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cinema

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Cíntia Langie*

Resumo Abstract
Este estudo busca compreender de que forma um This study searches to understand how the trailer
trailer pode ajudar o espectador a escolher o filme a can help the spectator to choose the film that he/she
que ele irá assistir. Para tanto, algumas de will watch. This way, some of its characteristics will be
suas características serão estudadas, tais como a studied, such as music, the assembly and the
música, a montagem e o protagonista. O objetivo é protagonist. The objective is to understand how this
entender como esse formato se apresenta e quais as format is performed and which strategies are possible
estratégias utilizadas para que se efetive um possí- in a way that allows the accomplishment of the seduction
vel processo de sedução entre o objeto e a platéia. process between the object and the audience.

Palavras-chave Key Word


Trailer – Sedução – Cinema Trailer – Seduction – Cinema

O indivíduo contemporâneo vive no mundo da dutor e persuasivo que, há quase cem anos, rece-
informação, das imagens, na época do consumo beu o nome de trailer.
tanto de objetos quanto de idéias. Ao mesmo tempo É então, por acreditar na arte sedutora des-
em que bebe deste mundo (está completamente se pequeno grande anúncio, que o presente estu-
imerso na informação, na imagem, nas relações do oferece alguns apontamentos sobre o trailer de
de troca), sempre está com sede de algo que o cinema, fazendo aflorar o processo de sedução
realize por completo. É uma busca que parte em que se instaura entre a imagem e o espectador, na
direção aos mais diversos tipos de “saciadores”. sala de exibição. Para começar o debate, sugere-
O cinema é um deles, visto que oferece infinitas se que o trailer tem por função primordial apre-
possibilidades de distração. Diante da imensa gama sentar ao público as características do filme que
de novas imagens e conteúdos, muitos ficam sem está sendo anunciado por ele. Todavia, não so-
saber a que universo desejam vincular-se. Quan- mente como anúncio publicitário ele deve ser clas-
to maior o número de escolhas disponíveis, mais sificado, visto a proximidade do formato com a
difícil decidir-se por uma delas - será preciso linguagem dos filmes. Ou seja, é interessante
deixar de lado outras. encará-lo como um misto de cinema e publicida-
Perdidos em meio à oferta, os indivíduos de, pois possui características cinematográficas
são, ao mesmo tempo, instigados por uma série – conjunto de imagens e sons, que adquire uma
de informações prévias sobre os filmes. Seja pe- narrativa própria e é projetado na sala de exibição,
los sites da internet, pelo comentário do colega, fazendo parte do ritual – e, ao mesmo tempo, tem
pela crítica nos jornais ou até mesmo pelo cartaz uma função publicitária – fazer com que o público
espalhado na cidade, o consumidor depara-se com conheça o produto que está sendo anunciado.
vários caminhos pelos quais a expectativa em re- Dito isso, ressalta-se que a principal peculi-
lação a este ou àquele filme é criada. aridade de um trailer é seu status atrativo. Seguin-
Ciente das variadas maneiras através das do essa linha de pensamento, o objetivo deste ar-
quais se pode tomar conhecimento dos filmes lan- tigo é ilustrar algumas características desse for-
çados, ou mesmo daqueles que ainda não estrea- mato, visando compreender como pode ocorrer o
ram nas salas de cinema, este artigo se encarrega processo de sedução no cinema. Para tanto, ele-
de um formato inteligente e criativo, também se- geram-se três estratégias básicas aplicadas pelos

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anúncios: a montagem, a música e os protagonis- Depois disso, aparecia um texto perguntando: “Ela
tas. O estudo procura, então, dar um parecer so- escapará da toca do leão? Veja na próxima sema-
bre como essas três esferas são trabalhadas hoje na as cenas do próximo capítulo”. De acordo com
pelos trailers. Antes de partir para tal análise, é Kernan, essa é considerada, na história do cinema
interessante disponibilizar alguns dados históricos. mundial, a primeira propaganda de uma futura obra.
Conforme relato de Peter Debruge sobre a Anos se passaram e os trailers foram ad-
história do trailer no cinema americano, esse for- quirindo uma linguagem própria, assumindo hoje
mato já passou por diferentes períodos, assumin- um lugar de destaque no universo do cinema.
do funções e moldes diversificados. Debruge lem- Quem freqüenta as salas, quem é usuário de loca-
bra que, nos primórdios do cinema mundial, as- doras de vídeo e até mesmo quem utiliza a internet,
sim que as salas se popularizaram, duas dificulda- pode ter acesso ao formato e ficar sabendo as
des eram enfrentadas pelos profissionais envolvi- novas produções que estão sendo feitas. O trailer
dos nesse novo contexto. Em primeiro lugar, os é considerado, atualmente, a forma mais eficaz
donos das salas ainda não tinham uma forma de de anunciar um filme.
“delimitar” uma sessão, ou seja, as pessoas entra-
vam e podiam ficar quanto tempo quisessem no
local de exibição. A segunda dificuldade que
Debruge expõe diz respeito aos estúdios. Estes O trailer é uma preparação, e funci-
precisavam achar uma estratégia para atrair futu-
ros espectadores, pois não havia maneiras de di-
ona como t al em dois sent idos. E m
vulgar os filmes. Diante dessa problemática, foi primeiro, seria o fato de ir deixando
encontrada uma solução: separar dois filmes adja-
centes com informações sobre novas produções. o espectador já no estado de entre-
Dessa forma, começaram a ser projetados, entre ga. Em segundo, o trailer pode ser
um filme e outro, slides referentes aos materiais
que seriam lançados futuramente. Foi assim, já encarado, também, como uma prepa-
nas primeiras décadas de vida do cinema, que
nasceram os primeiros anúncios projetados na sala
ração para a próxima experiência
de exibição.
Debruge conta que esse “anúncio”, que
ocupava o lugar entre duas obras, tinha por objetivo Mesmo que esse anúncio veicule nos di-
principal chatear as pessoas para que elas deixas- versos meios de comunicação, este artigo tem
sem as salas livres para próximos espectadores. como objetivo principal falar de sua existência e
De imediato, os profissionais não perceberam o função na sala de cinema. Essa escolha se dá por-
potencial dessa idéia. Mas não tardou para que se que o foco central do estudo é no âmbito da sedu-
começasse a pensar de forma utilitária, aprovei- ção. E acredita-se que a sala de cinema favoreça
tando essa estratégia para criar um clima de sedu- uma entrega do espectador às imagens bem supe-
ção. Nesse período, os créditos finais eram pas- rior à que ocorre nos demais meios. Dando su-
sados no início do filme e, portanto, os anúncios porte a essa colocação, Cristiane Freitas (2003,
começaram a ser exibidos após o longa-metragem. p. 26) acredita que “a exibição de filmes, fora das
Daí advém o nome trailer, que deriva do verbo salas, responde a necessidades bem diferentes
tail, que significa seguir adiante. Depois de uns daquelas que levam o público ao cinema”.
anos, os trailers passaram para o início do É seguindo esse raciocínio, que aqui se pre-
espetáculo, onde continuam até hoje. O nome, tende elucidar o cinema como um ritual, um lu-
porém, permanece igual. gar que suscita agitações afetivas no sujeito. Na
De acordo com Lisa Kernan (2004), as pri- sala de exibição, o espectador encontra-se relaxa-
meiras tentativas para promover filmes com a uti- do, numa atitude propícia à descontração e favo-
lização de trailers foram feitas por volta de 1912. rável ao devaneio. As salas abrigam várias pesso-
Nesse ano, na Praia Rye, em Nova York, após a as olhando para uma tela branca que recebe um
projeção da série As aventuras de Kathlyn, se- jato de luz, e, através de pulsações óticas, possi-
guia-se um pedaço de filme que objetivava criar bilita a impressão de imagens registradas de uma
um suspense. Esse pequeno trecho mostrava a pretensa realidade. E, até o final da projeção, o
protagonista da história sendo jogada aos leões. público estará sentado, de forma receptiva, em-

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balado por um conjunto de sons que permite com- to que se estrutura este artigo, pois um trailer joga
portamentos dispersos. Faz parte também do ri- com o espectador, ele não tem a intenção de con-
tual a escuridão da sala, facilitando o estado de tar uma verdade e sim de manter um vínculo com
relaxamento e ajudando o indivíduo a esquecer as o público, seduzindo-o.
resistências à fantasia que carrega durante o dia. Baudrillard aponta que a estética do sedu-
O conforto das poltronas é outro elemento essen- tor não é divina nem transcendente, mas irônica e
cial para que ele se distensione, colocando-se em diabólica. “Sua forma não é a do ideal mas a da
estado de sonho. Assim, é possível dizer que o ci- tirada de espírito” (1991, p. 131). Com isso, ele
nema instala um regime particular de consciência – quer dizer que para seduzir é preciso ter
a “situação cinema” – fenômeno de fronteira entre a criatividade e montar uma aparência estimulante.
vigília e o sono, cuja função básica é oferecer um Essa “tirada de espírito” deve ser encarada como
prazer compensatório, um alívio imaginativo. uma boa sacada, uma articulação espontânea e
Nesse contexto de ritual, o trailer represen- inteligente dos signos. Então, é possível sugerir
ta o elemento de abertura. Ele prepara o especta- que um trailer seduz pela sua criatividade. Muitos
dor para a experiência cinematográfica, deixan- deles são compostos de jogadas inteligentes, bem
do-o em estado de entrega. Supõe-se que as pes- construídas e sedutoras.
soas não se dirigem até o cinema só para assistir
ao filme, e sim para contemplar todo o espetáculo
envolvente que lhes é oferecido. Os trailers, que
são projetados antes do filme, estão implícitos no O trailer pode ser visto como uma
ritual. O espectador geralmente quer saber quais as
produções que estão por vir. Além de ser um atrativo
construção inteligente das melhores
a mais, eles mostram novas histórias, convidando o tomadas de um filme. Ele seduz, pois
público a voltar ao cinema. O anúncio demonstra
que um espetáculo está começando, e que se trata camufla parte da história. Reverte os
de um espetáculo e não de outra coisa. signos de uma forma ágil, para que o
O trailer é uma preparação e funciona como
tal em dois sentidos. Em primeiro lugar, seria o espectador seja atraído
fato de ir deixando o espectador já no estado de
entrega. Em segundo, o trailer pode ser encarado,
também, como uma preparação para a próxima Baudrillard (1991, p. 13) coloca que a se-
experiência, isto é, ao apresentar uma nova pro- dução utiliza-se de símbolos para agir. Quem se-
dução, ele estimula no público o desejo de voltar duz cria uma realidade imaginária calcada num
ao cinema e participar de um novo espetáculo. E universo puramente simbólico. Os objetos sedu-
assim acontece centena de vezes. Essa é a lógica tores não mantêm uma ligação com a verdade,
cinematográfica. O trailer dá legitimidade para que nem com o sentido, pois permanecem no reino
o ritual cinematográfico perdure. E faz isso, prin- das aparências. Eles tudo subtraem a “sua” ver-
cipalmente, através da instauração de um proces- dade, impondo o jogo àqueles que estão sendo
so de sedução. seduzidos. E é através desse jogo das aparências
que os objetos sedutores acabam por frustrar os
sistemas de sentido e de poder. “Todas as aparên-
!"#$%&'() cias são reversíveis”, diz Baudrillard. Então, nota-
se que um trailer consegue seduzir porque faz uso
A sedução é um artifício utilizado por al- do simples jogo de estratégia elaborada para masca-
guém que quer encantar um outro. Essa é a tese rar o conteúdo do filme, fazendo com que o sentido
de Jean Baudrillard (1991). O autor explica que a lógico do espectador fique frágil, vulnerável.
sedução está no campo do ritual e que sua eficá- O trailer, dessa forma, pode ser visto como
cia deve-se à construção das aparências, livre de uma construção inteligente das melhores tomadas
um comprometimento com a verdade. Baudrillard de um filme. Ele seduz, pois camufla parte da his-
afirma que ela está ligada ao campo do jogo, do tória. Reverte os signos de uma forma ágil, para
desafio, das relações duais e das estratégias das que o espectador seja atraído. Portanto, a lei da
aparências. Um objeto sedutor não reivindica uma sedução é, em primeiro lugar, a de uma troca ritu-
verdade, ele simplesmente seduz. E é nesse âmbi- al ininterrupta entre quem seduz e quem é seduzi-

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do, na qual a linha divisória que define a vitória de
um e a derrota de outro é ilegível.
O fato é que um objeto, quando quer sedu-
zir, deve disfarçar o real. Isso porque, de acordo
com Baudrillard, aquilo que tenta se tornar mais
real que o real possui total ausência de sedução. A
sedução subtrai uma dimensão do espaço real. É
uma criação ilusória, acompanhada de fantasmas.
Seduzir é também não expor tudo, é disponibilizar
uma parcela, deixar apenas uma pequena parte à
mostra, estimulando a curiosidade no outro. E é
assim na propaganda cinematográfica. Revelam-
se partes de um todo, de forma atraente, para ins-
tigar no público a vontade de pertencer a esse
todo. A sedução retira alguma coisa da ordem do
visível, pois ela não se dá na cultura da demons-
tração total, tampouco na monstruosidade produ-
tiva. É por isso que um trailer não descortina todo
o segredo de um filme. Ele precisa deixar que a
imaginação do espectador seja acionada e reaja à
sua estratégia.
Baudrillard comenta que o real nunca inte-
ressou a ninguém. Aquilo que procura mostrar
tudo, exatamente como é, representa, para o au-
tor, uma simulação desencantada. Como exem-
plo, ele cita os filmes pornôs, pois esses tendem a
ser mais verdadeiros que a verdade. Isso seria o
cúmulo do simulacro. Com o close-up, é possível
ver o sexo de perto, de um ângulo que seja talvez
até impossível ver na vida prática.
Em oposição, as coisas que camuflam al-
guma parte do todo seriam um exemplo de simu-
lação encantada. São objetos mais falsos que o
falso. Esse é o segredo da aparência. Acredita-se
que o trailer faça parte dessa simulação encanta-
da, pois ele não objetiva ser totalmente fiel à reali-

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cidade do mundo contemporâneo. Segundo David ele registrados provavelmente em diferentes luga-
Harvey (2003), a fragmentação e a descontinuidade res do espaço real. Então, percebe-se que, por
são duas características da sociedade atual. Ele mais que as imagens do filme tenham sido capta-
ressalta a esquizofrênica corrida humana contra o das em lugares diferentes e em tempos distantes,
tempo como sendo um ponto central na vida con- a cena final é recebida pelo público como um pro-
temporânea. Segundo o teórico, o que está ocor- duto unitário e coerente. A montagem, assim, dá
rendo é uma “compressão do tempo”, na qual tudo liberdade ao diretor e enriquece a experiência do
acontece em tempo real. É uma aceleração, que público.
acarreta um uso cada vez mais exagerado de ima- O trailer, por sua vez, é uma junção de ima-
gens rápidas, gerando formatos ágeis, curtos, gens, na maioria das vezes desconexas (se com-
como os trailers. E essa agilidade advém, princi- paradas ao filme todo que já é resultado de uma
palmente, da montagem. montagem), que acabam por formar um todo. Um
Pudovkin é considerado o discípulo mais todo diferente e autônomo do todo do filme.
célebre do professor e cineasta russo Lev Jacques Aumont (1995) acredita que des-
Kulechov, primeiro a dizer que o poder atrativo de muito cedo o cinema utiliza a colocação de
específico do cinema é a montagem. Para muitas imagens em seqüência com fins narrati-
Pudovkin (1983), mon- vos. “A montagem é o
tagem seria a constru- princípio que rege a or-
ção de uma cena a par- Por ser um anúncio publicitário, sua ganização de elementos
tir de planos, de uma fílmicos visuais e sono-
seqüência a partir de linguagem se estrutura de uma for- ros, ou de agrupamen-
cenas, de uma parte in- ma particular. E é exatamente a par- tos de tais elementos,
teira de um filme a par- justapondo-os, encade-
tir de seqüências e as- tir da montagem que ele consegue ando-os e/ou organi-
sim por diante. Ele
articular várias cenas, criando uma zando sua duração”
acredita que a monta- (1995, p. 62). Para esse
gem não é apenas um nova mensagem autor, a função princi-
método para juntar as pal da montagem é nar-
cenas ou os planos se- rativa. A montagem se-
parados, e sim um método que controla a ria, então, sob o ponto de vista de Aumont, aquilo
“direção psicológica” do espectador. “A mon- que garante o encadeamento dos elementos da ação,
tagem constrói as cenas a partir dos pedaços sempre com o intuito de fazer com que a trama
separados, onde cada um concentra a atenção seja mais bem percebida pelos espectadores. Esse
do espectador apenas naquele elemento impor- seria o objetivo primeiro da montagem, mas, às
tante para a ação” (1983, p. 60). vezes, ela recebe uma outra função.
O autor revela que o tempo fílmico não se
trata de um tempo real, compreendido pelo fenô- Essa função “fundamental” e até “funda-
meno que se desenrola em frente à câmera, e sim dora” da montagem é, na maioria das ve-
de um novo tempo, condicionado apenas pela ve- zes, oposta a uma outra grande função [...]
locidade da percepção e controlado pelo número que seria uma montagem expressiva – isto
e pela duração dos elementos separados, é, uma montagem que “não é um meio, mas
selecionados para a representação fílmica da ação. um fim” e que visa a exprimir por si mes-
Toda ação ocorre não somente no tempo, mas ma, pelo choque de duas imagens, um sen-
também no espaço. O tempo fílmico é diferencia- timento ou uma idéia (AUMONT, 1995, pp.
do do tempo real pela sua exclusiva dependência 64-65).
dos comprimentos dos pedaços de celulóide que
são unidos pelo diretor. Igual à noção de tempo, a Existe, portanto, essa distinção entre uma
de espaço fílmico vincula-se também ao proces- montagem que visa essencialmente ser o instru-
so principal do cinema, à montagem. mento de uma narração clara e uma que pretende
Pudovkin aponta que, pela junção dos dife- produzir, eventualmente, choques estéticos, inde-
rentes pedaços, o diretor cria um espaço à sua pendente de qualquer ficção. Percebe-se, assim,
inteira vontade, unindo e comprimindo num úni- a presença da montagem expressiva no trailer, por
co espaço fílmico esses pedaços que já foram por esse ter pequena duração e, conseqüentemente,

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ser uma narrativa ágil. É a partir dessa constatação O acompanhamento musical de uma cena
que se coloca a hipótese de que a grandeza do pode ajudar o público a descobrir a natureza dos
trailer está particularmente na montagem. Esta sentimentos vividos na tela: alegria, tristeza, ten-
representa uma eficiente maneira de captar a aten- são, medo. Assim, sua presença terá sempre al-
ção do público. Utilizar o tempo certo, usar gum efeito naquilo que o espectador percebe de
criatividade para organizar uma ordem de ima- uma história. Tanto que, de acordo com a seleção
gens que se torne atraente e interessante: esta é a musical, a trilha sonora pode reforçar, contradi-
meta do trailer. zer ou ainda alterar a intenção original do filme.
Por ser um anúncio publicitário, sua lin- Ao dissertar sobre a função da música no cinema,
guagem se estrutura de uma forma particular. E é o compositor Bernard Herrmann1 alega:
exatamente a partir da montagem que ele conse-
gue articular várias cenas, criando uma nova men- A música na tela pode ir ao encontro e in-
sagem. No trailer, tanto as imagens quanto o som tensificar a psiquê do personagem. Ela pode
exercem um papel fundamental na ambientação e investir uma cena com terror,
construção de sentido. Os diálogos selecionados grandiosidade, alegria ou miséria. Ela
também são importantes, uma vez que, em alguns freqüentemente eleva mero diálogo à esta-
casos, não há narração para explicar a história. tura de poesia. É o elo de comunicação en-
A montagem é quase sempre dinâmica, com tre a cena e a platéia, alcançando e envol-
muitos cortes e efeitos visuais e sonoros. Assim, vendo esses elementos em única experiên-
é aceitável dizer que sua linguagem é cia (HERRMANN, 2005).
“videoclíptica”, ou seja, rápida, com várias infor-
mações simultâneas, cortes secos e um som mui- Pode-se dizer que o som de um filme dis-
tas vezes ensurdecedor. Tanto que, ao estudar a tribui-se em três categorias sonoras: os ruídos,
história do trailer, percebe-se uma revolução em os diálogos e a música. Via de regra, a música
sua linguagem na época em que a MTV lançou o vem, hierarquicamente, em plano inferior às ou-
primeiro videoclipe, em 1981. O surgimento dos tras duas. Ou seja, a música só ganha mais valor
clipes musicais influenciou a produção de trailers, que os ruídos e os diálogos em determinada situ-
que se tornaram mais ágeis e passaram a provo- ação na qual ela desempenhe um papel essencial.
car a audiência com o uso cada vez mais elabora- Apesar disso, ela é imprescindível para o resulta-
do da música. do final do trabalho.
No plano sonoro da obra cinematográfica,
a música representa o elemento abstrato, enquan-
!"#$%&'(!)#*%+,!- to os ruídos e vozes (diálogos), o elemento con-
creto. Ruídos e vozes terão sempre significado
O som no cinema sempre foi importante: concreto determinado (o ruído de água, tiros,
enfatizando, criando ou até redundando as expres- conversas); já a música, por sua natureza emi-
sões narrativas da imagem. Mesmo no cinema nentemente flexível, assume o sentido que se lhe
mudo havia um pianista encarregado de criar o quiser conferir: pode invadir tudo, ser extrema-
clima da cena. Enquanto as imagens eram mente importante na cena ou ser menos impor-
projetadas, um músico, ao lado da tela, acompa- tante que tudo na cena.
nhava o ritmo da história. Nas salas mais afortu- É então, partindo dessas constatações, que
nadas, era possível encontrar orquestras inteiras, se acredita existirem no mínimo três formas de
executando, muitas vezes, partituras originais para utilizar a música num filme. Em primeiro lugar,
o filme. Em 1926, a música deixou de ser tocada existe algo denominado música de fundo, que não
ao vivo, pois nesse ano surgiu uma tecnologia carrega uma finalidade definida, ou antes, não
chamada Vitaphone – aparelho que incluía um possui finalidade alguma. Esta funciona como um
projetor e um toca-discos, este funcionando em som ambiente e se mantém num tom baixo, sen-
sincronia com o filme. Desde então, a música vem do, muitas vezes, “apagada” pelos diálogos e ruí-
sendo utilizada de inúmeras formas pelos cineas- dos. Além dela, existem aquelas músicas com a
tas. Além de sublinhar o conteúdo emocional da função de preencher vazios, que são aplicadas nos
trama, a trilha é um instrumento narrativo valio- momentos em que não há algo mais expressivo
so, capaz de articular estados psicológicos e ex- acontecendo no filme. Por último, viria o que se
pressar sentimentos. pode chamar música incidental propriamente dita,

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aquela que procura acompanhar explicitamente a público é que ouve a canção. E interna é quando,
emoção de alguma cena. no próprio desenrolar da cena, a música está sen-
Marcel Martin (2003), no seu livro A lin- do executada. Por exemplo, quando os protago-
guagem cinematográfica, dedica algumas pági- nistas ligam o rádio, tocam algum instrumento,
nas para tratar do som e, já de início, ele salienta: estão em alguma festa, ou em outras situações
“o advento do cinema falado modificou profun- semelhantes.
damente a estética do cinema” (2003, p. 108). É interessante perceber que existe uma ten-
Além disso, o autor acredita que o som faz parte dência, no cinema atual, de aplicar acompanha-
da essência desse meio, pois, como a imagem, ele mento musical na projeção dos créditos iniciais e
é um fenômeno que se desenvolve no tempo. finais do filme. Mesmo aquelas obras que dispen-
Ele destaca algumas contribuições que a sam a música não fogem desse costume. Os pro-
chegada do som trouxe ao cinema: uma maior dutores aproveitam essa tradição para tentar esta-
impressão de realidade (as cenas tornam-se mais belecer (no início) e confirmar (no final) a atmos-
fera e o estilo do filme – tarefa às vezes muito
complicada. Seguindo esse ponto de vista,
enfatiza-se que a música no trailer também adqui-
Ao alegar que todo campo fílmico re uma considerável importância na construção
da imagem da obra. Da mesma forma que nos
instaura um campo ausente, que se- créditos, lançar mão da música nesse formato já é
ria preenchido pelo imaginário do um costume no universo cinematográfico.
Ainda, é interessante lembrar que, em al-
público, Aumont salienta que o es- guns casos, a canção aplicada no trailer não é usada
pectador é somente um papel inter- no filme. Como o trailer possui a função de sedu-
zir, ele apresenta algumas estratégias próprias, di-
pret ado pelo sujeit o ferentes das do filme, que não possui essa função
de anunciar algo. Os efeitos de som, portanto,
devem ser trabalhados cautelosamente no trailer,
para que o espectador conheça o ritmo da produ-
parecidas com a vida cotidiana, quando são acom- ção. Assim como a música, os personagens tam-
panhadas de um som ambiente); a continuidade bém auxiliam na criação da atmosfera do filme,
(o som auxilia para construir a continuidade de servindo de isca para fisgar a audiência.
uma seqüência, visto que, enquanto a imagem é
fragmentada, a música pode permanecer contí-
nua); os diálogos (que liberam, em parte, a ima- !"#!$!"%&"'%&()'#'$*+,!
gem de seu papel explicativo para consagrar-se
somente à sua função expressiva); a música (que O vínculo da platéia com o filme se dá não
contribui sensivelmente para a construção atmos- apenas pela narrativa, pela música ou pela histó-
férica da trama) e, ainda, a valorização do silêncio ria, mas também pelos protagonistas. O ritual ci-
(com o advento do som, o silêncio tornou-se uma nematográfico requer elementos de identificação
opcional estratégia dramática). para com o espectador e, desses elementos, o mais
Dentre essas, a questão da continuidade deve utilizado é o personagem. Na história do cinema
ser ressaltada, visto que o trailer trabalha com a percebe-se uma eterna busca: o vínculo
fragmentação de cenas. Muitas vezes, o anúncio permanente com o público. E é o personagem o
apresenta uma seqüência de flashes curtos e elemento que vem recebendo maior atenção e ela-
rápidos, e o que faz uma ligação entre eles – ou o boração para isso. A estrutura psicológica de cada
que os torna uma imagem homogênea – é protagonista penetra a mente do indivíduo duran-
exatamente a continuação da mesma música, que te o período da projeção. Assim, o personagem
permanece acompanhando os fatos. serve de canal de identificação, invadindo o
Uma outra questão que merece ser assina- imaginário coletivo. Acredita-se que essa esfera
lada é que a fonte dramática do som no cinema se aproxima das nuanças míticas, estando aí a
pode ser tanto externa quanto interna. É externa justificativa para o trailer utilizar essas questões
quando os personagens vivem alguma situação que na construção de sua linguagem sedutora.
não tem ligação com a música, ou seja, somente o Os protagonistas são elementos importan-

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tes por representar o lado humano do anún- !"#$%&'()*+'$,-%#)%$
cio. Voltar a atenção para esse ponto de vis-
ta é imprescindível para compreender o po- Feitas essas colocações, percebe-se que,
der de sedução do trailer, pois a maioria de- por ter uma função publicitária, o trailer conserva
les explora o conflito vivido pelo persona- um perfil atrativo, que contribui para o “aqueci-
gem central da obra. mento” do espectador. Portanto, ele deve ser per-
Ao alegar que todo campo fílmico instaura cebido como um produto que tem o intuito de
um campo ausente, que seria preenchido pelo ima- provocar no público o desejo e a curiosidade. As-
ginário do público, Aumont salienta que o espec- sim, ele mantém diferenças significativas em rela-
tador é somente um papel interpretado pelo sujei- ção ao longa-metragem. O conteúdo da história e
to. O autor fala em identificação secundária, para o perfil dos personagens são geralmente diferen-
designar o processo de relação entre imagem e tes no trailer e no filme. O protagonista apresen-
espectador, que seria estimulado principalmente tado no trailer nem sempre é o mesmo do filme,
pelos personagens. Ele garante que o filme – atra- até mesmo pelo curto tempo de duração do anún-
vés dos personagens – suscita, no público, afetos, cio. Às vezes, a figura central anunciada nem
simpatias, antipatias. chega a ser realmente um personagem, pois tudo
Seguindo nessa esfera, percebe-se que o se dá de forma muito rápida.
público se identifica até mesmo com figuras que O trailer é um movimento de imagens e sua
despreza na vida real, como, por exemplo, prosti- montagem muda o todo do filme, o contexto. O
tutas ou assassinos. “O filme excita assim, tanto trailer ganha autonomia. De acordo com a relação
uma identificação com o semelhante como uma entre uma imagem e a outra que lhe segue, o
identificação com o estranho [...] O cinema, como conteúdo é modificado. Ou seja, o sentido se trans-
o sonho, como o imaginário, acorda e revela vergo- forma e o conjunto ganha outras interpretações.
nhosas e secretas identificações...” (MORIN, 1983, Um trailer, portanto, ao utilizar imagens do filme,
p. 164). O público tende a se reconhecer em diver- mas em ordem totalmente diferente do produto
sos tipos de personagens, por isso existem vários em si, cria uma nova narrativa, alterando o senti-
tipos de filmes. Morin (1983, p. 149) clarifica: do e, conseqüentemente, a leitura que o público
faz das imagens.
Jogo não só com o herói à minha seme- Nessa mesma perspectiva, percebe-se que
lhança, mas também com o herói à minha a música pode constituir-se em um valioso recur-
dissemelhança. [...] Pode-se também jogar so expressivo do anúncio. Seu papel essencial é
a favor do criminoso ou do fora da lei, se acentuar a emoção das cenas, visto que, muitas
bem que a digna antipatia das pessoas hones- vezes, é a impressão sonora que reforça a im-
tas o reprove mal ele cometa o ato que lhes pressão visual. Sua força de expressão é sugerir
satisfaz os seus mais profundos desejos. ou reforçar o significado das imagens. Por isso, a
escolha da música a ser usada no trailer deve ser
Propõe-se que, durante o trailer, acon- feita atentamente, visto seu poder persuasivo em
tece a projeção do espectador no persona- relação ao clima do filme. A música-tema fica li-
gem. E se esse processo acontecer de forma gada às imagens, tornando-se um elemento
mística, a projeção perdurará após o constitutivo do continente criado pela obra. Se a
espetáculo. Ou seja, o sujeito se encanta pelo canção for bem empregada, ela vira parte da iden-
personagem e este fica registrado na sua tidade da película. Muitas pessoas poderão ser
memória. É então que o trailer pode atraídas ao cinema pelo fato de gostarem do can-
reconduzir alguém para a sala de cinema. tor ou da música em si. O público assiste ao filme
Alguns trailers fazem questão de apresen- também para escutar a trilha e conferir como de-
tar de forma clara e explícita o personagem cen- terminada canção foi usada dentro da história.
tral da trama. Há outros que preferem fazer um Sintetizando, é possível inferir que o trailer
suspense, deixando pistas no ar, sem entregar de adultera a ordem das cenas para não entregar o
vez o perfil do protagonista. Lançam o desafio, sentido real do filme. Geralmente, os anúncios
para que o público só desvende o tipo de perso- contam uma outra história. É uma fábula diferen-
nagem vendo o filme por inteiro. Essa tática faz te, autônoma e independente, que tem por objetivo
parte do jogo de sedução, que prioriza o segredo criar expectativa no público, função essa que o
como estratégia primária. filme em si não tem. Pela divergência de objetivos,

22 Sessões do imaginário Cinema Cibercult ura Tecnologias da Imagem


a realidade da película e a de seu trailer são distin- DESNOS, Robert. Robert Desnos. In: A experiência do
tas. Muitas vezes, o trailer mostra uma cena do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal:
Embrafilme, 1983. Pp. 315-329.
fim e em seguida uma do início, ignorando a
seqüência do filme e criando uma nova ordem EPSTEIN, Jean. Jean Epstein. In: A experiência do cine-
cronológica para a história. Apresenta um novo ma: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme,
personagem e faz uso da música para ligar as ce- 1983. Pp. 267-313.
nas, apropriando-se de canções marcantes para FREITAS, Cristiane. O cinema: objeto de uma rede de
embalar o conflito. comunicação relacional. Revista Sessões do imaginário,
Conclui-se, então, que, ao se trabalhar com número 10. Porto Alegre, 2003. Pp. 23-28.
o cinema como um espetáculo, o trailer deve ser
HARVEY, David. Condição Pós-moderna: uma pesquisa
visto como um elemento importante, por possibi- sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola,
litar a circulação das informações e por assumir 2003. 349 p.
um papel de destaque na abertura da sessão. Com
este estudo, percebeu-se que para compreender KERNAN, Lisa. Coming Attractions: reading american
movie trailers. Austin: University of Texas Press, 2004.
esse formato, é necessário compreender, primei- 294 p.
ro, o processo de sedução. E esta, como foi dito,
se baseia na construção inteligente e instigante da MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São
aparência. Para alcançar esta “tirada de espírito”, Paulo: Brasiliense, 1990. 281 p.
sugere-se que um trailer deve se apoderar das três METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo:
esferas aqui trabalhadas, combinando-as de for- Perspectiva, 1972. 295 p.
ma criativa e, assim, gerando um todo. Todo este
que deve convencer o espectador, oferecendo-lhe a MORIN, Edgar. Edgar Morin. In: A experiência do cine-
ma: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme,
oportunidade de experimentar novas emoções. 1983. Pp. 143-172.
Por fim, salienta-se que o cinema, por ser
um ritual baseado no eterno retorno, precisa de MUNSTERBERG, Hugo. Hugo Munsterberg. In: A expe-
riência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Edições
elementos que façam perpetuar sua existência. O Graal: Embrafilme, 1983. Pp. 27-54.
trailer, em sintonia com as outras formas de di-
vulgação, executaria esse papel. POMMER, Mauro Eduardo. O espectador é um outro. In:
Estudos SOCINE de Cinema, ano III 2001. Porto Ale-
gre: Sulina, 2003. Pp. 285-291.

%*+() PUDOVKIN, V. V. Pudovkin. In: A experiência do cine-


ma: antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme,
1983. Pp. 57-73.
*
Mestre em Comunicação Social/PUCRS.
XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema: antolo-
1
Pequena história da música de cinema, em http:// gia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983. 484p.
www.scoretrack.net/musicadecinema.html.

!"#"!$%&'()

AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993.


317 p.

___. A estética do filme. Campinas: Papirus, 1995. 310p.

BAUDRILLARD, Jean. Da sedução. Campinas: Papirus,


1991. 207 p.

DEBRUGE, Peter. A brief history of the trailer. Dispo-


nível em: <http://www. movietrailertrash.com/views/
history.html>. Acesso em 10/06/05.

DELEUZE, Gilles. Cinema 1: A imagem-movimento. São


Paulo: Brasiliense, 1985. 266 p.

Port o Alegre no 14 Dezembro 2005 Famecos/PUCRS 23

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