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Quando a mídia
se torna gerenciável:
Streaming​, pesquisa de filmes e o Multiplex Celestial1

David Bordwell2
Tradução: Renato Cabral3

Nunca será exibido no multiplex Celestial:


Liberty Belles​ (Del Henderson, 1916)4

Uma mesa redonda de diretores5 para o ​The Hollywood Reporter


diz muito em poucas palavras:

Fernando Meirelles​: Em junho, ​Dois Papas esteve em 35 festivais.


Depois teremos duas ou três semanas nos cinemas. E então
chegaremos na plataforma [Netflix]. Quero dizer, não poderia ser
melhor.

1
Publicado originalmente em: ​When media become manageable: Streaming, film research, and the Celestial Multiplex​ -
http://www.davidbordwell.net/blog/2020/01/22/when-media-become-manageable-streaming-film-research-and-the-celestial-multiplex/
2
David Bordwell é professor emérito Jacques Ledoux de Estudos Fílmicos na Universidade de Wisconsin–Madison. As suas publicações, incluindo mais
de uma dezena de livros que são referenciais para quem estuda cinema, foram traduzidas e publicadas internacionalmente. Entre seus livros estão ​A Arte
do Cinema: uma Introdução ​(Editora da Unicamp, 2013), escrito em colaboração com a professora e investigadora Kristin Thompson. Bordwell escreve
desde 2006, junto de Thompson, em seu blogue ​www.davidbordwell.net​, onde este artigo está publicado originalmente. Em seu currículo ainda estão
incluídos diversos artigos, entrevistas, apresentações em congressos e presença em festivais internacionais.
3
Renato Cabral é crítico de cinema, curador e mestrando em Estudos de Arte - Estudos Museológicos e Curatoriais pela Universidade do Porto, em
Portugal. Graduado em Cinema e Animação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) também escreve para o Calvero - Crítica de Cinema.
4
Imagem: http://www.davidbordwell.net/blog/wp-content/uploads/Liberty-Belles-600-1.jpg
5
​https://www.hollywoodreporter.com/features/a-revolution-cinema-martin-scorsese-greta-gerwig-director-roundtable-1263404
Martin Scorsese​: Estamos vivendo mais do que uma evolução.
Estamos numa revolução da comunicação e do cinema ou dos
filmes ou o que você quiser chamar.

Meirelles casualmente omite os DVDs, em determinado momento


o formato mais rápido de consumo adotado pelos consumidores
de mídias. O que aconteceu com os discos? A seguir irei
problematizar a afirmação de Scorsese que os streamings foram
gatilho de uma revolução. É mais um caso de evolução do que a
emissão de uma mudança radical, como Engels e a transformação
de quantidade em qualidade, ou a afirmação de Hemingway que
ele foi empobrecendo devagar, depois rapidamente.

Mais importante, eu tentarei avaliar o impacto que o streaming


teve no que Kristin Thompson, eu e outros pesquisadores e
professores tentamos — estudar o filme como uma forma de arte
em suas dimensões históricas.

Gerenciando seu tempo, seus filmes

Se estamos procurando por um ponto de virada revolucionário, eu


sugeriria o momento em que os filmes deixaram de ser assistidos
por compromisso. Quando eram exibidos nas salas você tinha um
acesso limitado. O filme estava lá por um tempo (até A Noviça
Rebelde eventualmente saiu de cartaz) e você tinha que assistir
em horários específicos. Na televisão aberta ou a cabo, as mesmas

6
Imagem: http://www.davidbordwell.net/blog/wp-content/uploads/VHS-display.jpg

2
condições se aplicavam. Mas com a chegada do consumo das fitas
cassetes nos anos 1970, o espectador recebeu um controle maior.

Akio Morita da Sony chamou de "mudança do tempo". A frase,


astutamente posicionada como uma defesa da cópia off-air,
captura o apelo fundamental da mídia física. Você poderia assistir
um filme em casa, quando você quisesse. Sim, o VHS e até mesmo
a Beta produziam imagens gastas e som ainda pior, mas ​(a) as
salas não eram necessariamente muito melhores, e ​(b) ​o aluguel
de fitas era mais barato que um bilhete de cinema. Mais
importante era a regra geral da tecnologia da mídia: para o
mercado de massa, conveniência supera a qualidade.

O videocassete varreu o mundo nos anos 1980 e deu aos filmes


mais um mercado. Muitos realizadores independentes podiam
conseguir financiamento para um projeto baseado na venda
antecipada das fitas. O ​laserdisc ganhou alguma atenção na década
de 1990, tornando-se um tipo de formato transitório. Melhorou a
qualidade (melhor imagem analógica, som digital), mas tinha
algumas desvantagens também. Um filme não caberia numa
única face do disco e seu preço era mais que das fitas. O ​laserdisc
permaneceu um formato de nicho, principalmente por
educadores e entusiastas do ​home-theater​.

Em uma resenha sobre ​O Irlandês​, ​um crítico sugeriu7 que a


maioria das pessoas iria deixar de assisti-lo nos cinemas e iriam
assistir na Netflix, onde é "mais manejável". Com fita ou disco,
seja analógico ou digital, os consumidores ficaram acostumados
com o alto grau de gerenciamento. Eles poderiam pausar, pular
para frente ou para trás, acelerar para frente ou para trás, tocar
bem devagar e acima de tudo dar play no filme por diversas vezes.
DVDs fizeram todas essas opções mais rápidas e mais
convenientes do que as fitas. O mercado estourou. Videolocadoras
tornaram os discos disponíveis para aluguel enquanto as fitas

7
https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2019/11/netflix-irishman-review-martin-scorsese-robert-de-niro/601261/

3
eram oferecidas em lojas de varejo em liquidação por preços cada
vez mais baixos.

Mas havia problemas. Nos anos 2000 houve um excesso de DVDs


e os consumidores começaram a notar que após algumas
semanas do lançamento, diversos títulos acabavam nos cestos de
ofertas. Um rápido mercado secundário desenvolvido graças à
doutrina americana de "primeira venda", virtuosamente
explorado pela Redbox. Pior, havia a pirataria. Piratear fitas
analógicas degradou a qualidade por gerações, mas com os discos
digitais você poderia extrair clones perfeitos. Qualquer
adolescente poderia hackear o código da região e o software
anticópia.

O disco Blu-ray foi um aprimoramento para a primeira geração


de DVDs e surgiu junto de muitas pessoas adquirindo telas em
alta definição e widescreen. Apropriadamente controlados, os
discos Blu-ray pareciam bons, eles possuíam maior capacidade
de armazenamento. Alguns consumidores ficaram
entusiasmados, mas o formato aprimorado não conseguia
impedir o ​declínio da venda dos discos8. Para completar, a
justificativa da indústria para o Blu-ray era sua dificuldade para
extração de dados, porém os hackers conseguiram violar os
códigos com velocidade absurda.

Deste ângulo, o streaming é paralelo à projeção digital: uma nova


fase na era contra a pirataria. Da mesma forma, como nas
exibições de cinema, você está pagando por uma experiência e
não um item. Você não está comprando um objeto que você pode
copiar ou revender. Se um filme está disponível somente pelo
streaming, você está alugando algo que é impossível de possuir
legalmente. Um aspecto da capacidade de gerenciamento —
possuir um filme — é trocado por conveniência e, finalmente, por
acesso limitado, como tentarei mostrar.

8
https://www.cnbc.com/2019/11/08/the-death-of-the-dvd-why-sales-dropped-more-than-86percent-in-13-years.html

4
Não tão suavemente no stream

Com o streaming, a era da exibição agendada parece mais ou


menos terminada. E a visão infinita da Internet incentivou os
técnicos a imaginar algo como o Celestial Jukebox, um vasto
multiplex virtual no qual todos os filmes estarão disponíveis. Se o
iTunes e Spotify fizeram algo assim com a música, por que não
com o cinema?

Vamos considerar os ​prós e contras do streaming ​para os


consumidores habituais e para os realizadores.

Obviamente, existe a ​conveniência​. Depois de monstruosas fitas


cassete, DVDs pareciam adoravelmente finos. Agora, reunidos em
pilhas escorregadias, eles têm sua própria aura sinistra. Com o
streaming, não há necessidade de correr até a loja de vídeos ou
comprar uma nova prateleira para armazenar uma biblioteca
protuberante de discos.

Existe também o preço, comparado seja pelos bilhetes de cinema


ou as mensalidades de tv a cabo. De $6.99 por mês (Disney+) a
$12.99 (Netflix), serviços de streaming prometem disponibilizar
TV e filmes bem baratos. E existe o alcance de escolha, que
mesmo em streamers de segunda categoria excedem à capacidade
das videolocadoras da maioria das cidades no passado. Por fim,
existem muitos filmes obscuros à espreita nos cantos da maioria

9
Imagem: http://www.davidbordwell.net/blog/wp-content/uploads/Netflix-menu-500.jpg

5
dos streamers, portanto, a alegria da descoberta ainda está
presente de alguma forma.

No lado do contra, existe um que recebe mais atenção — a erosão


adicional da "experiência do cinema". Críticos dão ênfase aos
prazeres que surgem ao estar em uma plateia, mas isso sempre
parece superestimado. Há mais valor para mim na escala da
imagem e som que você recebe em uma sala de cinema. Eu gosto
que meus filmes se imponham.

Acima de tudo, há uma virtude na ​falta de capacidade de


gerenciamento. No cinema você não pode pausar o filme,
retroceder ou pular para frente. Você pode fechar seus olhos,
olhar para outro lugar ou ir embora, mas no fundo você está lá
para entregar seu estado sensorial para o realizador, para passar
por uma experiência que você não controla. Esse controle
inabalável em sua atenção produz alguns dos efeitos mais
poderosos do cinema.

10

É claro que a condição da visualização privada não é única do


streaming. Também não é outra desvantagem, a da expiração
cíclica e atualização do "conteúdo" nas plataformas de
streaming. Estávamos avisados, certamente. Jornais e websites
alertam notificando quando um título está deixando o serviço —
talvez por pouco tempo, talvez por muito ou até mesmo para

10
Imagem: http://www.davidbordwell.net/blog/wp-content/uploads/Leaving-Netflix-400.jpg

6
sempre. E essa situação é um pouco como os DVDs fora de
catálogo. Mas ao menos algumas cópias existem para serem
vendidas usadas ou clonadas como arquivos. Enquanto
trabalhava no meu livro sobre a década de 1940, fui felizmente
surpreendido ao saber que eu poderia rastrear títulos misteriosos
em discos esgotados e a preços justos. Quando algo que não existe
em disco deixa o streaming, como você o acessa?

Eu acho que haverá alguma contrariedade quando os assinantes


aprenderem sobre os custos que mais e mais serviços estão
enfrentando. Sim, com o Amazon Prime por US$ 119 por ano, você
obtém acesso a muitos filmes, além de outros serviços. Mas para
muitos filmes, a Amazon exige uma taxa extra de aluguel e acesso
a muito curto prazo. Na Amazon, existem canais (Britbox, HBO
Now, Starz, Cinemax, etc.), todos os quais exigem pagamentos
adicionais por assinatura. Quando as pessoas começarem a
perceber que os streamers terão licenças exclusivas para títulos,
eles sentirão a necessidade de se inscrever em muitos serviços.
Aqui, como em outros lugares, o preço total do streaming começa
a parecer taxas de cabo. Até o N
​ ew York Times notou11.

Outro problema não irá incomodar a maioria dos consumidores,


mas é importante. Um título transmitido na plataforma estará
ocasionalmente em uma proporção de tela incorreta. Mais
comum, um Scope (2.39 ou mais) a imagem será cortada para
1.85. Eu notei isso ​alguns anos atrás12, confiando em um site que
mostra transferências defeituosas da Netflix, mas esse site parece
ter sido assumido pela ... p
​ rópria Netflix13.

A Netflix dirá, com todos os "provedores de conteúdo", que eles


conseguem os melhores materiais de seus licenciadores. Eu não
assisto streaming o suficiente para saber o quão comum
aparecem errado os aspect ratios, mas se você souber de
exemplos, gostaria de ouvir sobre.

11
https://www.nytimes.com/2020/01/20/opinion/future-dvds-streaming.html
12
http://www.davidbordwell.net/blog/2015/01/25/filling-the-box-the-never-ending-pan-scan-story/
13
http://whatnetflixdoes.tumblr.com/

7
Finalmente, até mesmo as empresas de streaming podem entrar
em colapso. A não ser que a Apple compre um estúdio (Lionsgate?
MGM? Columbia?), elas precisam contar com conteúdos
originais, e podem muito bem fracassar. No dia em que escrevo
este texto, ​um gerente de fundo de cobertura14 prevê que já
atingimos o pico Netflix. Dada a grande concorrência, o
crescimento mais lento e a aceleração de cancelamentos, ele
afirma que a Netflix está diminuindo. Se reduzir ou fracassar
(atualmente possui uma dívida de ​US$ 12,43 bilhões15), o que
acontecerá com o material licenciado e o conteúdo original?

E os criadores? Cineastas, especialmente roteiristas, desfrutaram


de um ​boom​. Pode ser uma bolha, com mais de 500 séries
roteirizadas disponível na televisão aberta, no cabo e no
streaming. Ainda assim, deu a todos muitas oportunidades. O
documentário, em particular, desfrutou de uma sobrevida.

E os longas continuam muito bem, ao menos na Netflix. No top 10


de lançamentos da plataforma de transmissão em 2019, sete eram
longas-metragens. Mas essas proporções podem mudar. Além
dos grandes filmes licenciados pelos estúdios, o impacto na
programação de filmes "eventos" que são proprietários (​War
Machine, Bird Box​) é um tanto efêmero. (Obviamente ​Roma e ​O
Irlandês são exceções.) A força do streaming, parece para mim, é a
mesma coisa que manteve a televisão aberta: narrativas em série.
Daí a popularidade de ​Friends e ​The Office​, além de ​House of Cards e
Orange Is the New Black​.

Como as redes de TV, um streamer precisa de um fluxo constante


e confiável de conteúdo — não apenas muitos programas, mas
muitos episódios. O modelo da série, mesmo que em seis ou oito
partes, garante a lealdade do espectador a longo prazo. Mesmo
que todos os episódios sejam disponibilizados de uma só vez, a

14
https://www.hollywoodreporter.com/news/david-einhorn-netflix-narrative-is-finally-coming-an-end-1271703
15
https://variety.com/2019/digital/news/netflix-debt-junk-bond-2-billion-content-spending-1203377007/

8
promessa de continuação após um intervalo de um ano ou vários
meses mantém o espectador disposto a esperar até a próxima
temporada.

A pressão sobre os criadores é esperada. Como a forma segue o


formato, escritores e produtores serão incentivados a apresentar
ideias de séries. Um amigo meu apresentou um filme para um
serviço de streaming. Os executivos adoraram a ideia, mas a
queriam como uma série e já estavam examinando o esboço do
roteiro em busca de um ponto da trama que poderia lançar uma
segunda temporada. Algumas das séries de streaming que eu já vi,
principalmente ​Wormwood​, de Errol Morris, pareciam esticadas.

Se um cineasta lança um filme numa plataforma de streaming,


podem aparecer outros problemas. Somos todos conscientes que
realizadores independentes ganham poucos royalties do
streaming; o grande pagamento deles tende a ser a aquisição
inicial. Ao mesmo tempo, eles não possuem a certeza de que as
pessoas estão assistindo ao filme inteiro. Meu barbeiro não
conseguiu acabar ​O Irlandês​, mesmo com intervalos para ir ao
banheiro.

Os streamers parecem ter aceitado ruminar como básico para a


experiência de visualização. Para fins de avaliação da visualização
total, a ​Netflix contabiliza como "exibição"16 de um filme ou
programa um mínimo de dois minutos. Nesse recorte da regra
dos dois minutos, podemos esperar que os cineastas preencham
suas cenas de abertura com o suficiente para nos prender a
atenção. Isso vai ao encontro da televisão e dos filmes
influenciados pela televisão, é claro, que costumam ter um teaser
forte antes mesmo dos créditos. Agora, ao que parece, as músicas
pop para os serviços de streaming estão sendo criadas com
introduções mais curtas e refrões antecipados para ​"chegar na

16
https://variety.com/2019/film/news/netflix-popular-movies-2019-murder-mystery-irishman-1203453297

9
melhor parte o quanto antes"17 Talvez os cineastas tentarão a
mesma coisa. Talvez eles já estejam tentando.

Streaming e a pesquisa de filmes

18

Homem-Aranha no Aranhaverso
(Spider-Man: Into the Spider-Verse, 2018)

Finalmente, quais são algumas das consequências do streaming


para pesquisadores, educadores e para tudo que está ao redor de
uma cinefilia obsessiva?

Eu acho que é justo dizer que o home video, na forma de fita,


laserdisc e disco digital, democratizou o estudo sobre filmes. Do
fim dos anos 1960 em diante eu viajei para instituições de
arquivos e distribuidores de filmes para assistir produções para a
minha pesquisa. Era problemático, demorado e caro. Como um
estudante de graduação eu pegava um ônibus da cidade de Iowa
para Chicago e assim assisti produções em 16mm de Dreyer e
Sontag. Eu dirigi para a sala Eastman House para ver filmes em
projeção. Fiquei alguns meses em Paris para trabalhar na
Cinémathèque Française, como um ​visionneuse d
​ e Marie Epstein.

Como comprovação, aqui na Universidade de Wisconsin-Madison


passei centenas de horas assistindo cópias no nosso Center for
Film and Theater Research. Por décadas eu viajei à Dinamarca por
causa do Dreyer e os filmes de 1910, para o Japão pelos filmes

17
https://www.economist.com/finance-and-economics/2019/10/05/the-economics-of-streaming-is-changing-pop-songs
18
Imagem: http://www.davidbordwell.net/blog/wp-content/uploads/Spider-verse-500.jpg

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silenciosos, para Paris e Munique e ao British Film Institute e
MoMA e UCLA e Eastman House à Biblioteca do Congresso, e
acima de tudo, Bruxelas para muitos, muitos projetos.
Colecionadores, de Manhattan, Tóquio e Milwaukee me ajudaram
também. Kristin [Thompson] e eu devemos tudo aos arquivistas.

A qualidade terrível dos filmes em fitas não me ajudava a estudar


o estilo visual, mas os laserdiscs tiveram uma grande melhora.
(Os filmes de Hong Kong tinham a tendência de não serem em
Scope em fita, mas eram em laserdisc.) E um formato de
laserdisc, CAV, era preciso quanto aos frames. Você podia estudar
a tomada frame a frame, algo impossível com tantos DVDs. Existe
sempre uma troca com qualquer tecnologia.

Mesmo depois da chegada dos DVDs, continuei minhas viagens.


Eu poderia usar discos para visualização em massa em segundo
plano, mas muitas vezes ainda precisava confiar em impressões.
Às vezes eu ​queria contabilizar os frames19 (útil para observar a
montagem soviética e a ação de Hong Kong). De qualquer forma,
ao olhar para as impressões de filmes revelou-se que as paletas
de cores nos DVDs poderiam ser bem diferentes e as trilhas
sonoras eram muitas vezes limpas para o mercado caseiro. E claro
que milhares de filmes, especialmente de fora de Hollywood ou
das primeiras décadas do cinema, nunca seriam disponibilizados
para o consumidor de vídeo. Minha estada mais prolongada em
um arquivo recentemente foi em Washington, em 2017, graças ao
cargo de professor pela Kluge, que me mostrou as ​glórias da
década de 191020 em impressões que são acessíveis
principalmente a pesquisadores.

O que os estudiosos de um desdobramento analítico precisam?


Filmes inteiros podem ser pausados. Frame stills, feitos
fotograficamente ou através de um software. Trechos como
evidências das nossas afirmações. Stills e trechos são nossos

19
http://www.davidbordwell.net/blog/2007/01/28/my-name-is-david-and-im-a-frame-counter/
20
http://www.davidbordwell.net/blog/2017/02/27/anybody-but-griffith/

11
equivalentes à citação para estudantes de literatura e ilustrações
para historicistas da arte.

À parte da conveniência e das economias, a revolução do disco


produziu algo que não poderia ter de outra forma. Em um arquivo
é impossível estudar um filme em 3D. Mas graças ao Blu-ray eu
posso parar em um frame 3D (...e, por exemplo, notar a maneira
que Hitchcock faz com que o relógio suavemente saia da tela em
Disque M para Matar​, conforme imagem no final do artigo). Isso é
um benefício único - mas minguante, já que os discos 3D são cada
vez mais difíceis de encontrar e os televisores 3D quase não
existem mais. Como eu disse antes, são trocas.

Desse ponto de vista, a Netflix e suas contrapartes oferecem uma


redução em relação ao DVD e Blu-ray. Em termos de escolha,
muitos filmes não estão atualmente disponíveis no streaming e
muitos outros nunca estarão. Você pode pegar um DVD estando
online ou não, mas para o streaming você precisa de uma boa
conexão. Os controles para assistir as plataformas de streaming
não são muito precisos como os de um aparelho de DVD; avançar
devagar e retroceder para estudar cortes e gestos não são viáveis
ao que parece.

12
21 22

Quando os canais a cabo cortavam os filmes, como


frequentemente faziam, você tinha o recurso dos DVDS, talvez até
mesmo de regiões estrangeiras. Mas com as licenças exclusivas
crescendo, somente um serviço de streaming terá um filme.
Capturar frames é possível com alguns softwares, mas gravar
trechos é ainda mais complicado.

Pior de tudo, muitos filmes aparentemente nunca encontrarão


seu caminho para o disco. Eu notei primeiramente isso em 2017
quando quis comprar uma cópia de ​Já Não Me Sinto em Casa Nesse
Mundo (I Don't Feel at Home in This World Anymore), um
lançamento da Netflix de um título exibido em Sundance. Até
onde eu sei, não está disponível em DVD. O mesmo destino
aconteceu a um dos meus filmes favoritos de 2018, A Balada de
Buster Scruggs (The Ballad of Buster Scruggs). Há alguns anos
seria impensável para um filme dos irmãos Coen não ter um
lançamento em DVD. Até mesmo ​Roma ​precisou esperar por ​um
acordo com a Criterion23 para ser lançado em disco. Claramente a
Netflix, e talvez outros streamers, acreditam que colocar os

21
Imagem: http://www.davidbordwell.net/blog/wp-content/uploads/Apple-tv.jpg
22
Imagem: http://www.davidbordwell.net/blog/wp-content/uploads/Oppo.jpg
23
https://www.criterion.com/films/30124-roma

13
filmes em disco danifica o seu plano de negócio. Então Meirelles
não inclui DVDs na vida útil de O
​ s Dois Papas​.

Sem os DVDs alguns ​cinéfilos consumidores24 estão lamentando,


corretamente, a perda dos materiais extras. A ​Criterion Channel25
foi excepcionalmente generosa ao mudar seus suplementos para
a plataforma de streaming, mas outras companhias não fizeram o
mesmo. Estudiosos e professores contam com os itens bônus,
incluindo comentários de cineastas, para dar aos estudantes as
informações de bastidores e o processo criativo. Existem, eu
entendo, questões de direitos em torno dos suplementos e a taxa
de transferência de banda larga é muito alta, mas não faz sentido
fingir que a perda de versões de disco não foi importante.

Em 2013, Spielberg e Lucas declararam que ​"A TV na internet é o


futuro do entretenimento"26. Eles previram que a ida às salas de
cinema seria algo como uma peça da Broadway ou um jogo de
futebol. Os multiplexes iriam hospedar produções espetaculares
com valores altos para os bilhetes, enquanto outros filmes seriam
enviados para as casas dos espectadores. Lucas colocou a questão
na mesa redonda dos diretores que eu mencionei: "A questão
será: 'Você quer que as pessoas assistam ou você quer que as
pessoas assistam na tela grande?"

Ainda assim, a grande mudança ainda não aconteceu. Todo ano


tem seus blockbusters fracassados e os filmes grandes, medíocres
e pequenos (Blumhouse, por exemplo) que continuam em
exibição. Cinemas de arte, que dependem de itens de médio porte,
produção independente e fatias de estrangeiros, estão lutando
vigorosamente, enfatizando eventos ao vivo e o envolvimento da
comunidade.

Enquanto isso, o streaming faz com que festivais de cinema e os


arquivos fílmicos27 sejam ainda mais importantes. Festivais

24
https://www.inputmag.com/culture/streaming-services-need-bonus-features
25
https://www.criterionchannel.com/
26
https://variety.com/2013/digital/news/lucas-spielberg-on-future-of-entertainment-1200496241/
27
Bordwell utiliza o termo film archives remetendo aos locais que cuidam dos acervos de filmes, os arquivos que ficam em cinematecas e outros espaços
como até mesmo museus. [N.T]

14
podem exibir as poucas sessões que um filme consegue (como os
35 festivais que exibiram ​Dois Papas​), e cineastas, como ​Kent
Jones aponta28, estão ansiosos para que seus filmes sejam
exibidos nas telonas nestes locais. Os arquivos precisarão não
apenas preservar filmes, mas também fazer clássicos e filmes
atuais acessíveis para circunstâncias que envolvem as salas de
cinema. Cineclubes espertos como o ​Chicago Film Society29 ou a
nossa ​Cinemateque30 manterão as exibições de filmes vivas.

Antes do home vídeo, alguns estudiosos dos filmes


empreenderam o escrutínio de forma e estilo. Aqueles que
tiveram que usar máquinas de edição como ​essas31. (Um estudioso
chamou meu estudo sobre Dreyer, não admiravelmente, o
primeiro livro de moviola.) Ironicamente, assim como a
avalanche de filmes se tornou disponível para estudos
acadêmicos e as ferramentas para estudá-las de perto se
tornaram acessíveis para todos, a maioria dos pesquisadores se
afastou da história estética do cinema e do design específico de
um filme para interpretar seus contextos culturais. Existem
exceções, como os ​esforços de Yuri Tsivian32 para estudar
sistematicamente os padrões de duração das tomadas, mas eram
raros.

Qualquer que seja o valor da crítica cultural, um resultado foi


deixar a análise estética de filmes em grande parte para cinéfilos
e fãs. Felizmente, o surgimento do ensaio visual, nas mãos de
cineastas experientes em tecnologia como ​kogonada33, ​Tony Zhao
e Taylor Ramos34, acabou atraindo a ​atenção acadêmica35. A
análise fílmica retornou veiculada como vídeo-ensaio, o que é
estimulante e um formato de ensino fácil. Kristin Thompson, Jeff
Smith e eu participamos dessa tendência através do nosso

28
https://variety.com/2019/film/festivals/nyff-director-kent-jones-how-he-landed-the-irishman-premiere-1203347677/
29
https://www.chicagofilmsociety.org/
30
https://cinema.wisc.edu/
31

https://www.google.com/search?q=steenbeck+editing+machines&client=safari&rls=en&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=2ahUKEwio_6yJmprnAh
WNK80KHdluC1gQ_AUoAnoECA0QBA&biw=1460&bih=850
32
http://www.cinemetrics.lv/
33
http://kogonada.com/
34
https://www.youtube.com/user/everyframeapainting
35
https://filmstudiesforfree.blogspot.com/2012/03/video-essays-and-scholarly-remix-film.html

15
trabalho com a Criterion e ocasionalmente com algumas ​aulas em
vídeo36 linkadas ao meu site.

Tudo isso foi possível através de uma revolução digital, ou


evolução, e devemos ser gratos. Ainda assim, o streaming filtra
muito do que queremos estudar. É notável que, apesar de todas as
suas deficiências, a mídia física foi nosso melhor compromisso
para manter viva a herança da análise crítica e histórica do
cinema. Perdemos em grande parte os filmes físicos como um
meio contemporâneo. (Quantos jovens estudantes ou cineastas
lidaram com uma cópia 35mm?) Agora, perder DVDs e Blu-rays é
perder oportunidades preciosas de entender como os filmes
funcionam e funcionam em nós mesmos.

Agradecimentos a todos os arquivistas, colecionadores e


companheiros de investigação que fazem nossas pesquisas tão
frutíferas e desfrutáveis em uma era pré-digital.

Uma boa entrevista sobre o streaming como negócio neste


momento é "
​ O futuro do entretenimento"37, no The Economist.

Kristin Thompson discute ainda sobre a f​ antasia do Multiplex


Celestial38 com os arquivistas Schawn Belston e Mike Pogorzelski.
Por exemplo, como assistir a um filme lentamente, vá ​aqui39.
Amostras de mesas de edição vá a
​ qui40 e especialmente na série
de posts sobre a Library of Congress que começa a
​ qui41. Em uma
outra postagem42 eu discuto o uso do 3D em ​Disque M para Matar​.

P.S. 24 de janeiro de 2020 - E então apareceu isso:

36
https://vimeo.com/user14337401
37
https://www.economist.com/briefing/2019/11/14/the-future-of-entertainment
38
http://www.davidbordwell.net/blog/2007/03/27/the-celestial-multiplex/
39
http://www.davidbordwell.net/blog/2007/07/22/watching-movies-very-very-slowly/
40
http://www.davidbordwell.net/blog/2013/01/22/sometimes-two-shots/
41
http://www.davidbordwell.net/blog/2017/04/02/movies-in-the-mountain-and-on-the-machine/
42
http://www.davidbordwell.net/blog/2012/09/07/dial-m-for-murder-hitchcock-frets-not-at-his-narrow-room/

16
43

Do Twitter da Netflix: ​"Incrivelmente animado e honrado em anunciar que


O Irlandês, História de um Casamento, Indústria Americana e Atlantics se
juntarão à @Criterion Collection no final deste ano."

44

Disque M para Matar (​ Dial M for Murder, 1954).

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