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A Fonte da Discórdia

Por Virginia Wolf

Quando vai (e volta) de metrô para seu mentários sobre temas relacionados à
trabalho na Plexifilm, uma produtora de música).
cinema e selo independente de DVDs “Helvetica” estreou em março do ano
com sede no Brooklyn [em Nova York], passado no festival de cinema South by
Gary Hustwit vê a mesma coisa por Southwest e, divulgado em grande par-
toda parte: a fonte Helvetica. O metrô, te por sites voltados ao design e pelo
diz, “está coberto de Helvetica. Eu quis boca-a-boca, em pouco tempo se tor-
entender o porquê disso”. nou sucesso cult internacional. O DVD
E não é apenas o metrô. Os números foi lançado em novembro. Uma sema-
dos táxis de Nova York também estão na mais tarde, Hustwit foi indicado ao
em Helvetica. A fonte está presente nos prêmio Independent Spirit na categoria
formulários de Imposto de Renda, nas “Mais Verdadeiro que a Ficção”.
caixas do correio dos EUA e em cami- Uma fonte tipográfica parece um tema
nhões da ConEd [empresa de energia]. improvável para um filme, mas o tema
A fonte “sans serif” criada há 50 anos da Helvetica suscita reações fortes.
[completos em 2007] é vista em inú- Para alguns designers, a fonte repre-
meras logomarcas: Sears, Fendi, Jeep, senta um tipo de beleza transparente,
Toyota, Energizer, Oral-B, Nestlé. Quan- racional e moderna.
do você se dá conta de que a Helvetica Para outros, ela é tediosa, opressiva e
está em toda parte, diz Hustwit, “não empresarial demais. Hustwit usa a his-
consegue deixar de pensar nisso”. tória da Helvetica para relatar a história
Para descobrir a razão da onipresença do design gráfico no pós-guerra e de-
dessa única fonte, Hustwit fez um docu- monstrar a eterna tensão estética entre
mentário, seu primeiro como diretor o expressivo e o clássico. A seguir, ele
(ele já tinha produzido cinco docu- explica seu projeto.

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A Fonte da Discórdia A Fonte da Discórdia

PERGUNTA - Por que não um filme sobre a [fon- Quando as pessoas notam a fonte, geralmente é porque foi um exemplo perfeito disso. Eu também queria
te] Times New Roman? Por que a Helvetica se há algo de errado com ela: é difícil de ler ou as letras encontrar a Helvetica em letras grandes, e as do
impõe a tal ponto? estão próximas demais uma da outra. cartaz estão entre as maiores que encontramos.

HUSTWIT - A Helvetica é uma questão que real- PERGUNTA - O cinema está passando por algo se- PERGUNTA - O filme discute se a Helvetica
mente polariza opiniões dentro da comunidade do melhante à transformação que atingiu a tipografia no pode continuar a ser neutra, depois de ser tão
design. As pessoas que gostam dela geralmente são início dos anos 90, com ferramentas digitais barate- usada.
pessoas interessadas no modernismo, e as que não ando muito a produção e distribuição. Existe algo que
gostam são pessoas que o rejeitam. os cineastas possam aprender com o que aconteceu H - É verdade que as fontes tipográficas vão acu-
Ela se tornou símbolo do design gráfico modernista na área das fontes? mulando bagagem em decorrência de como são
posterior e do chamado estilo suíço, o estilo interna- usadas. Quando olho para a Helvetica, penso em
cional que ganhou imensa popularidade mundial nos H - A democratização da tecnologia, seja ela a tecnologia em American Airlines.
anos 1960. do design gráfico ou a da cinematografia, é uma faca Uma das coisas espantosas da Helvetica é que
Na década de 70, todo mundo que se rebelava con- de dois gumes. Ela abaixa as barreiras de entrada, de ela vem sendo usada há décadas, inclusive usada
tra isso odiava a Helvetica, porque ela simbolizava modo que muitos designers ou cineastas novos podem em excesso, mas, mesmo assim, ainda a vemos
uma linguagem visual uniformizada, internacional, se expressar. por toda parte. E alguns designers gráficos jovens,
corporativa. Ainda existe uma divisão entre desig- Ao mesmo tempo, enche a paisagem de muito lixo. Há muito voltados ao futuro, ainda a usam da mesma
ners, mesmo os jovens: há os que gostam daquele algumas coisas interessantes que o YouTube levou à maneira como ela era usada nos anos 1960.
estilo clean, minimalista, racional, e os que querem atenção de um público maior, mas, se você pensar na Não consigo explicar por que, com os milhares de
que as coisas sejam mais emocionais e expressivas. porcentagem de coisas no YouTube que valem a pena fontes das quais as pessoas dispõem hoje, uma
A Helvetica é a linha divisória que separa esses dois em qualquer sentido cultural, verá que ela é minúscula. grande porcentagem delas ainda opta por usar a
lados. O trabalho envolvido na criação de um documentário é Helvetica.
muito maior do que pensa a maioria das pessoas quando
PERGUNTA - Como se sente, pessoalmente, em assistem a um programa de meia hora ou a um documen- PERGUNTA - Como você financiou seu filme?
relação à questão? tário de uma hora na TV. É preciso muito mais trabalho
em termos da edição, do som, da fotografia e tudo o H - Foi financiado por meu próprio dinheiro, meus
H - Acho que provavelmente me situo entre os mais. cartões de crédito, meus amigos e minha família.
modernistas. Nos últimos 20 anos, venho gostando Uma firma canadense de design chamada Veer
dos dois lados. Meu pano de fundo está no punk PERGUNTA - Você foi a 90 sessões de seu filme em entrou como patrocinadora, quanto o projeto já
rock, então gosto daquele estilo visual anarquista, todo o mundo, algumas com públicos amplos e ou- estava perto de ser finalizado.
detonado, mas também gosto de elementos gráficos tras com plateias formadas por designers gráficos.
“clean”, inspirados na Bauhaus. Quão diferentes foram as reações? Quais eram as PERGUNTA - Teria custado muito mais fazer o
Minha opinião não chega a ter muita importância no perguntas que faziam? filme 20 anos atrás?
filme, que funciona como vitrine para todos esses
diferentes designers gráficos e de fontes. Não gosto H - “Por que fazer um filme sobre uma fonte tipográfica?” H - Provavelmente. Rodamos 60 horas de filme.
de documentários feitos na primeira pessoa. Não é a pergunta mais frequente. O que acho da Helvetica, Se tivéssemos filmado com película de celulóide, o
me interessam as opiniões do cineasta. O que me como escolhi os designers que trabalham no filme: essas custo teria sido maior. E o processo de edição cus-
interessa é o tema das opiniões expressas no docu- foram as perguntas feitas com mais frequência. ta muito menos hoje. Dá para fazê-lo num sistema
mentário. Mesmo quando mostramos “Helvetica” em festivais de Mac sofisticado. A maior despesa ainda é a que se
cinema em que o público era formado não por designers, tem com as pessoas -conseguir um bom diretor de
PERGUNTA - Você mesmo desenhou algumas mas por pessoas que simplesmente gostam de documen- fotografia, um bom editor e bons técnicos de som.
fontes um tanto quanto “grunge” no início dos tários, a reação foi a mesma. Isso é algo que não muda. Se você quer fazer um
anos 1990. O que se aprende quando se cria uma Uma coisa que descobri foi que os estudantes de design ótimo trabalho, precisa chamar ótimas pessoas.
fonte? gráfico são exatamente iguais em todos os países – até
sua aparência é igual. Eles usam as mesmas roupas. É PERGUNTA - Você já sabe qual será seu próxi-
H - Descobre-se que o trabalho dos designers de uma rede verdadeiramente global de designers. Eu me
mo projeto?
fontes é espantosamente complexo. O nível de senti como se estivesse mostrando o filme 90 vezes para
detalhe que entra em todas as decisões tomadas o mesmo grupo de pessoas.
H - Os filmes de música com os quais trabalhei, e
quando se cria uma fonte tipográfica é simplesmente
“Helvetica”, com toda certeza, tratam da criativida-
inacreditável. Que distância deve existir entre duas PERGUNTA- Uma das coisas divertidas do filme é que
de – do processo criativo – e também da comuni-
letras diferentes quando elas aparecem lado a lado, ele mostra tantos usos diferentes da Helvetica. Qual é
cação. Acho que esses dois temas vão reaparecer
como, por exemplo, um “T” em maiúscula e um “o” sua favorita?
em minúscula? Que distância aquele “o” deve desli- em meu próximo filme.
zar para baixo da trave horizontal do “T”? É preciso H - No cartaz da Copa do Mundo de Berlim. Estávamos Nos últimos cinco a dez anos, percebe-se uma
tomar essas decisões para cada par de letras que passando de carro, por acaso, olhamos para cima e tendência nas pessoas em acharem que um docu-
poderia ser formado. É uma coisa capaz de enlou- vimos um sujeito suspenso de cordas a 15 metros de mentário precisa ser político para valer a pena.
quecer. Alguém como [o britânico] Matthew Carter é altura, costurando as letras gigantes em Helvetica no car- Para mim, isso é lamentável. Há esse outro lado
mestre nesse assunto. É uma daquelas formas de taz da Copa do Mundo, que devia ter um quarteirão de do cinema documental que analisa a criatividade
arte feitas por pessoas completamente invisíveis. comprimento. Quase todas as imagens de Helvetica que e outras questões não ligadas à justiça social ou
É como se elas não quisessem que seu trabalho filmamos em cidades foram encontradas aleatoriamente, à guerra, que são igualmente merecedoras de
fosse notado. Querem apenas que as pessoas leiam por puro acaso. análise. É como se não pudéssemos ter literatura
a mensagem e compreendam o que o texto diz, sem A meta era encontrar usos interessantes da fonte ou pes- de não-ficção, como se nunca pudéssemos ter
nenhum tipo de interferência da fonte. soas interagindo com ela. A bandeira da Copa do Mundo romances.

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