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RUSTY QUILL APRESENTA

Os Arquivos Magnus

EPISÓDIO 004
Caso #0132806: Vire a Página

Depoimento de Dominic Swain, a respeito de um livro que ficou


brevemente em sua posse no inverno de 2012.

Aviso de conteúdo: altura, vertigem, horror corporal, restos humanos,


ossos animais
Tradução: Lia
ARQUIVISTA

Depoimento de Dominic Swain, a respeito de um livro que ficou brevemente em sua


posse no inverno de 2012. Depoimento original prestado em 28 de junho de 2013.
Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)

Trabalho como técnico de teatro em vários locais do West End; eu mexo


principalmente com as luzes, mas muitos lugares menores não podem pagar equipes
grandes para suas produções, então acabo fazendo um pouco de tudo. Acho que isso não
é diretamente relevante para a minha experiência, mas só quero que saiba que não sou
uma pessoa maluca vagando pela rua. Eu trabalho, faço coisas práticas com as minhas
mãos e não estou propenso a voos loucos da imaginação.

Naquele dia, eu ia assistir a uma matinê de As Troianas no The Gate Theatre, em


Notting Hill. Uma amiga minha, Katherine Mendes, estava no elenco e tentava me
convencer a assistir já há algum tempo. Trabalhamos juntos na produção de A Gaivota
alguns anos antes e tinha rolado algo entre nós naquela época. Agora eu tinha acabado de
ficar solteiro, então estava ansioso para encontrá-la e ver se alguma das velhas faíscas
ainda existiam. Acabei indo com ela na tarde de sábado, dia 10 de novembro — me lembro
da data exata pois havíamos discutido muito a respeito dela, já que estávamos ambos
envolvidos em apresentações diferentes na época, tornando as noites difíceis.

Então, no sábado à tarde, eu estava em Notting Hill Gate, matando uma ou duas horas
antes do início da apresentação. Bem, Notting Hill não é um lugar que eu vá com
frequência já que tende a ser caro, mesmo para Londres. E não sei o quanto você sabe
sobre técnicos de teatro, mas geralmente não somos profissionais muito bem pagos. Ainda
assim, eu tinha algumas lembranças vagas de que existia uma loja de caridade da Oxfam
em algum lugar por ali, já que eu já havia comprado uma túnica militar antiga e bonita lá
que continua sendo uma das minhas jaquetas favoritas. Encontrei a loja facilmente e
passei cerca de dez minutos examinando as roupas e bugigangas, mas fiquei um pouco
decepcionado. Era menor do que eu me lembrava e parecia conter as mesmas
curiosidades tediosas de todas as lojas de caridade. Eu ainda tinha algum tempo para
matar, então decidi dar uma olhada nos livros, algo que raramente me dou ao trabalho de
fazer normalmente.
Encontrei o livro na estante de Ficção Científica e Fantasia. A princípio presumi que
fosse algum tipo de edição especial de couro sintético e tive certeza de que quem o colocou
à venda deve ter pensado o mesmo, porque o preço era de apenas quatro libras. No
entanto, havia algo sobre ele que me fez dar outra olhada, e ao pegá-lo, senti a costura e
percebi que poderia muito bem ter sido encadernado em couro verdadeiro,
provavelmente de bezerro, dada a sua maciez. Não sou especialista em livros de forma
alguma, mas ele parecia antigo, e pensei que poderia ter sido encadernado à mão, pois as
páginas eram ligeiramente desiguais. Não havia nenhuma sobrecapa e na capa nenhum
título, mas gravadas na lombada em letras douradas desbotadas estavam as palavras Ex
Altiora. Eu estudei um pouco de latim na escola quando era criança, mas não tive muitos
motivos para usá-lo desde então, portanto você vai ter que me perdoar se minhas
traduções não fizerem muito sentido, mas eu acredito que significava “Do Alto” ou “Fora
das Alturas”.

Fiquei surpreso para dizer o mínimo — o livro claramente valia muito mais do que
o preço pelo qual estava sendo vendido. Se o vendedor que o colocou ali estivesse
prestando atenção, estaria na caixa de vidro onde guardavam as coisas que as pessoas
doavam que eram realmente valiosas. Eu dei uma olhada, mas parecia estar inteiramente
escrito em latim, então não tive muita sorte em descobrir sobre o que se tratava. A única
parte em inglês parecia ser um carimbo na frente que dizia “Da biblioteca de Jurgen
Leitner”, embora nenhum autor estivesse listado. Havia também várias ilustrações em
preto e branco — xilogravuras, eu acho — cada uma mostrando uma montanha ou um
penhasco ou o que parecia ser um céu noturno vazio. Tive uma sensação estranha quando
olhei para aquela imagem como se por mais simples que fosse eu estivesse prestes a cair
nela, e meu estômago deu uma revirada estranha, quase me fazendo deixar o livro cair no
meio da Oxfam.

Decidi comprá-lo. Mesmo que eu nunca descobrisse como ler aquela coisa,
claramente valia muito mais do que eles estavam pedindo. Eu me senti um pouco idiota
por não avisá-los sobre o quão valioso ele era, quase como se estivesse roubando dinheiro
da caridade, mas no final percebi que não era meu trabalho definir os preços na loja, e
além disso aquele livro havia me deixado absolutamente fascinado. A mulher que
trabalhava no caixa nem ergueu uma sobrancelha quando eu entreguei o dinheiro e
paguei as quatro libras. Saí na esperança de encontrar um café onde pudesse sentar e dar
outra olhada, mas foi então que notei a hora. De alguma forma eu passei uma hora naquela
loja, e agora estava quase atrasado para a peça de Katherine. Felizmente cheguei a tempo,
mas tive que correr um pouco.

A peça foi boa. Nunca fui fã do teatro grego, e essa apresentação não foi a que me
conquistou. Katherine foi excelente, é claro, mas francamente o resto da peça foi um pouco
trivial. Ainda assim, não sou crítico de teatro e não estava exatamente prestando toda a
atenção do mundo, pois estava convencido de que havia um problema com as luzes do
palco. Durante todo o show senti um cheiro sútil de ozônio e fiquei preocupado. A única
outra vez que senti esse cheiro no teatro foi quando um dos meus ajudantes
acidentalmente encomendou o tipo errado de luz e acabamos instalando um projetor com
uma lâmpada de xenônio-mercúrio — o tipo usado para esterilizar equipamentos
médicos com UV. Identifiquei o problema antes de qualquer coisa acontecer, mas ainda
me lembro daquele cheiro intenso de ozônio. Ainda assim, ninguém mais pareceu notar e
eu não conseguia ver nada no equipamento de luz do teatro que pudesse causar o odor,
então tentei apenas ignorá-lo.

Depois que a apresentação terminou, Katherine e eu jantamos rapidamente antes de


irmos para nossas respectivas apresentações noturnas. Fiquei decepcionado ao perceber
que qualquer atração que houvesse entre nós parecia ter desaparecido completamente, e
apesar de termos passado algumas horas agradáveis juntos era óbvio que nenhum de nós
queria continuar com aquilo. Eu mostrei o livro a ela, no entanto. Ela sabia ainda menos
latim do que eu, mas ficou impressionada. Ela disse que parecia valioso e que eu deveria
levá-lo a algum lugar para ser avaliado, embora ela não tenha olhado os detalhes, pois as
fotos por algum motivo a deixavam com vertigem.

Nada digno de nota ocorreu depois que eu saí. Apresentei minha peça, uma
produção de Muito Barulho por Nada lá no teatro Courtyard, sem contratempos. Voltei
tarde para casa pois tinha saído para tomar um drinque com o diretor de palco e alguns
atores, e me sentia muito acordado para simplesmente ir para a cama, então me servi um
pouco de gim-tônica e decidi olhar o livro mais detalhadamente. Claramente eu não tinha
aprendido mais latim desde quando o comprei doze horas antes, então ler ainda estava
fora de questão — mas continuei a dar uma olhada mais de perto nas xilogravuras. Havia
cerca de uma dúzia delas, a maioria de montanhas e penhascos, mas uma parecia ser uma
torre, assomando sobre a paisagem rural em um ângulo estranho, com pequenos pássaros
rondando o cume. E então havia aquela imagem de um céu vazio. Nunca tive medo de
altura, mas olhando para aquela imagem eu me senti... Não sei direito. Eu simplesmente
não conseguia olhar para ela por muito tempo. Parecia se abrir infinitamente, não havia
nada a fazer senão cair nela. Era ainda mais estranho porque não havia muita coisa na
imagem em si exceto pela tinta preta e algumas estrelas estilizadas, mas algo nas
proporções surtia esse efeito em mim.

Eu decidi que talvez Katherine estivesse certa e ele poderia ser valioso como uma
antiguidade, então eu fiz algumas pesquisas para tentar descobrir mais sobre ele. O latim
caiu em desuso como língua para textos acadêmicos no século 18 e eu realmente duvidava
que aquela coisa fosse tão antiga. Desde então, ele só foi realmente usado para textos
religiosos, mas o livro certamente não parecia estar cheio de orações. Pesquisar Ex Altiora
online não adiantou muito — a frase era usada em algumas orações antigas, havia uma
empresa chamada Altiora e algo em italiano sobre futebol, mas nada que parecesse
minimamente relacionado ao meu livro. Procurar por Jurgen Leitner não foi muito mais
produtivo. Apareceu uma página sobre um músico austríaco e algumas outras do
Facebook, embora todos parecessem ter tremas em seus nomes, ao contrário do que
estava no livro, e nenhum deles parecia o tipo de pessoa a ter uma biblioteca cheia de
textos estranhos em latim. A única coisa que encontrei que parecia vagamente relevante
foi uma listagem no eBay de 2007. O leilão foi intitulado “Chave de Salomão, 1863 —
propriedade de MacGregor Mathers e Jurgen Leitner”, e foi comprado por pouco mais de
1.200 libras por um usuário desativado — grratodebiblioteca1818. Não havia imagem ou
descrição — apenas o título e o lance vencedor. Decidi encerrar a noite e ir para cama.
Acho que tive um pesadelo, mas não me lembro dos detalhes.

Dormi até muito tarde no dia seguinte e quando acordei não havia muita luz do sol,
mas passei o tempo até o horário da minha apresentação contatando vendedores de livros
que eu havia procurado online. Todos eles estimaram a idade do livro entre 100 e 150
anos e disseram que parecia ter sido encadernado por encomenda. A maioria fez uma
oferta para comprá-lo por algumas centenas de libras, mas nesse ponto eu estava mais
interessado em obter informações sobre ele. Infelizmente, nenhum deles tinha ouvido
falar do livro antes ou se familiarizava com seu conteúdo. O último vendedor que procurei
reconheceu o nome Jurgen Leitner, no entanto. Ela me disse que Leitner tinha sido um
grande nome na cena literária durante os anos 90; um escandinavo rico e solitário
pagando quantias absurdas de dinheiro por quaisquer livros que lhe chamassem a
atenção. Dizia-se que ele costumava encomendar o encadernamento de livros fornecendo
um manuscrito, ou até mesmo contratava autores para produzir obras para seu dossiê —
embora ela não conhecesse nenhum escritor que tivesse trabalhado com Leitner. Ele
sumiu da vista do público por volta de 1995, mas ela lembrou que ele costumava negociar
frequentemente com a Pinhole Books em Morden, e me deu os detalhes de Mary Keay, a
dona.

Eu fui e apresentei minha peça depois disso. Aliás, era última noite da temporada —
e embora eu não tivesse perdido uma única deixa da iluminação, durante todo o tempo eu
simplesmente não conseguia tirar o livro da minha cabeça. Eu senti como se houvesse algo
que estava faltando, fora do meu alcance. E durante todo o tempo eu pude sentir aquele
mesmo cheiro fraco de ozônio. Era ozônio? Havia algo a mais ali. Algo que eu conhecia,
mas não conseguia me lembrar. Cada vez que eu sentia que estava mais perto, era tomado
por uma tontura e náusea que ameaçava me derrubar.

Eu não fui à festa do elenco depois, optando por uma longa caminhada para “clarear
minha cabeça” no ar frio de novembro. Não sei por quanto tempo caminhei. Deve ter se
passado horas, mas parecia o certo, como se fosse tudo o que eu podia fazer. Caminhar
parecia tão natural quanto cair. Foi só quando um homem gritou comigo por quase
tropeçar nele que parei e observei o que estava à minha volta. Eu não tinha ideia de onde
estava. Peguei meu telefone para encontrar a estação mais próxima e vi que estava a
apenas uma rua de distância de Morden. Me senti tonto de repente, e quando olhei para o
prédio à minha frente não fiquei nem um pouco surpreso ao ver uma placa de latão onde
se lia "Livros Pinhole — Somente com hora marcada" ao lado de uma porta de madeira
com manchas escuras sem identificação. Toquei a campainha e esperei.

A mulher que abriu a porta não era nada como eu esperava. Ela era muito velha e
dolorosamente magra, mas sua cabeça estava completamente raspada e cada centímetro
de pele que eu podia ver estava tatuado com palavras escritas em uma escrita que eu não
reconheci. Ela estava no fim de um lance de escadas, e do topo eu podia ouvir o som de
death metal retumbando em alto-falantes potentes. Eu me perguntei por um momento se
ela recebia reclamações dos vizinhos por ouvir música tão alto às duas horas da manhã, e
percebi assustado que eram duas horas da manhã. Me desculpei por incomodá-la tão
tarde e perguntei se ela era Mary Keay. Ela apenas bufou e perguntou de uma maneira
decididamente hostil se eu tinha um compromisso. Enfiei a mão na bolsa e tirei de lá Ex
Altiora, o abrindo para mostrar o nome de Leitner no livro. Ao ver isso seus olhos
pareceram se iluminar e ela se virou para subir as escadas. Ela não fechou a porta atrás
dela, então tomei isso como um convite e a segui.
Entramos em um conjunto de cômodos apertados, com livros empilhados em todos
os cantos imagináveis, quase a ponto de eu ter que tomar cuidado ao segui-la pelo
labirinto para não virar na direção errada. Eu percebi que ela estava falando, e não parecia
se importar se eu a ouvia por cima da música ou não. Ela disse que fazia muito tempo
desde que ela havia encontrado um Leitner, embora “seu Gerard” ficasse de olho. Ela não
deu nenhuma pista sobre quem poderia ser esse Gerard dela; essa velha estranha não
parecia interessada em realmente ler ou examinar meu livro a fundo, mas perguntou se
eu queria ver o dela. Eu apenas concordei. Eu estava perdido ali, não tinha ideia do que
estava acontecendo. Eu apenas sabia que não sentia o cheiro de ozônio desde que chegara
ali.

Segui Mary Keay até um estúdio sombrio. Era pequeno no início, mas cada parede
estava completamente coberta por estantes de livros lotadas, sobrecarregando ainda
mais o espaço. Imediatamente minha anfitriã começou a examiná-las atentamente,
murmurando para si mesma sobre onde “ele” teria colocado. Eu fiquei parado lá sem jeito,
não querendo encarar a velha, mas também hesitante em fazer qualquer outra coisa. Além
das estantes de livros, não havia muito na sala além de uma escrivaninha gasta com uma
cadeira de aparência muito antiga atrás dela. A mesa estava coberta de papéis, arame de
pesca e um aparelho de barbear. Acho que isso diz algo sobre meu estado de espírito
naquele ponto, mas eu nem sequer pensei duas vezes sobre aqueles itens. Em vez disso,
fixei minha atenção em uma foto pendurada em uma pequena área da parede não coberta
por estantes de livros. Era uma pintura de um olho. Muito detalhada, e a princípio quase
diria que era praticamente fotorrealística. Mas quanto mais eu olhava, mais via os padrões
e simetrias que se formavam em uma única imagem, até que eu estava tão focado neles
que comecei a ter dificuldade em ver o próprio olho. Escritas abaixo da imagem estavam
três linhas, em uma caligrafia verde bonita: “Conceda-nos a visão que não podemos
conhecer. Conceda-nos o aroma que não podemos sentir. Conceda-nos o som que não
podemos chamar.”

Nesse momento, Mary Keay voltou com duas xícaras de chá. Eu nem tinha notado
ela saindo e também não pedi a xícara de chá preto que ela colocou em minha mão. Ela
perguntou se eu gostei da pintura e me disse que o seu Gerard tinha feito. Disse que ele
era um artista muito talentoso. Murmurei algo em aprovação, não me lembro exatamente
o quê, e olhei para a xícara de chá em minha mão. Ela não me ofereceu leite, e agora estava
ocupada vasculhando as prateleiras novamente, sua própria xícara esquecida na mesa.
Tentei beber o chá por educação, mas tinha um gosto horrível, como poeira e fumaça. Acho
que algum dia pode ter sido lapsang souchong, mas se foi, deve ter sido anos atrás.

Finalmente, Mary encontrou o livro que procurava e o pegou da estante. Ela me


entregou um livro que à primeira vista parecia quase idêntico ao meu exemplar de Ex
Altiora, exceto que o couro estava em um condições um pouco melhores. Não tinha título,
mas ao abri-lo pude ver que estava escrito em letras que eu não reconhecia. Não havia
ilustrações neste livro e as únicas palavras em inglês que consegui encontrar estavam no
carimbo: “Da biblioteca de Jurgen Leitner”. Igual ao meu. Mary me disse que estava escrito
em sânscrito, mas quando perguntei se ela podia ler, ela simplesmente começou a rir.

Ela pegou o livro de volta e caminhou até a mesa onde a única lâmpada da sala
lançava sombras nítidas pelo chão. Ela deliberadamente segurou o livro nas sombras por
alguns segundos e então o devolveu para mim. Percebi pela primeira vez que a música
heavy metal não estava mais tocando, e a sala estava totalmente silenciosa. Eu abri o livro,
e por alguns segundos fiquei confuso ao ver que nada parecia ter mudado. A escrita ainda
era ininteligível para mim e não parecia diferente. Eu o ergui para dar uma olhada mais
de perto, e quando o fiz ouvi algo cair de leve no chão. Eu olhei para baixo e vi ossos. Ossos
de animais pequenos pelo que podia presumir, mas cada um estava ligeiramente dobrado
e deformado em formatos que ossos não deveriam formar. Enquanto eu olhava para eles,
Mary Keay pegou o livro de mim e o passou pelas sombras mais uma vez. Mais ossos
caíram. Ela fez isso várias vezes, até que uma pequena pilha se formou aos meus pés.

Eu não sabia o que dizer. A essa altura minha cabeça latejava e a sensação daquele
lugar escuro e apertado com seu chá velho e livros antigos estava começando a me
oprimir. Tudo que eu conseguia pensar em perguntar era se meu livro também fazia isso.
Mary Keay riu e me disse para testar por mim mesmo. Comecei a folhear aquelas páginas.
Eu não havia passado por nenhuma sombra mas sabia que algo havia mudado. As
xilogravuras eram mais nítidas de alguma forma, e por baixo de cada uma havia novas
linhas, grossas e escuras, estendendo-se do céu. E então cheguei à imagem daquela noite
vazia. Mas agora ela tinha um padrão nítido e ramificado entalhado nela. Um padrão que
eu reconheci. Meu estômago embrulhou, como se o chão tivesse sumido e eu estivesse
caindo.

Lutando para ficar de pé, murmurei alguma desculpa e comecei a me retirar, o cheiro
de ozônio estava de volta agora, mais forte do que nunca, e eu precisava sair. Eu caí da
escada enquanto fugia, machucando meu quadril e torcendo meu tornozelo
dolorosamente, mas não me importei. Saí mancando daquele lugar o mais rápido que
pude e chamei um táxi para me levar para casa, os dedos ainda firmemente presos em
meu livro.

O padrão de ramificação que vi naquela foto é conhecido como a figura de


Lichtenberg. Ele mostra os caminhos divergentes da eletricidade em um material isolante,
como vidro ou resina. Eu sabia disso pelo padrão de cicatrizes nas costas do meu amigo
de infância, que foi atingido por um raio por minha causa. Seu nome era Michael Crew, e
nós tínhamos 8 anos na época, brincando em um campo perto da casa da minha avó.
Quando a tempestade começou, Michael disse que deveríamos entrar, mas eu queria
continuar brincando na chuva. Eu disse isso a ele, e ele apenas suspirou e me disse que
tudo bem. Foi quando disse essas palavras que ele foi atingido. O barulho foi tão alto que
abafou seus gritos completamente, mas foi o cheiro que realmente me marcou: aquele
cheiro poderoso de ozônio, misturado com o cheiro de carne cozinhando. Michael
sobreviveu no final, mas a cicatriz, aquela cicatriz ramificada de Lichtenberg, permaneceu
com ele pelo resto de sua vida.

Quando cheguei em casa precisei de toda a minha concentração para subir as


escadas, e quando finalmente consegui alcançar o meu sofá eu não conseguia afastar
aquela sensação de estar caindo. O cheiro era tão forte que eu mal conseguia respirar. Eu
não olhei para o livro, apenas fiquei lá. Sentia como se estivesse esperando por algo, mas
não fazia ideia do quê.

Quando a batida na porta finalmente veio, eu estava quase me sentindo recomposto


o suficiente para atender. Quase. Ainda demorei quase cinco minutos para reunir a
coragem para abri-la. Não bateram de novo, mas eu tinha certeza de que o que quer que
estivesse do outro lado não tinha ido embora. Estendi a mão, agarrei a maçaneta e abri a
porta. Parado logo após a soleira estava um homem em um longo casaco de couro escuro.
Seu cabelo era tingido num preto artificial e ele tinha o olhar e a barba por fazer de alguém
que não dormia há alguns dias. Eu perguntei se ele era Gerard Keay. Ele disse que sim e
que gostaria de ver meu livro. Eu balancei a cabeça silenciosamente e ele me seguiu para
dentro, fechando a porta atrás de si.

Peguei o livro e o coloquei sobre a mesa. Gerard o observou por um tempo, mas não
o tocou. Finalmente ele balançou a cabeça e se ofereceu para comprá-lo de mim por cinco
mil libras. Quase ri quando ele disse aquilo. Eu o teria vendido por uma fração daquele
valor. Eu poderia até ter dado de graça se não fosse pela sensação de que aquilo... não
contaria, por algum motivo. É difícil explicar. Eu não me importava com o que ele
planejava fazer com o livro, eu só queria me livrar dele, então concordei.

Gerard não parecia exatamente feliz com a notícia. Ele apenas balançou a cabeça
seriamente e se dirigiu para a porta dizendo que precisava pegar o dinheiro e voltar. Eu
não tentei impedi-lo. Ele saiu fechando a porta atrás de si e eu estava sozinho novamente.
O encontro todo durou pouco mais de um minuto.

Eu sentei lá, esperando ele voltar em silêncio. Foi horrível e eu precisava encontrar
uma maneira de me distrair do cheiro insidioso, então decidi pegar meu computador e ver
o que poderia descobrir sobre Gerard e Mary Keay. Eu não sei que tipo de coisa eu
esperava encontrar ao digitar seus nomes, mas certamente não era uma notícia de 2008
sobre o assassinato de Mary Keay. A polícia invadiu no final de setembro depois que
vizinhos reclamaram do cheiro, e a encontraram morta no escritório. A causa da morte foi
aparentemente determinada como uma overdose de analgésicos, mas foi julgado um
homicídio devido a “extensa mutilação do corpo após a morte”. Grandes pedaços de sua
pele foram arrancados e pendurados para secar em um arame de pesca por toda a sala. O
artigo tinha uma foto de Mary Keay, e não havia dúvida de que era a mesma velha que
conheci em Morden, embora na fotografia ela parecesse ter uma cabeça cheia de cabelo e
nenhuma tatuagem visível.

Comecei a procurar freneticamente por qualquer outra informação que pudesse


encontrar, outras notícias cobriram o julgamento de Gerard pelo assassinato de sua mãe.
Aparentemente, ele foi absolvido depois que uma peça significativa de evidência foi
considerada improcedente, embora nenhum dos relatórios parecesse saber exatamente o
que era essa evidência. Foi neste momento que a batida veio novamente. Gerard havia
voltado.

Eu abri a porta. Por um momento pensei em não deixá-lo entrar, mas sabia que ele
esperaria lá o tempo que precisasse, e não conseguia raciocinar com o fedor de ozônio que
penetrava em cada um dos meus sentidos. Não consegui esconder o terror em meu rosto
quando ele entrou, mas se ele percebeu a mudança em meu comportamento, não reagiu.
Ele simplesmente me entregou um envelope cheio de dinheiro. Eu nem me preocupei em
contar antes de lhe entregar o livro. Ele olhou para o título e então o folheou muito
rapidamente, antes de rir apenas uma vez e balançar a cabeça aparentemente para si
mesmo, como se tivesse acabado de chegar a algum tipo de decisão.
Eu esperava que Gerard fosse embora imediatamente, mas em vez disso ele
caminhou até a minha lixeira de metal e colocou o livro dentro. Ele enfiou a mão no bolso
da jaqueta e tirou uma garrafa de fluido de isqueiro e uma caixa de fósforos. Em poucos
segundos o livro estava em chamas e o cheiro desapareceu quase imediatamente. Mesmo
quando minha cabeça começou a clarear eu senti que tinha que perguntar a ele o porquê,
mas ele apenas balançou a cabeça.

“Minha mãe nem sempre sabe o que é melhor para nossa família.” Isso foi tudo que
ele disse antes de pegar a lixeira, agora cheia de cinzas que fumegavam suavemente. Eu
avisei que estaria muito quente para segurar, mas ele deu de ombros e disse que já tinha
feito coisa pior. Então Gerard Keay foi embora, e eu nunca mais vi ele ou o livro
novamente.

ARQUIVISTA

Fim do depoimento.

Se eu nunca ouvir o nome Jurgen Leitner novamente será ótimo. Suponho que era
esperar demais que tivéssemos finalmente lidado com tudo o que restou de sua biblioteca
após o incidente em 1994, mas teria sido útil se Gertrude tivesse pelo menos pensado em
adicionar este depoimento ao arquivo do projeto atual. Quem sabe quantos outros
depoimentos aqui podem abordar os livros dele ou outros projetos atualmente ativos do
Instituto? Se a minha sorte até agora for real, então eu diria que é improvável que este
seja um exemplo isolado. Quanto mais eu descubro sobre esse arquivo mais parece que
Gertrude simplesmente pegou os depoimentos escritos e os jogou nessas pastas sem
sequer lê-los. Visto que ela foi Arquivista Chefe por mais de cinquenta anos, isso é... Este
pode ser um trabalho maior do que eu pensava.

Independentemente disso, a maioria dos detalhes verificáveis no relato do Sr. Swain


parecem coincidir com as nossas próprias pesquisas. Martin não conseguiu encontrar
nenhum registro de Ex Altiora como título em catálogos existentes de literatura esotérica
ou semelhante, então designei Sasha para verificar novamente. Nada ainda. É possível que
o Sr. Swain tenha errado o título? Parece improvável dada a simplicidade dele, e as...
ocorrências que ele descreve certamente parecem ter sido devido à proximidade de um
verdadeiro livro de Leitner. Ainda assim, todos os outros livros de sua biblioteca eram
edições personalizadas de textos conhecidos sobre demonologia ou o arcano. Se há
Leitners por aí dos quais nem ouvimos falar, temo que isso possa ser motivo para um
pequeno alarme.

Detalhes úteis para acompanhamento são poucos e distantes entre si, no entanto. Os
registros de doações na loja de caridade da Oxfam em Notting Hill Gate têm apenas
doações anônimas listadas para livros em outubro/novembro de 2012 e obviamente
nenhum dos funcionários se lembra do livro. Também não conseguimos localizar Gerard
Keay. Além desse encontro ele parece ter desaparecido quase totalmente após o fim de
seu julgamento. A descrição que o Sr. Swain fornece parece corresponder às fotos
arquivadas de Gerard e Mary Keay, e pela descrição parece que ele realmente encontrou
o que costumava ser a Livros Pinhole em Morden, embora ela esteja fechada desde 2008
por motivos óbvios, e nenhum novo inquilino se mudou até 2014. Havia, porém, uma coisa
interessante que Tim encontrou no relatório oficial da polícia sobre a morte de Mary Keay
— aparentemente, as camadas de pele ressecadas foram escritas com marcador
permanente. Não houve transcrição ou tradução no relatório, mas o idioma foi
identificado como sânscrito.

Portanto, parece que não temos pistas concretas para prosseguir. Ainda assim,
conversarei sobre isso com Elias e recomendarei que a busca por quaisquer outros livros
perdidos da biblioteca de Leitner seja considerada a maior prioridade deste Instituto.
Jurgen Leitner já causou danos suficientes ao mundo e devemos buscar todos os caminhos
disponíveis para garantir que ele não cause mais.

Fim da gravação.

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