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Silvio Da-Rin

Espelho Partido
Tradição e Transformação do Documentário

azougue editorial
2004
copyright © 2004 Silvio Da-Rin

coordenação editorial
Sergio Cohn

projeto gráfico
Sergio Cohn e Silvio Da-Rin

capa
Sílvia Steinberg
a partir de uma foto de Jori Ivens
Prefácio, por João Moreira Salles 7

revisão
Graziela Marcolin e Sebastião Edson Macedo Nota e Agradecimentos 13

logotipo da editora baseado no poema "asa" de Rodrigo Linares Introdução 15


1 Do Cinematógrafo ao Cinema 23
2 O Protótipo de um Novo Gênero 45
D233e
3 Ao Encontro de uma Finalidade Social 55
Da-Rin, Sílvio - Espelho Partido. Silvio Da-Rin
4 A Estética do Documentário Clássico 71
Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2004. 5 Novas Técnicas, Novos Métodos 95
448p. ;cm. 6 A Invenção de uma Escritura Documental 109
7 Uma Testemunha Discreta 133
ISBN 85-88338-39-4
8 Verdade e Imaginação 149
1. Cinema 2. Cinema - Documentário I. Título 9 Antiilusionismo e Auto-Reflexividade 169
04-1342. CDD: 791.4353 CDU: 791.43-92 10 A Representação Problemática 187
Considerações Finais 221

Bibliografia 225
Créditos das Imagens 235
azougue editorial
Índice 237
www.azougue.com.br
Prefácio
João Moreira Salles

Todo documentarista enfrenta dois grandes problemas, os únicos


que de fato contam na profissão. O primeiro diz respeito à maneira
como ele trata seus personagens; o segundo, ao modo como apresenta
o tema para o espectador. O primeiro desses problemas é de natureza
ética; o segundo é uma questão epistemológica. O documentarista pode
filmar e editar seu filme sem tomar consciência da ética e da
epistemologia. É uma inconsciência perigosa, pois o filme conterá
necessariamente as duas dimensões e será medido, em grande parte,
pelas soluções específicas que adotar.
O peso da ética se avalia antes de tudo pelo fato tão simples quanto
evidente de que pessoas filmadas para um documentário continuarão a
viver sua vida depois que o filme ficar pronto - e ninguém deveria se
dar ao luxo de esquecer isso. A dimensão epistemológica é igualmente
vital: o documentário é uma representação do mundo e toda
representação precisa justificar seus fundamentos. De forma apressada,
alguém poderia resumir essas duas preocupações dizendo que o
documentarista deve ser decente e ser honesto. Ambas fazem parte do
horizonte de Sílvio Da-Rin, mas em Espelho Partido é principalmente do
aspecto epistemológico que ele se ocupa, ou seja, da honestidade da
representação. Quem ler atentamente o livro perceberá entretanto que
o termo é impróprio. Não se trata tanto de honestidade quanto do
abandono de certa ingenuidade, da crença no cinema não-ficcional como
evidência irrefutável do mundo.
8 Espelho Partido Prefácio 9

A lição mais preciosa de Espelho Partido parece ser a de nos ensinar documentaristas ajuda a determinar o apego menor ou maior à ilusão
a desconfiar do documentário, ou pelo menos, como o autor talvez do espelho.
dissesse, a desconfiar do documentário que não revela seus mistérios. Vemos assim que a vanguarda soviética, sempre alerta contra os
Com grande rigor, Da-Rin nos apresenta a história da tradição riscos de um cinema naturalista, desconfiava da sincronicidade do som.
documental e nos revela de que maneira boa parte dela foi moldada, Os poucos filmes da escola inglesa que merecem ser lembrados são
desde o início, por uma espécie de fé nos poderes de sinceridade da exatamente aqueles que adotaram um regime sonoro mais ousado e
máquina de filmar. O método de Lumiere é declinado: "Escolher o mais experimental. Os americanos do direto, imbuídos de uma crença
melhor enquadramento possível para capturar um instante da realidade quase mágica na objetividade da filmagem, recusaram todo som que
e filmá-lo sem nenhuma preocupação nem de controlar nem de centrar não estivesse em estrita sincronia com a imagem. A escola do francês
a ação". Sessenta anos depois os influentes diretores do cinema direto Jean Rouch acrescentou uma dimensão fabular ao som, o que a afasta
americano dirão palavras quase iguais. da corrente do direto americano com a qual é muitas vezes confundida.
Se pudéssemos estender um fio entre esses dois momentos, sobre É uma bela análise, e, nós documentaristas, deveríamos prestar atenção
ele estariam precariamente equilibrados todos os documentaristas nela. Em geral nos preocupamos somente com enquadramentos e
positivos, para os quais o mundo visto, percebido, é o mundo verdadeiro. movimentos de câmera. O som... bem, para muitos de nós, o som é
O documentário seria como uma duplicação do mundo, uma imagem apenas o som e basta que seja audível. Não é e não basta. Em certos
no espelho. Mesmo que o cinema direto nos tenha devolvido o prazer casos, o documentário foi reinventado por diretores que filmavam com
de observar - e tenha forçado documentaristas enfastiados a praticar "os ouvidos mais atentos que os olhos".
o exercício sempre saudável de prestar atenção no mundo -, a A análise minuciosa das diversas estratégias narrativas encerra uma
ingenuidade teórica de seus principais praticantes (mas não de todos) questão anterior, que diz respeito à própria natureza do objeto. Afinal
acabou impregnando grande parte da produção (mas não toda) de um de contas, o que é um documentário? Ainda aguardamos uma resposta
caráter ilusionista. Silvio Da-Rin desmonta a ilusão. satisfatória a essa pergunta (que talvez não venha). Olhamos para trás e
Um dos prazeres de seu livro é nos fazer acompanhar esse constatamos que ela nos atormenta desde o primeiro filme da tradição,
desmonte a partir da compreensão do som. Além de pensador do cinema, Nanook of the North, o documentário do americano Robert Flaherty cujas
Da-Rin é engenheiro de som, com uma atuação importante nesse campo. principais seqüências foram encenadas para a câmera.
Seus longos anos de trabalho o tornaram particularmente sensível às O realizador que escolhe esta ou aquela maneira de contar sua
experiências sonoras das várias correntes documentárias. Trata-se de história entende que a escolha produzirá um documentário não só
um ponto de vista extremamente original e que reforça um partido melhor, como mais próximo do seu ideal de filme não-ficcional.
de Eduardo Coutinho - repetido toda vez que seu cinema é posto Documentaristas que acreditam na necessidade de preservar a naturali-
em questão, por excessivamente falado -, de que há quase oitenta dade do mundo tendem a evitar intervenções (entrevistas, comentários,
anos o cinema é feito de imagem e de som. Da-Rin mostra como a encenações) e artifícios de filmagem e edição (alterações de velocidade,
análise criteriosa das práticas sonoras empregadas pelos movimentos planejados, montagens aceleradas). Os que duvidam da
to Espelho Partido Prc fac 1, , l1

possibilidade de apreender um mundo natural privilegiam exatamente o Os documentaristas que Da-Rin mais admira são aqueles que
oposto. Há os que sustentam que a única verdade passível de ser alcançada tentam não esconder nada dos espectadores, sobretudo o faro de eles
é aquela do próprio filme - a do personagem que se inventa diante da estarem assistindo a um filme - a uma construção da realidade, portanto.
câmera, por causa da câmera-, o que tornaria indispensável revelar aos O resultado dessa prática é que "a representação da realidade passa a
personagens, e também aos espectadores, o próprio artificio da filmagem. ser contestada pela realidade da representação". São os filmes que se
Da-Rin nos conta todas essas histórias mas sublinha: "não existe método narram, que contam a história de sua própria construção, e com isso
ou técnica que possa garantir um acesso privilegiado ao real". desvendam seus mistérios. Documentaristas assim se espalham por vários
Estratégias várias não livraram o documentário do seu problema grupos, cada qual defendendo à sua maneira e com razões próprias a
de identidade. O filme não-ficcional segue carregando essa dificuldade. adesão ao antiilusionismo. Da-Rin gosta particularmente dos que se
Alguns críticos - e suponho que Da-Rin seja um deles - sustentam que entregam a esse exercício não por ceticismo, não por descrença na
se trata de uma falsa questão. Num livro de ensaios, o editor de possibilidade de narrar o mundo. Essa vertente, digamos assim, negativa
documentários Dai Vaughan faz uma observação interessante. Ele conta do documentarismo foi sem dúvida importante. Ajudou no desmanche
que assistia a um filme de O Gordo e o Magro na televisão, um pequeno dos modos mais clássicos do documentário, sobretudo o do cinema
clássico de 1929 em que os dois comediantes fazem o papel de inglês, com sua arrogância pedagógica que ainda hoje é a herança malsã
vendedores ambulantes de árvore de Natal. Às tantas a dupla chega na do gênero. Porém, se uma paisagem arrasada pode ser útiL isso não
casa de um sujeito rabugento. O homem não gosta de ambulantes e basta. Da-Rin prefere a reconstrução.
bate a porta na cara dos dois. Eles tornam a tocar a campainha, o homem Ao expor como a tradição documental enfrentou (e enfrenta) a
abre novamente a porta, agora mais furioso, e a história se repete, numa questão epistemológica, Da-Rin oferece ao leitor brasileiro :1 primeira
escalada de mau humor e violência que culmina na destruição quase história do documentário publicada entre nós. Vários nomes importantes
total da casa. Ocorre que, durante a exibição comentada do filme, o estão presentes: Flaherty, Grierson, Vertov, Rouch, Leacock e, num
locutor da TV informou que um grave erro havia sido cometido durante capítulo final, os brasileiros Arthur Omar, Jorge Furtado e Eduardo
as filmagens: a casa que a produção alugara para ser destruída ficava do Coutinho. Mas que ninguém confunda Espelho Partido com um manual
outro lado da rua, não era aquela. Vaughan comenta que bastou essa desapaixonado cuja ambição seria apenas arrolar escolas e tradições. O
informação para transmutar uma comédia de ficção em documentário que torna este livro tão bom é antes de tudo o fato de Da-Rin ter fé.
- no caso, um documentário sobre uma equipe de filmagem que sem Enquanto boa parte da crítica contemporânea parece ter caído no conto
querer destrói com grande volúpia a casa de um pobre proprietário de certa escola francesa, segundo a qual toda representação estaria
ausente. Não importa que a história seja apócrifa (provavelmente é). O condenada ao estado de anemia existencial do simulacro, Da-Rin defende
fundamental é perceber que, bem mais do que conteúdos ou estratégias o oposto, afirmando com veemência que nenhuma imagem está fadada
narrativas, o que faz um filme ser um documentário é a maneira como a falar apenas de si mesma. Decerto é preciso desconfiar das grandes
olhamos para ele; em princípio tudo pode ou não ser documentário, conclusões, dos filmes que pretendem dizer tudo, definiti,·amente, e
dependendo do ponto de vista do espectador. não suportam a ambigüidade, mas para quem escapa dessa" fantasia, de
12 Espelho Partido

totalidade Espelho Partido demonstra que existe um caminho extra- Nota e agradecimentos
ordinário a ser percorrido. Nele, o documentarista renuncia a dissertar
sobre muitas coisas para conhecer melhor umas poucas, confiante de
que pode, e deve, falar não só do filme, mas também do mundo.

Este livro compara diferentes concepções do documentário.


Procuramos aqui identificar os fundamentos de uma tradição e as
principais tendências responsáveis por sua transformação. Muitos filmes
foram vistos e revistos. Não foi menor a atenção dedicada aos textos de
realizadores, críticos e teóricos. O centro de nossa preocupação foi
recuperar o sinuoso caminho que a idéia do documentário percorreu ao
demarcar seu território no continente do cinema.
A razão mais íntima deste trabalho é a minha atração pelo
documentário, experimentada desde a adolescência nas salas de
cineclubes e cinematecas. Nos sets de filmagem, produzindo, dirigindo
e gravando o som de documentários, fui acumulando questões que
acabaram por me levar à Escola de Comunicação da UFRJ, onde
cursei o mestrado que, em 1995, resultou na primeira versão deste
texto. Agradeço ao professor Rogério Luz o incentivo e a ampla
liberdade que, como orientador, me concedeu no desenvolvimento
da pesquisa.
Desde então, o documentário brasileiro conquistou telas e
multiplicou seu público. Surgiu uma geração de realizadores, com
projetos originais e provocativos. Aumentou o número de cursos de
cinema, aparecerem novos ensaios e o espaço de discussão sobre o
documentário tem se ampliado permanentemente. A publicação deste
trabalho, após alguns retoques no texto original, é produto de todos
estes estímulos.
,.
14 1:~pdh,, Partido

Agradeço à querida amiga Sílvia Steinberg sua inestimável


Introdução
colaboraçào; a Eliane Barroso e Cláudio da Costa pela revisão das
traduções; a Tunico Amâncio e Ana Isabel Aguiar, por terem me
encaminhado à Azougue Editorial; a todos os que cederam imagens
para ilustrar este livro; e também a Tetê Mattos, Maya Da-Rin, Daniel
Bueno e Ruy Gardnier, que contribuíram com oportunas sugestões
durante a reformulação do texto original. Por último e mais importante,
minha gratidão a Claudia Mendes, que acompanhou todo este processo,
sempre me nutrindo com doses generosas de amor e humor. Quem se propõe a abordar teoricamente o documentário se
defronta com o desafio quase intransponível de delimitar o campo. O
que é um documentário? Para alguns, é o filme que aborda a realidade.
Para outros, é o que lida com a verdade. Ou que é filmado em locações
autênticas. Ou que não tem roteiro. Ou que não é encenado. Ou ainda,
que não usa atores profissionais. Estas e outras tentativas simplistas de
balizar o terreno vão sendo sucessivamente negadas pelos exemplos de
filmes que não se enquadram nelas, mostrando que os limites sào
arbitrários e criando um labirinto interminável de exceções que acabam
por nos levar de volta ao ponto de partida. Se o documentário coubesse
dentro de fronteiras fáceis de estabelecer, certamente não seria tão rico
e fascinante em suas .múltiplas manifestações.
É fácil constatar que o nome documentán·o recobre uma enorme
diversidade de filmes, representantes dos mais diversos métodos, estilos
e técnicas. ivfas, se estes filmes se agrupam sob um mesmo nome, seria
conveniente defini-lo. E definições nào faltam, conforme a época e o~
interesses em jogo. Em 1948, uma associação de realizadores, a lfórld
Union of DocumenfatJ', definiu o documentário como:

Todo método de registro em celulóide de qualquer aspecto da realidade


interpretada tanto por filmagem factual quanto por reconstituição sincera
e justificável, de modo a apelar seja para a razão ou emoção, com o
objetiYo de estimular o desejo e a ampliação do conhecimento e das
16 Espelho Partido Introdução 17

relações humanas, como também colocar verdadeiramente problemas chega a resolver a questão. Ao contrário: agrava-a, ao criar artificialmente
e suas soluções nas esferas das relações econômicas, culturais e uma oposição extrema entre campos que, na prática, são marcados
1
humanas. por nuances e sobreposições. Godard é um dos que não acreditam
nesta oposição: "todos os grandes filmes de ficção tendem ao
Surpreendentemente, o documentário aqui se define menos no documentário, como todos os grandes documentários tendem à
plano filmico do que no plano ético. O enfoque é generalizante, os ficção. (... ) E quem opta a fundo por um encontra necessariamente
parâmetros propriamente cinematográficos são escassos e a ênfase é o outro no fim do caminho". 4
colocada nas intenções do realizador e nos possíveis efeitos do filme Uma solução talvez esteja em remeter o problema para a
sobre a audiência. Esta definição "oficial" seria imperfeita? Ao contrário: subjetividade do espectador: "o que faz um filme 'documentário' é o
como veremos, é um texto fiel às bases da tradição do documentário. modo como nós o vemos; e a história do documentário tem sido a
Outras definições, apesar de mais concisas, não são menos sucessão de estratégias através das quais os cineastas têm tentado fazer
imprecisas. A mais citada é atribuída ao inglês John Grierson, embora os espectadores verem os filmes deste modo". 5 Esta é uma saída
não se saiba em que texto ou em que contexto foi formulada: engenhosa, mas insatisfatória. Nosso maior interesse consiste exatamente
documentário é o "tratamento criativo da realidade". 2 Mais adiante esta em conhecer e comparar aquelas "estratégias", ou seja, os modos de
frase começará a fazer sentido, mas devemos reconhecer que é representação utilizados pelos cineastas.
excessivamente vaga para nos servir como porta de entrada. Outros consideram pura perda de tempo a tentativa de definir o
Os verbetes enciclopédicos costumam opor o documentário à que vem o ser o documentário e acham que este nome, ao invés de
ficção. 3 Este é, aliás, o significado que encontramos fora dos círculos designar algo_ concreto, é apenas "um cone.eito perdido". 6 E há quem
especializados, no senso comum. A mesma contraposição à ficção parta para uma negação absoluta:
caracteriza a expressão de uso corrente nos Estados Unidos: nonfiction
jilm. O que evita a tarefa árdua de produzir uma definição, mas não Não existe isto que se chama documentário - esteja este termo designando
um tipo de material, um gênero, uma abordagem ou um conjunto de
1
Citado por WINSTON, 1978/79. Em ROSENTHAL, 1988: 22. técnicas. Esta afirmação - tão antiga e tão fundamental quanto o
2
A primeira menção a esta expressão, sem citação da fonte, encontra-se em Documentary Film,
de Paul Rotha: "(. .. ) o cinem:i, (... ) encontrou ar puro fora dos estúdios à-prova-de-som-e-de- antagonismo entre palavras e realidade - deve ser incessantemente
idéias naquilo que Grierson chamou 'tratamento criativo da realidade"'. ROTHA, 1936: 68. Na recolocada, apesar da bem visível existência de uma tradição do
introdução à antologia de textos de Grierson, seu biógrafo voltou mencionar a frase, novamen-
te sem citar a fonte. HARDY, 1946: 11. A expressão desapareceu em edições mais recentes do documentário. No cinema, esta tradição, longe de viver atualmente uma
livro de Hardy. WINSTON, 1995: 264, nota 8. crise, parece fortificar-se em seus freqüentes declínios e renascimentos.~
3
"Filme didático mostrando fatos reais e não imaginários (por oposição a filme de ficção)". Le
Robert, Dictionnaire de la Langue Française; Paris, 1989. "Um filme que lida diretamente com fato e
não ficção, que tenta transmitir a realidade tal como é, ao invés de alguma versão ficcional da 4
GODARD, 1985: 144.
realidade". KONIGSBERG, 1993: 88. "Gênero cinematográfico rejeitando a ficção para tor- 5
VAUGHAN, 1999: 84.
nar presente somente a realidade". M. BESSY & J.-L.CHARDON, Dictionnaire du Cinéma et de la 6
ROSENTHAL, 1988: 3.
Télévision: 124. 7
MINH-HA, em RENOV, 1993: 90.
18 Espelho Partido
• Introdução 19

Devemos admitir que documentán·o não é um conceito com o qual concreta deste "grande regime cinematográfico" - que preferimos
se possa operar no plano teórico. Toda conceituação terá então que ser chamar de um domínio, entendido como âmbito de uma arte.
produzida pela própria análise, evitando a dupla simplificação do pro- Por ser "bem desenhado no seu centro de gravidade", o domínio
blema: seja considerar o documentário um falso objeto a ser descarta- do documentário funciona como catalisador das questões historicamente
do, seja considerá-lo um objeto dado e dotado de uma imanência. O partilhadas por uma comunidade de praticantes. Questões que, ao longo
termo documentário não é depositário de uma essência que possamos dos anos, receberam respostas contraditórias, não configurando um
atribuir a um tipo de material fílmico, a uma forma de abordagem ou a campo uniforme e contínuo. Ao contrário, periodicamente novos
um conjunto de técnicas. Todas as inumeráveis tentativas que co- movimentos e escolas aí se confrontam, dando lugar a sucessivas
nhecemos de explicar o documentário a partir da absolutização de configurações do documentário.
uma destas características, ou de qualquer outra tomada isoladamente, Por isso concordamos com Bill Nichols, que evita analisar o
fracassaram. documentário dentro de uma perspectiva totalizante. Nichols parte da
Por outro lado, não há como negar a persistência de uma tradição mesma negação de "objetos naturais" que caracteriza a abordagem
- uma espécie de instituição virtual constituída por diretores, produtores histórica de Michel Foucault. Do mesmo modo como Foucault procedeu
e técnicos que se autodenominam documentaristas, seus filmes, frente à loucura - ao invés de aceitar a existência da "loucura" como
associações, agências financiadoras, espaços de exibição, distribuidores, um objeto dado, rastreou as descontínuas construções da idéia de loucura
mostras especializadas, publicações, críticos e um público fiel. através dos tempos, em práticas e discursos correlativos -, Nichols
A nosso ver, o documentário se enquadra perfeitamente em um procura "reconhecer em que medida nosso objeto de estudo é construído
dos "grandes regimes cinematográficos" a que se referiu Christian Metz. e reconstruíde> por uma diversidade de agentes discursivos e comunidades
Regimes que correspondem às principais fórmulas de cinema, cujas interpreta tivas''. 9
fronteiras são fluidas e incertas, mas "são muito claras e bem desenhadas As diferentes tendências que, ao longo da história do cinema, foram
no seu centro de gravidade; é por isto que podem ser definidas em identificadas com este nome tão difícil de definir, não constituem um
compreensão, não em extensão. Instituições mal definidas, mas único e mesmo objeto, mas diferentes of:jetivações do documentário. Cada
instituições plenas". 8 uma delas possui seu percurso peculiar, suas plataformas estéticas, sua
De fato, estamos diante de um "regime" de fácil constatação crítica às práticas consideradas superadas e seu resgate de antecessores.
empírica - qualquer espectador que entre inadvertidamente em uma O que mantém agregado um campo tão plural é o fato de que seus
sala de cinema, em poucos minutos saberá responder se aquilo a que membros compartilham determinadas referências, ou seja, gravitam em
está assistindo é ou não um documentário. Se suas "fronteiras incertas" torno de uma mesma tradição.
desafiam o estabelecimento de uma definição extensiva, capaz de esgotar Nas páginas seguintes, vamos rastrear a gênese e a transformação
todas as ocorrências, isto não nos impede de reconhecer a existência desta tradição, a partir das condições econômicas, sociais e culturais

9
8
METZ, 1980: 45. NICHOLS, 1991: 17.
20 l!,pdho P.,udo lnuoduçio 2l

que as possibilitu:un. Antes disso, vtjamos de onde: surgiu o termo () l1'11tJ. #t#I#" J,
dMl11tf#ldrio, S\12 primeira ocoITCncia cm lírtgu2 ing)cs:1 é frcqü,c:ou:mcmc MMH/Htt#
-;ir.ribuidaH1 a. uma critica ao filme Mflt11ta (Robcn l':tahcrty, t926), esc:nta f'ft/Wl,. N" nflll11
I, 1926. e;,.,,..
por John Grier.100 e publicad2 cm ÍC\'Ct'CÍro de 1926, cm um jorn111 de
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Nova York: • •. , "'"" lrffil .. •
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de um jovem pubnésio e sua &.maia, tem v,Jor como doc:umcm:âno. Mn.
con11tdero mo sccundino dWm• de sc:u valor como s~vc brisa de um2
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ar b:mimico. AI"""' e21,1cs ck- rudo bdo como 2 nawrcu ê bcb. É belo
porque os movuncoros do j<A·nn 1'.loana e dos polmés,os ,rio
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bcl0$; e porque u ffi'Ores e as ondas borriítntCS., as nu,'tfts $úlVCS e


cncrespacbs e os honiontt:$ di.swnes são belos..11

Cricrson reconhece o valor cmogrifico do fiJmc de Flahcrty,


a.firm:mdo logo cm seguida que este ASpcctO é sccundirio. Nio somente
o trecho 1.qui cranscrit~ suficicntcmtntc rcvcl:àdor, como todo o restante
d:a critica consiste cm um elogio rugado so roman.tismo do cint:ast:a
norte-americano que antts haVU ~alizado NaltO(JJr. of 1/J( Nfrlb (Na111X>K.,
• fup,ihtô. 1922).
Quando rec.ncontn.rmos G·ricrson. no apítu.lo 3. sttá diíicil
reconhecê-lo nc:sta lou\'.tç:io i bckz2 de pan.i.sos n:mmus distantes. Ao
l.i.dcrar,. escola realista i.ngl~sa e tsttbclcccr u bases da ••:me m:uor do escrir.t $d$ anos antes. Krá considendi. ":apressada'' por seu autor. No
documentário", 11 sua escala de wlorcs tcri se invertido. E c:st2 cótica. manifesto cm que formula os princípios (undamcotais do
docwncnt:áôo.u Grierson valoriza os métodos d~ trabalho dcscnvulvid0$
• Eaa oagtm do tcflTIO,, ~ (luramr. mwtD d6carl.u, ÍOI ttUl'llfflYftlf' •p IMÂ po, Aah<-ny. m,s critica ímpi<do•:uncme. 00tno 5Clllimcncw,w e escapisw.
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22 Espelho Partido

ver no corte fundador do documentário. Mas, para melhor interpretar 1 Do Cinematógrafo ao Cinema
0
;onteúdo programático do manifesto de Grierson, será preciso fazer
um breve retrospecto pelo cinema das origens, de modo a situar o caráter
inaugural da obra de Flaherty.

Ao levantar as origens do cinema, nada mais difícil que estabelecer


datas e nomes inaugurais: o primeiro filme, o primeiro projetor, o
verdadeiro inventor ou a primeira sessão. Estes marcos, aliás, seriam de
pouca serventia, já que encaramos o cinema como parte de um processo
longo, amplo e ramificado de experiências e conquistas no campo da
projeção da imagem. Processo que tem origens remotas na Antigüidade,
passa pela câmera escura e ganha maior impulso a partir do século XVII,
com o uso da lanterna mágica e a proliferação de pesquisas ópticas
visando o registro e a reprodução do movimento. Visto assim, torna-se
mais fácil entender que o cinema não foi uma ruptura radical, nem foi
percebido como uma completa novidade por seus contemporâneos. Ao
contrário, foi experimentado como uma nova articulação de técnicas já
conhecidas, e progressivamente assimilado às formas de expressão
culturais e artísticas correntes.
Os nomes de Thomas Edison e dos irmãos Louis e Auguste
Lumiere se destacam neste processo, por terem estabelecido importantes
bases tecnológicas para a futura indústria cinematográfica. E, também,
por representarem dois paradigmas estéticos do cinema dos primeiros
tempos. Este é o aspecto que nos interessa mais de perto.
As investigações de Edison nos domínios da imagem foram
conseqüência de uma invenção anterior, o fonógrafo, que comercializou
em 1888, como uma máquina para automatizar a estenografia em
escritórios, mas que só viria a alcançar sucesso comercial como aparelho
24 Eq,elhol',,ado Do Caamu1ogn.(o 10 Oncnu. 25

de emrctenimcmo :i base d~ moctb.. para audição muskal individual


com fone de ou\'id<>. Em abril de 1894 E'.dison lançou o quinetoscópio,
l>:lsd.Jo cm prinápios .semelhantes: uma miquina a moeda com visor
mdi\lldwal par.t cxíbjção de filme.~1 Nt mcsnu. época, publicou um :migo
no qwl vislwnb,rnw um.a. r<'prescnt11ção audtovisu:U hipcr~rcalista, capaz
de! proporcion;1;r uma iJusio pcrícit2 d:a rc:a1idadc.

No ano de 1887. me ococrcu t idéi:i de que k'l!J pos.dvd 10,-cnw um


msui.uncnto <fUC 6:1.cssc p:ua C> olho o que o ínnõgr.aío faz ptrt o w,idir,
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tm NO\e:i. Yor\. sem ntnbum.1 mudlnç:i rm1em.l do originru e com arosus 'fl'IMINlipi4 .$UI priMnMI ,..,,,,., mlltl
e músicos h:i muito 1.mt.po já flllcados.' _,,,, , rp, °"◄"'J do ...,.,.,,,,,. /Jt11C , . . ,
,--, ti,••-~• ,s1,.. Bbck
t-.bna., nJ#fnt _ ,fa,«l,o P,,IA O farMJla
Quase todos os filmes produzJdos para o qu1octoscôp10, ..,_ p,t,r F.JiJio# ,., 189} pm,N•,.:r. dtf
cncomend-ados por Edisoa :t seu entio principal auxiliar, o engenheiro N Ji., llhtJ/1, tl:MJt fHld- - 1Jr.1U.tria
e fotógrafo \Villwn Dícboo, foram fúm>dos no Bidr!,, Mun•, um C$túdio mit•4F;jw.· #11114 Jc JSMAt ,.,. ~
p,,faNÇiu MM i,;,» Mfa',§ _,
fcc.hado e isolado de intttfaiéncias CXlctnas - proccdimcmo scmclham:c
ao que havia sido adotado nas gnvaçõc:s para o fonógnfo. Os temas
ttptodU7jam alguma fornu de dh--cl'$lO comercial popu.br, corno luta.S,
<b.nças, acrobacbl.s, cunosldades ffl.Jmais ou encenações mspir:acb.$ cm
peçá$ do teatro popular, com~dW, rcvist2is musicais e oúmeros orccnscs.
As fiJm:agcns consistiam c:m um:a. Unica tom:a.d.a com 2.to~ dfame de
fundos ncgroo. k,ng,,dagnndcc pc,o:,dacimt-to dc lilmag,,m, o quincuig,ofü
A, inugens eram cemr.tfu:2idu e f'rontaltn(:nlt" dlõg;das ao espectador.

1
MIJSSEJt. 1990: 81
'C--,Af~, n*"8.p 206.,,inbnde 189-4 C.mdo por UCN'.1~. 19SS. Bm flEl...01:SG.
1967: 90,
26 l!lpdho Puodo Do Cmcma1óJtr.tfo ar> Cinema 27

O mc,;mo c,tilo foi :tdowlo por Max Skladanowsky, um dos pioneiros


na projeçio de imagens animadas., que cm Jº de novembro de 1895 ,01,._,,
,,.,s., A9ffl'
,___,_,.,_
promoveu uma SC5$âO pUblici oom ingn.'$sos pago!I~ cm lktlim.
Bem distinto foi o mêcodo de mi.baJho ele Louis l,.umiêrt' :ao re:ali1.ar
k'US primd.ro~ filmes, regisu:ando pessoas c.om gcHos simples cm
sit·uiçôcs fumiliues, imcgradu aos àmbieotes naturais. Com o seu
ÓJ\Cmatógnfo. Uml.l cimcra 1~ e p<>rt~til movida a manivela. Lumiêrc
criou u.m,. imagem dcsccotndl. Wficil de .!icr :apreendida de forma
imcdut:t e wtaJ. SwtS '-'Visw" rc:sulUIJ"llm muito mais c,.tivanres que as
cnccm.çõcs -artificiais dWuc do fundo ptcto de um csrúdio, ao rc:pro·
duzircm as apuêncaas do coàdi:mo com rurpret-ndcntc rc:alismo e uma
espêcte de magia do ar livre.
Todo11 os filmes cxfüidos 02.s ptimci.ru dcmonstnçõcs do uma .flagrante unidade cstilbdca, pressupondo um comport2.mc010
cinenurógnúo e, • partir de 28 de dc,cmbro de 1895, nas sessões pagos dc-:fuúdo diante do objet:o: ..C:$COLhcr o mdhor roquadr:uMoto possível
do Gr.md Café, fo=n rcaliz:ados pesSO<llrru,ntc por Louis, fotógrafo de para capturar um in,t~ntc da realidade e filmli ~lo sem nenhuma
longa data, qw: ames h;avia ~tudado ~enho e csculru.ra. Não é de preocupação nan de controlar nem de ~tr.i.r :a ação".1
c~tnnh.u, porttJ\CO, que seus ftlmes tenham feito S\lCCSSO imedi:uo e sc- Este modelo Lurruére csti cm continuid:adc com as projeções
notab1Wdo pela ck:.,·acb qual.idade fomuJ e acústica, além de rC\·cb.rcm tuminosai; d~ bnrcm1 magica.. que há nws. de cinqüent:a aoos \-in.ham
ílus.,..ndo p,lcsrras ofet<cid.as por ví,janres. cxplorulon.-s e professores
de ciências narurais.grogr1f1:t c da nascente etnologia. A lanterna núgica.
que por séo.do$ esk\:e aswciada à f.uu~,;m:agoria e à magia. m.nsformou.
se cm um p rivilcghdo instrumento pedagógico quando foram
apcríciçoodu as condições ,êcnicas par.a a projcçio de íorogt:ÚiilS. No
mesmo ano em que o cinematógrafo Lumicrc foi bnç,ido • público, •
p.,, *""" •~
O~ :fa
Uga de Ensino distnbuia por re)<!a 2 F..,,ç• 477 bmemas, acompanhada,
• OltUII de um catilogo contendo ()ito mil clifcrcmcs vi.sw:.•
1..-u /,MS#.rt
,.,~,, O trabalho dos Lum.iCrc t1l.fflbim ptocunva se fíhar a uma

J.ftM
...,.,.."
..,,,..,.,,,, "" pr,Jt.
,.,,.
folwi.-i, , n,:,IM#
. . . «,- IDlulut-.- ,,
,·cncmc 1écnico..c-iroúfic2 de pc-.squ.isa.dorcs do movimcn10. Prow
dino são os locais cs.colh.idos pina u pnmcuas dcmonstnçõc-s do
' 8l:KOC. 196".': lCi
/111,Ú IM/ f/)tMW • GAUTHJER. 1ffl: l2.
Oo Oocmaróg:rs(o ao C,ncm,1 Z9

o,,,_,.., neste ln.mcmo de Louis Lumicre a Sadoul. c-:m uma C:t\trevista cono:did,.
1--fw!'-" cm 1946: "meus tmbalhos (oram tnbalhos de investigação técnica. J:irru.is
~m •
dll1Utllt • fiz o que se chama de 'n:üsc•cn•SCC:nc• (...). No cinema. o tempo dos
"'1A,_;o técnicos ,cabou, agora é 1. época do tc:uro..,t
fuMJ.Jdldl
F , ~ ,.,1'""' A nostalgia de Lumiere pode ~r faálmtnte explicada. Naquele
,i, 1891. N, J,, momento. meio século depois da invenção do cinemat.ógr1fo. o cinema
kf!Nttlt IIS '""'11"'
que se filiav.i. às pesquisu do movimento e ao rcgisuo cb realidade há
., _.,,,,,
J,,v- =•"'1,-.
... muito tempo pcnlcn. • ptcfmocia do público. En o cincnu de ficção
que dominava em rodo o mundo, col\ugrando o modo de tt'presentação
sugerido por Ecli.son nos tempos do quinct0sc6pio, quando sonha\-a

---- ·-
cincmuógafo, • partir de 22 de morço de 1895: • Sociedade p:m o
- com encenações operist.icas c:apncs de d:ar \'ida a .anisu,s j:i
desaparecidos. O c:aminho percorrido :ué que o cinema se tomasse apto
2 contar história., foi longo e t011lt050. Vejamos. de forma c.xt.ttnnmente
Estímulo da l.ndústàa Nacional, um c:ncontn> de doutores na Sorbon~ rcsu.:ro.kb. 1llgum bnces dcsrc proccsw.
e o CongrC$W da., Associações Francesas de Fotog.nfia. cm Lyon - No fin2.I do s.éculo X.lX., époc:a. m2rcad:a pcb c:u]t:2,çâo dos
auditórios altamente representativos da tecnocracia cicnúfica d:a progrcssõs tttnic:os., sucessivos aparelhos de capmçio e ttproduçio de
C-poca. Nio foi mcr11 coincidência o fato de que, nestas ocasiões, :a imagens cm movimento for:am 2pf"C$tflnu:l05, ao bulo de. outras invenções
dcmonslf'llçio do c111c:matôgrafo foi apcna.s o complcmoito de um clécricas e m<:?rucis, ms cxposiÇÕC$ wüver,;µs., íci.ms industriais e ,.t!ões
progr.am:i cm que a parte pàncipal era a conferêociJJ ilustrada de de novkbdes. Estas mâquinu eram Jançadas oo merado como urna
Louis 1..umiCrc sobre outra de suai J>(:Squisas no donúnio da técnica, atr.1çio em si mcrou.'!: nio eram anundtdos os tírulos dos progranu.s
a fotografiia colorida.). uibidoJ. ma, o próprio qUUlcm$ropio ou cinematógrafo. A ~ich<lc
No novo campo da imagem cm movimento, l.ou1s Lu.mictc do público pela novidade técnica dura,,. um breve período. A parúr cW,
pcneguiu uma linh:t coe.rente com CSUI trajc,ória têcnko-cicnúfica, a Wl"nu.çâo dc.stt-s dispositivos no campo do <.."flt-rttcnimcmo dependia
dcdicando--s,: il expcriênci:15 de obsen"a.çio e registro do real cxccutidas de urrua pcnnancnte rcoo~-.aç:io dos prognmas dt: filmc.1.
por va.cs de forma sistcmiti01 e com a drncn ocult:2.. Alguns de seus O cinClll2 destes primeiros tn0$ tnl profundamentt depeodcntc
6lmcs possuem mais de uma vtrSi~ com a repetição muito aproximada de OUlnS formas culturais. como o teatro popular, 2 imprensa. as his,6ri:ls
do ponlb de vis"', ~rindo o apcrfciçoamcnw sucessivo de um milbdo cm quadrinhos e as palestras com bmcrna mágica. Daí se origiruv:a 2
de apreensão do movimento. Este cuátcr de ciência aplicada, fome de inspinção pan os conteúdos, ma.s também para o próprio
contnn:unentc a qU:1.lqucr veleidade de contar histórias, coma•sc cbro modo de tcprtsc.nt:aç:io. que precisava ser comp:aúvcl com filmes

, WIU.JAMS, 1911.l:157. 'SAOOUI.., 1916-'. 107,


30 &pelho Purido Do Cinerrumgnlo ao O:ncm& )t

oonshwfdos dt um único plano, com duração inferior a um minuto? O exibidor pa.rticip:wa de vivn. vo~. conrribuindo com informações
Am5 de malabarismo. exibições de :Utcrofilisuis, dança5 e Jutas eram complcmcntMeS t" anim:mdo o cspcr:iculo com músia. e efeitos sonoros.
ações mec.inicas que nio ch~varn a dcnwldar unu. intcrprcuaçio. Já Outro recurw usado p:ini oricmar II platéfa e:cam os letreiros, exibidos
no caso das cernas cômicas ou dnmitiças,, que seguiam a Unh~ muito por l.:mtema5 de placa fixa.•
aprtciacb do budcsco e do mclodrnrrui.. CD necessário que se limit3$Scm Tom Gunning us:a o termo ••cintma de 1tr.1ções'' para o.mctenzar
a uma anução curm cm form.2 de pantomima, cm (JUt' o exagero dos cscc primeiro pcriodo, po""'do por lilmcs cxibicionisl:tS, qllé nio cbcg:un
gestos compensaw. a falta dOll mt'iOS namàvos. a narrar, mas simpl~mcntc mos1rt1.walgurn2. coisa cxcit:uur. Ao contr.irio
do cinema que v:i.i se dcsrovol\'e:t na década $Cguintc e qtlc procura
A p...,..,1,0,,,. esconder seus arrifkios para criar um mundo 6cúdo org:io.ico (a dic-ge.,t)
""••zl•rr» o primeiro cincnu funàuna como o p:alco de um 1eatr0 de ,,ancdJdcs.
(1/fOIN
-'r '•-
fllt Rll',,J;, IWIJ protnO\-endô uma integração permanente entre a tela e a pb1téfa, 2t:r.1vés
li/IM 19#1,11' J,,,/!6fW. do cnqu:ad.nmemo frontal e da i.nterpd:içio dir-eta que os personagens

~---
"""' -
Asu.l§V

11,,-,-ra.p,,w.
""""'
dirigem 30 público, por mc:K) de acrnos. plSC:ldcl:as e sorrisos.• •"Atnçoc;·'
não mun somente e-cru.o; 6Jmacbs cm cstúdi~ mas uambém p:üs;igc.ns
ou e,.·emos públicos - .tS chanudH ohlalidadu. Este conceito merece ser
o o.,l,;w C5Cbrcddo.

--
f01ft/W'l.tJV li
utnlfJ##III# FrcqúcnremCfltr o termo awúd.ldcs é cmptcg.uk> como sinônimo
tllffl#fta.lN,1# de ·•dcxumen!fflô" dos primórdios do cinema, poropaslçio is '"ficções"
.,. daquele período. Esta conctpçio, aJtm de superficial, encobre o
significado nu.is amplo au atu:a.lid.'Wc,, no comcxto do ílorcsd.mcnto
torou os cnrcd05 compreensíveis, cr:a preci.,o recorrer ~
PQ.r";\ de uma sociedade de ma.,;~ pc.-riodo de imensa urbani)'.3Çi-O, mccaniDÇio
recursos externos :i tmagcm projctad-a_ a começar pcL'l memória do e acc:lenção da c:lu.nu.da vida modt:m:a. Ao surgir. o cincnu VCJO ao
csp«cwor. que pr<$>Upunlu o comcúdo do rum., a,r.wés do tírulo e da mesmo tempo rcvdar e possibilitar una no"\'ll perccpçio daquele mundo
alusão a 2.lgwn f.ato corrente ou enredo conhecido. Por exemplo: a Paixão agi12do. uticulando,.,:e com a.;i; notiCW, os relatos t a.s f2.bu1:açõt:s que
dc Cnsto, gênero muito explorado nos primeiros ~nos do Cinema. circulavam cm outros meios de comunicação e informação. No final do
t.borda,,- ~ ,ta fTIH'ÍI na forma de qwdros rclaôviunemc t.utõnornos. século XIX~ 0$ jornais ain<b trio dispunham de tN:nicas adequadas i
Outro gêno-o corrcmc era a reconstituição simplificad:a de crimes pubb<:açilo de fmognlfm com boo dcfiniçi<> Em,.., p:ígin"" cn comwn
~$atlonais nouciados pd21 Ullprcns:a e btmtes no imaginirio coletn"Q.
• A1 ca1td» conr.mclo letn:lt\'l9 -6 pinarlo • tct futnc.adn comi) putc ffll~l'I.DIC" <klf 6lm,t,
tf.m 1m. • ~ 1 ~d r ~ dr: hlmc, .ltlvmt:aidou «r,;a ele 1.500 fikfk'l por ,,_. de 190)..1 tJrOS. Nntn pnmclrOI 11»1, enin cOJidi.1 e: Kruum.ai:lu pelo piôpno
rrm rmn do pedodo CflC' vai tti 1906, ~ l o que • ~ e I mcuw.lc deb ni\Jictot~ Mt:SSF.R, 1990- 2 e 34?.
te <Oll!Jim.. ele \,ln, un,lci:, pbl'lol,, S,.\l,T,-. Hl.SAES1Efl 1990 J.S. • GUNNJNC, nn Pl-SAP..S.S:ER.. lffi 56<62.
32 Espelho Partido

Do Cinematúgrafo ao Cinema 33

haver uma seção de fait divers, em que crimes extraordinários e fatos


Outra reconstituição notável foi a execução do anarquista Leon
bizarros eram diariamente noticiados, ao lado de folhetins que Czolgosz, que assassinou a tiros o Presidente William McKinley quando
romanceavam os acontecimentos correntes. Museus de cera, como o visitava a Exposição Panamericana. Edwin Porter, operador de Edison,
de Madame Tussaud, em Londres, e Grévin, em Paris, com suas filmou dois planos do exterior da prisão de Auburn, na manhã em que
reproduções tridimensionais de figuras públicas e de situações mundanas, ocorreria a execução; e outros dois em estúdio, encenando a retirada do
dispostas em cenários hiper-realistas, chegavam a atrair meio milhão de condenado da cela e sua morte na cadeira elétrica. O exibidor podia
pessoas por ano. 10 O cinema, ao aportar neste ambiente dando movimento comprar os planos que lhe interessassem para compor o programa,
às imagens fotográficas e realistas do mundo, contribuiu de forma podendo ainda optar por imagens do momento do assassinato, do cortejo
privilegiada para construir tecnicamente a "realidade", ao mesmo tempo fúnebre ou do enterro de McKinley. 14 Todos estes filmes partilhavam a
em que a transformava em espetáculo. Registros de fatos reais, ficções, mesma rubrica - eram atualidades. Não há indícios de que o público
encenações e reconstituições formavam um amálgama indistinto, que que consumia avidamente estas imagens se sentisse logrado pelo fato
saciava a fome do público por atualidades. de algumas delas não serem autênticas. Elas valiam como
Logo, atualidade não designa somente o tipo de filme oferecido representações espetaculares de acontecimentos do momento.
por Lumiere, mas também as reconstituições que focalizavam assuntos
Em abril de 1896, pressionado pela iminente chegada do
de grande repercussão na imprensa e que não podiam ser filmadas ao cinematógrafo aos Estados Unidos, Edison adotou apressadamente o
vivo. Um gênero muito popular de atualidades era o de cenas de guerra. vitascópio para fazer sua primeira projeção em tela. O programa era
O conflito hispano-americano, por exemplo, foi assunto de inumeráveis composto de cinco filmes feitos em estúdio e apenas uma vista filmada
filmes, que misturavam registros reais com encenações de batalhas navais em exterior, ('toduzida na Inglaterra por Robert Paul: Rough Sea at
usando miniaturas. 11 Quando irrompeu a guerra entre Rússia e Japão, a Dover. Um jornalista presente à sessão afirmou que "este foi de longe
produtora Biograph usou cadetes da academia militar de St. John, em o melhor filme mostrado e teve que ser repetido muitas vezes". 15
Syracuse, para encenar os movimentos de ataque e contra-ataque de Segundo Musser, Edison percebeu que "cenas da vida cotidiana
infantaria, sendo imediatamente imitado por Edison, com um filme costumavam ser recebidas com muito maior entusiasmo do que
virtualmente idêntico. 12 O expediente não era exclusivo dos extratos de peças e atos de vaudeville". 16 Menos de dois meses depois,
americanos: o inglês James Williamson usou um campo de golfe como esta constatação seria plenamente confirmada, com a chegada do
locação para um filme sobre a guerra dos Bôeres (Attack on a China cinematógrafo Lumiere aos Estados Unidos. As atualidades
Mission, 1903).13
conquistaram imediatamente as platéias norte-americanas, pelo
10
realismo, a qualidade fotográfica, a variedade dos filmes exibidos; e
SCHWARTZ, em CHARNEY, 2001: 411-440.
11
Dois exemplo"s: Bombardmentof Matanzas (Edward Amet, 1898) e Batt!e of Manzla Bay (Blackton também, por constituírem uma espécie de "jornal da tela".
e Smith, 1898). MUSSER, 1990: 254-256.
12 14
Respectivamente, The battle of Yalu Oohann Bitzer, 1904) e Skirmish Between R.ussian and Japanese MCSSER, 1990: 319-320.
Advance Guards (1904). Idem: 359. 15
New York Mail and f:xpress, 24 de abril de 1896, p. 12.
"BARNOUW, 1974: 25. 1
" MCSSER, 1990: 118.
l4 ll>txlh<>l'uudo

Ao contririo cb ci.rru!n quinctógr.afo e do projetor VIULSCÓpio. o os fa.lrnei c-ncc:n~os comendo~ planos e com duraçio entre dnc:o
dncoulógnfo <"r.l wn :ipudbo rcversfrel, que funciona,,a ao mesmo C' quinze minutos começam a atrair a preferência do pü.bUco. Um

tcmpO como c l ~ copiadcira C' projc:cor. Lc••C e porr.itil. inckpcndcnu: lev:ani.:amcmo nos arqW\vs de Edi&0n mostrou que. no verão 1904-1905.
de co«cntc clélrica. podi1 ,er faci]mcnu, tt:ansporl>l<lo pelo mundo .ro.... os filmes cnc:crutdos cm csnid.10 esta.,.,un vendendo 3,S , ~ mais do
E de fato, tQ oompletu dois anos, ji bav1a percorrido os dnco que as atualidades, unu proporç:io que prO\":lvdmc-atc rc:flt"W: t1 sfruação
conâneates. proporcionando ao at.ílogo Lumaêrc um v:ts10 Ul\·cnblrio geral do mercado none-ame.ricano.11
filmAdo da v1da sobre ,a terra: gôndolas em Veneza, coroação de Nos dez anos .st'gl.limes às primeiras pro;cçoes públicu, o cinema
im:pcr2dores. cena; militares., ~orrt'S e cdificios famosos, nuna antes 9..firmou definit1vamcntc soa vocaç:io como forma de t•1utt.tcnimc-nto,
YISt05 por umi população urb:uu :ainda não acosnunada a viajar. Em nos mais di..,rsos países, eomo França, Lngbtern. Est:ldos Unidos e,
em menor escala.. lt:áfu, AJcm:i..nha, Dinamarca e Suécia..» Embor.a .a
Pra.nça ccnb.a se manado como principlll produtora de filmes até 1
deflagração d.1. Gucrr:a de 1914, as mudanças m:ús ~dk.:ai.s no sentido
do cstabclccimc:nto de uma indústria cincm.uográfic,a mundial
aconteceram do outro ladc) do Atlântico, cm função da dinimica
cconômjc:a e cultural da sociedade norcc-11.mcricana.
Este procC5so co~ a se delinear a partir de 1903, quando os

-.~.---
o ª"'~ filmes dcix~ de ser vcndidQs aos ped1ços e editados nos mais dJvnsos
P,JJN ""' '"1!'
__,f•• form:uos de programas. pa,sando • ser .tllg'llos como produtos promos.

,,_;.font.m,1,
.... com duraçio definida. Ao mesmo tempo. ~5 difettrltes tecnologias
emprt-S2d2s nos plllTJCU'Oj moddos de projetores convergr:m para uma
.,,,,,.
p>dronizaçio de vclocid>de, bitola e form1to da.< perfurações, torn>ndo
pouco llUIS de OOS lllCS<$, " ' rq,rcscnoulll:5 d., ~w,on L.wnii:rc: ofcrr:ciam os filmes comp2tivct<1 ~ intcrcamb1â\'ciS. A pciuo de copiar filmes é
ao mcrodo norte·lUllCDCUlU 24 m:iquuus e mais de 1.-IOO vistu." inibida pcà incorporação do cinema ao ,istcma de rc-gistro de <brcitos
Neste primeiro período do cinema. o que predomina nos c:acllogos auoorlis, o que proporooru maior segurança par.a os in\'c~timemos em
do, produtores são u atualidades. distrlbuid:as em gêneros dlvenos - produçio. Modifica.se também a função do exibidor. que dciu dr srr
6Jme, de vut,"'m. lu11!1 de bol<é, filmes de gucrr:i, rcgistr0 de acidcnres e um prcst2idor de senriços ltincrantc, rc~pon~ivcl pela opc.nç:ão do
efemérides. A Biograph. que desde su~ fundação jii h:avia fcuo ccmcnas projccor, edição dos filmes, locuç:io e cfciros sonoros dur.uuc a sessão.
de filmn em esrudio, re1liu 117 produções oa tempor:ida 1900-1901, As cxíbjçôc::s. antes feitas no lntcrvalo de 2cn.çõcs musicais e circcrut-s,
1odu aru:úidadcs." O pMOr:ull1 trodc a mudar• parnr de 1903, quando
'"ldan:.JIS.
•• ldmai: ll9 • fws \ama llt'lábw da < I C ) f f l ~ do públKD de ancml ~ ~ · ~ M"ll.>ttl\lOO 1M
•• Idem; llll. ~ ~ m ln,:hra-,-, 'Yff RURCH, 1987.
J6 fapdhoPvódo Oo Ctocnutôgnfo ,o ünfflu 37

cm s-aSôcs e tenros de variechdcs, como ações slmuhãncas.. R.:.bçôes cspaciai$ entre interiores e extenorcs,
pas.sam a ser rcali:r..adu em s.ala.., pbnos próximos e imagens correspondcnres a um ponm de ,,i$t:1 já
cxdu$ivu e fixas, com sessões cnun isobd-amroce pr.uicados de!<lc os primórdios, m.a5, não chcgawm
corridas e programas rcn-0,-aclos :ué 11 se articular na criação de um espaço orgânico, habitado pelo,
uis vezes durante uma mcsm:11 pcrsonageru. Isto se f.ui com• adoção mtcmáti"" e rcgubd> dOJ campos
sema.o-2., d:a.ndo início i cha,.mada e contn-etmpos. dos movimentos de câmera, de uma ilumm:u;ão
''era dos nickc:lodcon$".21 O enorme nuançada e da substlruiçio da, pinturas pbnll de fundo por ccn.-\rios
aumento d.a demanda por novos ru,rur:ilisw, do...J05 de profundidade e po,-o-.«los por objeta. de cena.
filmes e a responsabilidade da Tudo contnbuindo ('111'1 supenr a bidir"""Sionalidadc da tda atr.ovés de
cdiçsi.o conct...'tltr.idll na mão dos pro- umt ilusão de rdevo. Mas este t'-Spaço não devia se-r lutbitávcl somente
"" dutorcs. e não rmis dos exibidores. por pcrson:agcns. Era preciso oi,ptar o olho do cspccm.dor. fazer com
estimula a rt:W.7.açio de filmc.-s m:us que o seu próprio corpo se tornasse "o ponto de rcfe:rência '1110 r«lor do
longos, compostos por maior qual' sc consutlll a K1ti.dmk c a tr1•lin111iimlt de um espet:kulo c:ad.t ,~cz
número de pb.oos. Est.c Côf\jumo de rrua.i.1. fragmcntado''.12 Par.a quc o sujcito~s:pttrador pudesse sc.r tatagin-a-
mudanças possibilitou o su.rgime:mo ri:amcme integrado 20 CSf>2ÇO cê:ruco. crnbucando na víig-em. imóvel
de novas opornuúdades comer• que carac.teriz.2 o rcp:ne de absorçio diegéric2, um corpo de regra$ íoi
c;iais e artísticas, com profu.nd::1s sendo paulatin:uncmc inventado e com-eoci.oru.d-0.
implie2çócs no modo de contar HA wn:a rdaúv:a wunlmid-adc cnuc..os historiadores no sentido
bistóri>s. de atribuir :a Griífith o papel individualmente m1is dcsr.acacfo neste
lf... 1901 IIIWM III JMIZI M dllt1lftl.
A conquista ,·üal neste procesSõ. Nos 61~ de 1O• 15 minuto, q,,c realizou pan, • Biognph
o- -- fal f,utJ,,,/,
,., Pult"-'1),. l\'• . . . .,pi 1,in.,. senado é o domínio da tempo· enttt 1908 e 1913 - e forun rn;us ck 420, <jU:l$C doas p<>t semana"' -
_., dr t.000.,, EUA.~" r:alid:adc. ou seja., a rcprcscntaçio do Griffith experimentou e ex.erowu a prâuc:a d;i filmagem ern funçio da
10.()()(I,,. 1910. V• •ffwl ,i, S
mu.WN J, Jiúr 4orv dmt/11 tt lll#d
rcmpo enquanto progressão nar- rnomagcm Mrrnti,..~. alcançando um privilcgi,do dominio da concatc•
•Sldll tJt tJ 11 60 ,,,,., ,.. rativa. Nos primeiros tempos do nação dos plwos: entradas e uída! de quadro e mudanças de pomo de
cinema., " Cfflas eram orga.ni:eadas ,ista "'gundo regras ck cononuidadc b:ascadu cm Tl1Rf!rds de dm:çiio,
de form.2. nio linear, com rcpc.t içôes cemporai.s e aa.v,,b.mcntos. Na olhar e mO\-iimc:nto. Em 1908. quando comcçQU a dirigu, dificilmen,c
primei,:, déc>d, do s«ulo XX surgiu• mom:igcm 1"""1<b. que permite os fiJmcs produzidQs pelos estúdios continham mais de vinte pb.nos.
ao t:spcctl.dor d:lr sahos imaginirios. i.ntcrprctando irmgt:ns sucessiv.u Os seus atingiam m:ús de cem em 1913. 20 romper com ~ Biogrnph.
quando o avanço de suas conq\U$ta5 nar~th--:a.s se tornou incomp:uívd
• Pani WN Jnçaçio de> pnx.cMO de CICpamio ck uu,, rcgulart'I d,r anm'UI . . F...wopa. fff
S/J)O\JL, 196>. 6"•70. A tnm:(OflNÇàO d,t r t ~ rni:tt produlOfa e e ~ no. Em • 8U'ROt. 1987. 114 (Gnla,. do au!OI).
dai l ' IIÚ!tr, entff 18?4 ci 19C'17, f fuummtt IOOQll.'ntflll~ rm MUS:,.Ek, 199tl º Sommic oo lillOdc J909, C.nffith Wfl81" 138 Ala.a. \l'AKEMAN. 1987: •l l
38 r:.pdho Puudo Do C&ntmlt1)((nfo '10 Citldnl )9

o, ti,,,pb,. Cnffi" de massa cm cs.c1la planetária. A cottdiç~o de possibdidadc desta


. , .. .tfU. c:onqulst:1 dt 1tuh'1 ma.teria!, ~ e artí!ltic:o foi o donúmo de wna
1ntolcrincc:a linearidade narrativa e das rcgr:as que a none2vrun. Conseqücntt'·
(1916). ~
mente, a 2fullUlçio de um modo de rcprcsemaçio capaz de centrar
~ (il/1111 a,a,,s "
.-,,.i,,,.,. o cspccudor, co1oc-aodo•o deotto do tt'lato. auavh da su2
,l,,mp,. A idcncificaçio com os succssh·os pontos de. vism que :i câmera lhe
..,.,gr ~ J .
proporciona .
"'*"""f"'"
,.,__ ,. dtftm,1,1 O prQCe55Q de institucionalização do cinema se compl-ctou, ao

---
. . , , l;-4 •
longo da déada de 191 o_ com a padroruz.açio e a cstratific2ção dos
slailo 11-.C i,,.
prognm:as cnttt uma parte principal- o long,,-meu-agcm de ficçio - e
os compkmentos - onde vão se :u;onlOOM as si.nwidades,:s Esu. p:irte
intrc>dut6ri-a i sess.àQ de cinema fornuva um filão comc.rcia.l que: logo
com o padrio comercial de um ünico rolo impo$tO pela empresa. Esta
,cria <lispucub pelos produrom. originando um no,-o produto: o ,,,..,.,,1,
ioédita &.gmontaçao das ccn,s possibil1111w • rccoosiruçiQ. m:avés <b
oo cinejomal. Em 191OClurl<s P.tth<! iniciou a distribuição de progr>rtW
IOO<lc:igcm. de um1 esp?á>Jm,:1,- C de W1U t ~. l""P"'."""'.' :'" comendo oito a de:z 6lmcs fucfl.lllis~ intitulados PJt/»}DM111a/,16 •·nouciãn()s
cincmatográfic,s. Com Gm!itb, CO(l\,:oooruu::am•$< priru:ipios scqucno,us
ci.ncmatog:rificos'' que aprcscma·wm paradas•<' manobra.$ milirues.
plcn:unt-ntc recoohcddo< pelo cspttt>dor - o sisu:rm de 6Jnugcm-mont••
desa.stre5, c,·cmos espora,-os e as ma.is variad2.~ 11tntçõcs. Os cinct(lroais
gcm-índçio que olé boje. """' pequcoos •ofscimos. cosrumamos cham:ar
truiam duas.. ino,.,a,ções: formavam um programa fechado. compaó\'cl
de "linguagem cinematogrilia".
com a crescct1rc p:adronizaç:io cb indústria: e eram renovados wna ou
dua$ vezes por scmar!t; assegurando ao mercado exibidor wn 5upnrncmo
Tonu.ndo os Í&lmcs de Griífith como rcfef'Cncaa, é posri\'d observar
rcgub.r de completncmos.
o periodo t 908• t913 como um pomo rle tnOexio deci.sn"'O rui híst6.ria
Em pouco u:uus de- dol'5 anos, P.ithé cnfrem:,nia a concorrênci.a da
do cinema. Não é apenas unu progrcssio na decupagcm que se
O..wnont e ele quatro grnndcs empresas produtoras norte-asnerican~.s:
\'t"nfica.. Ê 2 eon,olidnçio dt princípios de rcprcstot1.çio que
Hconi. ParumQWlt, Uoi...-..1 e Fox. Esta padroniução da$ analidades,
mscrcvcm o cinema n2 tndiçio de uma btcnmn e de um tc:i.tro
preocupados com o coefic1enre de realidade nt composição do
1maginári0,u • ''\1.m '°'W flX:tugcm, IUICflC~ lffllpol Jt 0tkm,I nNÔI), m ~ filme de ~i, de m
n,>lo,t. 01.1 ttta IX tt111a lnlnUIIOt - ttmpo llfle Íat ,e cxp,ndlndo e ~ • Olllmbl ou flO\'fflU
fflnl• na dí:ad1 tk 19:W." S0-V.'T'l, 19'JIJ l2.
Ao galgar C$t( pawnar, o oncm:a deixava ddinitivamc:mc_de ~ r • Ao ~ liC1d onqcwmn,, Oudt, Pwié wncmkn Q fflaN.lf impmo onmwogn.lx:o do
~ Sedou! • tt:Í1:ft • c1r: COlnO ..o N,po1cio do cinema. <-> em 1909 dr V'C1IJi,, . -
mais uma :nnçào de wudc,.,iJle. para transformar-se tm uma dJvcrsao ~ UQllclo,, duu vaa mM filmn do 'fllC toJ.u M fsm.ia an'lmanu. Em 191l, • llt-•
mia Juwn dele: -0-nhou OOflOllCO bem mm do que °' S Wbóf-t ~ pc:U ~ llpl6t
1871". SAIX>lfl.. 1990: 2l2.
40 E,polho P.uudo Oo Canmur(ign{o M> Cínttn1 ,o

que as transforma cm ...wn ritual composto", é imcrpre12d2 por Enk


Bunouw como um divisor de águas: "o pe.rlodo Lumiêrc se cnccrnw". r
Di6ol concordar c.om esta pcriodlzaçõo. De Í11to, o c:incjomal alav:,
um form~to comercial sedado, m11s não um novo modelo estéuco.
O verdadeiro m:i.n:o do fim do período Lurniêrc scri o l2nçamt.nto
de N"•,./c of IÍN North, de Robert Fhbcrty, cro 1922. Logo vc,cmos
o porquê.
Antes, COO\'ém dest11car as caraclcristios de wn gênero parócuJar Nula foi, 1k &lffil
de an,13.lid:tdC$: o úlmc d<": "iagcm. Suas origens rc:monttm ';l mc:ados do 1-l~ ,,,, tUlltln1k
século XL"X. quando as palcstr.tS ,lustr.td:u com projeções de lantcnu º'"" D,p,,,ft'-.
s...,1,c-..-
rnligic:2 passuam a :atrair uma elite letrada desejosa de ampliar seus
conhcamcrttos sobre localidades dcscoohc:cidas e culrums exócia.s. As """'"'~
f1# 191 ,.
viagens a tcrru chstantcs ainda cnun restriw a w,s poucos :i.-vnmarcí.ros;
e um públko rcbtivamcnte numeroso compattcia às conferencias um dos gêneros m:w populares 20 longo de toda 1 era pré-n.ickdodeon.11
of<teodas por lfabt,Jr,Jtm e explorador« O palC$trlU\tc em encarado Comcrciafü,·.ados como partes avuJsas, possibilmindo ao exibidor diversas
como uma preciosa fonte de inform21çõcs sobre um amplo ltquc de formas de cornbimçõcs em progn.nw: cincm2togr:ífic0$ d<: ,'"Uicdades.
1cims imcrLigados. que iam da hi.swru ii antropologia, ela gcografi• •os
os filmes de viagem muitas ,,czc, cnm edicados com imágcM
conflitos mundiais.lll Um dos mais renomados fotógrafos viajantes foi promocionais de emprcendimcmo, ou mci'?s de traospom:.
Burton Holmes, que em 1893. no Brooklin, iniciou sua atlvicbdc de Entre tro3c 1904, l::dwin Poner ccalizou para o auilogo Edison
ronfcrencí:sca.. projetando diapositivos. Quatr0 uios mais ta.rdc. Holrnes algum; fdmcs híbcidoi..que mescla,= 11mgcns típicos de •nwid,dc, e
inovou ~o exibir. no enccrr:amcnro das sessões) filmes por ele mesmo cenas dirigidas com 21orcs. Em R;b, and Ma•,!, ai Ú"!1 /J/and (1903),
realizados. Bunon Hobnc:s cunhou o termo tm«~. p:tr.t designar sw Porter ju.,tapõc comédia e 2lU2.l.id:iJcs, cdiwido ,'Uw do funoso pa.rquc
auvidadc, a pal~tna sobre vfagcm iluscr.ub ,om pro;t:ção de imagens. de diversões com ccms de dois cômicos car:aacrizados, cimilando cnttt.
fixas ou cm movilnento..Z' Tn:vcfoguc acabari2 se toTIU1..ndo sinônimo u amçõe, e armando cn.p:alhadas. No catálogo, o filme é procno~do
de filme de viagem. como ..imcrcssantr nlo só por seu aspcc10 humorisúro, mas também
Prcsemc n>s 1ew de quose uxfa; :u capitais do mundo a partir de por '"'" cxcclat,,. nSl>S de Concy W>nd e Luna P:ui<"." Em 1;.,.,_,
J8'96, as visas de Lumiêrc contdbuirnm p:u~ tomar o 6Jmc de viagem
• ..~ • tt1cude dn • ~ PlfflClr- liMWJo oo ~ cb Vi~pb cm 19(1)
aam auunu» ~ ~ (~J Dqw.lit ck ufa ,f • ...a-w. h - (1900). (11 dot 62 t11ulo.
., BARNOUW, 197◄: 26. wgoao•<:• ~ poc Tbomn l:.dit0n eram 6Jrots de flagc:m... MUSSbR., 1984, cm
• MUSSl!R.1984. em f.l..SAESSIJl. 1990: 12-4. llLSAESSI.\R, ""°' 12J.
• • ~ alo p1;1!V9 de acr ~ f'll~t> ~rm s perfotmd", dcd. de. WAU..1,CB. " P,.dttoo ~~ Compmy, l;.i/t#,, f;1-,, Nova Ja,ey, ouL l\'IOJ, p.l&.. ~ poc
tm CALJ>\X,'EJ..l.. 1?77: 11. MUSSl:Jl J08◄• tm I\J.S:\l!SSf.R.. 19?0: t2C
42 Espelho Partido Do Cinematc'>grafo ao Cinema 43

Rest Cure (1904) Porter acompanha um turista americano em viagem de e 1920, inclusive em longas-metragens. 35 O gênero se cristalizou em
descanso à Europa sendo surpreendido por uma sucessão de acidentes e um modo de representação excessivamente focado no explorador, como
desastres físicos ou emocionais. Algumas cenas com o ator foram filmadas elemento pivô de uma montagem descritiva de aspectos isolados da
contra painéis pintados com pirâmides, ruínas romanas e um café parisiense. expedição. Em uma época marcada pela crescente afirmação dos códigos
Outras foram feitas em um cais de embarque e desembarque de turistas. narrativos do cinema de ficção, o filme de viagem em particular, e as
Porter editou as imagens originais com planos de diversos filmes de viagem atualidades em geral, continuaram carentes de uma "escritura" fílmica
feitos anteriormente por outros cinegrafistas a bordo de navios. Estes últimos própria, capaz de capturar o espectador e trazê-lo para dentro do mundo
podiam ser comercializados e exibidos separadamente. imaginário do relato.
Ao descrever estas experiências, Charles Musser sublinha que a
flutuação entre os dois gêneros remete a um lançamento anterior de
Edison e Porter, The Life of anAmerican Fireman (1903), que era oferecido
aos exibidores com duas diferentes descrições: como reencenação
documental ou como filme de enredo. Durante a projeção, o exibidor
podia enfatizar um aspecto ou outro. Segundo Musser, "para serem
corretamente interpretados, estes filmes de transição devem ser
entendidos dentro do quadro dos filmes de viagem". 32
A onda avassaladora de consumo cinematográfico na era dos
nickelodeons, a partir de 1907, estimulou o uso de filmes nas palestras
sobre viagens, em substituição às lanternas fixas. 33 Por outro lado, com
a crescente predominância das ficções nas salas de cinema, os filmes de
viagem foram gradativamente perdendo o interesse junto ao público de
massa. Seu prestígio ficou circunscrito à elite que freqüentava os cinemas
mais sofisticados, herdeiros dos salões de conferências sobre geografia
e etnologia, onde o que se buscava era informação, mais do que diversão. 34
Centenas de filmes de viagem foram realizados ao longo dos anos 1910

12
Ibidem.
15
"MUSSER 1990: 447. Entre tantos outros, Jack Lmdon at the South Seas (Martin e Osa Johnson, 1912); Among the
14 Sintomática desta adoção das atualidades pela elite, em contraste com a adoção generalizada Canibal Isles of the South Pacific (idem, 1918); The Undying Story of Cap. Scott (Herbert Ponting,
das ficçôes pelas camadas populares, é a seguinte afirmação de um crítico francês: "As atualida- 1913), sucessivamente reeditado e lançado com outros títulos; ln the Land of the Headhunters
des e os filmes de viagem conquistam um lugar importante nos programas dos teatros cinema- (Edward Curtis, 1914), relançado em 1972 como ln the Land of the lfàr Canoes; With Lawrence in
tográficos mais elegantes e só temos a lamentar que nem todos os públicos desfrutem deles do Arabia (Lowell Thomas, 1918), que apresentou T. E. Lawrence ao mundo ocidental. Para um
mesmo modo". Ciné ]oumai, 21 jun. 1909, citado por BURCH, 1987: 71. amplo inventário comentado dos filmes de viagem, ver BRONLOW; 1979.
2 O Protótipo de um Novo Gênero

Nanook ef the North é o resultado de mais de dez anos de contatos


do explorador norte-americano Robert Flaherty com os Inuik que
habitavam a região da Baía de Hudson, no norte do Canadá. Antes de
partir para a sua terceira expedição à área, em 1913, Flaherty foi
persuadido por seu financiador, o construtor de ferrovias William
Mackenzie, a levar consigo uma câmera de filmar. Um curso básico de
fotografia em Rochester, EUA, permitiu a Flaherty registrar abundante
material descritivo sobre os hábitos cotidianos dos esquimós, nas
expedições que fez até 1916. Quando a edição de seu filme já estava
praticamente concluída, um descuido com o cigarro causou um incêndio
que consumiu todos os negativos. Restou-lhe um copião de trabalho,
usado para tentar levantar fundos para um novo filme. Só após a guerra,
em 1920, conseguiu os recursos necessários.
Seu filme, apesar da incredulidade dos primeiros distribuidores
procurados, foi afinal lançado pela Pathé, em junho de 1922, e recebido
como uma revelação:

Já foram feitos muitos bons filmes de viagem, muitos "panoramas"


deslumbrantes, mas só há um que merece ser considerado excelente:
Nanook of the North. Este permanece sozinho, literalmente uma classe
em si mesmo. Realmente, nenhuma lista dos melhores filmes, deste ano
-46 E,.pr.lho P.mdo

00 de toclo, o$ outros :inos na brt,ic hm6n~ do cinema, podem ser North. pcb primcin vez. o objeto
1
comi.c.lcnd1t compkt11. kn'l de. de film:tgcm era so.bmrbdo i UmA
in1crprtt1çio. ou seja, uma dcs-
As palavr.as de Robcn Sherwood- autor ck dis<ursos prc,;idcnciais, lllOOlllgtm on:ilirici daquilo que fo,
roi:cinst:a., histQ.nador e i.a.flucnte crlrico cincmatognUioo - tt'VCL:am de reginr.tdo. .seguido de uma monm.
forma cloqõerm: o unpncto ousado por NttnOIJlt. o/ thr North junro ao gcm cuj.i lóg,ca ccnm.J ncce55aáa•
pW>lico. i critica e 20:s cincasu.s. /\ novidade r.adié::IJ deste filme csu.n mente cscapav~ si observação
ru abcnura de um novo campo de cri11ção situado cmrc os filmes de instamãnea e s6 poderia decorrer
viagem e. as ficções, sem se idcnuficar propriamente co1n nenhum dos de um conjunto de detalhes habil-
dois modelos. Em outra$ paJavf'2S., era o fruto do encontro do t:r:avdoguc mente sintetizados e :u-àcul:.t.dos.
com o modo de representação fie.clonai quc 2lguns anos antes s.e Nos llnOS que antecederam
insutuira. • rc:ilização de Naw,.J:, ,f tbt Nmh,
Em que N.,,..J,. ,f ti,, N•rth se difcrenci2va dos inwntros fihnes Aaherty amadureceu II tutocrftic2
ck vugem realiz,idos na sua êpo<;a? Bm pcmeiro lug.u-, enquanto estes da primcin \-'ttSio de ~u fümc e
in\•a.ri:avclmentc cnun centrados n:i. figura do viajante-explorador• decidiu criar ilgo imcirame:ntc
realiudor, ilusu-:ando visu:drnemc um relato cm primcir.l pesso:a, o filme difctt:nte. 1\0 optar por concentr:1.r•.sc ru \~da de um esquunó c sua
de Flaherty articulava-se.cm torno da vida de uma comuaidadet ocin~ta famíJia, csuva pru úndo de um prindplo próximo 10 das ficções
cr.i elidido, ui como o ,="'dor da ficção cincnuwgnl6ca. Em segundo cinematogclfica5- Pnncip10 este que lhe J>OSsibilata.n:a desenvolver
Jug:ar, 05 filmes de vugem 6li1vam•se ao moddo Lum1êrc de observação situ.aÇOé:s toc;amc, e cmoooru.lmcnte densas. que não cos-wm:avam ser
da realidade. bem como• uma ideologi:i documcnul •menor ao próprio exploradas nos rcgislJJOS_d<, ,,;agem. Por exemplo: tt> «112S da indigestio
cinem.ttógrafo, que submetia as imagens ~ uma pcrspecth--a cduc:ati,~. das crianças ou dos c(mtatos de Nanook com sc·u filho ma.i! vdho.
O resultado costurnl\'ll ser Ul1l2 :abordagem meramente dcscririv.a. da Pos.sibilitatia, t.am~m. mamcr o intcre,sc do espectador atnvés da
oature221 e dos COJtu.mC$ d0$ pcvos visitad0$: "um fato aqui, outto aJj, construção de tcnslo e s.usptn.,;c, como q2 luta do$ esquimós con.tta a
sem costura", c.ooíonne criticou o próprio Fbhen:y.: Seu filrnl" ino,'ll\'ll penda mo,.. ou 112 pese• eh foc•, que só é re,i,lada no final da seqil<ncia.
110 colocar os íatos qut: testemunhou cm uma pérSpecb\-:a dmmáúca: Aahcny incorporou a N""* t( 1hr NtlffÔ as conquistu. ainda
consuufa um pcr10nagcm - N:mook e su.a f:uníli:a - e cst:itbclcaa wn r:claàva.mentt recentes, da montagem narr-aà\'a, que resultam na
11.nUtgonist2 _ o meio hostil d0$ desertos gelados do norte:. Finalmente., manipuJaçio do CSP2Ç<>-1empo, na identificação do ~pcaador com o
,,. d• tr>diçio dos filmes do vugem org:aniur sequências segundo o pc:nooagem e na dn.ma.cicidadc de> íilinc. Na seqüência cb construção
fio c.ronológico do rotdm fi.sicacneotc pen::orrido. Em ;'\raRMk of Jh, do iglu. a relação interior-exterior é criada por um2 dinâmka ediçiu de
36 plano, e 8 cart.das. Fbhcny monta al1trmcbmcntc du.as séries de
' SHEJt.WOOU mi .JACOttS. t91'9: 15.
• a.-.lo ror 8ARN0Vw. 19741JS. planos - os filhos brincaru:lo e os pais tnballu.ndo - cm que a suctssio
48 E,p<Iho 1"'ndo O Procoupo ck um Nrwo Gênero <&9

du imagens na tda cor.rcspoodc á u1n privüégio tàtil.lmcnte surrealista, sem p:u:tldo M expcnênaa huma-
uma simulWJcidaclc imaginária. O 11,1 -tiniu se incorpor.ado de tal modo ao tú~t(> de vt't filme,. que ;2 c-n.

me5m() principio é empregado m. inconscicnttmcmc cnnsidcnid:a ·•nttural'', flahc.r't)· l'l.t'Stc momemo Já


seqüência da c:aptur:a da morsa, unha 111:,sorv:ido este mcc:arusmo do íllmc de ficção. m1s o apbaw a
onde vemos dois planos de um um nutC'lUI nio uwentlldo por wn t"SCritor ou diretor, nem cncc..-n:i.do
grupo de esquimós ulh2ndo o mar por atores. Logo, o dnm:a, com 5tu po1enc~J de 1mpa.et0 tiUõCÍOOàl,
- QS observadore5 - se nlrcrn.arcm casa,,Me com ilgo m:u, ~ - pc:s~ou sendo tbi n'lt'$maJ.l
com outros dois pb.nos da nurutda
de morsas nac;bLndo - as observa- As seqüências de Na1100~ of lhe North sio formad:as por unn
das. M..icro-namnfr:is são inseridas qu.anà<lade de planos pouco comwn em filmes nâo,,-6cciona1s. A j:i
cm seqüências maLS longu. propor· me:naonada caça da mqrsa tootém 38 planos, proporcaona.ndo uma.
cioo:mdo drt'alhes que hum.•uúzam :ígil mucbnç:2 de pomos de vism e de ,iariação da cscab de planos. com
o relato, como na sucessão de: trê$ vários movimentos de cãmera. A figura du campo/conrra-c:11.mpo,
phtnos em que o filho· de Nwook prcse:ntc c1n d.i\'ttSOS moment0$ do filme, por vezes se combina com
pro\'oc;:a a raposa pri.sionei.ra, d4!nuo um phmo que reproduz o ponto de vista do pcrsonagt.m. um l'«ll.Nó de
da seqüênci.'l da 1-iagcm na neve. subjedva~o que vinha sendo utilizado ms ficções. t o aso das mor$as
Comc-nt2ndo a evolução de: visw pelos esqwmôs ou do Jobo rugindo pan Nanook ru seqüência
N_...,.;,rtp.-mt,._,.,,llf'/l(ldr•- Fl:ahc:rty entre a primcim filmagem em que <:o:rnCJll a foa recém pescada.
Otpw d,·- -V,,_,,.,,,.....," ~-. e a obr.i. <lc6nniva. Barnouw sin-.. Nem sempre as regm Je cominuidadc sã.o tdotadu de forma
FT,,J,,,trji,,,, ~ - ,i, pt,n,,,,, ,.
,,,,.tta. tlll 111114 "'1 ~ _, tctiza o a.lcmcc do método narra- rigorosa. Em atgun, 'tones. os movimentos de dois pl:an0$ wntíguos
, ~ ti,, j/a. AMOOI. Ntt/lW. tivo adot-ado cm Nu#od. o/ tlH nio siio perftitamcntc conca1enadrnt Em ouu-m. caiaques e trenós
llffilt-. NM ftll».
Nqrtb: !ubitatnemc pamxm t1e inv.:ncr no csp:içe>, Outra prcw.a da não adoção
plcn.:l das ,êcnicas oarrath"ls são os cvemua1s olhares para a cimera.
OC$1t \'C:2: e~ tinm. s.ido e2p22. de p ~ T probtemas de monttgtm, ai- interditados pelas norrm.s da decupagem clissic2 dos filmes ficcionais
ando r#l,.1 pN.J\·idcn~ con112-ampos e algumu pinorinüc:as bori· por funcaonattm como um demento de dis~ciamento que dificulta o
ffllllllis e \--Crticai.s. pcara proporcioniu momentos revel!Klort:s. Fl:ahc-:rty centra.rnento do ,ujcito-tspcc:t.ador." AJ caraCLeJÍ.súcu pioncir.as e
- so conmirio doti documcntacisw amcnOfC!I - ap-.arcntemcntc dcmu•
1 BARNOU~ 1974: 19.
n2 ,,2 2. ·•g1'2frt21tica" oncmatognífo como cl:a tlnh,, C\'Oh.ddo no filme
' 0 ol!w pan1 s ~ (flC "'P'-'llc IICJ oh, l'N>l olho. do c,pcttab IU uh 1k anenu.,
de ficçi<,. Est2. C\'Oluçlo não unlu apcn:» mutbdo rêocrucas, tinh1 tnns- ~ • arfe h H d, 6tnagirm e, como tal. foi ~octa ,__ nl\ldtoi W-tc+amt'IICltlOI
deJdeamnck- 191(►. "'aScligWlddl\llon~dbtto.ln•ww•emna:inmtadoa1prueblçJ,o
ÍCK"mm 11 5Ctlsibilicbde do púbbco. A apacKbdc de tc:stemvnhar um
cc:pm&à de- olhar~ 1 dmua. A nwoR1 1lu oocn1 funu1 wncncM&t ~ qi,1e aJounm
episódio de mui tos ponto, de ''lSUi e- distinciu, cm ri.p,d:i. sucessio - C--. n:tp1. tlmbcm m fflNifN ~ '" 8UR~. 19371 22l. &rthn mmlula dramux:am,,nrc
() Prot<'>tipo <lc um Novo Gênero 51
50 Espelho Partido

limítrofes de Nanook oj the North dificultam uma interpretação mais laços de causalidade. Em Nanook of the North, ao invés de um roteiro
definida destas desigualdades. Algumas delas se repetirão nos futuros prévio, Flaherty baseou-se, como muitos etnógrafos, em anos de
filmes de Flaherty, o que levanta dúvidas a respeito de suas origens - "observação participante". Mas, para expressar o modo de vida dos
uma insegurança técnica ou uma marca de estilo do realizador? De
5 esquimós, descartou a mera descrição e organizou micro-narrativas, sem
todo modo, a inovação fundamental de Flaherty consistiu na adoção de que uma concatenação causal as ligasse em vista de um desfecho. Esta
técnicas narrativas em um terreno onde antes só havia lugar para a mais espécie de narratividade frouxa, longe de parecer um defeito, soa
pura descrição. consistente, porque decorre diretamente da convivência, como uma
Estaríamos, então, diante de um filme de ficção como qualquer dramatização dos aspectos considerados essenciais nas situações
outro? Voltemos à crítica de Robert Sherwood: observadas. Segundo o próprio Flaherty,

A espinha dorsal de todo filme é a continuidade - e com isto não me o documentário é filmado no próprio lugar que se quer reproduzir,
refiro a enredo (pio~. Nanook of the North não tem nenhum tipo de com as pessoas do lugar. Assim, o trabalho de seleção será realizado
enredo, prescinde perfeitamente dele, mas tem continuidade. A organi- sobre material documental, com a finalidade de narrar a verdade da

zação das cenas é segura, lógica e consistente.


6 forma mais adequada e não dissimulando-a por trás de um elegante véu
de ficção, e quando, como corresponde ao âmbito de suas atribuições,
Os termos empregados por Sherwood ajudam a esclarecer a infunde à realidade o sentido dramático, este sentido surg'e da própria
natureza narrativa muito particular dos filmes de Flaherty. Enredo (pio~ natureza e não unicamente da mente de um escritor mais ou menos
designa as ações específicas que são apresentadas na tela, enquanto engenhoso. 8
história (story) significa a ação global, na sua ordem cronológica. Uma
mesma história pode dar lugar aos mais variados enredos. Os filmes de
7 Extrair do próprio ambiente os elementos fundamentais do drama
ficção, no modelo clássico, contam histórias através de enredos - esta é a base de um método de trabalho aperfeiçoado por Flaherty
conclusivos, em que a cadeia de eventos apresentados se liga por fortes filme após filme, em todos os seus longas-metragens. 9 Como corolário
deste método, Flaherty nunca escalou atores profissionais, convocando
os próprios membros da comunidade para encenarem diante da câmera
esta interdição: "Cm único olhar vindo da tela e colocado sobre mim, todo o filme estará
perdido". BARTHES, 1982: 282.
os seus gestos cotidianos - "pessoas sendo elas mesmas", no dizer de
'Brian Winston não tem dúvidas e afirma categoricamente: "Flaherty, apesar de Nanook, parece Barnouw. Nem sempre é o que se vê. Consta que a verdadeira esposa de
nunca ter compreendido como os filmes são feitos e nunca realmente criou uma alternativa
para as práticas normativas que ele permaneceu ignorando. Se Flaherty tivesse oferecido uma Nanook foi substituída, no filme, por outra mulher da preferência de
alternativa coerente para as regras de continuidade e narrativa, o seu solene desprezo por elas
seria mais do que aceitável e seu lugar como um importante inovador, o homem que não só 8
FLAHERTY, em RAMIÓ, 1985: 157.
criou a narrativização mas também liberou-a da montagem hollywoodiana, estaria garantido". 9
Nanook of the North (1922), Moana (1926), Man of Aran (1934) e Louisiana Story (1948). Flaherty
WINSTON, 1995: 109.
dirigiu alguns curtas-metragens e colaborou em projetos de longas que, por motivos diversos,
'' SHERWOOD, op. cit.: 15.
preferiu não assinar como co-diretor.
- KONIGSBERG, 1993: 263.
O Prutoupo de um Novo Cenrto 5J

f'bhcny; •• ,m Ma» ofAnm (1934), o p:ipd do herói, líger-King, não de u1Ma que as pb1é1a, nem sm,prc c.spena,·2m urn3 fid represcnt:iç:io
foi desempenhado por um ilhéu. mas por wn individu(> que: Aaheny tb realidade, que prdcriam o 2rt1íiao ttbuv.uncotc supcnor dos filmes
considerou fot0gtnico. 11 O csscncia.l pua ele não era a real identicbJe de 6cçio e: que os filmes nio-6c.c.Uruiis u ,a.mú:am com rt:C\ln0$ como
de lllgubn, mas a su2 ftmçio no filme, ,assoaada a um desempenho ::a rcconsriruiçio. Fbhtny cnttndeu que. a CLfld'M nio ê um:. função cb

que infundisse: credibilidade. 1uuropologia ou da arqucologi3, lnll$ um lllto da 1magu,3çào: é r.uuo \\


,-ctdMLe futogr:lfia quamQ uma rcorg:a.n1z2çio onc:mit~ c:b \·ttcbde
0 ll(lmcm dr OW\tc: de KU$:IÇÔCS de tCf rct:I.\CcfUdo anm~ Fbhct'l' du:12: "Ás
Annc P""'PU
,wtN,ltnddilJ ;-n, ,-czct você prcc~ mcnur. Fmqüememiemc: ,·oec tem que distorcer unu
J, """"' lpitt, .i
cow p:1.J1 apear~ cspínto Vtt<.bdciro",u
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tottlnl • ;,,,:,, •
Volwcmos i queslio da euacl.t":dnção., d:a rccons,uruiçiio <' da
enctnação cm difercntcs ttndê:nciat do documtncirio. O que nos p:ucc;c
irnpommt reter, neste pon~ é a comribuiçâo original de Flaheny no
sentido de criar um mct.odo de pesquisa. ~ e rnoo~gem que
uuugur:a uma "narrnâvicb.dc doeu.mentiria..; e o fato de qu<' este mêmdo
não seria possível stm a ••s.1.nuxc narrntiva'• do modo de rcprtscnr.açio
que rcccmcmentc se instituir.a.
A mesma ainbivalêocia pode ser notada m insistência de Flahmy O êxito de público e de critica de Na1100Jr. oJ 1ht N,t1h abnria
cm enccnar siruaçõe:; tl'Adicionais que ji nio fittlAm pane da vida da horizontes inteiramente novo.s pan um cinema pttOC1.1pado com o
comunidade, mas que grviiun ~o seu propósito c.cntnl de repre5enr;ar registro da rcalkb.de. °Nt'Sle 5enodo, t0rnou..se o protótip<> de: um no,-o
idilic::uncmc o conflito cmrc o homtm e 2 nawrcza ho,stil.. Os esquimós gênero e podr se:r cons1der2do o ícch2mento defuütivo do péríôdo
quase nio caçav:un moms, mwto mcnt>s com arpao. Oi habitantes de Lumiêre. M2$ p:in que a cradJçio do doc;umcmirio se c~tabtk-ccssc
0

Sunoa nio w2,12,m tmis as roupas tradicionais visw em M(l(llfa, nem propriamente. aiod2 seria pm:ii10 esperar 'mais dt \.UJla década, :ué que
mantinham a caruagcm como wn ri.to de pas52gCm. Como os pc5tadores surgisse uma rctôrica capaz de da.r res.wninCU\ ao protótipo construido
da dM. de Ar1n nio pcsc:a,'2m nws tubarõc" foi preciso aprunr urn !a por Aahcny. F.s1e papel estaria n.'SUndo a John Cricrson.
ccm:cnas de qui16metroS., no GoU0 de Bisafa.• para que uma seqüência
de pesca fosse filmada. Esta defasagem mtrc • vida ,roa! do grupõ e o
sc.u passado tndiciom.l nio constin.úa um prob1t':lm maior par.i Aahcrty:

• o Jilme.de 6c.çia K ltt (Claude~....,._ 1993),~ namoconwackfhbmy~ o,.


l!MI,; e o proctflO dt ~ de N.-,,,4 "1 li!,, N.,.,._ mccm ota NlKo~
" 8.i\ASAJl.1, 1m so. IJ ldm:I! S2.
3 Ao Encontro de uma Finalidade Social

O escocês John Grierson foi o idealizador e principal organizador


do movimento do filme documentário, que se desenvolveu na Inglaterra
a partir de 1927. Naquele ano Grierson voltava de uma permanência de
27 meses nos Estados Unidos, para onde viajou com a intenção de
pesquisar os efeitos sociais da imigração e acabou em Hollywood, atraído
pela disponibilidade de dados sobre as preferências cinematográficas
do público norte-americano. 1 Este desvio de rota seria determinante
para o desenvolvimento de toda uma vida dedicada ao documentário.
Grierson era um reformista moderado, com formação universitária
em filosofia moral e metafísica, que acabara de concluir uma especia-
lização em ciências sociais e procurava os meios para colocar em prática
um projeto de educação pública através do cinema.

A idéia do documentário não era de modo algum uma idéia cinema-


tográfica. O tratamento fílmico que ela inspirava era um aspecto
puramente acidental. O meio nos parecia o mais conveniente e o mais

1
Após concluir sua formação universitária na Universidade de Glasgow, em 1924 Grierson
recebeu uma bolsa da Fundação Laura Spellman Rockfeller para desenvolver, junto à Universi-
dade de Chicago, a pesquisa: "Imigração e seus Efeitos nos Problemas Sociais dos Estados
Cnidos". Em Hollywood, sua recente especialização em opinião pública o habilitou a trabalhar
como consultor para a Famous Players Lasky (Paramount). AITKEN, 1990: 48. Entre as diver-
sas fontes consultadas, o livro de Ian Aitken se revelou a mais bem fundamentada biografia de
John Grierson. Sempre que não houver menção a outro autor, esta foi a fonte das referências à
vida e obra de Grierson.
56 F.spr:füo Plrodo A\► Enwntro de wna F ~ Socw S7

cxoamc disponh'cl Por outro 1-kk,. ') idé:il cm 1n cr.a unu Kléi:a 00\~ Dc$dc o fin2I d::a Guerra. 2
p:lnl -a educação pública. Seu roncdto iubillO:flle era o de que o mundo lngbu:rr., enfrentava um quadro de
vwi2 um pcrio<lo de mw:hnç:& dr.isnca que aíeuva todos o:i. moei.os de depressão c:conômka e vmh~
pensar e de agu-; e II oomprecnsio púbbca d.. narurt'7..a dd:tas rnucbn,ç111 reorganizando sua econoflm. P'.lra
era ,-iral:2 rcduzit as 1mpou2çôcs. uma
refunm mrifãria se fazia ntctssária,
Nos Est:acl05 Unidos., Gricr.son ficou vivamente i.mprcssionadC> mll$ cr.t pro1clada pelo corucrva-
com 6lmC$ épicos sobre a conqt.Usm do oeste e a fomução Wl n;ação. dods.mo libt:raJ domman1e. Em
corno "/1,e c,.,,.,d W'«"• Qamcs Cruic, 1923) e Ti,, Iro• Hllf'lt Qohn 1926, o llMB h,via $ido criado p,.t0
Ford, l 924), çuju inuge:ns gthiuú,~vam a consciéncla patriótica e: dvica promover pesquisas e ptoduzir
do J>O''0 americano. Ao mesrno tempo, se con,•enccu de que os mé-tod<>s publicidade. vis:uldo conqum:ar ~
cducacion:u, tradjciona.is cr.un in$Uf'icientcS para enfrentar os desafio, prcfrrência do~ cor\$WTUdot'C$ por
colOClidos pela sockdade de nuss11 emergente. 1'2.ra que o publico fosse produtos dó lm()Crio Britinko
çapaz de apreender a c.ompkxi<bck do mt,1ndo indu$trial moderno, era atrll·•oés da pcrsuas3:o. A poS'sibí-
necessário rccon-cr a novt.s técnias de comunicação e penn,12São. E o Jid11dc de utilização do cinema
cinema. com seus padrõc5 dr:urui.ticos e sua capacidade de Cjpruru como .cum podm,w instrumento
1 im2ginação das platéias, possuía um grande potencial a ser de educ.'tçio no mius ampJo scnu- fel,,, Cnmot1
uplorado no campo da difusão de valores clvicos e na formação da do da p:u,v"!".' foi rc:conhecida p<I• O>nfemicia lmpcaal de 1926, c:m
cid11d:.m ia. simooi> oom "'propo6W que Gn,non u.zia a Talltrus. M1' que chego,=>
O cinema inglês no final dM anos 1920 não apttSet"lt1Y2 condições com algumas :!<'rrWUS"de ,u:aso.
propicia.5 20 descnvohimcmo pr:ll.ico das idéias de GrierSOn. Os filme:s Apesar de foncmcotc. impressionado com o carisma de
americ:lrl.0$ domina,'1.m 95% do me.reado e, par.a íuer frente 2 esta GrieTSQn, Tallc.ms acabara de contntu Wahcr Crcighton para realizar
concorrênaa, o5 produtorc$ ingleses vinh2m apelando para o 2 primcir2 produçio cinem2togr:ific2 do e.im, 0,u 1-àmify, um longa•

scoamcncuismo. Cncrson compreendeu que a narureza educativa de meLragcm ücaon:J rorciózado por 2quelc- que o indicara. o poeta
$CU projeto teria melhor receptividade no :imbito go\'ttoa.menc:tl cio conserv~dor Rudyard Kipling. pnmo do Primeiro Ministto Stanley
C(Ut' no amblrotc do cinema cornerci-al. E procurou >1proxima.r•se d!! Baldwin. Enqu~to Crdghton foi pa.ss2r aJguns meses cm Hollywood
S1ephcn T:ukn1$, secrccióo do Empirc Marketing D<,,.ud (l!MB), o mais para 2prc.ndcr o~ rudimentos do oficio de diretor, Tallcnts pediu
impon:u,« ~ csw:u iogl<s dedicado. propogand,I. qucc,1:1bd<,cat que Gric.rsoo lhe tprt>S-CntllJ$C su-:as idéias .sobrt cinema cm um2 série
o :uquctipo dos scn-iços gm"""'1llfflws de relações públic:as. de rcla1órios.

t John Grwnotl. "'Thc Documem.vy tdeo&: 194r'. MI li.ARO\', 19-46: lllO ~ IJ" Kdaróno do- S11b-w11111ê EcOD&mto Gcn1. 01Mki po, AJ"l'Kh.N. 1991>. 96.
58 Espelho Partido Ao Encontro de uma Finalidade Social 59

O primeiro relatório preparado por Grierson intitulava-se "Notas que o EMB criasse seu próprio sistema de produção, distribuição e
para os Produtores Ingleses". A seção introdutória, "Cinema e Público exibição, uma vez que os objetivos propagandísticos e educativos da
- um Comentário Sobre as Reações do Público e as Condições do Apelo instituição dificilmente seriam atendidos pelo circuito comercial, movido
Popular no Cinema", continha um resumo de suas pesquisas sobre os exclusivamente pelo interesse do lucro.
resultados de _bilheteria do cinema norte-americano. A segunda parte, O cerne da proposta de Grierson a Tallents era associar a
''A Produção do Cinema Inglês e a Tradição Naturalista", trazia um publicidade dos produtos do Império à criação de uma cinematografia
esboço dos objetivos e das características estéticas daquilo que viria a voltada para a promoção da integração social e de uma cidadania madura.
ser o documentário inglês. E concluía com a sugestão de que o EMB Em seu primeiro relatório, Grierson argumentava que o cinema
4
produzisse inicialmente "uma série de curtos cinejornais exaltativos". americano tinha logrado um alto nível de comunicação com o público,
Esta sugestão mostra o quanto Grierson procurou se adaptar às mas as questões sociais costumavam ser diluídas em histórias que
possibilidades do EMB, descartando uma intenção inicial de realizar enfatizavam conflitos amorosos e dilemas individuais. No cinema
filmes épicos de grande orçamento e concentrando seus esforços na soviético ocorria o oposto: as questões individuais, capazes de motivar
implantação de uma unidade de produção dedicada a filmes de curta- a identificação do público, eram submetidas aos aspectos sociais e
metragem baseados em materiais factuais, na linha das atualidades e políticos. Para realizar um cinema eficazmente comprometido com a
dos cinejornais. Grierson mais tarde justificaria: educação pública, era necessário chegar a uma síntese entre a
representação das questões individuais e sociais. E o gênero das
A escolha do documentário foi feita parcialmente em bases pessoais, e atualidades bem poderia oferecer uma base para esta síntese.
parcialmente em bases de bom senso financeiro. (...) Documentário é Mas era preciso criar algo novo neste campo das atualidades, que
barato; (...) permite a maximização da produção e do treinamento dos fosse além da mera descrição dos fatos. Os filmes do EMB deveriam ser
diretores, por um valor baixo. Permite também a organização de toda rodados em ambientes naturais e, com base em argumentos simples,
uma máquina de produção e distribuição pelo preço de um único filme traduzir a complexidade da vida moderna em padrões dramáticos
5
comercial para cinemas. acessíveis. Grierson estava convencido de que filmes de propaganda,
para obterem êxito, necessitavam alto nível técnico e tratamento
Em meados de 1927, Grierson viajou pela Europa e procurou cinematográfico apurado:
assistir "todos os filmes de propaganda existentes entre Moscou e
Washington". 6 De volta a Londres, elaborou um segundo relatório, estes filmes devem evitar o destino dos filmes industriais comerciais e
"Notas Adicionais Sobre Produção Cinematográfica", no qual sugeria dos filmes chamados educativos do passado; e para que sejam realmente
efetivos para os objetivos de educação e propaganda, eles terão que ser
4 "Notes for English Producers". Public Records Office, Londres. Citado por AITKEN, feitos em linhas inteiramente originais. Aqueles filmes têm organizado
1990: 100.
1 "The EMB Film Unit". Em HARDY, 1946: 100.
suas cenas de modo desigual, sem valorizar devidamente o tempo, o
6
Idem: 99.
60 E,p<lho Pvodo Ao l!nooruro ck unu Fintlkbde SocuJ 61

ritmo e a composição: $Ctn comprccooer q�, mesmo quando não hi Ao invés de convocar profissionais com expcriéncit técnka.
uma hmóri2, efeito$ 1mcnu.mcn1e cxci1.antcJ podem ser obudos Gricrson preferiu selecionar jovens q\.C não uouxessc:m tonsigo os vícios
c:11:plorwclo o movimento da, musas de modo dnm:itic:o.' cotnaCWs da indústria cinematográfica e. SC':m maiores qu.esôoruuncmos.
acCÍt2$S('ffl trabalhar sob S\tl oricrm1çâo estrita.. Corn t:xccçio de alguns
cincgrafisuu.• os membros do grupo se de.st�c:tva.m mais pol' sua
formaçi.o académica do que pcb. rehção prâõca com o cincm2..
O primeiro ano <k aóvid•de d• EMB Fílm Unir foi ckdioodo à
realização de filine, de 30 segundos , cums-mcmgeos de propag:u,d•,
imcir.uncntc b1$CadOS na montagem de imagens de arquivo. Dcsu: modo.,
com o pequeno orçamento de que: dispuoha, Gricrson conseguiu
conjugar seus objetivos de proporcionar uma formação técnica e urm
unidade de propósitos ao grupo. a.o mesmo tempo tm que aprcsenr.wa
Nt,._Nl#U,,,
d,, 1911 (';,;-
produtos capuc, de iusúficar, para os diri.gcmes d.fl instituição. a

_...,.,,. ..,.
fi""" Dní- -• ncccssKladc de inVC$timentôS mais gtncrosos oa n::alir.&çio e disuibuiçio
de 6lmC$. ParaJclamcmc, Gricrwn deset1\'oh-eu um intenso mabalho de
l!vfo&n/E.,-,
promoção do rno\'imento do doeu.menti.rio junto à criuca cs:pcciali1.ad:a
4a N,., f!n, F1J.1,
e is auiorldades. atn1vês de tttigos, paJestns e contatos.
A oportunidade para dcmonstttr estes conceitos foj D nflm, um Est2 cs:�ntêgb rcsuJtou na obl'ençio dos recursos nca:,.sarios ia
filme de 58 minutos .sobre a pesca de arenque - o primeiro e único qUé CQntr.>tlçâo de Flahcrty paro a rt:alinção de lná#Jlrial Britm•, um filme
Ori<non dirigiu. A produton N<w Ea Films fui contra12ch para dar sobre o procc:Siõ de t.tmstbrrn2çio lU indústria ingJ�a. da tta do "12.por
,apoio técnico. mquanto a supervisão gcraJ e os direitos p:urimonia.is à ena do :lÇC), As$1m. Gricnon agttg.1,it ao E!MB a ch:mccb de umci.nea.sbt
pttm2.ncciam com o EMB. que assim inaugura�"'- suas atividades no in1cm:aáon,.lmcntc rt-nomado e aptrfciçoa"oa o treinamento tl-c:nico e
campq cincm:uogrifico. Drifltn exalta o trabalho dos pescadores cm artístioo de seu grupo. Em contraste com o c:tr:ittt aumnal d-as obns
aho mar e finaJiza com o cscoo..mento do pesado cm ucns: e navios anrenorei de Phherty, o projeto fot desenvolvido dentro do esptrito de
p,.ra o consumo. O êxito de Dnftrrs - em contraponto à limitada equipe que car.actcri:;,.aw i unidade de cincm2 - ln.sal \Vnght e Arthur
rcpcttuWO que, vúú • ttt o 6lme de Crcightoo - consolidou a influência Elton tilmaa.m cenas complcment1lil'C8 e II monmgcm ficou 2 cargo de
de Grimon junto• T:dla,,. < abdu o c:ammho para• rcuniio de um grupo Edgar Aostcy. sob supcrvi�o de GricrSOn. O processo de tr::ibalho
de cob.boradon:s intcgralmaltc dedicados i rr:,lizaçic> de dóa.unenclô0$,11
Gnrt"<lO. 1m1i dr Cnc,-'°- e- ,._.. at1111g1 EYdyft Spkt: <JJ anegr,hlO.J J<lmh Jonao. Oudi.
9
"Nota (m F.ngltih PTod--ccn'". op. OI, útadci pw Am;EN. 199<>. 100. Fvw.ic" Fftd � Stlwt Lcg r ll&n)' 'Xin. P.u9 Ido pr<r«<ar • bo,JildaJc: do T�
• O\ ,oe.;,._.,. Jo 8MB lb l!m1., por ordem de enmda, ÍOrtm!. 1bMI \\'�t.John Tt)'loc', o � mtri• • r,pentio b tirpw Obtlil,_ l<kb íoram ((l(ltn� l.ffffft d. pruclub>
a�f•tt J. n DaYirhon. An.h!.it Ellt.iõ.J.Ne O.vld,oa. &lftar AruttJ, r.ua � Mmon ni Ntw 8n. Gncnon ÍOi o \INW fundonino com.niado dirt�lc pdo gom-no.
Ao Encontro de \lfflS Yinabdadr $oo;.l 63

. ~
. .
t
/ c0rtfionou afioicbdcs, mas wnbém c,'ldenciou diferenças de concepção diverso~ complementos, p2ss2.ndo 2 ser formado por dois longu.
1
á ncrmLOgr.i.fica. Enquanto Gricrsoa se prcOC\lpavt cm subli.nhar a O mcrç:ado hostiUt:aV1l a ptodução cslatlll e, além disso, os nibidorcs ,
crescente complexidade da indústria moderna, Flahcrty fcxaliz2va dispuaham, :a preço bllixo, de opções como o ttJrt,w# e o 111arsrtt/,
/ nostalgica.mcmc a5 habilidades 2.rtesa.n.11is dt- vidreiros e potctros. O considet:tdos mais populares do que os docum~nwios ofid:üs.
~uludo final reflete esta dissonância.' A solução encootr.\da por Gricrson para :a dréUbção dos seus
filmes foi retomar os planos ocigm21s de: um smcmll alter-nativo ele
A 11"""""1 M b1tUn distribuição e cxibiçà~ composto de s1las espeaai" escolas. siodic:uos.
âBMB~
. . . J.·'nf•"' usociaçõcs e unidades móvçi$. Esre s:istttr12 paraldo Jc ,~ckulaçio fez ~
I""""' t • do E,\ID :1 m,..ior rede de cinema eduurivQ na ln.gl;ttera Por outro lado, ir,,:.,
'"f""W'., e.,_ manteve os ck>cumcntirios â nwgcm do mcrado comercial e do çum:uo
,. lndusUW
Bnwn. com o gr::a.ndc púh1iço, cri:ando um.a. conuadição que nunca ""ria \
~$Olvida: wn smcrm fundamcnt-ado çm unu tttôoat de comunicação
de rTUl.55:l.. mà!i que resulaw em filmes vmos por uma platéia St.lcoonada
e minoritiri;t.
Os esforços rm,ra t0rn:a.r c$tá\!d wn:a unidade de produ~o cst:u.21
semi-autônoma sempre mconu,.r:un misu!ncias por parte d.3 burocra~
espccl:almcmc dos ofiC:Ws do Tesouro. E.sw resistências se intcm;i6amun
• parar de 19~ 1, rcsul=d<> em uma progrqsiva rcduçio orç,imcntiria
Em 1931 a Fi.l m Unit retomou cinco projetos de cunas. com que impossibib1ou a consobd:açio da Film UmL Gricrson procurou
duraçio de aproximadamente 30 minutos ud.a, que.- havi:tm sido altcm:uivas fora. do l?MB e obteve encomend:a.s de doc:u~tirlo..\ ~
intttro<npiJos desde• e h ~ de Flaherty. Estes cin<O primdros 6Jmcs empresas privadu, como a Voice Gramophonc ComJ)1'ny e a
Mo pc,s.su!a.m qw.lidadts estéúc:as tspccialmcmc rclcvamcs e forll\2,r:lm Chcstcrficld Educaúon Authority: P"J'2 ouaos ó,gios públicos. como o
wn lote, cnabcçado por lnd11slrial Bn"Jai11, que se tomoo conhecido como Gmcral Ptx1t Officc (Çf'O), o Tclephonc Advisory Service, o Ministério
Tht l,wp,,i,,I Six." Oferecido aos exibidores. ruio conseguiu ser bnçado da Agncultutá e da Pesca: e para instltuições do lmpérlo Bricink-,, que
nos cincnu.s comerciais. 01\"crsos fatore$ contribufr3m par.1 is50. Os opcr::avam em colôm2s e pro1cto~ como o Ccylon Tca Board. E.,t:a.$
filmes curto$ nio haviam sido inclukJos na lcgisb.ção prot:ecioo.ist2 ao irúciaU\'U se: tnOSt,J"aJ':Ull provide.nciais quando, ffll 1933. uma reforma
cincm:1 inglê, criada cm 1927. Eca dificil acomodá-los no prognma, w:ifiria cswziou 2 mzio de 5er do film e. :acabou por aorrctir sw.
que naquela época dcix2ra de ~cr a>mpoito por um longa ..mcuagem e extinção. Stcphcn Tallcms foi cntiQ nqmt:ldo para o setor de rcbçõcs
públicas do GPO e conseguiu obrcr do Tesouro um:a autori.nção
1
ShlSAt.l, 1992: 90-91; ~ Al11(fj,,;, 191.Kk 121. provis6ria par11 lcnr consigo todo o gn1po de documcnuuistas e dar
• ()1 ~ fimct CHm 71, ~ e . - , • T--. o·wllút-' IW, ~ u,_.,_ e
S .......... A,_,,,_, Afl'KEN. 1990: llL continukbde aos protctos cm cuno.
64 Espelho Partido Ao Encontro de uma Finalidade Social 65

O GPO não se mostraria uma base institucional mais sólida que compostas - imagens que podiam ser estilizadas quase ao ponto da
o EMB. Às pressões do Tesouro somaram-se as do recém-criado British abstração". 11
Film Institute, que ambicionava absorver atribuições do grupo de Se o objetivo supremo de Grierson era a educação para a cidadania,
Grierson e tornar-se o único intermediário entre governo e indústria não deixa de ser paradoxal que os filmes que produziu fossem tão
cinematográfica; e as do setor privado, que questionava a concorrência formalistas e evitassem sistematicamente aprofundar as questões sociais
de uma produtora de filmes para clientes diversos operando, com e econômicas. Em grande parte isto se devia às limitações ideológicas e
recursos públicos, dentro de um órgão responsável por fazer funcionar políticas de um trabalho realizado sob a tutela do Estado. Estas limitações
os correios e telégrafos. eram conscientemente assumidas:
Em conseqüência destas pressões, a partir de 1935 alguns
membros da Film Unit começaram a deixar o GPO para fundar núcleos As reais questões econômicas subjacentes à pesca do arenque no Mar
de produção de documentários junto a outras empresas, como a Shell, .do Norte, os problemas sociais inerentes a qualquer filme que abordasse
ou produtoras independentes, como a Strand Film Unit e a Realist Film seriamente a região industrial, estavam fora da jurisdição de uma unidade
Unit. Esta aparente dispersão, ao invés de enfraquecer, fortaleceu ainda de cinema organizada dentro de um departamento do governo que tinha
mais o movimento, que passou a contar com uma entidade representativa, como objetivo "tornar vivo o Império". Os diretores sabiam disso e, sabia-
a Associated Realist Film Producers, e uma publicação especializada, a mente, eu acho, evitavam qualquer análise econômica e social importante. 12
World Film News. Em junho de 1937 foi a vez de Grierson deixar o
GPO para fundar o Film Centre, dedicado à prospecção de clientes e à Uma questão de fundo era a inadequação entre a intenção de
obtenção de novos contratos para a realização de documentários. Grierson de produzir filmes dentro do serviço público e a ideologia
Paralelamente à obra fílmica, os documentaristas propagaram suas liberal vigente na Inglaterra, que defendia a livre-empresa e um papel
idéias em jornais, revistas, palestras e os mais variados meios de não produtivo do Estado. Some-se a isso a progressiva necessidade de
intervenção pública. Seus filmes foram os primeiros a levar à tela as redução de gastos públicos causada pelo aprofundamento da recessão
imagens dos trabalhadores ingleses, criando as bases para o no período entre guerras. E, não menos importante, o fato dos objetivos
desenvolvimento de um cinema realista na Inglaterra. Por suas qualidades reformistas propagados pelo movimento do documentário serem
formais, alguns títulos do período EMB/GPO tornaram-se clássicos, encarados como "esquerdistas" por alguns membros dos governos
entre eles Dnfters, Industnal Bntain, Song ef
Crylon (Basil Wright, 1935), conservadores. 13
Coai Face (Alberto Cavalcanti, 1936) e Night Mail (Basil Wright e Harry Grierson sempre caminhou sobre o fio da navalha, consciente de
Watt, 1936). No entanto, entre mais de 300 documentários, a maior que a volumosa soma de recursos de que necessitava não poderia
parte constitui uma produção educativa rotineira. E mesmo os clássicos
eram predominantemente marcados pelo formalismo, a ponto de Edgar 11
ANSTEY, 1966: 2.
Anstey afirmar que "a forma era tudo". E acrescentar: "narrativa " ROTHA, 1936: 127.
11
Com exceção da administração trabalhista entre 1929-1931, todos os governos ingleses do
não era mais que um aspecto da forma em que as imagens eram período foram conservadores.
1
Ao Encontro de uma Finalidade Social 67
66 Espelho Partido

depender do mercado exibidor nem de uma eventual filantropia privada. As sociedades por ele consideradas superiores eram aquelas que logravam
Boa parte de seus esforços foi dedicada à tentativa de legitimar o trabalho um alto grau de integração em suas relações internas. Esta visão idealista
da Film Unit, como um serviço de utilidade pública acima de interesses negava a existência de classes e atribuía uma importância decisiva ao Estado,
pessoais ou partidários. no processo de integração social. A concepção corporativa que Grierson
tinha do Estado o levava a restringir a atuação dos funcionários públicos
foi na interpretação educacional e não na interpretação política ou estritamente aos valores consensuais, evitando o partidarismo e as ações
estética que o filme documentário encontrou uma "demanda", logo, capazes de ameaçar qualquer transformação mais radical das instituições.
tornou-se financiável. Este ponto é de grande importância na Desde cedo Grierson foi marcado pelo idealismo liberal de seu
apresentação do filme documentário como uma contribuição pai e pelo socialismo reformista moderado de sua mãe. Seus textos na
fundamental para a informação governamental e também para a teoria universidade revelam uma visão democrática elitista, que desacreditava
educacional. Tornou-se financiável porque, por um lado, foi ao encontro nas possibilidades de um governo popular, chegando a afirmar que o
da necessidade do governo de um meio atraente e dramático que pudesse igualitarismo era "uma doutrina anárquica e perigosa". 15 Durante sua
interpretar as informações do Estado. Por outro lado, foi ao encontro vida adulta, a Inglaterra transitou do liberalismo conservador para a
da necessidade dos educadores de um meio atraente e dramático que social-democracia, com crescente presença de movimentos, dos mais
interpretasse a natureza da comunidade. Um proporcionava o público; diversos matizes, que propunham reformas nas relações sociais
o outro, o patrocínio. Assim fechava-se o ciclo econômico.
14 capitalistas. Grierson, que nunca se filiou a um partido político, desde
jovem se posicionou como um social-democrata consensualista,
A obra maior de Grierson, como teórico, produtor e administrador, defendendo reformas sociais moderadas e graduais.
consistiu na laboriosa construção deste "ciclo econômico", criando as É dentro deste quadro ideológico que devemos interpretar o
condições para que o movimento do documentário pudesse se afirmar. "modelo utópico das relações entre o documentário e o Estado" 16 que
Sua persistência em trabalhar dentro de órgãos públicos, apesar de tantos Grierson sistematicamente tentou implementar. Em uma conjuntura
obstáculos, estava intimamente ligada a uma concepção do Estado e conservadora, desfavorável ao exercício direto da propaganda pelo
das elites na sociedade, decorrente de sua formação filosófica e de Estado, ele perseverou na tentativa de criar uma plataforma estatal sólida
suas convicções políticas, conforme demonstrou Ian Aitken. Durante e permanente para a produção de filmes de educação cívica. Desde que
a adolescência e o período universitário, Grierson sofreu forte influência asseguradas bases consensuais e não-partidárias, Grierson considerava
de uma síntese idealista neo-hegeliana e neo-kantiana que preponderava que o trabalho de propaganda e educação pública desenvolvido pelo
no ambiente acadêmico escocês do início do século. Estado era a "raiz-mestra da idéia democrática" .1-
Sua concepção da sociedade era de uma totalidade orgânica
marcada pela interdependência entre os indivíduos e as relações sociais. " Manuscrito depositado nos Arqui,·os John Grierson, l'niversidade de Stirling. Citado por
AITKEN, 1990: 57.
11
' AITKEN, 1990: 193.
1
• "Propaganda and Education". Em HARDY, 1946: 217.
14
John Grierson, "Propaganda and Education". Em HARDY, 1946: 222.
68 Espelho Partido Ao Encontro <k uma Finalidade Social 69

Grierson acreditava que, na sociedade moderna, o coração e a educativas de seu projeto, chegando a excessos retóricos que
mente do cidadão comum não estavam mais disponíveis para a educação minimizavam a dimensão artística do movimento.
tradicional e estavam sendo conquistados pelos meios de comunicação
de massa - jornal, rádio, cinema e propaganda. Como vimos, durante O documentário, desde o início - quando nós primeiro separamos nossas
sua permanência nos Estados Unidos, Grierson ficou fascinado com os teorias de finalidade pública daquelas de Flaherty - era um movimento
padrões dramáticos utilizados pela imprensa popular, que se tornou "antiestético". Todos nós, eu creio, sacrificamos algumas de nossas
objeto de sua pesquisa em ciências sociais. Na falta de dados primários capacidades "artísticas" pessoais e o prazer vaidoso que as acompanha. 20
satisfatórios, optou por pesquisar a repercussão sobre as platéias dos
formatos narrativos que vinham sendo experimentados pelos estúdios Mas seria um erro interpretar estes sinais como uma subordinação
hollywoodianos. De volta à Inglaterra, resolveu aplicar aqueles "métodos absoluta dos meios cinematográficos aos fins propagandísticos. Não só
dramáticos e inspiradores" no campo da educação pública, produzindo os companheiros de trabalho de Grierson em várias oportunidades
filmes que fossem capazes de "estabelecer uma ponte entre o cidadão e testemunharam sua apurada formação estética e sua rigorosa obsessão
sua comunidade". rn formal, como a própria obra fílmica do período EMB/GPO contém
suficientes provas de esmero artístico. Para compreender melhor a
Eu encaro o cinema como um púlpito e o uso como um propagandista; relação entre meios e fins no projeto de Grierson, devemos examinar
e digo isto sem a menor vergonha porque, nas filosofias ainda imberbes os princípios estéticos em que ele baseou o movimento do documentário.
do cinema, amplas distinções fazem-se necessárias. Arte é uma coisa; e
quem está interessado nisto, eu sugiro, deve procurá-la onde haja espaço
para sua criação; diversão é uma outra coisa; educação, no que concerne
ao professor, outra; propaganda, outra; e o cinema deve ser concebido
como um meio, como a escrita, capaz de muitas formas e muitas funções.
Um propagandista profissional bem pode interessar-se especialmente
por ele. 19

Apesar destas "amplas distinções", Grierson sabia que arte,


diversão, educação e propaganda não eram domínios estanques. Por
diversas vezes - talvez para conquistar a confiança dos setores conserva-
dores e legitimar os recursos públicos que eram garimpados com tanta
dificuldade - Grierson colocou muita ênfase nas finalidades sociais e
18
Idem, 221.
cu "The Documentary Idea: 1942". Idem: 179.
19 John Grierson, Sight and Sound ~inter I 933-1934). Idem: 12-13.
4 A Estética do Documentário Clássico

As idéias de Grierson sobre arte e cinema estão presentes em


fontes diversas, mas os textos mais importantes para a compreensão de
sua concepção do documentário são os relatórios apresentados a Stephen
Tallents em 1927 e, principalmente, a série de três artigos publicados a
partir de 1932 na revista Cinema Quarter/y. No primeiro destes artigos,
reunidos sob o título "Princípios Fundamentais do Documentário",
Grierson separa os filmes que utilizam "materiais naturais" em duas
categorias distintas. Na "categoria inferior" incluiu aqueles que
meramente descrevem a realidade, como os newsreelers, os interest films, 1
os filmes educativos ou científicos e os travelogues. Na "superior", os
filmes que deveriam ser denominados documentários: "neste ponto,
passamos das descrições simples (ou fantasiosas) do material natural,
para o seu arranjo, rearranjo e formalização criativa". 2
A dramatização é apresentada por Grierson como um método
capaz de promover esta formalização criativa, reveladora da realidade.
Mas para isto, ao contrário do que faziam os estúdios, era essencial
filmar a cena viva e a história viva; e utilizar o ator nativo. Flaherty havia

1
A expressão vem de general interest films. Os ingleses assim denominavam os complementos de
curta-metragem, chamados de shorts pelos norte-americanos e franceses. Os interest films
"abrangem da comédia ao drama, do filme de educação ao documentário propriamente dito, da
reprodução de um número de 'music-hall' ao desenho animado mais complicado".
CAVALCANTI, 1957: 59.
2
"First Principies of Documentary". Em HARDY, 1946: 79.
72 Espelho Parti<lo A Estética <lo Documentário Clássico 73

dado o exemplo. Contratado para realizar Moana - "um novo Nanook", Princípios básicos. (1) Nós acreditamos que a capacidade do cinema de
nos mares do sul - recusou-se a impor aos habitantes de Samoa um circular, de observar e selecionar a partir da própria vida pode ser
drama artificial concebido pelos roteiristas de Hollywood e a contratar explorada em uma nova e vital forma de arte. Os filmes de estúdio
atores profissionais. "Com Flaherty torna-se um princípio absoluto que ignoram amplamente esta possibilidade de dar acesso às telas ao mundo
a história tem que ser extraída do local e deve ser aquela que ele considera real. Eles filmam histórias atuadas contra fundos artificiais. O
3
a história essencial do lugar". documentário deve fotografar a cena viva e a história viva. (2) Nós
A importância que Grierson atribuía aos materiais naturais estava acreditamos que o ator original (ou nativo), e a cena original (ou natural)
ligada a uma convicção, formada ainda no seu período americano, de são os melhores guias para uma interpretação cinematográfica do mundo
que o cinema possuía uma capacidade intrínseca de representação moderno. Eles proporcionam ao cinema um imenso manancial. Eles
naturalista, quase sempre diluída e distorcida pelo cinema industrial de lhe proporcionam controle sobre mil e uma imagens. Eles lhe
ficção. Esta propriedade se aplicava tanto às locações quanto aos seres proporcionam uma capacidade de interpretação sobre eventos no
humanos - a capacidade dos habitantes dos ambientes filmados de mundo real mais complexos e surpreendentes do que a imaginação
transmitirem sua complexidade existencial dificilmente poderia ser do estúdio pode evocar ou o perito do estúdio recriar. (3) Nós
imitada por atores profissionais. Para melhor capitalizar este potencial acreditamos que os materiais e as histórias assim cruamente extraídas
naturalista, era preciso abandonar as histórias carregadas de psicologismo podem ser melhores (mais reais no sentido filosófico) do que o
e privilegiar o meio social como fonte de inspiração: material atuado. 5

Eu estou apenas sugerindo uma mudança de foco, ao invés de enfatizar Ao se referir a um "sentido filosófico" de real, Grierson nos remete
seqüências de histórias e imaginar ambientes para elas, enfatizar a força à sua concepção idealista do mundo e do processo de conhecimento
que o cinema pode extrair do ambiente e imaginar uma história capaz através da arte. Seus textos anteriores, inclusive aqueles do período
de lhe conferir significado humano. Eu acho que o carro está sendo universitário, examinados por Ian Aitken, demonstram que Grierson
colocado adiante dos bois no cinema, e que a verdadeira fonte do drama estabelece uma separação entre o real - geral e abstrato - e o fenomenal
cinematográfico (o mundo do movimento e do comportamento - empírico e particular. O "real" para ele não é o conjunto dos aspectos
4
espontâneo) não está sendo utilizado tanto quanto deveria. superficiais do mundo empírico, mas uma realidade subjacente e
determinante. Este real, fundamental, não é imediatamente perceptível,
Em seu texto dedicado aos princípios do documentário, Grierson mas pode resultar de um processo interpretativo que a filosofia, a religião
retomou esta concepção da superioridade das histórias baseadas nas e a arte são especialmente capazes de proporcionar.
vidas dos próprios personagens. Dentro desta visão filosófica neo-kantiana, os materiais naturais
formavam uma base prioritária para o artista, por conterem uma maior
1
Idem, 81.
4
"Better Popular Pictures". Em Transactions of the Society of }vfotion Pictures EnJ!,ineers, v. XI, nº 29,
agosto de 1927, p. 248. Citado por AITKEN, 1990: 85. s "First Principies of Documentar/', op. cit.: 79-80.
74 Espelho Partido l A Estética <lo Documentário Clássico 75

1
r
quantidade de dados sobre o mundo empírico. Um cinema que tivesse A primeira delas reside naquilo que Grierson chama de
por matéria prima as imagens naturais registradas pela lente da câmera "neorousseaunismo" de Flaherty, ou seja, na crença de que o indivíduo
disporia de condições privilegiadas para, através da montagem, que vive em contato com a natureza é mais puro e mais feliz que o
desenvolver processos de generalização e simbolização capazes de homem civilizado. A tendência romântica a procurar reconstituir
interpretar as forças determinantes da realidade. costumes superados, em regiões remotas, era considerada por Grierson
E, para que a espontaneidade do comportamento natural fosse intei- um escapismo, que afastava Flaherty dos problemas urgentes colocados
ramente preservada, a filmagem deveria ser precedida de um período de pela sociedade moderna. Neste ponto fica patente a distância entre aquele
convivência do cineasta com o ambiente e as pessoas do lugar. Este méto- crítico de Moana - que seis anos antes se encantava com os horizontes
do de observação participante era considerado por Grierson uma premissa distantes dos mares do sul - e o ideólogo do documentário compro-
básica. Mais uma vez, é o trabalho de Flaherty que serve de referência: metido com seu tempo e seu meio urbano-industrial. Grierson agora
reconhecia que Flaherty havia elevado a tradição romântica do filme de
Flaherty ilustra melhor do que ninguém os princípios fundamentais do viagem em um grau, ao introduzir a dramaticidade. Mas era preciso
documentário. (1) É preciso dominar o material na locação e ganhar elevá-la em mais um grau para dotá-la de uma finalidade social. Se
intimidade com ele para ordená-lo. Flaherty imerge por um ano, até Flaherty estava interessado em personagens lutando pela sobrevivência
dois. Ele vive com a população local até que a história conte-se "por si em um ambiente selvagem, os documentaristas ingleses prefeririam
mesma". (2) Devemos concordar com sua distinção entre descrição e abordar "a luta pela sobrevivência em meio à abundância". 7
drama. Encontraremos outras formas de drama ou, mais precisamente, A segunda divergência de Grierson consistia no herói individual
outros tipos de filme do que aquele que ele escolheu; mas é importante construído por Flaherty em seus dois primeiros filmes. Para Grierson,
fazer a distinção primária entre um método que apenas descreve valores o cinema devia representar a interdependência entre os aspectos
superficiais de um assunto e o método que mais explosivamente revela individuais e sociais. Conflitos de ordem pessoal, psicologismo e
sua realidade. Você fotografa a vida natural, mas também, pela introspecção eram elementos incompatíveis com os objetivos de um
6
justaposição do detalhe, a interpreta. cinema comprometido com a educação cívica e com a integração social.
O indivíduo, como pivô dramático, estava irremediavelmente superado
Neste segundo ponto, Grierson reafirma a distinção entre a mera em um mundo complexo, comandado por forças impessoais. Mais do
descrição dos aspectos fenomenais e a interpretação do real através dos que isso: o individualismo era uma das causas da anarquia social. Logo,
métodos dramáticos e da montagem - a "justaposição do detalhe". Por era preciso abandonar o herói individual - tanto o "romântico", de
outro lado, ao referir-se a "outras formas de drama", "outros tipos de Flaherty, quanto o "artificial", dos estúdios. Grierson vai mais longe
filme", Grierson demarca a bifurcação que o separa de Flaherty. São nesta superação do indivíduo como "figura dramática auto-suficiente",8
duas as divergências que se encontram aqui imbricadas. especulando a possibilidade de "abandonar a forma da história e procurar,
7
Idem: 82.
8
6
Idem: 81. Ibidem.
76 E,pdbo l'trudo A &lioca do D«--umcoDino CHss,,eo 77

como oo mod=,os expocnld <b poesia, d> pin1uni e d> prosa. wn a,sumo o~
e wn método mais .satisF.uórios pam 2 mente e o espinto da época'".' F\>cc-mksn, •• j.u,r
Como podemos VCI'., fbherl)' eu a maior reícr-ência qU11ntO aos ,,.. e,,,_ -1-
,.,,&u:r '),, • pi t mlt
métodos de pesquisa prêvia sobre os u::mas a serem filmados e qU2.0tO " Jllrli, ' :
ao uso de matc~iais n:uur:us. Mu seus filmes crn1N2m longe de
proporcion-u-um modelo acabado para o documentãrio. O qut Griccson
buscava era um mé.todo ca~1. de supcnr tanto o modelo lt2tr:a.l e
ro,mncsco tdomd.o pdos escúclios qwuuo a poctiz:u;ão do cx.otismo ao
gosro de Flah<:rty.
Uma fome de inspiração ntste ~nudc> cnt o oncma soviéuco. Os
filmes russos chamanm .a •;ucnçio de Gticrson por ués aspectos
principais. O primciro deles era a montagem. Os ru,sos - sobretudo
Vcrtov, Kuleshov. Pudovkin e Eiscnstcin - ,tiam na montagem o própôo
fundamento da·anc cinenunogrific~ A lt.'Oria d:a mom:agt.'tn dialética
de Ei.smstcio intcrprcuva o cor,e como um choque entre dois f.uores.
origú1:ando um conceito. Esta tcona fornecia a Goerson WJU cha,-c pau
de-:sc:m•oh•c.r sua conccpç.ào de cint-ma b-1stada cm procc$SOS de
gcoer.ilizaçio e simboliz•çào; um cioclllll que fosse oipa.i de produzi,
efeitos d~ticos sem occcssariamcntc recorrer à «forma cb his,ória".
Gricrson i• conhecia aJgunw produções soviéticas qll20do foi convidado
a colaboru com a prcpan.çio do5 lctrciro5 JY.lnl o lançamento de
Bro-•tnos,ft P01t111~,u (0 Õ.1ttfNl'1lfado Pttltmltin., Scrgci Eiscnstcin) nos
Estados Unidos, o que lhe proporcionou um minucioso contalO com o psicologismo do drum burguõs, seja a1r.1vés do uso de pcr:,on.,gcns
filme. Em t929, Pottmlin seria c~olhído por Grienon pana compor o individuais par~ txpressu ô espírito d11 m:1sn. como cm Mil,
prog,-:um, de lanç:uncnt() de seu filme Orif!m. (P\,do,•kin, 1926), seja •o modo de Eisenncin (A Grttv, 1924; O
O segundo aspecto que imcress.iv.s a Gnct50n nos filmes rus.sos E11ro11rf1fddo P0Jr111Jci11, 1926: e 011t11bro, 1928), que convertia a massa
era• c,crci12 rdaçào cnttt escolha do tema e 6n>lidadt social An:voluçio cm proragonisr2.
soviética de l917 diíu.odiu uma ideologia coleúvi$ta que se opunha Outro aspecto imporun.tc- c:r-.a o U$à do cinema como vdcuJc> ck
frontalmente ao iodivid~.smo. Os chretoreS: rusws hav1am supaado o propag2nda. Nenhuma cu,e:marografu h-:tvi:t produzido wn áncm2 de
propaganda soci:a.l mais proli6co e cfcci,·o que 2 soviéôca. E. tiérn dis50,
no5 filmes russos os objetivos propagandis-ticos nio er.un .!ôuhrntàdos 11
78 l!,pelho Pa.- A llirroc:a do 0ocW'nttltino euuato 79

um tr.1litmcnto pab.gógico, mas csr2..-.i.m associados a urna arroj:tda marcou o inkio de um novo método documcncirio e prova,.•tlmcn1c
pcsqui5'1 fomul. exerceu 2 maior iníluci'\c1a nOJ úhimo,; progreuos do que qu.a.lqucr
Apesar de todas estas virrudcs., o cinema soviético não constirufa outro filmc.10
um moddo facilmente 2plicáve:I ao documcotirio inglés. Gricrson
rccu.U\>:a seus rné.todos de dr.unarização intensa~ os conteúdos políticos T11rhih também aprcsc:.nta\·a II luta do homem contri:a i:a m.turc7,it
c:xplidtoS e 11 tcndblcia a um romanúsmo re,.-oludonário. Por nio sot"tt:r em um::. região remota, mas ncs,c caso uauva•sc de um
nenhuma desw 1imiÇ1ÇÔCS.. o filme russo que exerceu influênóa mais c:mp[ccndimento colcüvo que opc-uva com os meios técnicos d:i
dirttt oa escola do documcnúrio inglês foi T...-kn'b (Victor Turin, 1928), sociedade indusuiaJ e linha por' objt-civo o dcst:nvolvimcnto
confor~ r-cconha:eu Ptul Rolha: econômico. Sem mcnsagcnJ políticas abcn:as, o fiJmc de Turin
demonstrava que o herói lncfü•idu2I c :a forma d.:i. hi.scõria não enm
r,,rlufb de Tunn ddioc soz.inho t bnh.a dt tbor<bgcm soVlêucia, do imprescindíveis pa.ra c.na1lccc.r dramaticamente as conquistu do
docuntcnuino puro. pOLs des.ca.rcou complcf2.lnentc :11 íorm:a d-11 mundo mode:r-no. As lege:ndas da versão cm inglé."i de TKrJ:.fib ro~m
hm6rfa. e dntmu:rou cm grande estilo a ncccssidtdc ccooôm1c:t e :t prcpac:ada.s por Gricrson e Turin cstc\·c presente n:a pnmcira exibição
consm.içio dt cnndt de ferro Turqucsüo--SibCri•. (...) 'litr)u,'I, do füroc no GPO.
Outro poufvd môddo pata o documem:írio inglês cu:n·a nA
COtn:'ntc que Rotha denominou ,__,realismo conõnemal". n:prcsemada
por filmes como Btrl,i,, S1ilfa11it drt Grontadt (&rlim, Si11falfi<1 dt 11111(1
MtlrÔpolt, Walter Ruttm:uto. 1927)." l!nu-q produções realizadas i
m:trgtm d2 gnnd.c- i.ndú..;ma Íran(esa e alemã, inspir.idas peb om111~
que min.imV::i.v:un o enredo e povilcgiavam 11.5 pOlcocialicbdcs ptisticas

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da im.igcm e da momagcm. Seus autores abandonmm os csu.idios e,
m.s rua& das gnndcs mc.u6polcs. fihnawm perso02gt:ru e pai~gcru
urbanas. Este$ fiJmcs rcprcsen~Vllm um rompuncmo com a. procura de
..._,p,i;,.,,,
,xp11o... mspir:Jçio cm terras discames e 6gur2s cxóucas. características dos
rnvelogues e dos filmes de Flibcrry, indo ao enconuo de uma d2s
pttocupações centr.tls <le Gnenon:

• ROTILA. ll/36: 101


11Jl,ri,.11:1:m ~ " " " Ot'llk t'IWldW de 61ma »obre um&.. N ,•da de um:,, cidade
Slo P.-0 Í<N oo,No dr: umddt-1: .U.P• .'i,.,._l.t,\l~(}tt,dolfo Lex Lwugt Adabrtu
Kn-nm~ 1929). GOfflM dq,,v a IÍlll'.milr "l'JC .._ cala S0 prute!OI ~ ptlo& rnsia
4S tio MnÍOC!iM de f ~ ou de f.c:(kr«twi ou dr P.-ri, ou de Pttfp"' " Fln.1
p&;tnto.
Pdaopln u( l1ocum(n1;1ty,., op. Ot.; 8)
A F~11:1:1ea do Doc:umcntino Cláuaco 81

Oeic•i"a.~ coru.tnur o d.rama ~ p1rtit do ooodtano. no,. colocando eram carc:otcs de ul'l'tl quAl.iJade que Grierson rcput2,,. íunclamc:mal: :i
conto a prcdornmânc:ia do dr.una ciu:ntordtnário: um dcKjo de uv.cr o 6.ruJidadc. E a arte não<'. um fim, mas uo s.ubprodut0 de um mbalho
olh:i.r do odadic:\, dos con6ns cb tcrni pua a 5\121 prôprú h.is.tófU. para bc:m rc:tliz:tdo". Sem uma finaLidade sociaJ, a obscrwção se perde no
!lquilo que est2 aoomcccndo debaixo do $CU nn.ro_ D.ú noss:t tn.sJStênct'.l puro movimento. E a beleza, quando alc~mçada. rdlerc ··um b.:zcr egoísta
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com o dl'tJ'l'U <1vc ocorre ~ soletra cb p,oru." e u1n2 estéàca dccadto.te'~.,,
A aítia :1.0 rormnti!mo de Alherty, à dr:unatizaçio inrens:i dos
Bcdim. S1.nfOtlll
~ ums ~frtrópolt.
soviéticos e ao esteticismo dis ''2Jl&'U:Lrdas: pa.r:ilclamcmc à valori:1.açàe>
rm#M ti, Mm dos "ma1criai, naturais.., da monmgcm ôtrruai e dos 1cmas ligados à
N/"111,MIN.Jtia sociccbde modttoa: foram as balizas que orientatani Grierson no esboço
,,. flf11#"'
de um mêtodo narrativo para. o documentirio inglês. Mas este método
~•rJWU
-,J.,,,,.,J,.,.., nunca ch~u a ser s2tisfaton2rncntc formub.do. A rejeição de certos

-....
n,J,, J, .... """" formatos e a apropriação parcial de outros não rt:sultou na proposjção
de uma pluaforma cstét.ic:a acab1lda ou de um modelo cincma-
rogr.Hico alternativo. O que temos sio os ro<limcn1Qs teórico~ dcSU'.'
modelo.
Ao voltar-se para as vmudes da '"form:1 su,fônic.1", Gocrson se
aproximou da linguagem fK.>é:Üca, que prescinde de u1na hiMórfa e
dcscnvoh-e o i.ema amwéi; de imagens. No úkimo de 5euS artigos sobre
Oulr.l :ifmidadt dccorri:1 do caráter ºsinf6n.ko'' destes ftlmc:s - os princípios do document;;rio, Gricnon esboça rrê~ métodos de
sua estrutura anilog2 2 um ílux.o OrqUC$tr:1do de Ílll2gCOS. Seus cícitU$ mtamcnto doemiuõgrifico do tCmJ)O) do ritmo, da.s massas e do
dramáticos não decorriam de enredos, mas d11 cun~ rítmica de movi.mcnl'O. O prime.iro consistt na formil sinfôniet. pura, apenu
movimtmos do am:tn.h«cr. dos homens nas ruas. das f2bricas e das at.rC$0d-a de finaLiclade. A lntcrpretaç:ão decorre do comenrário visual.
casas m>wrnu.. Ne$ta cxplor:ação do ôtmo dos cVt"f'ltos Grier30n vfa privílegiando o ritmo dos próprios eventos para deles cxu:air emoção e
uma wk>rizaçio de: ca.ractcristicas intrin.sccas 20 meiú f'Omic<, e uma significado social. O exemplo é Ca11f> fa,,,, jaH1aim (Basil \Vright, 1933).
pos-sibilidade do cinenu libertar...sc do compromisso com a hiscória e O segundo implica modular os rirmos atra.vés de elementos f.uniliard
com a rtpresc:nração tcaw.l. ao drama: suspense e clímax. Ncsrc caso. a i01crprctaçio decorre d2
l>or outro lado. para Grierson estes filmes tttti:am, do berço tensão entre forças conílitantCJ. O exemplo é Gra11f(J11 Tn:t•·kr (Edgv
w.nguarclism, a marca do esteticismo., da "artc peb 11.rtc... ()$ ptttucnos Ans,ey, 1934), O rcrcc:iro método integra im:tgt.J.u poêtius ao
episódios coridi:ino5.t ainda que habilmente a.rtkulados pela mont:tgcm, movimento. ,.'1S:tndo coar atmosftnt.s e dtados de in..imo. A mtcrprctaÇâo
T
82 Espelho Partido l A Estética do Documentário Clássico 83

se dá através da referência simbólica a uma associação natural de idéias, "a história conte-se por si mesma". E evoluem para uma "forma
como na linguagem literária da poesia. O exemplo é Drzfters. sinfônica" e um "tratamento dialético", em que os efeitos dramáticos
Tanto Grierson quanto Rotha enfatizam que estes três métodos poderiam ser obtidos evitando a forma da história ...
podem estar presentes no mesmo filme, seu peso dependendo das Em Documentary Film, Paul Rotha reconstitui diversos argumentos
preferências do diretor. Ambos submetem estes métodos de manipulação desenvolvidos por Grierson no início da década. Em poucos pontos
do movimento ao que denominam "tratamento dialético", uma eles não coincidem; e um deles é a função reservada ao personagem.
expressão muitas vezes citada, mas pouco desenvolvida em seus escritos. Segundo Rotha, ao recusar a forma da história e o personagem individual,
É significativo o fato de que o último destes três artigos que Grierson o documentário vinha negando o ser humano como "o principal ator
escreveu sobre os princípios do documentário termine com as seguintes da civilização", 16 transformando-se em uma afirmação impessoal de fatos
palavras: "A aplicação dramática da forma sinfônica não é, ipso facto, a e desprezando o imenso potencial comunicativo do ser humano na tela.
mais profunda ou mais relevante. As considerações sobre as formas O documentário precisava satisfazer o desejo das platéias de ver seres
não dramáticas ou sinfônicas, mas dialéticas, revelarão isto mais humanos e se identificar com suas emoções. O problema central, para
claramente". 14 Rotha, estaria na correta compreensão do lugar que ocupa o indivíduo
Paul Rotha, também nas últimas páginas de seu livro Documentary na sociedade e na sua adequada tradução cinematográfica. A solução
Fzlm, de 1936, voltaria a se referir vagamente a este "método dialético haveria de incluir o personagem:
de raciocínio filosófico", que em resumo consiste em um sistema
esquemático de tese-antítese-síntese. Evidentemente, só podemos chegar a uma expressão real e completa
da cena e da experiência modernas se as pessoas forem relacionadas
A abordagem dialética governa a análise da ação no documentário. Em adequadamente com o seu ambiente. Para isto, é preciso criar e
todo trabalho assumido, seja sobre a pesca ou sobre a metalurgia, há desenvolver o personagem. É preciso que as idéias não evoluam somente
forças conflitivas, a segunda surgindo da primeira e do seu choque resulta no tema, mas também na mente dos personagens, com os quais o público
uma síntese. Ao interpretar o material, o documentarista pode, de acordo deve se identificar. Pois só assim o documentário atingirá seus objetivos
com a sua personalidade, introduzir os elementos de imagem poética, sociológicos e propagandísticos.17
de tensão dramática e de movimento sinfônico. E de uma única seqüência
o método pode ser extensivo ao todo. 15 Neste ponto, a argumentação de Rotha ecoava novas tendências
que vinham se formando no movimento do documentário, como reação
Os artigos em que Grierson estabelece os princípios do à abordagem formalista predominante. 18 E também estava sintonizada
documentário contêm contradições desconcertantes. Começam valori- 16
Idem:125.
zando a "história viva" e um método de pesquisa que permite que 17
Idem: 128.
18
14
O seguinte depoimento de Edgar Anstey é ilustrativo do estilo de liderança de Grierson, das
"First Principies of Documentary", op. cit.: 89 (Grifo nosso). divergências sobre a questão do personagem e de outras discordâncias estéticas no seio do
15
ROTHA, 1936: 235.
grupo: "Quando assistíamos materiais filmados - sempre uma situação amedrontadora, pois
84 Espelho Partido A I ·'.stética <lo Documentário Clássico 85

com os debates em curso na União Soviética, nos quais o personagem No fundo, o problema com que Rotha se debatia era o da
coletivo vinha sendo alvo de crescentes ataques, que desembocaram na demarcação ambígua de uma posição diferenciada do documentário
Conferência dos Trabalhadores do Cinema Soviético de 1935. O cineastas frente ao regime narrativo da ficção. Rotha assumia que um realismo
19
russos tendiam a abandonar o método da tipagem, em favor do uso de social que efetivamente se dispusesse a relacionar a massa com o
atores profissionais e da construção de personagens heróicos com os indivíduo não poderia prescindir de alguma forma de representação
quais as platéias pudessem se identificar. A autocrítica de Eisenstein com atores. Por outro lado, deveria evitar a teatralização artificial que
sobre o abandono do argumento teatral revela um certo parentesco caracterizava os filmes de enredo. Por isto, considerava que a ripagem
entre os dilemas dramatúrgicos enfrentados, na mesma época, pelo ainda era o melhor método de colocar homens e mulheres na tela: "se
cinema soviético e pelo documentário inglês: temos seres humanos, deixemos que sejam típicos e deixemos que sejam
reais". 21 Rotha não descartava a utilização de atores profissionais, mas acom-
Levamos a ação coletiva e de massa para a tela, em contraste com o panhava Flaherty e Grierson na opinião de que os atores nativos propor-
individualismo e o drama do "triângulo" do cinema burguês. Eliminando cionavam ao documentário uma espontaneidade difícil de ser substituída.
a concepção individualista do herói burguês, nossos filmes daquele O problema do documentário inglês estaria então na escolha destes
período fizeram um desvio abrupto - insistindo na concepção da massa atores nativos e, mais importante, em extrair deles a atuação necessária
como herói. Nenhum cinema refletira antes uma imagem da ação e articular corretamente a sua representação com o ambiente. Uma
coletiva. Agora a concepção de coletividade deveria ser retratada. Mas condição essencial para o cineasta era conhecer intimamente seu ator
nosso entusiasmo produziu uma representação unilateral das massas e nativo, saber o que ele pensa e sente, de modo a compensar a falta de
do coletivo; unilateral porque coletivismo significa o desenvolvimento treinamento técnico pela autenticidade do próprio papel que representa
máximo do indivíduo dentro do coletivo, uma concepção na comunidade. Os documentaristas ingleses, ao contrário, pareciam
irreconciliavelmente oposta ao individualismo burguês. Nossos primeiros combater o seu "material humano natural" ao invés de interagir
20
filmes de massa omitiram este significado mais profundo. produtivamente com ele:

Grierson costumava falar com firmeza e com um saudável descaso por nossas sensibilidades Provavelmente é por esta razão que a ma10r1a dos nossos
artísticas - as cenas eram individual e impiedosamente avaliadas, com pouca consideração à
linha do filme, muito menos ao roteiro, se é que havia. Embora nossos filmes fossem artistica-
documentaristas têm evitado o ser humano, contentando-se com as
mente satisfatórios enquanto composição (mais aparentados com a música do que com a lite- avaliações superficiais dos indivíduos e concentrando seus esforços nas
ratura) eles tinham pouco a dizer sobre as pessoas que neles apareciam. A caracterização era
estruturas inanimadas e nos aspectos impessoais das realizações
formal e heróica, no antigo estilo soviético. O trabalhador poderia ser magnificado contra o céu
por um ângulo baixo, simbolizando a virtude proletária. Algumas vezes podia haver um certo humanas. Eles têm dificuldade em lidar com o desempenho de seus
humor, mas a caracterização nunca era mais do que epidérmica". ANSTEY, 1966: 2.
19
atores nativos. 22
"Termo usado pelo cineasta soviético Sergei Eisenstein em seu ensaio "Do Teatro ao Cine-
ma" (1949) para descrever um método de trabalho com atores, herdado da tradição teatral da
commedia del/'arte, onde os atores representavam tipos ao invés de atuar como personagens
21
individuais". BLANDfORD, 2001, p. 247. ROTHA, 1936: 181.
'º Soviétskoie Kinó, dez. 1934. Agora em EISENSTEIN, 1990: 23. 22
Idem: 185.
86 Espelho Partido A Estética cio Documentário Clássico 87

O exame dos filmes do período EMB/GPO à luz dos textos de realidade que conta, enfim, é a interpretação que consegue ser

Grierson e Rotha demonstra a existência de pelo menos duas fases no profunda. 23

movimento do documentário. Em um primeiro momento, Grierson


impôs ao grupo de cineastas uma estética calcada em sua formação A prioridade concedida aos materiais naturais e o foco nos temas
filosófica idealista, segundo a qual os efeitos dramáticos, baseados na da sociedade moderna definem a opção de Grierson por um certo
generalização e no simbolismo, deviam ser extraídos da montagem de realismo. Mas sua formação filosófica, seus compromissos institucionais
imagens cuidadosamente compostas. Em uma segunda fase, os desafios e sua posição consensualista de defesa do status quo diluíam os efeitos
colocados pelos novos temas e pela limitada comunicação com o público que um cinema realista poderia ter sobre a consciência crítica do
demandavam soluções que já não podiam ser contempladas por aqueles espectador. Seu realismo, de extração idealista, se baseava na
métodos. É quando a forma da história e a valorização do personagem generalização e evitava aprofundar as questões sociais e econômicas. O
começam a se impor. resultado foi o esteticismo de Drifters e dos demais clássicos da primeira
A expressão mais acabada do ideário estético de Grierson foi seu fase do movimento do documentário - filmes marcados por referências
filme Drifters, realizado em 1928, antes mesmo da formação da Film simbólicas à interdependência entre indivíduos e funções do mundo
Unit do EMB. Como bem demonstrou Ian Aitken, em Drifters a imagem moderno, que prestavam-se mais à integração social em linhas
naturalista estava subordinada à expressão simbólica, que procurava conservadoras do que à formação de uma cidadania crítica.
extrair significados gerais e metafísicos de manifestações fenomenais A partir de meados da década de 1930, diversos fatores
particulares. Os aspectos empíricos, como as operações a bordo e a contribuíram para uma mudança de rumos do movimento do
comercialização do pescado, não são detalhados, mas apresentados de documentário inglês. A chegada do som levou o grupo a ampliar suas
modo generalizante e impressionista. O trabalho humano é contrastado fronteiras técnicas e assimilar novos colaboradores, alguns experientes
com as forças da natureza, representadas pelas altas ondas e pelas e reconhecidos, como o brasileiro Alberto Cavalcanti. O aprofundamento
investidas de tubarões, baleias e aves marinhas. Fiel a seu ideário, Grierson da depressão favoreceu uma revisão do tratamento formalista que o
se baseou no naturalismo intrínseco da imagem cinematográfica para movimento vinha imprimindo às imagens dos trabalhadores. E o próprio
expressar simbolicamente verdades gerais - o confronto dramático entre amadurecimento da equipe de documentaristas tornou inevitável a
o homem e a natureza - que estavam além do nível fenomenal. Pouco diversificação de tendências e a abertura de novos horizontes estéticos
'
tempo depois que Drifters foi realizado, Grierson sintetizou sua representados principalmente pelas pesquisas no campo sonoro e pela
distinção entre a aparência fenomenal que a lente da câmera registra introdução de métodos ficcionais.
e a compreensão da realidade que a interpretação criativa pode A chegada de Cavalcanti funcionou como catalisador de um
proporcionar: processo de desgaste da liderança centralizadora que Grierson exercia

No documentário nós lidamos com o atual, e, neste sentido, com o real. 21


Ensaio sobre o documentário, sem título e sem data. Arquivo John Grierson, Universidade
Mas a real realidade, por assim dizer, é algo mais profundo. A única de Stirling. Citado por AITKEN, 1990: 109 (Grifo do autor).
68 E,pdl,ol'uddo A & réoca du ()O(oummdriu Clhsaco 89

sobl"I." o grupo de doo.uncntaristt.~. reações conttm·ersa5- John Ta)'lôr, um dos primeiros cobboradorcs de
Cav-alcand ,·oltou à lngb.terra em Gderson, se referiu a P,11 and Po11 como "o começo d.1 divisio''. 116
1934, com 37 :anos e renome Qualquer que seja o modo como se intcrprccc esta dedanção, o fato é
intcmaciona.l. fruto de uma car.rcira que C:.valcami qucs.áonou as base$ csltúcas on quc Gdcnon havia
iniciadia entre os cineastas d.a asse.nU1do a escola mglcsa e exerceu notável influC:m;ia no seu
vaoguarda fl'llncesa e destmvlV1da redírecwn~to.
:ao k>ngo de vários 11nos de trabalho Quondo Gri•= se .r.,,ou do GPO. <m 1937, Cavakanô pôde,
n:a indústri11. Em 1931. quando com cm.is desenvoltura, aprofundar su.1. opção n:lfnlri\"ll e dcscm-olver
Gricrson convidou Flabcrty pua pro~tos que vimnl :a ter graodc repercussão, como Norih Sta (Harry
11.war como instrutor e conselheiro Wou. 1938). E$te 61mc se pusa <m um lnrco de pc,sca que, <m meio•
de um inexperiente grupo de uma fone tempC$t2dc, perde a comuniaç:iu por r.idio (um scniço
cinema, sua Lidcranç, não sofreu
grande amcQÇll. Agora a snuaçio
era outn... Harry \V:ut escreveu cm
A ~ - • • mu,J,lí,l,,J, swi. bi<>gnfia que "-'Crienon nio
~ I • t,sp/ft# ,/, /'U'J#U Jt A ~ pôde supor12r bem o fato de qu<
úndtllfflr _,,,w,-,_ /#"' #lllphr-,
nós, os técnicos, cada \'cz mais
lwnt!fMJ"' ª"" "'fl,J;,.
W#M11,.;,,,. freqüentemente iapcljvamos: g
C:walç-anti p3ta disc.utir nossos Nonh Sca 111"1hh#
problemas".:• O próprio Cavalcanu fez 2.mugos desabafos: .. Ele • tMtt11tJn. ti# "'(
(Gricl1<)n) vinho •o estúdio paro atrapalhar meu ttab>lho. (...) Tinha oíí P,,""""' J,,
por hábito eransferir u pessoas sistcmaúan'K"nrc, o que me incomodava fafià:"""'•
~ nrllffl~
muito''·" Est:a rivalidade é conf'irmllda pela omisslo do nome de
Cavalcanu no5 crédnos origina.is de certos fi.lmc-.s da CPO rm qut su."'l prestado pelo GPO), o que acarreta uma cnse t bordo. 05 'lltorcs
coomõwçio têcmca e arús:oc:1 foi fundamcoral. ni.o-profission~s íor::a.m rcc:rut:ados entre tr.ibalh:1dores e os diilogos
O pnmciro u:abolho de Cav<lk:anti no GPO foi Pdt and PDII (1934), de cena cscmos por Wan e Cavalc::mu. Norrh Sta foi o maior sucesso
uma leve comédia burlesca sobre a utilid2dt do rdcfonc e 2 importância cnut todos os filmes do pC'.riodo 6.M.B/GPO e estabeleceu um modelo
da! comunicações. Um filme imcinunente cncenlldo, muno diferente que sc:ria seguido por \'litios documentá.rios 1\a década seguinte.
de ruido o que o movimcnro do document:i.rio havia fc:im e que provocou

··-
,. Ouclo par SUSSEX. mi PELU.t.:f..ARJ. 1m .319,
~ Qclik, p<1f SUSSEX. Ol'I Pl~JJ7..7.ARJ, 19CJ7. J2A
90 Espelho Partido A Estética do Documentário Clássico 91

No início de 1940, ainda sob a direção de Cavalcanti, o grupo de palavras do artigo em que Grierson fixou seus princípios gerais:
30
cinema foi rebatizado de Crown Film Unit e transferido para o recém "Documentário é uma denominação desajeitada, mas deixemos assim" .
criado Ministério da Informação, com a incumbência de realizar filmes O embaraço se repetiria - e, sintomaticamente, mais uma vez nas
de propaganda de guerra e de instrução para a defesa civil. No ano palavras introdutórias - no prefácio que Grierson, pouco depois,
anterior, Grierson havia partido para o Canadá, com a missão de criar o escreveu para a primeira edição de Documentary Film, de Rotha:
National Film Board. Do outro lado do Atlântico suas propostas seriam "Documentário, como muitos lamentam, é uma palavra pouco elegante,
recebidas com muito mais facilidade do que haviam sido na Inglaterra, • " .•31
sugestiva de pedagogia e até, em a1guns casos, d e me diema
onde precisou dedicar grande parte da sua energia às tentativas de conquistar Alberto Cavalcanti em diversas oportunidades se manifestou
a confiança da burocracia estatal e legitimar o trabalho de seu grupo. contra o uso do termo:
A própria adoção do termo documentário estava intimamente
vinculada àquela necessidade de legitimação. Como vimos, em uma crítica A palavra documentário tem um sabor de poeira e de tédio. O escocês
de 1926, Grierson havia empregado a palavra documentary. Dez anos John Grierson, interpelado por mim a respeito do batismo de nossa
depois ele faria uma sutil autocrítica: "Se eu me lembro bem, escola que, dizia eu, realmente poderia ser chamada "Neo-realista" -
documentário foi usado pela primeira vez para descrever a arte de Moana, antecipado o cinema italiano de após-guerra - replicou que a sugestão
27
do Sr. Flaherty, em um artigo apressado para um jornal de Nova York". de um "documento" era um argumento muito precioso junto a um
Ao estabelecer um grupo de produção de filmes educativos no governo conservador.'2
EMB, Grierson recuperou a palavra, atribuindo-lhe um sentido inteira-
mente diferente, adaptado às necessidades retóricas do campo das rela- Em decorrência deste batismo oportunista, todos os cineastas
ções públicas e ao novo contexto histórico. Nos anos 1930, o ramo que viriam a optar por um cinema não-ficcional tiveram que lidar, de
não-ficcional do cinema já contava com adeptos mundialmente uma maneira ou de outra, com as conotações de evidência e prova que
reconhecidos, como Eisenstein, Vertov, Turin, Walther Ruttmann, Joris 0 termo documentário encerra. Até hoje, volta e meia um crítico incorre
!vens e Jean Vigo. E a raiz etimológica da palavra, ligada à autenticidade no nominalismo e, ao invés de remeter o significado da palavra
28
do documento, lhe conferia uma sobriedade muito conveniente para documentário ao exame histórico da tradição que a criou, faz o caminho
chancelar o trabalho propagandístico junto a uma agência governamental.
Por outro lado, o termo estava associado a um tratamento especificamente ao filme ou obra literária baseada em eventos ou circunstâncias reais, e voltada
pedagógico literário e descritivo, 29 nada conveniente à afirmação de "uma primariamente para objetivos de educação ou registro".
YJ "First Principies of Documentary'', op. cit.: 78.
nova e vital forma de arte". Estas contradições afloram já nas primeiras 11 "Preface by John Grierson". ROTHA, 1936: 5. . _ , .
32 CAVALCANTI, 1957: 64. Em outro momento, Cavalcanti assim resumrn suas divergenoas
27
John Grierson, em ROTHA, 1936: 7. (Grifo nosso)
28
com Grierson: "A única diferença fundamental é que eu persistia em achar idiota a denomina-
Para um exame do percurso etimológico do termo documentary, ver ROSEN, 1993: 65-71;
ção de documentário. Grierson só sabia responder a isso - lembro-me muito bem - rindo e
WINSTON, 1995: 11-14; e GILES, 1978.
29 dizendo: 'Você é realmente ingênuo. De minha parte, devo tratar com o governo, e a palavra
Estas conotações continuaram acompanhando o termo, como se pode depreender do verbe-
documentário os impressiona. Têm a sensação de que é algo sério ... "'. Sl'SSEX, em
te documentary na edição de 1989 do Oxford Eng!ish Dictionary: "factual, realístico, aplicado
PELLIZZARI, 1995: 324-325.
92 Espelho Partido A Estética <lo Documentário Clássico 93

inverso, puramente etimológico, de subsumir a tradição do documentário momento em que as transformações sociais estão sempre a contradizer-
ao termo que a designa. 33
se" .35 A questão central, para os artífices da escola inglesa do
Apesar das conotações de evidência do nome documentário, documentário, estava na utilização do cinema como um instrumento
Grierson nunca acreditou que a imagem cinematográfica poderia para a transformação da sociedade pela via educativa. Uma das muitas
reproduzir por mimetismo a realidade. Nanook of the North lhe expressões deste compromisso foi formulada metaforicamente por
proporcionou um protótipo exatamente porque não se limitava a Grierson:
descrever aspectos do mundo empírico. O que a câmera de Flaherty
registrava não era a "realidade total", mas apenas fragmentos de sua a idéia de um espelho voltado para a natureza não é tão importante
aparência visual. A realidade essencial e subjacente, não apreensível à numa sociedade dinâmica e mutante quanto a de um martelo que a
primeira vista, dependia de um trabalho de interpretação: observação, forja (...) É como um martelo e não como um espelho que eu tenho
planejamento, caracterização, filmagem e montagem. Nanook of the North procurado usar o meio que caiu em minhas inquietas mãos. 36
possuía mais semelhanças do que dessemelhanças com o cinema de
ficção. Lidando com diferentes tipos de material e através de diferentes Dramatização, interpretação e intervenção social - estes são os
métodos, ambos os modelos opunham-se à era pré-clássica e articulavam atributos do documentário para seus fundadores. Em nenhum deles se
dispositivos narrativos que produziam sentido através de continuidade nota o menor traço de documento ou prova. Ao contrário de um espelho
e seqüência. Neste sentido, o documentário não criou uma "sintaxe que reflete a natureza e a sociedade, é como uma ferramenta para
fílmica" alternativa ao cinema de ficção, mas teve neste a sua própria transformá-la que o documentário é assumido por aqueles que lançam
condição de possibilidade. as bases de sua tradição.
Flaherty e Grierson, cada um a seu modo, nunca tiveram a ilusão Se voltarmos à definição oficial de documentário feita em 1948,
de uma abordagem inteiramente objetiva do real. O primeiro, como já apresentada na introdução deste trabalho, entenderemos o quanto, na
vimos, construiu seus dramas sem preocupações extremas de fidelidade, sua generalidade quanto à forma e aos meios de expressão, e na sua
assumindo que às vezes era preciso mentir para comunicar o verdadeiro ênfase nas finalidades e nas motivações do cineasta, ela foi moldada
sentido das coisas. O segundo afirmou: "não existe uma verdade até para contemplar os fundamentos estabelecidos pelo griersonismo.
34
que você a formalize. Verdade é uma interpretação, uma percepção".
Rotha, por sua vez, considerava um equívoco esperar do documentário
uma afirmação verdadeira sobre os eventos: "nenhum documentário
pode ser completamente verdadeiro, pois não existe uma verdade, no

11
Um exemplo: "É num momento púbere entre a inocência e a razào imparcial que nasce o
termo documentário. Etimologia das mais equivocadas. Documentário. Documentar. Docu-
mento: prova. O que pode provar um filme?". MENDES, 1989: 71. "ROTHA, 1936: 133.
14 16
John Grierson, "l Derive My Authority from Moses". Citado por: AITKEN, 1990: 7. Citado por HARDY, 1946: 24.
l
5 Novas Técnicas, Novos Métodos

O advento do cinema falado inaugurou uma das eras mais


lucrativas da história do cinema norte-americano. Em setembro de 1929,
enquanto o mundo capitalista mergulhava na depressão econômica, todos
os grandes estúdios hollywoodianos já tinham completado o processo
de transição para o sonoro. Público e renda bateram o recorde em 1930.
Com algumas décadas de atraso, o projeto audiovisual hiper-realista de
Edison estava, afinal, em vias de se consumar.
Mas o som, embora considerado uma importante inovação técnica,
não foi recebido com unanimidade. O motivo das resistências de alguns
cineastas, críticos e teóricos era a ameaça contida na fala dos personagens.
Ao longo dos anos o cinema tinha conquistado uma capacidade ilimitada
de expressão de idéias e emoções, com base nos atributos plásticos da
imagem e sua articulação através da montagem. Esta "linguagem visual"
poderia ser então corrompida pelo acréscimo da linguagem propriamente
dita, transformando a arte cinematográfica em uma espécie de "teatro
filmado".
Entre as reações ao cinema falado destaca-se o manifesto assinado
pelos soviéticos Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, em agosto de 1928,
defendendo a "cultura da montagem". Temiam que um uso naturalista
dos diálogos ampliasse o significado independente de cada plano,
aumentando em conseqüência a sua inércia como peça de montagem
visual e limitando o trabalho criativo da edição. Propunham que o som
tivesse um uso apenas polifônico em relação às imagens. E prescreviam:
96 Espelho Partido Novas Técnicas, Novos Métodos 97

"o primeiro trabalho experimental com o som deve ter como direção a experimentais na área do som cinematográfico e voltar a filmar em
linha de sua distinta não-sincronização com as imagens visuais". 1 exteriores. Cavalcanti sabia que seria mais fácil contemplar estas intenções
No ano seguinte, Pudovkin voltaria ao tema, concluindo que a no campo do documentário do que no da ficção; e procurou Grierson
montagem de imagens e sons em contraponto era o único meio de exatamente no momento em que a equipe do EMB havia se transferido
"ultrapassar o naturalismo primitivo para descobrir e experimentar a para a GPO e conquistava sua primeira unidade de gravação sonora. 4
rica profundidade de significações que está latente no cinema sonoro". 2 Em retrospecto, Cavalcanti afirmou que "enfim, quando os
O assincronismo era proposto como um princípio artístico para o uso diretores puderam levar câmeras e aparelhos de gravação para fora e
cinematográfico do som. refazer externas, é quando, pode-se dizer, o filme sonoro ultrapassou o
O temor de Eisenstein e seus companheiros se mostraria seu primeiro estágio". 5 Denominou este estágio de "som sincronizado"
plenamente justificado. Nos primeiros anos do sonoro, escritores, e o seguinte, de "som complementar":
diretores e atores de teatro europeus subitamente ganharam um lugar
de destaque na indústria cinematográfica. A narrativa se acomodou aos Primeiro, reduzimos ao mínimo a música e a palavra. (... ) Depois,
diálogos e as filmagens abandonaram as locações em exteriores e foram banimos o sincronismo absoluto e as leis da encenação teatral. E
confinadas aos estúdios, onde era possível controlar o processo técnico tomamos os sons naturais como matéria prima, os quais cortamos,
da gravação de som. 3 regravamos, orquestramos, e tentamos estilizar o conjunto. 6
O movimento do documentário inglês tomou impulso exatamente
no momento em que a Europa fazia sua lenta conversão ao sonoro. E No seu primeiro filme para o GPO, Pett and Pott, as imagens foram
representou uma trincheira de resistência ao cinema comercial editadas sobre uma trilha sonora gravada antes das filmagens. A pesquisa
teatralizado, através de pesquisas do uso não-ilustrativo de músicas, no campo do som prosseguiu em Coai Face, filme mais característico do
ruídos e palavras. Alberto Cavalcanti foi um personagem fundamental grupo liderado por Grierson, que o produziu. Este curta-metragem,
no deslanche e desenvolvimento deste processo. Ao voltar para a sobre o trabalho de extração de carvão em minas subterrâneas, contou
Inglaterra, em 1934, tinha dois propósitos definidos: realizar pesquisas com a colaboração do poeta W H. Auden e do músico Benjamin Britten.
Mais uma vez a edição das imagens foi feita sobre uma trilha sonora
1
previamente gravada, que mixava música instrumental, cantos, coros,
"Declaração Sobre o Futuro do Cinema Sonoro". Sovietski Ekran, Moscou; e Zhizn Iskusstva,
Leningrado, ago.1928. Agora em EISENSTEIN, 1990: 271-219.
2
"O Assincronismo como Princípio do Cinema Sonoro". Em PCDOVKIN, 1961: 223. Uma
4
das reações mais radicais de teóricos do cinema ao uso naturalista de diálogos sincrónicos foi Cavalcanti vinha da frança, onde trabalhara cerca de dois anos nos estúdios de Joinville, a
formulada em 1938, no artigo "Um Novo Laocoonte: a Arte do Cinema Sonoro", em 10 km de Paris, dirigindo \·ersões internacionais de filmes americanos. Antes da adoção da
ARNHEIM, 1989: 159-181. dublagem - e, mais tarde, da subtitulagem - os filmes eram refilmados em diferentes línguas,
1 com outros atores e diretores, aproveitando roteiro, cenários e figurinos originais. Os estúdios
"Nos primeiros tempos do cinema sonoro, não era o som, para os produtores, senão diálogo.
Partindo deste erro, era natural que a maioria dos realizadores cinematográficos fosse tempora- de Joinville chegaram a trabalhar 24 horas por dia, refilmando até 12 versões de um mesmo
riamente afastada dos estúdios e substituída por diretores de teatro. (... ) Vários atores de teatro, título. GOMERY, 1980, em \X/EIS, 1985: 27.
que nunca haviam ingressado nos estúdios, tiveram as portas abertas e trouxeram com eles uma s Entrevista de Cavalcanti à BBC de Londres. Em PELLIZZARI, 1995: 187.
artificialidade de há muito abolida". CAVALC:ANTI, 1957: 28. "Idem: 189.
96 Elp<Jho Puado

filmes foram criticados pcb "relutância cm dar voz. a 1od~ aqueles f


que poderiam tct alguma coisa V'itl.ida 2 dizer sobre o :assumo ccmral
aborda.do''! É preciso considcr.a.r qut, nas primeiras dé-c:tdas do sonoro,
11 indústria cincmarogri6a se baSccaw cm um2 "'arrilh:uia pcsad:a",
dcsenvoh~da c:m função do Lrnbalbo cm cscúd.io e operada por wn
verdadeiro cxêrdto de tkaicos cspttialiudos. Os "olumosos gravadores
de som ótico cn.m tr.LOSportad<>S cm caminhóts. As clrncm 35 nun
en.m rwdosas e mo,i:un-·sc com dificuJdadt $Obre ttiptS, carrinhos ou
gru.'15. ru pellcub, tinham bo.i.ta sensibilidade, ,ornando obrig,1t6rio o
('.Qal Fott 11 uso de possante$ refletores..
dt.Jfa'NI p&,
Os documentaristas. que g:uimpava.m seus tema em ambientes
lrílJ,VMtlllll ..,,..
n:uunús, tcnta,-:un uúli7.ar càmeru menores e m..-Us leves-. nus C$11lS enun
'"""""· in2dequ:Adas 2 apuç:io simultii1ea do som - prochwam excessivo ruido
ruídos e n.vc2çio poética. Audcn e Brincn t.1mbém participamm de e seus motores, nio mantinham sincronismo perfeito com os 2pudhos
N'rg/,J M,nl. sobre o uem que ICVll carg:i po,otl de Londres a Gl>sgow. dt gravação sonora da époa. Pari captar i voz. dos pcf"SQn~n!li, era
Este filme, que exibe um:a sofisti~da edição de som desenhada e prc:ciso transpor limit.a.Ç6ts técnkas. E ~ncb havia outros obstáculo~
supendsíonacb por Cavalc:mti. converttu-se cm um dos maiores êxitos de ll!lruren conct:itual, que mantinham os documcnt2.Ósms presos 11.0
artísticos do movimento do documcnt:irio. principio do assincronismo. Ê o que: se podç depreender do dcp<>iinuito
A importind.a cb pa.ssagcm de Ca\-:alcanci pela escola inglc1a, de Edgar Aostc)\ dcsw:ado membro do grupo de: Gmrson,
espccb.lmeotc por sua conçcpçio du uso do som. é umnimcmcntc
rcconhedd:a. H.ar.ry \Van afirmou: "o $UCCS..W que fiz com os meus 6hncs, Nó$ \.'Olti,-:imos nosso, om<idos par.i. tocb máquina. todo procNso
devo-o à formação dispensada por C.v:ilcand e peru<> que um bom audfrcl, cspcDl)OO ooW' son, que ~un1Ct$5Cffl s essência Jc nosso
número de pc,soas podem dizê-lo =bém·•: Basil \Vrigh1 se dccl:trou lctm.Não csdv:amos mtcrcss*s esn gnav:a.r dd.logu ou cumentino.
ctcmA!ncmc gnto :a üva.lcanti "por tudo o que fci nos filmes nos ambos con,kkn00$ nio-fllmicos.Mi
qiws tr.lb.thei, como So•g ,f C!Jh• e N~bt Mail Suas idéias sohrc o
som cr2m tio libertadoras que dcsem;adcawm cm você milhluts de Paradoxa.JmcJllc. Anstcy scri:i um21 víuma precoce deste
outra$ idéias".• prc:oonccito contra os diâlogos ao realizar. cm 1935, Ho1111Jt& Problu,,s,
Apesar d:a unidade de cinema do GPO 1cr tr2balhack> o som de unu d2.~ pnmeiru expt'riências do docwnenwio ioglês oo campo da
forma m,·cna,-a. no que amctrne  utilização de ruídos e mÚ$ÍCa., st:W

Citado por Sl!SSHX. cm PEJJ.J.ZZAIU, 199)'. J 19 • IMJlSAM, 1992: 92.


'Idem. 322 ANSThY. 1966:" ?
100 lllpelho P>omd<>

filmagem oom vo7. e imagem registrados cm sincroni.smo. O filme,


piontiro na toma.da de dcpoimcnt0s dos moradores de cortiços cm um
subúrbio pobrt de: Londre~ foj um dos poucos dorumcncários da escola
ingksa ql.lt: teve grande rq,erc.ussio ptibl1ca por abordar questões som.is,
resultando cm cxt~sas marérul.s e cdiroria.is cm jorna.is ingleses. Já entre
os cineastas, gerou cont.r0,•érsiu. O próprio dirt:1or, rrutls de ui.nt:n anos
depois, embot1. rt"conhcccodo II importincí.a do filme, considerou
que: H01ui11g Pnblt111.1 é. "cm última análise, ,1t1111rr,I ( ...) sua pureza t ~ Aml.r r:u,
d2 au1cnticidadc., niio a da arte", 11 Anstcy pucda concordar com ,,,,.,_.,., I"-.
algumas criticas: a, /9J6 Ho,us;u,g
Problc:mt ;,,..,,,,,"""'
a "'7rk11 J. tMlf'rJ.ulôl
P:aul Rol.tu cririoou 2. tu!lênc:i:t de form:,i no filme r<• fraal!so na uciliuçio ,.. fflJINJIIJ,u,

cbt tl:Cnicu dtSponívci~ -ao diretor p:lrl )ubbnh;ir w:1 \'1:tio d:t gravidade
e do caciicr \'crgunhoso daquilo que cm mostrado.u cootinh:un scqoo,ctis dialog.tdas. N,r1h Sra 1: apcllllS o exemplo ITlJlis
conhecido C'ntre os filmes que recorreram a atores não-profissionais
Partindo de um pioneiro <b entrnisu em som direto., os termo5 para obter maior c5ponmndd..~dc nas inu::rprctitçôc!,, mas c:ondiciorutwtn
<b autoaítica de AnMC)' são surprccndcmes. Afinal, compat'.l.vi SC\1 filme ~s falas ios rotcsros prcvii.mcntc elaborados. Se estes "docudrnnu$''
1 nanrwl. form.uo que GrierSOn havia enquadr.ido em unu ••categoria tcptcscn~ uma imporwnc altctoativa..para a falta de cocnuoíc:açio
inf~rior". Em H011sin,& Proh!t1111. pela primeira ,'t':7. no cinema inglês. os dos film(:s anteriores. por outto lado " escola tnglcsa não foi apu de
cr.abalhadorcs se cxpíC$S2v-.t.m com vo~ própria. Mas istO não parecia o:plor.tr a c.<p<>nr.tn~dade da$ Í'a.b.~ na: via 1.po1uada por Ht»t.Jing Ptohkms.
tio rc:le\•:unt: i ":autenôcidade.. dos depoimentos das vitimas SOCWs do Os problemas não eram apenas t<'<:rúcos, ma, wnb6n ideológicos - a
caphaUs.mo era considerada -arusticunente insuficiente, Dcntto dos rcl:tç:io e:ntre dirttOrC'S C' personagens prcciuri:a ser redimensionada
prindpios elitistas do g ric:rs1onis.mo. 1, visio do diretor - .s-u-a e 05 documcnwistas ioglcscs não pa.rec.iam dispostos a dcsc:er de
••imcrpretaçâo criativa.. - cr2 mais importame que a5 opiniOO dos seu pcdc5t>I.
pc=r»gcns. A unid~dc de cinem.a do GPO cosruma ser lembrada por seu
De resto. Anstcy cc:rtt.rncotc exagerava_. n.t iua anãlise ambiente de pesquisa técnica c arúsàca. mas é preciso now que só
mrospcniv:t. ao dizer que os docufllC'nt:uisu1.s considcr:avarn 0$ diilógos alguns cl::issicos se benc6daum plenamente desw inowçõcs. Mufros
cocno ''nio-ffimkos... A experiência que C:1.v:üca.nti rrouxc da. Fr2JlÇII se documcnrârios rc::aliz2dos :apói o advento do sonoro \•eic:ulaw.m a.
refletiu cm unu sêric de filmes que adouav:am mélodos ficdon11.1s e "'visão do d1rctQr" atnwés d:a outr.a forma que Anstcy rc.c::onhecia
c:omo .. nâo-fi1m1u••: o comcntán o cm voz eff. Crandc partc da
11ldan! s.
u Idem:) prôduc;io oficia] se -assc:melh:tv.a a uma palestra ilustrada. Era.m pcç:u
102 Espelho Partido Novas Técnicas, Novos Métodos 103

rotineiras de propaganda que negavam as conquistas estéticas do ágeis. Em 1960 todas estas condições se encontravam finalmente
griersonismo e vieram alimentar um preconceito contra o satisfeitas e reunidas no que Maria Ruspoli denominou "grupo
documentário, visto por muitos como sinônimo de um cinema sincrónico cinematográfico leve". 14
educativo entediante. Esta evolução tecnológica estava intimamente relacionada com o
A solução técnica para os problemas da tomada audiovisual direta desenvolvimento de novos métodos de filmagem, que teriam reflexos
só seria encaminhada por setores que tinham mais urgência em resolvê- de longo alcance no domínio do documentário. Reflexos, desde logo,
los e menos preconceitos estéticos e ideológicos a transpor. Foi o caso junto à platéia, que começava a se habituar à imagem do telejornalismo
do cinejornalismo e, a partir de meados dos anos 1950, do telejornalismo e do cinejornalismo. Uma imagem tremida, mal iluminada, pouco
nascente. O newsreel, povoado por celebridades da política, dos esportes definida, editada com cortes bruscos e um som impuro, tudo contendo
e dos espetáculos, esteve sempre em busca de melhores condições uma marca de "autenticidade" que contradizia o formalismo e a
técnicas para dotar de voz as personalidades que focalizava. A estilização característicos do documentário clássico. Os equipamentos
reconstituição de acontecimentos verídicos em estúdio sonorizado, leves e sincrónicos possibilitaram uma agilidade inédita às filmagens,
mesmo quando havia imagens diretas disponíveis, era em parte justificada estimulando métodos de trabalho baseados na improvisação e na
pela dificuldade de obter em campo um registro sonoro sincrónico e espontaneidade. Ao mesmo tempo, fomentou uma concepção
13
de boa qualidade. Estes problemas foram potencializados com o tecnicista que atribuía às novas máquinas o poder redentor de "captar
advento da televisão. Não se tratava mais de produzir uma ou duas a realidade":
edições de alguns minutos por semana, mas várias emissões
jornalísticas por dia, envolvendo política, esportes, variedades, livre das restrições tradicionais, graças à evolução das técnicas, o cineasta
entrevistas e reportagens dos mais diversos gêneros. Era urgente do direto se permite mergulhar com a sua câmera no coração do real
encontrar uma solução. em uma profundidade até então ignorada. Ele pode passear livremente
Para a captação de imagens em exteriores, a única tecnologia de na vida como um peixe na água. 15
que a televisão dispunha, nos seus primeiros anos, era a "artilharia
pesada" do cinema. O telejornalismo fomentou a pesquisa de outro 14
A evolução deste salto tecnológico se deu de forma aproximadamente simultânea no
tipo de equipamento: câmeras leves e silenciosas, capazes de serem Canadá, Estados Unidos, França e Alemanha. Muito resumidamente, compreendeu os
seguintes passos:
liberadas de seus suportes tradicionais e operadas no ombro do - uso da película 16 mm pelos correspondentes de guerra, desde o início da década de
cinegrafista, películas sensíveis a condições de luz mais baixas, 1940;
- advento dos gravadores magnéticos portáteis, em 1948;
gravadores magnéticos portáteis sincrónicos e acessórios que - substituição do dispositivo de gravação ótica no fihne por um sistema magnético, em
pudessem ser manipulados por equipes menos numerosas e mais 1953;
- adaptações sucessivas que resultaram em câmeras portáteis e silenciosas, a partir de 19 58;
13 - gravador magnético portátil em sincronismo com a câmera, a partir de 1959.
Sobre o uso de encenações e reconstituições pelo cinejornalismo, especialmente na série
Para o detalhamento deste processo, ver RCSPOLI, 1963: 4-8; l\iARSOLAIS, 1974: 91-95 e
norte-americana The March of Time (1935-1951), ver FIELDING, 1978: 75-81. Cf. ANSTEY,
209-214; WINSTON, 1993: 204; e NIC:HOLS, 1991: 205.
1966: 4. 1
' MARSOLAIS, 1974: 307.
104 Espelho Partido Novas Técnicas, Novos Métodos 105

Esta idealização dos poderes do novo instrumental técnico foi a engajamento no coração do real em vias de acontecer. Para o etnólogo,
16
pedra de toque de uma "estética do real", cujas manifestações mais como para o documentarista clássico, até mesmo para o diretor que
exaltadas expressavam um objetivismo delirante e uma crença na verdade trabalha com a ficção reconhecida como tal, os mundos se abrem pelo
que se desprenderia dos eventos registrados com imagem e som em advento deste som sincrônico integralmente assumido. 19
sincronismo. O som direto 17 tornava-se então uma condição essencial,
em certos casos o elemento determinante, o próprio vetor da filmagem. O princípio do assincronismo foi substituído pelo seu exato
Uma expressão sintética desta prevalência do som foi cunhada pelos oposto, o princípio do sincronismo. O som direto era recebido como o
norte-americanos: shoot for sound. Na Europa, Mario Ruspoli tornou-se preenchimento de uma lacuna que teria desde sempre impedido o
um ardoroso defensor deste método: trabalho espontâneo dos documentaristas:

Ora, o som deve dirigir a imagem, e isto nos parecerá tão mais evidente Quando o cinema foi inventado, qualquer pessoa inteligente que o visse
quando imaginamos uma belíssima imagem, ilustrando um conteúdo verbal pela primeira vez, diria: ''Ah! Agora nós podemos capturar a vida do
insignificante, que seria automaticamente descartada da montagem, pois apresenta modo como ela realmente é". Tolstoi, por exemplo, em 1907 disse:
um interesse puramente visual, que contradiz a pobreza verbal. Ao ''Agora nós podemos capturar a vida russa como ela realmente é. Não
contrário, na montagem procuraremos conservar a todo custo uma temos mais necessidade nenhuma de inventar histórias". O problema é
imagem, ainda que pobre, mas que extrai da boca do homem um que, de fato, eles não podiam, porque a única maneira de lidar com os
"momento" revelador, onde a coisa dita é importante e bem captada pelo seres humanos é gravar o modo como eles se comunicam, isto é, falando.
técnico de som. 18 Além disso, o equipamento era tão incômodo que a coisa toda se tornou
uma terrível piada. Imagine abordar uma dona de casa apavorada com
O espaço sonoro era como que descoberto pelo cinema,
câmeras, luz, equipe e aparelhos de gravação; diga então a ela como se
considerado parte indissociável daquele "real a ser apreendido". Ruídos,
comportar, falar, sorrir, relaxar, etc. E depois peça a ela para ser natural!
murmúrios e frases inesperadas eram garimpados como preciosidades
O que realmente se precisava para este tipo de filme era de atores
inauditas. A palavra dos atores, captada na espontaneidade das situações
competentes! Então, o documentário, para mim, deixou de existir. Nada
filmadas, ganhava uma inédita primazia:
podia ser feito até a invenção do transistor, quando o som e o
Ora, estas palavras, núcleo do elemento sonoro, não surgiram de uma equipamento sincrônico se tornam portáteis. 20
visão pré-fabricada, literária, logo, estática das coisas, mas de um
É fato que o som direto e as inovações técnicas correlatas
16
contribuíram para transformar profundamente o panorama do
Estética exaltada já no título do relatório preparado por Louis Marcorelles para a CNESCO
em 1964: "Cne Esthétique du Réel, le Cinéma Direct".
17
Som captado em sincronismo com a câmera durante a filmagem, ao contrário do som acres-
19
centado posteriormente através de dublagem e de outros recursos da pós-produção. MARCORELLES, 1964: 7 (Grifo do autor).
18
RL:SPOLI, 1963: 24 (Grifos do autor). '" Richard Leacock, citado por MARC:ORELLES, 1973: 47-48.
106 Espelho Partido Novas Técnicas, Novos Métodos 107

documentário. Nem por isto Leacock tem razão quando sugere, acima, com um comentário imposto de fora para não dizer nada e não mostrar
uma relação de simples causalidade entre técnica e expressão. Tanto nada. Agora não basta mais que as imagens ilustrem um comentário. O
assim, que o salto tecnológico daquele período não se traduziu em um filme precisa falar por si mesmo, mas não como teatro, não como literatura. 22
único método de filmagem. Múltiplas tendências formais e estéticas se
estabeleceram na etapa de apropriação e adaptação do instrumental Paralelamente ao rompimento com as "formas rotineiras", o
emergente. Basta ver os diversos movimentos que surgiram, entre 1958 cinema feito com som direto proporcionou uma recuperação de
e 1960, batizados conforme suas particularidades locais: no Canadá, tendências que haviam sido aparentemente superadas ou marginalizadas
candid rye para o grupo anglófono do Nacional Film Board; cinéma spontané pelo documentário clássico. As atualidades do primeiro cinema, que
e cinéma vécu para o grupo francófono; living camera para os jornalistas Grierson considerou "inferiores", tiveram sua descritividade revalorizada.
norte-americanos que se reuniram na Drew Associates; cinéma-vérité para Outro sinal deste movimento, ao mesmo tempo de ruptura e de
os antropólogos franceses. continuidade com os antecedentes do documentário, está na adoção do
Independentemente das profundas diferenças na sua concepção termo cinéma-vérité - resultado da tradução para o francês de kinopravda,
do cinema, que examinaremos adiante, todos estes movimentos pareciam cunhado pelo soviético Dziga Vertov. Em dezembro de 1959, juntamente
imbuídos de um certo sentimento revolucionário, da sensação de estarem com Jean Rouch, Edgar Morin participou do júri do I Festival
produzindo "a eclosão de um cinema novo, de um cinema em Internacional do Filme Etnográfico de Florença. Ao retornar a Paris,
liberdade". 21 Este sentimento de ruptura atingiu todos os campos do publicou uma resenha manifestando sua impressão de que "um novo
cinema, mas era particularmente notável no domínio do documentário, 'cinema-verdade' era possível":
que pouco evoluíra formalmente no pós-Guerra e vinha sendo estigma-
tizado. Louis Marcorelles resume a situação ao referir-se à recusa de Refiro-me ao filme dito documentário e não ao filme romanesco. Claro,
alguns cineastas em considerarem-se documentaristas: é pela via do cinema romanesco que o cinema alcançou e continua
alcançando suas verdades mais profundas: verdades das relações entre
Talvez atualmente [documentarista] não seja mais um termo que pareça os amantes, parentes, amigos, verdades dos sentimentos e das paixões,
vivo e forte. Milhares de oportunistas transformaram a palavra em uma verdade das necessidades afetivas do espectador. Mas, há uma verdade que
forma morta e rotineira de cinema, bem do tipo que merece uma o cinema romanesco não pode captar e que é a autenticidade do vivido. 23
sociedade de consumo alienada - a arte de falar muito em um filme
Gilles Marsolais entende que, ao propor "um novo cinema-verda-
de", Edgar Morin estaria evidentemente prestando uma homenagem
" MARSOLAIS, 1974: 21. O próprio título deste livro (A Aventura do Cinema Direto), tomado de
empréstimo de Mario Ruspoli, reflete bem o sentido de aventura revolucionária atribuído aos
novos métodos. E que, de resto, era associado também aos movimentos cinematográficos
22
nacionais do pós-Guerra, começando com o neo-realismo italiano e prosseguindo com a nouvelle MARCORELLES, 1973: 37.
23
vague francesa e os cinemas novos que eclodiam simultaneamente em diversos países do tercei- "Pour un Nouveau Cinéma-Vérité", France-Observateur, 14 jan. 1960. Agora em ROUCH e
ro mundo e do leste europeu. MORJN, 1962: 5-8.
108 Espelho Partido

ao cineasta russo, mas considera que a ênfase estaria na palavra novo, 6 A Invenção de uma Escritura Documental
no sentido de diferenciar-se do cinema de Vertov. 24 O próprio Morin
deu a seguinte interpretação: "significa que nós quisemos eliminar a
ficção e nos aproximar da vida. Significa que nós quisemos nos situar
em uma linha dominada por Flaherty e Dziga Vertov". 25 Por sua parte,
Jean Rouch também viria a assumir a homenagem: "Eu sempre digo
que tenho dois 'ancestrais totêmicos', Dziga Vertov, o teórico visionário,
e Robert Flaherty, o artesão poeta". 26
A emergência do cinema com som direto proporcionou uma Dificilmente algum outro cineasta terá assumido a defesa do
reformulação radical na escala de valores do documentarismo. Enquanto documentário de forma mais intransigente que Dziga Vertov. 1 A partir
a estética griersoniana recebia ataques de todos os lados, Flaherty e Vertov de 1919 - ano em que Lênin decretou a nacionalização do cinema russo
eram valorizados como pioneiros visionários. O primeiro, pelo uso de - Vertov fez tábula rasa de tudo o que o antecedeu, pronunciando a
atores não-profissionais e por seu método fundado na intuição e na "sentença de morte (...) contra todos os filmes sem exceção". 2 Para ele,
observação da realidade. Por outro lado, em seu recorte muito particular, mais de vinte anos após a invenção do cinema, suas potencialidades
os ideólogos deste cinema espontâneo desconsideraram aspectos expressivas permaneciam inexploradas, desperdiçadas e subjugadas a
essenciais da obra de Flaherty, como o caráter extremamente construído estruturas literárias e teatrais. Aos "cine-dramas burgueses" Vertov
de seus planos, a interferência no estilo de vida das comunidades que opunha as "autênticas atualidades kinoks" 3 como única via de criação de
abordava e a continuidade baseada no modo de representação instituído uma linguagem propriamente cinematográfica.
e codificado pelo cinema de ficção. Já as relações entre Vertov e o cinema Ao defender a evacuação dos estúdios e a descida das câmeras às
direto, mais pertinentes e ainda mais complexas, merecem ser examinadas ruas para filmar "a vida de improviso" - temas que quarenta anos depois
em separado. seriam tão caros aos apóstolos do cinema direto - Vertov não estava
propondo um cinema realista, mas a criação de uma nova visão da
realidade, que só o cinema poderia proporcionar. Se, como veremos a
seguir, muitos dos conceitos de Vertov foram superficialmente
interpretados e apropriados de modo precipitado, os seus pontos de

1 Nascido em 1896, Denis Arkadievitch Kaufman adotou aos 22 anos o nome Dziga Vertov,
que significa literalmente "pião giratório" e, conotativamente, "movimento perpétuo".
' "Kinoks-Révolution". Em VERTOV, 1972: 26.
' Kinok, contração de kino (cinema) e oko (olho), foi como Vertov denominou o movimento
criado para militar pelas atualidades. O núcleo básico dos kinoks era o Conselho dos Três,
24
MARSOLAIS, 1974: 21-22. formado por Vertm·, sua mulher, a montadora Elizaveta Svilova, e seu irmão, o cinegrafista
25
"Chronique d'un Film". Em ROUCH e MORIN, 1962: 41. Mikhail Kaufman. Apesar dos esforços em fazer <los kinoks um movimento numeroso, os
2
'' ROUCH, 1989: 79. adeptos foram poucos.
110 Espelho Partido
• A Inn'.nção de uma Escritura Documental 111

contato mais evidentes com o cinema direto dos anos 1960 foram as equipamento cinematográfico como um dispositivo apto a registrar e
pesquisas pioneiras no sentido da obtenção de um equipamento portátil, editar imagens e sons do mundo, que Vertov, na primavera de 1918, foi
capaz de registrar sincronicamente imagens e sons em locações. Toda a trabalhar no Comitê de Cinema de Moscou, para logo se tornar redator
obra de Vertov começou pelo som. Eis como ele rememora seu interesse de letreiros e montador dos cinejornais semanais Kinonedé!ia. 7
particular pela "possibilidade de gravar sons documentais", ao ouvir suspiros, Os anos que se seguiram à Revolução de outubro de 1917
sinos, risos, motores e chiados, caminhando em 1918 pelas ruas de Moscou: proporcionaram aos artistas soviéticos condições excepcionais de
trabalho. O entusiasmo pela construção do socialismo vinha dotar de
Caminhando, eu penso: é preciso conceber um aparelho não que escreva, novos conteúdos e objetivos a arte russa, que na década anterior havia
mas que inscreva, fotografe, estes sons. De outro modo, seria impossível se afirmado como um dos ramos mais ativos da vanguarda estética
organizá-los, montá-los. Eles fogem, como o tempo. Uma câmera, talvez? mundial. A música, as artes plásticas, a poesia e o teatro eram perpassados
Inscrever aquilo que se vê(...). Organizar um universo não propriamente por diversos movimentos e propostas renovadoras, sob a égide do
audível, mas visível. Seria a solução? (...) Neste momento, eu encontro futurismo e do construtivismo. 8
4
l'v1ikhail Koltsov que me propõe fazer cinema. A idéia de montagem e o predomínio dos "fatos" na obra artística,
em detrimento da encenação, figuravam com destaque entre os preceitos
Antes de chegar ao cinema, Vertov desenvolveu sua vocação
dos construtivistas. Um de seus porta-vozes era a revista LEF, que fazia
artística trabalhando com palavras e sons. Escreveu poemas e romances
a defesa radical de uma "arte construção da vida": "estes pretensos
(não publicados), ao mesmo tempo em que aprendeu piano e violino
diretores! Quando vocês e as ratazanas vão parar de se preocupar com
no Conservatório de Música de Bialystok. Em 1916, dedicou-se ao estudo
os objetos da cena? Cuidem da organização da vida real". 9 Vemos que
da percepção humana no Instituto Psiconeurológico de Petrogrado. Na
mesma época, desenvolveu experiências de gravação e montagem de
vozes e ruídos mecânicos e naturais, utilizando um velho fonógrafo, ao - O Comitê, depois denominado Departamento de Foto-Cinema do Narkompros, era órgão de
primeiro escalão do Comissariado do Pcwo para a Educação e orientava toda a atiYidade
que denominou "laboratório do ouvido". 5 cinematográfica soviética. A seção de documentários foi inicialmente dirigida por Lev Kuleshov.
Georges Sadoul aponta a íntima relação entre estas experiências e Seu sucessor, l\fikhail Koltsov, foi quem convidou Vertov para trabalhar como assistente. A série
Kinonedélia, primeiro cinejornal soviético, foi produzida durante 13 meses, a partir de 1/6/1918,
as idéias futuristas, especialmente o manifesto ''A Arte dos Ruídos", resultando em 4 3 edições. As imagens prm·inham de cinegrafistas espalhados por todo o país.
8
divulgado em 1913, em que o pintor Luigi Russolo defendia o aprovei- As condições de país pré-industrial e re\·olucionário imprimiram no Futurismo russo caracte-
rísticas fortemente distintas do movimento italiano, comprometido com a guerra colonial e o
tamento musical da "variedade surpreendente de ruídos" à disposição racismo. Entre os traços comuns podemos apontar o elogio à velocidade e à máquina, bem
de quem atravessasse uma capital moderna com "os ouvidos mais atentos como a negação de toda a arte antecedente: "nós queremos demolir os museus, as bibliotecas",
proclamava o "Manifesto do Futurismo", cliYulgado por Marinetti e alguns seguidores no Figaro,
que os olhos". 6 Foi assim, com os ouvidos atentos, imaginando o em 20/2/1909. O Futurismo russo foi fundado por volta de 1911 por Bourliouk e Maiakm·ski.
Este entrou em conflito com Marinetti durante uma conferência proferida pelo italiano em
4
"Naissance du Ciné-Oeil". Em VERTOV, 1972: 60. Moscou, em 1914.
5
As referências bio-filmográficas de VertoY estão baseadas em PETRIC, 1987: 221-228; 'J Extrato de um manifesto publicado na U:J·, nº 2, citado por EISENSCHTTZ, 1970: 28. LEF,

SADOUL, 1971: 147-171; e GRANJA, 1981: 76-83. Levyi Front Iskusstva, Frente Esyuerda da Arte, foi fundada em 1923. Maiakóvski era secretá-
"SADOUL, 1971: 18-29. rio de redação.
112 Espelho Partido A Invenção dc uma Escritura Documcntal 113

Vertov, longe de estar sozinho em sua defesa do documentário, inscrevia-se Temos aqui um primeiro pressuposto de Vertov: é preciso educar
em uma tendência que disputava, no campo ideológico e estético, a as massas. E, para explicar "a vida tal como ela é", para interpretar "os
hegemonia do cinema soviético. Mais de uma vez, em seus escritos, Vertov fenômenos vivos à nossa volta", não bastavam os atributos humanos.
citou as palavras de Lênin: ''A produção de novos filmes impregnados das Eis um segundo pressuposto: a percepção do homem é limitada. As
idéias comunistas que refletem a realidade soviética deve começar pelas "deformações psicológicas" e uma mobilidade restrita o impediam de
atualidades". 10 Assim legitimava sua proposta de que as salas de cinema apreender a estrutura dos processos naturais e sociais. Daí "a aspiração
fossem ocupadas segundo uma "proporção leninista": os "dramas artísticos" legítima de libertar a câmera, reduzida a uma triste escravidão, submetida
teriam direito a não mais do que 25% do tempo de tela. 11 à imperfeição e à miopia do olho humano". 15 Mas a máquina possui
Esta oposição ficção vs. não-ficção, que polarizou o cinema aptidões que o ser humano não tem. Este terceiro pressuposto de Vertov
soviético ao longo de toda a década de 1920, 12 não era debatida como foi por vezes impregnado de excessos futuristas, em que a máquina,
mera questão de gosto pessoal. A função social do cinema, tema que idolatrada, tornava-se um sucedâneo do homem ou a geratriz de uma espécie
alguns anos depois o griersonismo transformaria no objetivo maior da escola de ser lubrido humano-elétrico-mecânico: "nós iremos, pela poesia da
inglesa, na Rússia soviética era uma premissa inquestionável. O que estava máquina, do cidadão desajeitado ao homem elétrico perfeito". 16 A relação
em discussão era a definição dos métodos mais adequados à participação complementar homem-máquina é uma idéia central no método vertoviano:
do cinema na construção do "homem novo" e de uma sociedade industrial
e socialista. Ao optar pelas atualidades - a "segunda via, a via da invenção" O principal e o essencial é a cine-sensação do mundo. Nós assunúmos
- integrando em seus filmes e textos 13 os ideais leninistas aos princípios do então, como ponto de partida, a utilização da câmera enquanto cine-
Futurismo russo, Vertov assumia como tarefa essencial e programática olho muito mais aperfeiçoado que o olho humano, para explorar o caos
"ajudar cada oprimido em particular e o proletariado em geral em sua ardente dos fenômenos visuais que preenchem o espaço. O cine-olho vive e se
aspiração de ver claramente os fenômenos vivos que nos cercam". 14 move no tempo e no espaço, reúne e fixa as impressões de uma maneira
diferente do olho humano. A posição de nosso corpo durante a
10
"Derniére Experiénce" e "L'Amour pour l'Homme Vivant". Em VERTOV, 1972: 181 e 205.
11
"Kinopravda e Radiopravda". Em VERTOV, 1972: 80. observação, a quantidade de aspectos que nós percebemos em tal ou
12
Em dezembro de 1927, a revista Noiyi LEF publicou um simpósio do qual participaram o qual fenômeno visual, não condicionam a câmera que, quanto mais
escritor e poeta S. Tret:yakov, o roteirista e teórico V Shklovsky, o roteirista e crítico O. Brik e a
cineasta E. Shub. As diferentes interpretações convergiam para a questão central da época: a
aperfeiçoada, mais e melhor percebe. 17
controvérsia entre cinema encenado ou não encenado. Ver um resumo do simpósio em JACOBS,
1979: 29-36.
11
Em vida, Vertov nunca publicou livros. Seus principais textos consistem em intervenções
Por fim, um quarto pressuposto: o cinema como revelador do
públicas: manifestos, artigos de jornal e transcrições de comunicações orais. Daí o tom exortativo mundo. Não uma revelação especular, mas analítica, da qual o ato da
e incisivo, marcados pelo calor dos debates e pela urgência na tomada de posições. Não são
15
reflexões teóricas, mas intervenções político-ideológicas - e neste sentido diferem fundamen- "Kinoks-Révolution". Op. cit.: 26.
16
talmente dos escritos de Eisenstein. Somente em 1966, 12 anos depois da morte de Vertm·, "Nous". Em VERTOV, 1972: 17. Trata-se do primeiro manifesto de Vertov, escrito em 1919
Sergei Drobachenko editou uma antologia contendo seus principais textos. A tradução france- mas somente publicado em 1922, na edição inaugural da primeira revista de cinema soviética,
sa, Articles, Journaux, Pro/Úfs, de 1972, nos serviu como referência. Kinofot, fundada pelo construtivista Aleksei Gan.
14 17
"L'Í~ssentiel du Ciné-Oeil". Em VERTOV, 1972: 73. "Kinoks-Révolution". Op. cit.: 27.
114 Espdho Paró<lo ;\ lnv<:nçào d, uma Escritura Documental 115

filmagem é apenas uma etapa. O objetivo é "uma percepção nova do cinematográficas". 211 Por várias vezes Vertov insistiu em que o "cinema-
mundo", percepção especificamente cinematográfica, organização do olho" era o meio, "o objetivo era a verdade".
tempo e do espaço que o olho humano desarmado não tem condições O binômio "cinema-olho" (kino g!azJ aparece nos escritos de
de realizar. Para isto, Vertov propunha o uso de "todos os meios Vertov com diversas acepções complementares. Foi um dos nomes do
cinematográficos, todas as invenções cinematográficas, todos os movimento criado em 1919 para lutar pelo predomínio das atualidades 21
procedimentos e métodos, tudo o que podia servir para descobrir e - matriz da abreviação kinoks. Foi o título do filme realizado em 1924,
18
mostrar a verdade". Entre estes recursos estavam os movimentos de como piloto de uma série (que nunca se completou) destinada a explicitar
câmera; a escala dos planos desde o mais aproximado ao mais distante; os princípios teóricos defendidos por seu autor. Cinema-olho foi,
as variações de velocidade de filmagem; a imagem fixa, as sobreposições também, o conceito-chave do método vertoviano. Sua base era o "cine-
e fusões; as animações; e, sobretudo, os "intervalos, passagens de um registro dos fatos". Vertov entendia que, durante a filmagem, a câmera
movimento a outro", ou seja, a montagem. Esta interpretação cinema- não deveria interferir no curso normal dos acontecimentos. Para mostrar
tográfica dos fenômenos vivos era encarada como um "estudo científico- "a vida como ela é" era necessário um registro absolutamente espontâneo.
experimental" do mundo visível e audível, logo irredutível à percepção Daí a expressão "a vida de improviso" - aliás, subtítulo do filme Kino G!az:
humana. Ao contrário, tratava-se de "tornar visível o invisível", explicitar Nota-se o esforço de Vertov para evitar qualquer forma de
pelos meios próprios e únicos do cinema a estrutura da sociedade. Esta "dramatização". Nem atores profissionais, nem "atores nativos"; a
prática pedagógica e científica tinha o "cinema-olho" como método e o "interpretação cênica" considerada uma irremediável falsificação do
"cinema-verdade" como princípio estratégico: mundo. Entre as "palavras de ordem elementares" do movimento dos
kinoks incluía-se: "abaixo a encenação da vida cotidiana; filme-nos de
O "cinema-olho", junção da ciência e das atualidades cinematográficas, improviso tal qual somos". 22 Como regra geral, a câmera deveria ser
com o objetivo de combatermos pela decifração comunista do mundo, invisível para as pessoas filmadas, de modo a cumprir sua verdadeira
tentativa de mostrar a verdade na tela pelo Cinema-Verdade. 19
vocação: "a exploração dos fatos vivos". 23
Uma factualidade que não era sinônimo de objetivismo. Os kinoks
O termo "cinema-verdade" (kinopravda), que viria motivar tantas organizavam seus filmes "à base de cine-documentos reais", mas não
controvérsias nos anos 1960, tinha pelo menos dois significados. Foi o
título da série de 23 cinejornais que o grupo dos kinoks realizou, entre 20
"L'Amour pour l'Homme Vivant". Op. cit.: 203. A 17 de janeiro de 1937, Vertov escreveu
1922 e 1925, certamente como alusão ao jornal Pravda, fundado por em seu diário: "Para que servem os filmes que não procuram descobrir a verdade? Se você não
é capaz de descobrir a verdade, não faça o filme. Não temos necessidade deste tipo de filme".
Lênin em 1912. Foi também a fórmula sintética que Vertov encontrou VERTOV, 1972: 280.
21
para representar o objetivo estratégico de todo o seu trabalho. Cinema- Em 1934, Vertov rememora: "Desde o irúcio era preciso dar um nome a nossa atividade e a
chamamos cinema-olho". "Trois Chants sur Lénine et le Ciné-Oeil". VERTOV, 1972: 169.
verdade era "a verdade expressa por todo o leque das possibilidades 22
"Instructions Provisoires aux Cercles Ciné-Oeil". VERTOV, 1972: 102.
21
Idem: 99. Como primeira observação do "regulamento de combate dos kinoks", se lê: "ins-
18
"Naissance du Ciné-Oeil". Op. cit.: 61. trução geral para todos os procedimentos: a câmera invisível(... ), a filmagem de improviso é
19
Idem: 62. uma velha lei de guerra: golpe de vista, velocidade, pressão". VERTOV, 1972: 215.
116 Hilpdhnl"a,uJt,

supunham que: as inugt'fl5 dcsuJa,;c;cm \'trdadcs por si [3.m sua ro.


c.,,"t ,1, K>oo CI» -
A V..,b de lmpro\,SO.· íOCKNHDI ncgaçio da encen;a.ção e defesa d.is :uu:ilidades, Vc-rrov certamcmc: c.,;ta\':I
reivindican<lo uma aute.11ticidade oncológica para a imagem - e. igual•
mc-:mc. sr.m• os son, documcmllls. Mas, longe do que André Bv-.t11:.1 e

1 Siegfried KraoutrO viria.m a formular décadns mais t2rdc, CM':l base


omológica não significava algo como uma "redc:nção da rcafüb.dc mica".
Ao co11lcino de uma ..montagem proibkb" - como \•iri.t :a propot Baz.i.n.
cm dcícsa do pl11no-scqüCncia• - Vtrtov encarava o cinema como
''momage.rn inimcrrupui", processo pe:rmancmc de inte:rprctação e
1 orgaruzaçio dos fatos.
Todo o método de Vertov se organi1J1. em mrno desta comradiçio
diruétic.1. enm: faau-ali<bdc e momagcm: ou seja. articu.L.1.çio entre o
"cin.e.-ttgi.suo dos fatos.. e a criaç:io de wm nO\ia cstrurura ,í.sual capaz.
de int.crpref:ar rdaçõcs visívei, e.- inV1Sivcis - como. por exemplo. as
relações de classe. A verdade não era cncanda como algo ..c.ipuivd"
~ t ,., ,.tun"W • trrpi. por uma cimct2 ocu]r.a.. mas como produto de um:a consuução que
~ J, lílfl 111,u.lt•,'l.
el\\'Ol\~2 :as sucessi,..-as mpas do processo de cri:1çiic, cinMl:ltogrãfic:.:

n "os 6Jmes dq 'cinema-olho' rsti,, cm montagem 2 p:artir do momento


cm que se escolhe o as.sun co até :a cópi.l final. ou seja, eslio cm montagem
durante todo o pl'C>CWo dt F.tbdc:açio do filmc.-'\1'1'
Esta mont~gcm pcrm2.ncnrc.- comprcendi:1. como primdra cta.pa,

r um lm"Cmirio dos nu.tcri;lis que. de um modo ou de outro, úvcsscm


tthção com o tem.a. Prosseguiam. montagem das obser\'11.ÇÕCS tmplricas
feitas por todos aqueles en\'olvidos no projctéi_ rcsuh:mdo cm um uphno

mm de filmagc.-m" - que Venov in,istia c:m djf('renciar de roteiro - "peça


li,mri, e anri,ciocmatogrifica'". O oro da filtmgtm. ..orkntaçiio do olho
armado da câmt:ra~•, era concebido wnb6n como urna opcraçió Jc:

• "'Oruolop- ck I lltla&C l'holognrhlq!M'"· f.m B.\Zl.....:. 19581 11.21).


:t KRACAUER. 1960.
• "'~kmta,:c lt11trdi,". 1'..m H.AZIN, 195& tl7•1)0.
" "'Ou 'Cuit-Ocar ,u ~... p..,., VERTO\', 1m 129
118 Espelho Partido A Invenção de uma 1·'.scritura Documental 119

montagem. Após a filmagem e a reunião de materiais complementares, do Narkompros - dedicava-se a extrair efeitos dramáticos da junção de
iniciava-se a etapa final: montagem central dos "cine-objetos", até a imagens encenadas, Vertov orientou-se para a criação de uma "linguagem
obtenção de uma espécie de "equação visual, de fórmula visual". Para documental, linguagem dos fatos fixados sobre a película". 31 A noção
Vertov, um filme era construído sobre "intervalos", ou seja, sobre uma de "intervalo" já aparece no manifesto "Nós", escrito em 1919 mas só
correlação visual entre imagens-na verdade, soma de diferentes correla- publicado em 1922. No ano seguinte, "K.inoks-Revolução" é publicado
ções, tais como a escala de planos, os diferentes ângulos de filmagem, o no nº 3 da revista LEF, juntamente com o artigo "Montagem de
movimento no interior do plano, a escala de tons de cinza e a variação Atrações", de Eisenstein. 32 Entre 1918 e 1922 a montagem já era um
de velocidades de câmera. 28 procedimento universal, mas no domínio das atualidades Vertov a
Georges Sadoul observa que a "teoria dos intervalos" de Vertov exercitava empiricamente, como uma reinvenção, e a teorizava como
29 um pioneiro.
parte de um conceito musical, pois se a palavra intervalo significa
distância, no tempo e no espaço, também significa "diferença de altura A experiência anterior com a música e com a gravação e montagem
entre dois sons", traduzindo-se graficamente na distância entre duas de "documentos sonoros" se reflete claramente na concepção vertoviana
linhas da pauta. E, se a montagem cria um tempo e um espaço específicos, da montagem. Já no manifesto "Kinoks-Revolução", montagem sonora
de certo modo ela o faz através de correlações tonais. Como vimos, e montagem visual participavam igualmente da antevisão de uma nova
após estudar música, as primeiras experiências criativas de Vertov se forma de expressão:
deram na montagem de palavras e sons. Em seguida, ele ingressou no
cinema montando planos filmados por cinegrafistas anônimos. O rádio-ouvido é a montagem do "Eu escuto"! O cinema-olho é a
Ao transformar estes "cine-objetos" em peças dotadas de um montagem do "Eu vejo"! Cidadãos, eis o que lhes ofereço em um
novo sentido, Vertov estava desenvolvendo uma experiência inédita de primeiro momento, em lugar da música, da pintura, do teatro, do
montagem. Experiência simultânea à de Kuleshov,30 mas com sentido opos- cinematógrafo e de outros escoamentos estéreis. 31
to. Enquanto este - que foi seu antecessor na seção de documentários
28
Os primeiros manifestos de Vertov ("Nous" e "Kinoks-Révolution". Op. cit., 1972: 15-20 e
Adiante, esta relação é reiterada, para enfatizar o caráter
26-34) consistem em um elogio rasgado às possibilidades da montagem. Uma exposição mais documental dos registros visuais e sonoros:
sistemática da teoria vertoviana da montagem pode ser encontrada em "Les Kinoks et le
Montage" e em "Du 'Ciné-Oeil' au 'Radio-Oeil"'. Em VERTOV, 1972: 102-103 e 129-132.
"SADOCL, 1971: 61-63. Vlada Petric afirma que o aspecto mais importante desta teoria é A arena é pequena demais. Entrem na vida. É aí que trabalhamos nós,
"sua ênfase no conflito perceptivo que ocorre entre dois planos contiguos como resultado do
mestres da visão, organizadores do visível, armados do cinema-olho,
corte 'em movimento', de modo que a seqüência funciona como uma frase musical, com seu
acento rítmico, pico e declínio". PETRIC, 1987: 27. presentes em toda parte e quando é preciso. É lá que trabalham os
~' Le\' Kulesho\', o primeiro teórico da montagem, escre\'eu artigos a partir de 1917. Em 1929,
31
publicou o tratado lskusstvo Kino (A Arte do Cinema). Suas experiências com a \'ariação de efeitos "A Propos du Film La Onziéme Année". Em VERTO\~ 1972: 113.
12
obtidos a partir da junção de planos, realizadas a partir de 1920 cm seu Laboratório Experimen- Eisenstein viria a formular sucessivas teorias sobre a montagem, mas este texto resulta de
tal, resultaram no que Pudovkin veio a denominar "efeito Kuleshov", e que pode ser resumido suas práticas teatrais e de sua participação durante três meses, em 1923, no Laboratório Expe-
no seguinte princípio geral: o significado de uma imagem é qualitativamente afetado pela que a nmental de Kuleshov. Ver LABARTHE, 1970: 93.
11
precede e pela que a sucede. "Conseil des Trois". Em VERTOV, 1972: 31.
120 8'pc:lho P1m>do /\ ln,·ençio de uma Etc.:nnm Doamm~ 12l

matttJ U2 ptb:\•N e dos 50n!I, ()'I; virruo1,os da montagem d.a \'lda h,,nmwn,ft....i.
audívt'.L.w ,., u..-.,.,.
pn,,,,,,,.. j'-tIOflft
,1,, ( ,,...:
Vimos que Thonu.s E.diso1t concebeu o quineu)ScópKJ como um
possível complemcniu 2u fonógnfo, dc modo a poder imitu
aJus-jonisdcamcn~c :a vida. No ca5o de Vertov, a mtevasio do d.ispos.iô,.'O
audiovisual estava fundada no prottco de gnv:u e rcprodu:,Jr imagens e
sons p:t.ra ..organizar a vida visível e audível", de modo :a "cscabck-ccr
uma ligaçio de cl:usc visual e audithia entre o proletariado de todas as
nações e de lodos os pai.ses sob a pb.taforma da dccifraçlo comuni!t2
do mundo".,J
Toda a obn teórac:a e fílrruca de Vercov u-n ,. marca do
anwuru:r:alismo. Em pelo menos tres de st:US fLl.rnes esu aractctisrica
-
se txaeetba, tr.Ul5form:mdo-sc: cm um:a pedagogia a.ntitlusiooistt dittta:
Ki,.. Claz. (Q,r,..,,-0/bo), Ch,!o,yJ,.1 Kí•oapparalom (O fj.,,,,., do C,;,,,,nz) e
E•~OZ!"- SimfaníiA ~11ÚOJkl (Elft111iamt0), Escc, ((UC foi seu primeiro
fiJmc sonoro. permitiu a Vcrtov colocar t'.m prática em 1930 idéias
gcstadH desde os rcmpos do "lalxmuóno do ouvido". Nele podtmos
c:onfirm:u q_ue :a tcorul do ciocmi~olho 2plica~se igu:ümcnte a imagens
e sons.
Do mesmo modo como t ooçào d~ ºvida de improviso" o.ão
implicaVI, p:i.ra a imagem. uma reprodução cspccul:a.r. o acesso aot n\tios
técnicos do c:i.oenu sonoro não vai ensejar cm Vcnov um tratamento
documtntal rutu.r:uisu do sotn. O uso criaúvo do som faz de ê1tt11z,iaz!,,
um:, sioíoru:1 d< ruldós, corno bem defino o subátulo: Sir,fa,,u, io 0.,,1,,,s,. ~ mús1c2 são mecicuJosu.mcntc sobrepostos, origi.n2ndo cm certo.$
Alguns ruídos são dissociados de SllllS fon tes e dotados de sigolficados mome:oto.s unu. colagC'ffl sonon simêtica: sons :an1ecipam as inugcns
metafóricos.; sons são cootra.Stados ou coroados abrupwnt":t\tc; tu.idos e corrcspondt:ntc, e vicc-w:rsa. aftctnando a.ssi.ncronismo e sincronismo
conforme as nc.-ccssidadcs do argu.inemo.. Os discursos sincrônicos dos
"'ldcn'I: 33. t rabalhadores dão uma dLnensào até então desconhecida ao
• .,_'1!.llallid du O~-Od"' Op, ai,,, 1972: 1,
•Em..- •l'llbk ck ~ Luq F.cbn -,,onta 1S d.frtm1tf ~rr•~ oo uso do-,m.
doc:umcntirio 50,,i;ético. Comentando a concepçio son-0r1 deste 6.1.rnC'.
Em WEJs, 19M. ?47 261 Vcnov :afirmou:
i
122 Espelho Partido A Invenção de uma Fscritura Documental 123

Nós não nos satisfazemos em simplesmente coincidir a imagem com o especialmente fabricados para a filmagem, etc.). A concordância ou nào-
som e nós seguimos a linha que, na nossa situação, era aquela da corcondância do visível e do audível não é de modo algum obrigatória,
resistência máxima, aquela das interações complexas do som e da imagem. 37 nem para os documentários nem para os filmes encenados. As imagens
sonoras, como as imagens mudas, são montadas segundo princípios
Entuziazm era o primeiro filme sonoro russo de longa-metragem idênticos; sua montagem pode fazê-los concordar ou não. Ou ainda,
não-encenado; e Vertov estava, por certo, respondendo à hipótese lançada misturá-las em diversas associações necessárias. Ú preciso também
em 1928 por Eisenstein, Pudovkin e Alexandrov, na Declaração Sobre o descartar a todo custo esta confusão estúpida que consiste em subdividir
Futuro do Cinema Sonoro, que comentamos no capítulo anterior: os filmes em falados, com ruídos ou sonoros. 39

Gravação de som é uma invenção de dois gumes, e é mais provável que O pionemsmo de Vertov em propor um cinema documental
seu uso ocorrerá ao longo da linha de menor resistência, isto é, ao longo da sonoro inteiramente realizado em exteriores enfrentava dificuldades
linha da satisfação da simples curiosidade. 38 tecnológicas 40 e ideológicas. Não se tratava de combater apenas o
princípio do assincronismo, mas também a descrença nas possibilidades
Grande parte dos cineastas soviéticos, fazendo coro com esta da gravação fora dos estúdios. Em 1929, o engenheiro de som Ippolit
hipótese, encarou com receio o advento do sonoro, por considerar que Sokolov publicara um artigo no qual afirmava que os ruídos do mundo
o cinema, como forma de expressão visual baseada na montagem, estava eram "não-fonogênicos". Logo, a gravação de sons "de improviso" seria
sob ameaça. Vertov, ao contrário, empenhava-se firmemente na conquista inviável, "porque ruídos analógicos aleatórios e desorganizados
dos meios técnicos do cinema sonoro e julgava que os "documentos transformam~se em uma verdadeira cacofonia de sons, literalmente um
sonoros" seriam valiosas peças de montagem. No mesmo ano em que concerto felino". 41 Vertov militava na linha oposta. Em 1926, frisando
realizou Entuziasm, Vertov se posicionou publicamente, considerando as diferenças no plano técnico entre o cinema encenado e um cinema
falso o princípio do assincronismo e recolocando suas premissas: baseado em "fatos vivos", registro espontâneo de documentos nas ruas
e nas fábricas, ele já havia afirmado que, ao contrário de estúdios, cenários,
As declarações sobre a necessidade de uma não-concordância das diretores "grandiosos" e atrizes "sensacionais", as necessidades urgentes
situações visíveis e audíveis, como aquelas da necessidade de fazer dos kinoks eram:
somente filmes com ruídos ou filmes falados, nada disso tem a menor
19
importância. No cinema sonoro, como no cinema mudo, distinguimos "Réponses a des Questions". Em VERTOV, 1972: 149-150 (Grifos do autor).
40
A importação de equipamentos de som estava proibida por lei. Por outro lado, a pesquisa e
apenas dois tipos de filme: os documentários (com diálogos, ruídos desenvolvimento de equipamentos cinematográficos sonoros não fazia parte das prioridades
autênticos, etc.) e os filmes encenados (com diálogos, ruídos artificiais, do Plano Quinquenal. A primeira demonstração de equipamento sonoro foi feita por Shorin e
Tager no final de 1928, mas só em agosto do ano seguinte foi testado um sistema de gravação
em exteriores. LEYDA, 1960, cap. 13.
r "Examinons le Prémier Film Sonore: La S)'mphonie du Dounhass". Em VERTOV, 1972: 155. 41
"The Potentialiües of Sound Cinema", Kino nº 45, fevereiro de 1929, citado por PETRIC:,
(Grifo do autor). 1987: 59. Vertov caricaturalmente denominou as idéias de Sokolov de "teoria do concerto de
18
ETSENSTEIN, 1990: 218 (Grifo nosso). miados". "Premiers Pas". Em VERTOV, 1972: 156-160.
124 Espelho Partido A Invenção de uma Escritura Documental 125

1) meios de transporte rápidos, isto é a reunião, em um aparelho único, da gravação sonora e visual
2) película de alta sensibilidade, sobre duas pistas. 43
3) câmeras portáteis pequenas e ultraleves,
4) aparelhos de iluminação também leves, Este trecho de Vertov bem poderia passar por um resumo das
5) uma equipe de cine-repórteres ultra-rápidos, características técnicas e metodológicas do cinema direto, na forma como
42
6) um exército de kinoks-observadores. foi defendido nos anos 1960. A começar pela instantaneidade da
filmagem de improviso. Em seu panorama do cinema direto, Gilles
Se já são flagrantes as afinidades entre as prioridades técnicas dos Marsolais diz que "por procurar apreender um acontecimento em vias de
kinoks e aquelas estabelecidas trinta anos depois pelos supostos pioneiros se suceder, o direto é um cinema fundado essencialmente sobre a noção
do cinema direto, muito mais o seriam nas teses de um artigo de outubro de improvisação". 44 Como corolário, os puristas do direto formulariam
de 1936, no qual Vertov propôs a instituição de um "Laboratório de uma "ética da não-intervenção". O método de trabalho que melhor lhe
Criação", com o fim de concentrar, acelerar e racionalizar as pesquisas corresponde foi desenvolvido por Maria Ruspoli, em sua "teoria do
de equipamentos móveis e sincrônicos para realização de documentários mimetismo", que leva ao paroxismo as preocupações de Vertov:
sonoros em exteriores. Eis algumas das condições técnicas a serem
satisfeitas: O cameraman, como o técnico de som, deve carregar seu aparelho com
a discrição que só o hábito do mimetismo pode trazer. Devem saber
A filmagem deve ser instantânea, quer dizer, efetuar-se sem o menor instintivamente se dissimular na multidão, nunca fazer gestos bruscos
atraso, no mesmo instante em que a pessoa observada age. para chamar a atenção dos companheiros de equipe, nunca gritar, falar
A filmagem deve ser silenciosa, para não distrair a pessoa filmada e não o mínimo possível e nunca sobre a filmagem - em resumo, não fazer
produzir ruído na gravação. nenhum movimento que pareça insólito. É preciso armarem-se de pa-
A filmagem deve ser tecnicamente possível em qualquer lugar. ciência, serem ao mesmo tempo simpáticos e ausentes, em uma pala-
A aparelhagem de sincronização deve ser pouco volumosa, sem bateri- vra, confundir-se com as paredes. 45
as que atrapalhem e não deve ser necessário que exista corrente elétrica
na locação. Ao referir-se à irrepetibilidade, Vertov propugnava a tomada única,
Toda possibilidade de pane deve ser excluída, pois os atos das pessoas ao contrário do método convencional de filmagem, em que a cena pré-
filmadas não podem ser ensaiados (nós estamos lidando com pessoas 41
"Sur l'Organisation d'un Laboratoire de Création". Em VERTOV, 1972: 186-187. Quanto à
que não estão representando). técnica audiovisual, a total ausência de experiências anteriores na Rússia obrigou Vertm· a testar
três diferentes métodos de gravação sonora: "Primeiro eles captaram imagem e som em diferentes
Os gestos do operador e do técnico de som deverão ser coordenados
momentos e diferentes negativos; segundo, captaram imagem e som sincronicamente em
ao máximo, fundidos em um só, simultâneos; e a melhor solução para diferentes negativos; terceiro, captaram imagem e som sincronicamente no mesmo negativo".
FISCHER, em \X,'EIS, 1985: 258.
44
MARSOLAIS, 1974: 294 (Grifos do autor).
42 45
"lnstructions Provisoires aux Cercles Ciné-Oeil". Op. cit., 1972: 106. Rl:SOPOLI, 1963: 30 (Grifos do autor).
126 Espelho Parti<lo A Invenção <le uma Escritura Documental 127

concebida - escrita no roteiro e ensaiada pelos atores - é refilmada até me tornar um cine-escritor das atualidades. Eu aprendi este ofício di-
a obtenção de uma tomada considerada satisfatória. Por seu lado, ante de uma mesa de montagem. 49
comentando os filmes realizados no final dos anos 1950 por Lionel
Rogosin, Marsolais afirma que o método de filmar uma única tomada Enquanto Flaherty baseou-se nas regras de continuidade da
46
de cada situação "será a regra de ouro dos cineastas do direto". A montagem narrativa, construindo com as imagens um espaço-tempo
condição apontada por Vertov de filmar onde quer que se faça necessário, ilusoriamente unitário, Vertov seguiu o caminho oposto, baseando-se
associada à autonomia, leveza e portabilidade do equipamento, confunde- na descontinuidade. Em seus filmes, só eventualmente dois planos
se com a base técnica sobre a qual se assenta a própria definição de contíguos fornecem ao espectador uma unidade espaço-temporal. Por
cinema direto atribuída por Marsolais: "um cinema que capta em vezes, esta desorientação imagética e sonora parece deliberadamente
direto ('em campo', fora do estúdio) a palavra e o gesto através de visar uma participação mental ativa do espectador. A continuidade
um material (câmera e gravador) sincrônico, leve e facilmente procurada é a do argumento, através de uma "cine-escritura dos fatos".
47
manipulável". De certo modo, um "tratamento criativo da realidade", mas radicalmente
Se Vertov antecipou em várias décadas as condições necessárias à distinto daquele que os ingleses formularam com base no método de
filmagem em direto, vindo a satisfazer a maior parte delas, nem por isso Flaherty. Vertov descartou radicalmente a dramatização, optando por
seu cinema pode ser identificado com a "estética do real" defendida por um "cinema intelectual" 511 que não quer apenas mostrar, "mas organizar
certos cineastas dos anos 1960. Para estes, a não-intervenção durante a as imagens como um pensamento, de falar graças a elas a linguagem
filmagem representava um respeito quase sagrado ao "real", razão de cinematográfica, uma linguagem universalmente compreendida por
uma postura neutra do cineasta, "observando aquele mistério supremo, todos, possuindo uma considerável força de expressão". 51
a realidade". 48 Para Vertov, a "vida de improviso" nunca significou uma A concepção vertoviana da filmagem tem evidentes pontos de
renúncia em manipular livremente as imagens. Ao contrário, ele as contato com o modelo Lumiere. A mesma câmera discreta, às vezes
sobrepunha e subdividia, invertia seu movimento, operava com diversas oculta; a mesma atitude "científica" diante dos fatos. Um dos precursores
velocidades de câmera, enfim, trabalhava com os "cine-objetos" como desta linhagem foi o fisiologista Marey, que perseguia a análise do
signos de uma livre escritura audiovisual: movimento, e não a sua síntese como forma de representação ilusionista
da vida. Por isto mesmo, não orientou suas pesquisas no sentido de
Durante quinze anos eu aprendi a cine-escritura. Eu aprendi a arte de uma projeção de "fotografias animadas". Sua demonstração mais bem
escrever não com uma caneta, mas com uma câmera. A falta de um sucedida foi a cronofotografia em placa fixa, que sobrepunha na mesma
alfabeto cinematográfico me perturbava. Eu tentei criar este alfabeto. imagem, através de exposições sucessivas, diversos estágios do
Eu me especializei na "cine-escritura dos fatos". Eu me esforcei para 49
"Derniére Expérience". Op. cit., 1972: 181.
so Este termo também foi empregado por Eisenstein, que veio a repudiá-lo em autocrítica feita
46
MARSOLAIS, 1974: 81. durante a Conferência dos Trabalhadores do Cinema Soviético, em janeiro de 1935.
47
Idem: 22. EISENSTEIN, 1990: 119.
48
LEACOCK, 1961: 23. 51
Mikhail Kaufman, citado por SADOUL, 1971: 94.
A Invenção de uma Escritura Documental 129
128 Espelho Partido

movimento. De nada lhe interessava um dispositivo capaz de registrar questão de princípio, assumido muito antes da vitória bolchevique.
e mostrar aquilo que o olho humano via: "o autêntico caráter de um Alinhado com esta posição, já no seu primeiro manifesto Vertov afirmava
método científico radica em suprir a insuficiência de nossos sentidos ou que "o futuro da arte cinematográfica é a negação do seu presente". 54
em corrigir seus erros", afirmou, concluindo que "só a câmera lenta ou Logo, a "antiestética" que Vertov professava tinha contornos muito
52 diversos daquela que Grierson viria a defender. Este recusava o
acelerada tem interesse do ponto de vista da síntese científica". Do mesmo
modo, Vertov veio a considerar que a câmera não devia se comportar "artificialismo dos estúdios" e os excessos esteticistas, enquanto
como uma mera extensão do olho humano, mas corrigir suas imperfeições: Vertov ia mais além, incluindo na sua rejeição todo e qualquer
resquício dramatúrgico, impedimentos para a criação de uma
Até hoje nós violentamos a câmera, forçando-a a copiar o trabalho de autêntica "cine-língua".
nosso olho. Quanto melhor a cópia, mais nos satisfazíamos com a fil-
magem. A partir de agora nós liberamos a câmera e a fazemos funcio- Todo filme não passa de um esqueleto literário envolvido numa cine-
nar numa direção oposta, muito distante daquela cópia.
53 pele (...), não há obras cinematográficas. O que existe é concubinato de
cine-ilustrações com o teatro, a literatura, a música, com quem e com o
Marey descartou como redundante a simples cópia do que o olho que, quando e por quanto tempo se queira. 55
vê, por falta de interesse científico. Já Vertov o fez por duas razões: sua
concepção futurista da máquina como modelo para o homem e sua Não conhecemos a opinião de Vertov sobre Flaherty, mas é fácil
militância antiilusionista, frontalmente contrária ao "cine-drama depreender uma oposição. Seus métodos tinham em comum apenas a
burguês". Ao declarar-se um "cine-escritor das atualidades", Vertov preferência pela filmagem fora dos estúdios; no mais, em tudo eram
estava retomando a linha que ligava Marey a Lumiere e contornando o distintos. Ao adotarem o método de Flaherty como modelo, Grierson e
modo de representação narrativo. Através da montagem de "cine- Rotha estavam privilegiando o partido da dramatização e da mise en scene
documentos", acreditava estar fundando a "verdadeira linguagem documentária. Não foi por desconhecimento de Vertov que deixaram
cinematográfica". de adotar suas idéias, mas por considerarem-nas menos adequadas a
Dentre os diversos agrupamentos de artistas soviéticos que um cinema educativo-propagandístico. Isto pode parecer contraditório,
confrontavam posições durante os anos 1920, os futuristas eram os mais dadas as características expressamente político-propagandísticas do
radicais na negação em bloco da herança artística do passado - uma cinema soviético. Grierson reconhecia nos diretores russos "a estreita
relação entre finalidade e tema", 56 mas assumia um ar professoral ao
" F,tienne-Jules Marey, no prólogo a TRCTAT, E. Les Photo,graphies Animées. Paris: Gauthier-
proclamar a direção para qual eles deveriam voltar suas atenções: "os
Villars, 1899, citado por BCRCH, 1987: 29. Sobre a câmera patenteada por Marey em 1893, ver problemas comuns da vida cotidiana e as suas soluções comuns - ou
COE, 1992: 32, onde se lê: "a câmera de filmar de Marey foi a primeira a contemplar com
sucesso os princípios essenciais da câmera cinematográfica. Como a análise das imagens indi\·i- 54
duais era o objetivo básico do sistema, não era relevante acrescentar perfurações ao filme, o que "Nous". Op. cit., 1972: 16.
55
"L'Importance du Cinéma Non Joué". Em VERTOV, 1972: 54.
teria permitido uma projeção exata dos resultados". 56
51 "Summary and Survey": 1935. Em HARDY, 1946: 115.
"Kinoks-Révolution". Op. cit., 1972: 28.
130 Espelho Partido A Invenção de uma Escritura Documental 131

mesmo instrutivas". 57 O que estava por trás destas críticas era uma requ1s1tos fundamentais do documentário na interpretação dos pro-
sobrevalorização do mundo do trabalho dissociado do contexto blemas colocados pelos seus temas. Ele é profético, ilustrativo, ocasio-
revolucionário; e uma incompreensão da relação dialética entre nalmente dramático, mas não é filosófico nem instrutivo. 1'º
propaganda política e experimentação formal. Parecendo fazer coro às
autoridades stalinistas, Grierson afirmou que os cineastas soviéticos Certamente, Vertov não se adequava ao tipo de cinema educativo
que o griersonismo forjou. Seu projeto transcendia em muito a educação
sofreram muito da liberdade artística concedida aos artistas em um pri- pela via de conteúdos elevados e de formas bem compostas e ritmadas.
meiro período não crítico de entusiasmo revolucionário, pois eles ten- Tratava-se de uma perspectiva epistemológica, que queria decifrar o
deram a isolar-se cada vez mais em impressões individuais e em mundo, mas também ensinar a ver. No capítulo 9 voltaremos a esta
performances individuais. 58 dimensão da obra de Vertov. Por ora, o importante a sublinhar é que se
o projeto de uma "cine-língua" contém a marca de um certo idealismo
Vertov não seria exceção a esta generalização. A única vez em formalista, contém também um raro ímpeto inventivo, associado à
que comparece na antologia de textos de Grierson é para receber uma determinação de formular as bases de um modo de expressão
crítica que, aliás, bem caberia aos próprios documentários ingleses: autenticamente cinematográfico.
Em um contexto marcado pela urgência da construção de uma
Vertov (...) usou todo o tipo de exibicionismo de câmera para contar nova sociedade, Vertov não perdia de vista que os objetivos
em Enthusiasm como era maravilhosa a vida proletária. Mas o ângulo propagandísticos deviam ser aliados à experimentação de novas formas
heróico de sua visão do operariado sempre falhou em observar o que de expressão: ''Acreditamos em nosso dever de fazer não somente filmes
os homens estavam fazendo. 59 de grande consumo, mas também, de tempos em tempos, filmes que
produzam filmes". 61 Sua obra, em parte desaparecida, consiste em mais
Paul Rotha fez eco às palavras de Grierson, separando ainda mais de uma centena de filmes dos mais variados gêneros, formatos e
Vertov das características a seu ver definidoras do documentário: durações. Basta examinar o subtítulo de alguns deles para dar-se conta
da diversidade de linhas de trabalho abertas por seu autor: "documentário
A partir de nossa leitura do documentário, nós podemos e devemos histórico", "estudo experimental", "crônica judiciária", "filme-viagem",
acompanhar Vertov na reunião de seu material; e, em certa medida, em "esboço", "cine-poema lírico", "crônica histórica" ...
seus métodos de montagem; mas, somos obrigados a divergir dele na Dziga Vertov pagou um alto preço pelo radicalismo de suas
interpretação dos temas e na abordagem (...). Reconheço que ele é um propostas e pela recusa em dobrar-se aos ditames do realismo socialista.
mestre na sua técnica, mas tenho que admitir que ele não preenche os Não assimilado pelos fundadores do documentário clássico, foi relegado
ao ostracismo pelas autoridades stalinistas, que passaram a recusar
50
Idem: 117. 60
18 ROTHA, 1936: 95.
Ibidem. 61
"L'Amour Pour l'Homme Vivant" (publicado postumamente, em 1958). Op. cit., 1972: 208.
''' Ibidem.
132 Espelho Partido

sistematicamente seus projetos mais ambiciosos. Em 1945, submetido 7 Uma Testemunha Discreta
a uma função subalterna na produção de cinejornais sob os quais não
tinha a menor autonomia, Vertov registrou em seu diário:

Temos a tarefa de defender nossa obra. Somos os fundadores do cine-


62
ma documentário e não devemos ceder nossa anterioridade a ninguém.

Recuperado postumamente, a partir dos anos 1960, Vertov


exerceria uma influência decisiva na crítica ao ilusionismo e à mistificação No capítulo 5 vimos que, a partir do final dos anos 1950, novas
no cinema. Mas, até hoje, seu lugar pioneiro na gênese da idéia do técnicas e novos métodos de trabalho descortinaram possibilidades
documentário e sua contribuição para a invenção de uma escritura inéditas para os documentaristas. A partir deste ponto, para melhor
audiovisual ainda não são suficientemente reconhecidos. compreensão das conseqüências estéticas daquela renovação tecnológica,
vamos comparar as diferentes estratégias retóricas adotadas pelos
cineastas. Para tanto, será necessário recorrer a outras categorias.
Análises de documentários costumavam ser empreendidas com
os conceitos desenvolvidos pela teoria de cinema, uma disciplina que
sempre teve o longa-metragem de ficção como objeto privilegiado. Só
nas últimas décadas começaram a surgir estudos voltados mais
especificamente para o documentário. De início, pesquisas historio-
gráficas. 1 Em um segundo momento, tomou corpo uma discussão
teórica, focada em questões epistemológicas, estéticas, discursivas e éticas.
Boa parte destes textos foi formulada dentro da moldura teórica do
estruturalismo e não foram poucos os que discordaram da existência de
um regime narrativo próprio do documentário.
Esta perspectiva negativa provocou uma reação, que se originou
nos departamentos de estudos culturais das universidades norte-
americanas e repercutiu em revistas como Jump Cut, Screen, Cineaste, Women
and Filme Film Quarter!J. Nas páginas destas publicações apareceram as
traduções de Barthes, Metz e Comolli, ao lado dos textos de uma geração

1
Entre outras, BARNOUW, 1974; e BARSAM, 1992.
62
VERTOV, 1972: 364.
134 Espelho Partido Uma Testemunha Discreta 135

de teóricos anglo-saxônicos, que embora compartilhassem certos ao mundo, situando o espectador na posição de observador ideal;
pressupostos da crítica estruturalista, eram movidos por uma concepção defendeu radicalmente a não-intervenção; suprimiu o roteiro e
afirmativa do domínio do documentário. 2 minimizou a atuação do diretor durante a filmagem; desenvolveu
Uma das mais importantes contribuições para o desenvolvimento métodos de trabalho que transmítiam a impressão de invisibilidade da
de uma teoria do documentário vem sendo dada por Bill Nichols. Ele equipe técnica; renunciou a qualquer forma de "controle" sobre os
parte da premíssa de que o documentário não é uma reprodução, mas sim eventos que se passavam diante da câmera; privilegiou o plano-seqüência
uma representação de algum aspecto do mundo histórico, do mundo social com imagem e som em sincronismo; adotou uma montagem que
que todos compartilhamos. Esta representação se desenvolve na forma enfatizava a duração da observação; evitou o comentário, a música ef.f,
de um argumento sobre o mundo, o que pressupõe uma perspectiva, um os letreiros e as entrevistas. Nenhuma forma de encenação faz parte
ponto de vista, ou seja, uma modalidade de organização do material que dos métodos observacionais, uma vez que estes recusam qualquer
o filme apresenta ao espectador. Analisando documentários de diferentes preparação prévia ou controle exercido sobre os materiais filmados.
épocas, estilos e cinematografias, Nichols sintetizou quatro modos de O modo interativo enfatiza a intervenção do cineasta, ao invés de
representação: o expositivo, o observacional, o interativo e o reflexivo. 3 procurar suprimi-la. A interação entre a equipe e os "atores sociais" 4
Vejamos, de forma muito resumida, como cada um deles se caracteriza. assume o primeiro plano, na forma de interpelação ou depoimento. A
O modo expositivo corresponde bem ao documentário clássico, em que montagem articula a continuidade espaço-temporal deste encontro e
um argumento é veiculado por letreiros ou pelo comentário ef.f, servindo explicita os pontos de vista em jogo. Ao contrário de um texto
as imagens de ilustração ou contraponto. Até o início dos anos 1960, a impessoal em ef.f, a voz do cineasta é dirigida aos próprios participantes
maior parte dos documentários se enquadrava neste modelo canônico, da filmagem. A subjetividade do realizador e dos atores sociais é
que adota um esquema particular-geral, mostrando imagens exemplares plenamente assumida.
que são conceituadas e generalizadas pelo texto do comentário. O O modo reflexivo surgiu como resposta ao ceticismo frente à
processo de produção é elidido em nome de uma impressão de objetividade. possibilidade de uma representação objetiva do mundo e procurou
A expressão mais típica do modo observacional foi o cinema direto explicitar as convenções que regem o processo de representação.
norte-americano, que procurou comunicar um sentido de acesso imediato Juntamente com o produto, os filmes reflexivos apresentam o produtor
e o processo de produção, evidenciando o caráter de artefato do
2
Alguns representantes desta crítica são Bill Nichols, Michael Renov, William Guynn, Elizabeth documentário. Ao invés de procurarem transmítir um "julgamento
Sussex, Stephen Mamber,Jack Ellis, Brian Winston,Julianne Burton, Philip Rosen, Dai Vaughan,
abalizado" que parece emanar de uma agência de saber e autoridade,
E. Ann Kaplan, Trinh Minh-ha, Julia Lessage e Carl Plantinga.
3
Esta tipologia partiu de uma diferenciação entre os estilos direto e indireto de comunicação de acionam estratégias de distanciamento crítico do espectador e
argumentos em documentários (NICHOLS, 1981). A análise de Nichols possibilitou a Julianne freqüentemente lançam mão da ironia, da paródia e da sátira.
Burton a elaboração de quatro modos do documentário (BURTON, 1990: 3-5). Estes modos
foram desenvolvidos em NICHOLS, 1991: 32-75, texto que nos serve aqui de referência. Mais 4
tarde o autor ainda viria a expandir sua classificação, formulando dois novos modos de No lugar da expressão ator nativo, cunhada por Grierson, Bill Nichols usa o termo "ator
representação: o poético - que organiza poeticamente fragmentos do mundo - e o performático social". Este último conceito evita as conotações naturalistas do primeiro e aplica-se melhor à
- que enfatiza questões subjetivas do realizador (NICHOLS, 2001). atuação frente aos aparelhos de filmagem e gravação.
136 E,pdho Pw,Jo Uma TcsttmUMII Ouctt.o 137

A dassific:açio pmposta por Bill Nkhols é «>treme com :i. 5u1


concepção do dotumcnt-irio como wn.a instituição constituída por
priticas ,..arfadas e comndhó~ que imcr.agcm h.istoticamcntc, Cada
um dos qu.1tro modos de rcprescnuiçio cem SCU5 própric,s códigos e::
regras. seus ~étodos de LtabaJho. ditames êucos e pridcas ritu.1lis
específicas. No cnmnro. não Sé prestam s. uma -aplicação mccinica e
cxdudeote-um documentário pode pcrfciuuncntc ap.ttknw caractetÍs~
ticu de o:uús de um modo. Tampouco estio compromctidô! <:om 2
idéia de 5uccssão ou e\'oluçio - a rcflcxivid2dc é uma prárin antig:t; e
recursos retóricos tipicos do mod<> expositivo nunca deixaram de .ser
utiliz.1.dos. Modos de rcprcscn12çio $ão apenas mQlduras teóricas
gtnt'r:lli,:antcs que podem facilltu • an,llisc comP'-'f"d• de dO<Umentánoo.
Vimos como a conexão f'laheny•Grierson instituiu o R,,i,,,,/L,««,I

documentário clássico. Veremos adiin.tc roma, diante das contn.diçôcs Eles não consideravam St'us trabalhos docwnenúrios. mas "'cine..
e das Jimicaçõu dC$lC modelo c,:positivo. quase simultant>a.tnctltc reportagens'' ou HJornali.'i11l<> filmado". Segundo Dn:w, ..documcncirios
surgiram duas 01od.:ilidaJcs de documemirios que~ cm linhas gc11U$, cm gct1.l, com muito poucas exceções.. !.ào &.ls<>s, (...) de c1:-rto rnod<>
correspondem ao ciotnU dirtto non.c-americano e ao cinema-verdade cks lembram bonecos'•.• O que tonuva 05 documentários fa1$0$, f\ll
fr2.ocês. Evitando uma 2bordagcm m.inuc-1osa e dcse:nuva destes \isào de Orew e Lcacock. n.io er2 somente 2,.cncenaçã~ prâuca corrt1ltc:
mov~tos., suas dissidências e as questões c$pcc(fic:as que SU$citar.un, no jonuhsmo audiovlsuaJ,. mas principalmente :a interprctaçio verbal
v:unc>i ôô$ concentru oa.s att:atégias discursiY;1.s implícitas cm seus do coc.ncntário, a mú,ica < os ruídos que costu.nu\,un 5er ac1csceruados
modos de representação, dcnominando~os. rcspccàvamcntc. pari dar mais espessura dramática ao film~.
observacional e inter.uivo. Em nomt de um respdto a.bwJuto à autenticidade das sirnaçôcs
Ncs:tc oapfrulo vamos a.bordar o modelo obsen,udonal. atr.tvés 61m:idu, o grupo d, On:w Associ,iu adot2w o principio do "som
<lt: tCX"t05 e dcclat:aÇOO de e;riúcos e realizadores qU<: assuminm a dcícsa $incrôn.ioo lntcgralmcnrc assumido'': qw.lquer acrésomo â imagem e
do onema direto. O que ~tllfnO!I chaoundo de onenu direto tC'\'C como ao som origfoirio da locação era considerado incotnpa.t1\'cl com a
núcleo principal !I produron Orcw Aswci:ues, formada <ffl totnO do ..reahdadc 0tptada ao vivo". Seu método de film1gern i.nte-rd1ttv:i. todas
rcpôncr fotogr:ifioo Robcn Dn:w < do àneg"fü"' Rkh:ud Lei.rock.' u formas de intcm:-:nçào ou intcrpcbção: ••nós oão pedimos às pessoas
~ A col.boaçio muc Omw e laood. kYt: Wo<> cm l9S4 A
19S9 e clillOlvw-.c: C10 196). Cf,W'lk> l,.ocodt ~ a
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1-Jr ÔOOII. Ai H 1 \et e:
pan 11gir, nio lhes dizemos o que devem fazer, não lhes í12:tmM
pcrgun,.s".' A <quipc dc:vi• ser rodu>.ida •o mínimo indispc-nsá,·e~ os
~ Ma~ ~roapanm do wupo por um pcdodo mau ClllttO. A Ottw /\11(1Cat0 m
&naoc.d. pdo gn,p, Ttme-1.ife e (WO(luxiu lftllll de mnu nlma, mlff de,,, /ln--, (1960). 1

, _ , , . ~"60). o.•,,.. (1961~ """" (1961~ e.,., 11962). n, a-c196ZJ. 1


MEKAS, 1961: 17,
~ Otc-.. m, M/\RCORIUJJ3S, 1 ~ J9.
138 Espelho Partido Uma Testemunha Discreta 139

equipamentos adaptados à maior portabilidade e agilidade possíveis: nas atualidades Lumiêre. 13 Se voltarmos aos princípios básicos do
"queríamos suprimir os diretores, a iluminação, as equipes técnicas griersonismo, veremos que a linha divisória entre a "categoria inferior"
habituais e tudo o que pudesse alterar a realidade que nós desejamos e os verdadeiros documentários foi traçada exatamente na passagem
filmar". 8 Vimos como esta "ética da não-intervenção" fomentou a "teoria da mera descrição para os "arranjos, rearranjos e conformação criativa
do mimetismo" de Mario Ruspoli, para quem "dissimular-se, pertencer dos materiais naturais". Somente neste ponto o documentário
à paisagem, confundir-se com a multidão, é uma atitude fundamental alcançaria as "virtudes comuns de uma arte". Membro destacado do
9
do cineasta que procura abordar o real". Richard Leacock sintetizou grupo formado por Grierson, Edgar Anstey considerava que seu
esta aversão à tentativa de monitorar as situações filmadas no título de Housing Problems, apesar do pioneirismo no uso de entrevistas em
10
um artigo de 1961: "Por um Cinema Não Controlado". Em uma direto, continha a pureza da autenticidade, não a pureza da arte. Fiel
entrevista concedida no mesmo ano, retomou esta idéia: à sua formação, Anstey contrapunha-se à tese de que os eventos
deveriam auto-interpretar-se e o cineasta proporcionar apenas o canal
Muitos cineastas acham que o objetivo do realizador é ter completo de comunicação:
controle. Então, a concepção do que está se passando é limitada pela
concepção do cineasta. Nós não queremos impor este limite à realidade. Em um nível bem prático, acho que é possível enganar-se a respeito da
O que está em curso, a ação, não tem limitações, tampouco o significado natureza de um real resultado documental. A filmagem da realidade ao
do que está ocorrendo. O problema do cineasta é antes de tudo um invés da sua interpretação criativa pode levar à introdução de ima-
11
problema de como transmitir o que está em curso. gens confusas, sons inaudíveis e durações intermináveis, culminan-
do em um supremo desastre - a quebra .da comunicação entre a tela
A tendência observacional substitui a função de "tratamento e o público. 14
criativo da realidade" por um objetivismo extremado, tentativa idealista
de comunicar "a vida como ela é vivida": "É a vida observada pela Leacock e seus sócios não vislumbravam este tipo de risco. Para
câmera e não, como no caso de muitos documentaristas, a vida recriada eles, a comunicação com o público dependia estritamente de transmitir
para a câmera". 12 Esta negação dos métodos interpretativos do da forma mais fiel possível a sensação experimentada durante a filmagem.
documentário clássico se dá paralelamente a uma espécie de retomada No discurso dos cineastas do direto são raras as considerações sobre
da vertente cientificista do cinema das origens. Nos textos dos ideólogos questões de natureza formal. A função estética do cinema era
do direto puro são freqüentes os elogios ao registro despojado presente 13
Temos aqui dois exemplos fornecidos por destacados representantes do documentário
observacional, nos EUA e na Europa: "Se nós voltarmos aos primeiros dias do cinema nós
8
Richard Leacock, idem: 20. encontraremos uma noção recorrente que nunca foi bem compreendida, que é o desejo de usar
'' RUSPOLI, 1963: 29. Este mimetismo foi figurado na expressão "a fly on the wall" (uma aquele aspecto do filme que é especificamente diferente do teatro: registrar aspectos do que de
mosca na parede). fato aconteceu em uma situação real". LEACOCK, 1961: 25. "As primeiras 'atualidades', os
10
LEACOCK, 1961. primeiros cine-documentos (...) comprovam o formidável interesse que experimentavam os pri-
11
Richard Leacock, em MEKAS, 1961: 15. meiros cineastas da época do 'mudo' pelo acontecimento na sua realidade". RUSPOLl, 1963: 3.
14
12
REYNOLDS, em JACOBS, 1979: 401. ANSTEY, 1966: 6.
140 Espelho Partido Uma Testemunha Discreta 141

indisfarçavelmente submetida a uma função epistêmica,15 o que poderia cineastas a encenações, relatos verbais e artifícios de montagem; cada
ser explicado pela origem e pelos objetivos jornalísticos da Drew progresso técnico corresponderia a uma "captação" quantitativamente
Associates e de outros grupos de cineastas que visavam primordialmente mais significativa do "real", um passo a mais no preenchimento de uma
16
a veiculação de seus trabalhos na televisão. Nem por isso adotavam carência fundamental.
uma perspectiva informativa. Tratava-se primordialmente de comunicar Como sabemos, nem Flaherty nem Grierson tinham pontos de
uma sensação de presença física, privilegiando a "autenticidade": "Eu contato com este objetivismo: a contribuição de ambos estava justamente
não acho que filmes devem proporcionar informação. Filmes devem em acentuar o caráter interpretativo do trabalho do cineasta. Tampouco
ser antes de tudo algo de que você não duvide. Você confia naquilo que Vertov encarava as "imagens e sons da vida real" como um material de
você vê". 17 De certo modo, substituía-se a legitimação artística do valor documental intrínseco, mas como peças de um processo de
griersonismo por uma legitimação científica: câmera e gravador eram permanente interpretação através da montagem. Em sua concepção
como que comparados a instrumentos de inscrição automática dos redentora do avanço técnico, os ideólogos do cinema direto promoveram
resultados de uma observação empírica. uma releitura teleológica da tradição documentária, segundo o critério
Alguns realizadores pareciam acreditar que este cinema de "transparência frente ao real", reservando para si próprios o umbral
observacional estaria concretizando um sonho antigo: "Documentaristas entre a culminância de um longo processo histórico de procura e o
sempre tiveram o ideal da câmera como um observador imparcial e não início de uma nova era:
18
incômodo, captando imagens e sons da vida real". O deslumbramento
frente ao som sincrônico e à portabilidade dos novos equipamentos Se outros cineastas seguirem o exemplo de Leacock, é inteiramente
sugeriu uma leitura evolucionista do "ideal documentário", como se ele possível que surja toda uma nova tradição do documentário: a tradição
se confundisse com uma busca historicamente contínua e cumulativa de "ir de encontro à realidade do país" de um modo mais íntimo, interes-
visando o registro completo da superfície da realidade. Segundo esta sante e humanamente importante do que qualquer Grierson imaginou. 19
visão, as limitações do equipamento é que teriam sempre induzido os
A retórica dos cineastas do direto puro e da parcela da crítica que
15 Jacques Aumont propõe três categorias funcionais para a imagem: simbólica, epistêmica e aderiu a seus princípios expressava um movimento ao mesmo tempo
estética. AUMONT, 1990: 80.
16 Um exemplo fora dos EUA é o ramo canadense do primeiro cinema direto, denominado de ruptura e de continuidade com a tradição documentária - de ruptura
candid eye, que também desenvolveu-se em estreita vinculação com a demanda da televisão. O com os aspectos interpretativos do documentário clássico e de
realizador Wolf Koening mostra como esta demanda repercutiu entre os cineastas locais: "Nós
achamos que esta era a oportunidade pela qual esperávamos. Havia um público e havia um
continuidade com uma ideologia documental que remonta às origens
orçamento(... ). Eis o que nós queríamos fazer: captar a vida como ela é, sem roteiro e sem do cinematógrafo. Guardadas as proporções históricas, há muitas
firulas; captar o som na locação, sem montagem muito elaborada; fazer filmes que de certo
modo produzissem emoções, risos e lágrimas, de preferência tudo isso ao mesmo tempo; mos-
semelhanças entre a devoção ao real promovida por este direto
trar estes filmes na televisão para milhões de pessoas e mudar o mundo, fazendo-as ver que a sacralizado e a apologia que o pensamento positivista do final do século
vida é verdadeira, bela e cheia de sentido". Citado por MARCORELLES, 1973: 67.
17
Donn Pennebaker, em MEKAS, 1961: 20.
18
REYNOLDS. Em JA.COBS, 1979: 403. 19
CALLENBACH, 1961: 40.
142 Espelho Partido Uma Testemunha Discreta 143

XIX fazia às imagens autênticas da natureza e do mundo veiculadas pelo Segundo Dubois, "a aversão de Baudelaire à corrente realista
20
modelo Lumiere, traduzindo-se num "fetichismo do documento filmado". e naturalista e à ideologia cientificista ascendente guia, é evidente,
O fundamento daquele fetichismo era o caráter supostamente seu ponto de vista". 25 O temor de uma corrupção da arte pela
evidencia! da imagem fotoquímica, decorrente de seu processo mecânico fotografia se baseava no sucesso desta corrente realista e naturalista
de produção, por oposição ao processo manual que caracteriza a imagem junto ao público - para Baudelaire, um sintoma da "idiotice da
pictórica tradicional. A fotografia foi recebida por muitos como "um multidão". Realismo, naturalismo e cientificismo confluíam para um
espelho de cujo testemunho material ninguém poderia suspeitar". 21 Ou, estuário positivista em que a única forma válida de conhecimento
22
como disse Oliver Wendell Holmes, "um espelho dotado de memória". era aquela que se baseava nos fatos e a experiência era o critério
Para o bem ou para o mal, a clivagem arte vs. técnica marcou os discursos absoluto da verdade. Naquele contexto, a imagem "automática"
sobre a fotografia praticamente desde o seu surgimento. Já o projeto de produzida pela câmera fotográfica se afirmava como uma imagem
lei que propunha ao governo francês a aquisição da patente de Daguerre, decalcada sobre a própria natureza e, para muitos, portadora de uma
em julho de 1839, baseava sua exposição de motivos no argumento de "verdade dos fatos". Equiparada aos demais dispositivos de inscrição
que o processo fotográfico era o mais recente instrumento capaz de a serviço do método experimental da ciência moderna, a câmera
prestar um inestimável serviço à ciência, ao lado do termômetro, do fotográfica não seria um recurso para a interpretação do mundo,
23
barômetro, do telescópio e do microscópio. Por seu lado, ao invés de mas um instrumento de seu registro objetivo. Esta concepção
exaltar as virtudes da fotografia, Baudelaire apontava os riscos que ela cientificista do processo fotográfico estava, por certo, inserida em
implicava para a arte e propunha que sua contribuição fosse limitada a uma tradição ocidental do ver e da visão que remonta há séculos e
uma mera função técnica de reprodução: que conheceu um momento de esplendor no Renascimento. Tal
hegemonia do visível foi realimentada pelo advento de dispositivos
Quando se permite que a fotografia substitua algumas das funções da de registro mecânico como a fotografia e o cinema.
arte, corre-se o risco de que ela logo a supere ou corrompa por inteiro Com semelhante rigor normativo, os cineastas da Drew
graças à aliança natural que ela encontrará na idiotice da multidão. É Associates, muitas décadas mais tarde, se inscreveriam nesta tradição
portanto necessário que ela volte a seu verdadeiro dever, que é o de que queria reduzir a realidade à visibilidade. Eis, por exemplo, como
servir às ciências e às artes, mas de maneira bem humilde, como a tipo- Maria Ruspoli dá início a seu relatório sobre as novas técnicas de
24
grafia e a estenografia, que não criaram nem substituíram a literatura. filmagem: "O desejo de 'apreender' pela imagem a realidade tal como
ela se oferece ao olhar remonta à origem do cinema". 26 A
20
Bl1RCH, 1987: 69. disponibilidade de aparelhos leves, capazes de registrar imagem e
21
Édouard Charton, apresentando a seus futuros leitores Le Tour du i'vfonde, em 30 de junho de som em sincronismo, fomentou, junto a esta tendência do cinema
1860. Citado por GAUTHIER, 1987: 31.
22
Citado por WILLIAMS, 1993: 9. direto, uma espécie de ilusão realista, que consistia em reduzir a
23
Sobre a concepção da fotografia e do cinema enguanto instrumento cientifico, ver WINSTON,
25
1993. Idem: 30.
24 21
"Le Public Moderne et la Fotografia". Em Salon de 1859, citado por Dl.1BOIS, 1994: 29. ' RUSPOLI, 1963: 3.
144 Espelho Partido Uma Testemunha Discreta 145

realidade a suas aparências sensíveis. 27 Para melhor "captar a realidade ênfase em um olhar inocente, depurado, traduzindo o sonho de anular
pela imagem", seus adeptos embarcaram na utopia da neutralização a distância entre percepção e imagem.
completa da equipe técnica, que resultou em um comportamento servil Mas um filme é feito de imagens sonoras e visuais,
diante dos eventos: nenhuma intervenção, pura observação. No limite "enquadramentos seletivos que resultam na tela em blocos de imagens
do seu idealismo, esta postura queria fazer do olhar uma extensão material retangulares". 30 A própria estrutura da imagem cinematográfica supõe
dos fenômenos, a ponto de uma anulação do próprio olhar e, por fatores irredutíveis, como a escolha entre o que mostrar ou não, a
conseguinte, de uma anulação do cinema. Ou, como expressou Louis organização daquilo que é mostrado, a sua duração e a ordenação dos
Marcorelles em uma fórmula paroxística: de uma "osmose entre o real planos entre si. A transparência da realidade no cinema é uma falácia. A
e o filme". 28 O realizador e ensaísta Jean-Claude Bringuier formulou, de imagem cinematográfica é essencialmente trucada, um artefato por
modo muito acurado, o idealismo implícito nesta postura: natureza, nunca o reflexo transparente do real. Aliás, é a própria noção
de real que deve ter seus pressupostos ideológicos examinados - "o
Sem iluminação, sem tripé, a câmera de Leacock é uma bazuca. Do fato deste conceito [real] existir há séculos não deve mascarar sua falta
mesmo modo que um fuzil é o prolongamento mortal de um olho, ela de universalidade". 31
é o prolongamento de um olhar. O ideal, como se vê, é o desapareci- O processo de produção de imagens cinematográficas implica
mento mesmo da câmera, do olhar, sua ausência. Se as coisas pudessem necessariamente em inscrever nestas imagens uma subjetividade. A
existir sozinhas, fazer-se olhar sozinhas, sem que ninguém as visse, se- tentativa idealista de reprodução absolutamente neutra e objetiva da
ria perfeito. No fundo, é o ideal de uma testemunha: apagar-se, deixar- percepção ocular normal não pode suprimir esta subjetividade inelutável,
se absorver na coisa que se apresenta. Todo testemunho é um holocausto. mas pode mascará-la por trás de convenções estilísticas naturalistas. A
Eu acredito que o sonho de Leacock e daqueles que trabalham como "teoria do mimetismo" de Ruspoli e as regras de Leacock para se alcançar
29
ele é um cinema sem cinema, um puro olhar sem suporte. "um cinema não-controlado" afinal conduzem a um "estilo grau zero",
que produz no espectador uma ilusão: "o espectador acredita não que o
A denominação living camera, que o grupo de Leacock recebeu que vê é o real propriamente, mas que o que vê existiu, ou pôde existir,
nos primeiros anos, conota uma concepção da câmera como substituta no real". 32
da percepção humana na abordagem empírica do mundo. O termo candid Quais os traços materiais deste estilo? Edgar Anstey, algumas
rye, adotado pelo ramo canadense do direto, também é sugestivo desta páginas atrás, referiu-se pejorativamente a eles, ao aludir a um som
inaudível e a planos-seqüência intermináveis. 33 O jornalismo televisual
27
Eis uma alusão expressa de Leacock neste sentido: "O que é isto que nós, cineastas, estamos nos dá mostras abundantes destes traços: câmera tremida, ruídos do
fazendo, então? O mais próximo que eu posso chegar de uma definição precisa é que o filme
pronto - filmado e montado pelo próprio cineasta - é um aspecto da percepção do cineasta do
que aconteceu. Assumindo que ele não faça direção. Sem interferência. Falando de modo 'º BONITZER, 1986: 20.
informal, nossos filmes são o público. Um público registrado". BLCE, em JACOBS, 1979: 406. 31
AUMONT, 1990: 210.
28
MARCORELLES, 1963c: 17. 12
Idem: 111.
29
BRINGUIER, 1963: 1S. " ANSTEY, 1966: 6.
146 Espelho Partido Uma Testemunha Discreta 147

ambiente misturados às vozes, iluminação irregular, imagem granulada, tendência. Em certos excessos retóricos, Vertov podia atribuir à câmera
cortes bruscos - marcas de uma imagem que tenta "naturalizar-se", ou poderes extraordinários, mas a linha mestra de seu método era a relação
seja, produzir uma sensação de natureza como garantia de verdade, logo, entre a filmagem de improviso e a produção de sentido através da
como forma de legitimação. Este estilo grau zero é a característica montagem.
aparente mais pregnante do modo observacional. Característica hoje
tão assimilada quanto codificada, até banalizada, mas que no momento Não a filmagem de improviso pela filmagem de improviso, mas para
de seu surgimento revestiu-se de um caráter quase místico de acesso a mostrar as pessoas sem máscara, para captá-las através do olho da câmera
um "real" puro: em um momento em que elas não representam, para ler com o apare-
lho de filmagem seus pensamentos nus. O Cinema-Olho como a possi-
Há uma ambiência, uma fisionomia da imagem em direto que servem bilidade de tornar visível o invisível, límpido o suave, evidente o que
de certo modo como álibi à emoção e que, de acidentes que são, trans- está escondido, manifesto o que está mascarado. De substituir o ence-
formam-se para o telespectador a um só tempo em prova e essência da nado pelo não-encenado, o falsificado pela verdade, pelo Cinema-Ver-
34
imagem em direto. Em resumo, é um estado de espírito, uma devoção. dade. Mas não basta mostrar na tela fragmentos de verdades isoladas,
imagens de verdades separadas. É preciso ainda organizar tematicamente
O que esta sacralização do real visível não reconhecia era o fato estas imagens, de modo que a verdade resulte do conjunto. 35
de que os cenários do real não são brutos como um mineral, mas já
organizados por relações sociais que o visível não é capaz de apreender. Uma função propriamente epistêmica do cinema, como a de
O modo observacional levado às últimas conseqüências, na sua utopia Vertov, não pode limitar-se a reproduzir fragmentos de aparências
da duplicação perceptiva, sobrevalorizando a visibilidade e recusando a sensíveis e nada tem a ver com a "captação" de supostos sentidos
intervenção do cineasta por considerá-la impura, por vezes impedia a imanentes. Ao contrário, deve traduzir-se em um investimento ativo na
compreensão daquilo que mostrava. Ater-se à pura analogia visual é produção deste sentido, através da criação de recursos formais. Este
renunciar ao agenciamento das matérias de expressão do cinema de processo não pode se desenvolver no quadro de uma "concepção
modo a tornar visível aquilo que escapa à visão. evangelista da 'revelação do real autêntico' por uma câmera
Esta era uma das idéias fortes de Vertov, o objetivo visado por contemplativa". 36 Para "tornar visível o invisível", o cineasta deve abdicar
seu método: partir do registro de imagens sonoras e visuais da realidade da utopia de um reflexo especular do "real" e assumir o seu papel
para articulá-las em combinações audiovisuais complexas dotadas de mediador. Estamos, então, na fronteira entre dois modos de
um sentido próprio. Temos aqui uma diferença fundamental que separa representação do mundo.
Vertov dos partidários do cinema direto e que mostra como é
questionável a reivindicação de seu nome como um precursor desta
35
VERTOV, "Comment Cela a-t-il Commencé?". Em SADOUL, 1971: 141-143.
34
BRINGUIER, 1963: 14. '"MARIE, em COLLET, 1976: 83.

8 Verdade e Imaginação

Se nos Estados Unidos foram jornalistas interessados em agilizar


os métodos de trabalho da reportagem que desenvolveram as técnicas
do cinema direto, na França os equipamentos leves e sincrônicos foram
primeiro adotados por cineastas com uma formação acadêmica no
campo da sociologia e da etnologia. Defrontados cotidianamente com
as implicações da observação participante, sabiam que "sempre que uma
câmera é ligada, uma privacidade é violada". 1 Violação que colocava
problemas éticos e implicava riscos para o realizador, mas que abria um
novo horizonte de possibilidades de comunicação no campo do cinema.
Se a neutralidade da câmera e do gravador era uma falácia, para que
tentar dissimulá-los? Por que não utilizá-los como instrumentos de
produção dos próprios eventos, como meio de provocar situações
reveladoras? Em resposta a estas questões instaurou-se uma tendência
radicalmente distinta do direto norte-americano no uso do grupo
sincrônico leve.
Jean Rouch foi um representante destacado desta tendência. Seu
filme Chronique d'un Été (Crônica de um Verão, 1960), realizado conjunta-
mente com Edgar Morin, pode ser considerado o protótipo de uma
nova configuração do documentário: o modo interativo de representação.
1
A frase é de Rouch (Le Monde, 16 set. 1971), que na seguinte declaração a Marcorelles esclarece
sua posição frente ao mito da "objetividade cientifica": "eu me considero ao mesmo tempo
como cineasta e etnólogo. Eu acho que a etnologia é poesia. Não acredito muito nas ciências
humanas, como já disse várias vezes. Afinal de contas, as ciências humanas são algo de
terrivelmente subjetivo". L'Avant .frene, nº 123, 1972.
150 Espelho Partido V er<la<le e Imaginação 151

Neste filme, o "som direto integralmente assumido" engendrou invisibilidade; o artista do cinema-verdade de Rouch era freqüentemente
conseqüências inteiramente distintas daquelas verificadas no modo um participante assumido. O artista do cinema direto desempenhava o
observacional. Aqui é a palavra que predomina, através da conjugação papel de um observador neutro; o artista do cinema-verdade assumia o
de diferentes estratégias: monólogos, diálogos, entrevistas dos de provocador. 5
realizadores com os atores sociais, discussões coletivas envolvendo a
crítica aos trechos já filmados e, por fim, autocrítica dos próprios Estas diferenças tornaram-se absolutamente nítidas durante o
realizadores diante da câmera. Chronique d'un Été foi uma tentativa de encontro de três dias organizado paralelamente ao MIPE-TV (Mercado
colocar em prática os conceitos desenvolvidos por Morin em seu artigo Internacional de Programas e Equipamentos de Televisão) de março de
2
"Pour un Nouveau Cinéma-Vérité", publicado alguns meses antes. Na 1963, em Lyon, França, reunindo cineastas, críticos e especialistas de
abertura do filme, sobre imagens de populares circulando nas ruas de vários países. Segundo Marcorelles, "um clima de doce loucura reinava
Paris, ouvimos a voz offde Jean Rouch: "Este filme não foi representado durante aquelas sessões, no entanto respeitáveis, cada um falando por
por atores, mas vivido pelos homens e mulheres que dedicaram si, Leacock não compreendendo Rouch nem Rouch, Leacock". 6
momentos de suas vidas a uma experiência nova de cinema-verdade". 3 Jean-Claude Bringuier referiu-se ao sentimento "de uma barreira
O artigo de Morin e a reprodução de seu título no cartaz de intransponível entre Leacock e nós, um muro nos separando
Chronique d'un Été recolocaram em circulação o termo "cinema-verdade", radicalmente". 7 Para os franceses, o cinema que os norte-americanos
que logo se transformou na designação global dos movimentos que exibiram em Lyon "desconfia das palavras, das opiniões, dos julgamentos
empregavam os novos métodos de filmagem com equipamentos (...) como daquilo que vem contaminar um real que é preciso manter
portáteis. A partir de 1963, esta expressão passou a ser substituída por em sua pureza original". 8 Por outro lado, "Leacock se insurgiu de imediato
"cinema direto", proposta por Mario Ruspoli e considerada mais neutra. 4 contra a escola francesa, prisioneira do verbo, ignorando a espontaneidade
Atualmente, alguns autores ainda consideram os dois termos sinônimos; do real, forçando as pessoas a representarem diante da câmera". 9
enquanto outros os utilizam para denominar movimentos inteiramente Marcorelles, um dos mais ardorosos defensores do direto na
distintos. Eric Barnouw resumiu, a nosso ver de forma bastante precisa, Europa, via por trás desta polêmica um fenômeno "civilizacional":·
a distinção entre as duas tendências:
5
BARNOCW, 1974: 254. As coisas se complicaram a partir do momento em que a expressão
"estilo vérité" passou a ser usada pelos norte-americanos para se designar um formato lubrido:
O documentarista do cinema direto levava sua câmera para uma situa- "Vérité é um estilo ersatz desenvolvido pela televisão em ambos os lados do Atlântico, uma
forma bastarda que reduz o rigor da prática do cinema direto a um amálgama de filmagem em
ção de tensão e torcia por uma crise; a versão de Rouch do cinema-
som direto com câmera na mão e luz disponível, juntamente com elementos anteriores. Filmes
verdade tentava precipitar uma. O artista do cinema direto aspirava à (e vídeos) vérité contêm material em estilo-cinema-direto, mas também podem usar comentário,
entrevistas, gráficos, reconstrução e todo o repertório do documentário realista". WINSTON,
2
france-Observateur, 14 jan. 1960. 1995: 210.
6
' ROUCH e MORIN, 1962: 53. MARCORELLES, 1963d: 27.
4
O próprio Rouch assumiu esta designação menos polêmica: "Mario Ruspoli (... ) encontra "Idem: 28.
então a melhor fórmula: 'cinema direto', o cinema em tomada direta sobre a realidade". ROCCH, ' BRINGUIER, 1963: 15.
9
1989: 178. MARCORELLES, 1963d: 27.
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tempmamenro anglo.su.bn.ico n. temperamento latioo.1t1 E via, wnbém. RA«b , • fo,,lr,fa


reflexos daquilo que considerava o principal problenu do cinema OUMl111t M.dJtl
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moderno: ••onde começa e onde 201b,; a li~cm 6&,da?1•• 11 L..cacock.
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como sabemos, considera,,.. fundamcmal o rcgiscro "da forma como as Chroniqot d'on &f.
~""-' ~ com~cam, oo sej:a. falando". Mlls, • fala ai cci con,idccida
COIDO umia dimc:n.liàô da cspontanddadc humana.. &b dos atores sociais
entre si. De mock, olgum a f2la qu< r"'J>Ondc • inc:bgaçõcs fciw pdo
cinca.,ta: ''quando \'OCê cmrcvist;i alguém de S('fTlprc lhe f.ab aquilo que:
quer qut YóCê Hiba sobre: c)c".'1 Robert Drcw pensava de modo
scmdhanrc: ••flQ cssendal. a lógica \'ér~ a eture,isra, nio bas~••.u O
cinema de Drcu• e Lcacock cr.a um r~gi.suo das llfÔ(S que traduzir:Y.Un o
"rtll.l". No pólo oposto, cm Lyon. CSUV2 o rcali:,;ador iml.it.no Gll.n- do próprio 6Jme, interagindo com os demais atores sociais, procuntndo
Vitto.rio Bakli. para quem ''ação são os sentimentos do homem, é o que extrair revelações e "·,;erdades oculw". "Nós $lÍtnOS do rnistbio, nós
aparece no $t'U rosto. são as idéias que de enw\Cia'',*' Edgar Morin foi nos mustnmos, presentes., íalíve1s, homen.$ entre os outros; e
a.inda mais explicito, ao rcferir-K a CJ,,v,,iq11t dJfn ÊJJ:. provocamos o espectador para nos julg-ar como seres hwmnos"." Se a
preocul"'çio suprema de Lcocock residia em minimizar• su• paroci!"'çio
O :uo. ,fin:u, é a pala,"c.a; o ato se traduz am:vh dos ~ d-" dlS• na filma.gan vis.ando mdhor "comunicar a SM.<açio de estar ali'"' ,l' para
c:ussões. convcrsu. c1c. O que me imcrena não é o documffltârlo que-: Rouch e Morin a qucst:io cn bem outn.. Sua presença D"2.mfor1112,ia•sc
mottca o.s t J ~ . é ums i.n1cn·ençio !ltiva para ir além d:i.s ap-.att:nci• na própria força dfoimica do filme: "não há um fosso entre um lado e o
as e cxttair úd.u a ,-crdadc escon,clld1 ou 21dormccida. 1' outro da cimera, mai -circulaçio e trocut•. u Morin inn'ftia os termos
da equação de Leacock. Não se trnt.tV'A dt evitar intervir. para que a
A c:xprcss:io ''intervenção ativa" define o euenci21 do modo ,..verdade dos eventos" fosse preservada: tra1..2va.sc de fazer da
Íntcr:lavo de rtprcsc:nr.t~ cm que a prcsen91 do realizador é pote:ncWi- interv,:nçào • ooodiçiio de possibilidade da rn-elação, pela polllvra,
:wla. ao invés de dissimubda. Morin e Rouch tornav:un-sc personagens daquilo quc dÔVC5St latente. contido ou secreto.
Chroniq11t d'1111 É1I foi concebido como "uma expc.riênci.1 de
• &w c1ua, po.wm olo podc,l'I ter o:phcad» tio ~ k : por diÍfflnÇlr, ~
TtiMO ~ ~ o ontCN obk'l'YI l;IOIUl eoc;on!IQU tmlfflffllll. rt'prcwmanin - p,iha ■Ol'ICX
interrogação dnematogrifica", sem encenações e n.ào limitada, a \..
aatOpC1». ~ d a M:mo Ruspolí ~ ~ Oq,.nloa. Sl: C\ ~ o o,odo 1011tbUVO cnucvutu. A tntcnçio m1. chc.ga.r a um .. soood.rama'", no qu.-il cada
1qx1 : .cw t.kanllt' ftOII EUA . ~ i» ~
11 MARC.ORSJ.J;;s. 196ldi 21:L participante fosse estimulado ~ de$cmpt:nhar sua própriii vich di2mt d,.
11 LE..AC0CK. mado pc.- MARCOREJ.J..E.S. 197.). ;s.
" MA.ltCOR.EIJ J ~ 196.lbt 27. • ldmu J1.
1• Ciado por MARCOIU:IJ.P ..S. 197.) 28. 1
' MEK.'\S, 1961! 16..
9 ltOOCH e: MORlN, l!Jl6?: 2'.MO. •• ~OUCH ~ MORIN, 1962: 9,
1$4 F.,pclhol'vrido Vc:rdadlC' < lmaginaçlio I SS

cimcn - •<um iogo com wlor de \--crdadc psianalítko1·, •• O percurso respondido pdos ..atores•'. sio ambígu:i.s. Verdade, porque eram
do lllmc most=ia que, do mesmo modo como • imagtm nio pode lcrnbnoçu íntirruu; de situações vividas, diras com St:ntimt:nto. Ma..~.
apw- verdades objttivas tm2.I\Cntts_ t2mpouco haVU. vcrd:ulc, imeri.On::$ esta verdade decorria de uma cnccrutção:
latcntd ~ saem vt:rballzudu. Não que a interação com os pcl$00Slgcns
provocasse: neç~s~ru&.rncntc n:spostu falsas. como temi-a Leacock. A Eu me roloquci cm 11iwçio. oo dmma. cu cscoU,, um pcrSOO>g<m que
própria vida social é que eta concebida como um con.jumo de rituais. cu imerprc1d m mtdida m5 possibilidades do 6lmc, um personagem
uma espécie de ttttrO cujos papéis inoorpownos ao nosso coôdiano. O que ~ w me,mo tempo um aspecto de umi ~idad,e dt Marcclui,c e:
conteúdo da vidi subjcth-a emerge através d.e um processo que rcvcla iamb&n um pc,,ooagcm dmmatit:IO<> criado por Mattdlne.n
oculnmdo e oculta rev,:lando. Em Clmmiq#t dit• ÊN. Rouch e Morin &e
dcfronUtram com uma dialética do verdadeiro e do falso que abriu A própri2 performance dt.
pcrspccuvu musir:1WLS para o docwnent:ârio cm ,om d:ittto. ~ú.rcclinc. como eb veio 1J confC5 4

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Agon eu pcr,:ebo que se 00< cheg,mot • algo foi cn> eolocar o probl<- causan urna scqiiência já rodack
nu da vc«bd<. N6< qwsc:mos fuwr da oomédia. do capmcolo, p= com 01.nnt partidp:mtc do filmeu
t'tltnr cm tomada chrcu com a mia.. M.2.S a própria vim Ulmbêm t Mucclinc reconheceu n-io só tc:r
comldi4, cspc,óo,lo. Melhor (ou pior), cada um só pode ,e exprimu 11.nu.do como unu arriz, nus que
acnxe, de uma mmar.1 e , m.isc:ar.1., como m mgcdia gn:g.a. di».imub. e$t:'.I aruaçio rcAetia uma rivaliditde
ao rnctn'K) tempo ffl\ que revela. ampbfica. Ao kmgo dos d1álogm, Mais do qU< ino: que sua afll2Çio
ada um pode ser 20 mesmo 1cmpo m:ús vcrd:adein, que n:a ,'kb. cQOd,. foi concebida cm íunçio do efcim
tuU e, ao me5mo tempo. nu.is &!&o.» que podcrisa trr na Taa. ClOcm.a e
vida., pa.s5ado c pn.·kmc. realidade
Em uma seqUê:ncia, .Min:cline, judia, cx•pri.sic>ncin cm wn cunpo e irnagjniçio. íitOS reais e e.n.«ru•
de concentração, V2191 pdas ruas dt: Jl..uis com um pvador a dr.a.colo e çio - uptccos incuriclvcis no
wn rrucrofonc dt: bpcl:i - método que Rouch inaugura neste ato. Ela é processo de interação cm que flS
C"1MW M . , . . . . M,..,,f• Oíll#i•"-
11.companhada i distincia pda cimen e suas p:ab.,tts são uma C'VOCaÇ:io m21scaras sr sobrepõem. Certos ,,,,_,,,,,,., P..n,,,,. _ "-"lt
saudosa e dramitica do pai, dc- quem I deportação a stparo u c:ríricos, cm bu5ea de um.a estrita ,,....,. .. • ,- + r ••
i.rrc:mcdia\--clmcme. Durante o debate que se seguiu à projeção para os
participantes do filme cm ,ria$ de~ ID..cr. surge a qUC$tào: verdade ou ,. MNC!tllnc. cm tOl)OIº ao qwsaooino ~ pdi)I re 1 1 u 1101 ~ do
cocenaçio? A5 rcsposua.s de ~hrcchne. no debate e no qucsdooino ímic. Idem: 16S.
. . .FAI CIQIIÚõiO r&'t . . tnWIO inllumaada pot uma ~ dt Maty--1.ou. ~ fV . . nm

"ldrm: S. copõc.. rol nc:nc ..,rmtt qix c u ~ dt tepU'Or. qllCI N ce-tnàci ftllOhl ltiwrc ;B □
• 1dcmt-'1 Soxlnlu,, tts dit'rdl pm 1.'1111" fucr uma «MM.-,; O.O (Ofi,r o dnio& Eu_.,_ cp ,.a-.e:tts
do"'º ?t•Dnll i-. tela." Clud, por SJJ)Ot,.11,. 1971: 1.2'7.
156 Espelho Partido Verdade e Imaginação 157

espontaneidade, logo perguntaram, por vezes com ironia, onde estava documento. Mas, como mostrou lucidamente Comolli, "quer-se respeitar
"a verdade do cinema-verdade?" Não percebiam que, ao explorar o documento, mas não se pode evitar fabricá-lo. Ele não preexiste à
intuitivamente a interpenetração entre os papéis que os atores reportagem, mas é o seu produto". 25 Sim, porque filmar um evento é
representavam, os papéis que acreditavam representar e os papéis que produzir uma realidade fílmica até então inexistente, que necessariamente
os outros os viam representando, Chronique d'un Été tornava-se um filme transforma a matéria bruta registrada. Esta inexorável intervenção
sobre a relação de fecundação mútua entre documentário e ficção. produtiva não pode deixar tranqüila a realidade dos fatos, mas lhe
Ao se colocar disponível para uma experiência desta natureza - acrescenta - ou subtrai - algo.
querer-se filmado, saber-se filmado, atuar diante da câmera sem um plano Ao contrário de um testemunho mecânico dos acontecimentos,
preestabelecido, liberar a memória e a imaginação - cada um dos "atores" o documento é sempre o produto de um processo de manipulação,
embarcava efetivamente na aventura do cinema direto. Uma aventura envolvendo a cada passo um leque de alternativas metodológicas e
impensável antes do advento dos equipamentos portáteis e sincrônicos. técnicas, que afinal são opções estéticas. Em sua fobia à manipulação, o
Por outro lado, uma aventura que o cinema direto observacional de direto observacional subjuga estas opções a um ditame moral, ou antes,
Drew e Leacock não podia proporcionar. a um mero problema prático. 26 Este respeito ideal ao documento, esta
Tentando resumir suas diferenças para com Rouch, Drew disse falta de audácia, traduz-se, no dizer de Comolli, em "subemprego (...)
que "a coisa mais importante que parece ter acontecido com as pessoas das possibilidades e paradoxos do cinema direto; negligência do princípio
que ele [Rouch] escolheu filmar é o fato de tê-las filmado". 23 A afirmação de perversão que está na base do direto, sua própria natureza". 27
tinha um tom de escândalo, porque seu método era, neste sentido, Ao contrário, o cinema interativo de Rouch e Morin assume esta
diametralmente oposto - o fosso existente entre um lado e outro da função produtiva como inevitavelmente constitutiva do documento. Mais
câmera negava o contato e impedia qualquer transformação. Autores e do que isso, procura fazer dela o motor do próprio filme: "as pessoas,
personagens não eram contaminados pela filmagem, dela saíam ilesos. talvez porque haja uma câmera ali, criam algo diferente; e o fazem
Os participantes de Chronique d'un Été, ao contrário, dão mostras de ter espontaneamente". 28 Ao criá-lo, não só criam o filme como criam uma
vivido uma "singular metamorfose", 24 sendo feitos pelo filme na medida dimensão de si mesmos que não poderia existir sem o filme, dimensão
em que o faziam. Provocada por Morin, Mary-Lou atinge visível a um só tempo real e imaginária. Através de monólogos, diálogos e
comoção; Marceline procura reviver dramaticamente seu passado; a discussões coletivas, reagindo a provocações mútuas, em movimentos
participação nas filmagens leva Angelo a ser remanejado de seção na
25
COMOLLI, 1969, parte I: 48.
fábrica onde trabalha; Morin e Rouch reformulam incessantemente suas 26
Em um exemplo ilustrativo deste "pragmatismo" do direto, Leacock justifica o uso de um
concepções, na medida em que o projeto evolui. único plano-seqüência ao invés de várias imagens, em uma cena em que o prefeito de Aberdeen
discursa, em Happy Mother's Day (1965): "se eu tivesse editado aquele discurso inserindo planos
Nada disso seria possível no modo observacional puro, em que
de reação do público, ninguém acreditaria que aquele era o seu discurso. Não é um problema
uma invisibilidade utópica era perseguida em nome da pureza do moral, é um problema prático". BLUE, em JACOBS, 1979: 410 (Grifo nosso).
27
COMOLLI, 1969, parte I: 48 (Grifo nosso).
28
23
MARCORELLES, 1963b: 26. Rouch, sobre La Punition, realizado pouco depois de Chronique d'un Été, citado por
24
ROUCH, 1989: 181. MARCORELLES, 1973: 89.
158 Espelho Partido Verdade e Imaginação 159

de atração e rejeição, crítica e autocrítica, os participantes de Chronique de trabalho é devedor a Flaherty: na primeira fase da pesquisa, extenso
d'un Été deixam transpirar em suas palavras e atos um certo "coeficiente convívio do etnógrafo com o grupo estudado; na segunda, os atores
de irrealidade" que confere ao documento uma aura de ficção. nativos reconstituem para a câmera situações de suas vidas cotidianas.
Se Flaherty já dava provas, nos anos 1920, de perceber
E pode-se dizer, indo ao cúmulo do paradoxo do direto, que este só empiricamente as limitações de uma pretensa observação imparcial, a
começa a valer enquanto tal a partir do momento em que se abre na formação acadêmica e o trabalho de campo de Rouch o levam a
reportagem a brecha por onde se precipita a ficção, por onde também compreender de forma ainda mais aguda a solidariedade estrutural que
se trai - ou se confessa - a mentira fundamental que preside a reporta- o observador e o observado mantêm entre si. Ao dar conseqüência
29
gem: que no próprio seio da não-intervenção reina a manipulação. prática a esta solidariedade, Rouch passa a compartilhar a criação e a
realização de seus filmes com aqueles que antes eram apenas objetos de
Esta brecha por onde penetra a ficção apenas se esboça em pesquisa. Simultaneamente a esta abertura à participação, Rouch começa
Chronique d'un Été. Aliás, se nos referimos reiteradamente a este filme, é a interessar-se pela ficção como um instrumento de compreensão da
pelo lugar fundamental que ele ocupa na gênese do modo interativo, ao realidade. O filme que marca esta transição é Jaguar, iniciado em 1954 e
mesmo tempo em que proporciona aberturas para a sua própria somente concluído em 1971.
transformação. Mas o germe destas aberturas já se encontrava nos filmes
anteriores de Rouch e perpassou toda a sua obra. Rouch chegou ao Quando eu fiz o filme eu não tinha nenhuma idéia! Eu tinha sobretudo
cinema pela via da etnologia. A câmera, e depois o gravador, vieram a vontade de contar uma história e, já, de sair um pouco do documentário
somar-se ao caderno de notas, como instrumentos da pesquisa para fazer ficção. Eu conhecia muito bem meus três heróis (...) e lhes
etnográfica. A trajetória de Rouch, de uma antropologia tradicional a tinha proposto inventar uma história, inventá-la na medida em que a
30
uma "antropologia compartilhada", faz analogia com a sua trajetória filmássemos (...) e nós inventamos juntos seus diferentes episódios (...)
cinematográfica, entre o documentário expositivo e o modo interativo, todo o filme é pura ficção, nenhum desses personagens nunca foi na
irradiando em modalidades diversas e dificilmente classificáveis. Vejamos, vida o que ele é na história: é ficção, mas ficção em que as pessoas
em linhas muito gerais, como esta evolução se deu. desempenham seus próprios papéis numa situação dada: a de pessoas
Rouch iniciou suas pesquisas de campo em 1941, no Níger e no que vão tentar ganhar dinheiro na Costa do Ouro. 31
Senegal. Seus primeiros filmes, realizados a partir de 1947, são documen-
tários clássicos sobre os costumes tribais na África do norte: montagem Como enquadrar este depoimento de Rouch nos modelos
de imagens acompanhadas do comentário do autor em voz ef.l. O método precedentes de documentário e de ficção? Em Jaguar não há
reconstituição para a câmera de uma situação previamente vivida, como
29
COMOLLI, 1969, p. I: 49. no método Flaherty. Tampouco havia registro de acontecimentos
30
Nas palavras do próprio Rouch: "um novo método de pesquisa que consiste em compartilhar
com as pessoas que, de outro modo, não passariam de objetos da pesquisa. Nós fazemos delas
31
sujeitos!". Durante um debate na Cnesco. CinémAction, 12, 1980: 57. ROUC:H, 1967: 18.
160 U.pclho Pvudo Vcn.tadt e- l~naçao 161

independentes da ,-onraJe do au1or. como fizer:a Verwv e c:omo Lctcock realidade, mas :a pruvouçio da rea.lidadc-. que revelava e.ssa
viria a fa1.cr. A 5-iruaçio t:ra invcmada por Rouch e seus a1ores, mas realid.ade"."
pcrfl11àmcnlc pl2usfrcl: wn2 viagem à Costa do Ouro (acuai G:ma), O '"prindpto de perversão" do direto agi-a de for1m. a prokz/r
para conseguir dinheiro. e 11. voltt a Níger. Mas não se trataw de uma "al/Aad,. iio invés de tema.r rcc:rii-la ou rcprescnnUa. Em )tll,/lar. ~ função
rcpcriçà<> do mftodo soviético ou nco-tealisia dt utilii:u 11.torcs não- produõv-:. do cinema direto aru:a em scnâdo opos.co a Chron1q11t d'11n Éti.
profissionais p:&n conferir maior realismo n uma história fictícia. se no dev:,neio de f\·farcéline o documento como que tnnsparccc ficção,
ilO itincr:írio do Níger 2 Cost11 do Ouro é a ficçio que se materializa fm
clocumcnro. É claro que esr.amos nos referindo :a um "csttdo de espírito''
do dimo, que :uucceck o cinema dir<to no sentido ttaúro- uma rning<m
cm 1954, quando -as cimenu crnm ~ e os grn,-:w:lores magnéticos
eram pesado,; e ttlo funcion:w.un em sincronismo com a mugem.
A sonorização de fag,tvr foi fcita posteriormt:11tt is filmagens.
amvés de um método de ttiação ~rtilhadu. .ao assistirem ¼s imagens
editadas, os p.articip:tntes da vi:a.gt":m gr:n'2.r.lln o cc,mcntârio C!'Spooti.nco
sobre suas avcnrul":l,'i, 1\0 ía,ê-lo, rcinu:rprc,:mun \'C.rbalmdltc seus
personagens, acrc.-sceowido-lhc-s uma no..-.;a cam:acb narr:uiw carrcgacb
de. imagina.çio. qué potcndaliz:att a5 unagcns, aunndo desta vc1. o
doc:umenw p:a,ra o lado da ficção.l' Rouch sub\,ertJ:i assim duplamente
~ função do comi:mário no modo expositivo. Primeiro. ao ceder a palavra

Apcpr de Rouch se rcfc:rir a uma ..pum ficção'', as filmagen!'i aos a.tores nativos. Segund~ ao csdmubr \IJ'llll improvisação 1-nbal. que
for.un prcccdid..-is de wn .simples itineririo e do éSboço de situaÇÕcs lc:-v:ava os perSonageos a tr.tnsiutr permanentemente emrc a rc.tlcxio
banais. o que não configuraw um enredo: "eu incrodU7.ia as pessoas cm sobre o que viveram t' a fantasisl qur: SCU$ papéis lbc:s í2culm1-,m. Ficção
uma siru."lçiio. a cimen era o prctexro, e o ttsto corria solto, ac<>nteda engendrando documcmo. documenm engendrando ficçiõ.
um pouco qlW9uer coisa..:•» ),11/'or torru.\'ll c\':mesccntes is frontcins A «penênctt uuo:ida cm J,,g,ar pro•scguc cm M,r •• Noir (1958).
entre documentário e ficção: ctia,12 um tipo de": filme que não se C<)C1'I wm e;pclci, dcdoc:umauaçio d. vi<h cocidJarua de wngn,po de jo\'t'tlS

enquadrava cm nenhuma du catl!goriu enrào conhec1d.as. Seus pobres. h!tbiwues de Trridwille. subúrbio de 1\bidjan, Costa do M:ufun.
partlcip;mtt.s colocaram•sc no papel de migramcs e documentaram
sua mignçio. Uma Ws1õri2 SJJT1ul~tt: ,.nvcntada, vivicb e 61nuda • lt.lm>.
" O filme J)OAlllU W'i'VWti vc,.._ A pnmetna, com 2h.)()in»n, IX diQÇJQ. llnha cQll'ICfttar'JO de
- daí Rouch formuJar o paradoxo de u.nu p,m, fi'fão em que :a.s J>CSS()ªS J\ouch. 1-'..m l?S'7, õl puik.1pmtn KD'"U'Mll ~u <UmC'ndoo .o umurffll 1.l'b 1""'°'.)u. Ou
vivem 1t11 prdprio ~/. ••Entrava-.sc cm um domínio que não cm a •oor. ckpw,. oon grwa,el,o Jt «M'n(n(ino, wlii>:~ndo o mtSffll) mnl)Jo. ~ o ma!UW
-,coque deu <qcem .a vadoC'QIIIUCi.tl dr 1h3lm111,. bn 1971 RclUCb b ~ uma vMlo de
• lblJ<m. lh.'iChNrL
162 e,pdho P,n,do

M., o que o filme nos di dcsic oooc1w,o já..,, de c,1 modo c,rtq;,do de ~ , ·"Ro.&,.,. ",
f.uu:isú que a pala= doounenur toma•sc imprc:c,w. P.an OOmcçu', os • p,ol"fPU'IJ I,
Mo 1unN01r.
p e ~ moldam """' idmtid,des com dementas utra!dos do< mcios
de romwúcaçâo de.,_ noov.bmcntt: o cin<ma. Aom= ...... própri:u
vkhs" dwnc da cimen, eles ruo só odor.un nomes ficúcios - 6dward G. .
Rbbtnson, Taràn, Oorothy Ltmoor e L,mmy-Cauoon•l'Agcnt•Fédénl· 1
Américain - m., tunbém vivml oçõe, alrerMdamente reais e 6cúcias.
Robinson assistiu is irnigens ediçuj:is e simulmneamcntc gra,•úu
suas impressões_ que se ma.osformar:un cm um componcmc fundamc:ntal
da tnlha sonona do filme. .Ele g.prescnta A.O t'S.pcaador seus companheiros
e comcn12 a avcntur. d11 luu1 di:í.ru pela $ôbrcvivência. nus o fu. de
modo esponcinco, impregnando o rcbro de dcv:anclOSi misrunmdo f2t05
e desejos. ,·ttdades e mcnri.ras. que se comam indisccrnfras pa.n o do comMcâ.rlo, a ddUagem mtre ,, condições de "id.1 dos pcrson:agcns
c:$pttUdor. E. de que se:rviria d1scernit, se- todos estes elementos dispares - negros, pc>brcs e colon!ZI~ - e suas :ispinçõcs e &ruasw produz
f.u:m, parte cb ••vcn:L1.deº de Robin'°n-a verdade situM!A de sua identi- rcvdi1çôcs patéocas e comoventes.
dade de negro coloni>.ado participando de um filme? Uma <leias é a seqüência passW nCJ porto. cm que os nomes das
cid:adcs do mundo irucntos 02 popa dos LUvios ancorados tnl.OSÍOtmam•
É o úruco meto (111 6cçãol de penem..r uma realidade. 05 mcaos da se em prctc:no para Robinson vmgloriu•sc de ter cst:ulo em Hamburgo,
50C~lofp l)(:f'tlUn(C:Cm exteaores. 1;'..m M• ## N11r, cu quem rrl0$mtr Oslo e La RÓchelle, diz.cr conhecer todos ,:,;lugares e ter possuído ,odas
uma ocbdc àÍric:atla. Abtdjan. l!u poderia ttt íaw wn documentino as mulheres. A du'.lléuca on1gcm/ comcntino nos d.i acesso a fragmentos
repleto ck- t'ffl.tistiC:$1$ e:~ ob:scrvações objetivas. Tcd.l wdo tmtísshno. de fatos cotidianos dos habinamcs dt" Trdchville me~cl-ados a suas
8an, ai conr.ci uma história com pccsonagcm. suas ivcn~ S('Uj opiniões e seus sonhos. u~ taJ rtllidade não pc,de"2 csu.r btmtc n2s
sonhos. E não he,.&td em anmxfu,.iu Jimcnsio do unaginirio. do trre2.l. csquüu.s de Abidjan :i dpcra de que uma cimc::ra as m·clusc visualmc:ntc,
Urn pcnorugtm sonha que botc1::.. Nós o vemos bo,tc;i.r." "de improviso". Ela foi produzida pelo falmc e só no filme pode ter
lugar. É um foto filnuco por cxcclêncb, CO<npc>$tO tanto do facrual q1J2t1to
Em M.oi 11n Noir ruo só os &tos cst2o impregnados de su2 inter• do unagm:irio. como dimensões tornadas andissolúvci5,.
prcttçiQ. é todo o filme que se confunde com seu próprio processo de Em 1967, Rouch conft>SOU qu<C.h: COI wndc sc,JS filmes preferidos,
interprtt:tçio, am-W:s do reb.to de R()binson. lnterp~taçào que não {: c.oncementc a W1U d:is coisas que mais o tocavam no mundo: ..,. 6cçào
unu rcflc-xio lógica sobre oi. f.tt0$ vividos. mas uma fubu1açio cm que mais cxtra,-ag:a.nte e tl'Ws desgrenhada qut" é, a.fioaJ, a pintun mais rcit1
o n:al e o imagi.n:irio se alteram pcrnuncntcmcntc. Em cc:r1os momcnlos de uma rcafübdc d.Ida",.,.
11
RtMCh.un T..,_n"872.0Qdopw ,MRSOLMS..19'1•1 176.. "ROCCH. 196': 18.
16' Eop<lbo P,rnd<) \'crclatlc e: l ~ n ~ 16S

Com sro filme s,guinw, L, PJ-ramid, N•mai.,,, (1959), Rouch dtu ui modo fundad,, n:a comunicação oral e 01 jmpro,i:saç1io coletiva ainda
rm.is um puso no scorido de um ••documentâno fia:iorul". Ek quietb. não podcna se desenvolver plenamente. 02 falta dos ettuipamentos
fazer um filme S<>Ure o r.a.cismo cm uma escola de 1\bidjan, mas llli o •dcqwdos - sílcnciosc,s e síncrócúcos." Our:une • rcalii2çào de seu filme
racismo est:av:a 2pcnas b1t:0tc. adolescentes brnnco~ e negros ~tcfam ,cguinu,. a,,,,,,;,,,,, d'•• Êii, Rouch fuulmcn«: disporia deste lnstrumentll.
sunplcsmentc K desconhecer uns aos OU0'05. Rouch cm¼o propôs a Coloc2.Clo cm pcnpcctiv-.1 tU obra de Rouch. tOmli•k claro que
um grupo de jo\'tnS a reali:1,.-:1,çio de um psicodn.ma,,. film1d?: dC"-5 C1Jro11i.q111 dNfl Éli não ituugurou o rccur:so à ficçio, m:a~ :ao conccirio~
dcvenam cnt:n.r e:m ~laçi~ oomport:tMiC como se não se ignorassem, representou neste sentido un\:t accnuaçio. Tampouco inaugo.rou -a
ddx,.r aflonar :tS contnadições laienlcs, Urm rcalicbdc produzicb a partir interação com os amres.., aptnas deu-lhe OO\'JS ca.ractcristiw. Rouch
agora se dctU,\'1 \'ct cm intenção, aparecia n1 i.nugem cm contatO com
os demais panicipaotcs do filint:.41 O que ChrunÍ'IIN JÍJ/11 ÊII inaugurou.
oo trabalho de Rouch, foi o u.'lo dircco da pa12vra. possibilitando as
longu con\'enaçõcs cm grupo, aJ cnquctcs dC'. rua e os monólogos
cspom;incos. como o de ~úrcdine divllJ,'2ndO solit2ria. A pahwn não
escava mais exilada d:a. f ü ~ , devendo esperar a etapa de sononT.açio
A'-'"'""" pu:t vir juntar-se às imagens. ~te emprego d.trero d.a f>21~VTil é o que
,_.._,,,.,
'"'IJWI'-'"'•-
o:pliatat dJ
nos permite considc:r:ar Chro1tiq111 d'1111 Êté um pTI'.>t61ipo do modo
ltlnttl imcr:itlvo.
..,.,,., , . , . , t1lt

L, Pynm,Jc
Amvés d• pmmo &!>da cm som direto, o doouncntirio pode ir
llu~lnc. alêm do rcgi5tro facrual. rememorar o pa.s.s:a.do dos personagens,
~spcçular SC\1 finur0 e abrir,.se à fan.wia. A autoridade da voz autonJ.
de uma hipótese fictida, mas intciamcnrc plau$i..-d.. cada parôcipamc que o modo expositivo cooceru.ra no comentário cm ojJ. como uma
dC\'COdo 11tua.r de modo mais p:trtt.tdo â sua própõa personalidade. Ntsu. ·\·o,: de Deus" incorpórea. é substituícb pelas ,·oics dos participantes
espécie dC' jogo da verdade. 2 timeo. nio funcionou como clcmenm do filme crn imcraçio uns com os outros. E ts oplniõcs podem cntia se
in.ibãdor ou obsclculo ¼expressão. Ao cont:clrio. da foi "'2 testemunha potencializar rcci:procamttJtc. No modo imcnti,'O o cinCQ..Slà dispõe de
indispcns.á\'Cl que motivou tsta expressão".» Mas uma cx.pcriêocia de
• ° ' ~ d e l..t lyi--, , . , _ ron.m GlrNJo, ( 1 : 1 1 . C00'l \lffll C.OW.lb. dl'l'Oh-lda
par um bbmf\ 'flONfflOtO d u ~ d e ~ de nliclQ. W1!1,'S"f0~ lffl· 182.
"'MJired MNttn rUQmt"I ~ d e , ~ ou p,KodmNdep,wb I"")' !JIOffM( ..fudldo • E.ai ' mÚt. um:t nidê:IXD dt cp:ae ÜO íoi O .-h'ffllO do ppo <Wfflliogfl6co .mude.ao
°' ~ dcs mpolhamn d c : 6 ~ t o papd qur clal podcn.m e ~ uwmu leve que poiwbduw o modo mllr:DtM> - ou Ir!' ~-léQQI de ~ nJo ame ,cbdo QUul
IH tock.lMk., qi.&t. te con!num fflalpú:o. o,mpa, p(.11' M';lJ,c:t pcicopu~ pode, awe tia.a. e ~ No aJO ck ~ dc-11-.e na1»nmieo invm,o: ÍQI I I J.IW «:
.e ln'llb I foma, CIJIIMXDal ck 1N1 «wnpln(,t e: wpcri lo... "L'Bapax(IC< F1i.c11!ln~ de- aw»OJ.m o. indo. ma.. Mlcqudm. ta0 -,míun.t.nx,no ck 11m upcnmClalt. de cmçio
f.- flJt-t,J, H---r, 0.,..,60, n• S1; ~ cm PR.EOAJ., 1981: IU. «impuulb.da qur o indw:tu I pnq1aH oo ckJmüo tb 1icn1a1..
• ROt'CH, Jun. ..La PJ:nimkk f-11,1nwnc:"', C.,_,, â C..-. n• 111. 1960, e , ~ p,or ' 1 A ~ Yblvel dt Roudi e Mom. ~ pua o ~ o pnxeMO de
MAR.501.AIS. 191'<1 266. maiuçio do 6lmc. JI 1 11m ~ Jo modo rch'ml Cf-1C abordwm.. 1dw:11~
~

166 Espelho Parri<lo V er<la<le e Imaginação 16 7

novos recursos para recusar o papel de agenciador oculto de imagens un Noir, Robinson é o personagem que se reinventa através de uma
sonoras e visuais, podendo exibir-se como um ser humano implicado: "fabulação compensadora". Em La Iyramide Humaine, o racismo apenas
"eles nos entregam todas as condições da experiência. O observador latente é suscitado pelo psicodrama. Em Chronique d'un Été, relações
42
torna-se observado". humanas são criadas e transformadas pelo filme e para o filme. A palavra
Mas é preciso ressalvar que a participação direta do cineasta, falada é o principal elemento propulsor de todos estes processos
audível e visível por todos - uma "mosca na sopa" ,43 ao invés de uma produtivos, através dos quais o mundo não é tomado como modelo do
"mosca na parede" - não representa automaticamente uma mediação filme e, por conseguinte, o filme não se pretende espelho do mundo.
entre os acontecimentos que se passam diante da câmera e a trama de
significações em que o filme vai se constituir. A presença do cineasta
pode, ao contrário, estar renovando as convenções que visam naturalizar
o artifício fílrnico. Assim se dá com as reportagens em que as vozes dos
entrevistados, ou dos "especialistas" convocados a dar depoimento, são
utilizadas na montagem de um discurso de autoria dúbia, no qual os
pontos de vista se refratam e o autor, muito embora visível, oculta seu
papel manipulador.
As "condições da experiência" podem estar sendo exibidas como
suposta garantia de verdade da reportagem, "querendo nos fazer crer
que o que nós vemos é evidência - evidência de um documentarista
fazendo um documentário". 44 A palavra falada dos atores sociais se
transforma em uma chancela de autenticidade. Então, aquele "princípio
de perversão" do direto se anula e o modo interativo se vê destituído do
potencial produtivo que a palavra direta pode lhe conferir.
No caso de Rouch, o que se busca não é a representação analógica
de uma realidade prévia ao filme, mas a produção da própria realidade
fílrnica. Esta produção implica um processo de metamorfose a que todos
os participantes são chamados a se submeter - aí incluídos seus autores
e, potencialmente, seus espectadores. Em Jaguar, a viagem do Níger à
Costa do Ouro é o acontecimento-filme singular e irredutível. Em Moi

42
HOVEYDA, 1961: 37.
43
BREITROSE, 1986: 47.
44
WINSTON, em RENOV, 1993: 53.
9 Antiilusionismo e Auto-Reflexividade

No contexto politizado e radicalizado que se seguiu aos conflitos


de maio de 1968, a França foi palco de um debate em que as convenções
do ilusionismo cinematográfico foram questionadas. O foco da crítica
era o modo de representação hollywoodiano, com suas regras de
continuidade e montagem transparente, destinadas a envolver o
espectador na ilusão de um espaço-tempo orgânico. Contra a história
que parece contar-se sozinha, era proposto o discurso que exibe suas marcas
e deixa transparecer as funções sociais e materiais em que se baseia. 1
Uma das vertentes da discussão era a crítica desconstrutiva, que
desmistificava o conceito de criação e promovia, em contrapartida, a
concepção do filme enquanto trabalho produtivo. Se o cinema-espetáculo
oculta o trabalho de produção de significados, é preciso responder com
"um cinema que traga em si a marca do processo de produção, ao
invés de tentar apagar os traços que o denunciam como objeto
trabalhado e como discurso que tem por trás uma fonte produtora e
seus interesses". 2
Boa parte desta crítica está datada, comprometida pela conjuntura
em que o debate transcorreu. O que nos interessa nela é a proposta de
abordar o filme como produto, remetendo a uma instância produtora e
desnudando seu processo de produção. No campo do documentário,

1
As principais tribunas deste debate foram as revistas Cahiers de Cinéma e Cinéthique. Seus prin-
cipais lances foram recuperados por Ismael Xlivier (1984a: 123-138).
2
Idem: 134.
170 Espelho Partido Antiilusionismo e Auto-Reflexividade 171

esta abordagem nos remete ao cerne do quarto modo de representação Don Quixote e comenta a relação entre a representação realista e o artifício
formulado por Nichols: o auto-reflexivo, representado pelos filmes cujo reflexivo em várias peças de Shakespeare. 4 Nas artes plásticas, a
aspecto principal não é o mundo representado, mas o próprio processo reflexividade é evidente na tradição do auto-retrato, mas há exemplos
de representação. mais ardilosos em Jan van Eyck (O Casal Arno(ftni, 1434) e Velásquez
(As Meninas, 1656), em que o artista vale-se de espelhos para rebater
Estes documentários auto-reflexivos misturam trechos observacionais, planos e brincar com os artifícios da representação. "Enquanto a arte
letreiros, entrevistas e comentários em voz ojJ, tornando explícito aquilo ilusionista procura causar a impressão de uma coerência espaço-temporal,
que tem sempre estado implícito: documentários sempre foram formas a arte antiilusionista procura ressaltar as brechas, os furos e as ligaduras
de representação, nunca janelas transparentes para a "realidade"; o do tecido narrativo". 5 Sua estratégia privilegiada é a descontinuidade,
cineasta sempre foi um participante-testemunha e um ativo fabricante que com o Modernismo vai ganhar um caráter programático. A hostili-
de significados, um produtor de discurso cinematográfico e não um dade do Modernismo com a história e a narrativa épica traduziu-se na
3
repórter neutro e onisciente da verdade das coisas. substituição dos narradores oniscientes pelos narradores problemáticos
e na substituição do mundo burguês unitário e pleno de sentido por um
O modo reflexivo assimila os recursos retoncos desenvolvidos mundo fragmentado, distorcido e contraditório. O ataque modernista
ao longo da história do documentário e produz uma inflexão deles sobre às continuidades artificiais da obra de arte será empreendido com as
si mesmos, problematizando suas limitações. Não satisfeito em mais diversas armas:
simplesmente expor um argumento sobre seu objeto, o cineasta passa a
engajar-se em um metacomentário sobre os mecanismos que dão forma a subversão das categorias espaço-temporais; o rompimento da narrativa
a este argumento. No lugar de uma ênfase absoluta sobre os personagens linear; a utilização da incongruência e da dissociação; a reabilitação de
e fatos do mundo histórico, o próprio filme afirma-se como fato no certos tabus, a agressão deliberada contra o espectador e suas
domínio da linguagem. expectativas; a revelação dos segredos profissionais do ilusionismo e,
Suspender o véu da ilusão não é um procedimento novo nas artes, finalmente, a recusa em contar histórias verossímeis. 6
embora tenha tardado bastante a tornar-se prática corrente no domínio
do documentário. Desde a Antigüidade, essa tensão entre ilusionismo e Stam identifica três modos de manifestação da arte antiilusionista,
reflexividade tem alimentado as mais diversas formas de arte, marcadas conforme a natureza de suas fontes de estímulo. O estímulo lúdico faz o
por narrativas em abismo, paródias de outros textos e encenações dentro artista tirar a própria máscara pelo prazer de brincar com os códigos do
de encenações. espetáculo; a contestação, quando existe, é meramente formal. O
Em seu estudo sobre o tema, Robert Stam refere-se ao uso da estímulo agressivo leva o artista a uma atitude de confronto com o público,
paródia por Aristófanes, Horácio e Ovídio, examina o caso clássico de
4
STAM, 1981.
5
Idem: 22.
' NICHOLS, 1983, em ROSENTHAL, 1988: 48-63. 6
Idem: 114.
172 E,p,lho Purndo Anniludorusmo e Au,o-R.dlc-m-khdc 173

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O esdmulo ,G,/J/;(o, por 6m, 1c:,,. o ani:<12 • desmisófiarocspcciculo, visando um ucm que 1.>3.rccc 2\'I.OÇ:ar sobre ck-. quer ~rnçar utn2 b2ilarin2., terna
propoa:ioiw- ao c;p<ctadoc um nlvcl nws clo,-a<lo de consci&u:i:a cdàca apartar dois lutudores e 101b2 dcrrubmdo 2 teln e saindo aos t.a~ com
f'rcntci ancc i Históri:l. Três modos que nio sio c:xcludcn~ m:u dimc:n:sõcs o projccionisu.• Scg,lfndo cst2 trilha, Mock Scnnet~ Charlc:s Chaplin,
da auu>-rctlcXMdade que g;u,lum tdcvincia difcrcnaada cm a<b autor e Max Undcr e Bustcr Keaton brindar.am as platéias do cinema silencioso
cm cada obCl. Se o csómulo lúdico ttm aniec,dcn1es mús l o ~ • com inumcr:ivcis filme, cm C}\JC o próprio cinema é 2 fome inspirndona
ogre,siõ e o didlltismo ~ • impulsos que "' 26mum • pu,;, de u.m:11 paródJa ou d1rc~mtntc o rema da comédia. arnwês de
da ld:idc Moderno: "o l'OllW1CC rdlcXÍ\'O cr.o esscocialmcmc lúdico cm sw pcnonagms envolvidos cm lilm:,g,-ns.
rdaçào com o leitor e o modernismo. c:sscncialmcmc agre,sivo. Já o tcairo São abund1ntes os exemplos de mcmfilmcs, nos qw.is :1 própria
de Brttht =lúdico, ag,=n'<> e didólioo".' indústri> cincmatogrifia fomccc • :unbiéncia d• <nrn>. frcqücnrcmcn1c
sa.tisfucndo uma visão dos bo.sddo.-cs e contribuindo pat2 g,ah-.ni= llinda
A 11.UtC>-r~nwvidadc.- aoornpanha o cinema de 6cçio desdt ~U$
prunciros tempos. pcl• ,12 lúdic• da comédia. Um dos faln1C$ da serie OWs o sistt":trU. de mitos e c:strdas, com tl&fOS casos dcsrnisrificadorcs.•
U"'1t ]osh, real~ac.la por Poncr cm 1902 para o atá.logo Edi50n, mo:s:tra • BUHOI. 1987; 129.
a ida de.- um c:iipir:a :ao cincntt e 2.s tnp:alh!ldas proVOC!ld25 por sua 'Ai.,.,. aanplo, . U - "°
S - JJ."-J (Bolly W - 1950>, A~... u 11,n, (G<,ng.
údwr, 19SJ), .f. .• 1"' X-{Sluiky 0onen ~ Ccnt K.clly. 1952)e Nat ~ (Fninçob,
TnúT1u10 197]). Em 1st1 1 ~- . cdtko. t..11,-, J,t 0...- {"itam \t'n'llkft. t ~ e t, Mfr"U
' """" 2l.
174 Espelho Partido Antiilusionismo e Auto-Refk:xivi<la<le 175

É no cinema moderno, especialmente com Godard, que a auto- fílmico. Ao desdobrar as telas, com a projeção dentro da projeção, O
reflexividade atinge plenamente uma dimensão que, sem deixar de ser Homem da Câmera separa o espaço da cena do espaço da sala, interpondo
lúdica, torna-se também agressiva e didática. entre eles o filme como mediação. E o filme, neste caso, é um processo
Um clássico do metafilme é The CameramanJ de 1928, em que Buster que se desvela pedagogicamente.
Keaton faz o papel de um fotógrafo de rua que compra uma câmera de O caráter documental da imagem é redimensionado - o documento
filmagem para transformar-se em cinegrafista de atualidades, não serve de matéria-prima para um processo transparente de manipulação
hesitando em interferir nos fatos para torná-los mais sensacionais - ao estética, as condições de fabricação vão sendo expostas na medida em
filmar uma festa pública, provoca explosões no meio da multidão; durante que se consumam. A imagem se metamorfoseia incessantemente,
uma briga, entrega uma faca a um lutador desarmado para que sua assumindo configurações imprevistas: imagens que reaparecem sendo
filmagem resulte mais empolgante. Suas gags são enriquecidas pelos enquadradas pelo homem da câmera, sendo montadas, sendo projetadas
efeitos de câmera que vai descobrindo: sobreposição de imagens, e sendo assistidas pela platéia; aparição intercalada em forma de tira de
movimento acelerado e invertido. celulóide, fotograma recortado, bobina, feixe de luz na sala escura e projeção
O precursor mais radical de um antiilusionismo desmistificador e luminosa no visor da mesa de montagem ou na tela do cinema; movimento
didático vem a ser um outro filme, coincidentemente realizado naquele lento, acelerado, variado, retroativo e congelado; imagens sobrepostas,
mesmo ano, mas totalmente diferente em concepção e objetivo: O Homem divididas, multiplicadas, refletidas, dissolventes, animadas, aberrantes e
da Câmera, de Dziga Vertov. Neste, os fatos não são falsificados nem os tornadas ilegíveis pelo enquadramento aproximado, pelo movimento de
truques estão a serviço do humor. Ao contrário, os efeitos técnicos câmera, pela velocidade de filmagem e pelas cintilações, efeitos
funcionam como um instrumento de conscientização do espectador estroboscópicos e fusões obtidas na edição e no laboratório.
sobre os sortilégios do cinema-espetáculo. Tantos recursos não são exibidos como um mostruário de
A definição de um tema para este filme já é problemática: vemos possibilidades técnicas e expressivas, mas como plataforma de
imagens de uma grande cidade soviética e acompanhamos as atividades formulação de uma cine-escritura, que se baseia na inter-relação entre a
de seus habitantes; ao mesmo tempo, vemos estas atividades sendo percepção humana e o processo cinematográfico. Ou, para usar termos
filmadas e trabalhadas na sala de montagem; por fim, vemos uma platéia vertovianos, entre os eventos percebidos pela "visão imperfeita do
assistindo o filme que está em vias de se fazer. Sucessivas camadas, que homem" e sua reconstrução significante através do "cinema-olho". Os
produzem uma narrativa abissal, distanciando-nos do plano factual dos letreiros de abertura do filme estabelecem, desde logo, seus objetivos:
acontecimentos registrados para exibir o processo de construção do fato- "Este trabalho experimental foi feito com a intenção de criar uma
Oean-Luc Godard, 1963). No cinema brasileiro, alguns exemplos de longas-metragens que se linguagem básica verdadeiramente internacional de cinema na base de
impõem são, na ficção, Ladrões de Cinema (Fernando Coni Campos, 1977), A Dama do Cine sua total separação da linguagem do teatro e da literatura" .10
Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1987) e Louco Por Cinema (André Luis Oli\·eira, 1994); no
documentário, Cabra Marcado Para Morrer (Eduardo Coutinho, 1985). Cma estética pós-moder-
10
na tem feito do cinema o objeto nostálgico de filmes de gênero híbrido, como Ed Wóod ([im Sexta cartela de abertura, antecedendo os nomes da equipe de três membros: Vertov (editor
Burton, 1994); nesta linha, desde meados da década de 1980, são inumeráveis os exemplos nos supervisor do experimento), Kaufman (diretor de fotografia) e Svilova (co-editora). Os nove
filmes brasileiros de curta-metragem. letreiros de abertura do filme são reproduzidos em PETRIC, 1987: 202.
176 Espelho Partido Antiilusionismo e Auto-Reflexividade 177

Tratava-se de liberar os espectadores do modo convencional de Conceitos como ostranenie (tornar estranho) e zatrudnenie (tornar difícil),
ver cinema, emancipá-los da passividade inculcada "pelos cine-dramas criados pelo formalista russo Viktor Shklovsky, integravam-se à estratégia
romanceados e teatralizados". Sem recorrer a um único entretítulo, este de motivar o leitor ou espectador a procurar significados diferentes
último filme silencioso de Vertov representa o refinamento de suas daqueles que são proporcionados pela percepção convencional do
experiências em comunicação com meios puramente visuais e, segundo 14
mundo. Outro princípio formalista que visava atenuar a ilusão
seu autor, foi lançado em um momento de "crise dos meios de expressão referencial consistia em "exibir o artifício", ou seja, desvendar os
do cinema" enquanto filme com "um oijetivo especial, fechar uma fenda mecanismos através dos quais a arte constrói esteticamente o seu objeto.
11 12
no setor da cine-linguagem". É um filme teórico e programático, O Homem da Câmera opera com todos estes conceitos, especial-
um daqueles "filmes que produzem filmes". Mais do que em qualquer mente com o último deles. Provoca no espectador uma sensação de
outro, nele se articulam os princípios do "cinema-olho" e do "cinema- estranhamento, ao editar imagens fora de uma lógica narrativa linear e
verdade". fora de um continuum espaço-temporal. Produz um conflito entre a ilusão
Como sabemos, a necessidade de educar as massas era um dos de realidade proporcionada pelas imagens analógicas e a freqüente
pressupostos básicos de Vertov, e o cinema, um meio privilegiado para exibição dos artifícios, tecnologias e métodos cinematográficos que
o desempenho desta tarefa. Futuristas, formalistas e construtivistas tornam a ilusão possível. Exige do espectador um trabalho intelectual
entendiam que a dimensão narrativa de uma obra não podia ser dissociada permanente e intenso para a criação de significados que não são
dos significados que decorriam de seus aspectos estilísticos, formais e fornecidos de forma unívoca.
estruturais.13 Neste sentido, artistas de vanguarda comprometidos com
a educação político-ideológica das massas para o socialismo, como Em O Homem da Câmera, não é o objetivo que é destacado, mas o meio;
Vertov, consideravam esta prática inseparável da educação estética, e isto é inteiramente evidente porque o filme tinha, entre outras, a tarefa
através da criação de estruturas formais refinadas que estimulassem um de apresentar os meios em lugar de dissimulá-los como de hábito nos
processo ativo de decifração. demais filmes. Porque um dos objetivos do filme era o de dar a conhecer
Para combater a assimilação passiva de conteúdos, a vanguarda a gramática dos meios cinematográficos. 15
soviética recorreu freqüentemente à auto-referencialidade das obras de
arte como um meio de chamar a atenção para as estruturas de linguagem. O Homem da Câmera pode ser considerado como uma
demonstração das relações complexas entre a percepção humana e as
11
"Réponse à des Questions". Em VERTO\/, 1972: 148 (Grifo do autor).
12
virtualidades do "cinema-olho", em desafio permanente à noção de
O próprio Vertov afirmou que "O Homem da Câmera não é somente uma realização prática, é
ao mesmo tempo uma manifestação teórica na tela". "L'Homme à la Caméra". Em VERTO\/, espaço-tempo que estrutura a narrativa tradicional. Mas, o uso sistemático
1972: 118.
13
de técnicas que alteram a exibição "normal" da imagem cinematográfica
Estas três tendências da vanguarda russa tinham pontos de convergência e divergência. Cada
uma delas, por sua vez, apresentava diversas sub-tendências e nuances. De modo geral, os
14
formalistas eram menos engajados politicamente, mais concentrados nos aspectos formais e PETRIC, 1987, cap.1. Como referência, cita EAGLE, Herbert. Russzan r"ormalist Theory. Ann
nas pesquisas linguísticas. Todos compartilhavam a fascinação pela tecnologia e a rejeição ao Arbor: L'niversity of Michigan Press, 1981 -
15
realismo socialista. "L'Amour Pour l'Homme Vivant". Em VERTOV, 1972: 208.
178 ll,p<lho P.rodo An1dls1(Jlltsmc> e Aun>oRc.-flc-uv,Jadc 179

O Homem da
Cimen tx1M Ju.J
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UtMJml(#tk
Jw,iftr,i,,.

criar contTíL~tes, metiforas vis-uais e reconLextutlizaçào de cenas


familiar~ pt'O\'OC:mdo csuu.oh:unemo e dificuh.:sando dclibcrud:imcntc
uma lmt.rprcuçio unh•oa. Todo o filme é permeado de momagco$
não está a serviço de um exibicionismo fonnali$ta. como foi oon.siderndo pamkla5, que comoidam o csp<C1lldor • nofl<tir sobre o \'Incuto ickológiro
ptb. D'Wor parte dos cooccmporincos de Vcnov.1• Tampouco :a 11C,g2çio t:ntrc ~ <"\o-cntos rcbciomdos n:1 td:a: o oncgrnfis~ a moru;adora e o
da ll2trativa linêar pnmcada neste 6Lnc pode ser atribuída a urna lógia pro,caorustl oomp:u><los aos dcnws ~ o : s ; os hábiros butgu,scs e
onírica ou confundida com a. "escrita 2utomática" do surrealismo, o modo de ,.;Ja prolcwio: os rumos meuopolitaOOScas ari\'idades hum...,,.._
tr.mspost2 pa.rn o cincnu por $CtOres da. vanguuda. france"-. 1• Outrn tC:cnia. privilt:gwl2 por Vcrtov e Svüova. ~ a da mont2getn
Em O Hol'ftfm da CállfMI, 1 técnica é sempre u!iada cm rdaçào diitrup1iva-a5sociath•a, u cm que uma imagcm aparentemente
direta com os aspectos lt":m2ticos, que se sobl't'pôcm e se imcr~rel:adon.1.m incongruente é insCQda cm uma seqüência, antecipando um tema.
20 longo do filme: a velha e a nova sociedade, diferenças de: classe, estabelecendo uma ligação com :algum conteúdo \1.0tcrior ou
rccnologb e progresso soaal, anc e lrab:tlho. esfera pública e esfera simplesmente c:$tabekcendo uma rdaçio metafórica com aquilu que
pnv:a<U, cinc:ma de: entrctroimc:nto e "cincnu.~vcrdadc". RccuJ"$OS de está sendo mostndo. O cspccc,.dor é c:ntio motMdo !I reagir a esta
cimc:n. de b1bon1tório e principalmente de moncagcm comribt1cm para pcrrurb.tção. descnadeando processos mentais associJ.ávos caputs de
cruu- oovu l,g,Ç<ks lógic:I!. Ao im..- de aliment:U acont<mpbçio p,s,;,,.
11Por l'umplo. lf.-r:me111. comdrn cr,,c \'aro-.· oJIOU I dmm lttitt ..~ e pan de uma história que parece com,,u•sc por si própri~ o filme impõc..sc
d»:tn~&s form.Jbw e. du'lb. de dmm IIMtrYld~'". ..Ponde Quadro'", (19!9'). l::.m
como discurso construido e rcconsuuido pelo cspcccador :u.ravês de

---
~ . 1990: 45, A ..!'irnuçlQ anh1 unu. dit.utNlo pobt1n f t ~ l t ~ c .
cm um con10ro em que' • tmdêoob artuotllt- • fur:ffllmlw"' Cfllft a;i:igJnwz• pclat. au,o. um processo incenso de intclccçio baseado no distanciamcmo oídco.
" L'• a... A.w. (l.uif Bunud c Slh..b D.J.). ~ no moinu a,w que e>,,_ M. A ,cqÜÔlcU final, n,. qual o plano próximo do, oU,os da montado,.
a-.,., irnpõc,~1e c o m o ~ dt \llffl Qfl(CN, ~tttdiua. cm que 1:1 fflfflloru Tffllat Oi • pontua unu montagem acelerada d~ planos vistos tlntcrionniemc (178
,-i:xin ~ wm ain'ffll pe,nndo-úlu d. 1... é companda • \Ili\& uv.U.. co,tando o
ollO de tlfflà ffhllhn) ...,._lffl'I à tJq r ~ 1/' ~ <Ot.lU V • PETIUC,. 191n: 95 107.
180 Espelho Partido Antiilusionismo e Auto-Reflexividade 181

cortes em pouco mais de um minuto de projeção), exacerba quase ao Vertov, o filme nunca é o reflexo do mundo, mas a sua representação,
limite da abstração o processo de transformação do registro documental te-construção significante, pretexto para um exercício de cine-escritura
dos fatos em estrutura formal significante, constituindo-se em um dos que praticamente se confunde com uma pedagogia visual. Um projeto
pontos altos da aplicação cinematográfica dos conceitos formalistas e essencialmente antirealista e antiilusionista, que não se limita a significar
construtivistas. o mundo, quer também aprender e ao mesmo tempo ensinar a ver,
pesquisando juntamente com o espectador os meios de conhecimento
A variedade de experiências perceptivas em O Homem da Câmera é e de "decifração comunista do mundo". Daí o caráter epistemológico
resumida no final, que aponta para as várias naturezas de imagens do projeto vertoviano, apontado por Annette Michelson:
projetadas, para os diferentes métodos de subverter a ilusão de realidade
na tela, para o aspecto técnico da criação cinematográfica antes, durante Indo além de uma simples exposição de técnicas fílmicas, Vertov
e depois da filmagem e para os múltiplos níveis de interpretação visual abandonou o didatismo pela maiêutica, tornando visível a causalidade
· , fj 19
inerentes ao processo cmematogra ico. (...) Quando assistimos O Homem da Câmera nós devemos ver, neste
olho refletido pela objetiva da câmera, Vertov delimitando, pela
O Homem da Câmera é um ponto de inflexão fundamental na obra subversão sistemática das certezas da ilusão, um certo patamar no
de Vertov, provavelmente o filme que torna mais patente a sua concepção desenvolvimento da consciência. "Tornando a incerteza mais certa",
cinematográfica, segundo o qual a filmagem de improviso é a condição ele convida a câmera a atingir a idade da razão, fazendo no mesmo
imprescindível de autenticidade das células do cinema-olho. Condição golpe, por um amplo movimento cartesiano, o homem da câmera passar
necessária, porém não suficiente para atingir os objetivos maiores de da magia à epistemologia. 21
um cinema-verdade. É preciso ir além da "vida como ela aparece" em
cada plano, construindo, através de técnicas especificamente Vertov não somente foi um pioneiro na pesquisa sistemática de
cinematográficas, a "matemática superior dos fatos", 20 as relações uma "sintaxe" cinematográfica especificamente documentária, como
complexas capazes de mostrar "a vida como ela é", tornando visível o também imprimiu a esta pesquisa um caráter antiilusionista e epistemo-
invisível. Mais do que isto, é fundamental que este percurso seja lógico, que demoraria mais de trinta anos para ser reconhecido. Por sua
vivenciado ativamente pelo espectador, tornado consciente dos artifícios noção de prática cinematográfica como trabalho produtivo (o cineasta
de linguagem que estruturam o processo de conhecimento. Na obra de como operário) e pela concepção de um cinema que desvenda seu
19
próprio processo de fabricação, Vertov tornou-se uma das figuras centrais
Idem: 112 (Grifos do autor).
'º Vertov afirmou que O Homem da Câmera "não é senão a soma dos fatos fixados sobre a da crítica desconstrutiva que, no final da década de 1960, questionou o
película ou, se quiser, não só a soma, mas também o produto, a 'matemática superior' dos fatos.
Cada termo e cada fator é um pequeno documento particular. A montagem de uns documentos
modelo narrativo clássico. Esta recuperação tardia de Vertov havia
com os outros é calculada de modo que, por um lado, só resultem no filme encadeamentos começado alguns anos antes, com a retomada das teses do cinema-olho
visuais; por outro lado, que os encadeamentos não peçam letreiros; e, em te~ceiro_lugar, e~fi~,
de modo que a soma geral dos encadeamentos se apresente como um rodo orgaruco rndissoluvel •
e a apropriação do termo cinema-verdade por Jean Rouch e Edgar Morin.
"J,'Homme à la Caméra". Em VERTOV, 1972: 118. 21
MICHELSON, em NOGUEZ, 1978: 310.
182 Espelho Partido
Antiilusionismo e Auto-Reflexividade 183

Mas, naquele momento, Vertov era celebrado principalmente por sua considerada compatível com o discurso sóbrio acerca do mundo que
antevisão de um equipamento leve e sincrônico para filmagem fora dos caracterizou a tradição do documentário. No modo observacional em
estúdios. O trabalho prático e teórico de Vertov no âmbito da auto- '
que o ideal do cineasta era transformar-se em "uma mosca na parede",
referência e da auto-reflexividade constitui um marco histórico chamar a atenção para a presença da equipe era exatamente o oposto
fundamental no domínio do documentário. E ainda está por ser do que se pretendia e só poderia ser considerado um desvio narcisista.
devidamente assimilado. No modo interativo, o antiilusionismo se manifesta de forma
De um modo geral, o antiilusionismo nunca foi uma tendência colateral, apesar da contribuição inaugural de Chronique d'un Été. Um
predominante no cinema. E as estratégias modernistas de distanciamento dos fatores que marcou a novidade radical deste filme foi a liberdade
crítico foram mais combatidas do que toleradas pela instituição. Em um com que os equípamentos de filmagem e os membros da equipe eram
contexto de plena afirmação da modernidade, o cinematógrafo surgiu exibidos. A permanente revelação dos produtores e a exposição do
no final do século XIX como uma forma de representação que trazia de processo de produção culminam na reavaliação crítica dos copiões por
nascença a marca da fragmentação e da descontinuidade. Seus recortes parte dos personagens e na seqüência final, quando Rouch e Morin
inusitados de imagens familiares, seus saltos no tempo e suas montagens discutem o filme em vias de se fazer. Fundava-se ali a tendência de
espaciais continham um forte potencial de rompimento com as categorias deslocar o documentarista dos bastidores para a superfície do filme,
artísticas tradicionais. Um potencial que o cinema desde o primeiro substituindo a voz ef/ incorpórea por um corpo humano visível que
momento desprezou, ao inserir-se como atração subalterna no teatro interage com os atores sociais.
de variedades. E que viria a desprezar muito mais, ao mimetizar-se com Como sabemos, a televisão transformou este recurso no
o romance realista e com o teatro naturalista, para afinal transformar-se dispositivo privilegiado da reportagem, garantia da "verdade", marca
em espetáculo industrial de massa. Os setores que resistiram a este da presença do repórter na "cena viva" dos acontecimentos da atualidade.
processo de domesticação foram rotulados de "vanguarda" e A mistificação do "documento autêntico" pelo telejornalismo tornou
considerados uma dissidência marginal do tronco hegemônico - o cada vez mais evidente a insuficiência da exibição das "condições da
cinema clássico ilusionista. O chamado cinema moderno, que se •~ • "23 • • ·
expenenc1a para se atingir uma dimensão verdadeiramente crítica do
desenvolveu no pós-Guerra, afinal recuperou a mais autêntica vocação documentário. Tanto quanto na ficção, mostrar os aparelhos com que
modernista do cinema. Mas o que continua predominando em escala se faz o filme ou permitir que o realizador seja visto podem se transformar
planetária é o cinema-espetáculo, "catalisador das aspirações miméticas em marcas de estilo como outras quaisquer, conservando ou mesmo
abandonadas pelas demais artes". 22 reforçando um modo de representação baseado no ilusionismo.
O documentário é um domínio do cinema onde, historicamente, A auto-reflexividade que caracteriza certos filmes documentários
esta negligência à vocação modernista manifestou-se com especial recentes constitui uma busca de alternativas às insuficiências e às
intensidade. A atitude dúbia do artista auto-reflexivo, que se compraz limitações identificadas nos diversos modos de representação em lidar
em criar a ilusão para no momento seguinte destruí-la, raramente foi criticamente com o ilusionismo cinematográfico. No plano cultural
22 23
STAM, 1981: 24. HOVEYDA, 1961: 37.
184 Espelho Partido Antiilusionismo e Auto-Reflexividade 185

mais geral, está vinculada a uma demanda de conhecimento público daquilo encontrar estas manifestações críticas. Em filmes que perfuram a couraça
que está por trás das aparências na esfera de consumo de bens simbólicos. institucional que manteve o documentário protegido "das tendências
do século XX à dúvida epistemológica, incerteza, ceticismo, ironia e
Em um nível mais profundo, nós estamos nos afastando da noção relativismo existencial que propulsionaram o modernismo; e da varredura
positivista de que o sentido reside no mundo e os seres humanos devem ainda mais indiferente do pós-modernismo". 26
se esforçar para descobrir a realidade inerente e objetivamente verdadeira A emergência de um modo de representação necessariamente
das coisas. Esta filosofia positivista levou muitos cientistas sociais, bem coloca sob uma nova perspectiva questões de estilo, estratégia, estrutura,
como documentaristas e jornalistas, a esconderem-se e a esconder seus convenções, expectativas e efeitos que caracterizam o regime discursivo
métodos a pretexto de objetividade (...). Nós estamos começando a do documentário. O modo reflexivo traz à tona estas questões,
reconhecer que o ser humano constrói e impõe sentido ao mundo. Nós problematizando-as explicitamente no texto do filme. E assim promove
criamos a ordem. Não a descobrimos. Nós organizamos uma realidade uma renovação formal, ao mesmo tempo em que responde a uma
que é significante para nós. É em torno destas organizações da realidade demanda política. O sentido calvinista de missão do griersonismo, ainda
que cineastas constróem filmes. 24 hoje remanescente em grande parte dos documentários, se baseia na
premissa de que a mudança social decorre de um trabalho de persuasão
Muito embora as premissas positivistas há mais de um século não realizado por uma elite esclarecida. 27 O esvaziamento dos projetos
prevaleçam no campo científico e filosófico, as palavras de Ruby se iluministas de verdade e de razão vem diluindo este pressuposto, bem
adéquam perfeitamente ao domínio do documentário. Pois, como já como o papel hierárquico que as vanguardas se auto-atribuíam. Os
vimos, seu regime discursivo instituiu-se sobre as bases do griersonismo, aspectos políticos da representação se redimensionam: veicular
marginalizou a perspectiva epistemológica vertoviana e teve desdobra- conteúdos nobres através de práticas ilusionistas não basta mais para
mentos objetivistas que restauraram certos princípios nitidamente positi- promover a versão contemporânea de uma cidadania madura, como
vistas de uma ideologia documental das origens do cinema. queria Grierson. "O documentário reduzido a um mero veículo de fatos
A alegação de que o documentário é dotado de uma "essência pode ser usado para defender uma causa, mas não constitui uma em si
realista" e proporciona um acesso direto à "realidade" costuma estar mesmo." 28 O sentido político, antes atribuído às finalidades, contamina
presente em filigrana nos projetos dos filmes e no discurso dos cineastas, os meios, desloca-se para o terreno da "linguagem".
desde a captação de recursos até a campanha de lançamento para o "Acima de tudo nós talvez devamos enfatizar que os cineastas no documentário são as vítimas
público. Ainda que boa parte dos realizadores reconheça teoricamente de uma retórica que inexoravelmente herdaram, mas que, tanto na tela quanto fora dela, não
têm se esforçado o suficiente para repudiar". \VINSTON, 1978/79, em ROSENTHAL, 1988: 33.
a fragilidade deste mito, só recentemente esta consciência começou a 26
NICHOLS, 1991: 63.
27
ser levada às últimas conseqüências. 25 É no modo reflexivo que vamos "O filme documentário baseou-se na necessidade da classe média ocidental em explorar,
documentar, explicar, compreender e, conseqüentemente, controlar simbolicamente o mundo.
Tem sido aquilo que 'nós' fazemos para 'eles'. 'Eles', no caso, geralmente têm sido os pobres, os
24
RCBY, em ROSENTHAL, 1988: 66-67. despossuídos, os inferiorizados e os politicamente suprimidos e oprimidos." RUBY, em
25
Em um texto de 1978, sintomaticamente intitulado "Documentário: Acho que Estamos em ROSENTHAL, 1988: 71.
28
Apuros", Brian Winston identificava certas incoerências na comunidade dos documentaristas: MINH-HA, em RENOV, 1993: 99.
186 Espelho Partido

Aqueles que trabalham com signos são convocados a examinar 10 A Representação Problemática
criticamente os seus instrumentos de persuasão. "A representação da
realidade tem que ser contestada com a realidade da representação." 29
Esta perspectiva retoma aspectos importantes da linhagem epistemo-
lógica do cinema-olho e da teoria e prática da desconstrução para ampliar
a presença do documentário em uma arena de fundamental importância
na sociedade contemporânea: a política da semiótica e da comunicação.
Um número crescente de documentaristas parece fazer coro à
personagem de Godard em Le Cai Savoir (1968): "Eu quero aprender, Em seus primeiros ensaios sobre a emergência de manifestações
ensinar a mim mesma, a todos, como voltar contra o inimigo aquela auto-reflexivas no domínio do documentário, tanto Bill Nichols quanto
arma com a qual ele nos ataca - a linguagem". 30 Jay Ruby apontam como determinante a contribuição de cineastas
O espelho que um dia pretendeu refletir o "mundo real" agora etnógrafos. Nichols sublinha que não foi no ambiente de um cinema
gira sobre seu próprio eixo para refletir os mecanismos usados na politicamente engajado que surgiram as inovações: "Ao contrário, foi o
representação do mundo. reduzido número de cineastas etnógrafos como David e Judith
MacDougall, Timothy Asch e John Marshall que, em suas reflexões sobre
métodos científicos e comunicação visual, fizeram as experiências mais
provocadoras" .1
Em um texto anterior, Ruby havia relacionado o surgimento (a
seu ver, acidental) de qualidades auto-reflexivas nos filmes não-ficcionais
à necessidade dos documentaristas encontrarem respostas para
problemas similares àqueles com que se defrontavam etnógrafos e outros
pesquisadores de campo, tais como: as modificações que o equipamento
e a equipe técnica produziam sobre os eventos, a invasão da privacidade,
a relação entre a expectativa de objetividade e a dimensão subjetiva do
realizador, as implicações ideológicas do documentário, e as responsa-
bilidades do cineasta frente ao público. 2
No Brasil, até o início dos anos 1980, não era comum encontrar
no corpo dos documentários a problematização das questões da sua
realização. O cinema etnográfico e sociológico praticado no Brasil foi
29
NICHOLS, 1991: 63. 1
NICHOLS, 1983, em ROSENTHAL, 1988: 60.
'º Citado por XAVIER, 1984a: 137. 2
RUBY, em ROSENTHAL, 1988: 71.
188 Espelho Partido A Representação Problemática 189

um dos segmentos que mais sofreu a "repressão ao domínio formal e Mas, provisoriamente, até que se produza uma "relação de
expressivo" 3 vigente no domínio do documentário desde que o impulso fecundação" entre filme e objeto, alternativa crítica à falácia da
vanguardista dos anos 1930 foi abandonado. Com raras exceções, o reprodução da realidade.
enfrentamento das questões semióticas era subjugado às prioridades da
hora: registrar os eventos da cultura popular, preservar a memória Sem recusar o lado fotográfico de captação, mas fiscalizando-o
brasileira, defender as vítimas sociais e denunciar as injustiças. Debater rigorosamente, poderiam surgir, num período de transição, espécies de
o filme, o mais das vezes, era debater o seu objeto. Questões ligadas à antidocumentários, que se relacionariam com seu tema de um modo
representação pouco avançavam além das qualidades da fotografia e mais fluido e constituiriam objetos em aberto para o espectador
das opções de montagem. As manifestações auto-reflexivas foram manipular e refletir. O antidocumentário procuraria se deixar fecundar
acidentais e descontínuas. pelo tema, constituindo-se numa combinação livre de seus elementos.6
Entre as exceções figura a obra de Arthur Omar, realizador que
empreendeu um sistemático e diversificado questionamento do ilusio- Um destes "objetos em aberto" foi o filme Congo (1972). O título
nismo e do realismo no documentário. Seu trabalho não é facilmente faz supor mais um documentário sobre cultura popular, tão em voga na
classificável. Já foi associado a um "cinema de artista", mas resultou época: a manifestação folclórica conhecida como congada. Mas não se
algo discrepante entre seus supostos pares. 4 Não se autodenominava mostra nenhuma congada neste curta-metragem. Após o título, a tela
documentarista, mas tinha o documentário como campo de referência permanece em branco e, em seguida, aparece o letreiro: "um filme em
privilegiado, pela via da negação, ou antes, da problematização. Este branco". No lugar da reprodução da congada enquanto espetáculo
viés é explicitado em um texto que já traz no título todo um programa: cinematográfico, temos uma "meditação" sobre o tema, constituída por
"O Antidocumentário, Provisoriamente". 5 Não se trata de fazer docu- uma enxurrada de palavras escritas, fotos, desenhos, tela branca, tela
mentários, tampouco de trabalhar totalmente fora deste domínio; e sim escura e muito poucas imagens em movimento - fragmentos da vida
de realizar objetos estéticos que se oponham a seus esquemas tradicionais. rural, um monte de feno, um pátio de fazenda onde nada se passa, o
coito de dois cachorros ...
3
"O fato histórico de uma repressão do domínio formal ou expressivo na tradição do
Quase 80% dos planos de Congo contêm letreiros, tais como
documentário é inevitável. Ta1 circunstância decorre, eu creio, mais de uma institucionalização "Angola contra hospício", "tese contra antítese", "mímesis", "Gil
da oposição arte/ ciência do que de uma limitação inerente." RENOV, 1993: 33.
4 Vicente", "1618 + 1972", "kinoglaz" ... Uma estrutura enigmática, de
Omar foi incluído em Quase Cinema: Cinema de Artista no Brasil, 1979 / 80, de Ligia Canongia,
para quem "o cinema de artista talvez pudesse ser compreendido como uma soma de duas difícil leitura, que propõe ao espectador um trabalho de concatenação,
linguagens específicas, a do cinema propriamente dito e a das artes plásticas, que, pela fusão dos
em que nada é garantido.
dois media, acabaria por se configurar em uma terceira linguagem, particular e autônoma". Na
apresentação de Omar, a autora ressalva a sua trajetória excepcional: enquanto todos os demais Se falta o espetáculo-congada oferecido à contemplação passiva,
são artistas plásticos que fizeram eventuais incursões fílrnicas, "o caso de Arthur Omar não
não faltam informações referentes à congada, espalhadas pelo corpo
representa exatamente o inverso do percurso, mas situa-se em um plano diferente, já que, de
um modo geral, seu trabalho sempre esteve fortemente vinculado ao cinema". CANONGIA, do filme. Informações que são todas reelaborações do fenômeno-
1981: 8, 37. 6
5
OMAR, 1978. Idem: 8.
190 E.,p<lbo Pwodo A lkpttkntaÇ-ic.1 Pwbê:miua 191

cmpirico-cong:ubl, m:ones de discursos lingiiístico5, icónicos, gr,lfico< No lugar de tentAr rnimeàzi.M~c com seu referente. utópica reprodução
São principalmente pal:n"l"1l$. formuladas pelo cineasta ou extraíd:a.s de de uma manifestação cb. cultura popubr, ÚJ"W7 a.firma seu ser i.rrcdutívcl.:
livros. mas também fo1ogr.1.flas1 panitu.ra.s musicais. enfim. signos um objc:lO-filmc. ''Objeto cm 11bcno". "filme m1 bnJ\co''. A esu·:négia
ato.nüzados. Jnfornuçôc.'$ Dão conc:u:crudas de fonm rui.rr.uiv:a. unívoca. de Omar em recusar 11 ºdocwnenmçào" converge pano modo rc:0alvo:
mu d15posw calcidoscopicamt:nte, oferecendo ;w espectador rnuldplas "na sua Forma ma.l.s parzdigmitica o documcntirio rcílcXIVO induz o
entndas e infiniw conexões tigru6earnes. espectador a uma consciCnda mais c:.lcv:1da de suas relaç:~:s com o
Qual • cong,da possível ao documentário que quer presCI""-' 2S texto e da rc1açio problcm:itica entre o texto e 11:quiJo que
r.úzc, nacioruú5, ,enio um simub.cro de cong•do. reprodução parcial de ccprcsenta". ~
suas apuêncw vi$fvcis e sudivós_ uma intetprecação dcneg-.ada, mvestida A pergunta "como ttprcscntar adequadamente i conga.da?". o
dr reprodução fiel da cong,da "'real"? N-sa conmcorrem~ Ormr fornc-cc: ône,.s~ que optr.tssc com os códigos do modo cxpositi"\'Q responderia
a mtcrpreuçio que se confcsu, como tal, aécntu2.ndo 110 c.xucmo a com ú.mgt-ns e sons ..,\lcêndoos" de uma co1igada parucufar. jumameme
com a sua intcrpreu1ção vctbal gcneralixame do fcnôme-.no COJ\gtda.
cm \'O~ off. No modo obscrwcional. imagens se-mdhãntcs seriam
agcnaad.u de form2 trnrl$puc:otc, como que con\'Klftndo o cspccudor
historiografia primitffa a assistir a cong-acb como se estivesse lá, c:-m campo, sem acrcsccnw
amtra 11enbwn ckmento externo IIOS matc:mis "capl:l.dos ao VÍ\'O", O realizador
tempo pnóno que opt2sse pelo modo intcratnv p:u-dciparia do C\'Ctuo, provoca.ri,. os
p.r.uica.mcs dá cong-ada a ~ . os cntrcví..uari:a. NO!i casos híbridos, os
mllis freqüentes, estas convenções sma.m miJnu11.das conforme a!Ç
conveniências crui.ccriais e narr:aavas. sempre procurando sati:sfa.zer o
iocompJctudc de ioda e qualquer iotcrprctação, sua. impossível espca:ador na sua cxpcctattw de conhecer a cong.ada.
congruência com o ttfcrcmc. O que de nos <li são fragmentos do Na pcrspec1i\'a rcílexiv:1 radical assumida por Omar. este
conhecimento culrunal acumulado sobre o objcto-cont:i,-:ad:a, ou antes, conhl"cimcnto será sempre ilusório. Logo, é prcdso romper com
divenas modalidades de co.nttruç:io deste objeto segundo as diícrcntc:s uma abord2.ge:m fcnomenol6gic2. que fornece unagcns sonoras e
disciplinas e ''linguagens" que dde se aproprb..ram ccmaticamcmc: a visu:iJS como um s1muh1cro d.t experiência anpirica1 como "'fatias
~squisa folclórica., a música, 2 íocogra6a. da realidade:''. Em CowJ.111, este corte se obtem tomando opaet. a "janela
Ao invés de constituir:sc cm mais urn destes produros da a.ndtistm aberra pua o mundo", rcdu.tindo o filme :â sua realidade puramente
cultural, que tcnt2 assi.tnil.ar a lógica de seu objeto r ofereca-se ao filrnie2, atribuindo assim ao espectador o único cstacum que lhe a.be.
consumo no lugar dele, a c:stn.tégia do filme coosisrc cm rcco.rci-lo e o de consumidor de um tecido fcho de signos, o artefato•filmc.
oícrcccr ao cspcçctdor :a diversidade de seus OKOS, uma malha feita de
signos dhren;os, S<,brcrnf:uinndo assim o seu cari.{er punmentc re:xt\.W. 1
:,,;JCltOL'\ 1991: li').
192 Espelho Partido A Representação Problemática 193

projeção luminosa na tela da sala escura. Ao dispor seus materiais A frustração do espectador é um dado intencional de Congo, uma
como peças de um texto, tirando o espectador da "passividade de tática para descentrá-lo da posição de consumidor passivo de significados
um olho indiferente" 8 e forçando-o a uma atividade produtora de prontos e acabados. Em Congo, a sonegação da representação não é um
sentido, Omar partilha com ele os dilemas epistemológicos, éticos e recurso reflexivo meramente agressivo, mas um questionamento dos
estéticos da representação. limites e das possibilidades da própria representação. Sonegação, aliás,
que permanece implícita, convidando o espectador a seguir as pistas
O modo reflexivo enfatiza a dúvida epistemológica. Sublinha a fornecidas pelo filme para construir o objeto que não é fornecido
intervenção deformante do dispositivo cinematográfico no processo gratuitamente para seu deleite. Se o convite é aceito, a dimensão agressiva
de representação. O saber é não apenas localizado, mas ele mesmo sujeito se minimiza, em benefício da experiência lúdica e didática.
a questionamento. O saber é supersituado, colocado (...) em relação Congo se inscreve na perspectiva vertoviana inaugurada com O
com questões fundamentais sobre a natureza do mundo, a estrutura e a Homem da Câmera. A mesma profusão de imagens, desafiando a leitura
função da linguagem, a autenticidade do som e da imagem documentais, no ritmo normal de projeção, a mesma repetição, fragmentação e
as dificuldades da verificação e o estatuto da evidência empírica na cultura descontinuidade, a mesma montagem disruptiva-associativa, a mesma
ocidental. 9 intenção pedagógica traduzida em relações audiovisuais complexas. Congo
alinha-se a um cinema desconstrutivo, que procura "percorrer o caminho
Se alguns documentários auto-reflexivos recentes enfatizam o que leva até à linguagem", 11 ao invés de pretender a tingi-la
caráter textual do filme, de modo que o texto se sobreponha ao objeto instantaneamente através dos sortilégios da imagem analógica.
da representação, impondo-se como mediação em lugar de transparência, Arthur Omar trabalha suas imagens visuais e sonoras não como
em 1972 Congo já dissolvia o objeto no texto, pulverizando-o ao invés réplicas do real, mas como matérias de expressão cuja integridade não é
de representá-lo. A platéia permanece em pura presença do texto, do poupada, mas violada e esgarçada, para proporcionar novas
discurso fílmico que não se quer veículo de comunicação de uma possibilidades significantes. Em Tesouro da Juventude (1977), no lugar de
experiência acontecida alhures entre o cineasta e seu objeto, mas que é, manter a platéia em estado de ilusão referencial, Omar violenta o
em si mesmo, a experiência fílmica localizada, em tempo presente, princípio mais elementar desta ilusão: a base material da imagem
irredutível, na sala de cinema. "Em realidade, esta linguagem não quer fotográfica.
perder a sua opacidade, ela oferece obstáculos e resistência à O filme é composto de imagens preexistentes, "planos
compreensão e à interpretação: ceder completamente às investidas do contratipados em branco e preto, reenquadrados em truca, alto contraste,
• para e1a, negar-se. "10
representante sena, intensa granulação. Retirados de documentários etnográficos feitos pelo
mundo afora, colhidos meio ao acaso". 12 Imagens de avalanches, lagartos,
8
OMAR, 1978: 7. multidão vibrando em um estádio, mongóis em cavalgada no deserto,
9
NICHOLS, 1991: 61.
10
BERNARDET, 1985: 97. A análise que Bernardet faz de Congo, contendo a transcrição de li OMAR, 1978: 18.
12
diversos letreiros do filme, serviu-nos como referência. OMAR, 1980: 42.
194 Espelho Partido r
'
1
'
A Representação Problemática 195

árabes em luta corporal, caveiras, que são contrastadas e hiper-ampliadas, diegético do espectador, para logo devolvê-lo a esta sensação de pura
deixando exposta a sua estrutura granular. Ao subverter assim a natureza fruição audiovisual, no limite entre o figurativo e o abstrato.
icônica da imagem, a representação fica mais uma vez suspensa, O que está em jogo aqui não é apenas o deslocamento do plano
subjugada à materialidade microfísica da fotografia. Trata-se de uma referencial para o plano representacional, comum a tantos documentários
experiência raríssima, nunca praticada pelo modo de representação auto-reflexivos que colocam mais ênfase na forma como se fala do
hegemônico, porque implica o seu segredo mais íntimo. mundo histórico do que naquilo que é mostrado e dito sobre ele. Tesouro
O princípio que rege Tesouro da Juventude é a redução das imagens da Juventude bloqueia a narratividade, não estabelece conexões referenciais
ao denominador comum que decorre de terem sido captadas em câmera nem tece comentários sobre o mundo histórico - brinca com esta
de cinema e estarem sendo projetadas luminosamente em uma tela - indizibilidade já no letreiro que se segue ao título, anunciando um "tema"
sua pulsação granular. que, de tão pretensioso, tende ironicamente à anulação: "um filme sobre
tudo o que existe e muitas outras coisas".
Este filme reduz cada coisa registrada no mundo real, cada coisa dife- A proposta deste filme é a de retrabalhar a imagem, fazer dela
rente e particular em termos de substância compositiva, a um mesmo uma estrutura formal quase dissoluta, revelada como mediação entre
tipo de ser, totalmente diverso daquele que produziu a imagem, pois é um objeto fenomenal supostamente representado e o espectador de
agora um ser feito de uma matéria que só existe no interior do filme e cinema, que precisa esforçar-se para recompor o significado mais
por causa do filme: um ser feito de grãozinhos. 13 elementar, a denotação ameaçada de perder-se na pura vibração luminosa.
Trata-se de um método original de questionar o realismo e o caráter
O espectador é novamente frustrado em sua fome de espetáculo. documental da imagem fotográfica, apontando para a distância
Aqui, a tela não é mais a superfície plana bidimensional que se nega, em incomensurável que existe entre a experiência empírica e a experiência-
nome da ilusão de acesso transparente a um mundo imaginário, como cinema. Sim, porque chegar mais perto da imagem causa o efeito oposto
em Congo. Ela volta a se fazer opaca, mas agora para ser assumida como àquele que sentimos quanto nos aproximamos de um objeto fenomenal.
o lugar onde assistiremos à decomposição da base física da imagem. Ao invés de termos acesso a seus aspectos epidérmicos, sua textura
Por vezes, um arremedo de narrativa parece se esboçar: duas breves física, vamos progressivamente perdendo o contato ilusório que
irrupções de uma voz o.ff, 14 trechos de dois filmes de Mélies, 15 um deles mantínhamos com ele; a referência se perde e o que resta é a falsa textura
acompanhado de um fragmento sonoro de radionovela, interrompido da imagem sobre a tela, uma espécie de ilusão de óptica. 16 O mesmo
no auge do suspense. Promessas vãs, que só fazem acentuar o apetite efeito perceptivo se dá quando ampliamos e contrastamos as imagens
cinematográficas: o padrão granular que as une se torna mais forte do
13
Idem: 43.
14
"O que é a harmonia? Segundo Mussolini, a harmonia é harmonia, a cacofonia é un'altra cosa"
e "Onde começa o desejo? O desejo não tem começo." 16
O protagonista de Blow-up (Michelangelo Antonioni, 1967) já havia mostrado a ilusão que
15
V01age dans la Lune (1902) e L'Homme à la Tête de Caouthchouc (1901). Omar presta, deste encerra esta composição granular do fotograma: quanto mais "perto do real" queremos chegar,
modo, sua homenagem a um artista da trucagem, ilusionista convicto dos primeiros tem- pela ampliação desmesurada da imagem fotográfica, mais o objeto se dissolve aos nossos olhos,
pos do cinema.
deixando no seu lugar uma multidão de grãozinhos que abole toda figuração.
196 Espelho Partido A Representação Problemática 197

que a figuração que as distingue, esvaziando assim a suposta dimensão O traço fundamental destas imagens é a forma como foram filmadas:
ontológica da fotografia, base do mito de sua essência realista. iluminação estroboscópica, no lugar de fontes estáveis de luz. O efeito
A pesquisa desconstrutivista desenvolvida por Arthur Omar nos obtido é uma cintilação, em diferentes freqüências, que provoca no
anos 1970 baseava-se em uma quebra das expectativas de consumo do espectador uma permanente excitação sensorial.
espetáculo cinematográfico, minimizando a tensão entre filme e objeto O antiilusionismo deste filme atinge a infra-estrutura da impressão
e maximizando a tensão entre filme e espectador, de modo a intensificar de realidade no cinema, aquilo que essencialmente deve passar
a experiência que se processa na sala de projeção. Em Congo, a desapercebido: as condições materiais de projeção luminosa da imagem
desconstrução narrativa é obtida através de uma relação inusitada entre e o seu regime perceptivo. Vocês parece retomar certos princípios e
o que é mostrado e o que é sonegado. O que está em jogo, então, é o algumas técnicas do cinema-olho, para aprofundar seus efeitos. A
tipo de imagem, sua relação com o hipotético tema e sua forma de separação entre as condições da percepção humana e as virtualidades
organização significante. Em Tesouro da Juventude, trata-se da do cinema torna-se gritante, agride a visão e impossibilita uma
desestruturação física da própria imagem, acentuada pelo uso de efeitos contemplação passiva e relaxada.
como a repetição circular de planos, a alteração do movimento normal Sabemos que o dispositivo cinematográfico baseia-se em uma
e a estroboscopia. Em Vocês (1979), alguns destes mesmos efeitos estão "ilusão perfeita", pois nossa percepção de movimento aparente,
a serviço da desestabilização da percepção da imagem. Diferente forma produzida pela projeção sucessiva de imagens fixas, é semelhante à
de sonegação, que desce às bases fisiológicas do sistema visual do percepção do movimento em situação real.17 Esta ilusão foi conquistada
espectador para subverter a sua relação padronizada com o dispositivo através de sucessivos aperfeiçoamentos óptico-mecânicos nos aparelhos
cinematográfico. de filmagem e projeção. Um dos principais fenômenos que teve que ser
Em Vocês, o título interpelativo já indica uma relação excepcional contornado foi o da cintilação, característico das emissões periódicas
entre filme e platéia, separando estas duas instâncias que o cinema- de luz a baixa freqüência, como nos filmes mudos que eram projetados
espetáculo procura ilusoriamente integrar. Intercaladamente aos letreiros à razão de 16 fotogramas por segundo expostos uma única vez. O
de apresentação surgem imagens de um olho humano que ocupa toda a procedimento de expor três vezes cada quadro, reduzindo sensivelmente
tela: olho que mira fixo, que se move procurando e que se fecha. Variação a duração de cada emissão luminosa que é intercalada com um período
de comportamento ocular que sugere reações diferenciadas aos estímulos de obscuridade, proporcionou a sensação de uma luz contínua e
visuais. A cada aparição do olho, a música é interrompida por um ruído mascarou o desagradável efeito da cintilaçào. 18 Com isto, a instituição
de vidros e objetos que se quebram, conotando risco, acidente, cinematográfica conquistou uma condição de conforto visual que suprimia
instabilidade, anunciando o que virá. mais uma barreira ao centramento do espectador e à sua viagem imóvel.
O filme nos mostra imagens de um homem portando uma
metralhadora, atirando repetidamente, em várias direções, contra alvos 17
AUMONT, 1990: 49-52.
não identificados; erguendo a "arma" em sinal de vitória, olhando fixo 18
Com a elevação de velocidade de projeção, exigência da reprodução sonora, e a conseqüente
reprodução de 24 fotogramas por segundo, o obturador do projetor expõe apenas duas vezes
para a câmera, e ainda um cano que "cospe" fogo e faíscas giratórias.
cada fotograma, o suficiente para mascarar o efeito de cintilação. Ver ACMONT, 1990: 35-36.
199 l!,pdho P:lmdo A Rq,racnti1,Çio l>robkm.iOCI. l 99

Ao re.staur:u a dnúlaçiio, de produçi,o significante no campo do cinema. Est2 auto-refcrcocil]jdade


Omar desvela 2 :uci6cialid:11dc dos iog-aw freqüentemente com o efeito de 01/ri1um1. criando jus~posições
apuclhos de buc do cincm.1. e o inc,perndas que Í1l.zÍ:un o f:unilwpa= esmioho. porefciros de mont>g<m
c.uátcl' dcscooúnuo da imagem e pclo uso :\ndcoo,.--eociooal de 50flS atl.llógicos e sintetizados. Todas es1:1..,;
6lmia.-dc,continuidade que • ins• pcilia.s rorn-c,gi:,m para o projeto global de "regru metodic:uneme o
tituiçâo :aprendeu tio bem a ocuJw tmbalho de desaniculaçio cb llnl,,u:,gcm do documcntírio"."
e que cons1stc cm um dos p1lartS As propóStu d~construt:i\'ll5 de A.nhur Omardi6cilmctnc podem
fundamem:ús do ilusionismo cinc- ser interpretadas fo~ do horl7.omc hi.sroncamemc consútufdo pela
m:uogr.itko. V«i,promO\'C ullU dupb 5"botogcm ao mergulho diegtlic:o tn.diçio do documcotârio. SWI obra se vincub. As ques~ e aos compro-
do espeaador. Por um lado, t o.ama.ti,"IL sempre prometida nio se missos ~ cpi.sccmológlco!I e cstêticos que noneiam a práúca do
dc.sdobra, não surge o conílilo dramático capaz de cual.isar os docu.mcmirio desci~ os primeiros tempos, de certo modo retomando a
mecanismos dc pro.,CÇào e identificação que ou2cterimm o ttgime eh linha d2 dnc-escrirura instaunda por Venc1,*. No ~ bt2.$ilciro dos
ficção cinematográfica. Não há enredo, nio emerge um a.nragoni.sta,. a anos 1970, Omar se insurgiu contra o ''dc!ipBdlcio formi.l" que
luD do herói mQSlr:l·K ,tttii. A menos que se U'2tc de uma lut2 conrn constatava nos filmes eh ._posiçio clássjc2 progresmt2, com seu modelo
o próprio espectador - ena, :tliãs. é a h.ipôtesc que se afigura mais incon.sc1e:mc de documentário'"'. bem como 001 d2 ..~ r d a experi-
provivd. porque à dcscomi.nWdl.dc n:irr:uiva som:a-sc a desconúnuicb.dc mental".ª Não se C()nskkrav:a pmpooenrc d~ um nO\"O modelo, mas
perceptiva de uma imagem que não pira de pulsar, l'Stimulando um encara,., seu tr:ib:uho coOlO "um ponto fora do pcrínl<'tro"." O olhar
movimento imcrmitentr da pupila. Ao simular uma dcsrcgulagcm do critico que lan~v:1 sobre o documcntino não resultou cm paródias,
fundonamroco padrio da projeção cincmamgrifíca. Omar subverte o mas cfeMmc:ntc cm anúdoc:wnc:ntirios, filmes problematb~tcs das
pacto que dá lugar â ilus.âo conscnãc.12 do cspecwlor. Neste reginro, con,.-cnç8t-s usad.:u sem mniorc, qucstion.a.me..ntos e.m certos filmes
não há lugar para a suspensão de incredulidade. pant a renúnda 2 pm,,"ll emogrificos sobre u "nizcs ruciona.i$" (Con.A:"), cm montagens de
de realidade que o espeeiadorc:o<tunu conceder •o filme como coodiçio m>tcri:ús de arquivo (T,,..,.. da J.,,,,,,ud,) e em filmes engoj>dos, com
de fruir o mundo imaginá.ri() que lhe é ofcrtcido. mensagens poUticas cxpUcims (V«i,).
Os c:oncdtos propo51os pelos íormalisus russos e que ie Os textos e filmes de Omar dc.mo.nstr.un uma. pl"COCUpaçio
consubstancilvmi no cinenu de Vcnov reaparecem, por outro vik, na ronsm.mc com as rcssoninc:i.u do onona no plano polióco e cultural.
c,b,. de Qm,r. 5e.,. lilmes são de consumo dil!cil. frustram e>pe<:121Íws muito embora de pareçt privíkp.r as íC$50nindas no microcosmo mais
e c,ugcm do espectador un\2 relação atiw de dcafraçio, sem conccssôc:5 rescrito da comunid2de: audtovisual, talvez nurm intenção ,ieno,..,:uu de
aos códjgos do cincma~espcciculo. Platéias qúe evcnru2lmemc fuer "6lmes que produ,=i 61mes".
C5pcrusem. como de bibito oo doo.unenw.rismo d:.a. época.. wn "reflexo"
ou uma imerprctaçio da re2lid2dc. deparawm•Se com propostas " (J.MAJt, l 978:. 8.

• ll.Jr:m.
desconcertanrcs que rc.ílcti,.m e interpret:1v1un. ist0 s.im. H condições ~ OMAR, 197819, ,Gaa.d....ea c.,.p.
200 Espelho Partido A Representação Problemática 201

Assim, um filme documentário, ao escolher seu objeto, é responsável rede de causalidades destaca-se o tomate, "personagem" que
pelo modo com que esse objeto poderá agir sobre a cultura, isto é, acompanharemos a partir de sua colheita. O tom irônico do comentário
como este objeto poderá se transformar em meio de produção para acentua o didatismo de sucessivas e remissivas definições, com efeito
outras obras. Toda obra é a transformação de outras obras, que se ins- cômico. 23
crevem anonimamente no seu corpo, é uma leitura de outras obras, e, Logo nos primeiros minutos, o espectador se dá conta de que
ao mesmo tempo, dá a sua novidade como leitura para que outras obras assiste a uma paródia de uma classe de documentários que costuma
22
se ramifiquem. exibir conhecimentos inúteis através de tautologias e truísmos. A uma
certa altura, as coisas começam a se complicar. A definição de dinheiro
Esta dimensão deliberadamente intertextual da produção leva à citação de Cristo, associado a judeu, dando lugar a mais uma
cinematográfica tornou-se mais densa, no Brasil, a partir da segunda definição: "os judeus possuem o telencéfalo altamente desenvolvido e
metade dos anos 1980, mas sua manifestação vem se dando em uma o polegar opositor. São, portanto, seres humanos". As imagens que
chave bem distinta da que vimos com Omar. De certo modo, o lembram antigos livros escolares são então substituídas por um filme
experimentalismo se dissemina, mas se acomoda no plano das soluções de época mostrando judeus esquálidos que são conduzidos como gado
formais e narrativas. A pesquisa semiótica perde em radicalismo, sendo por oficiais nazistas e jogados em uma vala comum. Mas o efeito da
substituída por um trabalho dentro dos marcos do cinema-espetáculo. ironia macabra é rapidamente superado por novas definições amenas,
Não se cogita do confronto com a platéia, mas da sua cooptação. O acompanhadas de animações graciosas. Assim, através de uma rede feita
próprio cinema é um tema recorrente e a paródia torna-se um recurso de conceitos e figuras, acompanhamos um argumento difuso e
freqüente. Exemplos significativos podem ser encontrados na obra de aparentemente inconseqüente sobre o mundo... até a seqüência final,
Jorge Furtado, cineasta que, após realizar três curtas-metragens de ficção, que nos leva à Ilha das Flores, um vazadouro de lixo onde familias
se dedicou a uma modalidade não convencional de documentário, miseráveis fazem fila para entrar em grupos de dez e recolher as sobras
exercitada em três filmes bastante originais. em períodos de cinco minutos - mas só depois que os porcos terminem
O primeiro deles foi Ilha das Flores (1989). Até a penúltima de se alimentar dos detritos.
seqüência o filme estrutura-se como um documentário educativo, o Os quadros de referência se chocam, o estilo muda, o tom do
modo expositivo de representação na sua forma canônica - uma voz ef/ comentário se adensa. E o espectador, desarmado, é pego de surpresa.
masculina acompanhada de imagens rigorosamente ilustrativas que Da comédia, passamos ao drama, da paródia do documentário, ao
conjugam técnicas mistas de filmagem ao vivo, fotos, gravuras, filmes documentário propriamente dito. Se a ironia continua, é como veículo
de época e animação. O comentário desfia uma trama aparentemente
23
infindável de associações entre os mais diversos fenômenos, como se Por exemplo: "os seres humanos são animais mamíferos, bípedes, que se distinguem dos outros
mamíferos, como a baleia, ou bípedes, como a galinha, principalmente por duas características:
tudo o que existe estivesse logicamente concatenado. No meio desta o telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor"; ou então: "lixo é tudo aquilo que é
produzido pelos seres humanos, numa conjugação de esforços do telencéfalo altamente
desenvolvido com o polegar opositor, e que, segundo o julgamento de um determinado ser
22
Idem: 17. humano, não tem condições de virar molho".
202 E,pdho Puooo A R"l'•••amçlo P>obl,mâ..,. 203

comentário i idéia de libcrtbde: "o ser humano se difettnda dos outros


anima,s pelo tclencé&Jo :altllmcn1c d,_,volvido, pelo polcgo, opositor
e por ser livre. Livre é. o estado dllquclc que tem libc«bdc". E. cooclui
corn u pa.bvrus de: Ccc1.ia Meireles: "liberdade é uma p:iliwra que: o
sonho hwnano alimcnm., que n-ão hi ninguém que explique e ninguém
que n-ào entenda...
Nos lctrd.ros tinlà, o filme 1rOm7.a sua rcbçio com a U'2dição do
docurnenclrio. usando reittradlUllCnte, pili.vra 1miadt."' fecha. assi1n.
de um humor negro que veibaliza o pu,Joxo insuportávd: ..o que coloc:a o ciclo in,ugurado com os letreiros de abcrru.ra: "este não ê wn filme de
05 scrc5 hununos da llho du Flores depois dos porca< rua prioridodc de fic:çio''. ..existe um lugar dwnado [lha das Flôrt'$.., "Oeus nã<> a.istc".
escolha de -abmcmos é o f.no de niQ 1en:m dinheiro nem dono...
A recusa cm alinh:u--sc aos dJscursos de sobriedade" é •peruas form:al
Quando II cera se abre, vemos os miscràvcis se atropeJando pant
ou estilistica - a funtUi:a é um recurso retórico pam atrair o tspecetdor.
melhor aproveitar os cinco minutos que lhes cabem., mulheres e crianças E. :i.s )Qt2içÔC5 podem nlo ser cxat2s. nus é preciso ddnr: cl2r<> que a
C:U.'l_ndo lixo. imagens filmadas com tt:leobjc."Uv:1 ffl\ cimern lenta. O
Ilha d.:u Flores c:nstc, 2 miséna não é n'lt:túõrica e 1l \'erdadc ( o valor
impacto só nlo é maior porque: o li.xo d2 Ilha <bs Flores é cstcózad~
que se impõe no horizontt do 6Jmc.
rcsuhodo da adesão delibcr.tda de Fur111do 20, código,; e às técruas do
A princip:a.l c:2r:icteristic11 2u10-rcflcxiva de 1/1,a dllJ FH>rtt está
cincma-cspeticulo. :u Ma~ nem por isso .- seqüência finaJ de Ilha das comid2 02 paródia do documemáóo expositivo, 20 longo de uxb 2 sua
FlorrJ dcin de se mscrcvcr na mais pll.r.l tradição do d()CUJne:ntádo: wn
primeira pauc. Paródi1 que nio tcm corno objetivo produzir o
:ugwnca10 Sobre o mundo. a Ullllgcm-d()CUmcmu, a finalid..'lde socia~ o
disWlciameruo crítico do espectador., tn2.5 está a serviço de uma csmtêgia
esquema particul1'.r-gcrial15 e o humanismo gricrsoo.i.mo. oamitiw que visa csc:bdccer- 2 cmflltu 2LDvés do humor, para mdhor
Do mesmo modo que ,u cscob inglcs>, • cxplicaçio d• injusliç• dc,fcrir o golpe do s,qôênd> fuul, coroo se pode depreender dos pabvn,
social não p;assa pelas c;omradições d~ cbssc, m.u pelos \'lllores liberais. do próprio aucor. ''Pml convc.ncer o público ll parúcipsr de uma. ,;2gcm
e ~ at'biçio dcscarcuda da misérul cédc lugar à clcg;i.nci:1 íormaJ. t.\
por dent.r0 de wna rctlidad.c borrivd. cu precisaw cng.aná~lo. Primeiro.
~ dos ca1'ldon:s de lixo poctiz:idos pela técrúco é ossoci•d• pelo
tinha que seduzi-lo e dcpo1...'i d2.r II porr:acb"..- Não se tram de cogerar
" "(".om Udll k:me- 200, 6lmmdo • 60 (fllll(WI por ~ •ti Olbio 6c:a boao. Qualquer u c.onvcnçOO do documcnw:io visando dircttrnent.e 2 Cl'Uçào da dúvida
Cf>IM. A gmce ,~-, lftffldigo ~ i,o ffiCIO do fow e diz: 'lfl'l' lmdc,•. A lente ÍV UO. e-
o 0ml de: Ili., - , r-.,, ê euiammtt. tuU. Os m e ~ wn. tdc, ume. tnlh. dt ívndo, r •"'f:.te filme N ftf'dadr ÍOf (~IO pot- "; "N ~~ rt1o1icJc pa,1edu locações fua mdw AI
fílnlMdo mt ,,__... ~u, I orccuinoNbtr dluo. Se- ■ piefof lib:nN • fflC$ID'.■ coiu cO(fl Diu dot ~(■rriianM., 1 til quilómfflol. cb Ulu da, Florca'\ "'OII k.1r1a1 flMltld ftJ 'N:tWÔr
wn11 lm11r: l2, --dod-S■dt nonmle ICffl ,nh_ ■ .jl;ffl'&' aloni CfflOOllCl■r ninguém... F1JRTA.1Xl, fcut.. au 1 t de 'O~,. de Cub Gclflks'"o '"o rnto i ffftbdc."
1992.. J?, • " "'O docwlk.flr.ino lffl.'I •firudaclr com~ ouu,,.. _,,... ftlo.-~ q~ fonn■m o
•O---putllC\ilar/tpJiJ.(otqutUrDIIOl'Wliculfomca.aqlltnl,prs,:u.panuau~o ~ I" j h\Oi ctw,»,, • • ~ dt ..obnc t■clr' Cibica., «urKlfflU,, pulhxa, ,e~~~
proctu~ pelo fdnw, ê tm1 rccwto ~tlior:o r«bffl'fkC d o ~ «kk Cnenon. Sobtc ~ ttbgiio • ar.a uttem.,. ~ 1tt pod,t, 1t1Ml"llrl'lmlal: do pockm e .,_'ffll
-ac t I ddtr ..DetN, bem como I a-uuçio do . . ~ rm Lima ~ de» -...hr o mundo; clN podem afcw ■ IÇiO e mpm- ~... N1CHOI...S. 1991• 3.
lllllOI 1960, va- 8BNAROEt, l98S • t'l.IRTADQ 1992; 63.
204 Espelho Partido A Representação Problemática 205
7
epistemológica e a crítica a um quadro argumentativo que parece querer quem você é; eu não tenho como saber quem você é; eu nunca saberei
destilar o conhecimento universal. Furtado assimila este quadro e exagera quem você é; você está em sua casa, vendo TV; o seu anonimato é a sua
seu estereótipo para atingir outros objetivos, aliás, muito afinados com segurança; não se preocupe, esta não é a sua vida".
a tradição do documentário. Com esta seqüência, que reitera o próprio título do filme, o
De resto, o componente crítico da paródia quase sempre se faz realizador preserva o espectador no seu anonimato. 32 Além disso, a
acompanhar de um elemento que lhe é antagônico, pois "um bom ou interpelação direta surte um efeito de distanciamento que compromete
um grande parodista tem que nutrir uma certa simpatia secreta pelo o ilusionismo, ao enfatizar que na experiência do cinema estão em jogo
original". 29 Conscientemente ou não - pouco importa - a estratégia instâncias irredutíveis: o espaço da sala, o espaço pró-fílmico e o texto
retórica de Ilha das Flores coloca em primeiro plano a artificialidade do fílmico, como mediação. A negação do efeito de "janela transparente
discurso cinematográfico e a natureza convencional da representação. para o mundo" é acentuada pela exibição de telas giratórias. Imagens
Evidencia-se como uma construção, "resultado de um trabalho comple- inusitadas, que criam um tipo de expectativa distinta daquela que o
tamente racional". 30 Ainda que os objetivos não pareçam ser da ordem documentário usualmente produz e que deslocam o espectador de sua
da problematização do modelo clássico do documentário, mas antes de posição convencional.
sua apropriação em outro registro discursivo, em Ilha das Flores a paródia A perspectiva auto-reflexiva do filme volta a se afirmar na
e a ironia têm o efeito de questionar a representação e desvelar a caracterização negativa da personagem que está por vir. Uma sucessão
arbitrariedade das convenções cinematográficas empregadas na de travellings mostra diversas pessoas em tarefas cotidianas, olhando a
construção de um argumento. câmera que passa por elas, enquanto o comentário as identifica pelo
Para seu filme seguinte, Esta Não é a Sua Vida (1991), Furtado que não são: "este homem não come vidro (...) na última quarta-feira,
formulou a seguinte sinopse: "Um documentário sobre uma pessoa esta mulher não deu à luz a sêxtuplos(... ) esta senhora não matou a mãe
comum, escolhida por acaso em um bairro de Porto Alegre. É um e o pai a golpes de machado". Nenhum feito notável, nada que justifique
audiovisual sobre a importância de qualquer ser humano, normalmente a participação em documentários como Só Gosé Carone, 1980) - sobre
31
esquecido quando se fala em humanidade". Ao longo do filme, Noemi, um homem que, entre outras atrações, come vidro em praça pública
a "pessoa comum", narra os principais fatos de sua vida, desde a infância, para ganhar o pão, Happy Mother's Dt!J (Richard Leacock, 1965) - sobre
passando pelos namoros e casamento, até sua pacata vida atual. Alguns uma mulher que deu à luz a quíntuplas; ou Moi, Pierre Riviere... (René
destes episódios são reencenados por ela mesma. Antes que Noemi se Allio, 1976) - sobre um rapaz que assassinou brutalmente a própria família.
apresente, vemos sucessivos fragmentos de bocas, olhos e ouvidos Se o advento do som direto veio permitir uma expressão direta
girando no espaço negro, em telas de vídeo cobertas com máscaras dos atores sociais, estes costumam participar de documentários por suas
irregulares, enquanto ouvimos um comentário em voz rff. "eu não sei qualidades excepcionais, seja como especialistas em um assunto, seja

29 32
JAMESON, 1994: 28. "faço uma referência ao estado de cinema, dizendo que não sei quem está vendo o filme, que
3D FURTADO, 1992, 63. não posso saber quem ele é, e, portanto, ele, o espectador está protegido. A vida a ser mostrada
31
Idem: 101. não é a dele, espectador, mas de uma outra pessoa." Idem: 74.
:106 Eapdho P«udo A Rq,~n~ Pmblcm:idca 1JTI

como pcnonalidades notáveis. Ou, -ao contrário, para figurar como docuroemirio. Ao conuirio1 procura cscabcJcccr contato direto com
indivíduo típico - multas vezes vitima sociaJ - que será objeto de um2 pessoa qu:dqUt":r, indepcndcntctncntc de qualidades noti'vt.is ou
gmc,r.w:,;açÕC$ dcmoll$tra<MS da posiçào do cineas<A sobre o mundo SOCW!l'll!nte rrc:.onhttid.as.
histórico. Em seu ensaio $Obre a au1o•rcflcxividadc, luy Ruby comenta 1?.11a Não Ia S11a Vida mantém uma relação ambígua com as
qut: a pttOC\lp:lçâO com a forma e a csuurura l\20 cosn.una prevalecer con\·crw;õcs do modo intttaâvo. On apropria•sc dda.<1 par.a estrurorar o
nos documcritários: .. Não conheço nenhum documcmarisu que retrato da personagem de modo convencional, ora :t5 exibe, como
ddibendamcntc csco1h2 assuntos deMtcressarncs e triviais para poder C'Jdo"'41" d 11111 É.ti e mmos oum>S 6lmé$ que dCS\--clam SC!U procc5$o de
conccnau•sc no significado dos clcmcntos formai$ e C$ttut\JJ"ais no filrmgrm. O dcpoii:nento de Noc:m.i .sobre seu cont2to com a equipe de
docu:mentitio''.'' De Nt1nool:. of tht North aos u:kdoc;:u.mcntários Fu.rtac.k> ê um momento cspecialmcmc revelador.» O 61.me funciona
dramatizados contemporâneo~, o gênero tem demonstrado uma como um espelho cm que Noerni se desdobra, sendo ao mesmo tempo
irrcsism'Cl tcndéncia ao herói (Flahuty/Lcacock) ou à vitima (Gricrson/ ela e seu ttbto - a ,·etbafu:ação de sua mcm6ria e a rccncc02çào de
l\'cns). Esta Nio la S1111 Vida se coloca tomo um objeto excêntrico ru momC"lltOS da infância.
tncUçio do documentá.rio, 11.0 abordar uma vida b:mal coro :a fin:wdmc A transformação por que passa esta "pessoa comum.. decorre da
de dcmonstnr q~ "qualquer vtda é interessante".~ expc:dênW ímpar de sa- ofilHN, aquela Can\Ctctisoa do dncma dirtto
A dimen$ào auto-reílc.xiva aponooa por Comolli. que pode. e-.=tualmtntc, levlr • wna ..,.Jadcin
do filme dcsdobca-sc na •pre.scn- metamorfose. Como o "princípio de ptntt!clô" do direto n.:io é aqui
t2çio do método aleatório de ci:plorido em tod.a :l sua potencialicfade. Nocmi aperuu vislu.mba a
cscollu da p<r>OO>g<nl. J>2rdlluo· mewoorfosc: u ••• pa.rrtia que cu... que c u ~ de novo, que cu tenho
do com o cspccudo, •spccro, que que começar ~ minha vida de no\-0, que cu vou começar a mi.oh.a vida
os documeotuistas costumam ~sim como eu quero-um dia. Se Deus quiser".
ocultu:, nus que ao sttem w'Cla• Em A Matodtira ( l994) Jorge Furudo ,•ai assumir mais
dos reforçam a consciência. tla explicitamc.ote un12 perspccti\'a aut(),;teflcxh'll, O filme aborda o episódio
adeia p,od•tor-pro«,,o-prw/xlo. Chcg,mo• a Nocmi otnvé, do ímagcru h.ist6ôc:o do massacre de Cv,udos, 11tr2,1é$ dc uma cobgcm ~ O l de
de roletas. rodas de quermesse e sorteio lote.rico. E a sua 2bortbgcm gêneTO$ e e~úlos a.udiovisuais, imcrc:tlando estas citaç&J com uma
pela cquip<- - "você já 'P"ffl'"" na televisão?", pergunta uma vo, foo imerprt'taçio pc,é:tlca do C\'d\to. A dcmonstra.Çào d:a parcialidade das
de qwdro- é u.nu rcafir:nução da propost:t auto-ttllexiva. Furtado nio divc.aas \'C1'SÔC5 que procunun cxp1icu a gucu:a rt$Uha em \1.ma estrutura
tr2balh;L com o "tipo", nem~ 2comod:a ao -1istcma paràcuJu.gttai do elmica multifacetada. C.ad-a vcrsio recebe um tratamcnro formal
difcre:ncfado. facilmemc rcconhcóvd pelos estereótipos uulizados.
• R.UlJY. nn ROSl:.NTHAL, t9!1& 16.
"' "O (time 1dl0 ft)O!tUV 'flC o que irnpedt cp uido. paubun como e.&. um dt n6. é • ''Com d"'1 pouc,ot, dlu que cu amu cnn,."UUndo ('(lffl WICb, WftD ~ ausnbe e,
i1)1CtaQQ.1,: é JWtammK' O OOIIW anõMl'IIIO,. R.dnovidol do ~ podcmot lnQlltrV.,
~ um de DÓf. como tomOI útucot. momo llmOO do lj!IWI,.. FlfkTAOO. 1992: 74 ........
wdo,. qor. ax proominm a. mínlM au., pv«c 1M1m ~·~ 'lue N ui Ullffl de ian ~ pro
208 Espelho Partido A Representação Problemática 209

A interpretação poética organiza-se em torno da personagem-título, a A segunda paródia tem como alvo os documentários de montagem
Matadeira, enorme canhão que as forças armadas republicanas que utilizam "documentos históricos" - filmes, fotos e páginas de jornal
importaram da Inglaterra para desferir o golpe de misericórdia no arraial de época. Novamente com uma impostação exagerada, o ator representa
de Canudos. um inflamado discurso de Prudente de Moraes defendendo os ideais da
Em oito das treze seqüências que compõem o filme, República contra o "caudilhismo monárquico". As primeiras imagens
acompanhamos a trajetória do canhão, desde sua apresentação à tropa são fotografias, seguidas de filme preto e branco, ambos falsamente
por um oficial inglês até o ataque final aos fiéis de Antônio Conselheiro. corroídos pelo tempo, apresentando irregularidades, manchas e véus. O
Paralelamente, uma voz efmasculina lê uma passagem de Os Sertões, de sincronismo irregular e os cortes bruscos conotam a "autenticidade"
Euclides da Cunha, sobre as dificuldades de transporte do pesado canhão; destas imagens obviamente fabricadas. O discurso termina a cores. A
outra voz, feminina, lê trechos de um poema de Kurt Vonnegut, alusivo abertura com o brasão da República e um hino cívico ao fundo conferem
a uma "grande máquina" mortífera. A unidade estilística destas uma moldura oficial à seqüência. Gravuras de batalhas no estilo dos
seqüências alegóricas de época é perturbada, nos dois momentos mais livros escolares e fotografias de uma multidão de flagelados formam
1 '
dramáticos do filme, pela inserção de imagens de crianças ensangüentadas um contraponto irônico ao discurso político presidencial.
nas ruas de uma metrópole contemporânea e de crianças sendo A terceira ocorrência paródica mostra um falso depoimento do
perseguidas por uma câmera nervosa nas vielas de uma favela. tipo "o povo fala", característico dos documentários do modo interativo,
Maior descontinuidade, no entanto, é provocada pelas seqüências que a televisão diariamente apresenta em uma versão padronizada - o
paródicas que fazem contraponto à viagem da Matadeira. Os únicos talking-head. A seqüência consiste em um plano único, câmera na mão,
elementos que as conectam são o ator que as interpreta e a referência imagem tremida, som irregular e perturbado pelo ruído de fundo. O
comum a Canudos. Tudo mais as diferencia totalmente. A primeira destas ator, agora, faz o papel de um sertanejo, que justifica Canudos na base
seqüências apresenta uma interpretação sócio-econômica da guerra, de seus interesses mais imediatos: o acesso a um pedaço de terra para
através do "falso depoimento" de um especialista. O cenário é uma que suas cabras possam pastar.
alegoria minimalista composta de pilhas de livros encadernados, Mais irregular, a versão que representa a tentativa de explicar
conotando erudição. A didática explicação é ilustrada por uma animação Canudos a partir dos desvios de personalidade de Antônio Conselheiro
com bonecos de barro tipicamente nordestinos. A prosódia e a entonação é composta de duas partes. Na primeira, um falso "filme de familia",
do ator são exageradamente falsas, denunciando uma clara intenção em preto e branco, tremido e granulado, mostra o casamento de Antônio
paródica dos documentários que recorrem a uma autoridade profissional e Brasilina. Na segunda, sobre um cenário exageradamente artificial,
ou acadêmica para suprir o filme de determinadas informações, temos uma representação em estilo melodramático da cena em que
acompanhadas de sua chancela. 36 Antônio mata a própria mãe, vestida de homem, acreditando ter atingido
36
um amante da esposa. O melodrama se converte no burlesco quando,
No modelo sociológico do documentário, Bernardet denomina esta figura de "locutor auxiliar",
pela função complementar que desempenha no sistema de informação dos filmes. ao abrir o armário, Antônio descobre um homem nu. Desesperado,
BERNARDET, 1985: 20-21. agarra um crucifixo e abandona a casa. O texto de locução, em tom
%10 ll.ip<lho Parodo /1 ~ Problrnúua 21 1

cstcrcotip•do que lembro unu dublagt'nl de fdmc: inánril. comcnt2 auis 1


;
esta vertente imcrprcodv-.t. neS2Jldc.>-lhc. destrt \ t t cxpress2mie:ote, o ' ·~
poder de cxplior o ícnõmcno Canudo._"
Por fim. o própoo Conselheiro é reprcseoatdo. cm sua prcg-.i.çâo
mcssiinica e tpocillptia. empunhando um ca•ado coberto de 6tas e
mt"dalhu. Ao fundo, colunas d~ monitores de vidco exibem tlmgeos
1 r ;,

do cêu. A montagem. marcada por cortes bruscos no estilo d~ ,id,or.Gps, -¼ ''


Msocia o Conselheiro a um •~pastor clctrônfoo"' contcmf)Qrinco. O .,.,.,,,. 1. HrtiJlltJ& ~ Útt/tibt,'n ,. rmão tltMtNDt.
() filme pcnnancntcmeiuc se numco.za com os discursos que uma tnct:Mçio. P:tralclamentc ao desdobramento de hipotéticos pontos
parodia1 fragmcnt:ando-se cm wn caleidoscópio de OOO\"tr\ÇÕCS bc:tn de vista sobre Canudos. assistjmos 2 um mctacott1cntário sobre o
definidas que cscancanm seus artificios retóricos.. As cun.ctcri:1..açõct proccs,o de consuução de representações. () filme tran~fonna•sc: cm
cx.g=<l•s do •tor Pooro Catdoso e as mattas estilísticas supcrcnfuti• convite para a ttOeóo sobre a fabricação de visões do mundo -através
zadas impômcm wn tom â.r6n.ico a esta colagem de modos de rcprtscn• do cinema, qucsuonando os índices auromitlcos de \'Crdadc no
cação. Diante de uma narr:1tiva camalcônica, o cspcct11dor ~ documentirio. A Ma1adt,m implidw:ncnte critica os critérios nomutivos
su«ss1,>ameote descentrado e convocado a assunur uma pcrspc:cun que lent:un esu.bc.Lcccr as técnicas e os tnetodos "m.:ais -iccitâvcis e mais
<lifttt11tc e sempre critia.. porque o s.trcasmo n:io pr.opici3 a adesão. honestos•'. do ponto de vi.su. dt uau é.tia documem.iria objetivista -
m:a.s uma intcrprct:2ção d.ismnciad1. plano ~üê:ncit. contn. monagcm, som direto contra dublagem ou
comc:ndrio, ltme normal contra tcleoQjeth;1, vducid:adc rcgufar comn
Os antillus.iocmw cxpJona.m • mistura dos gênC'f'Ott :a ml ponto que o alter.tç:io do movimento. câmera na mio COntD plano fixo composto...
1igrúficado do u:ah:dho p:,.ssa a Jurgir da tensão aiattva gcr~ por sua O depouncmodirctopina a cimeta.11 voz hcsltum: e a te,m.1ra da imagem
i n ~ lu U"OSÕC:$ nQ5 ío~m 11 rcíleur sobre~ cu.turcza do gà,cro "dt época" são que$tion21dos em seu caráter de marcas de aurc;nôcidlldc
cm&., e nos 1onwn conKimtc-s d05 mdot1 pelos qmJS • ..rcalidaidc" ê e situados como metas convenções.
mediatizada atnvés da snc.•

N:'io é somcmc iltr:Wés cb paródja e da irooia que A A.foJIJdtirr,


aíbc car:octcrisóca$ 2nóilusionistu, Succ,.iws modalid•dcs de "im:igm,-
documcnto"' são cscaocaradamcmc f'a.lsificad2S e postt5 a &ervÍçô de
" '1"'n:""'- •f1r1111M1 que ";u ~ tl<, ~ C~'U e ._. nNrOtCS do ft1tf9Ô"" mdmdmit'
"' lflaD dip qtW ÜtM:kA lo! comrqumcu da "ff'bgsio indl~.. de ~ Udtf
c:ampooà fflllr.wta. homem tal')IO, pro(e:u, c:att•~c. mabsu OQ doido ,-undo - .ado u
deflfll<óa do Curudhao .e: 11no(iam e: rimhum:,. ddu c.apíO Clnudo,,,." o ..u;,. • tw,·•J,,t _,, ,.,,,,,,._,. Ô ,,,,,_._. â, ,,,.,., t,wJ,,/,, I
• STI\M, 198l: SG. Alil,-• Wr,, do fMj1i-. M ikifttl,o t,,,,f,A
212 Espelho Partido
T A Representação Problemática 213

A univocidade e a totalização, características que pontuam toda a supostamente explicativas, que terminam por anular-se. Versões que
história do documentário, não se afirmam neste filme, que também não são construídas de modo irônico e autocorrosivo, parecendo demonstrar
procura alinhar-se aos discursos de sobriedade. Ao contrário, diversas a intangibilidade do fato histórico, nossa incapacidade de fazer dele um
agências de autoridade produtoras de narrativas totalizantes têm seus juízo minimamente acurado, já que todas as suas representações trarão
discursos esvaz~ados: a política institucional, a religião, a economia política e sempre a marca arbitrária da ideologia que as informa.
a psicanálise. A Matadeira joga deliberadamente com a ambivalência, criando Assumir a irreverente manipulação e a escancarada falsificação
no espectador um permanente estado de dúvida diante dos argumentos de documentos sobre o passado pode elevar nossa consciência sobre o
conflitivos e das formas com que estes argumentos se revestem. caráter sempre construído de qualquer representação do mundo. Mas
Neste sentido, o filme assume um caráter duplamente pedagógico, pode também fortalecer a tendência recorrente a igualar superficialmente
pelo questionamento de uma "estética do real" e pela dúvida todas as imagens e segregá-las em uma esfera autônoma e
epistemológica que suscita em relação aos significados unívocos e absolu- desreferenciada.
tos. Esta perspectiva é especialmente salutar no contexto audiovisual A Matadeira tenta escapar deste dilema por dois caminhos. Um
contemporâneo, em que técnicas persuasivas são intensamente deles é a inserção de imagens chocantes da violência urbana contra a
empregadas para vender produtos tão diferentes como bens de consumo, criança, estabelecendo através da montagem um paralelo entre o
mensagens políticas ou informação jornalística. massacre de Canudos e o combate social em curso no Brasil
As convenções do documentário ocupam um lugar destacado contemporâneo. Um clichê de efeito discutível, insuficientemente
neste elenco de tecnologias de persuasão. Insistir em usá-las sem articulado com o conjunto do filme, mas que efetivamente vincula 0
questionar explicitamente os seus mecanismos de produção de sentido episódio histórico à nossa vivência cotidiana.
resulta em reforçar, junto à audiência, uma leitura ingênua de "índices O outro caminho, mais elaborado, é a versão poética que abre,
de verdade" e implicitamente avalizar apropriações de um "estilo pontua e fecha o filme. Se a denominamos poética é porque sua encenação
documentário", tais como as falsas enquetes da publicidade e a alegórica se faz acompanhar de um poema em voz eff que interpreta
espontaneidade, muitas vezes fabricada, do telejornalismo. Canudos como aquilo que toda guerra é, em última instância: uma
Por outro lado, é preciso considerar que a promoção máquina de produzir morte em grande escala. Mais adequado seria
indiscriminada da ambivalência pode levar a uma descrença na imagem denominar estas seqüências pelo que elas são do ponto de vista das
como um instrumento capaz de intervir na arena social, onde significados convenções cinematográficas que regem a sua construção: uma
são permanentemente construídos visando cooptar nossos desejos, ficção.
formar nossas crenças e influir em nosso destino histórico. Ao ser Furtado parece nos dizer que, já que nada pode garantir
colocado diante da questão da representação de um evento ocorrido materialmente a verdade histórica sobre Canudos, só nos resta brincar
um século atrás, 39 Furtado optou pelo choque de diversas versões com as múltiplas versões sobre a guerra e acrescentar a elas uma versão
39
ficcional de cunho poético. Apesar de suas qualidades desmistificadoras,
A Matadeira é um dos episódios da série Os Sete Sacramentos de Canudos, encomendada por uma
emissora de televisão européia a sete realizadores brasileiros. este filme "contra as tentativas de explicar as coisas de maneira
214 Espelho Partido A Representação Problemática 215

simplista" 40 não chega a articular uma alternativa não simplista de acesso de valores políticos e morais. Neste mesmo registro, encontra-se um
ao episódio Canudos. contingente cada vez mais numeroso de documentaristas contemporâ-
Em A Matadeira, Furtado procura respostas estéticas que sejam neos que se debatem em uma "crise auto-reflexiva da representação". 42
coerentes com a sua assumida opção por um cinema-espetáculo e pelo São cineastas que permanecem no horizonte remanescente da tradição
domínio das técnicas narrativas capazes de consubstanciá-lo. 41 Sua do documentário, na medida em que seus filmes se organizam em torno
fascinação pelo cinema como uma usina produtora de signos parece da defesa de um argumento sobre o mundo histórico. Mas não
levá-lo a uma concepção da imagem que é mais da ordem da simulação demonstram o menor apreço pelas convenções do gênero. Se as utilizam,
do que da representação: imagens marcadas por sua radical arbitrariedade, é para melhor criticá-las.
que não remetem a uma experiência historicamente situada. Talvez por Uma perspectiva inteiramente distinta é assumida por Eduardo
isto, neste filme muito mais do que nos anteriores, o diretor penetra em Coutinho, autor de Cabra Marcado Para Morrer (1984). Em muito pouca
um labirinto de imagens que refletem apenas outras imagens, sem coisa este filme pode ser comparado a A Matadeira, apesar de ambos se
qualquer peso referencial que as ancore ao mundo social e histórico. caracterizarem pela fragmentação de fontes e materiais, pela estrutura
A alegoria de Canudos não se presta à proposição de verdades descontínua e pela auto-referência. Entre tantas, as diferenças
históricas, mas à afirmação de um humanismo difuso semelhante àquele fundamentais que aqui nos interessam residem na posição frente à
que encontramos no final de Ilha das Flores e no escopo de Esta Não é a história e na relação entre narrativa e auto-reflexividade.
Sua Vida, um filme "sobre a importância de qualquer ser humano". No Cabra Marcado Para Morrer é um filme que busca resgatar a sua
caso de A Matadeira, um vago humanismo antibelicista que associa própria história, através da retomada, por outros métodos, do trabalho
Canudos a todas as guerras. A inserção de fotos de corpos interrompido dezessete anos antes, pelo golpe militar de 1964. Daí
ensangüentados sobre o asfalto e imagens filmadas de crianças sendo decorre a sua auto-reflexividade, que se reitera permanentemente, desde
perseguidas na favela talvez então se explique de modo distinto a aparição da primeirn imagem - a preparação de uma projeção dos
daquele que supusemos acima. Sua função pode ser a de tentar copiões para aqueles que participaram das filmagens originárias. Exibição
conferir à simulação alegórica de Canudos algum peso referencial de equipamentos, presença dos técnicos na tela e participação direta do
que a legitime. diretor nas cenas filmadas são conseqüências do método de trabalho,
Estes curtas de Jorge Furtado situam-se no quadro de uma estética fundem-se geneticamente ao processo criativo. E a diversidade de
pós-moderna, marcada pela profusão de citações e paródias de gêneros, materiais (filmes de época, notícias de jornal, cenas de ficção e entrevistas)
pela falta de profundidade histórica e pela adoção da ironia como um e de técnicas (reportagem, locução em voz oJJ e encenação) não cons-
viés crítico difuso, que tem como alvo privilegiado os grandes sistemas troem paródias nem causam a impressão de um hibridismo estilístico.
São matérias e métodos que se articulam organicamente, em vista da
40
FURTADO, 1992: 84. finalidade que move todo o processo: recuperar os fragmentos materiais
41
"Toda a arte é uma brincadeira, um artifício. É um truque. E este truque é feito para ser
compartilhado, ele tem graça quando é dividido. Neste sentido, eu acho que o cinema que eu
42
faço é comercial. Ele é feito para o público, para que as pessoas vejam e queiram ver." Idem: 30. WILLIAMS, 1993: 10.
216 l;,pdhol'utldo A J\q,_,nt,çi<> - o ú - 217

e imaginários da história do filme, < E,,, 19H. •ft((Jo


de cada um de sc:us p:a.rticir,intcs e tllb.li 1A811J.1.ltt p,#

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do pais. Ptm 1n..'\'W.,. I
Em Cabra Mar,oda Para
M,,,.,.,,,, o "prindpio de petVt'rsio''
do cinema dirctó opera em toda a
sua plenitude. Projetados dian1e do
espelho om qu< para cios o filme se bt 1981,
fui.ri C...,t»
constitui, os atores ttVel.am inapcb.~
\-.dtncanc os cfclt0$ tb história cm o,,11., - "°"""' '
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SttL~ vidas pessoais: e esta íC'\'da~ C.bn. M:uado
pat1 Morrtt.
que $U.rprccnde e excita, ,une
cfcims tnnsformadorcs. Eh~bclh processo hist6nco - tr2jctôôas indí\l1dwus e memória c.olcri\''I - quanto
Tci.xcir-:i. é 2pena, o caso mais o processo de produção de significados 11.tra\'és do cinema. citâo
rndMtc desta mcwnorfose: depois de quase vinte anos. ela deixa de profundamente onr2iudos no corpo de C,,1,,-,, Afam,J,, Para Morm:
ser "Maru.''. uma c.landestin:a. exilada de seu próprio passado. para. Coutinho UiU\Sia da ficção. o primeiro movimemo que gerou o
:issumir a vcrd2dcira ide:otid:adc diamc da câmera. E c:ootloua se filme, para o documentido, segando movimento que ardeu.la o conjunto
ttaosformi.ndo ao longo do filme e e.orno função do filme, até o discu.no dos t:Xl,ltcri:ais produ~dos no espaço de duas décadas. Ntstt' ca.so. um
veemente com que se despede de Coutinho, revelando-se como um:1 documemirio que não pretende registrU 11 ve.rdadc ltnl\'és de uma
mulher qut cxorci1.ou seus fantasmas, reconciliou~sc com a S\.12 biografia reproduçiio c,pc<Ului!o rc21 - como na melifon ingênu• d• imagem
o conqui,rou • possibllid•d< do reunir-se aos fdho,, cspolhados pelo fotogri6co cnciuant.0 um espelho dowlo de memória.
mundo. Antes que cttã reunião se dê cm algum lugu fisic<>. C no pi.ano A \'efdadc cm Ctbm Mam1do Para Alortl'TJ'C$Wta de um minuÓ0$0
do filme, stqüéncia ilpós seqüência. que ,·croos a familia se intcgrur. 1.n1balho de montagem que nos lcw imagiJlllriamcmc 3 percorrer o país,
A história., tal como se marúfcs1a cm Cabra A1arradl Pilltl M,rrtr, de none -.a. sul. e a históna. de 1964 ai 1984. cm scqüêoclls nio lineares.
ruda tem de ab$traçio. conceito ou rcprescnt2:çào: "Hi5tôria é o que São movimentos dcscontlnuos, em que °' futgmcntos de memórias
fere, o que nega o cks.et(> e esutbdccc limite$ incxor.h-cis mmo para :a.s individuais: r:eoolhidos vão se ilwninando mu,uamentc. PequêOOS a.c:os,
prâcicu individ\WS quanro par2 ali. c.olctml.S'',º Os uaços do pas52lk> que rctlclcm ,--crdadcs situa.d:a.ot, CQnúngcmes e Rhúva.,;. Se de algum
indh-idual e situado de e2dia pcnorua.gcm t-r:aduzem..se em marcas de ..pclho ,e U2t1., <de um espelho panido. E,te, íngtn<,nros, que n:Í<>
torrun fisica e cm mucboç2 de identidade civil, dados que cxuapob.m 2 mzc.m vcrd2de..111 automaticamcmc impressas~ sio laboriosamente
dimensão textual do filme par.a ancorâ•lo no mundo social. Tanto o agendados cm seqiiêncw significames. Dai resulta• ....dado sitw.da,
• JAMl:!SON, 1981. IDZ. produ:úda dentro do filme e em função do ftlme: a ofusamc vcnio
218 Espelho Partido A Representação Problemática 219

dos derrotados pelo movimento militar e pelos aparelhos institucionais Por outro lado, seria ingênuo considerar a reflexividade uma
que propagaram exaustivamente a versão oficial da história. espécie de "dever político". 44 A diversidade de manifestações que
Por seus temas, estilos e perspectivas assumidas diante da história comporta o domínio do documentário e a fluidez de suas fronteiras
e do cinema, Cabra Marcado Para Morrer e A Matadeira estão situados em não autoriza uma posição evolucionista que pretenda erigir a auto-
planos incomensuráveis. Se de algum modo os aproximamos foi com o reflexividade como norma ética ou estética. Os protocolos da
único intuito de afirmar nossa convicção de que auto-reflexividade, reflexividade não têm nenhum significado intrínseco e suas estratégias
descontinuidade e diversidade de materiais e técnicas não encaminham valem tanto quanto o uso que delas se faz em cada filme concreto.
necessariamente o documentário contemporâneo para um abandono
niilista da construção de verdades. A consciência de que verdades não
se imprimem mecanicamente em imagens não significa que o único
destino destas seja o de remeterem apenas a si mesmas, como uma
coleção de signos desenraizados do mundo histórico, todos equivalentes
em valor puramente simbólico.
Quanto à reflexividade, apesar do seu potencial antiilusionista,
não deve ser considerada uma panacéia do documentário. Muito menos,
um antidoto às contestações e abalos que sofrem os dispositivos de
representação, em um contexto marcado pela proliferação desenfreada
de imagens. As estratégias auto-reflexivas podem facilmente ser
empregadas como puro formalismo, transformadas em um maneirismo
ou apropriadas enquanto técnicas que visam legitimar argumentos
espúrios com uma aparência crítica.
Exibição de aparelhos de filmagem ou de membros da equipe
técnica não significam, necessariamente, problematização das condições
de produção do discurso. Fragmentação narrativa e descontinuidade
não significam, obrigatoriamente, maior consciência textual. Revelação
de marcas autorais e de metodologias de trabalho empregadas não
autenticam, automaticamente, uma intervenção crítica na política da
comunicação. A televisão e a publicidade proporcionam abundantes
exemplos de como todos estes procedimentos podem ser dissociados
44
de suas estratégias originárias e incorporados a dispositivos de persuasão Jay Ruby adota, neste ponto, urna posição normativa que nos parece abusiva: "Estou convencido
de que cineastas juntamente com antropólogos têm a obrigação ética, política, estética e cientifica
com fins comerciais ou institucionais. de serem reflexivos e autocríticos sobre seu trabalho". Em ROSENTHAL, 1988: 64.
Considerações Finais

O percurso que efetuamos permitiu o reconhecimento de um


domínio, uma arena institucional constituída por uma diversidade
conflitiva de práticas e retóricas. No seu seio, uma comunidade de
cineastas, críticos, teóricos e agentes diversos partilha determinadas
questões que reverberam historicamente, em movimentos de
contestação, reafirmação e transformação da tradição que os aglutina.
Autores e grupos contrapõem métodos, perguntas de uma época
encontram respostas em outra, soluções consideradas definitivas adiante
se mostram precárias e outras, julgadas superadas, são resgatadas e
redimensionadas.
Se este movimento nada tem de linear, tampouco é aleatório. Ainda
que nossa proposta não tenha sido a de explicá-lo em toda a sua
amplitude, tivemos oportunidade de rastrear suas principais linhas de
força, identificar ambigüidades e questionar certos mitos que pontuam
a tradição do documentário.
A esta altura, parece-nos de todo evidente que rotular um filme
documentário não autentica seus significados. Não existe método ou
técnica que possa garantir um acesso privilegiado ao real. Uma vez que
não se pode conhecer uma realidade sem estar mediado por algum
sistema significante, qualquer referência cinematográfica ao mundo
histórico terá que ser construída no interior do filme e contando apenas
com os meios que lhe são próprios. Sob este aspecto, o documentário é
um constructo, uma ficção como outra qualquer. Por isto mesmo, devemos
222 Espelho Partido Consi<leraçc->es Finais 223

nos esforçar para deflacionar o valor de troca do rótulo documentário no história do filme não-ficcional. Seu trabalho no campo semiótica e sua
mercado simbólico. Qualquer pressuposto de superioridade moral ou preocupação com uma pedagogia da imagem estão, hoje mais do que
de verdade intrínseca do documentário deve ser impiedosamente nunca, na ordem do dia para todos aqueles que, como nós, continuam
desmistificado, sob pena de legitimação, por extensão, dos discursos acreditando na responsabilidade que os produtores audiovisuais
que tomam de empréstimo suas características formais, retóricas e devem assumir no plano de uma política e uma epistemologia da
estilísticas. comunicação.
A abordagem comparada de distintos grupos e tendências nos Diferentemente daqueles que acreditam na tendência irresistível
leva a constatar que o documentário, um dia pensado como "uma nova de toda imagem a transformar-se em simulacro - julgando que no atual
e vital forma de arte", vem se reconciliando com sua dimensão formal estágio do capitalismo a representação está superada por uma incapa-
e estética, por vezes considerada menos relevante que uma utópica cidade de discernimento entre imagem e realidade - nós estamos mais
dimensão científica. É salutar constatar que uma perspectiva interpre- interessados em investigar os processos de produção de sentido do que
tativa reafirma-se no horizonte do documentário, na mesma medida em em pregar a sua implosão generalizada. Imagens continuam a mover
que se esvazia a crença em uma infundada objetividade da imagem audiências em busca de sentido. No mundo histórico - aquele que excede
cinema to gráfica. todo discurso, representação ou narração - significados estão a todo o
O emprego freqüente de soluções lubridas, que utilizam recursos momento sendo propostos, subjetividades sendo formadas e desejos
ficcionais dentro de um quadro argumentativo, também sinaliza um sendo cooptados. E, para além da lógica do simulacro, continua sendo
reencontro com métodos já tidos como datados e irrecuperáveis. Se através das práticas semióticas que atribuímos sentido ao mundo
Flaherty considerava o cinema como "um ato da imaginação" e os histórico, onde nossas vidas estão em jogo.
ingleses entendiam que o documentário era o "tratamento criativo da Travar um combate no campo simbólico não consiste meramente
realidade", estas antigas expressões encerram valores que hoje ressoam em produzir representações "verdadeiras" do mundo. Representações
com mais intensidade do que algumas décadas atrás, durante a vigência só assumem uma dimensão política quando seu sentido não se deixa
de uma crença excessiva no poder evidencia! da imagem. Estas constata- aprisionar na univocidade e na totalidade. Uma pedagogia da imagem,
ções mostram que as balizas fincadas pelos fundadores da tradição do no atual contexto audiovisual, é aquela que estimula o esvaziamento das
documentário, embora móveis, continuam delimitando as margens por agências de poder e promove o descentramento de suas representações
onde corre sua transformação. prontas e acabadas. Isto não quer dizer que a verdade tenha se tornado
A matriz estético-ideológica que mais nos seduz, entre todas as intangível e nossos valores devam se atomizar em uma constelação de
que examinamos, não se encontra no tronco hegemônico da tradição pura relatividade. A crença em algum tipo de verdade sobre o mundo
do documentário, mas em um desvio que ao mesmo tempo a antecede social e histórico constitui o horizonte remanescente da tradição do
e ultrapassa. Procuramos, em mais de uma oportunidade, demonstrar documentário. Se um dia esta crença chegou a confundir-se com a
que a obra fílmica e teórica de Dziga Vertov já continha uma gama impressão de que a verdade se imprime fotograficamente, isso não nos
extensa de questões que seriam problematizadas ao longo de toda a leva ao extremo de substituir um dogmatismo por outro.
224 Espelho Partido

Entendemos que certas estratégias epistemológicas engendradas Bibliografia


em documentários de produção recente podem resultar na construção
de verdades mais contingentes e situadas. Verdades fragmentárias, que
estimulam uma subjetividade capaz de abordar mais criticamente o
próprio processo social de produção de sentido. Um atributo cada vez
mais importante, em meio ao dilúvio de representações que caracteriza
o mundo contemporâneo, chamado por alguns de sociedade da imagem.
Pois estas imagens não são indiferenciadas, autônomas nem inocentes.
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YOUNG, Colin. "Cinema of Common Sense". Film Quarterfy, v. Danske Filmmuseum: 34
17, nº 4, 1964, pp. 26-29. Edison National Historie Site: 25 (embaixo)
Goskino: 77
International Museum of Photography at the George Eastman House: 30
Joris Ivens Archief/ ESJI: capa
Library of Congress, EUA: 25 (no meio)
Mapa Filmes: 216 e 217
Mikhail Kaufman Colleccion: 116 (no alto), 178 e 179
Museu do Prado, Madri: 173
Museum of Modem Art of New York Film Library: 21, 25 (no alto,
à esq.), 26, 27, 38, 47, 48 e 52
Museum of Moving Image, Londres: 25 (no alto, à dir.)
Nacional Film Archive, Londres: 57, 60, 62, 88, 89, 98 e 101
Nacional Galery, Londres: 172
Paul Rotha Colleccion: 80
Staatliches Filmarchiv, Berlim: 116 (embaixo) e 121
Vostok-kino: 78
Índice
As referências que vêm acompanhadas de um asterisco (*) remetem somente às ocorrências
nas notas de rodapé. As referências com dois asteriscos (**) remetem somente às ocorrências
nas legendas das imagens.

AITKEN, Ian Attack on a China Mission


1
55*, 57*, 58*, 60*,62*,66, 67*, 32
72*, 73,86,87*,92* atualidades
' ALEXANDROV, Grigori 31-35, 39-41, 42*, 43, 59, 107,
95,122 109, 112, 114, 115, 117, 119,
ALUO, René 127, 128, 139, 174
205 AUDEN, W. H.

1 ALMEIDA PRADO, Guilherme 98


AUMONT, Jacques

'
174*
AMET, Edward 140*, 145*, 197*
32*
Among the Canibal Isles of the S outh Pacific BALDI, Gian-Vittorio
43* 152
ANSTEY, Edgar BARNOUW, Erik
60*, 61, 64, 65*, 81, 84*, 99-101, 32*,40,46*,48,49*,50, 133*,
139,145 150,151*
antiilusionismo BARSAM, Richard
171, 174, 181-183, 197,210,218 52*, 62*, 99*, 133*
ANTONIONI, Michelangelo BARTHES, Roland
195* 49*, 50*, 133
ARISTÓFANES Battle of Yalu, The
170 32*
ARNHEIM, Rudolf Battle of Mani!la Bay
96* 32*
ASCH, Timothy BAUDELAIRE, Charles
187 142,143
As Meninas BAZIN, André
;r, 171, 173** 117
J Associated Realist Film Producers Berlim, Sinfonia de uma Metrópole
64 79, 80**
Índice 239
238 Espelho Partido

BERNARDET, Jean-Claude BRONLOW cinejomal COMOLLl,Jean-Louis


192*,202*,208* 43* 39,40,58, 111,114,132 134,157, 158*,207
BESSY, M. & CHARDON, J.-L. BUNUEL, Luis cinejornalismo Country Comes to Town, The
16* 178* (v. tb. newsreel, cinejornal) 62*
Biograph BURCH,Noel 102,103 COUTINHO, Eduardo
32,34,37 27*, 35*, 37*,42*,49*, 128*, cinema direto 174*, 215-217
BITZER, Johann 142*, 173* 109,110, 124-126, 134,136,138, Covered Wagon, The
32* BURTON, Julianne 139, 140*, 141,143,145,146, 56
Black Maria 134* 149,150,151,156,157,161, Congo
24, 25** BURTON, Tim 165,166,207,216 189, 191-194, 196,199
BLACKTON, J. Stuart 174* cinéma spontané CREIGHTON, Walter
32* 106 57,60
BLANDFORD, Steve Cabra Marcado Para Morrer cinematógrafo Crisis
84* 174*, 215-218 26-29,33,34,46, 119,141,182 136*
Blow-up CALDWELL, Genoa cinéma vécu Crown Unit Film
195* 40* 106 90
BLUE,James CALLENBACH, Ernest cinema-verdade CRUZE, James
144*, 157* 141* 114, 115, 136, 147, 150, 151, 56
Bombardment of MatanZfJS Cameraman, The 156,176,178,180,181 CUKOR, George
32* 174 cinéma-vérité 173*
BONITZER, Pascal CAMPOS, Fernando Coni 106, 107 CUNHA, Euclides da
145* 174* cine-olho, cinema-olho 208
BOURLIOUK candid eye 113-115, 117,119,120,147, CURTIS, Edward
111* 106, 144 175- 177,180,181, 18~ 197 42*
BOWEN, Harold CANONGIA, Ligia Chair, The
24* 188* 136* DAGUERRE, Louis-Jacques-Mandé
BRAULT, Michel CARDOSO, Pedro CHAPLIN, Charles 142
153** 210 173 DALI, Salvador
BRECHT, Bertold Cargo from Jamaica Chien Andalou, Un 178*
172 81 178* Dama do Cine Shangai, A
BREITROSE, Henry CARONE, José Chronique d'un Été 174*
166* 205 (Crônica de um Verão) DAVIDSON, J. D.
BRINGUIER, Jean-Claude CAVALCANTI, Alberto 149,150, 152-154, 156, 157*, 60*
144, 146, 151 64, 71 *, 87-91, 96-98, 101 158,161, 165*, 167,183,207 DAVIDSON,]. N. G.
British Film Institute CHARDON, J.-L. Coai Face 60*
64 16* 64, 97, 98** DEPARDON, Raymond
BRIK, Osip CHARNEY, Leo COE, Brian 152*
112* 32* 128* DEPUE, Oscar
BRITTEN, Benjamin CHARTON, Édouard COLLET, Jean 41**
98 142* 147* DICKSON, William
24
240 Espelho Partido Ín<licc 241

Don Quixote État des Choses, L' GAN, Aleksei Hearst


171 173* 113* 39
DONEN, Stanley European Rest Cure Gaumont Hollywood
173* 41 39 55, 57, 72
DREW, Robert EYCK,Jan van GAUTHIER, Guy HOLMES, Burton
136,137,152,156 171, 172** 27*, 142* 40, 41 **
Drijters GILES, Dennis HOLMES, Oliver W
60,64, 76, 82,86,87 FIELDING, Raymond 90* 142
DROBACHENKO, Serge 24*, 102* GODARD, Jean-Luc Homem da Câmera, O
112* Film Centre 17,174,186 (Chelovek s Kinoapparaton)
DUBOIS, Philippe 64 GOMERY, Douglas 120, 174-178, 180, 181, 193
142*, 143 filme de viagem (ver tb. travelogue) 97* Homem de Aran, O
40-43, 45, 46, 75 GRANJA, Vasco (lvfan ofAran)
EAGLE, Herbert FISCHER, Lucy 110* 51 *, 52
177* 120*, 125* Granton Trawler Homme à la Tête de Caouthchouc, L'
EDISON, Thomas FLAHERTY, Robert 81 194*
23,24,25**,29,32,33,34**,35, 20-22, 40, 45-53, 61, 62, 71, 72, Greve, A HORÁCIO
42,46*, 95,120,171 74-76, 79, 81, 85, 88, 90, 92, 108, 77 170
EdWood 127,129,136,141,159,206,222 GRIERSON, John Housing Problems
174* fonógrafo 16, 20-22, 53, 55-69, 71-76, 100, 101, 139
EISENSCHITZ, Bernard 23,24, 110,120 77**, 78-83, 84*, 85-93, 97, 99, HOVEYDA, Fereydoun
111* FORD,John 100,107, 12~ 130, 135*, 136, 166*, 183*
EISENSTEIN, Sergei 56 141,185, 202*, 206,224
76, 77, 84,85*, 90, 95,96, 112*, fotografia GRIERSON, Marion Ilha das rwres
119,122, 127*, 178* 27,28,31, 127,142,143,188, 61* 200, 202-204, 214
ELLIS, Jack 190, 193, 196 griersonismo ilusionismo
134* FOUCAULT, Michel 93,100,102,112,131,139,140, 169,170,183,188,198,205;
ELSAESSER, Thomas 19 184,202,108 (arte) 171
30*, 31 *, 40*, 41 * Fox GRIFFITH, David Imperial Six, The
ELTON, Arthur 39 37,38 (Industrial Britain)
60*, 61 FOWLE, Chick GUNNING, Tom 61,62,64
EMB Film Unit 61* 31 in teres t films
56-64, 66, 69, 86, 90, 97 FURTADO, Jorge GUYNN, William 71
Encouraçado Potemkin, O 200,202,203*,204,206,207, 134* In the Land of the H eadhunters
(Bronenosetz Potemkine) 212-214 20*,42*
76, 77 Happy Mother's Day ln the Land of the War Canoes
Entusiasmo Cai Savoir, Le 157*, 205 42*
(EntuziaZ?71 - Simfaniia Donbassa) 186 HARDY, Forsyth Intolerância
120, 121**, 122,130 GAMAGE, Fred 16*, 20*, 21*, 56*, 58*, 66*-69*, 38**
Esta Não é a Sua Vida 61* 71-76*, 80-82*, 91, 93*, 129* lron Horse, The
204,206,207,214 56

242 Espelho Partido Índice 243

IVENS, Joris KIPLING, Rudyard Louisiana Story J\1ARSHALL, John


90,206 57 51* 187
KOENING, Wolf LUMIERE MARSOLAIS, Gilles
Jack London at the South Seas 140* método/ modelo 103*, 106*, 107, 108, 125, 126,
42* KOLTSTOV, Mikhail 27,46, 127,142 162*, 164*
JACOBS, Lewis 110, 111 * irmãos MASSOT, Claude
20*, 46, 112*, 138*, 140*, 144*, KONIGSBERG, Ira 23 52*
157* 16*, 50* Louis J\1ARTIN, Marcel
Jaguar KRACAUER, Siegfried 26,28,29,32,41, 128 164*
159, 160, 161, 166 117 cinematógrafo
JAMESON, Fredric KULESHOV, Lev 33 lVIatadeira, A
204*,216* 76, 111*, 118 catálogo 207, 210-215, 218
JOHNSON, Martin & Osa 34 MAYSLES, Albert
42* LABARTHE, André Maison 136*
JONES, Jonah 119* 34 MEIRELES, Cecília
61* Ladrões de Cinema período 203
174* 40, 53 MEKAS,John
Kahloonak lanterna mágica atualidades 137*, 138*, 140*, 153*
52* 23,27,29,40 139 MÉLIES, Georges
KAPLAN, E. Ann LAWRENCE, T. E. LUSTIG, Rodolfo 194
134* 43* 79* MENDES, David
KAUFMAN, Denis A. LEACOCK, Richard 92*
VerVERTOV 105*, 106, 126*, 136-139, 141, MacDOUGALL, David e Judith Mépris, Le
KAUFJ\1AN, Mikhail 144, 145, 151-154, 156, 157*, 187 173*
109*, 127*, 175* 160,205,206 Mãe METZ, Christian
KEATON, Buster 77 18,134
173, 174 LEGG, Stuart MAIAKOVSKI, Wladimir MICHELSON, Annette
KELI X, Gene 61* 111* 181
173* LESSAGE, Julia MAMBER, Stephen MINH-HA, Trinh
KEMENY, Adalberto 134* 134* 17*, 134*, 185*
79* LEYDA, Lay March of Time, The modos de representação
Kenya 123* 102 134,147,170,185,210,218
136* Llfe of an Amm"can Fireman, The MAREY, Étienne-Jules expositivo
kino-glaz 42 24,128 134,136,158,200,203
115, 166** LINDER, Max MARCORELLES, Louis observacional
Kino G!az - A Vida de Improviso 173 105*, 106, 107, 137*, 140*, 144, 74, 134-136, 138-140, 146, 150,
116**, 120 living camera 149*, 151, 152*, 156*, 157* 152, 156, 157, 170, 191
kinok 106,144 J\1ARIE, Michel interativo
109, 114, 115, 124 Louco por Cinema 147* 134-136, 152, 158, 165*, 166,
kinopravda 174* J\1ARINETTI, Filippo Tommaso 183,191,207,209,157
ver cinema-verdade 111* reflexivo
244 Espelho Partido Índice 245

134-136, 170-172, 174, 182-183, Nuit Américaine Pett and Pott ROTHA,Paul
185, 187-188, 191-193,195, 203, 173* 89, 97 16,60*,65*, 78, 79, 82,83,85,
205,207,215,218 PINEL, Vincent 86, 90*,91, 93,100,129,130,
Moana O Casal Arnolfini 27* 131 *
20,21, 51*,52, 72, 75, 90 171, 172** PLANTINGA, Carl ROUCH,Jean
Moi, Pierre Riviere... O'er Hill and Da/e 134* 107, 108, 149, 150-154, 156-161,
205 62* PONTING, Herbert 162*, 163-166, 182,183
Moi un Noir OLIVEIRA, André Luis 42* Rough Sea at Dover
161, 162, 163**, 167 174* PORTER, Edwin 33
MORIN, Edgar OMAR, Arthur 33,41,42, 172 RUBY,Jay
107,108,149,150, 152-154, 156, 188, 190-193, 194*, 196, 198-200 PREDAL, Réné 184, 185*, 187,206,219*
157, 165*, 182,183 One Famify 164* RUSPOLI, Mario
MUSSER, Charles 57 Primary 103,104, 106*, 125,138, 139*,
24*,31*,32*,33,36,40*,41*,42 On the Pofe 136* 143, 145, 150, 152*
MUSSOLINI, Benito 136* princípio de perversão do direto RUSSOLO, Luigi
194* Onzieme Année, La 157,161,166,207,216 110
MUYBRIDGE, Eadweard 119* PUDOVKIN, Vsevorov RUTTMANN, Walter
24 Os Sertões 76, 77, 95, 96,118,122 79, 90
208 Punition, La Rybe and Mandy at Coney Isfand
Nanook of the North Outubro 157* 41
20,40,45-51, 52*, 53, 92,206 77 Pyramide Humaine, La
Nacional Film Board OVÍDIO 164,167 SADOUL, Georges
90, 106 170 110, 118, 127*, 147*, 155*
New Era Films quinetoscópio SALT, Barry
60, 61* Paixão de Cristo 24,25**,29,34, 120 30*
newsreel (v. tb. cinejornal) 30 São Paulo, Sinfonia da Metrópole
39,63, 71,100,102 Paramount RAMIÓ, Joaquim 79*
NICHOLS, Bill 39, 55* 51* SCHATZ, Thomas
19, 103*, 134, 135*, 136,170, Realist Film Unit 39*, 95*
185*, 186*, 187, 191*, 192*,203* PATHÉ, Charles 64 SCHWARTZ, Vanessa
nickelodeon 39,45 RENOV, Michael 32*
36,41,42 PAUL, Robert 17*, 134*, 166*, 185*, 188* Se!ig
Night Mail 33 REYNOLDS, Charles 49*
64,98 PELLIZZARI, Lorenzo 138* SENNET, Mack
NOGUEZ, Dominique 88*,89*, 91*, 97*, 98* ROGOSIN, Lionel 173
181* PENNEBAKER, Donn A. 126 Sete Sacramentos de Canudos, Os
North Sea 136*, 140* ROSEN, Philip 212*
89, 90, 101 PETRIC, Vlada 90*, 134* Shadow on the Mountain
nouvelle vague 110*, 118*, 123*, 175*, 177*, ROSENTHAL, Alan 62*
106 179* 16*, 17*, 170*, 184*, 185*, 187*, SHAKESPEARE, William
206*,219* 171
24(, l ispdh,, Partid,, Índice 24 7

SHER\X'OOD, Robert ST A:tvl, Robert [ 'pstream \X'ILIJAI\IS, Linda


46, 50 170, 171, 182, 210* 62* 142*, 215*
SHKLOVSKY, Viktor Star is Born, A WILU AMSON, James
112*, 177 173* VAUGHAN, Dai 32
SHORIN Strand Film Unir 17*, 134* \X1NSTON, Brian
123* 64 Vl\LÁSQUEZ 16*,20*, 50*, 79*, 90*, 103*,
SHUB, Esfir Sunset Bouleverd 171, 173** 134*, 142~ 151~ 165*, 166*,
112* 173* VERTOV, Dziga 184*, 185*
Sight and Sound SUSSEX, Elizabeth 76, 90, 107-115, 116**, 117-132, lf7zth I ,anrence in Arabia
68* 88*, 89*,91*, 98*, 134* 141, 146, 147, 160, 174, 175*, 42*
Singing in the Rain SVILOVA, Elisaveta 176, 177*, 178-182, 198,199,222 \Xbrld Union of Documentary
173* 109, 175*, 179 vertoviano, método 15
Skirmúh Between Rassian and Japanese 113,115,117, 118*, 193,199,127 WRIGHT, Basil
Advance Guards TAGER VIGO,Jean 60*, 61, 64, 81, 98
32* 123* 90
SKLADANOWSKY, Max TAYLOR, John Vitagraph XAVIER, Ismail
26 60*, 89 41* 38*, 169*, 186*
SMITH, Albert Tesouro da Juventude vitascópio
32* 193-196, 199 33,34
Só THOMAS, Lowell I 7ocês
205 42* 196-199
SOKOLOV, Ippolit travelogue, (ver tb. filme de viagem) VONNEGUT, Kurt
123 71, 79 208
TRETYAKOV, Sergei I ~age dans la Lune
T

112* 194*
som
assmcrorusmo TRUFFAUT, François Yankee No
96,99, 105, 121-123 173* 136*
sincronismo TRUTAT,E.
99, 100, 104, 105, 121, 135, 143, 128* WAKEMAN, John
161 TURIN, Victor 37*
direto 78, 79, 90 WALLACE, Irving
104, 10~ 107, 10~ 15~ 151~ Turksib 40*
165,211 78, 79 WATT, Harry
shoot for sound 61 *, 64, 88-90, 98
104 Uncle Josh \X'EIS, Elisabeth
Song of Ceylon 172 97*, 120*, 125*
64,98 Undying Story of Cap. Scott, The WENDERS, Wim
SPICE, Evelyn 43* 173*
61* Universal \X1LDER, Billy
39 173*

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