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M rs.Judith
Ariadne Oliver fora com a amiga com quem estava hospedada,
Butler, para ajudar com os preparativos para uma festa de
crianças que teria lugar nessa mesma noite.
Naquele instante o cenário era de atividade caótica. Mulheres enérgicas
entravam e saíam a carregar cadeiras, mesinhas, jarros de flores, e grandes
quantidades de abóboras amarelas, que dispunham em locais
estrategicamente selecionados.
Iria ser uma festa da Noite das Bruxas para convidados de uma faixa
etária entre os dez e os dezassete anos de idade.
Mrs. Oliver, afastando-se do grupo principal, encostou-se a um espaço
vago numa parede de fundo e pegou numa grande abóbora amarela,
observando-a com um olhar crítico.
– A última vez que vi uma destas – disse ela, afastando o cabelo grisalho
da testa proeminente – foi no ano passado nos Estados Unidos, centenas
delas. Por toda a casa. Nunca tinha visto tantas abóboras. Na verdade –
acrescentou de modo pensativo –, nunca soube qual a diferença entre uma
abóbora e uma abóbora-menina. Esta o que é?
– Desculpe, querida – disse Mrs. Butler, ao tropeçar nos pés da sua
amiga.
Mrs. Oliver encostou-se mais à parede.
– Culpa minha – disse ela. – Estou para aqui a atrapalhar. Mas foi
bastante notável, ver tantas abóboras ou abóboras-meninas, sejam lá o que
forem. Estavam em toda a parte, nas lojas, e nas casas das pessoas, com
velas e lanternas dentro delas, ou penduradas. Muito interessante de facto.
Mas não era para uma festa de Noite das Bruxas, era para a Ação de Graças.
Eu sempre associei abóboras com a Noite das Bruxas e isso é no fim de
outubro. A Ação de Graças é muito mais tarde, não é? Não é em novembro,
na terceira semana de novembro? De qualquer modo, aqui, a Noite das
Bruxas é de certeza no dia 31 de outubro, não é? Primeiro a Noite das
Bruxas e depois, o que é a seguir? Dia de Finados? Isso é quando em Paris
se vai aos cemitérios e se põe flores nas campas. Não é um feriado triste.
Quer dizer, as crianças também vão todas, e divertem-se. Primeiro vai-se
aos mercados de flores e compra-se montes de flores lindas. Não há flores
tão bonitas como as que há no mercado em Paris.
Muitas mulheres atarefadas tropeçavam ocasionalmente em Mrs. Oliver,
mas não a ouviam. Estavam demasiado ocupadas com o que estavam a
fazer.
Eram na maior parte mães, uma ou duas solteironas competentes; havia
adolescentes habilidosos, rapazes de dezasseis e dezassete anos a subir a
escadotes ou em cima de cadeiras para colocar decorações, abóboras,
abóboras-meninas ou bolas de bruxa1 de cores garridas a uma altura
adequada; raparigas entre onze e quinze anos juntavam-se em grupos e
davam risadinhas.
– E depois do dia de Finados e dos cemitérios – continuou Mrs. Oliver,
apoiando-se no braço de um sofá – é o Dia de Todos os Santos. Acho que
estou certa, não?
Ninguém respondeu a esta pergunta. Mrs. Drake, uma bonita mulher de
meia-idade e que era a anfitriã da festa, pronunciou-se.
– Não vou chamar a isto uma festa das bruxas, apesar de na realidade o
ser. Vou chamar-lhe festa Acima dos Onze. É essa faixa etária. A maioria
são pessoas que vão sair do colégio The Elms2 e vão para outras escolas.
– Mas isso não é muito exato, pois não Rowena? – disse Miss Whittaker,
recolocando o seu pince-nez no nariz de modo reprovador.
Miss Whittaker, sendo professora, era sempre firme quanto à exatidão.
– Porque abolimos os acima dos onze há algum tempo.
Mrs. Oliver levantou-se do sofá, de uma forma apologética.
– Não tenho sido muito útil. Tenho estado aqui sentada a dizer tolices
sobre abóboras e abóboras-meninas – e a descansar os pés, pensou, com um
ligeiro acesso de consciência, mas sem remorsos suficientes para dizê-lo em
voz alta.
– O que posso fazer a seguir? – perguntou, e acrescentou: – Que belas
maçãs!
Alguém acabara de trazer para a sala um grande cesto com maçãs. Mrs.
Oliver gostava de maçãs.
– Belas e vermelhas – acrescentou.
– Não são muito boas – disse Rowena Drake – mas têm um aspeto bonito
e festivo. São para o jogo das maçãs3. São umas maçãs um pouco moles,
para que as pessoas consigam trincá-las mais facilmente. Leve-as para a
biblioteca, sim, Beatrice? O jogo das maçãs faz sempre uma grande
porcaria com água a cair em toda a parte, mas no tapete da biblioteca não
faz mal, é tão velho. Oh! Obrigada, Joyce.
Joyce, uma rapariga robusta de treze anos, pegou na taça das maçãs. Duas
caíram ao chão e pararam, como se comandadas pela varinha mágica de
uma bruxa, aos pés de Mrs. Oliver.
– Gosta de maçãs, não gosta? – disse Joyce. – Li que sim, ou talvez o
tenha ouvido na televisão. A senhora é a escritora de romances policiais,
não é?
– Sim – disse Mrs. Oliver.
– Devíamos pô-la a fazer alguma coisa relacionada com assassinatos. Ter
um assassinato na festa de hoje à noite e pôr as pessoas a resolvê-lo.
– Não, obrigada – disse Mrs. Oliver. – Nunca mais.
– Como, nunca mais?
– Bem, fi-lo uma vez, e não correu lá muito bem – disse Mrs. Oliver.
– Mas escreveu montes de livros – disse Joyce. – Ganha muito dinheiro
com eles, não ganha?
– De certa forma – disse Mrs. Oliver, com o seu pensamento nos
impostos.
– E tem um detetive que é finlandês.
Mrs. Oliver admitiu este facto. Um pequeno e imperturbável rapaz, ainda
por chegar à maioridade dos acima dos onze, na opinião de Mrs. Oliver,
disse num tom firme:
– Porquê finlandês?
– Interroguei-me sobre isso diversas vezes – disse Mrs. Oliver
sinceramente.
Mrs. Hargreaves, a mulher do organista, entrou na sala com a respiração
ofegante, e a carregar um grande balde de plástico verde.
– Que tal isto – disse – para o jogo das maçãs? Achei bastante alegre.
Miss Lee, a farmacêutica, disse:
– Um balde de zinco seria melhor. Não viram tão facilmente. Onde vai
organizar isto, Mrs. Drake?
– Achei que o jogo das maçãs correria melhor na biblioteca. O tapete é
velho e verte-se sempre muita água.
– Está bem. Levamo-las para lá. Rowena, aqui está outro cesto de maçãs.
– Deixe-me ajudar – disse Mrs. Oliver.
Apanhou as duas maçãs que estavam aos seus pés. Praticamente sem
reparar no que estava a fazer, trincou uma e começou a mastigá-la. Mrs.
Drake subtraiu-lhe a outra maçã de uma forma firme e devolveu-a ao cesto.
Começou um burburinho de conversa.
– Sim, mas onde vamos fazer o Snapdragon4?
– Devia ser na biblioteca, é de longe a divisão mais escura.
– Não, vamos fazer isso na sala de jantar.
– Temos de pôr alguma coisa na mesa antes.
– Há um pedaço de repes para pôr na mesa, e depois uma proteção de
borracha por cima.
– E os espelhos? Vamos realmente ver os nossos maridos neles?
Descalçando-se furtivamente e, ainda a trincar a sua maçã
silenciosamente, Mrs. Oliver sentou-se de novo no sofá e observou de um
modo crítico a sala cheia de gente. Utilizava a sua mente de escritora:
«Então, se eu fosse escrever um livro sobre estas pessoas, como o faria?
São boas pessoas, de modo geral, acho eu. Mas quem sabe?»
Achava que, de certa forma, era muito fascinante não saber nada sobre
elas. Viviam todas em Woodleigh Common, algumas tinham vagos rótulos
colados a si, na memória dela, por causa das coisas que Judith lhe contara.
Miss Johnson... algo a ver com a igreja, não era a irmã do vigário. Oh não,
era a irmã do organista, claro. Rowena Drake, que parecia gerir as coisas
em Woodleigh Common. A mulher ofegante que trouxera o balde de
plástico para dentro, um balde de plástico particularmente horrível. Mas, na
verdade, Mrs. Oliver nunca gostara de coisas de plástico. E depois as
crianças, as raparigas e rapazes adolescentes.
Até aqui eram apenas nomes para Mrs. Oliver. Havia uma Nan e uma
Beatrice e uma Cathie, uma Diana e uma Joyce, que era prepotente e fazia
perguntas. Não gosto muito da Joyce, pensou Mrs. Oliver. Uma rapariga
chamada Ann, que era alta e tinha um ar superior. Havia dois rapazes
adolescentes que aparentavam ter-se acostumado recentemente a
experimentar penteados diferentes, com resultados algo infelizes.
Um rapaz pequeno entrou, com alguma timidez.
– A mamã mandou estes espelhos para ver se servem – disse numa voz
um pouco ansiosa.
Mrs. Drake pegou neles.
– Muito obrigada, Eddy – disse.
– São apenas espelhos vulgares – disse a rapariga chamada Ann. – Vamos
mesmo ver os rostos dos nossos futuros maridos refletidos neles?
– Algumas de vocês talvez vejam, e outras talvez não – disse Judith
Butler.
– Alguma vez viu o rosto do seu marido numa festa... quero dizer uma
festa deste tipo?
– Claro que não viu – disse Joyce.
– Podia ter visto – respondeu Beatrice, superior. – Chamam-lhe PES,
Perceção Extrassensorial – acrescentou ela no tom satisfeito de quem é
fluente em todos os termos correntes.
– Li um dos seus livros – disse Ann a Mrs. Oliver – O Peixe Dourado
Moribundo. Era bastante bom – disse ela de forma amável.
– Não gostei desse – disse Joyce. – Não tinha sangue suficiente. Gosto
que os assassinatos tenham muito sangue.
– Uma grande porcaria – disse Mrs. Oliver –, não acha?
– Mas emocionante – replicou Joyce.
– Não necessariamente – disse Mrs. Oliver.
– Uma vez vi um assassinato – disse Joyce.
– Não sejas tola, Joyce – disse a professora, Miss Whittaker.
– Vi – disse Joyce.
– Viste mesmo? – perguntou Cathie, arregalando os olhos para Joyce. –
Viste mesmo um assassinato, de verdade?
– Claro que não viu – disse Mrs. Drake. – Não digas tolices, Joyce.
– Eu vi um assassinato – disse Joyce. – Vi. Vi. Vi.
Um rapaz de dezassete anos empoleirado num escadote olhou para baixo
interessado.
– Que tipo de assassinato? – perguntou.
– Eu não acredito – disse Beatrice.
– Claro que não – disse a mãe de Cathie. – Ela está só a inventar.
– Não estou. Eu vi.
– Porque não foste à polícia? – perguntou Cathie.
– Porque não sabia que era um assassinato quando o vi. Foi só muito
tempo depois, quero dizer, que eu comecei a aperceber-me de que fora um
assassinato. Algo que alguém disse há apenas um ou dois meses e que me
fez pensar: Claro, o que eu vi foi um assassinato.
– Veem? – disse Ann – Ela está a inventar. Um disparate.
– Quando aconteceu? – perguntou Beatrice.
– Há anos – disse Joyce –, eu era muito nova na altura – acrescentou ela.
– Quem assassinou quem? – perguntou Beatrice.
– Não o direi a nenhuma de vocês – disse Joyce. – Vocês estão todas a ser
tão más.
Miss Lee entrou com outro tipo de balde. A conversa mudou para uma
comparação entre baldes de metal ou de plástico, como os mais adequados
para o desporto de mergulhar para apanhar maçãs. A maioria dos ajudantes
deslocou-se para a biblioteca para fazer uma avaliação no local. Alguns dos
membros mais novos, diga-se, estavam ansiosos para fazer uma
demonstração, para testar as dificuldades e para mostrar a sua perícia no
desporto. Molharam-se cabelos, entornou-se água, mandaram-se buscar
toalhas para limpar. No fim decidiu-se que um balde metálico era preferível
aos encantos mais vistosos de um balde de plástico, que se virava
demasiado facilmente.
Mrs. Oliver, pousando uma taça de maçãs que trouxera para reabastecer
as provisões necessárias para o dia seguinte, serviu-se de uma novamente.
– Li no jornal que gostava de comer maçãs – a voz acusadora de Ann ou
de Susan, não tinha certeza qual delas, falava-lhe.
– É o meu pecado original – disse Mrs. Oliver.
– Seria mais divertido se fossem melões – objetou um dos rapazes. – São
tão sumarentos. Imaginem a porcaria que se faria – disse, examinando o
tapete com uma antecipação prazenteira.
Mrs. Oliver, sentindo-se um pouco culpada pela acusação pública de gula,
saiu da sala em busca de uma determinada divisão, cuja geografia é
habitualmente de fácil identificação. Subiu a escadaria e, dobrando a
esquina no patamar, embateu num parzinho, uma rapariga e um rapaz,
abraçados e encostados à porta que Mrs. Oliver pensava ser certamente a
porta da divisão na qual ansiava por entrar. O casal não lhe prestou qualquer
atenção. Suspiraram e enroscaram-se. Mrs. Oliver interrogou-se que idade
teriam. O rapaz talvez tivesse quinze anos, a rapariga pouco mais de doze,
se bem que o desenvolvimento do seu peito parecia ser mais maduro.
Apple Trees5 era uma casa de um tamanho considerável. Tinha, pensou
ela, vários cantos e recantos agradáveis. As pessoas são tão egoístas, pensou
Mrs. Oliver. Não têm nenhuma consideração pelos outros. Essa frasezita
bem conhecida do passado veio-lhe à cabeça. Tinha-lhe sido dita
sucessivamente por uma ama-seca, uma ama, uma governanta, a sua avó,
duas tias-avós, a sua mãe e mais algumas pessoas.
– Com licença – disse Mrs. Oliver numa voz clara e audível.
O rapaz e a rapariga aproximaram-se mais do que nunca, os seus lábios
atados.
– Com licença – disse Mrs. Oliver outra vez –, não se importam de me
deixar passar? Quero abrir esta porta.
O casal afastou-se, contrariado. Olharam para ela melindrados. Mrs.
Oliver entrou, bateu com a porta e trancou-a.
A porta não encaixava lá muito bem. O som débil de palavras chegou-lhe,
de fora.
– As pessoas são mesmo assim – disse uma voz de tenor algo incerta. –
Podiam ver que não queríamos ser incomodados.
– As pessoas são tão egoístas – disse uma voz de rapariga. – Nunca
pensam em ninguém a não ser nelas próprias.
– Nenhuma consideração pelos outros – disse a voz do rapaz.
1 Uma bola de bruxa é uma esfera oca, feita de vidro simples ou de vitral,
que era pendurada nas janelas de casas de campo no século XVIII em
Inglaterra, para afastar maus espíritos, bruxedos, ou má sorte. (N. do T.)
2 Olmos, traduzido do inglês. (N. do T.)
3 Jogo tradicional da Noite das Bruxas, em inglês bobbing for apples.
Consiste em encher uma bacia ou balde com água e pôr maçãs na água, já
que estas flutuam. Os jogadores (geralmente crianças) tentam então apanhar
uma com os dentes, sem poderem utilizar as mãos, que são por vezes
amarradas atrás das costas. (N. do T.)
4 Jogo tradicional de inverno, no qual se aquece brandy, e se coloca numa
taça grande e pouco funda; põem-se uvas-passas no brandy, ao qual se pega
fogo. As luzes da sala são apagadas para aumentar o efeito da chama ao
queimar o álcool da bebida. O objetivo do jogo é tirar as passas do brandy e
comê-las, correndo o risco de queimaduras. (N. do T.)
5 Macieiras, traduzido do inglês. (N. do T.)
Capítulo 2
O sorganizadores
preparativos de uma festa de crianças dão muito mais trabalho aos
do que o entretenimento imaginado para adultos. Comida
de boa qualidade e bebidas alcoólicas adequadas, com limonada à parte, já é
o suficiente para começar uma festa, para algumas pessoas. Pode custar
mais mas dá infinitamente menos trabalho. Nisso Ariadne Oliver e a sua
amiga Judith Butler concordavam.
– E festas de adolescentes? – perguntou Judith.
– Não sei muito acerca delas – disse Mrs. Oliver.
– Num sentido – disse Judith – acho que dão menos trabalho que as
outras todas. Quero dizer, eles expulsam-nos, aos adultos, todos. E dizem
que fazem tudo sozinhos.
– E fazem?
– Bem, não no sentido que nós damos à coisa – disse Judith. – Esquecem-
se de encomendar algumas coisas, e encomendam outras de que ninguém
gosta. Depois de nos escorraçarem, dizem que lhes deveríamos ter
arranjado algumas coisas. Partem muitos copos, e outras coisas, e há
sempre alguém indesejável, ou que traz um amigo indesejável. Sabe como
é. Drogas estranhas e... como lhe chamam? Relva ou cânhamo, ou LSD,
que eu sempre pensei que queria dizer dinheiro; mas parece que não.
– Suponho que custa dinheiro – sugeriu Ariadne Oliver.
– É muito desagradável, e o cânhamo tem um cheiro desagradável.
– Parece tudo muito deprimente – disse Mrs. Oliver.
– De qualquer modo, esta festa vai correr bem. Confie na Rowena Drake.
Ela é uma organizadora maravilhosa. Vai ver.
– Nem sequer me apetece ir a uma festa – suspirou Mrs. Oliver.
– Vá lá para cima e descanse durante uma hora. Vai ver. Vai divertir-se
quando começar. Quem dera que a Miranda não tivesse febre, ela está tão
desiludida por não poder vir, pobrezinha.
A festa começou às sete e meia. Ariadne Oliver teve de admitir que a sua
amiga tivera razão. As pessoas foram pontuais. Tudo correu de forma
esplêndida. Foi tudo muito bem pensado, bem organizado e correu às mil
maravilhas. Havia luzes azuis e vermelhas nas escadas, e uma grande
abundância de abóboras. As raparigas e os rapazes chegaram com vassouras
decoradas para uma competição. Depois dos cumprimentos, Rowena Drake
anunciou o programa da noite.
– Primeiro, será decidida a competição das vassouras – disse ela –; três
prémios, primeiro, segundo e terceiro. Depois corta-se o bolo de farinha.
Isso será na estufa pequena. Depois o jogo das maçãs. Há uma lista dos
pares desse evento ali na parede. Depois haverá danças. Sempre que as
luzes se apagarem muda-se de par. A seguir, as raparigas irão para o
escritório pequeno, onde lhes serão dados os seus espelhos. Depois disso,
jantar, Snapdragon e depois a entrega dos prémios.
Como todas as festas, começou devagar a animação. As vassouras foram
admiradas, eram miniaturas muito pequenas de vassouras, e em geral a sua
decoração não atingira um padrão de mérito muito elevado, o que «torna
tudo mais fácil», disse Mrs. Drake num aparte a uma das suas amigas.
– E é uma coisa muito útil porque, quero dizer, há sempre uma ou duas
crianças que uma pessoa sabe que não ganharão prémios em mais nada, por
isso uma pessoa pode fazer uma pequena batota nisto.
– Tão poucos escrúpulos, Rowena.
– Na verdade não sou assim. Apenas arranjo as coisas para que sejam
justas e bem divididas. A verdade é que toda a gente quer ganhar alguma
coisa.
– O que é o jogo da farinha? – perguntou Ariadne Oliver.
– Oh sim, claro, não estava aqui quando o estávamos a preparar. Bem,
enche-se um copo sem pé com farinha, amassa-se bem, e depois vira-se
para um tabuleiro, e põe-se uma moeda de meio xelim em cima. Depois
toda a gente corta uma fatia com muito cuidado para não fazer cair a
moeda. Assim que uma pessoa fizer cair a moeda, sai. É uma espécie de
eliminação. A última pessoa fica com a moeda, claro. Vamos lá então.
E lá foram. Ouviram-se guinchos de animação vindos da biblioteca, onde
decorria o jogo das maçãs, e os participantes voltaram de lá com cabelos
molhados e com uma generosa quantidade de água espalhada pelas suas
roupas.
Um dos concursos mais populares, pelo menos junto das raparigas, foi a
chegada da bruxa, papel representado por Mrs. Goodbody, uma mulher de
limpeza que, não só tinha o nariz adunco necessário, que quase se juntava
ao queixo, como possuía também uma mestria admirável a produzir uma
voz semelhante a um arrulho, com tons decididamente sinistros, e
declamava também uns versos burlescos e mágicos.
– Então, venha cá, Beatrice, não é? Ah, Beatrice. Um nome muito
interessante. Agora quero que saiba qual vai ser o aspeto do seu marido.
Agora sente-se, minha querida. Sim, sim, aqui debaixo desta luz. Sente-se
aqui e segure este espelhinho na sua mão, e de seguida quando as luzes se
apagarem vai vê-lo aparecer. Vai vê-lo a espreitar por cima do seu ombro.
Segure o espelho com firmeza. Abracadabra, quem vou vislumbrar? O
rosto do homem com quem vou casar. Beatrice, Beatrice, terá à sua frente,
o rosto do homem que agradará à sua mente.
Um feixe de luz atravessou a sala subitamente, vindo de um escadote
colocado atrás de um biombo. Atingiu o sítio certo, refletido no espelho que
estava na mão excitada de Beatrice.
– Oh! – gritou Beatrice – Vi-o. Vi-o! Consigo vê-lo no meu espelho!
O feixe foi desligado, as luzes acenderam-se e uma fotografia colada num
cartão flutuou para baixo desde o teto. Beatrice dançou pela sala, animada.
– Era ele! Era ele! Vi-o! – exclamou. – Oh, tem uma barba ruiva linda.
Apressou-se na direção de Mrs. Oliver, que era a pessoa mais próxima.
– Veja, veja. Não acha que ele é maravilhoso? Parece o Eddie Presweight,
o cantor pop. Não acha?
Mrs. Oliver não achou que ele se parecesse com algum dos rostos que
deplorava ter de ver no jornal de manhã. A barba, pensou, fora um
pormenor genial.
– De onde vêm estas coisas? – perguntou.
– Oh, a Rowena pede ao Nicky que as faça. E o amigo dele, o Desmond,
ajuda. Ele faz muitas experiências com fotografia. Ele e uns amigos dele
mascararam-se, com montes de cabelo e suíças, barbas e coisas assim. E
então com as luzes em cima deles e tudo, as raparigas ficam malucas de
alegria.
– Não posso deixar de pensar – disse Ariadne Oliver – que as raparigas
hoje em dia são realmente muito tolinhas.
– Não acha que o foram sempre? – perguntou Rowena Drake.
Mrs. Oliver pensou.
– Suponho que tem razão – admitiu.
– E agora – exclamou Mrs. Drake – o jantar.
O jantar correu bem. Bolos com coberturas doces, salgados, camarões,
queijo e doces de nozes. Os acima dos onze empanturraram-se.
– E agora – disse Rowena – o último jogo da noite. Snapdragon. Por ali,
pela copa. Exato. Então, primeiro os prémios.
Os prémios foram entregues, e depois ouviu-se um grito, como um
lamento. As crianças correram através da entrada para a sala de jantar.
A comida havia sido retirada da mesa. Um pano verde de repes estava
pousado na mesa e em cima estava um prato com uvas-passas flamejantes.
Toda a gente guinchou e se aproximou depressa, apanhando as uvas-passas
com gritos de «Ai, queimei-me! Não é lindo?». A pouco e pouco o
Snapdragon bruxuleou e esmoreceu. As luzes acenderam-se. A festa
terminara.
– Foi um enorme sucesso – disse Rowena.
– Tinha de ser, com o trabalho todo que teve.
– Foi encantador – disse Judith baixinho. – Encantador.
– E agora – acrescentou num tom pesaroso – temos de arrumar um pouco.
Não podemos deixar tudo para aquelas pobres mulheres arrumarem amanhã
de manhã.
Capítulo 3
H ercule Poirot olhou para o pequeno portão que dava acesso a Pine Crest.
Era uma casinha elegante e moderna, bem construída. Hercule Poirot
estava ligeiramente ofegante. A pequena casa alinhada à sua frente fora
apropriadamente batizada8. Estava situada no topo de uma colina, que tinha
uns poucos pinheiros plantados. Tinha um jardim pequeno e agradável, e
um homem alto e idoso rodava um grande regador de latão ao longo de um
caminho.
O cabelo do comissário Spence estava agora todo grisalho, em vez de ter
um toque de grisalho nas têmporas. Não tinha diminuído muito de estatura.
Parou de girar o regador e olhou para o visitante que estava ao portão.
Hercule Poirot ficou ali, sem se mover.
– Deus seja louvado – disse o comissário Spence. – Só pode ser. Não
devia mas é. Sim, só pode ser. Hercule Poirot, pela minha saúde.
– Aha – disse Hercule Poirot –, reconheceu-me. Isso é gratificante.
– Que os seus bigodes nunca fiquem mais pequenos – disse Spence.
Largou o regador e desceu até ao portão.
– Ervas diabólicas – disse. – E o que o traz aqui?
– O que me levou a muitos sítios durante a minha vida – disse Hercule
Poirot – e que há uns bons anos o levou a si a ver-me a mim. Assassinato.
– Já não trato de assassinatos – disse Spence –, a não ser no caso das
ervas daninhas. É o que estou a fazer agora. A pôr o veneno. Nunca é tão
fácil como se julga, algo está mal, geralmente o tempo. Não pode estar
demasiado húmido, não pode estar demasiado seco, e assim por diante.
Como sabia onde me encontrar? – perguntou enquanto abria o portão e
Poirot entrava.
– Enviou-me um cartão de Natal. Tinha o seu novo endereço impresso.
– Ah sim, é verdade. Sou antiquado, sabe. Gosto de enviar cartões no
Natal a alguns velhos amigos.
– Eu aprecio isso – disse Poirot.
Spence disse:
– Agora estou velho.
– Estamos ambos velhos.
– Não tem muito cabelo grisalho – disse Spence.
– Trato disso com um frasco – disse Hercule Poirot. – Não há necessidade
de aparecer em público com cabelo grisalho a não ser que assim se deseje.
– Bem, não acho que o cabelo preto me ficasse bem – concluiu Spence.
– Concordo – disse Poirot. – O cabelo grisalho dá-lhe um ar muito
distinto.
– Nunca pensaria em mim como um homem distinto.
– Eu penso em si dessa forma. Porque veio viver para Woodleigh
Common?
– Na verdade, vim para cá para me juntar a uma irmã minha. Ela perdeu o
marido, os filhos são casados e vivem no estrangeiro, um na Austrália e o
outro na África do Sul. Por isso mudei-me para aqui. As reformas hoje em
dia não dão para muito, mas vivemos juntos muito confortavelmente. Venha
e sente-se.
Levou-o para o pequeno alpendre envidraçado, onde havia cadeiras e uma
ou duas mesas. O sol de outono batia de forma agradável naquele retiro.
– Que lhe trago? – disse Spence. – Aqui não há luxos, receio. Não há
groselha negra, nem xarope de rosa mosqueta, nem nenhuma das suas
coisas de marca. Cerveja? Ou quer que peça a Elspeth que lhe faça uma
chávena de chá? Ou então posso arranjar-lhe um shandy, ou Coca-Cola, ou
um chocolate quente se quiser. A minha irmã, a Elspeth, é uma apreciadora
de chocolate quente.
– É muito gentil. Para mim, acho que um shandy. Ginger ale e cerveja? É
isso, não é?
– Exatamente.
Entrou na casa e voltou pouco tempo depois com duas grandes canecas de
vidro.
– Faço-lhe companhia – disse ele.
Puxou uma cadeira até à mesa e sentou-se, colocando os dois copos em
frente de si e de Poirot.
– O que foi que disse agora mesmo? – disse, levantando o copo. – Não
diremos «um brinde ao crime». Já não tenho nada a ver com o crime, se
refere o crime que acho que refere, o que de facto creio que tem de ser,
porque não me recordo de algum outro crime recente. Não gosto do tipo
específico de assassinato que acaba de acontecer.
– Não. Não me parecia que gostasse.
– Estamos a falar da criança a quem meteram a cabeça num balde?
– Sim – disse Poirot –, é disso que estou a falar.
– Não sei porque vem falar comigo – disse Spence. – Hoje em dia não
tenho nada a ver com a polícia. Tudo isso terminou há muitos anos.
– Uma vez polícia – disse Hercule Poirot – sempre polícia. Isto é, há
sempre o ponto de vista do polícia por detrás do ponto de vista do homem
comum. Eu sei, eu que falo consigo. Também eu comecei na polícia do meu
país.
– Sim, pois foi. Lembro-me agora de mo ter dito. Bem, suponho que a
nossa perspetiva é um pouco tendenciosa, mas há muito tempo que não
tenho nenhuma ligação ativa.
– Mas ouve os mexericos – disse Poirot. – Tem amigos no ofício. Ouvirá
o que eles pensam ou suspeitam, ou o que sabem.
Spence suspirou.
– Sabe-se demasiado – disse ele –, é um dos problemas hoje em dia. Há
um crime, um crime com um padrão familiar, e sabe-se, isto é, os polícias
no ativo sabem, com alguma certeza, quem cometeu esse crime. Não dizem
aos jornais mas fazem os seus inquéritos, e sabem. Mas se irão além disso...
bem, as coisas têm as suas dificuldades.
– Quer dizer as esposas e as namoradas e assim?
– Em parte, sim. No fim, talvez, apanha-se o culpado. Por vezes passa um
ano ou dois. Eu diria que, de modo geral, Poirot, mais raparigas hoje em dia
casam com más rês do que no meu tempo.
Hercule Poirot pensou, puxando os seus bigodes.
– Sim – disse –, posso ver que assim seja. Suspeito que as raparigas
sempre gostaram de maus elementos, como diz, mas no passado havia mais
salvaguardas.
– Tem razão. Olhavam por elas. As mães olhavam por elas. As tias e
irmãs mais velhas olhavam por elas. As irmãs e irmãos mais novos sabiam
o que se passava. Os pais não eram avessos a expulsar os jovens não
recomendáveis de casa ao pontapé. Por vezes, claro, as raparigas fugiam
com um dos maus elementos. Hoje em dia, nem há necessidade de fazer
isso. A mãe não sabe com quem a rapariga sai, não dizem ao pai com quem
a rapariga sai, os irmãos sabem com quem a rapariga sai mas pensam
«problema dela». Se os pais não consentem, o casal vai a um juiz da paz e
consegue autorização para casar, e então, quando o jovem que toda a gente
sabe ser um mau elemento prova a todos, incluindo à sua esposa, que é um
mau elemento, já a procissão vai no adro! Mas amor é amor; a rapariga não
quer pensar que o seu Henry tem esses hábitos repugnantes, essas
tendências criminosas, e tudo o mais. Mentirá por ele, jurará que o branco é
negro e muito mais. Sim, é difícil. Difícil para nós, quero eu dizer. Bem,
não adianta continuar a dizer que as coisas eram melhores antigamente.
Talvez fôssemos só nós que pensávamos que o eram. Afinal, Poirot, como
se envolveu em tudo isto? Esta não é a sua zona do país, pois não? Sempre
pensei que vivesse em Londres. Quando o conheci vivia.
– Ainda vivo em Londres. Envolvi-me nisto a pedido de uma amiga, Mrs.
Oliver. Lembra-se de Mrs. Oliver?
Spence ergueu a cabeça, fechou os olhos e fez um ar pensativo.
– Mrs. Oliver? Não me parece que me lembre.
– Escreve livros. Histórias de detetives. Conheceu-a, lembrar-se-á,
durante a época em que me convenceu a investigar o assassinato de Mrs.
McGinty. Não se terá esquecido de Mrs. McGinty?
– Santo Deus, não. Mas foi há muito tempo. Deu-me uma ajuda preciosa
nisso, Poirot, de facto muito preciosa. Fui procurá-lo em busca de ajuda, e
não me desiludiu.
– Senti-me honrado, lisonjeado, por me consultar – disse Poirot. – Devo
dizer que desesperei uma vez ou outra. O homem que devíamos salvar, cujo
pescoço devíamos salvar, naqueles tempos, se não me engano, foi há tempo
suficiente para isso... era um homem pelo qual era excessivamente difícil
fazer alguma coisa. O exemplo típico de como não fazer nada de útil por si
próprio.
– Casou com aquela rapariga, não casou? A doida. Não aquela esperta
com o cabelo platinado. Como será que eles se deram? Ouviu alguma coisa
sobre isso?
– Não – disse Poirot. – Presumo que tudo corre bem para eles.
– Não entendo o que ela viu nele.
– É difícil – disse Poirot –, mas é um dos grandes consolos da Natureza
que um homem, por muito pouco atraente que seja, descubra ser atraente
para uma mulher. Só posso dizer ou esperar que tenham casado e vivido
felizes para sempre.
– Não me parece que tenham vivido felizes para sempre se foram
obrigados a viver com a mãe.
– Não, de todo – disse Poirot. – Ou o padrasto – acrescentou.
– Bem – disse Spence –, estamos aqui outra vez a falar dos velhos
tempos. Isso já passou. Sempre pensei que esse homem, agora não me
lembro do nome dele, deveria gerir uma agência funerária. Tinha o aspeto e
a atitude para isso. Talvez o tenha feito. A rapariga tinha dinheiro, não?
Sim, ele teria sido um belo agente funerário. Já o vejo, todo de negro, a
aceitar encomendas para o funeral. Talvez até se entusiasmasse sobre qual o
tipo de madeira usado para o caixão, olmo ou teca, ou o que quer que usem.
Mas nunca teria êxito a vender seguros ou propriedades. Bem, não
divaguemos.
Então disse subitamente:
– Mrs. Oliver. Ariadne Oliver. Maçãs. Foi assim que ela se envolveu
neste caso? Enfiaram a cabeça daquela pobre criança debaixo de água num
balde com maçãs flutuantes, não foi, numa festa? Foi isso que interessou
Mrs. Oliver?
– Não creio que as maçãs a tenham atraído de um modo especial – disse
Poirot –, mas ela estava na festa.
– Disse que ela vivia aqui?
– Não, não vive aqui. Estava hospedada com uma amiga, uma Mrs.
Butler.
– Butler? Sim, conheço-a. Vive não muito longe da igreja. Viúva. O
marido era piloto comercial. Tem uma filha. Uma rapariga bonita. Boas
maneiras. Mrs. Butler é uma mulher bastante atraente, não acha?
– Mal a conheço, mas sim, achei que era muito atraente.
– E como lhe diz isto respeito, Poirot? Não estava cá quando aconteceu,
estava?
– Não. Mrs. Oliver procurou-me em Londres. Estava perturbada, muito
perturbada. Queria que eu fizesse alguma coisa.
Um leve sorriso brotou no rosto do comissário Spence.
– Estou a ver. A velha história de sempre. Eu também o procurei porque
queria que fizesse alguma coisa.
– E eu levei as coisas um passo adiante – disse Poirot. – Eu vim procurá-
lo a si.
– Porque quer que eu faça alguma coisa? Digo-lhe que não há nada que
eu possa fazer.
– Há, sim. Pode falar-me das pessoas. As pessoas que vivem aqui. As
pessoas que foram à festa. Os pais e as mães das crianças que estavam na
festa. A escola, os professores, os advogados, os médicos. Alguém, durante
uma festa, levou uma criança a ajoelhar-se, talvez rindo-se, a dizer «Vou
mostrar-te a melhor maneira de agarrar uma maçã com os dentes. Sei um
truque». E depois ele ou ela, seja quem for, pôs uma mão na cabeça dessa
rapariga. Não deve ter havido muita luta ou barulho, nem nada desse tipo.
– Um caso medonho – disse Spence. – Foi o que pensei quando ouvi falar
dele. O que quer saber? Estou aqui há um ano. A minha irmã está aqui há
mais tempo, dois ou três anos. Não é uma comunidade grande. Não é
particularmente estável. As pessoas vão e vêm. O marido tem um emprego
em Medchester ou em Great Canning, ou um dos locais próximos. Os filhos
frequentam a escola aqui. Depois, talvez o marido mude de emprego e vão
para outro sítio. Não é uma comunidade fixa. Algumas das pessoas estão
aqui há muito tempo, Miss Emlyn, a professora da escola, está e o Dr.
Ferguson também. Mas, em geral, há umas flutuações.
– Suponho – disse Hercule Poirot – que, concordando consigo que este
caso é medonho, eu poderia esperar que soubesse quem são as pessoas
medonhas aqui.
– Sim – disse Spence. – É a primeira coisa que uma pessoa procura, não
é? E o que procuramos a seguir neste tipo de coisa é um adolescente mau.
Quem quer estrangular, afogar ou livrar-se de uma catraia de treze anos?
Não parece haver provas de ataque sexual ou algo do género, que seria a
primeira coisa a procurar. Há muito disso em qualquer cidade pequena ou
vila, hoje em dia. Mais uma vez, creio que há mais do que havia na minha
juventude. Tínhamos os nossos perturbados mentais, ou seja lá como se
chamam, mas não tantos como agora. Suponho que há mais que são
libertados do sítio onde deveriam ser mantidos em segurança. Todos os
nossos asilos estão cheios; sobrelotados; então os médicos dizem «Deixem-
no a ele ou ela viver uma vida normal. Viver com os familiares», etc. E
depois o patife, ou o pobre doente, como quiser vê-lo, é acometido de novo
pelo desejo e outra jovem mulher sai para um passeio e é encontrada numa
saibreira, ou comete a tolice de aceitar boleia num carro. As crianças não
vêm para casa da escola porque aceitaram uma boleia de um estranho,
apesar de as avisarem para não o fazer. Sim, isso acontece muito, hoje em
dia.
– Isso parece adaptar-se ao padrão que temos aqui?
– Bem, é a primeira coisa em que se pensa – disse Spence. – Alguém
estava na festa e sentiu o impulso, digamos. Talvez o tenha feito antes,
talvez apenas o tenha desejado fazer. Eu diria que, de um modo geral,
deveria haver um episódio passado de ataque a uma criança algures. Que eu
saiba, ninguém avançou com nada desse tipo. Não oficialmente, quero eu
dizer. Havia dois da faixa etária certa na festa. O Nicholas Ransom, um
rapaz bem-parecido, de dezassete ou dezoito anos. Ele seria da idade certa.
É da costa leste ou algo assim, creio. Parece ser decente. Parece normal,
mas quem sabe? E há o Desmond, que foi uma vez sinalizado para fazer um
exame psiquiátrico, mas não diria que fosse algo digno de nota. Tem de ser
alguém que estava na festa, apesar de naturalmente supor que qualquer um
poderia ter entrado, vindo de fora. Uma casa não está habitualmente
trancada durante uma festa. Há uma porta ou janela lateral aberta. Suponho
que uma das nossas pessoas desaparafusadas poderia ter vindo ver o que se
passava e ter-se esgueirado. Um risco bastante grande. Concordaria uma
criança, uma criança que tivesse ido a uma festa, em jogar jogos com
alguém que não conhecia? Seja como for, ainda não explicou o que o traz
ao caso, Poirot. Disse que foi Mrs. Oliver. Alguma das ideias malucas dela?
– Não exatamente uma ideia maluca – disse Poirot. – É verdade que os
escritores são dados a ideias malucas. Ideias que talvez sejam muito
improváveis. Mas isto foi algo que ela simplesmente ouviu a rapariga dizer.
– O quê, a criança, a Joyce?
– Sim.
Spence inclinou-se para a frente e olhou para Poirot interrogativamente.
– Vou contar-lhe.
Calma e sucintamente, contou a história como Mrs. Oliver lhe havia
contado.
– Estou a ver – disse Spence, afagando o bigode. – A rapariga disse isso?
Disse que tinha visto um assassinato ser cometido. Disse quando ou como?
– Não – disse Poirot.
– O que antecedeu isso?
– Creio que um comentário sobre os assassinatos nos livros de Mrs.
Oliver. Alguém disse algo acerca disso a Mrs. Oliver. Uma das crianças,
creio, disse algo sobre não haver sangue suficiente nos livros dela ou
cadáveres suficientes. E então a Joyce falou e disse que vira uma vez um
assassinato.
– Gabou-se disso? É a impressão que me está a dar.
– É essa a impressão que Mrs. Oliver teve. Sim, gabou-se disso.
– Poderia não ser verdade.
– Poderia não ser verdade de todo – disse Poirot.
– As crianças fazem muitas vezes declarações extravagantes quando
querem chamar a atenção sobre si próprias, ou para chocar. Por outro lado,
poderia ser verdade. É o que pensa?
– Não sei – disse Poirot. – Uma criança gaba-se de testemunhar um
assassinato. Apenas umas horas mais tarde, essa criança está morta. Tem de
admitir que há motivos para acreditar que poderia, é uma ideia rebuscada
talvez, mas poderia ser causa e efeito. Nesse caso, houve alguém que não
perdeu tempo.
– Sem dúvida – disse Spence. – Quantas pessoas estavam presentes
quando a rapariga fez a sua declaração em relação ao assassinato, sabe ao
certo?
– Mrs. Oliver apenas disse que pensava estarem lá catorze ou quinze
pessoas, talvez mais. Cinco ou seis crianças, cinco ou seis adultos que
organizavam o espetáculo. Mas para ter informação precisa devo confiar em
si, monsieur.
– Bem, isso será fácil – disse Spence. – Não digo que saiba de cabeça
neste instante, mas facilmente a obtenho junto dos habitantes. Quanto à
festa em si, já sei bastante bem. Preponderância de mulheres, no geral. Os
pais não costumam aparecer em festas de crianças. Mas espreitam, por
vezes, ou vêm buscar os filhos. O Dr. Ferguson estava lá, o vigário também.
Além disso, mães, tias, assistentes sociais, duas professoras da escola. Oh,
posso dar-lhe uma lista, cerca de catorze crianças. A mais nova não teria
mais de dez anos, indo até aos adolescentes.
– E suponho que teria conhecimento da lista de suspeitos entre eles? –
perguntou Poirot.
– Bem, não será tão fácil agora, se o que pensa for verdade. Quer dizer
que já não está a procurar uma personalidade com distúrbios sexuais. Está,
em vez disso, a procurar alguém que cometeu um assassinato e escapou,
alguém que nunca esperava ser descoberto e que teve subitamente um
grande choque.
«Raios me partam se consigo pensar em quem terá sido, de qualquer
modo. Não diria que tivéssemos prováveis assassinos por aqui. E de certeza
nada de espetacular em termos de assassinatos.»
– Pode haver prováveis assassinos em qualquer lugar – disse Poirot –, ou,
deveria dizer, assassinos improváveis, mas, mesmo assim, assassinos.
Porque assassinos improváveis não estão tão sujeitos a que se suspeite
deles. Provavelmente, não haverá muitas provas contra eles, e seria um
choque violento para tal assassino descobrir que, na realidade, houvera uma
testemunha do seu crime.
– Porque é que a Joyce não disse nada na altura? Isso é o que eu gostaria
de saber. Acha que foi subornada por alguém em troca do seu silêncio?
Seria decerto muito arriscado.
– Não – disse Poirot. – Pelo que disse Mrs. Oliver, creio que ela não se
apercebeu na altura de que o que estava a testemunhar era um assassinato.
– Oh, isso é com certeza bastante improvável – disse Spence.
– Não necessariamente – disse Poirot. – Era uma criança de treze anos
que falava. Lembrava-se de algo que vira no passado. Não sabemos quando,
exatamente. Poderia ter sido três ou mesmo quatro anos antes. Ela viu algo
mas não se apercebeu do seu verdadeiro significado. Sabe que isso se pode
aplicar a muitas coisas, mon cher. Algum acidente de carro um pouco
estranho. Onde parecesse que o condutor foi direto à pessoa que foi ferida
ou talvez morta. Uma criança poderia não se aperceber que foi propositado
na altura. Mas algo que alguém disse, ou alguma coisa que ela viu ou ouviu
um ano ou dois mais tarde, pode ter reavivado a sua memória e ela pensaria
talvez: «A ou B ou X fê-lo de propósito.» «Talvez fosse na verdade um
assassinato, e não apenas um acidente.» E há muitas outras possibilidades.
Algumas das quais, admito, sugeridas pela minha amiga, Mrs. Oliver, que
consegue facilmente imaginar doze soluções diferentes para tudo, algumas
não muito prováveis, mas todas elas pelo menos remotamente possíveis.
Comprimidos numa chávena de chá dada a alguém. Mais ou menos esse
tipo de coisa. Um empurrão num sítio perigoso, talvez. Não têm por aqui
falésias, o que é uma pena do ponto de vista das teorias prováveis. Sim,
creio que poderá haver uma abundância de possibilidades. Talvez fosse um
romance policial que a rapariga estivesse a ler e que a fizesse lembrar do
incidente. Poderia ser um incidente que a intrigasse na altura, e ela poderia
dizer, quando leu o romance: «Bem, isso pode ter sido tal coisa e tal pessoa.
Será que ele ou ela o fez propositadamente?» Sim, há muitas possibilidades.
– E veio aqui para se debruçar sobre elas?
– Seria do interesse público, acho eu, o senhor não acha? – disse Poirot.
– Ah, devemos ser tomados pelo espírito público, então, eu e o senhor?
– Pode, pelo menos, dar-me informação – disse Poirot. – Conhece as
pessoas daqui.
– Farei o que puder – disse Spence. – E recrutarei a Elspeth. Não há muita
coisa que ela não saiba sobre pessoas.
8 Cume dos Pinheiros, traduzido do inglês. (N. do T.)
Capítulo 6
M rs.ar deReynolds contrastava por completo com Mrs. Drake. Não tinha um
competência ponderada, nem parecia provável que alguma vez o
teria.
Vestia de negro convencional, agarrava um lenço húmido com a mão
direita e estava claramente preparada para se desfazer em lágrimas a
qualquer instante.
– É muita bondade sua, sem dúvida – disse ela a Mrs. Oliver –, trazer um
amigo seu para nos ajudar. – Ela pousou uma mão húmida na de Poirot e
olhou para ele, duvidosa. – E se ele puder ajudar de qualquer forma ficarei
decerto muito grata, apesar de não ver o que alguém possa fazer. Nada a
trará de volta, pobre criança. É horrível pensar nisso. Como pôde uma
pessoa matar deliberadamente alguém daquela idade. Se ao menos ela
tivesse gritado. Se bem que suponho que ele empurrou a cabeça dela para
debaixo de água de imediato e a manteve lá. Oh, não suporto pensar nisso.
Não suporto mesmo.
– De facto, madame, não a quero afligir. Não pense nisso. Quero apenas
fazer-lhe umas perguntas que podem ajudar. Ajudar, é claro, a encontrar o
assassino da sua filha. Suponho que não fará ideia alguma de quem poderá
ser?
– Como poderia fazer? Eu nunca pensaria que houvesse alguém, alguém
que vivesse aqui, quero eu dizer. Este é um sítio tão agradável. E as pessoas
que vivem aqui são tão simpáticas. Imagino que foi alguém, algum homem
horrível que entrou por uma das janelas. Talvez tivesse tomado drogas ou
outra coisa. Viu a luz e que havia uma festa, e entrou sem autorização.
– Tem a certeza de que o atacante era um homem?
– Oh, deve ter sido – Mrs. Reynolds parecia chocada. – Tenho a certeza
de que foi. Não pode ter sido uma mulher, pois não?
– Uma mulher podia ser suficientemente forte.
– Bem, de certa forma creio que entendo o que quer dizer. Quer dizer que
as mulheres hoje em dia são mais atléticas. Mas não fariam uma coisa
destas, tenho a certeza disso. A Joyce era uma criança, de treze anos.
– Não a quero angustiar por ficar aqui demasiado tempo, madame, ou
fazer-lhe perguntas difíceis. Estou certo de que a polícia está a fazer isso em
algum outro sítio, e não a quero perturbar por falar de factos dolorosos. Em
relação a um comentário que a sua filha fez na festa. A madame não estava
lá, creio eu?
– Bem, não, não estava. Não me tenho sentido bem ultimamente, e as
festas de crianças podem ser muito cansativas. Levei-as lá de carro, e mais
tarde fui buscá-las. As três crianças foram juntas, sabe. A Ann, é a mais
velha, tem dezasseis anos, e o Leopold que tem quase onze. O que foi que a
Joyce disse que lhe interessa?
– Mrs. Oliver, que estava lá, dir-lhe-á as palavras exatas da sua filha. Ela
disse, creio, que em tempos viu um assassinato a ser cometido.
– A Joyce? Oh, ela não pode ter dito uma coisa dessas. Que assassinato
poderia ela possivelmente ter visto a ser cometido?
– Bem, toda a gente parece pensar que era bastante improvável – disse
Poirot. – Eu apenas gostaria de saber se a madame acha que era improvável.
Ela alguma vez falou consigo sobre isso?
– Ver um assassinato? A Joyce?
– Deve lembrar-se – disse Poirot – que o termo assassinato poderia ser
utilizado por alguém da idade da Joyce de uma forma vaga. Poderia ser
apenas uma questão de alguém ser atropelado por um carro, ou crianças a
lutarem e uma empurrar outra para um riacho ou de uma ponte abaixo. Algo
que não era sério, mas que teve um resultado infeliz.
– Bem, não consigo pensar em nada disso que tenha acontecido aqui e
que a Joyce pudesse ver, e ela certamente que não me disse nada acerca
disso. Ela devia estar a brincar.
– Ela estava muito segura – disse Mrs. Oliver. – Não parava de dizer que
era verdade e que o havia visto.
– Alguém acreditou nela? – perguntou Mrs. Reynolds.
– Não sei – disse Poirot.
– Não creio – disse Mrs. Oliver –, ou talvez não quisessem, bem,
encorajá-la ao dizer que acreditavam.
– Estavam mais dispostos a gozar com ela e dizer que estava a inventar –
disse Poirot, menos gentil do que Mrs. Oliver.
– Bem, isso não foi muito simpático da parte deles – disse Mrs. Reynolds.
– Como se a Joyce dissesse muitas mentiras sobre coisas dessas – estava
corada e indignada.
– Eu sei. Parece improvável – disse Poirot. – Seria mais possível que ela
tivesse cometido um erro, que tivesse visto algo que pensasse poder ser
descrito como um assassinato, não seria? Algum acidente, talvez.
– Ela ter-me-ia dito algo, nesse caso, não teria? – disse Mrs. Reynolds,
ainda indignada.
– Julgar-se-ia que sim – respondeu Poirot. – Ela não disse nada antes?
Pode ter-se esquecido. Especialmente se não foi nada de realmente
importante.
– Quando?
– Não sabemos – disse Poirot. – Essa é uma das dificuldades. Pode ter
sido há três semanas. Ou há três anos. Ela disse que era «bastante nova» na
altura. O que considera uma rapariga de treze anos bastante nova? Não
houve nenhum acontecimento sensacional por aqui, de que se lembre?
– Oh, não creio. Isto é, ouvem-se coisas. Ou leem-se nos jornais. Sabe,
quero dizer mulheres que são atacadas, ou uma rapariga e o seu namorado,
ou coisas desse tipo. Mas nada de importante que eu me lembre, nada pelo
qual a Joyce se interessasse ou prestasse atenção.
– Mas, se a Joyce disse que vira com certeza um assassinato, a madame
diria que ela pensava tê-lo visto de facto?
– Ela não o diria se não o pensasse, pois não? – disse Mrs. Reynolds. –
Penso que na verdade deve ter confundido as coisas.
– Sim, parece possível. Será – perguntou ele – que eu poderia falar com
os seus dois filhos, que também estiveram na festa?
– Bem, é claro, apesar de não saber o que pode esperar que lhe digam. A
Ann está lá em cima a estudar para os exames finais do secundário e o
Leopold está na garagem a montar um modelo de avião.
Leopold era um rapaz robusto e de rosto rechonchudo, completamente
absorto, ao que parecia, em construções mecânicas. Passaram alguns
instantes até que pôde prestar atenção às perguntas que lhe eram feitas.
– Estavas lá, não estavas, Leopold? Ouviste o que a tua irmã disse. O que
foi que ela disse?
– Oh, quer dizer sobre o assassinato? – O seu tom parecia ser de
aborrecimento.
– Sim, é isso que quero dizer – disse Poirot. – Ela disse que viu em
tempos um assassinato. Ela viu mesmo uma coisa dessas?
– Não, é claro que não viu – disse Leopold. – Quem diabos veria ela a ser
assassinado? Isso era típico da Joyce.
– O que queres dizer, típico dela?
– Exibir-se – disse Leopold, enrolando um pedaço de arame e respirando
de forma forçada pelo nariz ao concentrar-se. – Ela era uma rapariga muito
estúpida – acrescentou. – Era capaz de dizer qualquer coisa, sabe, para
chamar a atenção das pessoas.
– Então achas mesmo que ela inventou tudo?
Leopold virou o seu olhar para Mrs. Oliver.
– Acho que ela queria impressioná-la a si um pouco – disse ele. – Escreve
romances policiais, não escreve? Acho que ela se estava a armar para que a
senhora reparasse mais nela do que nos outros.
– Isso também seria típico da Joyce? – disse Poirot.
– Oh, ela diria qualquer coisa – disse Leopold. – Mas aposto que ninguém
acreditou nela.
– Estavas a ouvir? Tu achas que alguém acreditou?
– Bem, ouvi-a a dizê-lo, mas não prestei atenção. A Beatrice riu-se dela e
a Cathie também. Disseram «isso é uma patranha» ou algo assim.
Não parecia haver muito mais a extrair de Leopold. Foram ao andar de
cima, onde Ann, parecendo mais velha do que os seus dezasseis anos,
estava debruçada sobre uma mesa onde havia vários livros de estudo
espalhados em volta dela.
– Sim, eu estava na festa – disse.
– Ouviu a sua irmã dizer alguma coisa sobre ter visto um assassinato?
– Oh sim, ouvi-a. No entanto, não prestei atenção.
– Não pensou que fosse verdade?
– Claro que não era verdade. Não há assassinatos aqui há muito tempo.
Não creio que haja um assassinato a sério há anos.
– Então porque acha que ela o disse?
– Oh, ela gosta de se exibir. Quero dizer, gostava de se exibir. Uma vez
contou uma história maravilhosa sobre ter viajado para a Índia. O meu tio
estivera lá numa viagem, e ela fingiu ter ido com ele. Muitas raparigas na
escola acreditaram mesmo nela.
– Então não se lembra de nada que considere assassinatos que tenham
acontecido aqui nos últimos três ou quatro anos?
– Não, apenas os habituais – disse Ann. – Aqueles sobre os quais se pode
ler todos os dias no jornal. E não foram mesmo aqui em Woodleigh
Common. Foram principalmente em Medchester, acho eu.
– Quem é que você acha que matou a sua irmã, Ann? Devia conhecer os
amigos dela, conheceria qualquer pessoa que não gostasse dela.
– Não imagino quem a quisesse matar. Talvez alguém que fosse doido.
Mais ninguém quereria, pois não?
– Houve alguém que... discutisse com ela ou que não se desse bem com
ela?
– Quer dizer, se ela tinha algum inimigo? Acho que isso é tolice. As
pessoas não têm inimigos de verdade. Há apenas pessoas de quem não se
gosta.
Ao saírem do quarto, Ann disse:
– Não quero ser má com a Joyce, porque ela está morta, e não seria
correto, mas ela era de facto uma mentirosa terrível, sabe. Tenho pena de
dizer coisas sobre a minha irmã, mas é bem verdade.
– Estamos a fazer algum progresso? – disse Mrs. Oliver ao saírem da
casa.
– Nenhum – disse Hercule Poirot. – Isso é interessante – disse ele
pensativo.
Mrs. Oliver não parecia concordar com ele.
Capítulo 8
A sfirma
instalações da Fullerton, Harrison e Leadbetter eram típicas de uma
tradicional e muitíssimo respeitável. A força do tempo fizera-se
sentir. Não havia mais Harrison ou Leadbetter. Havia um Mr. Atkinson e
um jovem Mr. Cole, e havia ainda Mr. Jeremy Fullerton, sócio principal.
Mr. Fullerton era um homem magro com um rosto impassível, uma voz
seca e legal e olhos que eram inesperadamente astutos. Sob a sua mão
estava pousada uma folha de papel, cujas poucas palavras ele acabara de ler.
Leu-as mais uma vez, analisando o seu significado de forma muito exata.
Depois olhou para o homem a quem o recado apresentava.
– M. Hercule Poirot? – Fez a sua própria análise ao visitante. Um homem
idoso, estrangeiro, muito bem vestido, calçado de forma inadequada com
sapatos de verniz que eram, adivinhou de modo astuto Mr. Fullerton,
demasiado pequenos para ele. Umas leves linhas de dor desenhavam-se já
nos cantos dos seus olhos. Um dandy, um peralvilho, um estrangeiro, e que
lhe fora recomendado por, de entre todas as pessoas, o inspetor Raglan, da
divisão de investigação criminal, e que era também atestado pelo
comissário Spence (reformado), anteriormente da Scotland Yard.
– O comissário Spence, hum? – disse Mr. Fullerton.
Fullerton conhecia Spence. Um homem que fizera um bom trabalho na
sua época, fora bastante conceituado entre os seus superiores. Memórias
vagas atravessaram a sua mente. Um caso famoso, mais famoso do que
alguma vez se poderia supor, um caso que se apresentara como simples.
Claro! Ocorreu-lhe que o seu sobrinho Robert estivera ligado ao caso, fora
advogado assistente. Um assassino psicopata, ao que parecera, um homem
que praticamente não se esforçara por tentar defender-se, um homem de
quem se poderia pensar que queria mesmo ser enforcado (porque foi o que
estava em jogo nessa altura). Não eram quinze anos, ou um número de anos
indefinido na prisão. Não. Pagava-se a pena mais elevada, e é pena que
tenham desistido disso, pensou Mr. Fullerton na sua mente seca. Hoje em
dia os jovens bandidos pensavam não arriscar muito ao prolongar uma
agressão até ao ponto em que se tornava mortal. Uma vez que a sua vítima
estava morta, não haveria testemunha para o identificar.
Spence fora o encarregado do caso, um homem calmo e tenaz que
insistira sempre que haviam capturado o homem errado. E haviam
capturado o homem errado, e a pessoa que encontrara a prova de que o
haviam feito fora uma espécie de amador estrangeiro. Um tipo que era um
detetive reformado da polícia belga. Já com alguma idade na altura. E agora
senil, provavelmente, pensou Mr. Fullerton, mas de qualquer forma tomaria
o caminho prudente. Informação era o que lhe queria. Informação que,
afinal de contas, não poderia ser errado fornecer, uma vez que não
conseguia ver que fosse provável ter alguma informação que pudesse ser
útil neste caso específico. Um caso de homicídio infantil.
Mr. Fullerton poderia pensar que tinha uma ideia bastante astuta sobre
quem cometera esse homicídio, mas não tinha a certeza de a querer ter,
porque havia pelo menos três suspeitos no caso. Qualquer um dos três
jovens inúteis o poderia ter feito. Flutuaram-lhe palavras pela cabeça.
Atrasado mental. Relatório psiquiátrico. Seria assim que o caso acabaria,
sem dúvida. De qualquer forma, afogar uma criança durante uma festa...
isso era um assunto muito diferente de uma criança entre inúmeras outras
que não chegara a casa e que aceitara uma boleia num carro depois de ter
sido repetidamente avisada para não o fazer, e que fora encontrada numa
mata ou numa saibreira próxima. Agora uma saibreira. Quando foi isso? Há
já muitos, muitos anos.
Tudo isto demorou cerca de quatro minutos, e então Mr. Fullerton limpou
a garganta de uma forma algo asmática e falou.
– M. Hercule Poirot – disse mais uma vez. – Que posso fazer por si?
Calculo que o assunto seja o desta menina, a Joyce Reynolds. Um caso
medonho, um caso muito medonho. Na verdade não vejo como o possa
ajudar. Sei muito pouco acerca de tudo isso.
– Mas é, creio eu, o conselheiro legal da família Drake?
– Oh sim, sim. Hugo Drake, pobre tipo. Muito simpático. Conheço-os há
anos, desde que compraram Apple Trees e vieram viver para aqui. Coisa
triste, a poliomielite, apanhou-o um ano quando estavam no estrangeiro de
férias. Claro que a saúde mental dele era perfeita. É triste quando isso
acontece a um homem que foi um bom atleta toda a vida, um desportista,
bom a jogar jogos e tudo o resto. Sim. Assunto triste, saber que se é um
aleijado para toda a vida.
– Também foi, penso eu, encarregado dos assuntos legais de Mrs.
Llewellyn-Smythe?
– A tia, sim. Mulher notável, na verdade. Veio viver para aqui, depois de
a sua saúde piorar, para estar perto do sobrinho e da esposa dele. Comprou
aquele elefante branco daquela casa, a Quarry House. Pagou muito mais do
que a casa valia, mas dinheiro não era problema para ela. Ela era muito rica.
Podia ter encontrado uma casa mais bonita, mas era a pedreira que a
fascinava. Levou para lá um arquiteto paisagista, um tipo muito
conceituado, creio. Um desses tipos bonitos, de cabelo comprido, mas ele
era mesmo habilidoso. Saiu-se bem neste trabalho do jardim da pedreira.
Ganhou uma boa reputação por causa disso, saiu na revista Homes and
Gardens e tudo. Sim, Mrs. Llewellyn-Smythe sabia escolher as pessoas.
Não era apenas uma questão de ter um jovem bem-parecido como
protegido. Algumas mulheres idosas são tolas nesse respeito, mas este tipo
tinha cabeça e estava no topo da sua profissão. Mas estou a divagar. Mrs.
Llewellyn-Smythe morreu há quase dois anos.
– Bastante de repente.
Fullerton olhou para Poirot de uma forma severa.
– Bem, não, eu não diria isso. Ela sofria do coração e os médicos
tentavam que ela não se esforçasse demasiado, mas ela era o tipo de mulher
a quem não se dá ordens. Ela não era do tipo hipocondríaco.
Tossiu e disse:
– Mas imagino que nos estejamos a afastar do assunto sobre o qual veio
falar comigo.
– Na verdade, não – disse Poirot –, mas gostaria, se fosse possível, de lhe
fazer algumas perguntas sobre um assunto completamente diferente.
Algumas informações sobre um dos seus funcionários, o Lesley Ferrier.
Mr. Fullerton pareceu um pouco surpreendido.
– Lesley Ferrier? – disse. – Lesley Ferrier. Deixe-me ver. De facto, sabe,
já quase me tinha esquecido do nome dele. Sim, sim, claro. Foi esfaqueado,
não foi?
– É esse o homem a quem me refiro.
– Bem, não sei se lhe posso dizer muito sobre ele. Aconteceu há alguns
anos. Foi esfaqueado uma noite perto do Green Swan. Ninguém foi preso.
Arrisco-me a dizer que a polícia tinha alguma ideia de quem foi o
responsável, mas creio que foi mais uma questão de obter provas.
– O motivo foi sentimental? – indagou Poirot.
– Oh sim, estou certo que sim. Ciúme, sabe. Ele andara metido com uma
mulher casada. O marido dela tinha um pub. O Green Swan em Woodleigh
Common. Um sítio despretensioso. E então parece que o jovem Lesley
começou a divertir-se com uma outra jovem, ou mais do que uma, dizem.
Era mulherengo. Houve sarilhos uma ou duas vezes.
– Ficou satisfeito com ele, como funcionário?
– Eu diria que fiquei não insatisfeito. Ele tinha os seus pontos bons.
Lidava bem com os clientes e estava a estudar para entrar na Ordem. Se
tivesse prestado mais atenção à posição que ocupava e a manter um bom
comportamento, teria sido melhor do que andar metido com uma rapariga
atrás da outra, a maioria das quais eu considero, à minha maneira antiquada,
que não estavam à altura dele. Houve uma discussão uma noite no Green
Swan, e o Lesley Ferrier foi esfaqueado no caminho de casa.
– Acha que alguma das raparigas foi responsável, ou terá sido Mrs. Green
Swan?
– De facto, não é que eu saiba alguma coisa de conclusivo. Creio que a
polícia considerou que foi um caso de ciúmes... mas...
Encolheu os ombros.
– Mas não tem a certeza?
– Oh, isso acontece – disse Mr. Fullerton. – Não há fúria no inferno como
uma mulher desprezada22. Isso está sempre a ser citado no tribunal. Por
vezes é verdade.
– Mas creio que vejo que não está muito seguro de que tenha sido esse o
caso.
– Bem, digamos que eu preferiria ter bastantes mais provas. A polícia
também. A acusação arquivou o caso, creio eu.
– Poderia ter sido algo muito diferente?
– Oh sim. Podiam-se formular diversas teorias. O jovem Ferrier não era
uma personagem muito estável. Bem-educado. A mãe era simpática, viúva.
O pai não era tão satisfatório. Escapou de várias alhadas por uma unha
negra. Má sorte para a esposa. O nosso jovem era parecido com o pai, em
algumas coisas. Envolveu-se umas vezes com uns grupos duvidosos. Dei-
lhe o benefício da dúvida. Ainda era novo. Mas avisei-o de que se estava a
meter com as pessoas erradas. Demasiado ligadas a transações ilegais.
Francamente, se não fosse pela mãe dele, não teria ficado com ele. Ele era
jovem e tinha capacidades; avisei-o uma ou duas vezes e esperei que desse
resultado. Mas hoje em dia há muita corrupção. Tem aumentado, nos
últimos dez anos.
– Acha que alguém podê-lo-ia ter tomado de ponta?
– É bem possível. Essas associações, bandos é uma palavra um pouco
melodramática, mas uma pessoa corre uns certos riscos quando se envolve
com eles. Basta ter a ideia de se afastar deles, e uma faca entre os ombros
não é uma coisa invulgar.
– Ninguém viu o crime acontecer?
– Não. Ninguém viu. Não veriam, claro. Quem quer que tenha sido a
fazer o serviço terá organizado tudo muito bem. Álibi no sítio e hora
corretos, etc., etc.
– E no entanto alguém pode ter visto o crime acontecer. Alguém muito
improvável. Uma criança, por exemplo.
– Tão tarde? Na vizinhança do Green Swan? Não é uma ideia muito
credível, M. Poirot.
– Uma criança – insistiu Poirot – que poder-se-ia lembrar. Uma criança
que regressasse de casa de um amigo. A uma distância curta, digamos, de
sua própria casa. Poderia ter vindo por um caminho ou visto algo detrás de
uma sebe.
– Realmente, M. Poirot, que imaginação que o senhor tem. O que me diz
parece-me muito improvável.
– A mim não me parece tão improvável – disse Poirot. – As crianças
veem coisas. Sabe, é que muitas vezes estão onde não se espera que
estejam.
– Mas decerto que quando chegam a casa contam o que viram?
– Poderiam não o fazer – disse Poirot. – Poderiam não ter a certeza do
que haviam visto. Especialmente se o que haviam visto fosse de todo
assustador para elas. As crianças nem sempre vão para casa e contam um
acidente que viram na rua, ou alguma violência inesperada. As crianças
guardam segredos muito bem. Guardam-nos e pensam neles. Às vezes
gostam de sentir que sabem um segredo, um segredo que guardam só para
elas próprias.
– Contá-lo-iam às mães – disse Mr. Fullerton.
– Não tenho assim tanta certeza – disse Poirot. – Na minha experiência as
coisas que as crianças não contam às mães são muito numerosas.
– Posso saber o que lhe interessa tanto no caso do Lesley Ferrier? A
morte lamentável de um jovem por causa de uma violência que infelizmente
está tantas vezes perto de nós hoje em dia?
– Não sei nada sobre ele. Mas queria saber algo sobre ele porque a sua
morte foi violenta e não se deu há muitos anos. Isso poderia ser importante
para mim.
– Sabe, M. Poirot – disse Mr. Fullerton, com um ligeiro azedume –, não
entendo realmente porque veio até mim, e no que está verdadeiramente
interessado. Não pode decerto suspeitar de alguma ligação entre a morte da
Joyce Reynolds e a morte de um jovem promissor, que tinha porém
atividades um pouco criminosas e que morreu há alguns anos?
– Uma pessoa pode suspeitar de tudo – disse Poirot. – Tem de descobrir-
se mais.
– Desculpe, o que uma pessoa tem de ter em todas as matérias que lidam
com o crime são provas.
– Talvez tenha ouvido dizer que a rapariga morta, a Joyce, foi ouvida por
várias testemunhas a dizer que tinha visto um assassinato com os seus
próprios olhos.
– Num lugar como este – disse Mr. Fullerton –, ouve-se qualquer boato
que circule. Posso acrescentar que é ouvido também sob uma forma
exagerada e pouco credível.
– Isso também – disse Poirot – é bem verdade. A Joyce tinha, segundo me
dizem, apenas treze anos. Uma criança de nove anos poder-se-ia lembrar de
algo que visse, um acidente com atropelamento e fuga, uma discussão ou
luta com facas numa noite escura, ou uma professora que foi estrangulada,
digamos... essas coisas deixam marcas muito fortes na mente de uma
criança acerca das quais ela não falaria, estando talvez incerta quanto aos
factos que vira, e refletindo sobre eles. Até possivelmente esquecendo-se
deles, até que alguma coisa lhe acontecesse que a fizesse lembrar. Concorda
que é algo que poderia acontecer?
– Oh sim, sim mas não creio... Penso que é uma suposição muito
rebuscada.
– Também houve aqui, segundo creio, um desaparecimento de uma
rapariga estrangeira. O seu nome era Olga ou Sonia, não tenho a certeza
quanto ao apelido.
– Olga Seminoff. Sim, claro.
– Temo que não fosse uma personagem de confiança?
– Não.
– Ela era acompanhante, ou enfermeira de Mrs. Llewellyn-Smythe, que
me descreveu ainda agora, não era? Tia de Mrs. Drake...
– Sim. Ela teve várias raparigas nesse cargo, duas outras raparigas
estrangeiras, acho eu, uma das quais com quem ela se zangou quase de
imediato, e outra que era simpática mas terrivelmente estúpida. Mrs.
Llewellyn-Smythe não tinha paciência para aturar tolos. A Olga, a sua
última tentativa, parecia ter-se adaptado a ela muito bem. Ela não era, se
bem me lembro, uma rapariga especialmente bonita – disse Mr. Fullerton. –
Era baixa, bastante forte, tinha uma atitude severa, e as pessoas da
vizinhança não gostavam muito dela.
– Mas Mrs. Llewellyn-Smythe gostava dela – sugeriu Poirot.
– Ela apegou-se muito a ela de uma forma imprudente, ao que parecia na
altura.
– Ah, de facto.
– Não tenho qualquer dúvida – disse Mr. Fullerton – de que não lhe digo
nada que não tenha ouvido já. Como lhe digo, essas coisas espalham-se
como fogo.
– Segundo me dizem, Mrs. Llewellyn-Smythe deixou uma quantia
avultada de dinheiro à rapariga.
– Uma coisa muito surpreendente – disse Mr. Fullerton. – Mrs.
Llewellyn-Smythe não mudava os termos essenciais do seu testamento há
muitos anos, exceto para adicionar novas organizações de caridade ou
alterar legados que haviam sido anulados por morte. Talvez lhe diga o que
já sabe, se está interessado neste caso. O dinheiro dela sempre fora deixado
conjuntamente ao seu sobrinho, Hugo Drake, e à esposa dele, que era
também sua prima direita, e também sobrinha de Mrs. Llewellyn-Smythe.
Se algum deles falecesse antes dela o dinheiro iria para o sobrevivente.
Foram feitas bastantes doações a organizações de caridade e a antigos
criados. Mas a que se alegava ser a disposição final das posses dela foi feita
cerca de três semanas antes da sua morte, e não, como até então, redigida
pela nossa firma. Era um codicilo escrito pela mão dela. Incluía uma ou
duas caridades, não tantas como antes, os antigos criados não recebiam
quaisquer legados, e o resíduo total da sua considerável fortuna era deixado
à Olga Seminoff em gratidão pelo serviço dedicado e afeto que ela lhe
mostrara. Uma disposição muito surpreendente, que parecia ser diferente de
tudo o que Mrs. Llewellyn-Smythe fizera antes.
– E então?
– Presumivelmente conhece mais ou menos os desenvolvimentos. Pelo
depoimento dado por peritos em caligrafia, tornou-se claro que o codicilo
era uma falsificação absoluta. Tinha apenas uma leve semelhança com a
caligrafia de Mrs. Llewellyn-Smythe, nada mais do que isso. Mrs. Smythe
não gostava da máquina de escrever e pedia frequentemente a Olga que
escrevesse cartas de cariz pessoal, copiando a letra da sua patroa o quanto
fosse possível, por vezes até assinando a carta como a sua patroa. Tinha
muita prática nisso. Parece que quando Mrs. Llewellyn-Smythe morreu a
rapariga foi ainda mais longe e pensou ser suficientemente competente para
tornar a sua letra aceitável como sendo da sua patroa. Mas esse tipo de coisa
não adianta com peritos. Não, de facto não adianta.
– Estavam prestes a tomar providências para contestar o documento?
– Exatamente. Claro que houve o atraso legal costumeiro até que o
processo chegasse de facto ao tribunal. Durante esse período a rapariga
perdeu a coragem e bem, como o senhor disse agora mesmo, ela...
desapareceu.
22 Citação da peça The Mourning Bride de 1697, escrita por William
Congreve. (N. do T.)
Capítulo 13
H ercule Poirot olhou para o rosto de Mrs. Goodbody com interesse. Era
de facto um modelo perfeito para uma bruxa. O facto de ser quase
indubitavelmente acompanhado por um carácter de extrema amabilidade
não desfazia a ilusão. Ela falava com gosto e prazer.
– Sim, eu estive mesmo lá em cima. Eu faço sempre de bruxa por aqui. O
vigário elogiou-me no ano passado e disse que se eu fizesse um bom papel
no espetáculo me daria um novo chapéu de funil. Um chapéu de bruxa
gasta-se como tudo o resto. Sim, eu estive lá em cima nesse dia. Eu faço as
rimas, sabe. Quero dizer a rimas para as raparigas, usando o nome próprio
delas. Uma para a Beatrice, outra para a Ann e para as outras. E dou-as a
quem quer que seja que faça a voz do espírito e eles recitam-nas para a
rapariga no espelho, e os rapazes, o jovem Nicholas e o menino Desmond,
eles mandam as fotografias falsas a flutuar para baixo. Matam-me de riso,
por vezes. Ver esses rapazes a colar pelos na cara e a fotografarem-se um ao
outro. E as coisas com que eles se vestem! Vi o menino Desmond no outro
dia, e nem acreditaria no que ele tinha vestido. Um casaco rosa e calças de
montar fulvas. Batem as raparigas aos pontos. A única coisa de que as
raparigas se lembram é de encurtar as saias cada vez mais alto, e isso não
lhes adianta muito porque têm de pôr mais coisas por baixo. Quero dizer,
com as coisas a que chamam meias elásticas e collants, que costumavam ser
só para coristas no meu tempo e para mais ninguém... gastam o dinheiro
todo nisso. Mas os rapazes, Céus, parecem martins-pescadores, pavões ou
aves-do-paraíso. Bem, eu gosto de ver um pouco de cor e penso sempre que
deve ter sido divertido naqueles velhos tempos históricos como se vê nos
retratos. Sabe, toda a gente com rendas e caracóis e chapéus de cavaleiro e
tudo o resto. Davam às raparigas alguma coisa para onde olhar. E gibão e
calção. As raparigas nos tempos históricos só pensavam, a meu ver, em pôr
saias de balão, crinolinas chamaram-se depois, e grandes folhos à volta do
pescoço! A minha avó, costumava dizer-me que as suas jovens senhoras,
ela foi serviçal, sabe, numa boa família vitoriana, e as suas jovens senhoras
(acho que foi antes do tempo de Vitória)... foi no tempo em que estava no
trono o rei que tinha uma cabeça como uma pera, o Billy Tonto, Guilherme
IV, bem então, as suas jovens senhoras, refiro-me às jovens senhoras da
minha avó, costumavam ter vestidos de musselina muito compridos até aos
tornozelos, muito formais, mas elas costumavam molhar as suas musselinas
para que se colassem ao corpo. Sabe, colavam-se e mostravam tudo o que
havia para mostrar. Andavam com um ar tão púdico, mas agradavam aos
cavalheiros, isso é que agradavam.
– Emprestei a minha bola de bruxa a Mrs. Drake para a festa. Comprei
essa bola de bruxa numa feira algures. Está ali pendurada junto à chaminé,
vê? Um azul-escuro brilhante e bonito. Tenho-a sobre a minha porta.
– Lê sinas?
– Não posso dizer que sim, pois não? – deu uma risada. – A polícia não
gosta disso. Não que se importem com o tipo de sinas que eu leio. Não tem
nada que saber, poder-se-ia dizer. Num sítio como este sabe-se sempre
quem anda com quem, e isso torna tudo fácil.
– Não pode olhar para a sua bola de bruxa, lá dentro, e ver quem matou
aquela rapariguinha, a Joyce?
– Está a fazer confusão – disse Mrs. Goodbody. – É uma bola de cristal
onde se olha para ver coisas, não uma bola de bruxa. Se eu lhe dissesse
quem acho que foi que o fez, não gostaria. Diria que foi contra a Natureza.
Mas há muitas coisas que acontecem que são contra a Natureza.
– Talvez tenha razão.
– Este é um bom sítio para se viver, em geral. Quero dizer, as pessoas são
decentes, a maioria, mas onde quer que se vá, o Diabo tem sempre lá alguns
dos seus. Nascidos e criados para tal.
– Refere-se... a magia negra?
– Não, não me refiro a isso. – Mrs. Goodbody troçava. – Isso é um
disparate. É para pessoas que gostam de se mascarar e fazer asneiras. Sexo
e tudo isso. Não, eu refiro-me àqueles que o Diabo tocou com a sua mão.
Nascem assim. Os filhos de Lúcifer. Nascem de tal forma que matar nada
significa para eles, não se lhes trouxer lucro. Quando querem uma coisa,
querem-na. E são implacáveis ao persegui-la. Podem ser bonitos como
anjos. Conheci uma rapariguinha em tempos. Sete anos de idade. Matou o
seu irmãozinho e a sua irmãzinha. Eram gémeos. Cinco ou seis meses de
idade, não mais do que isso. Sufocou-os nos carrinhos.
– Isso aconteceu aqui em Woodleigh Common?
– Não, não, não foi em Woodleigh Common. Vi isso lá em cima no
Yorkshire, se bem me lembro. Um caso medonho. Criatura linda que ela
era. Podia-se-lhe pregar um par de asas, deixá-la subir a uma plataforma e
cantar hinos de Natal, e pareceria perfeita para o papel. Mas não era. Era
podre por dentro. Saberá o que quero dizer. Não é um jovem. Sabe a
maldade que há pelo mundo.
– Infelizmente! – disse Poirot. – Tem razão. Sei bem de mais. Se a Joyce
viu de facto um assassinato a ser cometido...
– Quem diz que ela viu? – disse Mrs. Goodbody.
– Ela própria o disse.
– Não há razão para acreditar. Ela sempre foi uma pequena mentirosa. –
Ela lançou-lhe um olhar severo. – Não acreditará nisso, imagino?
– Sim – disse Poirot. – Acredito. Demasiadas pessoas mo disseram, para
que continue a não acreditar.
– Aparecem coisas estranhas nas famílias – disse Mrs. Goodbody. – Tome
os Reynolds como exemplo. Há Mr. Reynolds. Está no ramo imobiliário.
Nunca foi muito bom e nunca o será. Nunca teve muito jeito, como se diz.
E Mrs. Reynolds, sempre preocupada e incomodada com tudo. Nenhum dos
três filhos sai aos pais. Há a Ann, sabe, ela é inteligente. Vai sair-se bem nos
estudos. Irá para a universidade, não me espantaria, talvez estude para ser
professora. Diga-se que é muito convencida. É tão convencida que ninguém
a aguenta. Nenhum dos rapazes olha para ela. E depois havia a Joyce. Não
era inteligente como a Ann, nem tão inteligente como o seu irmão mais
novo, o Leopold, mas queria sê-lo. Queria sempre saber mais do que os
outros e ser melhor do que os outros, e diria qualquer coisa para que as
pessoas prestassem atenção. Mas não acredite que alguma coisa que ela
tenha dito seja verdade. Porque quase nunca era.
– E o rapaz?
– O Leopold? Bem, ele só tem nove ou dez anos, creio, mas é mesmo
inteligente. E habilidoso com as mãos e de outras formas também. Quer
estudar coisas como Física. Também é bom a Matemática. Surpreenderam-
se com isso na escola. Sim, ele é esperto. Será um desses cientistas, calculo.
Se quer saber, as coisas que fará quando for cientista e as coisas que
inventará... serão medonhas, como bombas atómicas! Ele é do tipo que
estuda e é tão inteligente e inventa alguma coisa que destruirá meio mundo
e a todos nós desgraçados. Tenha cuidado com o Leopold. Engana as
pessoas, sabe, e ouve as conversas. Descobre todos os seus segredos.
Gostava de saber onde arranja ele o dinheiro. Não é da mãe ou do pai. Eles
não lhe podem dar muito. Ele tem sempre muito dinheiro. Guarda-o numa
gaveta por baixo das meias. Ele compra coisas. Muitas engenhocas caras.
Onde arranja ele o dinheiro? Isso é o que eu gostaria de saber. Eu diria que
descobre os segredos das pessoas, e obriga-as a pagar a troco de não abrir a
boca.
Ela fez uma pausa, para recuperar o fôlego.
– Bem, receio que não o possa ajudar, de qualquer modo.
– Ajudou-me muito – disse Poirot. – O que aconteceu à rapariga
estrangeira que dizem ter fugido?
– Na minha opinião não foi longe. Dlim-dlão, no poço a encontrarão26.
Pelo menos é o que sempre pensei.
26 Frase de uma rima infantil inglesa: ding dong dell, pussy’s in the well.
(N. do T.)
Capítulo 17
–D esculpe,
minuto.
minha senhora, gostaria de saber se poderia falar consigo um
Mrs. Oliver, que estava no alpendre da casa da sua amiga a olhar para ver
se havia algum sinal da aproximação de Hercule Poirot, que a avisara pelo
telefone de que viria vê-la agora, olhou em volta.
Uma mulher de meia-idade e bem-arranjada estava parada, torcendo as
mãos de modo nervoso com as suas elegantes luvas de algodão.
– Sim? – disse Mrs. Oliver, acrescentando um ponto de interrogação
através da entoação.
– Desculpe incomodá-la, mas pensei... bem, pensei...
Mrs. Oliver ouviu mas não tentou induzi-la a falar. Interrogou-se sobre o
que tanto preocuparia a mulher.
– Calculo corretamente que seja a senhora que escreve histórias, não
calculo? Histórias sobre crimes e assassinatos e coisas desse género.
– Sim – disse Mrs. Oliver –, sou eu.
A sua curiosidade estava agora desperta. Seria isto um prefácio para um
pedido de autógrafo ou até uma fotografia autografada? Nunca se sabia. As
coisas mais improváveis aconteciam.
– Pensei que seria a pessoa certa para me dizer – disse a mulher.
– É melhor sentar-se – disse Mrs. Oliver.
Ela previu que a Mrs. Sei-lá-Quem (usava aliança portanto era Mrs.), era
do tipo que demora algum tempo a chegar ao fundo da questão. A mulher
sentou-se e continuou a torcer as mãos enluvadas.
– Está preocupada com alguma coisa? – disse Mrs. Oliver, fazendo o
melhor que podia para que a conversa fluísse.
– Bem, gostaria de um conselho, é verdade. É sobre algo que aconteceu
há algum tempo e não me preocupou na altura. Mas sabe como é. Uma
pessoa pensa nas coisas e quer ter alguém a quem possa ir perguntar sobre
elas.
– Compreendo – disse Mrs. Oliver, esperando inspirar confiança com esta
afirmação completamente superficial.
– Vendo as coisas que aconteceram recentemente, nunca se sabe, pois
não?
– Refere-se...?
– Refiro-me ao que aconteceu na festa das bruxas, ou lá como lhe
chamaram. Quero dizer mostra que há aqui pessoas que não são de
confiança, não mostra? E mostra a uma pessoa coisas que não eram antes
como uma pessoa pensava que eram. Quero dizer, poderiam não ter sido o
que uma pessoa pensava que eram, se bem me entende.
– Sim? – disse Mrs. Oliver, acrescentando um tom de interrogação ainda
maior ao monossílabo. – Não creio saber o seu nome – acrescentou.
– Leaman. Mrs. Leaman. Faço limpezas para ajudar às senhoras daqui.
Desde que o meu marido morreu, e isso foi há cinco anos. Trabalhei para
Mrs. Llewellyn-Smythe, a senhora que vivia em Quarry House, antes de o
coronel e Mrs. Weston virem. Não sei se a conheceu.
– Não – disse Mrs. Oliver –, nunca a conheci. É a primeira vez que venho
a Woodleigh Common.
– Compreendo. Bem, talvez não saiba muito do que se passava na altura,
e o que foi dito nessa altura.
– Ouvi falar disso algumas vezes desde que estou aqui – disse Mrs.
Oliver.
– Sabe, não sei nada sobre a lei, e fico sempre preocupada quando é uma
questão de lei. Advogados, quero eu dizer. Podem fazer confusão e eu não
gostaria de ir à polícia. Não teria nada a ver com a polícia, sendo um
assunto legal, pois não?
– Talvez não – disse Mrs. Oliver, com cautela.
– Saberá talvez o que disseram na altura sobre o codi... não sei, uma
palavra como codi. Como o peixe, quero eu dizer.
– Um codicilo do testamento? – sugeriu Mrs. Oliver.
– Sim, é isso. É isso que quero dizer. Mrs. Llewellyn-Smythe, sabe, fez
um desses cod... codicilos e deixou todo o seu dinheiro à rapariga
estrangeira que tomava conta dela. E isso foi uma surpresa, porque tinha
familiares a viver aqui, e tinha no fim de contas vindo para cá para viver
junto deles. Era-lhes muito dedicada, em particular a Mr. Drake. E pareceu
estranho às pessoas, na verdade. E depois os advogados, sabe, começaram a
dizer coisas. Disseram que Mrs. Llewellyn-Smythe não tinha escrito o
codicilo de todo. Que a rapariga estrangeira o tinha feito, já que fizera com
que o dinheiro todo fosse para ela. E disseram que iam levar isso à lei. Que
Mrs. Drake ia contraceptar o testamento, se é que é essa a palavra certa.
– Os advogados iam contestar o testamento. Sim, creio que ouvi algo
sobre isso – disse Mrs. Oliver, num tom encorajador. – E sabe algo sobre
isso, talvez?
– Não fiz por mal – disse Mrs. Leaman. Fez-se sentir na sua voz uma
ligeira lamúria, com a qual Mrs. Oliver já se tinha deparado várias vezes no
passado.
Mrs. Leaman, pensou, era presumivelmente uma mulher não muito digna
de confiança em alguns aspetos, uma coscuvilheira talvez, alguém que
escutava atrás das portas.
– Não disse nada na altura – disse Mrs. Leaman –, porque não sabia bem,
sabe. Mas eu pensei que era estranho e confesso a uma senhora como a
senhora, que sabe o que são estas coisas, que quis saber a verdade.
Trabalhara para Mrs. Llewellyn-Smythe durante algum tempo, e uma
pessoa quer saber como é que as coisas aconteceram.
– De facto – disse Mrs. Oliver.
– Se eu pensasse que fiz algo que não deveria ter feito, bem, é claro que
contaria tudo. Mas não pensei ter feito nada de verdadeiramente errado,
sabe. Não naquela altura, se me compreende – acrescentou.
– Oh sim – disse Mrs. Oliver –, estou certa de que compreendo. Continue.
Era sobre o codicilo.
– Sim, sabe, um dia Mrs. Llewellyn-Smythe, ela não se sentira muito bem
nesse dia e então pediu-nos que entrássemos. A mim e ao jovem Jim, que
ajuda no jardim e traz a lenha e o carvão e essas coisas. Então entrámos no
quarto dela, onde ela estava, e ela tinha uns papéis à frente dela na
secretária. E ela vira-se para uma rapariga estrangeira, Miss Olga era o que
lhe chamávamos todos, e disse «Tu sais do quarto agora, querida, porque
não deves estar envolvida nesta parte», ou algo do género. Então Miss Olga,
ela sai do quarto, e Mrs. Llewellyn-Smythe, ela diz-nos que nos
aproximemos e diz: «Este é o meu testamento.» Tinha um pedaço de mata-
borrão no cimo mas a parte de baixo está bem à vista. Ela disse: «Estou a
escrever algo aqui neste pedaço de papel e quero que sejam testemunhas do
que escrevi e da minha assinatura no fim.» Então ela começa a escrever na
página. Usava sempre uma caneta com um traço imperfeito, nunca usava
esferográficas nem nada assim. E escreve duas ou três linhas e depois
assinou o nome, e então diz-me: «Agora, Mrs. Leaman, escreva o seu nome
aqui. O seu nome e a sua morada.» E depois diz ao Jim: «E agora escreva o
seu nome aqui em baixo, e a sua morada também. Assim. Já está. Agora
viram-me escrever aquilo e viram a minha assinatura e escreveram os
vossos nomes, ambos, e então é assim.» E depois ela diz: «É tudo. Muito
obrigada.» Por isso nós saímos do quarto. Bem, não pensei mais nisso na
altura, mas intrigou-me bastante. E aconteceu enquanto voltava a cabeça,
mesmo quando ia a sair do quarto. Sabe, a porta nem sempre fecha bem.
Tem de ser puxada, para que faça um clique. E então eu estava a fazer isso...
não estava mesmo a olhar, se me entende...
– Entendo-a – disse Mrs. Oliver, de forma descomprometida.
– E então eu vejo Mrs. Llewellyn-Smythe a levantar-se da cadeira, ela
tinha artrite e por vezes tinha dores ao mexer-se, e a deslocar-se até à
estante, e pegou num livro e põe o pedaço de papel que ela acabara de
assinar, que estava num envelope, num dos livros. Um livro grande e alto
que estava na prateleira de baixo. Bem, nunca mais pensei nisso, por assim
dizer. Não, de facto, não pensei. Mas quando se levantou toda esta
confusão, bem, é claro que eu senti... pelo menos, eu... – parou.
Mrs. Oliver teve uma das suas intuições úteis.
– Mas com certeza – disse – não esperou assim tanto tempo...
–Bem, dir-lhe-ei a verdade. Admito que estava curiosa. Afinal de contas,
uma pessoa quer saber quando assina qualquer coisa, o que foi que assinou,
não quer? É a natureza humana.
– Sim – disse Mrs. Oliver –, é a natureza humana.
Pensou que a curiosidade era uma parte grande da composição da
natureza humana de Mrs. Leaman.
– Por isso admito que no dia seguinte, quando Mrs. Llewellyn-Smythe
tinha ido de carro a Medchester e eu estava a arrumar o seu quarto como era
hábito, um quarto de descanso que ela tinha porque precisava de muito
descanso. E penso: «Bem, uma pessoa deve mesmo saber o que assinou,
quando assina uma coisa.» Dizem sempre que com essas coisas de contrato
que se deve ler as letras miudinhas.
– Ou neste caso, a escrita à mão – sugeriu Mrs. Oliver.
– Então eu pensei, bem, não há mal, não é como se estivesse a roubar
alguma coisa. Eu tive de assinar o meu nome, e pensei que deveria saber o
que assinara. Então dei uma olhadela às estantes. De qualquer forma
precisavam de que lhes limpasse o pó. E encontrei-o. Estava na prateleira
de baixo. Era um livro antigo, do género de livro da rainha Vitória. E
encontrei o envelope com um papel dobrado lá dentro e o título do livro era
Enquire Within Upon Everything27. E pareceu-me então que era como se
estivesse destinado, sabe o que quero dizer?
– Sim – disse Mrs. Oliver. – Era com certeza o destino. E então tirou o
papel e olhou para ele.
– É isso, minha senhora. E se fiz mal ou não, não sei. Mas de qualquer
forma, lá estava. Era mesmo um documento legal. Na última página estava
a escrita que ela fizera na manhã anterior. Escrita nova com uma caneta
nova que ela usava, e que tinha um traço imperfeito. Estava nítido o
suficiente para que pudesse ser lido, apesar de que ela tinha uma letra um
pouco angulosa.
– E o que dizia? – perguntou Mrs. Oliver, a sua curiosidade juntando-se
agora à que fora previamente sentida por Mrs. Leaman.
– Bem, dizia algo como, pelo que me lembro, não tenho a certeza das
palavras exatas, algo sobre um codicilo e que, depois dos legados
mencionados no seu testamento, ela deixava toda a sua fortuna à Olga, não
tenho a certeza do seu apelido, começava com um S. Seminoff, ou alguma
coisa parecida, em consideração pela sua grande bondade e atenção para
com ela durante a sua doença. E estava lá escrito, e ela assinara e eu
assinara, e Jim assinara. Então eu pu-lo de volta onde estava porque não
gostaria que Mrs. Llewellyn-Smythe soubesse que eu andava a bisbilhotar
nas coisas dela.
«Bem, disse para comigo, bem, isto é uma surpresa. E pensei, que
surpresa aquela rapariga estrangeira receber todo aquele dinheiro, porque
todos sabemos que Mrs. Llewellyn-Smythe era muito rica. O marido dela
fora armador e deixara-lhe uma grande fortuna, e eu pensei, bem, há
pessoas com sorte. Veja bem, eu não gostava muito de Miss Olga. Ela tinha
uma atitude severa por vezes, e tinha bastante mau feitio. Mas dir-lhe-ei que
era sempre muito atenciosa e educada e tudo mais, com a velha senhora.
Estava a cuidar de si, na verdade, e safou-se. E eu pensei, bem, deixar todo
aquele dinheiro a alguém que não é da família. Depois pensei, bem, talvez
tenha tido uma desavença com eles e o mais provável é que passe, por isso
talvez ela rasgue isto e faça outro testamento ou codicilo, afinal. Mas, de
qualquer forma, foi isso, e eu pus o papel de volta e esqueci-me dele,
suponho.
«Mas quando se levantou toda a confusão por causa do testamento, e se
falou de como fora falsificado e que Mrs. Llewellyn-Smythe nunca poderia
ter escrito aquele codicilo, porque era isso o que diziam, veja bem, que não
tinha sido a velha senhora a escrevê-lo, que fora outra pessoa...»
– Compreendo – disse Mrs. Oliver. – E, então, o que fez?
– Eu não fiz nada. E é isso que me preocupa... não me apercebi das coisas
de imediato. E quando já refletira um pouco sobre as coisas não sabia ao
certo o que deveria fazer e pensei, bem, era tudo conversa porque os
advogados estavam contra a estrangeira, como costumam estar sempre
todas as pessoas. Eu própria não gosto muito de estrangeiros, admito-o. De
qualquer forma, lá estava, e a jovem senhora lá andava a pavonear-se,
dando-se ares, nas suas sete quintas e eu pensei, bem, talvez seja tudo
alguma coisa legal, eles dirão que ela não tem direito ao dinheiro porque
não era parente da velha senhora. Por isso tudo ficará bem. E ficou, de certa
forma, porque desistiram de levar o caso a tribunal. Não chegou a tribunal e
tanto quanto se soube, Miss Olga fugiu. Regressou algures para o
continente, de onde viera. Então parece que deve ter havido alguns truques
da parte dela. Talvez ela ameaçasse a velha senhora e a obrigasse a fazê-lo.
Nunca se sabe, pois não? Um dos meus sobrinhos, que vai ser médico, diz
que se consegue fazer coisas maravilhosas com hipnotismo. Pensei que ela
talvez tivesse hipnotizado a velha senhora.
– Isto foi há quanto tempo?
– Mrs. Llewellyn-Smythe morreu há... deixe-me ver, quase dois anos.
– E isso não a preocupou?
–Não, não me preocupou. Não naquela altura. Porque sabe, não se
colocou a hipótese de Miss Olga fugir com o dinheiro, por isso não vi que
houvesse necessidade de eu...
– Mas agora já pensa de outra forma?
– Foi aquela morte horrenda, a criança que foi empurrada para dentro de
um balde de maçãs. A dizer coisas sobre um assassinato, a dizer que vira
algo ou que sabia algo sobre um assassinato. E pensei que talvez Miss Olga
tivesse assassinado a velha senhora porque sabia que aquele dinheiro todo
ia para ela e que depois se assustou quando se levantou a confusão e vieram
advogados e polícia, talvez, e então fugiu. Então pensei bem, talvez eu
devesse, bem, devesse contar a alguém, e pensei que a senhora seria alguém
que tem amigos em departamentos legais. Amigos na polícia talvez, e que
lhes explicaria que eu estava apenas a limpar o pó numa estante, e que esse
papel estava lá dentro de um livro e que eu o voltei a pôr onde pertencia.
Não o tirei nem nada.
– Mas foi isso o que aconteceu nessa ocasião? Viu Mrs. Llewellyn-
Smythe escrever um codicilo no testamento. Viu-a escrever o seu nome e
você e esse tal Jim Qualquer-Coisa estavam ambos lá e escreveram ambos
os vossos próprios nomes. Foi isso, não foi?
– Foi isso.
– Então se ambos viram Mrs. Llewellyn-Smythe escrever o nome dela,
então aquela assinatura não poderia ser uma falsificação, pois não? Não se a
viu escrevê-la, ela própria.
– Vi-a escrevê-la, ela própria, e o que lhe digo é a verdade. E o Jim
também o diria só que ele foi para a Austrália. Foi há mais de um ano e não
sei a morada dele nem nada. Ele não era de cá, de qualquer modo.
– E o que quer que eu faça?
– Bem, quero que me diga se há alguma coisa que eu deva dizer, ou
fazer... agora. Se bem que ninguém me perguntou. Nunca ninguém me
perguntou se eu sabia alguma coisa de um testamento.
– O seu nome é Leaman. Qual é o nome próprio?
– Harriet.
– Harriet Leaman. E o Jim, qual é o apelido dele?
– Bem, qual era? Jenkins. É isso. James Jenkins. Ficar-lhe-ia muito
agradecida se me pudesse ajudar porque me preocupa, sabe. Este sarilho
todo que aí vem se aquela Miss Olga o fez, se assassinou Mrs. Llewellyn-
Smythe, quero dizer, e a pequena Joyce a viu fazê-lo... Ela ficou mesmo
radiante com aquilo tudo, Miss Olga, isto é, ouvir dos advogados sobre
receber muito dinheiro. Mas foi diferente quando a polícia veio fazer
perguntas, e ela foi-se muito repentinamente. Ninguém me perguntou nada.
Mas agora não consigo evitar interrogar-me se deveria ter dito alguma coisa
na altura.
– Creio – disse Mrs. Oliver – que provavelmente terá de contar esta sua
história a quem quer que tenha representado Mrs. Llewellyn-Smythe como
advogado. Tenho a certeza de que um bom advogado entenderá muito bem
o que sentiu e os seus motivos.
– Bem, tenho a certeza de que se a senhora falasse por mim e lhes
dissesse, sendo uma senhora que sabe como são as coisas, como as coisas se
passaram, e como eu nunca quis... bem, não quis fazer nada de desonesto de
maneira nenhuma. Quero dizer, só fiz...
– Tudo o que fez foi não dizer nada – disse Mrs. Oliver. – Parece uma
explicação bastante razoável.
– E se partisse da senhora, falando em meu nome primeiro, sabe, para
explicar, eu ficar-lhe-ia grata para sempre.
– Farei o que puder – disse Mrs. Oliver.
Os seus olhos desviaram-se para o caminho do jardim, onde viu uma
figura bem-arranjada que se aproximava.
– Bem, muito obrigada. Disseram que era uma senhora muito simpática, e
eu estou-lhe mesmo muito agradecida.
Ela levantou-se, voltou a colocar as luvas de algodão que torcera
completamente na sua angústia, fez um leve aceno ou vénia, e saiu
rapidamente. Mrs. Oliver aguardou que Poirot se aproximasse.
– Venha cá – disse ela – e sente-se. O que passa consigo? Parece
transtornado.
– Os meus pés doem-me imenso – disse Hercule Poirot.
– São esses seus sapatos de verniz horríveis – disse Mrs. Oliver. – Sente-
se. Diga-me o que me veio contar, e depois eu dir-lhe-ei uma coisa que o
poderá surpreender!
27 Enquire Within Upon Everything, cujo título traduzido é Informe-se Aqui
Sobre Tudo, é um livro de instruções para a vida doméstica, publicado em
1856 pela editora londrina Houlston and Sons. Foi criado com a intenção de
fornecer informação enciclopédica sobre temas como etiqueta, jogos de
salão, receitas, dicas de lavandaria, preparação de festas e primeiros
socorros. (N. do T.)
Capítulo 18
Q uando saiu da casa de Mrs. Butler, Poirot foi pelo mesmo caminho que
lhe fora mostrado por Miranda. A abertura na sebe pareceu-lhe ter sido
alargada desde a última vez. Talvez alguém ligeiramente mais corpulento
do que Miranda a tivesse utilizado também. Subiu o caminho para a
pedreira, reparando mais uma vez na beleza da cena. Um sítio lindo, e no
entanto, de certa forma, Poirot sentiu como sentira antes que podia ser um
sítio assombrado. Havia nele uma espécie de crueldade pagã. Podia ser ao
longo destes caminhos que as fadas caçavam as suas vítimas, ou que uma
deusa cruel decretava quais os sacrifícios que deveriam ser oferecidos.
Compreendia por que não se tornara num local de piqueniques. Por
alguma razão, uma pessoa não queria trazer os ovos cozidos, alface e
laranjas, e sentar-se aqui a fazer piadas e a divertir-se. Era diferente, muito
diferente. Teria sido melhor, talvez, pensou de repente, se Mrs. Llewellyn-
Smythe não tivesse querido esta transformação de conto de fadas. Poder-se-
ia ter feito um jardim romântico modesto a partir de uma pedreira sem este
ambiente, mas ela fora uma mulher ambiciosa, ambiciosa e muito rica.
Pensou durante uns momentos em testamentos, o tipo de testamentos feitos
por mulheres ricas, o tipo de mentiras contadas acerca dos testamentos
feitos por mulheres ricas, os sítios onde os testamentos de mulheres ricas
eram por vezes escondidos, e tentou colocar-se na mente de um falsificador.
Sem dúvida que o testamento que fora apresentado no tribunal de sucessão
era uma falsificação. Mr. Fullerton era um advogado cuidadoso e
competente. Tinha a certeza disso. Também era o tipo de advogado que
nunca aconselharia um cliente a apresentar um caso ou a tomar
providências legais a não ser que houvesse muito boas provas e justificação
para o fazer.
Dobrou uma esquina no caminho, sentindo que nesse momento os seus
pés eram muito mais importantes do que as suas especulações. Tomava um
atalho para a habitação do comissário Spence ou não? Em linha reta talvez,
mas a estrada principal seria melhor para os seus pés. Este caminho não era
de relva ou de musgo, tinha a dureza da pedra da pedreira. Então parou.
À sua frente estavam duas figuras. Sentado numa saliência da rocha
estava Michael Garfield. Tinha um bloco de desenho nos joelhos e estava a
desenhar, a sua atenção concentrada no que estava a fazer. Um pouco
afastada dele, de pé perto de um riacho diminuto mas melodioso que corria
desde cima, estava Miranda Butler. Hercule Poirot esqueceu os pés,
esqueceu as dores e tormentos do corpo humano, e concentrou-se de novo
na beleza que os seres humanos conseguiam alcançar. Não havia dúvidas de
que Michael Garfield era um jovem muito bonito. Não sabia dizer se
gostava de Michael Garfield ou não. É sempre difícil saber se se gosta de
alguém bonito. Gosta-se de olhar para a beleza, ao mesmo tempo que não se
gosta da beleza quase por princípio. As mulheres podiam ser bonitas, mas
Hercule Poirot não tinha de todo a certeza de que gostava de beleza em
homens. Não teria gostado de ser um jovem bonito, não que houvesse
alguma hipótese de isso acontecer. Havia apenas uma coisa na sua própria
aparência que agradava realmente a Hercule Poirot, e isso era a profusão do
seu bigode e a forma como respondia aos cuidados, tratamento e corte. Era
magnífico. Não conhecia ninguém que tivesse um bigode minimamente tão
bom. Nunca fora bonito nem bem-parecido. Certamente que nunca fora
lindo.
E Miranda? Pensou novamente o que pensara antes, que era o seu ar
grave que era tão atraente. Interrogou-se sobre o que lhe iria na mente. Era
o tipo de coisa que nunca se saberia. Ela não diria facilmente em que
pensava. Duvidava que ela dissesse o que pensava, se lho perguntassem.
Tinha uma mente original, pensou, uma mente que refletia. Também pensou
que ela era vulnerável. Muito vulnerável. Havia outras coisas que sabia
sobre ela, ou pensava saber. Eram só pensamentos, mas no entanto tinha
quase a certeza.
Michael Garfield olhou para cima.
– Ah! Señor Moustachios. Uma muito boa tarde para si, sir.
– Posso ver o que está a fazer ou será que isso o incomodaria? Não quero
ser importuno.
– Pode ver – disse Michael Garfield – não me faz diferença. –
Acrescentou de forma amável. – Estou a divertir-me imenso.
Poirot colocou-se atrás do ombro dele. Acenou com a cabeça. Era um
desenho a lápis muito delicado, as linhas quase invisíveis. O homem sabia
desenhar, pensou Poirot. Não só jardins de design. Disse, quase sem se
ouvir:
– Encantador!
– Também acho – disse Michael Garfield.
Deixou que fosse duvidoso estar a referir-se ao desenho que estava a
fazer, ou à modelo.
– Porquê? – perguntou Poirot.
– Porque estou a fazê-lo? Acha que tenho uma razão?
– Podia ter.
– Tem razão. Se me for embora daqui, há uma ou duas coisas das quais
me quero lembrar. A Miranda é uma delas.
– Esquecer-se-ia dela facilmente?
– Muito facilmente. Sou assim. Mas esquecer-se de alguma coisa ou de
alguém, ser incapaz de visualizar um rosto, uma curva do ombro, um gesto,
uma árvore, uma flor, um contorno da paisagem, saber como era vê-lo mas
não conseguir trazer essa imagem de volta ao olhar, isso por vezes causa,
como direi, quase agonia. Sabe, uma pessoa regista, e tudo passa.
– Não o jardim da pedreira ou o parque. Isso não passou.
– Não acha? Em breve passará. Passará se ninguém estiver aqui. A
Natureza toma o controlo, sabe. Precisa de amor e atenção e cuidado e
perícia. Se uma Câmara Municipal tomar o controlo, e isso é o que acontece
muitas vezes hoje em dia, então será o que chamam de «mantido». O tipo
mais recente de arbusto será introduzido, serão feitos caminhos
suplementares, bancos serão postos a certas distâncias. Talvez até sejam
colocados caixotes do lixo. Oh, são tão cuidadosos, bondosos ao
preservarem. Não se pode preservar isto. É selvagem. Manter uma coisa
selvagem é muito mais difícil do que preservá-la.
– M. Poirot – a voz de Miranda atravessou o riacho.
Poirot avançou, de modo a estar ao alcance da voz dela.
– Então encontro-a aqui. Veio fazer de modelo para o seu retrato?
Ela abanou a cabeça.
– Não vim para isso. Isso aconteceu.
– Sim – disse Michael Garfield –, sim, aconteceu. Por vezes uma pessoa
tem um pouco de sorte.
– Estava só a caminhar no seu jardim favorito?
– Na verdade estava à procura do poço – disse Miranda.
– Um poço?
– Havia um poço dos desejos neste bosque, em tempos.
– Numa antiga pedreira? Não sabia que tinham poços em pedreiras.
– Sempre houve um bom bosque à volta da pedreira. Bem, sempre houve
aqui árvores. O Michael sabe onde é o poço mas não mo diz.
– Será muito mais divertido para si – disse Michael Garfield – continuar a
procurá-lo. Especialmente se não tiver a certeza de que existe de facto.
– A velha Mrs. Goodbody sabe tudo sobre ele. – E acrescentou: – Ela é
uma bruxa.
– Certo – disse Michael. – Ela é a bruxa local, M. Poirot. Há sempre uma
bruxa local, sabe, na maioria dos sítios. Nem sempre se chamam a si
próprias bruxas, mas toda a gente sabe. Leem uma sina ou enfeitiçam as
suas begónias, ou mirram as suas peónias, ou impedem a vaca de um
agricultor de dar leite, e provavelmente também dão poções de amor.
– Era um poço dos desejos – disse Miranda. – As pessoas costumavam vir
aqui e pedir desejos. Tinham de dar três voltas ao poço para trás e ficava
numa encosta da colina, por isso nem sempre era fácil. – Ela olhou para
além de Poirot, para Michael Garfield. – Um dia encontrá-lo-ei – disse ela
–, mesmo que não mo diga. É algures por aqui, mas foi selado, disse Mrs.
Goodbody. Oh! Há anos. Selado porque diziam que era perigoso. Uma
criança caiu lá dentro há anos, Kitty Qualquer-Coisa. Mais alguém pode ter
caído lá dentro.
– Bem, continue a pensar assim – disse Michael Garfield. – É uma boa
história local, mas há um poço dos desejos em Little Belling.
– Claro – disse Miranda. – Sei tudo sobre esse. É muito vulgar – disse ela.
– Toda a gente sabe disso, é muito parvo. As pessoas atiram moedinhas lá
para dentro e já não há lá água por isso não há nem um salpico.
– Bem, lamento.
– Eu dir-lhe-ei quando o encontrar – disse Miranda.
– Não deve acreditar em tudo que uma bruxa diz. Não acredito que
alguma criança tenha caído lá dentro. Imagino que um gato tenha lá caído
uma vez e se tenha afogado.
– Dlim-dlão, no poço a encontrarão – disse Miranda.
Levantou-se.
– Agora tenho de ir – disse. – A mãezinha está à minha espera.
Saiu da saliência rochosa com cuidado, sorriu para ambos os homens e
partiu por um caminho ainda mais intransigente, do outro lado da água.
– Dlim-dlão – disse Poirot, pensativo. – Uma pessoa acredita no que quer
acreditar, Michael Garfield. Ela tinha ou não razão?
Michael Garfield olhou para ele de forma pensativa, e sorriu.
– Ela tem razão – disse ele. – Há um poço, e como ela disse está selado.
Suponho que devia ser perigoso. Não creio que tenha sido alguma vez um
poço de desejos. Creio que isso é um pouco fantasia de Mrs. Goodbody. Há
uma árvore dos desejos, ou houve em tempos. Uma faia a meio da encosta,
e creio que as pessoas lhe davam três voltas a andar para trás e pediam um
desejo.
– O que aconteceu a isso? Já não andam à volta da árvore?
– Não. Acho que foi atingida por um relâmpago há cerca de seis anos.
Partida em duas. Por isso essa bela história já era.
– Contou isso à Miranda?
– Não. Acho que prefiro deixá-la com o poço. Uma faia rebentada não
seria muito divertida para ela, pois não?
– Devo pôr-me a caminho – disse Poirot.
– Vai outra vez ter com o seu amigo polícia?
– Sim.
– Está com um ar cansado.
– Estou cansado – disse Hercule Poirot. – Estou extremamente cansado.
– Estaria mais confortável com sapatos de lona ou sandálias.
– Ah, ça, non.
– Estou a ver. É ambicioso, quando se trata do vestuário. – Olhou para
Poirot. – O tout ensemble, é muito bom e especialmente, se posso
mencioná-lo, o seu magnífico bigode.
– Estou-lhe grato – disse Poirot – que tenha reparado nisso.
– A questão é mais, poderia alguém não reparar nele?
Poirot inclinou a cabeça para um lado. Depois disse:
– Falou do desenho que está a fazer porque deseja lembrar-se da jovem
Miranda. Quer isso dizer que se vai embora daqui?
– Pensei nisso, sim.
– E, no entanto, parece-me que está bien placé ici.
– Oh sim, com uma posição eminente. Tenho uma casa onde viver, uma
casa pequena mas projetada por mim, e tenho o meu trabalho, mas isso é
menos satisfatório do que costumava ser. Por isso começo a ficar irrequieto.
– Porque é o seu trabalho menos satisfatório?
– Porque as pessoas querem que eu faça as coisas mais atrozes. Querem
que melhore os seus jardins, pessoas que compraram terrenos e estão a
construir uma casa, e querem o jardim projetado.
– Não está a fazer o jardim para Mrs. Drake?
– Ela quer que o faça, sim. Dei-lhe umas sugestões e ela pareceu
concordar com elas. Não creio, porém – acrescentou de forma pensativa –,
que confie realmente nela.
– Quer dizer que ela não o deixaria fazer o que quereria?
– Quero dizer que ela certamente faria o que ela quisesse, e que apesar de
gostar das ideias que eu apresentei, ela exigiria de repente algo
completamente diferente. Algo utilitário, caro e vistoso talvez. Intimidar-
me-ia, acho eu. Insistiria em que executasse as ideias dela. Eu não
concordaria, discutiríamos. Então, em suma, é melhor que eu me vá embora
antes de discutir. E não só com Mrs. Drake mas com muitos outros
vizinhos. Sou bastante conhecido. Não preciso de ficar sempre no mesmo
sítio. Podia encontrar algum outro canto em Inglaterra, ou poderia ser um
canto da Normandia ou da Bretanha.
– Algum local onde possa melhorar, ou ajudar, a Natureza? Onde possa
fazer experiências ou plantar coisas estranhas onde elas nunca cresceram,
onde nem o sol queimará nem o frio destruirá? Algum bom pedaço de terra
árida onde pode divertir-se a fingir-se Adão, mais uma vez? Sempre foi
irrequieto?
– Nunca fiquei muito tempo no mesmo sítio.
– Já esteve na Grécia?
– Sim. Gostaria de ir à Grécia outra vez. Sim, o senhor tem uma certa
razão. Um jardim numa encosta grega. Deve haver lá ciprestes, e não muito
mais. Um rochedo árido. Mas se uma pessoa o quisesse, o que não poderia
lá haver?
– Um jardim onde os deuses poderiam caminhar...
– Sim. O senhor consegue ler mentes, não, M. Poirot?
– Quisera eu fazê-lo. Há tantas coisas que eu gostaria de saber e de não
saber.
– Agora está a falar de alguma coisa bastante prosaica, não está?
– Infelizmente, sim.
– Fogo posto, assassinato e morte súbita?
– Mais ou menos. Não sei se pensava em fogo posto. Diga-me, Mr.
Garfield, já cá está há algum tempo, conheceu um homem chamado Lesley
Ferrier?
– Sim, lembro-me dele. Trabalhava num escritório de um solicitador em
Medchester, não trabalhava? Fullerton, Harrison e Leadbetter. Funcionário
assistente, algo desse tipo. Um tipo bem-parecido.
– Teve um fim súbito, não teve?
– Sim. Foi esfaqueado uma noite. Problemas de mulheres, segundo sei.
Toda a gente parece pensar que a polícia sabe muito bem quem o fez, mas
não arranjam as provas que querem. Ele estava mais ou menos envolvido
com uma mulher chamada Sandra, não me lembro agora do nome dela,
Sandra Qualquer-Coisa, sim. O marido dela tomava conta do pub local. Ela
e o jovem Lesley tinham um caso, e então o Lesley meteu-se com outra
rapariga. Ou pelo menos foi essa a história.
– E a Sandra não gostou disso?
– Não, não gostou mesmo. Veja, ele era mulherengo. Havia duas ou três
com quem ele andava.
– Eram todas raparigas inglesas?
– Porque pergunta isso? Não, não creio que ele se limitasse a raparigas
inglesas, desde que falassem inglês suficiente para que entendessem mais
ou menos o que ele lhes dizia, e ele entendesse o que elas lhe diziam.
– Sem dúvida que há de tempos a tempos raparigas estrangeiras nestas
redondezas?
– Claro que sim. Há alguma vizinhança onde não haja? Raparigas au
pair, fazem parte da vida diária. Feias, bonitas, honestas, desonestas, umas
que ajudam mães cabeça no ar e algumas que não ajudam nada, e algumas
que se vão embora.
– Como a Olga?
– Como diz, como a Olga.
– O Lesley era amigo da Olga?
– Oh, é por aí que a sua mente vai. Sim, era. Não creio que Mrs.
Llewellyn-Smythe soubesse muito acerca disso. Creio que a Olga era
bastante cuidadosa. Ela falava seriamente de alguém com quem ela tinha
esperanças de casar um dia no seu país. Não sei se era verdade ou se ela
inventou. O jovem Lesley era um jovem bonito, como já disse. Não sei o
que ele viu em Olga, ela não era muito bonita. Ainda assim... – pensou
durante um ou dois minutos – ela tinha um ar intenso. Um jovem inglês
poder-se-ia sentir atraído por isso, acho eu. De qualquer forma, o Lesley
sentiu-se, e as suas outras namoradas não gostaram.
– Isso é muito interessante – disse Poirot. – Pensei que me poderia dar a
informação que eu queria.
Michael Garfield olhou para ele de forma curiosa.
– Porquê? De que se trata tudo isto? Onde entra o Lesley no caso? Porquê
este desenterrar do passado?
– Bem, há coisas que uma pessoa quer saber. Quer saber como as coisas
acontecem. Estou a olhar ainda mais para trás. Antes do tempo em que
esses dois, a Olga Seminoff e o Lesley Ferrier, se conheceram secretamente
sem que Mrs. Llewellyn-Smythe o soubesse.
– Bem, não tenho certeza disso. Isso é apenas, bem, é só ideia minha. Eu
via-os bastantes vezes, mas a Olga nunca me fazia confidências. Quanto ao
Lesley Ferrier, eu mal o conhecia.
– Eu quero ir atrás disso. Ele tinha, segundo me dizem, certas
desvantagens no seu passado.
– Creio que sim. Sim, bem, de qualquer modo é o que foi dito por aqui.
Mr. Fullerton deu-lhe emprego e tinha esperanças de fazer dele um homem
honesto. É um bom tipo, o velho Fullerton.
– O seu delito fora, creio, falsificação?
– Sim.
– Foi uma primeira ofensa, e disseram ter havido circunstâncias
atenuantes. Ele tinha uma mãe doente ou um pai bêbado, ou algo desse tipo.
De qualquer forma, escapou com uma pena leve.
– Nunca ouvi os detalhes. Foi algo com que ele aparentemente se safara,
mas vieram contabilistas e descobriram. Estou a ser vago. Isto é só boato.
Falsificação. Sim, foi essa a acusação. Falsificação.
– E quando Mrs. Llewellyn-Smythe morreu e o seu testamento teve de ser
levado ao tribunal de sucessão, descobriram que o testamento era
falsificado.
– Sim, vejo como a sua mente funciona. Está a encaixar essas duas coisas
como se estivessem ligadas.
– Um homem que teve, até certo ponto, êxito como falsificador. Um
homem que travara amizade com uma rapariga, uma rapariga que, se um
testamento tivesse sido aceite quando submetido ao tribunal de sucessão,
teria herdade a maior parte de uma vasta fortuna.
– Sim, sim, isso mesmo.
– E essa rapariga e o homem que cometeu o delito de falsificação eram
grandes amigos. Ele deixara a sua namorada e envolvera-se em vez disso
com a rapariga estrangeira.
– O que está a sugerir é que o testamento falsificado foi falsificado pelo
Lesley Ferrier.
– Parece haver uma grande probabilidade de que isso tenha acontecido,
não parece?
– A Olga conseguia supostamente copiar a letra de Mrs. Llewellyn-
Smythe bastante bem, mas isso sempre me pareceu uma questão um pouco
duvidosa. Ela escreveu cartas à mão para Mrs. Llewellyn-Smythe, mas não
imagino que fossem na verdade muito parecidas. Não o suficiente para
passarem por uma análise. Mas se ela e o Lesley estavam metidos nisso
juntos, isso é diferente. Atrevo-me a dizer que ele conseguiria fazer um
bom trabalho, e era suficientemente confiante para que passasse. Mas ele
também deve ter tido a certeza disso quando cometeu o primeiro delito, e
enganou-se, e suponho que se enganou desta vez. Calculo que quando soou
o alarme, quando os advogados começaram a levantar problemas e
dificuldades, e chamaram peritos para examinar as coisas e começaram a
fazer perguntas, pode ser que ela perdesse a coragem, e discutisse com o
Lesley. E depois fugiu, com esperanças de que ele pagasse as favas.
Ele abanou vigorosamente a cabeça.
– Porque vem aqui falar de coisas destas comigo, no meu lindo bosque?
– Queria saber.
– É melhor não saber. É melhor nunca saber. E melhor deixar as coisas
como estão. Não empurrar, investigar e atiçar.
– Monsieur quer a beleza – disse Hercule Poirot. – Beleza a qualquer
preço. Para mim, é a verdade que eu quero. Sempre a verdade.
Michael Garfield riu-se.
– Vá para casa ter com os seus amigos polícias e deixe-me aqui no meu
pequeno paraíso. Vade retro, Satanás.
Capítulo 21
P oirot subiu a encosta. De repente deixou de sentir dores nos pés. Algo
lhe ocorrera. O encaixar de coisas que ele pensara e sentira, coisas que
soubera estarem ligadas, mas que não vira como. Agora tinha consciência
do perigo, perigo que poderia atingir alguém a qualquer momento se não
fossem tomadas providências para o impedir. Perigo grave.
Elspeth McKay veio à porta, ao seu encontro.
– Está com um ar exausto – disse. – Entre e sente-se.
– O seu irmão está cá?
– Não. Foi até à esquadra. Creio que aconteceu algo.
– Aconteceu algo? – Ele estava espantado. – Tão cedo? Não é possível.
– Hum? – disse Elspeth. – O que quer dizer?
– Nada. Nada. Aconteceu algo a alguém, é o que quer dizer?
– Sim, mas não sei quem, exatamente. Seja como for, o Raglan telefonou
e pediu-lhe que fosse lá. Arranjo-lhe uma chávena de chá?
– Não – disse Poirot –, agradeço-lhe muito, mas creio... creio que vou
para casa.
Ele não conseguia enfrentar a perspetiva de chá preto amargo. Pensou
numa boa desculpa que disfarçasse qualquer sinal de falta de educação.
– Os meus pés – explicou. – Os meus pés. Não estou apropriadamente
arranjado para o campo, em termos de calçado. Uma mudança de sapatos
seria desejável.
Elspeth McKay olhou para eles.
– Não – disse ela –, vejo que não são adequados. O verniz faz inchar os
pés. Já agora, há uma carta para si. Com carimbos estrangeiros. Veio de
fora, a cargo do comissário Spence, Pine Crest. Trago-lha já.
Voltou passados alguns minutos, e entregou-lhe a carta.
– Se não quiser o envelope, eu gostaria de ficar com ele para um dos
meus sobrinhos, que coleciona selos.
– É claro. – Poirot abriu a carta e deu-lhe o envelope. Ela agradeceu-lhe e
voltou a entrar em casa.
Poirot desdobrou a folha e leu.
O serviço estrangeiro de Mr. Goby era gerido com a mesma competência
demonstrada por ele no serviço inglês. Não poupava despesas e obtinha
resultados de forma rápida.
É verdade que os resultados não eram de grande monta. Poirot não
pensara que iriam ser.
Olga Seminoff não regressara à sua cidade natal. Não tinha família viva.
Tinha uma amiga, uma mulher idosa, com quem se correspondera de modo
intermitente, para dar notícias da sua vida em Inglaterra. Tivera boas
relações com a patroa, que fora em algumas ocasiões exigente, mas também
generosa.
As cartas de Olga que haviam sido recebidas eram datadas de há um ano
e meio aproximadamente. Fazia nelas menção de um jovem. Havia
insinuações de que pensavam em casamento, mas o jovem, cujo nome não
mencionou, tinha ainda de singrar na vida, por isso nada podia ser decidido
de imediato. Na sua última carta falava com alegria de boas perspetivas.
Quando não vieram mais cartas, a amiga idosa supôs que Olga se casara
com o seu inglês e que mudara de morada. Acontecem coisas dessas muito
frequentemente com raparigas que vão para Inglaterra. Se estavam casadas
e felizes, era comum nunca mais escreverem.
Ela não se preocupara.
Encaixava, pensou Poirot. Lesley falara de casamento, mas poderia não o
querer de facto. Mrs. Llewellyn-Smythe fora chamada de «generosa».
Lesley recebera dinheiro de alguém, de Olga talvez (dinheiro que lhe fora
dado pelos patrões), para o induzir a fazer a falsificação para ela.
Elspeth McKay voltou a sair para o terraço. Poirot consultou-a quanto às
suas suspeitas sobre uma parceria entre Olga e Lesley.
Ela pensou durante um momento. Depois o oráculo falou.
– Se assim foi, foram muito discretos. Nunca houve boatos sobre esses
dois. Num sítio como este há sempre boato caso haja alguma coisa.
– O jovem Ferrier estava envolvido com uma mulher casada. Pode ter
avisado a rapariga para não dizer nada sobre ele à sua patroa.
– É provável. Mrs. Smythe provavelmente saberia que o Lesley Ferrier
era má peça, e avisaria a rapariga para não querer nada com ele.
Poirot dobrou a carta e pô-la no seu bolso.
– Gostava que me deixasse arranjar-lhe um bule de chá.
– Não, não, tenho de ir para a minha casa de hóspedes e mudar de
sapatos. Não sabe quando o seu irmão voltará?
– Não faço ideia. Não disseram para o que precisavam dele.
Poirot caminhou pela estrada até à sua casa de hóspedes. Ficava apenas a
umas centenas de metros. Enquanto subia em direção à porta, esta foi aberta
e a sua senhoria, uma senhora bem-disposta com trinta e tal anos, veio ao
seu encontro.
– Está aqui uma senhora para falar consigo – disse ela. – Está já há algum
tempo à espera. Disse-lhe que não sabia ao certo onde o senhor tinha ido ou
quando voltaria, mas ela disse que esperaria.
Acrescentou:
– É Mrs. Drake. Está transtornada, diria eu. Geralmente é tão calma
acerca de tudo, mas acho realmente que está em estado de choque. Está na
sala de estar. Quer que lhe traga um chá ou algo?
– Não – disse Poirot. – Acho que será melhor não o fazer. Primeiro
ouvirei o que ela tem a dizer.
Abriu a porta e entrou na sala de estar. Rowena Drake estivera junto à
janela. Não era a janela que dava para o caminho, por isso não vira que ele
chegara. Virou-se de forma abrupta ao ouvir o som da porta.
– M. Poirot. Por fim. Pareceu tanto tempo.
– Desculpe-me, madame. Estive na floresta da pedreira e também a
conversar com a minha amiga, Mrs. Oliver. E depois falei com dois rapazes,
o Nicholas e o Desmond.
– O Nicholas e o Desmond? Sim, eu sei. Interrogo-me... oh, uma pessoa
pensa tanta coisa.
– Está transtornada – disse Poirot de um modo gentil.
Não era uma coisa que pensara alguma vez ver. Rowena Drake
transtornada, não mais senhora dos acontecimentos, já não organizadora de
tudo, e a forçar as suas decisões sobre os outros.
– Ouviu dizer, não ouviu? – perguntou ela. – Oh, bem, talvez não tenha
ouvido.
– O que deveria eu ter ouvido dizer?
– Algo terrível. Ele, ele está morto. Alguém o matou.
– Quem está morto, madame?
– Então de facto ainda não ouviu. E ele é apenas uma criança, e eu
pensei... oh, que parva tenho sido. Dever-lhe-ia ter dito. Quando me
perguntou. Sinto-me terrivelmente, terrivelmente culpada por pensar que eu
é que sabia e pensar... mas tive as melhores intenções, M. Poirot, deveras
que tive.
– Sente-se, madame, sente-se. Acalme-se e conte-me. Morreu uma
criança, outra criança?
– O irmão dela – disse Mrs. Drake. – O Leopold.
– O Leopold Reynolds?
– Sim. Encontraram o corpo dele num dos caminhos do campo. Ele devia
estar a regressar da escola e deve ter saído do caminho para brincar no
riacho que há aqui perto. Alguém o prendeu dentro do riacho, prendeu a
cabeça dele debaixo de água.
– O mesmo tipo de coisa que fizeram à Joyce?
– Sim, sim. Compreendo que seja, que seja algum tipo de loucura. E uma
pessoa não sabe quem, isso é o que é terrível. Uma pessoa não faz a mínima
ideia. E eu pensei que sabia. Eu pensei mesmo, suponho, sim, foi uma coisa
muito malvada.
– Tem de contar-me, madame.
– Sim, quero contar-lhe. Vim aqui para lhe contar. Porque, sabe, o senhor
veio ter comigo depois de ter falado com a Elizabeth Whittaker. Depois de
ela lhe ter contado que algo me assustara. Que eu vira alguma coisa.
Alguma coisa no átrio da casa, de minha casa. Eu disse que não vira nada e
que nada me assustara porque, sabe, eu pensei... – parou.
– O que viu?
– Dever-lhe-ia ter contado na altura. Vi a porta da biblioteca aberta, aberta
de forma muito cuidadosa e, então, ele saiu. Ele não saiu logo. Ficou na
entrada e depois fechou a porta rapidamente e voltou a entrar.
– Quem era?
– O Leopold. O Leopold, a criança que foi morta agora. E, sabe, eu pensei
que eu, oh, que erro, que erro horrível. Se eu lhe tivesse dito, talvez, talvez
o senhor tivesse chegado ao fundo da questão.
– Pensou? – disse Poirot. – Pensou que o Leopold matara a irmã. Foi isso
que pensou?
– Sim, foi o que pensei. Não na altura, claro, porque não sabia que ela
estava morta. Mas o rosto dele tinha um olhar estranho. Ele sempre foi uma
criança estranha. De certa forma, uma pessoa tem medo dele porque ele não
é normal. Muito esperto e com um QI elevado, mas mesmo assim não é
normal.
«E eu pensei ‘porque está o Leopold a sair dali em vez de estar no
Snapdragon?’, e pensei ‘O que esteve ele a fazer? Está tão estranho.’ E
então, bem, não voltei a pensar mais nisso, mas suponho que o olhar dele
me perturbou. Por isso é que deixei cair o vaso. A Elizabeth ajudou-me a
apanhar os cacos, e voltei para o Snapdragon e não pensei mais nisso. Até
que encontrámos a Joyce. Foi aí que pensei...»
– Pensou que o Leopold o fizera?
– Sim. Sim, pensei isso. Pensei que isso explicava o olhar dele. Pensei
que sabia. Pensei sempre, toda a minha vida pensei demasiadas vezes que
sabia tudo, que tinha razão. E posso enganar-me muito. Sabe, porque ele ser
morto deve querer dizer algo muito diferente. Ele deve ter entrado lá, e deve
tê-la encontrado, morta, e isso deu-lhe a ele um choque terrível, e ficou
assustado. E então ele quis sair do quarto sem que ninguém o visse, e
calculo que tenha olhado para cima e me tenha visto, e tenha entrado na sala
e fechado a porta, e esperado até que o átrio estivesse vazio antes de sair.
Mas não porque a tinha matado. Não. Apenas o choque de a encontrar
morta.
– E no entanto não disse nada? Não mencionou o que tinha visto, mesmo
depois de a Joyce ser descoberta?
– Não. Eu, oh, eu não podia. Ele é, sabe, ele é tão novo... era tão novo,
suponho que devo dizê-lo assim agora. Dez. Dez, no máximo onze, e, quero
dizer, eu senti que ele não podia saber o que fazia, não podia ter sido culpa
dele exatamente. Ele não devia ser moralmente responsável. Ele sempre foi
um pouco estranho, e eu pensei que se poderia arranjar tratamento para ele.
Não deixar tudo para a polícia. Não mandá-lo para sítios aprovados. Eu
pensei que se poderia arranjar tratamento psicológico para ele, se fosse
necessário. Eu, eu não fiz por mal. Tem de acreditar em mim, eu não fiz por
mal.
Palavras tão tristes, pensou Poirot, das mais tristes do mundo inteiro. Mrs.
Drake pareceu adivinhar o que ele pensava.
– Sim – disse ela –, «eu tentei fazer o melhor». «Não fiz por mal.» Uma
pessoa pensa sempre que sabe o que é melhor para os outros, mas não sabe.
Porque a razão pela qual ele estava tão perturbado devia ser porque viu
quem era o assassino, ou viu algo que daria uma pista sobre quem seria o
assassino. Algo que fez com que o assassino se sentisse inseguro. E então,
então ele esperou até ter o rapaz sozinho e afogou-o no riacho para que ele
não falasse, para que não contasse. Se ao menos eu tivesse falado, se eu lhe
tivesse contado, ou à polícia, ou a alguém, mas pensei que sabia o que era
melhor.
– Hoje mesmo – disse Poirot, depois de ter ficado em silêncio por uns
momentos, a ver Mrs. Drake conter o seu choro – foi-me dito que o
Leopold andava com muito dinheiro ultimamente. Alguém lhe deve ter
pagado para que ficasse em silêncio.
– Mas quem, quem?
– Descobriremos – disse Poirot. – Já não falta muito tempo.
Capítulo 22
N ãooutros.
era muito característico de Hercule Poirot pedir as opiniões dos
Ficava habitualmente bastante satisfeito com as suas próprias
opiniões. No entanto, em certas alturas abria exceções. Esta era uma delas.
Ele e Spence haviam tido uma conversa breve e depois Poirot contactara
um serviço de aluguer de automóveis, e, depois de uma outra curta conversa
com o seu amigo e com o inspetor Raglan, partira de carro. Combinara que
seria conduzido de volta a Londres, mas fizera uma paragem no caminho.
Foi até The Elms. Disse ao condutor do carro que não demoraria, um quarto
de hora no máximo, e depois procurou uma audiência com Miss Emlyn.
– Desculpe incomodá-la a esta hora. É sem dúvida a sua hora de cear, ou
de jantar.
– Bem, pelo menos tenho por si a consideração de pensar, M. Poirot, que
não me incomodaria nem à ceia nem ao jantar sem ter uma razão válida
para o fazer.
– É muito gentil. Para ser franco, preciso do seu conselho.
– Sim?
Miss Emlyn parecia algo surpreendida. Mais do que surpreendida, parecia
cética.
– Isso não parece muito característico da sua parte, M. Poirot. Não
costuma ficar satisfeito com as suas próprias opiniões?
– Sim, fico satisfeito com as minhas opiniões, mas dar-me-ia alento e
apoio se alguém cuja opinião respeito concordasse com elas.
Ela não falou, olhou apenas para ele com curiosidade.
– Sei quem é o assassino da Joyce Reynolds – disse ele. – Acredito que a
madame também o sabe.
– Eu não disse isso – disse Miss Emlyn.
– Não. Não o disse. E isso podia levar-me a crer que é apenas uma
opinião sua.
– Um palpite? – inquiriu Miss Emlyn, e o seu tom era mais frio do que
nunca.
– Eu preferiria não utilizar essa palavra. Preferiria dizer que tem uma
opinião forte.
– Muito bem. Admito que tenho uma opinião forte. Isso não quer dizer
que eu a repita ao senhor.
– O que eu gostaria de fazer, mademoiselle, é escrever quatro palavras
num pedaço de papel. Perguntar-lhe-ei se concorda com as quatro palavras
que escrevi.
Miss Emlyn levantou-se. Atravessou a sala até à sua secretária, pegou
num pedaço de papel e levou-o até junto de Poirot.
– Despertou o meu interesse – disse ela. – Quatro palavras.
Poirot tirou uma caneta do bolso. Escreveu no papel, dobrou-o e deu-lho.
Ela pegou nele, endireitou-o e segurou-o na mão, olhando para ele.
– Então?
– Quanto a duas das palavras nesse papel, concordo, sim. As outras duas,
é mais difícil. Não tenho provas e, na realidade, as ideias não me haviam
passado pela cabeça.
– Mas no caso das duas primeiras palavras, tem provas concretas?
– Penso que sim.
– Água – disse Poirot, de forma pensativa. – Assim que ouviu isso, soube.
Assim que eu ouvi isso, eu soube. Tem a certeza, eu tenho a certeza. E
agora – disse Poirot – um rapaz foi afogado num riacho. Ouviu falar disso?
– Sim. Alguém me telefonou a contar. O irmão da Joyce. Como estava ele
envolvido nisto?
– Queria dinheiro – disse Poirot. – E recebeu-o. E, então, quando se
apresentou uma oportunidade conveniente, foi afogado num riacho.
A voz dele não se alterou. Adquiriu talvez uma nota mais severa, em vez
de se suavizar.
– A pessoa que me contou – disse ele – estava cheia de compaixão.
Transtornada emocionalmente. Mas eu não sou assim. Era jovem, esta
segunda criança que morreu, mas a sua morte não foi um acidente. Foi,
como tantas coisas na vida, resultado das suas ações. Ele queria dinheiro e
correu um risco. Era esperto o suficiente, astuto o suficiente para saber que
estava a correr um risco, mas queria o dinheiro. Tinha dez anos, mas causa
e efeito são iguais nessa idade ao que seriam aos trinta, cinquenta ou
noventa. Sabe o que é a primeira coisa em que penso em casos destes?
– Eu diria – disse Miss Emlyn – que está muito mais preocupado com
justiça do que com compaixão.
– Compaixão – disse Poirot – da minha parte em nada ajudaria o Leopold.
Ele está para além de ajudas. Justiça, se a obtivermos, eu e a madame,
porque creio que pensa como eu neste caso, poder-se-ia dizer que a justiça
também não ajudaria o Leopold. Mas poderia ajudar algum outro Leopold,
poderia ajudar a manter vivas outras crianças, se alcançarmos a justiça em
breve. Não é uma coisa segura, um assassino que matou mais do que uma
vez, para quem matar foi uma forma de segurança. Estou agora de partida
para Londres onde me vou encontrar com pessoas para discutir uma forma
de abordar o caso. Para os converter, talvez, até terem a certeza que eu
próprio tenho sobre o caso.
– Talvez tenha dificuldades – disse Miss Emlyn.
– Não, não creio. Os meios e as maneiras podem ser difíceis mas creio
que posso convertê-los ao meu conhecimento do que aconteceu. Porque eles
possuem mentes que entendem a mente criminosa. Há mais uma coisa que
gostaria de lhe perguntar. Quero a sua opinião. Apenas uma opinião desta
vez, não provas. A sua opinião quanto ao carácter do Nicholas Ransom e do
Desmond Holland. Aconselhar-me-ia a confiar neles?
– Diria que ambos são absolutamente de confiança. Essa é a minha
opinião. São de muitas formas extremamente tolos, mas apenas nos aspetos
efémeros da vida. São essencialmente de confiança. De confiança como
uma maçã sem bicho.
– Regressamos sempre às maçãs – disse Hercule Poirot de forma triste.
– Agora tenho de ir. O meu carro está à espera. Ainda há mais uma visita
que tenho de fazer.
Capítulo 23
I
M rs.bastante
Oliver tinha-se metido numa mesa à janela do Black Boy. Era ainda
cedo, por isso a sala de jantar não estava muito cheia. Em
seguida, Judith Butler regressou do quarto de banho e sentou-se à frente
dela a examinar a ementa.
– Do que gosta a Miranda? – perguntou Mrs. Oliver. – Mais vale pedir
para ela também. Calculo que voltará daqui a nada.
– Ela gosta de frango assado.
– Bem, então é fácil. E a senhora?
– Eu quero o mesmo.
– Três de frango assado – pediu Mrs. Oliver.
Encostou-se, estudando a sua amiga.
– Porque olha para mim dessa forma?
– Estava a pensar – disse Mrs. Oliver.
– A pensar o quê?
– A pensar o quão pouco a conheço.
– Bem, isso é igual com toda a gente, não é?
– Quer dizer que nunca se sabe tudo sobre ninguém.
– Eu acho que não.
– Talvez tenha razão – disse Mrs. Oliver.
Ambas as mulheres ficaram caladas por algum tempo.
– São um pouco lentos a servir aqui.
– Acho que vem aí – disse Mrs. Oliver.
Uma empregada de mesa chegou com um tabuleiro cheio de pratos.
– A Miranda está a demorar muito. Ela sabe onde é a sala de jantar?
– Claro que sabe. Olhámos à entrada. – Judith levantou-se de modo
impaciente. – Vou ter de a ir buscar.
– Será que ela enjoa de carro?
– Costumava enjoar quando era mais nova.
Voltou alguns quatro ou cinco minutos mais tarde.
– Não está no quarto de banho das senhoras – disse ela. – Há uma porta à
entrada que dá para o jardim. Talvez ela tenha saído por aí para olhar para
um pássaro ou algo assim. Ela é assim.
– Hoje não há tempo para ver pássaros – disse Mrs. Oliver. – Vá chamá -
la. Temos de ir.
II
Elspeth McKay espetou algumas salsichas com um garfo, pousou-as num
prato de levar ao forno, pô-lo no Frigidaire e começou a descascar batatas.
O telefone tocou.
– Mrs. McKay? Aqui é o sargento Goodwin. O seu irmão está?
– Não. Hoje está em Londres.
– Já telefonei para lá. Ele já saiu. Quando ele voltar, diga-lhe que tivemos
um resultado positivo.
– Quer dizer que encontraram um corpo no poço?
– Não adianta muito ficar de boca calada. A palavra já se espalhou.
– Quem é? A au pair?
– Parece que sim.
– Pobre rapariga – disse Elspeth. – Ela atirou-se lá para dentro, ou quê?
– Não foi suicídio, foi esfaqueada. Foi mesmo assassinato.
III
Depois de a sua mãe sair do quarto de banho das senhoras, Miranda
esperou um ou dois minutos. Depois abriu a porta, espreitou
cuidadosamente, abriu a porta lateral para o jardim, que ficava perto, e
correu pelo caminho do jardim, que levava às traseiras do que fora em
tempos uma pousada de diligências e era agora uma garagem. Saiu por uma
porta pequena que permitia aos peões passar para uma alameda, no exterior.
Um pouco mais ao longo da alameda estava um carro estacionado. Um
homem com sobrancelhas grisalhas e salientes, e uma barba grisalha estava
sentado lá dentro a ler um jornal. Miranda abriu a porta e entrou para o
lugar do passageiro. Riu-se.
– Está com um ar muito engraçado.
– Ria-se bem, ninguém a impede.
O carro arrancou, desceu a alameda, virou à direita, à esquerda, à direita
de novo e foi dar a uma estrada secundária.
– Por enquanto estamos bem – disse o homem da barba grisalha. – Na
altura certa verá o machado de lâmina dupla como deve ser visto. E
Kilterbury Down também. Uma vista maravilhosa.
Um carro passou muito veloz, tão perto que quase foram forçados a sair
para a sebe.
– Jovens idiotas – disse o homem da barba grisalha.
Um dos rapazes tinha cabelo comprido por cima dos ombros e óculos
grandes, que lhe davam aspeto de mocho. O outro tentava dar-se uma
aparência um pouco mais espanhola, com patilhas.
– Não acha que a mãezinha se vai preocupar comigo? – perguntou
Miranda.
– Ela não terá tempo de se preocupar consigo. Quando ela se preocupar
consigo, já terá chegado onde quer estar.
IV
Em Londres, Hercule Poirot pegou no telefone. A voz de Mrs. Oliver
soou.
– Perdemos a Miranda.
– O que quer dizer, perderam-na?
– Almoçámos no Black Boy. Ela foi ao quarto de banho. Não voltou.
Alguém disse que a viu partir num carro conduzido por um homem idoso.
Mas podia não ser ela. Podia ser outra pessoa. Podia...
– Alguém devia ter ficado com ela. Nenhuma de vocês devia tê-la perdido
de vista. Disse-lhe que havia perigo. Mrs. Butler está muito preocupada?
– Claro que está preocupada. O que acha? Está desesperada. Insiste em
telefonar à polícia.
– Sim, isso seria a coisa natural a fazer. Eu também lhes telefonaria.
– Mas porque haveria a Miranda de estar em perigo?
– Não sabe? Já devia saber. – Acrescentou: – Encontraram o corpo.
Acabei de saber...
– Que corpo?
– Um corpo num poço.
Capítulo 25
M ais uma vez quatro homens estavam sentados a olhar para Poirot.
Timothy Raglan, o comissário Spence e o chefe de polícia tinham o ar
de um gato que espera que um pires de leite se materialize a qualquer
momento. O quarto homem ainda tinha a expressão de quem ainda não
acreditava.
– Bem, M. Poirot – disse o chefe da polícia, tomando as rédeas do
acontecimento e deixando o homem da procuradoria-geral a segurar uma
pasta. – Estamos todos aqui...
Poirot fez um gesto com a mão. O inspetor Raglan saiu da sala e
regressou indicando o caminho a uma mulher de trinta e tal anos, uma
rapariga e dois rapazes adolescentes.
Apresentou-os ao chefe de polícia.
– Mrs. Butler, Miss Miranda Butler, Mr. Nicholas Ransom e Mr.
Desmond Holland.
Poirot levantou-se e pegou na mão de Miranda.
– Sente-se aqui ao lado da sua mãe, Miranda... Mr. Richmond, que é
como se chama o chefe da polícia, quer fazer-lhe algumas perguntas. Quer
que responda às perguntas. Diz respeito a uma coisa que viu, há mais de um
ano, quase dois. Mencionou isto a uma pessoa, e se compreendo, a uma só
pessoa. Está correto?
– Disse à Joyce.
– E o que disse à Joyce exatamente?
– Que tinha visto um assassinato.
– Disse a mais alguém?
– Não. Mas creio que o Leopold adivinhou. Ele ouve, sabe. Atrás das
portas. Esse tipo de coisa. Gosta de saber os segredos das pessoas.
– Ouviu dizer que a Joyce Reynolds, na tarde antes da festa das bruxas,
contou que ela própria havia visto um assassinato a ser cometido. Isso era
verdade?
– Não. Ela estava só a repetir o que eu lhe dissera, mas a fingir que lhe
acontecera a ela.
– Conte-nos agora o que foi que viu.
– A princípio não sabia que tinha sido um assassinato. Pensei que tinha
sido um acidente. Pensei que ela caíra de algum sítio.
– Onde foi isto?
– No jardim da pedreira, no vale onde era a fonte. Eu estava nos ramos de
uma árvore. Tinha estado a olhar para um esquilo e uma pessoa tem de estar
muito quieta, senão eles fogem. Os esquilos são muito rápidos.
– Diga-nos o que viu.
– Um homem e uma mulher pegaram nela e estavam a levá-la pelo
caminho acima. Pensei que a levassem ao hospital ou para a Quarry House,
depois a mulher parou de repente e disse «Está alguém a observar-nos», e
ficou a olhar para a minha árvore. Por alguma razão senti-me assustada.
Fiquei muito quieta. O homem disse «disparate», e continuaram. Vi que
havia sangue num cachecol e havia uma faca com sangue, e pensei que
talvez alguém se tivesse tentado matar, e continuei muito quieta.
– Porque estava assustada?
– Sim, mas não sei porquê.
– Não contou à sua mãe?
– Não. Pensei que talvez eu não devesse estar ali a ver. E depois no dia
seguinte ninguém disse nada sobre um acidente, e esqueci-me. Nunca mais
pensei nisso até...
Ela parou de repente. O chefe da polícia abriu a boca, e depois fechou-a.
Ele olhou para Poirot e fez um gesto muito discreto.
– Sim, Miranda – disse Poirot –, até o quê?
– Foi como se estivesse a acontecer tudo outra vez. Desta vez era um
pica-pau verde, e eu estava muito quieta atrás de uns arbustos. E esses dois
estavam lá sentados a falar, sobre uma ilha, uma ilha grega. Ela disse algo
como: «Está tudo assinado. É nosso, podemos ir buscá-lo quando
quisermos. Mas é melhor irmos devagar, não apressar as coisas.» Depois o
pica-pau voou, e eu mexi-me. Ela disse: «Está calado, está alguém a
observar-nos.» Foi da mesma maneira que ela o disse antes, e tinha o
mesmo olhar, e eu fiquei assustada outra vez, e lembrei-me. E desta vez eu
soube. Soube que tinha sido assassinato que eu vira e que tinha havido um
cadáver, e que eles o estavam a transportar para o esconder algures. Sabe,
eu já não era uma criança. Eu sabia, das coisas e o que elas querem dizer, o
sangue e a faca, e o corpo todo mole...
– Quando foi isso? – perguntou o chefe da polícia. – Há quanto tempo?
Miranda pensou por um momento.
– Em março passado, mesmo depois da Páscoa.
– Pode dizer com toda a certeza quem eram essas pessoas, Miranda?
– É claro que posso. – Miranda tinha um ar desnorteado.
– Viu os rostos deles?
– Claro.
– Quem eram?
– Mrs. Drake e Michael...
Não era uma denúncia dramática. A voz dela era calma, e continha algo
como espanto, mas também convicção.
O chefe da polícia disse:
– Não contou a ninguém. Porquê?
– Pensei, pensei que poderia ter sido um sacrifício.
– Quem lhe disse isso?
– Disse-mo o Michael, ele disse que os sacrifícios eram necessários.
Poirot disse de uma forma suave:
– Amava o Michael?
– Oh, sim – disse Miranda. – Amava-o muito.
Capítulo 27
–A gora
tudo.
que o tenho aqui por fim – disse Mrs. Oliver – quero saber de