um problema de uma história
policial, e a outra não. Interesse é uma palavra que não tem que explicar-
se. Não se pode perguntar o que quer dizer interessante; se sabe, todo
mundo sabe o que quer dizer interessante e o que é chato ou o que já
vimos muitas vezes. Depois de já termos escolhido um terreno comum,
uma obra; um romance, o trabalho é o mesmo depois. Há algo um pouco
difícil: é libertar-se do respeito ao original.

Pergunta: isso é mais como um problema de linguagem, quando se passa


da linguagem literária ao que falamos agora, entende-se que o roteiro não
é uma linguagem literária, senão que é algo distinto. Este processo, como
fazias?

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Isto é elementar. Eu diria que há uma coisa no romance que são reflexões
interiores, introspectivas, que não podemos passar no filme, isso se lê. O
território comum por necessidade é um território de ação, de coisas que
passam, a primeira pergunta que se faz um bom diretor como Godard, por
exemplo, é dizer “que passa”? “Passa alguma ação”? , e não começar com
uma teoria, com uma idéia, senão com uma ação.

Pergunta: antes de escrever o roteiro, há uma criação psicológica dos


personagens?

Isso depende do roteirista. Há alguns que querem conhecer tudo dos


personagens; isso eu vivi, me ocorreu, algumas vezes, para dar uma forma
ao personagem, uma voz, uma aparência física, necessito saber, por
exemplo, sua origem social, o que fazia seu pai, sua mãe, sua educação, e
também me importa muito conhecer o ator que vai fazer o personagem,
porque o ator trai muito o personagem; mas não é uma regra geral. Por
exemplo, os filmes de Buñuel, os personagens não têm nenhuma
realidade social, nem psicológica, são personagens de Buñuel, que não
têm realmente um contato com as coisas da vida, com algumas exceções
como Tristana. Mas, por exemplo, os personagens de “O Discreto Charme
da Burguesia” não têm realmente uma existência. Isso é essencial para
permitir ao diretor um jogo livre com eles. Porque quando sabemos tudo
de um personagem não se pode mudar. Quando deixamos aberto, como
uma forma vazia, isso é outra coisa, é outro tipo de filme. Os filmes de
Buñuel têm um contato com a realidade, mas não com a realidade
ordinária; é outro contato, diferente, e seguramente mais profundo; mas
são filmes realistas, e nunca Buñuel perguntou o que fazia o pai, de sua
mãe, do filho... não se importava. Mas do outro lado, quando estava
dirigindo o filme, tinha um cuidado extraordinário no comportamento dos
atores. Por exemplo, dizendo “Toma o copo d´água; não com os dois
dedos, senão com os três, e com isso e isso, não com o do meio”, por que?
Ninguém sabia, Buñuel não sabia, o ator não sabia, mas era para dar ao
ator, no momento de atuar, algo em que pense, e dava ao ator uma
concentração artificial, é que está pensando em seus dedos e parece que
pensa nas pessoas; isso é um truque, mas um truque que se usa muitas
vezes, de dar ao ator algo a fazer, muito eficaz, totalmente eficaz; um

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capricho, uma coisa que não tem nenhuma razão, é para dar-lhe uma
concentração. Os diretores japoneses Kurosawa, Ozu Misogushi, fazem o
mesmo. Uma coisa particular, é um truque, os atores sabem bem, não são
tontos, mas têm que memorizar. Não tenho a liberdade de atuar de
nenhum modo quando sei que devo tomar o copo com esses dedos e não
com esses, e isto Don Luís fazia muitas vezes. E também se trata de uma
direção muito precisa, no centímetro, “senta aqui, teu braço, um pouco
mais, não tanto, um pouquinho mais, não tanto”, assim realmente, no
centímetro, e está o ator quase paralisado, mas tem uma cara de
concentração extraordinária, porque está pensando em por seu braço
aqui e não aqui...

... Podemos resumir o que temos dito até agora em uma frase, “é que um
roteiro não existe: não se deve escrever um roteiro, se deve escrever um
filme, isso é essencial, capital. E para ler um roteiro deve-se esquecer
como se lê um romance; não se deve ler um roteiro senão tratar de,
através do roteiro, o possível filme, e isso é um exercício muito difícil, que
necessita anos e anos de trabalho para ler um roteiro. Por exemplo, os
membros da comissão que dá dinheiro para os projetos de cinema em
Paris têm que realmente esquecer que são leitores de romances. Ainda se
poderia dizer que a literatura é o inimigo número um do roteirista, porque
as coisas literárias, muito bonitas, muito bem escritas, que dão um
sentimento de satisfação ao lê-las não se podem colocá-las na tela. É a
arte de ler, não vamos falar da arte de ler um roteiro, mas seria um
trabalho muito interessante, para nós, juntos, de pegar um roteiro
qualquer e de ler uma página e comentar-lo; isso podíamos fazer amanhã,
por exemplo. Para ver como as imagens que vemos podem ser diferentes,
depende de tal ou tal leitor. E para preparar a leitura de um roteiro pode-
se dizer de uma maneira puramente teórica, não gosto de teoria, vocês já
sabem, mas há uma coisa que se deve dizer: Um roteiro é uma coisa, um
objeto, que vai ser lido por muito poucos leitores. Um roteiro é uma coisa
que vai ter 60 leitores e cada um dos leitores irá buscar uma coisa
diferente no roteiro, há sessenta diferentes leituras de um roteiro, o
assistente, o diretor de produção irá tratar de ver quantas noites, quantos
dias de rodagem, quantos figurantes, os vestidos, e é a única coisa que lê,
e essa coisa deve existir num roteiro de uma maneira discreta. Quando

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estou escrevendo um roteiro devo pensar no diretor de produção, nos
atores, no produtor que vai buscar argumentos comerciais...

... Em outras palavras, é um estilo de escrever totalmente específico,


como se diz em inglês, que não tem nada a ver com o romance, com o
teatro, com o ensaio. É de não pensar em um leitor anônimo, como
quando se escreve um romance, senão de pensar em tal e tal leitor. E isso
é totalmente diferente. Outra coisa é minha prática e minha técnica, e é
um pouco difícil de dizer em um momento; há duas ou três possibilidades
de escrever, há uma leitura óbvia, pode-se ler um roteiro assim,
interessado pelo que diz os personagens e, sempre, quando o roteiro está
bom, há uma leitura que se pode chamar de invisível, que não se vê; outra
leitura que depende da disposição das palavras. Vou explicar um pouco;
primeiro ponto, “ler um roteiro em voz alta com a ação e o diálogo do
número um ao final do roteiro, dura precisamente o mesmo tempo que o
filme terminado, o movimento. O ritmo do filme futuro corresponde ao da
leitura do roteiro, quero dizer conseqüentemente que uma ação rápida
deve ser escrita rapidamente; se cai uma mulher pela janela, nada mais
que isso, não se pode dizer com dez linhas de descrição, é impossível; ao
contrário uma ação de uma certa duração, lenta, deve ter o mesmo tempo
de duração”. Essa é uma parte da escritura invisível, mas já dá ao leitor e
não se sabe, não se sente, mas lhe dá, de uma certa maneira, uma idéia
do ritmo e do tempo do filme. O que importa é ler o filme e não ler o
roteiro. Ler o roteiro não serve para nada, porque o roteiro não irá existir,
irá morrer, será destruído. Segundo, quando não se dão indicações
técnicas, há uma possibilidade de propor uma decupagem ao diretor, por
andar na linha, mudar de parágrafo. Dou um exemplo, escrevo
Interior/Tarde/dia, é como o número da seqüência; interior, sala de curso,
dia, na linha, quinze pessoas estão sentadas numa sala, à tarde, e estão
escutando um homem com uma barba que está falando, e perto, na
janela, se vê um pátio com árvores. É tudo três linhas. É dizer que indica
de uma maneira certa um plano geral. Se o diretor segue o roteiro, é uma
proposta de começar a cena com um plano geral, sem dar a indicação
técnica, mas se o diretor quer mostrar a sala, as quinze pessoas e as
árvores há unicamente uma maneira de estabelecer a câmera, pode
mover-se, mas de todas as maneiras será num Plano Geral.

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