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ENTREVISTA: EMIR KUSTURICA¹

Dinamismo e emoção em Gato Preto, Gato Branco

Anthony Kaufman

O quanto você se envolve com a produção e as negociações dos seus filmes?

Esse é provavelmente o motivo pelo qual ainda estou vivo, porque nunca me envolvo. Pensando em
retrospecto, por que esses filmes ganharam prêmios e foram exibidos por toda parte? Acredito que
porque eu nunca estive pensando na produção, o que significaria certas limitações, pois eu
começaria a pensar em coisas como financiamento e outros problemas. E eu perderia a luta pela
melhor qualidade possível do filme. Então eu não seria um bom produtor. Prefiro ter outra pessoa
[cuidando disso].

Os últimos filmes que fez foram projetos muito grandes. Gato Preto, Gato Branco parece ser uma
produção enorme.

Apenas 4 milhões e meio de dólares. Tive orçamentos maiores em Arizona Dream – Um sonho
americano e Underground – Mentiras de guerra. Este parece mais rico. O truque foi encontrar um
lindo local com todo aquele magnetismo, e filmar durante o dia entre 11 da manhã e 3 da tarde,
quando havia sol. Esse provavelmente foi o truque que usamos. E então tudo o que você coloca em
quadro parece muito mais rico e maior do que é na realidade Essa é a natureza do filme.

Muitos dos planos parecem orquestrações complicadas de posicionamento da câmera e de


movimentação dos atores.

E são, sempre. Eu sou um causador de problemas. Sempre faço mais do que posso suportar naquele
momento, e sempre brigo por isso. Porque acredito verdadeiramente que tanto o plano geral
quanto o plano médio e o primeiro plano têm igual importância. A maior parte da indústria
cinematográfica contemporânea também acha importante, mas sempre usam muitos close-ups.
Não penso dessa maneira. Provavelmente por isso meus filmes pareçam mais com documentários,
embora sejam, ao mesmo tempo, visualmente equilibrados. É por isso que é possível notar essa
diferença. O uso de grandes-angulares significa que é necessário abrir a cena e orquestrar muitas
coisas ao mesmo tempo. Quando eu era um estudante e via Leonardo da Vinci e todos aqueles
caras, italianos, holandeses, ou sejam lá de onde, achava incrível perceber como cada parte da
pintura se encaixava ao tema central que eles queriam expressar. Provavelmente por conta disso
sempre luto, minha luta desesperada, para integrar todos os detalhes da coisa toda.

Existiu algum momento durante Gato Preto, Gato Branco no qual você estivesse perdendo essa
luta?

É impressionante, porque se você quer fazer desta forma, mesmo que pareça complicado, tem que
engajar os ciganos de todas as maneiras possíveis. De tempos em tempos você tem que fazer como

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Madeleine Albright [Secretária de Estado dos EUA durante o governo de Bill Clinton] fazia. Um dia
eu ameaçava os ciganos, no outro era o melhor amigo deles. Para ser um diretor, não é necessário
apenas ter talento, é mais necessário ser persistente e fazer – mesmo que não estejam prontos –
com que façam aquilo que você quer que eles façam. Esse também é o padrão do cinema de autor
que não existe mais. No meu caso, por ser um território fora da mira dos estúdios, ainda posso
financiar e encontrar dinheiro para fazer esse tipo de filme que possui uma elegância de expressão
no que acontece na frente das lentes e, ao mesmo tempo, tem sabor de filme underground.

Você teve que lutar por mais dinheiro ou tempo?

Desta vez, não. Até mesmo para a Europa, esse foi um orçamento pequeno. Eles não estavam muito
interessados, e me deixaram livre, porque filmamos por muito tempo. Quando o filme teve que
parar, continuamos depois. Tivemos um mês e meio de chuva para um filme que deveria ter 75 por
cento de filmagens externas, então paramos e continuamos no ano seguinte. E terminei sem
interrupções.

Você poderia falar mais sobre o equilíbrio entre a atmosfera documental, que mencionou, e o
surrealismo no seu trabalho?

É muito difícil de fazer, mas é realmente como um ponto de encontro entre certos padrões
estéticos, como ter Jean Renoir e, ao mesmo tempo, o local onde o neorrealismo italiano descobriu
os movimentos espontâneos e a nova atuação. Então, é quase impossível, mas no cinema às vezes é
possível criar certa distância, elegância e movimentação que te lembram o passado e, ao mesmo
tempo, criar planos, geral e médio, extremamente vívidos. É algo que se torna incrivelmente difícil.
Cada cenário deve se encaixar nessa ideia. A elegância é predeterminada pelas locações que
encontramos, as locações lindamente coloridas e com extrema profundidade. E, com isso, no plano
geral você pode colocar e integrar atores e movimentos da forma que quiser. A poesia nisso tudo é
basicamente um jogo kitsch, uma incrível movimentação de signos destas áreas, de gansos a patos a
cachorros, o ponto é nunca perder o barulho da vida – entende o que estou dizendo?

Gato Preto, Gato Branco, em particular, mantém um dinamismo ao longo de todo o filme. Como
atingiu isso?

Isso é, basicamente, predeterminado pelo espaço. Se o espaço está repleto de sinais, então é
possível fazê-lo. É por isso que em todos os filmes que faço gosto de estar cercado de elementos
com os quais gosto de trabalhar. Então tenho confiança para usar qualquer um deles. Construindo
uma base vívida e forte para o filme. Se me oferecessem fazer um filme em um castelo no meio da
França, eu não saberia fazer. Gostamos de estar em lugares que podemos sentir e fazer da melhor
maneira. Todos os filmes que faço, se a história for analisada, irá se notar que, após 15 minutos de
filme, cada história poderia se desfazer. Ou a cada 10 minutos de filme existe a chance do fio
condutor se perder. Por outro lado, se você conseguir colocar tudo junto com sucesso, então o filme
irá parecer espontâneo e mais como cinema.

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Os ciganos tinham um roteiro para seguir?

Tínhamos um roteiro, mas o problema é que eles não leem. Então a questão era dar-lhes um
walkman para eles aprenderem o diálogo pelo áudio. A vantagem da língua cigana, apesar de não
entendê-la muito bem, é que tem melodia perfeita. Então se você propõe um filme da maneira que
proponho, a língua se torna apenas uma parte da melodia. Ao orquestrar tudo dentro, a língua
segue o sentido do que está sendo dito, e nunca é o mesmo do que o escrito. A língua para eles não
é apenas uma forma de comunicação regular através da qual trocam informações necessárias. É
cantar, de certa forma.

E a música deles?

A música é tão incrível. Opera com um ritmo muito único, mas ao mesmo tempo, suas melodias são
muito ecléticas. Às vezes é possível detectar refrões de bandas de rock. E a música que tocam, é a
música que tocam todos os dias. Todos os dias, há 20 anos, eles vivem de casamentos e
celebrações, raramente têm um ou dois dias livres durante a semana. E viajam de lugar a lugar,
escutando, integrando diferentes partes de outras músicas de forma livre – eles não sentem como
se estivessem roubando.

Há momentos em que o filme que está na sua cabeça não corresponde ao que você filmou?

Sim, sim. O que você vê no filme nunca é visual, há pequenos detalhes, mas 85 por cento das coisas
que você vê são gerados por esse cérebro. Por isso, quanto mais eu envelheço e fico mais
experiente, mais e mais concordo que um filme é sobre sua musicalidade, por causa da forma como
você coloca coisas nele e depois as edita. Mas basicamente você edita enquanto está fazendo. É
uma questão de como seu ouvido está habilmente antecipando onde certas coisas devem ser
colocadas para que a coisa toda funcione. A coisa importante para mim é retratar emoções de
forma elegante. Este é o objetivo de cada frame. Se o filme não for emocional, então ele estará
operando num nível superficial.

Você poderia criar suas imagens com 100 mil dólares e uma câmera digital?

Sim. Não teria problema em fazer isso. Talvez, sim. Comprei uma, com três chips. Uma digital, é
muito boa. Poderia acontecer, fazer um filme assim. Facilmente, com um grupo de pessoas, apenas
fazer.

O quão detalhadamente você e sua equipe preparam seus elaborados planos de travelling?

Não muito. Eles sabem alguma coisa, mas não estão preparados – esse é o problema da política. Os
filmes são democráticos demais. Eles sabem demais. Eles sabem certas coisas, mas as melhores
coisas são as que acontecem como reação ao material, na noite anterior, na própria manhã, é assim
que acredito que devem ser os filmes. Existem cenas que preparamos, mas quanto mais se prepara,
mais as coisas acontecem sem erros, tenho uma boa noção que… por exemplo, filmei a cena inicial
três vezes. Cada vez, tudo estava geometricamente bem, mas pequenos detalhes, a maneira como

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deveriam atuar, a maneira que eu deveria seguir o barco, tudo isso, não estava bom. Estava bom,
mas não estava dando a impressão de que a coisa toda transmitia força emocional e impacto. Isso é
realmente um problema, porque se você não conseguir isso no set, não conseguirá na edição e na
pós-produção, nada de “fazemos isso na pós-produção”. Não ajuda. Porque tudo que você consegue
captar no frame é o que você tem.

Sempre me surpreende como você se mantém aberto à espontaneidade quando tem esses
cenários elaborados.

Fazer filmes é um trabalho perigoso. Porque você é sempre aquele que se coloca no centro do
universo quando faz um filme. E se você for talentoso o suficiente para ver aquele espaço, com
apenas algumas lentes, então você é capaz de maximizar a ideia inicial, antes que seja desvalorizada
pelo processo de transposição para a tela. E depois, acima de tudo, o mais bonito no cinema é
sempre a aposta. É uma questão de loucura. Você pega cada frame como se fosse uma luta pelo
destino, no qual cada raio de luz ou escuridão que aparece deve ser loucamente controlado. E se
contar quantos desses frames você tem, e quantos aspectos da vida e da arte você tem que
negociar, é realmente louco. É devoção. É devoção total.

¹ Originalmente publicado revista IndieWIRE em setembro de 1999. Tradução de Fabiana


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