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MUDANÇAS TECNOLÓGICAS E PATRIMÔNIO CULTURAL A substituição do Vinil


pelo CD por Fabiano Fazion Dezembro de 2007

Preprint · March 2021


DOI: 10.13140/RG.2.2.31617.99686

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Fabiano Fazion
Universidade Federal do Paraná
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MUDANÇAS TECNOLÓGICAS E PATRIMÔNIO CULTURAL
A substituição do Vinil pelo CD
por Fabiano Fazion
Dezembro de 2007

RESUMO – Este artigo trata da substituição das gravações realizadas em discos de vinil para
aquelas efetuadas em discos digitais, os CDs, partindo dos conceitos desenvolvidos por Roger
Chartier de que o meio material de veiculação da mensagem influencia na sua recepção. Através de
uma revisão dos processos de mudança pelos quais passaram as gravações analógicas, bem como da
qualidade sonora intrínseca destas gravações, o artigo procura analisar como o discurso da mídia e
das empresas envolvidas na mudança condicionou a opinião do público consumidor, a despeito de
estas informações nem sempre estarem respaldadas na experiência prática com os produtos em
questão. Por fim, o artigo aborda a relação das mudanças tecnológicas com a preservação do
patrimônio cultural, constatando a possibilidade de resistência às tentativas, por parte de grupos de
interesse, de impor mudanças através de relações de mercado.

PALAVRAS-CHAVE – História do Disco; Patrimônio cultural; mudanças tecnológicas.

Quem hoje tem mais de 40 anos talvez ainda se lembre de um aparelho chamado
'Telex' (figura 1). Era uma máquina usada para o envio e recebimento de mensagens
escritas, derivado do telefone, que utilizava fitas perfuradas e ocupava um espaço enorme.
Os mais novos provavelmente nunca ouviram falar do Telex, e talvez nunca vejam um
exemplar. Quando surgiu o fax, o telex foi abandonado e desapareceu.

Figura 1 – Máquina de Telex c. 1965.


Fonte: http://www.anosdourados.blog.br/2013/10/imagens-velharia-aparelho-de-telex.html

1
Acostumamos-nos com estes desaparecimentos, pois o desenvolvimento
tecnológico apresenta aparelhos cada vez menores, supostamente mais eficientes, com
funções antes inusitadas, sempre com um design mais 'moderno'. Daí que não prestamos
muita atenção quando um aparelho novo surge para substituir um antigo; somos
constantemente bombardeados com a mensagem do progresso, que pretende nos fazer crer
que nosso mundo está melhorando, que as novas tecnologias vão nos trazer enfim a tão
esperada felicidade, ou pelo menos nos levar para mais perto dela1.
A maioria de nós passou de fato a esperar com avidez pelas novidades e, como
quem se livra de um fardo, a descartar as velharias com alívio. Preservar muitas vezes é
visto como uma excentricidade, um apego ao passado que estorva a chegada do novo.
Neste contexto, como podemos interpretar a substituição dos discos de vinil pelo cd,
que aconteceu a partir dos anos 1980 ? Segundo Chartier, "as formas produzem sentido", e
a informação depende do meio pelo qual ela é veiculada; segundo o autor, "a leitura é uma
prática encarnada em gestos, espaços, hábitos"2; propomos estender estas afirmações
também para a audição dos discos – há uma diferença de recepção quando muda o formato
dos discos, quando mudam as práticas relacionadas com a audição.
A substituição ocorreu por iniciativa das indústrias fonográfica e eletrônica,
contando para sua aceitação com uma intensa campanha de mídia que visava tanto
esclarecer quanto convencer os consumidores de que ela era conveniente e desejável.
Em 1979 surgiu no Brasil uma revista da Editora Três chamada Somtrês, que
durante quase uma década foi a única publicação voltada para o grande público que tratava
de questões relativas ao consumo de discos e aparelhos de som. A revista contava com
patrocínio publicitário das grandes indústria eletrônicas nacionais e estrangeiras, bem como
da indústria fonográfica atuante no Brasil à época. Como a mudança de mercado do vinil
para o CD ocorreu entre 1979 e a metade da década de 1980, as matérias e a publicidade da
revista cobrem o período e o processo, servindo de base para esta pesquisa, que busca
identificar que leitura podemos fazer hoje do discurso da indústria fonográfica e da mídia a
respeito do processo de mudança.

1
A questão do progresso ligado à modernidade foi extensamente analisada por, entre outros, Marshall
Berman (de modo mais geral) e Nicolau Sevcenko (o caso brasileiro); ver bibliografia.
2
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Revista Estudos Avançados, vol. 5, no. 11. São
Paulo, jan/abr 1991. p. 178.

2
Partindo desta leitura, tentamos explicar a permanência de um mercado de discos de
vinil em muitos países, inclusive no Brasil, que apresenta sinais de estar voltando a crescer
no séc. XXI.

ANTECEDENTES - UMA CRONOLOGIA

Conseguiríamos imaginar um mundo sem música? Hoje ela está o tempo todo conosco,
em casa, no carro, no elevador, no MP3-player... Mas nem sempre foi assim. Antes da
invenção da música gravada e do rádio, ouvir música era um privilégio, que dependia
basicamente de se saber tocar um instrumento, ou contar com a presença de alguém que o
soubesse.
Somente com o aperfeiçoamento das técnicas de gravação foi que se ampliaram as
possibilidades de divulgar um número crescente de músicas, com sua conseqüente
incorporação ao cotidiano. Para entender melhor a cultura ligada aos discos, vamos rever os
momentos marcantes desta história, e acompanhar os desenvolvimentos e as
transformações tecnológicas e de mercado da trajetória dos discos, a partir de informações
compiladas de diversos artigos da Revista Somtrês (principal veículo de mídia relacionado
à industria fonográfica e musical brasileira nos anos 1970/80) e de contra-capas de discos3,
acrescidas de comentários analíticos.
Os registros a respeito começam com Edouard Leon-Scott, que em 1857 descreveu para
a Academia de Ciências da França a teoria de construção de um aparelho de gravação,
chamado Phonoautograph. Embora Scott não tenha conseguido desenvolver um aparelho
que reproduzisse o que o Phonoautograph gravava, seu aparelho serviu de base para estudos
de Alexander Graham Bell, em seu desenvolvimento do Telephone, que por sua vez serviu
de base para ulteriores desenvolvimentos.
Em 1869, Charles Cros começou a desenvolver estudos que o levariam a dar 'voz' ao
mudo Phonoautograph. Em 1877, enviou seus estudos para a Academia de Ciências da
França, seis meses antes de Edison fazer seu primeiro Phonograph.

3
cf. citados em 'Fontes'.

3
Também em 1877, Emile Berliner demonstrou seu Gramophone, utilizando
praticamente as mesmas idéias de Cros, que consistiam em marcar um sulco em uma
superfície macia. Um processo totalmente mecânico.
No mesmo ano, Thomas Edison desenvolveu gravações em cilindros de metal, depois
substituídos por cilindros de cera, utilizados em um aparelho batizado de 'Phonograph'. Foi
Edison que primeiro desenvolveu um aparelho capaz de gravar e também reproduzir os
sons.
Em 1888, os aparelhos com cilindros passaram a ser industrializados, com a
participação, nos laboratórios de Edison, de Emile Berliner. Foi Berliner que desenvolveu,
em 1893, um processo que permitia a confecção de múltiplas cópias a partir de um original
gravado, entrando a música na era da reprodutibilidade técnica. Ele também desenvolveu o
formato dos discos planos giratórios, facilitando os processos industriais e a utilização das
gravações.
Berliner criou uma empresa chamada Victor Speaking Talking Machine Co., depois
incorporada pela RCA, que veio a ser tornar uma das gigantes do setor.
Para os padrões atuais, as gravações eram sofríveis, mas para a época representavam
uma verdadeira revolução cultural e de consumo.
Já na década de 1890 as primeiras unidades do fonógrafo começam a aparecer no Rio
de Janeiro, importados por James Mitchel; no início de 1898, atingiram quantidade razoável
para comercialização. Fred Figner funda a Casa Edison, responsável por cerca de 80% da
comercialização dos discos no Brasil durante as primeiras décadas do séc. XX.
Em agosto de 1902 é lançado o primeiro suplemento de discos brasileiros pela Casa
Edison. O primeiro disco brasileiro, Zon-O-Phone n.º 10.001, foi 'Isto é bom', interpretado
por Bahiano.
Em dezembro de 1902 os discos da Casa Edison passam a ser prensados na fábrica
Odeon, no Rio de Janeiro. Na década de 10 começam a surgir selos concorrentes à Casa
Edison: Faulhaber, Phoenix e Gaúcho, além da Columbia, que importava discos dos
Estados Unidos e da Europa.
Em 1912 passou-se a utilizar válvulas para amplificação do sinal, bem como gravadores
que utilizavam fios metálicos como medium. Era o início do processo que iria transformar o
processo mecânico de gravação (que prevaleceu até 1927) em um sistema eletro-mecânico.

4
Com a Primeira Guerra Mundial, a necessidade de equipamentos para telecomunicação
impulsionou as pesquisas, melhorando a qualidade dos microfones e possibilitando o
surgimento dos alto-falantes, uma invenção inglesa.
Paralelamente a estes eventos, desde o final do séc. XIX estava sendo desenvolvida a
tecnologia do rádio, que viria a estar profundamente ligado à história do disco.
Na comemoração do centenário da Independência, 7 de setembro de 1922, acontece a
primeira transmissão de rádio no Brasil. A Rádio Sociedade do Rio de Janeiro seria
inaugurada no dia 1º de maio do ano seguinte. Com a divulgação das músicas e dos artistas
propiciada pelo rádio, mais um impulso foi dado à indústria fonográfica.
Em julho de 1927 sai pela Odeon o 1º suplemento de gravações eletromecânicas.
Até esta época, a gravação da matriz para copiagem de um disco era realizada
diretamente sobre um disco de acetato, ou seja, eram gravações ao vivo num processo
conhecido como 'corte direto'. Isto causava grandes dificuldades técnicas e operacionais. Os
gravadores de fio metálico apresentavam uma qualidade de som muito inferior á obtida
pelo corte direto.
Em 1935, os alemães conseguiram desenvolver um processo de gravação utilizando
uma fita de acetato recoberta por óxido de ferro magnetizável, cujo gravador era chamado
de 'Magnetophon'. Esta técnica permitia uma sensível redução de custos, maior facilidade
operacional e, o que era mais importante, uma qualidade sonora muito superior aos
gravadores anteriores. Depois da guerra, esta tecnologia foi apropriada pelos aliados, que
passaram a desenvolvê-la. Assim, tornou-se possível gravar eventos ou as performances
dos artistas em fita, para depois transferir a gravação para o acetato e então produzir a
matriz a partir de onde seriam feitas as cópias dos discos. Isso possibilitou uma mudança na
maneira como as gravações eram conduzidas, revolucionando as práticas de estúdio, com a
criação de gravações multi-canal, edição e pós-produção de fitas, utilização de
equipamentos suplementares, além de demandar mais avanços tecnológicos, que seriam
intensos daí em diante.
Também como uma conseqüência das pesquisas da época da guerra, novos materiais
foram desenvolvidos, e a partir de 1948 os discos passaram a ser prensados num tipo de
plástico que ficou conhecido como 'vinil', em substituição ao material à base de goma que
era usado antes, que era quebradiço e menos maleável. O vinil permitiu um refinamento das

5
técnicas de prensagem, surgindo assim os micro-sulcos. Além de possibilitar uma
quantidade maior de material gravado num disco, este desenvolvimento também trouxe
melhor qualidade sonora. Daí resultou a mudança para uma velocidade de rotação do disco
de 33 1/3 RPM, em substituição à anterior de 78 RPM. Um disco passou a comportar cerca
de uma hora de gravação (embora o padrão de mercado tenha se fixado em cerca de 45
minutos). Os discos passaram a ser chamados de Long-Play, ou simplesmente LP. Também
data desta época o conceito de ‘Hi-Fi’, ou seja, discos considerados de 'alta fidelidade', cuja
qualidade sonora que apresentavam já atingia um nível considerado muito bom, tendo em
conta as características e limitações naturais do aparelho auditivo humano.
Em janeiro de 1951 a fábrica Sinter produz o primeiro LP brasileiro. É um disco de 10
polegadas intitulado 'Músicas para o carnaval', com vários intérpretes, no selo Capitol.
O compacto (vinil de 7 polegadas) de 45 rotações aparece em 1953, passando depois a
ser editado também em 33 1/3 RPM.
Até 1958 os discos eram Monofônicos (conhecidos como ‘mono’), ou seja, os sinais
gravados eram os mesmos em ambas as faces dos sulcos do disco. A partir de então,
passou-se gradativamente a usar dois sinais, um para cada lado do sulco, com o propósito
de ampliar a experiência auditiva e emular efeitos de espacialidade das fontes sonoras. Este
processo foi batizado de 'estereofonia bi-canal', e ficou conhecido simplesmente como
‘estéreo’. Entretanto, ainda levaria alguns anos até o estéreo tomar totalmente o lugar das
gravações mono.
No início de 1964 é abandonado por completo o padrão 78 RPM. O disco de 33 RPM
passa a ser o padrão da indústria, embora edições de 45 RPM tenham continuado a existir,
principalmente por apresentarem uma melhor qualidade de reprodução sonora.
Em meados dos anos 60 a gravadora Musidisc lança no mercado brasileiro o mini-LP de
16 rotações. O formato não obtém aceitação do mercado e deixa de ser produzido após
pouco mais de dois anos.
O LP, ao contrário, foi um formato que obteve grande aceitação. O disco de um artista
passou a ser visto como uma obra em seu conjunto, e não mais um apanhado de músicas
isoladas.
Cresce paralelamente a preocupação com as informações e imagens contidas nas capas
dos discos, que já nos anos 50 chegam a atingir o status de obras de arte; surgem os

6
encartes, e estabelece-se na segunda metade dos anos 60 de maneira definitiva a datação
dos lançamentos impressa nos selos.
Com o culto aos artistas já consolidado e a qualidade dos discos e toca-discos
melhorando constantemente, chegamos aos anos 60 com todas as condições para que
ocorresse o processo de mundialização da cultura fonográfica, com artistas vendendo
milhões de discos ao redor de todo o planeta. O caso dos Beatles é emblemático, pois a
banda que tinha sido o símbolo máximo desta 'tomada do mundo' decide num dado
momento de sua carreira interromper suas apresentações ao vivo, passando a existir para
seus milhões de fãs somente através dos discos. Inclusive porque suas criações,
impulsionadas pela crescente sofisticação tecnológica dos estúdios, muitas vezes já não
podiam ser reproduzidas ao vivo. Seu famoso disco de 1967, 'Sargent Peppers Lonely
Hearts Club Band', foi gravado com sofisticadas (para a época) mesas de mixagem de 8
canais, ainda em Mono.
O estéreo se consolida na passagem para os anos 70. Aí as coisas passaram a acontecer
mais rapidamente. Além do estéreo, surgem as mesas de mixagem com 16, 24, 48 canais, e
se sofistica o conceito de Hi-Fi, quando a qualidade da gravação e reprodução dos discos
ultrapassa os limiares da audição humana. A partir deste ponto, as limitações estavam
relacionadas a quanto se podia gastar em equipamento para ouvir o 'som perfeito'. A soma
podia chegar a alguns milhares de dólares, mas com umas poucas centenas já se podia obter
um equipamento hi-fi caseiro bastante satisfatório, que alimentado pelos (tecnicamente)
bons discos de então podia satisfazer plenamente ao mais exigente audiófilo. Ainda hoje
podemos ouvir os discos desta época e ficar plenamente satisfeitos com sua qualidade
sonora.
Claro que tudo ficaria comprometido se os discos não fossem bem cuidados. Por isso,
nos anos 60 empresas como a Columbia Records imprimiam nos envelopes protetores de
seus discos instruções sobre conservação, limpeza, armazenagem e manuseio dos mesmos,
bem como das agulhas dos toca-discos, para que o mau uso ou conservação não viesse a
prejudicar a imagem do produto.4
Entrementes, à crescente urbanização e desenvolvimento tecnológico de nossa
sociedade acompanharam a pressa cada vez maior e até um certo desleixo, uma certa

4
ver anexo 1.

7
brutalização dos gestos e dos sentidos, que não combinavam com objetos delicados e
frágeis5. Com o aumento massivo do consumo de todo tipo de bens, também os objetos em
geral foram gradativamente perdendo a aura que os acompanhava, consolidando-se a era
dos descartáveis e da obsolescência planejada.6
Uma propaganda de lançamento de um novo toca-discos da Philips, em 1979, dizia :
7
"Pouca gente neste mundo tem sensibilidade suficiente para entender estas máquinas."
Uma constatação sobre a maneira como em geral se lidava com discos e equipamentos. Era
comum então encontrarmos coleções de discos empilhados desordenadamente, sem suas
capas, sujos e riscados, a serem tocados em aparelhos de qualidade duvidosa, com agulhas
que passavam anos sem serem trocadas. Claro, o som ficava horrível. As outras opções,
como fitas cassete ou de rolo, ou tinham qualidade de som sofrível ou eram muito pouco
práticas, ou muito caras, ou um pouco de cada coisa. Com a crescente massificação, vieram
também os discos mal prensados, mal produzidos, que não contribuíam para o bom
conceito do produto. Tudo isso sem prejuízo do fato de que a evolução tecnológica
continuou, com estúdios, prensas e equipamentos, profissionais ou caseiros, cada vez mais
sofisticados e eficientes. Quem podia ter um bom equipamento, e se dispunha a conservá-lo
adequadamente, bem como os seus discos, desfrutava de qualidade de som insuperável;
uma minoria que não iria definir os rumos da indústria fonográfica.

SURGE O COMPACT DISC – O FUTURO CHEGOU?

Desde o princípio da década de 1970, pesquisadores das indústrias eletrônicas de


áudio vinham apresentando os resultados de suas pesquisas sobre meios de armazenar e
reproduzir informação utilizando técnicas digitais, em consonância com os
desenvolvimentos obtidos pelos pesquisadores da área dos computadores.
Em 1972/3 diversos laboratórios japoneses, particularmente a Denon, utilizando
uma técnica de pulsos codificados e modulados numericamente (cuja sigla em inglês é
PCM), lançam uma série de discos, hoje célebre, chamada Denon/PCM, que utilizava os

5
A este respeito, ver SEVCENKO, op. cit. em especial cap. 3, pp. 153-163.
6
cf. BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
7
Revista Somtrês, set/79, p. 33.

8
processos de gravação e masterização digitais, para então produzir acetatos analógicos e
prensar discos de vinil.
A empresa holandesa Philips era na época a líder em desenvolvimento de tecnologia
de armazenamento ótico, e em dezembro de 1974 estabeleceu um programa interno para
desenvolver a tecnologia totalmente digital, tanto para áudio como para vídeo.
Em dezembro de 1978, a Philips lança seu primeiro aparelho de vídeo-disco, que
utilizava discos de 12 polegadas e comportava até cerca de 2 horas de vídeo/áudio, ou até
cerca de 15 horas de áudio apenas. Segundo comentários da imprensa da época, o aparelho
recém-lançado
logo estará dentro de todas as casas. Não há como fugir. Senhoras e
senhores, rendam-se: o vídeo-disco chegou. 8

Como sabemos, havia como fugir, e o vídeo-disco foi um produto que não teve vida
longa. Simultaneamente, porém, as indústrias também estavam lançando seus primeiros
modelos de vídeo-cassete, cujo padrão de funcionamento ainda viria a ser estabelecido, e
que se revelou um sucesso mundial.
Em 1979 a Philips, já numa parceria com a japonesa Sony, anuncia o lançamento do
seu Compact Disc, que ficou conhecido pela abreviatura CD. O projeto inicial previa um
disco de 11,5cm de diâmetro, com capacidade para armazenar cerca de uma hora de
gravação. Mas um vice-presidente da Sony, amante de música erudita, sugeriu que o CD
pudesse comportar uma gravação da 9ª Sinfonia de Beethoven completa, o que levou a uma
alteração do projeto para um disco de 12 cm e 74 minutos de capacidade.
A imprensa em geral assumiu um tom francamente apologista ao falar do novo CD.
'O futuro chegou' e outras frases do mesmo gênero eram comuns, tanto nas publicações
especializadas em áudio ou tecnologia, como a Somtrês, quanto em outras mais genéricas.
As principais vantagens do CD em relação ao disco de vinil, apontadas por artigos
técnicos e pela publicidade da época, diziam respeito a:
1 – uma maior qualidade sonora, já que no sistema digital utilizando um processo
ótico não havia contato físico entre o dispositivo de leitura da informação e o disco,
eliminando desta forma ruídos provenientes do atrito entre agulha e disco próprios do
processo analógico (tratando-se aqui do atrito residual acrescido pelo sistema ao som

8
Revista Somtrês, abr/79, p. 16.

9
gravado, já que a leitura deste som se dava exatamente por atrito entre agulha e disco,
corretamente modulado e controlado);
2 – uma maior durabilidade do CD, anunciado como indestrutível e eterno, ao
contrário do vinil, sobre o qual se dizia ser extremamente frágil, podendo ser riscado
facilmente, sujeito a deposição de poeira dentro dos sulcos (não há sulcos no CD) e na
superfície;
3 – uma maior facilidade de operação, já que o CD podia ser pausado a qualquer
momento, a faixa escolhida a ser tocada podia ser acessada diretamente, haveria um sistema
de contagem de tempo de execução, seria possível fazer uma programação da reprodução
etc.; também não seria necessário mudar o lado do disco, já que o CD só tem um lado
gravado; seu tamanho menor permitiria um armazenamento mais fácil, inclusive sendo
guardado em caixinhas plásticas, mais 'práticas' e seguras que os envelopes de papel dos
discos de vinil.
Podemos ler em artigo de 1979, anunciando o lançamento:

Dentro dos próximos dez anos, estará se completando outro ciclo da


técnica de gravar: o disco-compacto terá substituído o LP,[...] e
ninguém mais se lembrará [...] dos problemas causados pelos discos
com massa vinílica de má qualidade, da realimentação acústica dos
toca-discos...e tantas outras coisas que vagueiam como fantasmas ao
redor da tecnologia já moribunda do long-play, essa coisa enorme e
cheia de falhas que temos acumulado há vários anos.9

Mas, como andava o mercado desta 'coisa enorme e cheia de falhas' em 1979?

HI-FI, ESTADO-DA-ARTE E NON PLUS ULTRA: O VINIL EM 1979.

No ano em que se anunciava o lançamento do CD, e se preconizava a morte do


vinil, a tecnologia analógica HI-FI tinha atingido um ponto de excelência que encantava até
os audiófilos mais severos.
Ray Dolby, uma autoridade mundial do setor de tecnologia sonora, cujo sobrenome
permanece associado ao processo por ele desenvolvido para redução de ruídos em
gravações, afirmava então:

9
Artigo de Nestor Natividade in Revista Somtrês, jun/79, pp. 19-22.

10
Comparar a gravação analógica convencional com a nova técnica
digital é comparar uma perfeição com outra perfeição. 10

Não será excessivo ressaltar aqui que Dolby classificava as gravações analógicas
como perfeitas.
No mesmo ano, várias empresas anunciavam lançamentos de novos modelos de
toca-discos. Em relação a estes aparelhos, eram comuns então expressões como 'perfeito',
'estado-da-arte' e 'non plus ultra', em concordância com a análise de Dolby. No mercado
brasileiro, em dezembro de 1979 havia a oferta de 26 modelos de toca-discos nacionais, de
12 marcas diferentes, com o mais caro custando cerca de 6 vezes o preço do mais barato.
Além de dezenas de marcas e modelos importados. Na Europa e nos Estados Unidos, a
oferta era ainda maior, variando dos modelos básicos a extravagâncias de milhares de
dólares.
Quanto aos discos, apesar de a indústria fonográfica anunciar uma possível crise de
vendas, inclusive relacionada à crise do petróleo e ao aumento do preço dos LPs, os
números continuavam em alta: numa seqüência (iniciada em 1954) de 24 anos consecutivos
de crescimento, o mercado de LPs dos EUA cresceu em 1978, em número de unidades
vendidas, 32% em relação ao ano anterior. Ainda segundo as indústrias fonográficas,
aumentava cada vez mais a pirataria, impulsionada pela crescente melhora da qualidade das
fitas cassete e pelo aumento de preço dos discos ‘oficiais’. 11
No Brasil, segundo dados da ABPD (Associação Brasileira de Produtores de
Discos), foram vendidos, nos primeiros 4 meses de 1979, 9.705.619 de LPs, registrando um
aumento de cerca de 21% sobre o número vendido no mesmo período do ano anterior, o
que colocava o país na posição de 5o. maior mercado fonográfico do mundo, sem
apresentar sinais de crise no setor. Durante aqueles 4 meses, foram lançados no mercado
1.734 novos títulos, o que significa uma média de 14,45 novos títulos por dia, sem dúvida
um número impressionante. As vendas diárias registradas no período eram, em média, de
139.315 unidades.
Um outro dado chama a atenção, entretanto, por demonstrar uma característica
problemática do mercado brasileiro: havia no país em 1979 apenas cerca de 2.000 pontos
de venda de discos, e em cerca de 90% deles só estavam disponíveis aproximadamente 100

10
idem, p. 20.

11
títulos, de uma oferta que poderia chegar a quase 20.000. Havia uma grande concentração
de lojas em São Paulo e no Rio de Janeiro, seguidos pelas outras grandes capitais, o que
significa que quem morava fora dos grandes centros urbanos tinha poucas opções de
compra, sempre restrita a alguns lançamentos mais recentes e um ou outro título cujas
vendas justificavam sua permanência nas prateleiras. Dos títulos que chegavam às lojas do
interior ou das cidades pequenas, havia sempre pequenas quantidades, que depois não eram
repostas; em pouco tempo, já não eram mais encontrados.
Isso fez com que muitos discos que foram lançados nunca tenham sido vendidos
fora do eixo Rio-São Paulo, além de estimular as vendas de alguns títulos específicos, que
por interesse da indústria fonográfica ou por algum outro fator12 tivessem uma distribuição
mais abrangente. Ao longo dos anos, em um mercado tão ávido por discos, esta situação
gerou uma demanda reprimida, o que viria a manifestar conseqüências anos depois, já na
fase da predominância dos CDs. Isto também dava margem a um comércio extra-oficial de
discos importados, realizado de forma independente por alguns lojistas ou indivíduos que
dispunham dos meios para tal, e indiretamente também impulsionou a pirataria, realizada
principalmente com fitas cassete (um mercado gigantesco), mas também com fitas de rolo e
mesmo com edições em vinil.

CD VERSUS VINIL - OS ANOS 80

Em 17 de agosto de 1982 a Polygram produziu em Hanover, na Alemanha, os


primeiros CDs em escala industrial, com uma gravação do pianista Claudio Arrau. Os
consumidores, porém, só puderam adquirir CDs a partir de março de 1983, quando as lojas
de discos receberam para vender os primeiros 120 títulos, cujo repertório ia de música
erudita a pop. Mas as vendas dos discos de vinil ainda continuavam altas.
Os CDs chegaram comercialmente ao Brasil em 1984, ano em que foi lançado o
primeiro CD player nacional. O anúncio da empresa pioneira prometia 'um som puro e
perfeito, para sempre'.13 Neste mesmo ano, em janeiro, a Le Son, tradicional fabricante

11
Revista Somtrês, set/79, p. 121.
12
Como é o caso do trabalho de alguns empresários que cuidavam da distribuição dos discos de seus artistas
contratados, em geral em alguma região específica do país.
13
Revista Somtrês, nov/84, pp. 11-14.

12
nacional de cápsulas e agulhas para toca-discos, anunciava o lançamento de uma nova e
sofisticada linha de seus produtos, que pretendia se equiparar aos melhores modelos
importados, e que demandou grandes investimentos em pesquisa e produção.
Nos Estados Unidos havia, em janeiro de 1985, 58 modelos de CD player à venda,
de 35 diferentes fabricantes, enquanto no mercado brasileiro, havia dois modelos de CD
player para vender, cada um de uma marca; os modelos brasileiros de toca-discos eram 16,
de 6 diferentes fabricantes. E as grandes marcas ainda anunciavam novos lançamentos de
toca-discos, com inovações.
Em março de 1985, um artigo sobre discos digitais, encimando um anúncio do
primeiro CD player nacional, falava do vinil nos seguintes termos :

O primitivo processo mecânico de gravação, [...] aquele que emprega


uma agulha ridícula atritando de maneira bestial a vinilite negra e
frágil, tinha mesmo que acabar. 14

Neste período ainda havia bastante incerteza por parte dos consumidores sobre
como esta história ia continuar, já que ainda havia poucos títulos lançados em CD, poucos
modelos de players e o sistema ainda era pouco conhecido, além de caro. Mas, incentivado
por uma forte campanha de marketing, muitas vezes disfarçada em supostos artigos
técnicos, e favorecido pelas más condições relativas a grande parte das audições de discos
de vinil citadas mais acima, o CD logo ganhou espaço. Acima de tudo, era o produto que
carregava consigo o status de avançado e 'moderno'.
A primeira fábrica nacional de CDs foi instalada em 1987, já que a fabricação em
outros países já não mais supria a demanda crescente, além de resultar num produto mais
caro.
Gradativamente, a situação começou a se inverter: cada vez mais discos sendo
lançados em CD, cada vez mais modelos de players, até que em 1988 os discos de vinil já
tinham perdido a liderança do mercado internacional.

13
PARA O LIXO OU MUDANDO DE MÃOS: OS ANOS 90

Devido ao atraso com que os novos produtos costumavam chegar ao Brasil, além da
menor escala de consumo da nossa população, aqui a substituição demorou um pouco mais,
e o vinil permaneceu relativamente forte até o começo dos anos 1990, especialmente nas
regiões mais pobres e periféricas do país. A produção comercial de discos de vinil em
grande escala no Brasil durou até 1997; daí em diante as gravadoras passaram a lançar seus
títulos somente em CD. Como no exterior as grandes gravadoras tinham parado de produzir
em vinil alguns anos antes, nesta época foram lançados no Brasil alguns títulos em vinil
que só existiam em CD nos demais países.
Em 1990, ainda surgiam na imprensa nacional artigos voltados a esclarecer o
consumidor sobre a nova tecnologia e convencê-lo da superioridade e excelência desta15.
Em pouco tempo estes artigos já não mais eram necessários, pois os CDs se popularizaram
rapidamente, com a expansão do público consumidor e diminuição nos preços dos
aparelhos e dos discos.
Foi no período 1996/97 que a indústria fonográfica nacional atingiu seu ápice de
vendas, atingindo a marca de 100 milhões de unidades vendidas; pouco mais de 90% deste
total era de CDs. Um dos fatores que levou a este desempenho foi um aumento significativo
no número de pontos de vendas, com os CDs sendo vendidos não apenas em lojas
especializadas mas também em supermercados, lojas de departamentos, camelôs, etc. Outro
fator foi o aumento na oferta de títulos disponíveis, dando resposta à demanda reprimida
que existia há décadas no Brasil. Mudanças nos hábitos de consumo e aumento da parcela
da população com acesso a bens de consumo também influíram neste resultado.
Surge nos anos 90, entretanto, um fenômeno inesperado (ao menos pela indústria):
alguns consumidores começam a se desencantar com o novo produto; começa também a
haver alguma revalorização do antigo disco de vinil.
O desencanto com o CD começou a acontecer em parte porque a tão anunciada
maravilha nem sempre se mostrava tão maravilhosa assim. As indústrias fonográficas e
eletrônicas tinham prometido o 'som perfeito', mas muitas vezes o CD também apresentava
deficiências neste campo, advindas de gravações mal feitas e copiagens de segunda linha.

14
Revista Somtrês, mar/85, pp24-26

14
Algumas pessoas começaram a questionar também a alegada superioridade do sistema
digital sobre o analógico na reprodução sonora, já que o sistema digital significava uma
simulação das ondas sonoras16 baseada em um processo reducionista e que dependia de um
nível de definição que sempre encontrava alguma limitação. Havia ainda os problemas dos
harmônicos, bem como da faixa passante de freqüências. Mas mesmo quem desconhecia
estes aspectos mais técnicos por vezes experimentava a sensação subjetiva de que 'o som do
vinil era melhor'.
Além disso, as tão alardeadas indestrutibilidade e durabilidade dos CD revelaram-se
um engodo, já que o disquinho de plástico, com o manuseio descuidado, facilmente se
riscava, o que, ao invés de acrescentar estalidos como no caos do vinil, ou impedia
parcialmente a audição ou mesmo inutilizava o disco para sempre. Quanto à durabilidade,
também era uma farsa, já que a camada de tinta metálica aplicada sobre a base de plástico
(esta realmente durável), além de sofrer com os riscos, ainda sofria com a ação de agentes
externos, com destaque para o suor e a gordura naturais das mãos humanas, que fazem que,
com o tempo, a tinta se solte da base e a gravação se perca.
Outro fator de desencanto era mais imponderável, mas nem por isso menos
significativo: o CD, com suas pequenas dimensões e sendo tocado dentro dos players sem
ser visto, não conseguiu estabelecer com seus consumidores a mesma relação afetiva que
havia em relação aos discos de vinil. Ao longo das décadas, os discos tinham se tornado
objetos de culto e veneração, o que incluía seu conteúdo sonoro, suas capas e material
gráfico suplementar e a própria atividade de manuseá-los, com o ritual característico, e vê-
los girando no toca-discos. Já o CD, prático e objetivo, era também frio e impessoal. Se
antes havia uma relação de indissociabilidade entre a música e seu suporte material, na
nova era tecnológica as coisas se separaram.
Assim, dois grupos se formaram, segundo as preferências pessoais dos
consumidores: um grupo maior, adepto da praticidade, ávido por novidades, confiante na
tecnologia e embalado pelas campanhas publicitárias, que gradativamente deixou de
comprar discos de vinil e de manter seus toca-discos e agulhas; dentre estes, muitos se
desfizeram de suas antigas coleções, substituindo-as por uma nova de CDs – seus discos
foram parar no lixo ou em sebos, lojas de quinquilharias e congêneres; outros, por ainda

15
Revista 'Super Interessante', maio/90, Editora Abril. São Paulo. pp. 18-24.

15
manterem alguma relação afetiva com os discos colecionados tão arduamente durante anos,
guardaram suas coleções em sótãos, porões, ou nos mais altos e recônditos compartimentos
de seus armários; alguns ainda mantiveram seus discos na antiga estante dos equipamentos
de som, sem serem usados nem manuseados por anos, como um velho espectro de um
tempo que passou mas que não pôde ser sepultado. O outro grupo, bem menor, manteve
seus discos e continuou a usá-los, ainda que encontrar agulhas para toca-discos para
comprar tenha se tornado uma atividade árdua. Por outro lado, este grupo se beneficiou do
primeiro, pois com a enorme quantidade de discos usados que foi sendo colocada no
mercado, surgiram lojas especializadas neste produto, com uma oferta de títulos que
raramente se encontrava na época em que o vinil reinava solitário. Como muitas velhas
coleções, inclusive o acervo das rádios, ressurgiram no mercado depois de décadas, títulos
raros e há muito esgotados voltaram a circular para uma nova geração de consumidores,
muitos dos quais não foram e talvez nunca venham a ser editados em CD.
Todo este processo, note-se, aconteceu sem que a ele tivesse sido dada nenhuma
atenção por parte da imprensa nem da indústria fonográfica nacionais.
Já no exterior as coisas foram um pouco diferentes. Mesmo com a predominância
do CD em termos de consumo de massa, havia um sofisticado e exigente público
consumidor de discos que não abandonou o vinil. Havia também uma oferta de sofisticados
aparelhos reprodutores, e uma produção de cópias de alto nível para atender à demanda
deste público. Consolidou-se paulatinamente o nicho de consumo dos discos de vinil, que
contava inclusive com a exigência de muitos artistas de que as gravadoras lançassem
sempre a versão de suas obras mais recentes também em vinil, ainda que em pequenas
edições. Mas também lá houve o aumento do mercado de discos usados, que inclusive se
beneficiou da oferta crescente dos países periféricos, chegando ao ponto de negociantes de
discos usados, especialmente japoneses, empreenderem viagens internacionais para
comprar discos para levar para seus países de origem.
Outro fenômeno que aconteceu nesta época foi o surgimento e popularização dos
gravadores domésticos de CD, inclusive copiadoras semi-profissionais de baixo custo; daí
resultaram um crescimento vertiginoso do mercado 'pirata'17 de discos, bem como a

16
As diferenças técnicas entre os dois sistemas estão sucintamente explicadas e analisadas no anexo 2.
17
Nome como ficou conhecida a prática de comercializar discos produzidos ao arrepio das leis de direitos
autorais e dos direitos das companhias fonográficas.

16
facilitação do processo de produção discográfica 'independente'18. A gravação doméstica de
CDs, os produtos independentes semi-profissionais ou francamente artesanais e a pirataria,
da mais bem executada à mais tosca, contribuíram para uma maior perda da 'aura' destes
discos, tornando-os um produto vulgarizado e quase descartável.
Com a crescente popularização do Hip-hop e da música eletrônica durante a década
de 90, ganharam cada vez mais publicidade os produtores musicais, músicos e DJs
envolvidos com estes estilos musicais, e muitos deles permaneceram cultuadores dos discos
de vinil, fazendo sempre que possível a apologia pública e usando os vinis em suas
performances.

SAUDADE, FETICHE, RESISTÊNCIA: OS ANOS 2000

Já no princípio do novo milênio, os efeitos do desencanto com o CD e da resistência


ao fim do vinil começam a se manifestar mais fortemente. Em setembro de 2001, por
exemplo, uma revista nacional de grande circulação, voltada ao público jovem e adulto de
classes média e alta, ligado aos esportes, ao design e à moda e com educação superior,
trazia uma matéria apresentando 'A última fábrica de vinil do Brasil'. 19
A matéria informa que ainda havia uma fábrica de discos de vinil funcionando no
Brasil, operando com o nome de PolySom. Tendo pertencido a um pastor evangélico, a
fábrica tinha funcionado até 1998 atendendo ao mercado de música religiosa voltada para
20
os fiéis da Igreja ‘Deus é Amor’. Quando mesmo este mercado praticamente deixou de
existir, a fábrica esteve prestes a fechar. Um antigo funcionário de fábricas de discos e
afeiçoado aos discos de vinil comprou então a fábrica, instalando nela mais alguns
equipamentos que tinha adquirido de outras grandes fábricas nacionais que já tinham
encerrado suas atividades. Até a época da matéria, o principal mercado da fábrica tinha sido
a fabricação de discos de Rap, Hip-hop, música eletrônica e rock independente, mas mesmo
estes pedidos estavam escassos e a fábrica já enfrentava dificuldades para se manter

18
Independente, no caso, das companhias fonográficas, embora nem sempre ao arrepio das leis de direitos
autorais.
19
Revista TRIP, set/01. Trip Editora, São Paulo. pp. 84-87.
20
O último grande grupo de consumidores de discos de vinil no Brasil foram os evangélicos, especialmente
os de classe social mais baixa, que demoraram mais a substituir seus equipamentos sonoros, tendo também
mantido um mercado de agulhas para toca-discos.

17
funcionando, tendo que recorrer ao atendimento de pedidos de confecção de outros
produtos plásticos, como copos e aparelhos anti-ácaro.
Mas a matéria não se limita a falar da fábrica, e passa a fazer uma extensa apologia
ao disco de vinil, falando de fetiches relacionados aos discos, da arte das capas, dos rituais
ligados a seu uso, das características do som analógico, incluindo depoimentos de artistas,
músicos, produtores e DJs, variando o tom das opiniões entre o saudosismo e a resistência
cultural. Todos louvando o vinil e relativizando a qualidade dos CDs.
Ao longo da década, o tema voltaria a aparecer esporadicamente na imprensa, não
apenas louvando os discos de vinil, embora muitas vezes associando a manutenção de seu
uso ao saudosismo ou a uma certa excentricidade, mas também comentando a permanência
de um mercado do produto, tanto de discos usados quanto novos (importados, estes
últimos). Muitas vezes presentes estavam a constatação de uma perda cultural com o
abandono do vinil (tanto do ponto de vista do objeto em si quanto da informação contida
nos discos, catálogo de títulos, informações adicionais do material gráfico), bem como os
comentários sobre suas características peculiares de som.
Em algumas grandes cidades brasileiras, consolidaram-se as lojas de discos
21
usados , ao mesmo tempo em que o intercâmbio de informações e mesmo o comércio
informal de discos de vinil se aproveitaram da crescente popularização da Internet para
também se expandirem.
No exterior a situação ao longo da década tem sido a de uma retomada, com o
22
mercado de vinil voltando lentamente a se expandir. Segundo dados de 2005 da BPI
(British Phonographic Industry, associação que congrega as empresas fonográficas
britânicas), os números anuais de vendas de vinil cresceram 87,3% em relação ao ano
anterior, seguindo uma tendência constante de aumento.
Na feira anual de equipamentos de áudio que acontece todos os anos em Las
Vegas/EUA, registrou-se em 2004 o lançamento de vários modelos de toca-discos, a
maioria voltados para um público muito sofisticado, mas também com modelos mais
básicos, embora seja de notar que não havia modelos realmente populares.23

21
Em Curitiba, em novembro de 2007, havia pelo menos 4 lojas especializados no comércio de discos de vinil
usados, além de existirem seções de discos de vinil em quase todos os sebos de livros; ver anexo 3.
22
Publicados pela BBCNews, no site www.BBCBrasil.com em 30/11/2005; coluna assina por Ivan Lessa sob
o título 'A volta do Vinil'.
23
Segundo dados publicados em www.hificlube.com.pt, matéria assinada por José Victor Henriques

18
Ainda nos EUA, a tabela de 16/11/07 da distribuidora de discos DSD contava com
9.547 títulos disponíveis em LP de vinil.24
Em 15/11/07, realizou-se em Curitiba a 12ª Feira do Colecionador de
CD/VINIL/VÍDEO, evento que contou com a presença de expositores do Paraná, Santa
Catarina e São Paulo, e ao qual compareceu expressivo público.25
No mesmo dia, a imprensa nacional noticiava que

O ministro da Cultura, Gilberto Gil, defende o tombamento da


PolySom, a última fábrica de discos de vinil do país, [...] em evento
para discutir o futuro da empresa criada em 1999 (sic) [...] ressaltando
a importância dos LPs para DJs e rappers [...].
Segundo Gil, a situação da Poly Som será estudada pelo ministério,
que avaliará como uma empresa 'submetida à obsolescência' pelas
mídias digitais pode ser viável. O Iphan [...] estudará o tombamento.
'Acho que a fábrica se insere nas duas formas de patrimônio: material e
imaterial', opinou Gil. 26

Para completar o quadro, em 2007 já se falava no fim do CD, cujo mercado passou
a diminuir nos últimos anos e que deverá ser substituído por alguma outra novidade dentro
de pouco tempo. Enquanto o vinil continua vivo.

CONCLUSÃO

Acompanhando a trajetória da música gravada em seus diferentes suportes e ao


longo de sua evolução tecnológica, a primeira constatação é que a relação dos
consumidores culturais está intimamente relacionada com o suporte material da
informação, fato para o qual já nos alertou Roger Chartier.27 Mesmo que os objetos na era
da reprodutibilidade tenham perdido sua aura de unicidade, segundo a observação de
Walter Benjamim28, ainda assim uma aura de outro tipo pode se estabelecer, ligada ao
conteúdo, digamos, cultural ao qual o objeto serve de suporte, bem como às práticas
relacionadas ao uso do objeto em si.

24
Tabela fornecida pelo importador Horácio de Bonis, debonis@terra.com.br., disponível para consulta.
25
Ver anexo 4.
26
Jornal Folha de São Paulo, 15 de novembro de 2007. p. 5.
27
CHARTIER, Roger. op. cit.
28
BENJAMIM, Walter. op. cit.

19
Este tipo de relação aparece com clareza quando falamos dos discos de vinil. Pelo
fato de estes objetos serem os veículos da manifestação da música (e não só da música),
eles acabam se impregnando, para seus usuários, dos aspectos emocionais e afetivos
proporcionados pela audição musical; trazendo ainda consigo imagens e outras informações
a respeito do conteúdo musical que carregam, os discos ainda acrescentam aspectos visuais
e cognitivos que só fazem aumentar a referida aura. E a própria experiência sensorial de
manipulação dos discos, condicionada pela sua fragilidade, acrescida ainda da
contemplação (com significados tanto visuais quanto cinestésicos) de seu girar ininterrupto,
tudo isto somado à fruição musical, representam uma experiência complexa e, para seus
aficionados, muito prazerosa.
Mas temos também que lembrar um outro aspecto fundamental ligado ao conteúdo
dos discos, que é o da própria conservação e veiculação das informações. Embora tenha
tantas vezes sido citada como um defeito dos discos de vinil, sua fragilidade não é tão
grande quanto os apologistas do CD tentaram nos fazer crer. É verdade que os discos de
vinil podem ser riscados e quebrados com certa facilidade, mas o problema não é menor
quando falamos de um CD, um HD (embora aqui os problemas físicos sejam outros), ou
outros media. Na verdade, os meios puramente digitais, nos quais não há contraparte física
para a informação neles contida, representam uma maneira mais frágil de conservação de
informações, visto que a informação em si nem sequer existe se não houver os meios de
decodificá-la apropriadamente, o que sempre depende de processos imateriais e, em última
análise, de uma fragilidade insuperável. Os discos de vinil, por sua vez, apenas requerem
um manuseio cuidadoso, podendo manter-se em boas condições durante décadas,
possivelmente séculos, dada a inércia própria do material com que são fabricados. Sobre
este aspecto, é interessante notar que hoje se pode encontrar facilmente, numa loja de
discos usados, discos de 40, 50 ou mais anos de idade, que mesmo tendo sido mantidos sem
maiores cuidados, às vezes mesmo com total descaso, ainda podem ser utilizados sem
maiores problemas, preservando ainda excelente qualidade sonora. Quanto aos discos bem
cuidados, podemos comprovar hoje suas qualidades numa audição, por exemplo, de um
exemplar do final dos anos 60 (quando já havíamos atingido os padrões de Hi-Fi aos quais
nos referimos anteriormente), de boa prensagem, que a nenhum audiófilo decepcionaria.

20
De tudo que foi exposto podemos concluir que estamos sujeitos a uma perda, tanto
de informações quanto de práticas e costumes, sempre que nos deixamos levar por
campanhas que visam unicamente o lucro e o consumismo, e que o velho discurso do
progresso com seus laivos positivistas ainda continua sendo forte arma no confronto
político-cultural, permanecendo nosso patrimônio cultural como o elo mais fraco da
equação.
Porém também podemos concluir, observando o caso dos discos de vinil, que a
resistência às perdas culturais pode existir, fora de qualquer âmbito de políticas públicas,
sempre que as pessoas estiverem motivadas a manter suas práticas, seus objetos, suas
construções, suas crenças. O 'progresso' e as mudanças tecnológicas não representam
instâncias inapeláveis às quais temos que nos render incondicionalmente. E as novas
formas, os novos media, podem conviver com antigos formatos ou tecnologias, sem se
excluírem mutuamente, adaptados às circunstâncias ou às preferências particulares.

FONTES:

1 – DISCOS:

- Leon Berry at the Giant Wurlitzer – A study in High Fidelity Sound. Vol. 1.
Audio Fidelity AFLP 1828.
- Per-Cus-sive Jazz. Vol. 2.
Audio Fidelity DFS 7007
- Percussive Moods – Johnny Keating's Kombo
London Phase 4 Stereo LLN 7077-S
- Persuasive Percussion
Command Quadraphonic CQD 40 00 00
- Piccolissima Serenata – Norma Avian
Columbia LPCB 37032
- The Percussive Twenties
London Phase 4 Stereo LLN 7075-S (ZAL 5164/5165)

21
obs. – Como se tratam de discos sem data impressa, e que utilizam tecnologia
estereofônica, podemos inferir que se são exemplares do período entre 1958 e 1966, já que
a partir deste ano a maioria dos LPs já trazia data de lançamento impressa no selo.

2 – REVISTAS:

- SOMTRÊS – São Paulo: Editora Três


no. 01 – janeiro de 1979 no. 07 – julho de 1979 no. 57 – setembro de 1983
no. 02 – fevereiro de 1979 no. 08 – agosto de 1979 no. 61 – janeiro de 1984
no. 03 – março de 1979 no. 09 – setembro de 1979 no. 62 – fevereiro de 1984
no. 04 – abril de 1979 no. 10 – outubro de 1979 no. 71 – novembro de 1984
no. 05 – maio de 1979 no. 11 – novembro de 1979 no. 73 – janeiro de 1985
no. 06 – junho de 1979 no. 12 – dezembro de 1979 no. 75 – março de 1985

- SUPER INTERESSANTE – São Paulo: Editora Abril


no. 05 – maio de 1990

- TRIP – São Paulo: Trip Editora


no. 93 – setembro de 2001

3 – JORNAL:
- Folha de São Paulo, 15 de novembro de 2007.

4 – PERIÓDICOS ON-LINE:

- Folha Online – 22/08/2002.


- www.bbcbrasil.com - 30/11/2005. Coluna assinada por Ivan Lessa.
- www.hificlube.com.pt, matéria assinada por José Victor Henriques.
- www.hot100brasil.com.br (sítio patrocinado pela indústria fonográfica).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1991.


_______________. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973.
BENJAMIN. Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. In:
_____. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar – A aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BOURDIEU, Pierre. A Economia das trocas Lingüísticas. São Paulo: EDUSP, 1996.
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Revista Estudos Avançados, vol.
5, no. 11. São Paulo, jan/abr 1991.
___________. A história cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil; Lisboa: Difel, 1990.
ECO, Umberto. Obra aberta : forma e indeterminação nas poéticas contemporâneas.
São Paulo: Perspectiva, 1997.
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1986.

22
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole – São Paulo sociedade e cultura
nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

23
Anexo 1

A seguir, alguns exemplos de informações


e comentários técnicos e orientações de
utilização dos discos de vinil, veiculados
em capas e encartes dos anos 60.

(listados em ‘Fontes’)
A preocupação da
indústria fonográfica
com a conservação dos
discos e agulhas,
p r e s e r v a n d o a
qualidade sonora, deixa
claro que este sempre
foi um ponto fraco dos
discos de vinil (ou de
seus usuários...)

D e t a l h e s
impressos em
um envelope
protetor de um
LP Columbia
dos anos 60.
Detalhes de contra-capas - anos 60
A profusão de detalhes técnicos, alguns
bastante complexos, mostra que a indústria
fo n o g r á f i c a e s t av a e nvo l v i d a c o m o
desenvolvimento das qualidades sonoras dos
discos, e que esta preocupação encontrava
eco nos consumidores.
O mais importante a notar nestes detalhes é a
frase em destaque, que revela uma concepção
de qualidade sonora que ia além de
tecnicismos simplistas, postura que viria a ser
abandonada com os Cds; por esta razão, o
chamado ‘corte flat’, onde a limitação das
frequências presentes nos Cds se dá apenas
na faixa ‘audível’ (entre 20Hz e 20KHz) é uma
das principais causas da impressão (subjetiva
?) de que há uma diferença entre o som do vinil
(mais ‘vivo’, mais ‘cheio’) e o do CD (’flat’, como
o jargão sugere).
Anexo 2

A seguir, as principais diferenças técnicas


entre os dois sitemas (vinil/CD)
acompanhadas de breves
comentários explicativos.
A distinção fundamental entre os dois sistemas
está ilustrada acima; o fato de no CD não haver
contato físico com o disco sempre foi apontado
como a maior qualidade do sistema, pela
diminuição de ruído e do desgaste dos discos;
porém, esta diferença não é tão representativa
quando se usa Lps em bom estado, em bons
equipamentos.
Mais importante (ao lado) é o fato de no sistema
analógico a decodificação do som por processos
elétricos se dar através de ondas, análogas às
ondas sonoras originais. Já no processo digital, a
decodificação é binária, não guardando qualquer
relação com a onda sonora - na digitalização não
há curvas, apenas uma simulação mais ou menos
definida.
Além disso, há a diferença conceitual (abaixo) :
enquanto nos áureos tempos do vinil a indústria
se preocupava com “um certo colorido sonoro,
[...] mais sentido que ouvido”, na fase do CD a
concepção se tornou mais mecanicista : corta-se
todas as frequências que ‘não se pode ouvir’, e
pouca gente percebe a diferença...
Anexo 3

A seguir, registro das principais


lojas de discos de vinil
no centro de Curitiba
em dezembro de 2007.
1 2
As quatro lojas
mostradas se
d e d i c a m
unicamente ao
comércio de discos,
novos e usados -
todas vendem
também Cds.
Além destas, grande
parte dos sebos de
livros têm também
uma seção de discos
usados.
1 - Só Música
Rua Emiliano Perneta,

3
30 - Galeria Cezar
Franco, loja 19.
2 - Old Fashion
Ru a S a l d a n h a
Marinho, 336
4
3 - Vinyl Club
Rua Ébano Pereira,
196 - loja 05
4 - Galeria do Disco
Praça Osório, 333 -
loja 20
Anexo 4

A seguir, registro fotográfico


do evento
“12a. Feira do Colecionador
de CD / VINIL / VÍDEO”
15 de novembro de 2007

(fotos do autor)
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