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Ficha Técnica

Título original: HALLOWE’EN PARTY


Autor: Agatha Christie
Tradução: John Almeida
Design e ilustração da capa: Rui Ricardo
ISBN: 9789892340340
 
 
Edições ASA II, S.A.
uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
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Agatha Christie é a escritora policial mais famosa do mundo. Entre as suas
criações destacam-se dois detetives: o excêntrico Hercule Poirot e a
velhinha Miss Marple. Os seus livros são os mais vendidos de sempre e
estão publicados em mais de cem línguas. Muitos deles foram adaptados
com enorme sucesso ao cinema e televisão.
 
Em 2000, Agatha Christie foi considerada a Melhor Escritora de Livros
Policiais do século XX pela Bouchercon World Mystery Convention,
enquanto que os livros protagonizados por Hercule Poirot venceram na
categoria de Melhor Série Policial do século XX.
 
Agatha Christie nasceu em 1890 e morreu em 1976, no Reino Unido.
Porém, os seus mistérios e personagens continuam a encantar leitores de
todas as idades, um pouco por todo o mundo.
 
 
 
 
 
A P. G. Wodehouse
cujos livros e histórias animam a minha vida
há muitos anos. Também para mostrar o meu agrado
por ter tido a gentileza de me dizer
que gosta dos meus livros.
 
 
 
Capítulo 1
 
 
 
 
 

M rs.Judith
Ariadne Oliver fora com a amiga com quem estava hospedada,
Butler, para ajudar com os preparativos para uma festa de
crianças que teria lugar nessa mesma noite.
Naquele instante o cenário era de atividade caótica. Mulheres enérgicas
entravam e saíam a carregar cadeiras, mesinhas, jarros de flores, e grandes
quantidades de abóboras amarelas, que dispunham em locais
estrategicamente selecionados.
Iria ser uma festa da Noite das Bruxas para convidados de uma faixa
etária entre os dez e os dezassete anos de idade.
Mrs. Oliver, afastando-se do grupo principal, encostou-se a um espaço
vago numa parede de fundo e pegou numa grande abóbora amarela,
observando-a com um olhar crítico.
– A última vez que vi uma destas – disse ela, afastando o cabelo grisalho
da testa proeminente – foi no ano passado nos Estados Unidos, centenas
delas. Por toda a casa. Nunca tinha visto tantas abóboras. Na verdade –
acrescentou de modo pensativo –, nunca soube qual a diferença entre uma
abóbora e uma abóbora-menina. Esta o que é?
– Desculpe, querida – disse Mrs. Butler, ao tropeçar nos pés da sua
amiga.
Mrs. Oliver encostou-se mais à parede.
– Culpa minha – disse ela. – Estou para aqui a atrapalhar. Mas foi
bastante notável, ver tantas abóboras ou abóboras-meninas, sejam lá o que
forem. Estavam em toda a parte, nas lojas, e nas casas das pessoas, com
velas e lanternas dentro delas, ou penduradas. Muito interessante de facto.
Mas não era para uma festa de Noite das Bruxas, era para a Ação de Graças.
Eu sempre associei abóboras com a Noite das Bruxas e isso é no fim de
outubro. A Ação de Graças é muito mais tarde, não é? Não é em novembro,
na terceira semana de novembro? De qualquer modo, aqui, a Noite das
Bruxas é de certeza no dia 31 de outubro, não é? Primeiro a Noite das
Bruxas e depois, o que é a seguir? Dia de Finados? Isso é quando em Paris
se vai aos cemitérios e se põe flores nas campas. Não é um feriado triste.
Quer dizer, as crianças também vão todas, e divertem-se. Primeiro vai-se
aos mercados de flores e compra-se montes de flores lindas. Não há flores
tão bonitas como as que há no mercado em Paris.
Muitas mulheres atarefadas tropeçavam ocasionalmente em Mrs. Oliver,
mas não a ouviam. Estavam demasiado ocupadas com o que estavam a
fazer.
Eram na maior parte mães, uma ou duas solteironas competentes; havia
adolescentes habilidosos, rapazes de dezasseis e dezassete anos a subir a
escadotes ou em cima de cadeiras para colocar decorações, abóboras,
abóboras-meninas ou bolas de bruxa1 de cores garridas a uma altura
adequada; raparigas entre onze e quinze anos juntavam-se em grupos e
davam risadinhas.
– E depois do dia de Finados e dos cemitérios – continuou Mrs. Oliver,
apoiando-se no braço de um sofá – é o Dia de Todos os Santos. Acho que
estou certa, não?
Ninguém respondeu a esta pergunta. Mrs. Drake, uma bonita mulher de
meia-idade e que era a anfitriã da festa, pronunciou-se.
– Não vou chamar a isto uma festa das bruxas, apesar de na realidade o
ser. Vou chamar-lhe festa Acima dos Onze. É essa faixa etária. A maioria
são pessoas que vão sair do colégio The Elms2 e vão para outras escolas.
– Mas isso não é muito exato, pois não Rowena? – disse Miss Whittaker,
recolocando o seu pince-nez no nariz de modo reprovador.
Miss Whittaker, sendo professora, era sempre firme quanto à exatidão.
– Porque abolimos os acima dos onze há algum tempo.
Mrs. Oliver levantou-se do sofá, de uma forma apologética.
– Não tenho sido muito útil. Tenho estado aqui sentada a dizer tolices
sobre abóboras e abóboras-meninas – e a descansar os pés, pensou, com um
ligeiro acesso de consciência, mas sem remorsos suficientes para dizê-lo em
voz alta.
– O que posso fazer a seguir? – perguntou, e acrescentou: – Que belas
maçãs!
Alguém acabara de trazer para a sala um grande cesto com maçãs. Mrs.
Oliver gostava de maçãs.
– Belas e vermelhas – acrescentou.
– Não são muito boas – disse Rowena Drake – mas têm um aspeto bonito
e festivo. São para o jogo das maçãs3. São umas maçãs um pouco moles,
para que as pessoas consigam trincá-las mais facilmente. Leve-as para a
biblioteca, sim, Beatrice? O jogo das maçãs faz sempre uma grande
porcaria com água a cair em toda a parte, mas no tapete da biblioteca não
faz mal, é tão velho. Oh! Obrigada, Joyce.
Joyce, uma rapariga robusta de treze anos, pegou na taça das maçãs. Duas
caíram ao chão e pararam, como se comandadas pela varinha mágica de
uma bruxa, aos pés de Mrs. Oliver.
– Gosta de maçãs, não gosta? – disse Joyce. – Li que sim, ou talvez o
tenha ouvido na televisão. A senhora é a escritora de romances policiais,
não é?
– Sim – disse Mrs. Oliver.
– Devíamos pô-la a fazer alguma coisa relacionada com assassinatos. Ter
um assassinato na festa de hoje à noite e pôr as pessoas a resolvê-lo.
– Não, obrigada – disse Mrs. Oliver. – Nunca mais.
– Como, nunca mais?
– Bem, fi-lo uma vez, e não correu lá muito bem – disse Mrs. Oliver.
– Mas escreveu montes de livros – disse Joyce. – Ganha muito dinheiro
com eles, não ganha?
– De certa forma – disse Mrs. Oliver, com o seu pensamento nos
impostos.
– E tem um detetive que é finlandês.
Mrs. Oliver admitiu este facto. Um pequeno e imperturbável rapaz, ainda
por chegar à maioridade dos acima dos onze, na opinião de Mrs. Oliver,
disse num tom firme:
– Porquê finlandês?
– Interroguei-me sobre isso diversas vezes – disse Mrs. Oliver
sinceramente.
Mrs. Hargreaves, a mulher do organista, entrou na sala com a respiração
ofegante, e a carregar um grande balde de plástico verde.
– Que tal isto – disse – para o jogo das maçãs? Achei bastante alegre.
Miss Lee, a farmacêutica, disse:
– Um balde de zinco seria melhor. Não viram tão facilmente. Onde vai
organizar isto, Mrs. Drake?
– Achei que o jogo das maçãs correria melhor na biblioteca. O tapete é
velho e verte-se sempre muita água.
– Está bem. Levamo-las para lá. Rowena, aqui está outro cesto de maçãs.
– Deixe-me ajudar – disse Mrs. Oliver.
Apanhou as duas maçãs que estavam aos seus pés. Praticamente sem
reparar no que estava a fazer, trincou uma e começou a mastigá-la. Mrs.
Drake subtraiu-lhe a outra maçã de uma forma firme e devolveu-a ao cesto.
Começou um burburinho de conversa.
– Sim, mas onde vamos fazer o Snapdragon4?
– Devia ser na biblioteca, é de longe a divisão mais escura.
– Não, vamos fazer isso na sala de jantar.
– Temos de pôr alguma coisa na mesa antes.
– Há um pedaço de repes para pôr na mesa, e depois uma proteção de
borracha por cima.
– E os espelhos? Vamos realmente ver os nossos maridos neles?
Descalçando-se furtivamente e, ainda a trincar a sua maçã
silenciosamente, Mrs. Oliver sentou-se de novo no sofá e observou de um
modo crítico a sala cheia de gente. Utilizava a sua mente de escritora:
«Então, se eu fosse escrever um livro sobre estas pessoas, como o faria?
São boas pessoas, de modo geral, acho eu. Mas quem sabe?»
Achava que, de certa forma, era muito fascinante não saber nada sobre
elas. Viviam todas em Woodleigh Common, algumas tinham vagos rótulos
colados a si, na memória dela, por causa das coisas que Judith lhe contara.
Miss Johnson... algo a ver com a igreja, não era a irmã do vigário. Oh não,
era a irmã do organista, claro. Rowena Drake, que parecia gerir as coisas
em Woodleigh Common. A mulher ofegante que trouxera o balde de
plástico para dentro, um balde de plástico particularmente horrível. Mas, na
verdade, Mrs. Oliver nunca gostara de coisas de plástico. E depois as
crianças, as raparigas e rapazes adolescentes.
Até aqui eram apenas nomes para Mrs. Oliver. Havia uma Nan e uma
Beatrice e uma Cathie, uma Diana e uma Joyce, que era prepotente e fazia
perguntas. Não gosto muito da Joyce, pensou Mrs. Oliver. Uma rapariga
chamada Ann, que era alta e tinha um ar superior. Havia dois rapazes
adolescentes que aparentavam ter-se acostumado recentemente a
experimentar penteados diferentes, com resultados algo infelizes.
Um rapaz pequeno entrou, com alguma timidez.
– A mamã mandou estes espelhos para ver se servem – disse numa voz
um pouco ansiosa.
Mrs. Drake pegou neles.
– Muito obrigada, Eddy – disse.
– São apenas espelhos vulgares – disse a rapariga chamada Ann. – Vamos
mesmo ver os rostos dos nossos futuros maridos refletidos neles?
– Algumas de vocês talvez vejam, e outras talvez não – disse Judith
Butler.
– Alguma vez viu o rosto do seu marido numa festa... quero dizer uma
festa deste tipo?
– Claro que não viu – disse Joyce.
– Podia ter visto – respondeu Beatrice, superior. – Chamam-lhe PES,
Perceção Extrassensorial – acrescentou ela no tom satisfeito de quem é
fluente em todos os termos correntes.
– Li um dos seus livros – disse Ann a Mrs. Oliver – O Peixe Dourado
Moribundo. Era bastante bom – disse ela de forma amável.
– Não gostei desse – disse Joyce. – Não tinha sangue suficiente. Gosto
que os assassinatos tenham muito sangue.
– Uma grande porcaria – disse Mrs. Oliver –, não acha?
– Mas emocionante – replicou Joyce.
– Não necessariamente – disse Mrs. Oliver.
– Uma vez vi um assassinato – disse Joyce.
– Não sejas tola, Joyce – disse a professora, Miss Whittaker.
– Vi – disse Joyce.
– Viste mesmo? – perguntou Cathie, arregalando os olhos para Joyce. –
Viste mesmo um assassinato, de verdade?
– Claro que não viu – disse Mrs. Drake. – Não digas tolices, Joyce.
– Eu vi um assassinato – disse Joyce. – Vi. Vi. Vi.
Um rapaz de dezassete anos empoleirado num escadote olhou para baixo
interessado.
– Que tipo de assassinato? – perguntou.
– Eu não acredito – disse Beatrice.
– Claro que não – disse a mãe de Cathie. – Ela está só a inventar.
– Não estou. Eu vi.
– Porque não foste à polícia? – perguntou Cathie.
– Porque não sabia que era um assassinato quando o vi. Foi só muito
tempo depois, quero dizer, que eu comecei a aperceber-me de que fora um
assassinato. Algo que alguém disse há apenas um ou dois meses e que me
fez pensar: Claro, o que eu vi foi um assassinato.
– Veem? – disse Ann – Ela está a inventar. Um disparate.
– Quando aconteceu? – perguntou Beatrice.
– Há anos – disse Joyce –, eu era muito nova na altura – acrescentou ela.
– Quem assassinou quem? – perguntou Beatrice.
– Não o direi a nenhuma de vocês – disse Joyce. – Vocês estão todas a ser
tão más.
Miss Lee entrou com outro tipo de balde. A conversa mudou para uma
comparação entre baldes de metal ou de plástico, como os mais adequados
para o desporto de mergulhar para apanhar maçãs. A maioria dos ajudantes
deslocou-se para a biblioteca para fazer uma avaliação no local. Alguns dos
membros mais novos, diga-se, estavam ansiosos para fazer uma
demonstração, para testar as dificuldades e para mostrar a sua perícia no
desporto. Molharam-se cabelos, entornou-se água, mandaram-se buscar
toalhas para limpar. No fim decidiu-se que um balde metálico era preferível
aos encantos mais vistosos de um balde de plástico, que se virava
demasiado facilmente.
Mrs. Oliver, pousando uma taça de maçãs que trouxera para reabastecer
as provisões necessárias para o dia seguinte, serviu-se de uma novamente.
– Li no jornal que gostava de comer maçãs – a voz acusadora de Ann ou
de Susan, não tinha certeza qual delas, falava-lhe.
– É o meu pecado original – disse Mrs. Oliver.
– Seria mais divertido se fossem melões – objetou um dos rapazes. – São
tão sumarentos. Imaginem a porcaria que se faria – disse, examinando o
tapete com uma antecipação prazenteira.
Mrs. Oliver, sentindo-se um pouco culpada pela acusação pública de gula,
saiu da sala em busca de uma determinada divisão, cuja geografia é
habitualmente de fácil identificação. Subiu a escadaria e, dobrando a
esquina no patamar, embateu num parzinho, uma rapariga e um rapaz,
abraçados e encostados à porta que Mrs. Oliver pensava ser certamente a
porta da divisão na qual ansiava por entrar. O casal não lhe prestou qualquer
atenção. Suspiraram e enroscaram-se. Mrs. Oliver interrogou-se que idade
teriam. O rapaz talvez tivesse quinze anos, a rapariga pouco mais de doze,
se bem que o desenvolvimento do seu peito parecia ser mais maduro.
Apple Trees5 era uma casa de um tamanho considerável. Tinha, pensou
ela, vários cantos e recantos agradáveis. As pessoas são tão egoístas, pensou
Mrs. Oliver. Não têm nenhuma consideração pelos outros. Essa frasezita
bem conhecida do passado veio-lhe à cabeça. Tinha-lhe sido dita
sucessivamente por uma ama-seca, uma ama, uma governanta, a sua avó,
duas tias-avós, a sua mãe e mais algumas pessoas.
– Com licença – disse Mrs. Oliver numa voz clara e audível.
O rapaz e a rapariga aproximaram-se mais do que nunca, os seus lábios
atados.
– Com licença – disse Mrs. Oliver outra vez –, não se importam de me
deixar passar? Quero abrir esta porta.
O casal afastou-se, contrariado. Olharam para ela melindrados. Mrs.
Oliver entrou, bateu com a porta e trancou-a.
A porta não encaixava lá muito bem. O som débil de palavras chegou-lhe,
de fora.
– As pessoas são mesmo assim – disse uma voz de tenor algo incerta. –
Podiam ver que não queríamos ser incomodados.
– As pessoas são tão egoístas – disse uma voz de rapariga. – Nunca
pensam em ninguém a não ser nelas próprias.
– Nenhuma consideração pelos outros – disse a voz do rapaz.
1 Uma bola de bruxa é uma esfera oca, feita de vidro simples ou de vitral,
que era pendurada nas janelas de casas de campo no século XVIII em
Inglaterra, para afastar maus espíritos, bruxedos, ou má sorte. (N. do T.)
2 Olmos, traduzido do inglês. (N. do T.)
3 Jogo tradicional da Noite das Bruxas, em inglês bobbing for apples.
Consiste em encher uma bacia ou balde com água e pôr maçãs na água, já
que estas flutuam. Os jogadores (geralmente crianças) tentam então apanhar
uma com os dentes, sem poderem utilizar as mãos, que são por vezes
amarradas atrás das costas. (N. do T.)
4 Jogo tradicional de inverno, no qual se aquece brandy, e se coloca numa
taça grande e pouco funda; põem-se uvas-passas no brandy, ao qual se pega
fogo. As luzes da sala são apagadas para aumentar o efeito da chama ao
queimar o álcool da bebida. O objetivo do jogo é tirar as passas do brandy e
comê-las, correndo o risco de queimaduras. (N. do T.)
5 Macieiras, traduzido do inglês. (N. do T.)
 
 
Capítulo 2
 
 
 
 
 

O sorganizadores
preparativos de uma festa de crianças dão muito mais trabalho aos
do que o entretenimento imaginado para adultos. Comida
de boa qualidade e bebidas alcoólicas adequadas, com limonada à parte, já é
o suficiente para começar uma festa, para algumas pessoas. Pode custar
mais mas dá infinitamente menos trabalho. Nisso Ariadne Oliver e a sua
amiga Judith Butler concordavam.
– E festas de adolescentes? – perguntou Judith.
– Não sei muito acerca delas – disse Mrs. Oliver.
– Num sentido – disse Judith – acho que dão menos trabalho que as
outras todas. Quero dizer, eles expulsam-nos, aos adultos, todos. E dizem
que fazem tudo sozinhos.
– E fazem?
– Bem, não no sentido que nós damos à coisa – disse Judith. – Esquecem-
se de encomendar algumas coisas, e encomendam outras de que ninguém
gosta. Depois de nos escorraçarem, dizem que lhes deveríamos ter
arranjado algumas coisas. Partem muitos copos, e outras coisas, e há
sempre alguém indesejável, ou que traz um amigo indesejável. Sabe como
é. Drogas estranhas e... como lhe chamam? Relva ou cânhamo, ou LSD,
que eu sempre pensei que queria dizer dinheiro; mas parece que não.
– Suponho que custa dinheiro – sugeriu Ariadne Oliver.
– É muito desagradável, e o cânhamo tem um cheiro desagradável.
– Parece tudo muito deprimente – disse Mrs. Oliver.
– De qualquer modo, esta festa vai correr bem. Confie na Rowena Drake.
Ela é uma organizadora maravilhosa. Vai ver.
– Nem sequer me apetece ir a uma festa – suspirou Mrs. Oliver.
– Vá lá para cima e descanse durante uma hora. Vai ver. Vai divertir-se
quando começar. Quem dera que a Miranda não tivesse febre, ela está tão
desiludida por não poder vir, pobrezinha.
A festa começou às sete e meia. Ariadne Oliver teve de admitir que a sua
amiga tivera razão. As pessoas foram pontuais. Tudo correu de forma
esplêndida. Foi tudo muito bem pensado, bem organizado e correu às mil
maravilhas. Havia luzes azuis e vermelhas nas escadas, e uma grande
abundância de abóboras. As raparigas e os rapazes chegaram com vassouras
decoradas para uma competição. Depois dos cumprimentos, Rowena Drake
anunciou o programa da noite.
– Primeiro, será decidida a competição das vassouras – disse ela –; três
prémios, primeiro, segundo e terceiro. Depois corta-se o bolo de farinha.
Isso será na estufa pequena. Depois o jogo das maçãs. Há uma lista dos
pares desse evento ali na parede. Depois haverá danças. Sempre que as
luzes se apagarem muda-se de par. A seguir, as raparigas irão para o
escritório pequeno, onde lhes serão dados os seus espelhos. Depois disso,
jantar, Snapdragon e depois a entrega dos prémios.
Como todas as festas, começou devagar a animação. As vassouras foram
admiradas, eram miniaturas muito pequenas de vassouras, e em geral a sua
decoração não atingira um padrão de mérito muito elevado, o que «torna
tudo mais fácil», disse Mrs. Drake num aparte a uma das suas amigas.
– E é uma coisa muito útil porque, quero dizer, há sempre uma ou duas
crianças que uma pessoa sabe que não ganharão prémios em mais nada, por
isso uma pessoa pode fazer uma pequena batota nisto.
– Tão poucos escrúpulos, Rowena.
– Na verdade não sou assim. Apenas arranjo as coisas para que sejam
justas e bem divididas. A verdade é que toda a gente quer ganhar alguma
coisa.
– O que é o jogo da farinha? – perguntou Ariadne Oliver.
– Oh sim, claro, não estava aqui quando o estávamos a preparar. Bem,
enche-se um copo sem pé com farinha, amassa-se bem, e depois vira-se
para um tabuleiro, e põe-se uma moeda de meio xelim em cima. Depois
toda a gente corta uma fatia com muito cuidado para não fazer cair a
moeda. Assim que uma pessoa fizer cair a moeda, sai. É uma espécie de
eliminação. A última pessoa fica com a moeda, claro. Vamos lá então.
E lá foram. Ouviram-se guinchos de animação vindos da biblioteca, onde
decorria o jogo das maçãs, e os participantes voltaram de lá com cabelos
molhados e com uma generosa quantidade de água espalhada pelas suas
roupas.
Um dos concursos mais populares, pelo menos junto das raparigas, foi a
chegada da bruxa, papel representado por Mrs. Goodbody, uma mulher de
limpeza que, não só tinha o nariz adunco necessário, que quase se juntava
ao queixo, como possuía também uma mestria admirável a produzir uma
voz semelhante a um arrulho, com tons decididamente sinistros, e
declamava também uns versos burlescos e mágicos.
– Então, venha cá, Beatrice, não é? Ah, Beatrice. Um nome muito
interessante. Agora quero que saiba qual vai ser o aspeto do seu marido.
Agora sente-se, minha querida. Sim, sim, aqui debaixo desta luz. Sente-se
aqui e segure este espelhinho na sua mão, e de seguida quando as luzes se
apagarem vai vê-lo aparecer. Vai vê-lo a espreitar por cima do seu ombro.
Segure o espelho com firmeza. Abracadabra, quem vou vislumbrar? O
rosto do homem com quem vou casar. Beatrice, Beatrice, terá à sua frente,
o rosto do homem que agradará à sua mente.
Um feixe de luz atravessou a sala subitamente, vindo de um escadote
colocado atrás de um biombo. Atingiu o sítio certo, refletido no espelho que
estava na mão excitada de Beatrice.
– Oh! – gritou Beatrice – Vi-o. Vi-o! Consigo vê-lo no meu espelho!
O feixe foi desligado, as luzes acenderam-se e uma fotografia colada num
cartão flutuou para baixo desde o teto. Beatrice dançou pela sala, animada.
– Era ele! Era ele! Vi-o! – exclamou. – Oh, tem uma barba ruiva linda.
Apressou-se na direção de Mrs. Oliver, que era a pessoa mais próxima.
– Veja, veja. Não acha que ele é maravilhoso? Parece o Eddie Presweight,
o cantor pop. Não acha?
Mrs. Oliver não achou que ele se parecesse com algum dos rostos que
deplorava ter de ver no jornal de manhã. A barba, pensou, fora um
pormenor genial.
– De onde vêm estas coisas? – perguntou.
– Oh, a Rowena pede ao Nicky que as faça. E o amigo dele, o Desmond,
ajuda. Ele faz muitas experiências com fotografia. Ele e uns amigos dele
mascararam-se, com montes de cabelo e suíças, barbas e coisas assim. E
então com as luzes em cima deles e tudo, as raparigas ficam malucas de
alegria.
– Não posso deixar de pensar – disse Ariadne Oliver – que as raparigas
hoje em dia são realmente muito tolinhas.
– Não acha que o foram sempre? – perguntou Rowena Drake.
Mrs. Oliver pensou.
– Suponho que tem razão – admitiu.
– E agora – exclamou Mrs. Drake – o jantar.
O jantar correu bem. Bolos com coberturas doces, salgados, camarões,
queijo e doces de nozes. Os acima dos onze empanturraram-se.
– E agora – disse Rowena – o último jogo da noite. Snapdragon. Por ali,
pela copa. Exato. Então, primeiro os prémios.
Os prémios foram entregues, e depois ouviu-se um grito, como um
lamento. As crianças correram através da entrada para a sala de jantar.
A comida havia sido retirada da mesa. Um pano verde de repes estava
pousado na mesa e em cima estava um prato com uvas-passas flamejantes.
Toda a gente guinchou e se aproximou depressa, apanhando as uvas-passas
com gritos de «Ai, queimei-me! Não é lindo?». A pouco e pouco o
Snapdragon bruxuleou e esmoreceu. As luzes acenderam-se. A festa
terminara.
– Foi um enorme sucesso – disse Rowena.
– Tinha de ser, com o trabalho todo que teve.
– Foi encantador – disse Judith baixinho. – Encantador.
– E agora – acrescentou num tom pesaroso – temos de arrumar um pouco.
Não podemos deixar tudo para aquelas pobres mulheres arrumarem amanhã
de manhã.
 
 
Capítulo 3
 
 
 
 
 

N um apartamento em Londres, o telefone tocou. O dono do apartamento,


Hercule Poirot, mexeu-se na cadeira. A desilusão atacou-o. Sabia, antes
de atender, o que significava. O seu amigo Solly, com quem planeara passar
o serão a reavivar a interminável controvérsia entre eles sobre o verdadeiro
culpado do assassinato dos banhos municipais de Canning Road, estava
prestes a dizer que não poderia vir. Poirot, que havia recolhido algumas
provas que favoreciam a sua própria teoria algo rebuscada, ficou
profundamente desiludido. Não pensava que o seu amigo Solly fosse aceitar
as suas sugestões, mas não tinha dúvidas de que quando Solly produzisse
por sua vez as suas próprias crenças mirabolantes, ele próprio, Hercule
Poirot, iria facilmente demoli-las em nome da sanidade, lógica, ordem e
método. Seria incómodo, no mínimo, se Solly não viesse esta noite. Mas a
verdade é que quando se haviam encontrado umas horas antes, Solly estava
atacado por uma tosse congestionada, encontrando-se num estado de catarro
altamente contagioso.
– Tinha uma forte constipação – disse Hercule Poirot –, e, sem dúvida,
apesar dos remédios que tenho aqui à mão, ele iria pegar-ma. É melhor que
não venha. Tout de même – acrescentou com um suspiro –, isso quer dizer
que vou ter uma noite aborrecida.
Muitas das noites eram aborrecidas agora, pensou Hercule Poirot. A sua
mente, magnífica como era (pois nunca duvidara desse facto) requeria
estímulo de fontes exteriores. Nunca tivera uma mente do tipo filosófico.
Houve alturas em que quase se arrependeu de não ter estudado Teologia em
vez de entrar na força policial, na sua juventude. O número de anjos que
podiam dançar na ponta de uma agulha; seria interessante sentir que isso
importava e discuti-lo de forma arrebatadora com os colegas.
O seu criado, George, entrou na sala.
– Era Mr. Solomon Levy, sir.
– Ah sim – disse Poirot.
– Ele tem muita pena de não poder fazer-lhe companhia esta noite. Está
na cama com um caso sério de gripe.
– Ele não tem gripe – disse Poirot. – Tem apenas uma forte constipação.
Toda a gente pensa sempre que tem gripe. Parece mais importante.
Consegue-se receber mais compaixão. O problema com uma constipação
catarral é que é difícil recolher a quantidade apropriada de compaixão dos
amigos.
– Ainda bem que ele não vem, sir, na verdade – disse George. – Essas
constipações febris são muito contagiosas. Não seria bom para o senhor
ficar de cama com uma dessas.
– Seria muito aborrecido – concordou Poirot.
O telefone tocou de novo.
– Quem tem uma constipação agora? – perguntou ele. – Não convidei
mais ninguém.
George atravessou a sala em direção ao telefone.
– Eu atendo a chamada aqui – disse Poirot. – Não tenho dúvidas de que é
algo sem interesse. Mas de qualquer forma... – encolheu os ombros – talvez
ajude a passar o tempo. Quem sabe?
George disse:
– Muito bem, sir – e saiu da sala.
Poirot estendeu a mão, pegou no auscultador, silenciando desta forma o
ruído da campainha.
– Fala Hercule Poirot – disse, com uma certa pompa destinada a
impressionar quem estivesse do outro lado.
– Isso é maravilhoso – disse uma voz ansiosa. Uma voz de mulher um
pouco perturbada por uma respiração ofegante. – Pensei que com certeza
estivesse para fora, que não estaria aí.
– Porque haveria de pensar isso? – inquiriu Poirot.
– Porque não consigo deixar de pensar que hoje em dia as coisas são
frustrantes. Tem-se muita pressa para falar com alguém, não se pode
esperar, e tem-se de esperar. Precisava de o apanhar com urgência, extrema
urgência.
– E quem fala? – perguntou Hercule Poirot.
A voz, uma voz feminina, pareceu surpreendida.
– Não sabe? – disse incrédula.
– Sei, sim – disse Hercule Poirot –, é a minha amiga Ariadne.
– E estou num estado de nervos terrível – disse Ariadne.
– Sim, sim, já me apercebi. Esteve a correr? Está muito ofegante, não
está?
– Não estive propriamente a correr. É a emoção. Posso ir vê-lo
imediatamente?
Poirot deixou que passassem alguns instantes antes de responder. A sua
amiga, Mrs. Oliver, parecia estar num estado altamente emotivo. Qualquer
que fosse o seu problema, passaria sem dúvida muito tempo a despejar as
suas queixas, os seus desgostos, as suas frustrações, fosse lá o que fosse que
a afligia. Uma vez instalada no santuário de Poirot, poderia ser difícil
convencê-la a ir para casa sem ser um pouco indelicado. As coisas que
entusiasmavam Mrs. Oliver eram tão numerosas e muitas vezes tão
inesperadas que uma pessoa tinha de ser cuidadosa na forma como as
discutia.
– Alguma coisa a perturbou?
– Sim, claro que estou perturbada. Não sei o que fazer. Não sei... oh, não
sei nada. O que acho é que tenho de ir contar-lhe, contar-lhe o que se passou
de facto, porque é a única pessoa que poderá saber o que fazer. Que me
poderá dizer o que devo fazer. Posso ir, então?
– Mas é claro, é claro. Terei todo o prazer em recebê-la.
O auscultador do outro lado foi pousado abruptamente e Poirot chamou
George, refletiu durante alguns minutos, e pediu cevada de limão, um bitter
de limão6 e um copo de brandy para si.
– Mrs. Oliver chegará dentro de cerca de dez minutos – disse.
George retirou-se. Regressou com o brandy para Poirot, que o aceitou
com um aceno de satisfação, preparando de seguida o refresco sem álcool
que era a única coisa suscetível de agradar a Mrs. Oliver. Poirot bebericou o
brandy delicadamente, arranjando forças para a provação que estava prestes
a enfrentar.
– É uma pena – murmurou para si mesmo – que ela seja tão despistada. E,
no entanto, tem uma mente original. Pode ser que eu goste do que me vem
contar. Pode ser – refletiu um instante – que possa ocupar grande parte da
noite e que seja alguma coisa extremamente tola. Eh bien, devemos correr
riscos na vida.
Soou uma campainha. Desta feita, na porta de entrada do apartamento. O
botão não foi pressionado uma vez apenas. Durou muito tempo, com o tipo
de ação constante que era muito eficaz, a pura produção de ruído.
– Está de certeza agitada – disse Poirot.
Ouviu George dirigir-se à porta, abri-la, e antes que algum anúncio
decoroso pudesse ser feito a porta da sua sala de estar abriu-se e Ariadne
Oliver irrompeu por ali adentro, segurando o que pareciam ser um chapéu e
um impermeável de pescador, com George a reboque.
– O que diabos tem vestido? – disse Hercule Poirot. – Dê-os ao George.
Está tudo molhado.
– É claro que está molhado – disse Mrs. Oliver. – Está tudo molhado lá
fora. Nunca pensei em água antes. É uma coisa terrível para se pensar.
Poirot olhou-a com algum interesse.
– Tome um pouco de cevada de limão – disse – ou poderia convencê-la a
tomar um copinho de eau de vie?
– Detesto água – disse Mrs. Oliver.
Poirot pareceu surpreso.
– Detesto-a. Nunca pensei nisso antes. O que pode ser capaz de fazer, e
tudo isso.
– Minha cara amiga – disse Hercule Poirot, enquanto George a libertava
das dobras ondulantes do impermeável húmido – sente-se aqui. Deixe que o
George a alivie de... o que é que tem vestido?
– Arranjei-o na Cornualha – disse Mrs. Oliver. – Impermeável. Um
impermeável de pescador autêntico.
– Muito útil para o pescador, sem dúvida – disse Poirot –, mas não tão
adequado para si, acho. Pesado. Mas venha, sente-se e conte-me.
– Não sei como – disse Mrs. Oliver, afundando-se numa cadeira. – Por
vezes, sabe, não acho que seja verdade. Mas aconteceu. Realmente
aconteceu.
– Diga-me – disse Poirot.
– É para isso que cá vim. Mas agora que cheguei, é tão difícil, porque não
sei por onde começar.
– Pelo princípio? – sugeriu Poirot. – Ou essa forma é muito
convencional?
– Não sei onde começa. De facto, não. Pode ter sido há muito tempo,
sabe.
– Acalme-se – disse Poirot. – Junte os diferentes fios do caso na sua
cabeça e conte-me. O que a deixou tão perturbada?
– Também o perturbaria a si – disse Mrs. Oliver. – Pelo menos, suponho
que sim. – Parecia algo duvidosa. – Mas não se sabe o que o perturba
realmente. Parece enfrentar tanta coisa com muita calma.
– É muitas vezes a melhor maneira – disse Poirot.
– Muito bem – disse Mrs. Oliver. – Começou com uma festa.
– Ah sim – disse Poirot, aliviado por lhe ser apresentado algo tão vulgar e
são como uma festa. – Uma festa. Foi a uma festa e algo aconteceu.
– Sabe o que é uma festa das bruxas? – perguntou Mrs. Oliver.
– Sei o que é a Noite das Bruxas – disse Poirot. – Dia 31 de outubro. –
Pestanejou ligeiramente enquanto falava. – Quando as bruxas andam nas
vassouras.
– Houve vassouras – disse Mrs. Oliver. – Deram-lhes prémios.
– Prémios?
– Sim, para quem levou as que tinham a melhor decoração.
Poirot olhou para ela, duvidoso. Inicialmente aliviado pela menção de
uma festa, agora tinha novamente dúvidas. Como sabia que Mrs. Oliver não
bebia bebidas espirituosas, não pôde fazer as suposições que faria noutro
caso.
– Uma festa de crianças – disse Mrs. Oliver. – Ou melhor, uma festa de
acima dos onze.
– Acima dos onze?
– Bem, isso é o que lhe chamavam nas escolas, sabe? Quero dizer, veem a
sua inteligência, e se for suficientemente inteligente para passar o acima dos
onze, vai para um liceu ou algo assim. Mas se não for suficientemente
inteligente, vai para uma coisa chamada secundária moderna. Nome tolo.
Não parece significar nada.
– Confesso que de facto não percebo do que está a falar – disse Poirot.
Pareciam ter-se afastado de festas e entrado na área da educação.
Mrs. Oliver respirou fundo e recomeçou.
– Na verdade, começou com as maçãs.
– Ah sim – disse Poirot –, não me admira. Consigo, não admira, pois não?
Pensava num carro pequeno numa encosta e numa mulher a sair dele, e
um saco de maçãs a rebentar, e as maçãs a rolarem em cascata encosta
abaixo.
– Sim – disse num tom encorajador –, maçãs.
– O jogo das maçãs – disse Mrs. Oliver. – É uma das coisas que se faz
numa festa das bruxas.
– Ah sim, penso já ter ouvido falar disso, sim.
– Sabe, fizeram-se imensas coisas. O jogo das maçãs, cortar às fatias uma
espécie de bolo de farinha com uma moeda em cima, olhar para um
espelho...
– Para ver o rosto do seu verdadeiro amor? – sugeriu Poirot, num tom
conhecedor.
– Ah – disse Mrs. Oliver –, por fim está a começar a entender.
– Uma data de tradições, de facto – disse Poirot –, e tudo isto se passou
na sua festa.
– Sim, foi um grande sucesso. Acabou com o Snapdragon. Sabe, queimar
uvas-passas numa travessa. Suponho... – a voz dela tremeu – suponho que
esse deve ter sido o momento em que aconteceu.
– Em que aconteceu o quê?
– Um assassinato. Depois do Snapdragon toda a gente foi para casa –
disse Mrs. Oliver. – Foi nessa altura que não a conseguiram encontrar.
– Encontrar quem?
– Uma rapariga. Uma rapariga chamada Joyce. Todos chamaram por ela e
procuraram-na, e perguntaram se ela teria ido para casa com mais alguém, e
a mãe dela ficou muito aborrecida e disse que a Joyce deveria ter ficado
cansada, ou doente ou algo assim e teria ido para casa sozinha, e que era
muito inconsciente da parte dela não ter dito nada. Todo o tipo de coisas
que as mães dizem quando acontecem coisas dessas. Enfim, não
conseguimos encontrar a Joyce.
– E ela tinha ido para casa sozinha?
– Não – disse Mrs. Oliver –, ela não tinha ido para casa... – a voz dela
tremeu. – Encontrámo-la por fim... na biblioteca. Foi aí... aí que alguém o
fez. O jogo das maçãs. O balde estava lá. Um balde grande, de metal. Não
quiseram o de plástico. Talvez se fosse o de plástico não tivesse acontecido.
Não seria suficientemente pesado. Talvez tivesse virado...
– O que aconteceu? – disse Poirot. O seu tom era duro.
– Foi aí que foi encontrada – disse Mrs. Oliver. – Sabe, alguém empurrara
a cabeça dela para dentro da água, com as maçãs. Empurraram-na e
seguraram-na de tal modo que ela morreu, claro. Afogada. Afogada. Num
balde de metal quase cheio de água. Ajoelhada ali, a meter a cabeça lá
dentro para apanhar uma maçã. Odeio maçãs – disse Mrs. Oliver. – Nunca
mais quero voltar a ver uma maçã.
Poirot olhou para ela. Esticou a mão e encheu um copinho com cognac.
– Beba isto – disse ele. – Vai fazer-lhe bem.
6 Uma bebida sem álcool com gás, com sabor a limão e quinino, o qual lhe
dá um sabor amargo (bitter no inglês). A principal diferença entre água
tónica e bitter de limão é a adição de sumo e polpa de limão. (N. do T.)
 
 
Capítulo 4
 
 
 
 
 

M rs.–Oliver pousou o copo e limpou os lábios.


Tinha razão – disse ela. – Ajudou. Estava a ficar histérica.
– Compreendo agora que apanhou um choque muito grande. Quando
aconteceu isto?
– A noite passada. Foi apenas a noite passada? Sim, sim, é claro.
– E veio ter comigo.
Não era uma pergunta, mas demonstrava um desejo de mais informação
do que aquela até aí obtida por Poirot.
– Veio ter comigo... porquê?
– Pensei que poderia ajudar – disse Mrs. Oliver. – É que, não... não é
simples.
– Pode ser e pode não ser – disse Poirot. – Depende de muita coisa. Tem
de me contar mais, sabe? Suponho que a polícia está encarregada do caso.
Sem dúvida que chamaram um médico. O que disse ele?
– Vai haver uma investigação – disse Mrs. Oliver.
– Naturalmente.
– Amanhã ou depois de amanhã.
– Essa rapariga, a Joyce, que idade tinha?
– Não sei ao certo. Penso que talvez doze ou treze.
– Pequena para a idade?
– Não, não, acho que muito madura até, talvez. Encorpada.
– Bem desenvolvida? Quer dizer com um aspeto sensual?
– Sim, é isso que quero dizer. Mas não creio que tenha sido esse tipo de
crime. Isso seria mais simples, não?
– É o tipo de crime – disse Poirot – sobre o qual se lê todos os dias no
jornal. Uma rapariga que é atacada, uma estudante que é assaltada... sim,
todos os dias. Isto aconteceu numa casa particular, o que o torna diferente,
mas talvez não tão diferente assim. Mas, de qualquer modo, não tenho a
certeza de que me tenha contado tudo.
– Não, suponho que não contei – disse Mrs. Oliver. – Não lhe disse a
razão, isto é, por que vim aqui.
– Conhecia esta Joyce, conhecia-a bem?
– Não a conhecia de todo. É melhor que lhe explique, acho eu, como fui
lá parar.
– Lá é onde?
– Oh, um sítio chamado Woodleigh Common.
– Woodleigh Common – disse Poirot pensativo. – Onde recentemente... –
interrompeu-se.
– Não é muito distante de Londres. Cerca de... entre quarenta e cinco e
sessenta quilómetros, creio. É perto de Medchester. É um desses sítios onde
há algumas casas boas, mas onde se fez alguma construção recente.
Residencial. Uma boa escola nas imediações, e as pessoas podem viajar de
lá para Londres ou até Medchester. É um sítio bastante comum onde vivem
pessoas de quem se poderia dizer terem rendimentos razoáveis.
– Woodleigh Common – disse Poirot mais uma vez, pensativo.
– Eu estava lá hospedada na casa de uma amiga, a Judith Butler. Ela é
viúva. Fiz um cruzeiro pelas ilhas gregas este ano e a Judith estava no
barco, e ficámos amigas. Tem uma filha. Uma rapariga chamada Miranda
com doze ou treze anos. Bem, ela convidou-me para ficar com ela, e disse
que uns amigos dela iam dar uma festa para crianças, e que seria uma festa
das bruxas. Ela disse que eu talvez pudesse ter umas ideias interessantes.
– Ah – disse Poirot –, ela não sugeriu por essa altura que organizasse uma
caça ao assassino ou algo desse género?
– Céus, não – disse Mrs. Oliver. – Acha que eu voltaria alguma vez a
considerar tal coisa?
– Penso que seria improvável.
– Mas aconteceu, é isso que é tão horrível – disse Mrs. Oliver. – Quero
dizer, não poderá ter acontecido só porque eu estava lá, poderá?
– Não creio. Pelo menos... Alguma das pessoas na festa sabia quem era?
– Sim – disse Mrs. Oliver. – Uma das crianças disse algo sobre eu
escrever livros e que gostava de assassinatos. Foi assim que, bem, foi o que
levou à coisa... quero dizer, à coisa que me fez vir ao seu encontro.
– Coisa essa que ainda não me contou.
– Bem, sabe, ao princípio nem pensei nisso. Não imediatamente. Há
crianças estranhas por aí, crianças que... bem, suponho que em tempos idos
estariam em asilos, mas agora mandam-nas para casa para que vivam vidas
normais ou algo assim, e depois vão e fazem uma coisa assim.
– Estavam lá jovens adolescentes?
– Dois rapazes, ou jovens como lhes chamam sempre nos relatórios da
polícia. Entre os dezasseis e os dezoito.
– Suponho que um deles o poderia ter feito. É isso que a polícia pensa?
– Eles não dizem o que pensam – disse Mrs. Oliver –, mas pareceu-me
que poderiam pensar isso.
– Essa Joyce era uma rapariga atraente?
– Não creio – disse Mrs. Oliver. – Quer dizer atraente para os rapazes?
– Não – disse Poirot. – Acho que quis dizer, bem, só o significado
corrente da palavra.
– Não creio que ela fosse uma rapariga muito simpática – disse Mrs.
Oliver –, não alguém com quem se quisesse falar muito. Era o tipo de
rapariga que se exibe e se vangloria. É uma idade algo cansativa, creio. O
que estou a dizer parece pouco amável, mas...
– Não é pouco amável, num caso de assassinato, dizer como a vítima era
– disse Poirot. – É bastante necessário. A personalidade da vítima é a causa
de muitos assassinatos. Quantas pessoas estavam na casa nessa altura?
– Quer dizer para a festa? Bem, suponho que havia cinco ou seis
mulheres, alguma mães, uma professora, a esposa de um médico, ou irmã,
creio, um par de casais de meia-idade, os dois rapazes entre os dezasseis e
os dezoito, uma rapariga de quinze, duas ou três de onze ou doze... por aí.
Cerca de vinte e cinco ou trinta ao todo, talvez.
– Alguns estranhos?
– Eles conheciam-se todos, acho eu. Alguns melhor do que outros. Penso
que as raparigas andavam quase todas na mesma escola. Havia algumas
mulheres que tinham vindo para ajudar com a comida e o jantar e coisas
desse género. Quando a festa acabou, a maioria das mães foi para casa com
os seus filhos. Eu fiquei com a Judith e algumas das outras para ajudar a
Rowena Drake, a mulher que deu a festa, para arrumar um pouco, para que
as empregadas de limpeza que viriam de manhã não tivessem tanta
confusão com que lidar. Sabe, havia muita farinha, e chapéus de papel
tirados dos crackers7 e outras coisas. Por isso varremos um pouco, e
chegámos à biblioteca por último. E então lembrei-me do que ela dissera.
– Quem dissera o quê?
– A Joyce.
– O que disse ela? Estamos a chegar à questão agora, não estamos?
Estamos a chegar à razão pela qual está aqui?
– Sim. Eu pensei que não fosse relevante para... para um médico ou para
a polícia ou qualquer pessoa, mas pensei que talvez significasse alguma
coisa para si.
– Eh bien – disse Poirot. – Conte-me. Foi alguma coisa que a Joyce disse
na festa?
– Não, foi mais cedo nesse dia. À tarde, enquanto preparávamos as
coisas. Foi depois de terem falado sobre eu escrever romances policiais e a
Joyce ter dito «Eu uma vez vi um assassinato», e a mãe dela ou outra
pessoa disse «Não sejas tola, Joyce, a dizer coisas dessas», e uma das
raparigas mais velhas disse «Estás só a inventar», e a Joyce disse «Eu vi. Eu
vi, estou a dizer-vos. Eu vi. Eu vi alguém cometer um assassinato», mas
ninguém acreditou nela. Riram-se e ela zangou-se.
– A madame acreditou nela?
– Não, claro que não.
– Estou a ver – disse Poirot –, sim, estou a ver. – Ficou calado por alguns
momentos, batendo com um dedo na mesa. Então disse:
– Pergunto-me, ela deu alguns detalhes, alguns nomes?
– Não. Continuou a gabar-se e a gritar um pouco e a zangar-se porque a
maioria das outras raparigas se estava a rir dela. As mães, creio, e as
pessoas mais velhas estavam zangadas com ela. Mas as raparigas e os
rapazes mais novos riram-se dela! Disseram coisas como «Diz lá, Joyce,
quando foi isso? Porque nunca nos contaste?». E a Joyce disse «Esqueci-
me, foi há tanto tempo».
– Aha! Ela disse há quanto tempo?
– Disse «Há anos». Sabe, como se quisesse parecer adulta.
– Uma das raparigas disse «Porque não foste à polícia?». Ann, creio, ou
Beatrice. Uma rapariga bastante arrogante, convencida.
– Aha, e o que respondeu ela a isso?
– Ela disse: «Porque na altura não sabia que era um assassinato.»
– Um comentário muito interessante – disse Poirot, endireitando-se na
cadeira.
– Ela já se tinha confundido um pouco nessa altura, creio – disse Mrs.
Oliver. – Sabe, a tentar explicar-se e a zangar-se porque todos gozavam com
ela. Não paravam de lhe perguntar porque não tinha ido à polícia, e ela não
parava de dizer: «Porque na altura não sabia que era um assassinato. Só
depois é que me ocorreu subitamente que fora isso que eu vira.»
– Mas ninguém deu sinais de acreditar nela, e a madame também não
acreditou nela, mas quando a encontrou morta sentiu de repente que ela
talvez tivesse dito a verdade?
– Sim, isso mesmo. Não sabia o que devia fazer, ou o que podia fazer.
Mas depois, mais tarde, pensei em si.
Poirot baixou a cabeça numa atitude grave em sinal de reconhecimento.
Permaneceu em silêncio durante uns momentos, e depois disse:
– Devo fazer-lhe uma pergunta séria, e reflita antes de responder. Acha
que essa rapariga vira realmente um assassinato? Ou acha que apenas
acreditava ter visto um assassinato?
– A primeira opção, creio – disse Mrs. Oliver. – Não achei na altura.
Pensei que apenas se lembrasse vagamente de algo que vira em tempos e
que o exagerara para que parecesse importante e excitante. Ela foi muito
veemente, disse: «Eu vi, estou a dizer-vos. Eu vi-o acontecer.»
– E então...
– E então vim ao seu encontro – disse Mrs. Oliver –, porque a única
forma de a morte dela fazer sentido foi ter havido realmente um assassinato
e ela ter sido testemunha.
– Isso implicaria algumas coisas. Implicaria que uma das pessoas que
estavam na festa tivesse cometido esse assassinato, e que essa mesma
pessoa também estivesse lá nesse dia, umas horas antes, e que tivesse
ouvido o que a Joyce dissera.
– Não pensa que estou só a imaginar coisas, ou pensa? – disse Mrs.
Oliver. – Acha que é apenas a minha imaginação rebuscada?
– Uma rapariga foi assassinada – disse Poirot. – Assassinada por alguém
com força suficiente para manter a cabeça dela dentro de um balde de água.
Um assassinato ignóbil e que foi cometido à primeira oportunidade, como
se poderia dizer. Alguém se sentiu ameaçado, e quem quer que tenha sido
atacou assim que foi humanamente possível.
– A Joyce podia não saber quem cometera o assassinato que vira – disse
Mrs. Oliver. – Não teria dito o que disse se realmente houvesse alguém na
sala que estivesse envolvido.
– Não – disse Poirot. – Creio que tem razão. Ela viu um assassinato, mas
não viu o rosto do assassino. Devemos ir para além disso.
– Não sei se percebo o que quer dizer.
– Podia ser que alguém que estivesse lá umas horas antes e que tivesse
ouvido a acusação da Joyce soubesse do assassinato, e soubesse quem o
cometera, talvez estivesse intimamente envolvido com essa pessoa. Pode
ser que alguém pensasse ser a única pessoa que sabia o que a sua esposa
fizera, ou a sua mãe ou a sua filha ou o seu filho. Ou poderia ser uma
mulher que sabia o que o seu marido, mãe, filha ou filho fizera. Alguém que
pensava que mais ninguém soubesse. E a Joyce começou a falar...
– E por isso...
– A Joyce teve de morrer?
– Sim. O que vai fazer?
– Acabei de me lembrar – disse Hercule Poirot – por que razão o nome de
Woodleigh Common me era familiar.
7 Uma tradição de Natal nos países anglo-saxónicos. Um cracker é um tubo
de cartão embrulhado em papel colorido, que o faz parecer um rebuçado
gigante. O cracker é puxado por duas pessoas, e como um osso de fúrcula
numa ave, parte de forma desigual. Isto é acompanhado de um estalo feito
por um fulminante. Tradicionalmente, os prémios que estão dentro do
cracker são chapéus ou coroas de papel, pequenos brinquedos e papéis com
adivinhas ou anedotas. (N. do T.)
 
 
Capítulo 5
 
 
 
 
 

H ercule Poirot olhou para o pequeno portão que dava acesso a Pine Crest.
Era uma casinha elegante e moderna, bem construída. Hercule Poirot
estava ligeiramente ofegante. A pequena casa alinhada à sua frente fora
apropriadamente batizada8. Estava situada no topo de uma colina, que tinha
uns poucos pinheiros plantados. Tinha um jardim pequeno e agradável, e
um homem alto e idoso rodava um grande regador de latão ao longo de um
caminho.
O cabelo do comissário Spence estava agora todo grisalho, em vez de ter
um toque de grisalho nas têmporas. Não tinha diminuído muito de estatura.
Parou de girar o regador e olhou para o visitante que estava ao portão.
Hercule Poirot ficou ali, sem se mover.
– Deus seja louvado – disse o comissário Spence. – Só pode ser. Não
devia mas é. Sim, só pode ser. Hercule Poirot, pela minha saúde.
– Aha – disse Hercule Poirot –, reconheceu-me. Isso é gratificante.
– Que os seus bigodes nunca fiquem mais pequenos – disse Spence.
Largou o regador e desceu até ao portão.
– Ervas diabólicas – disse. – E o que o traz aqui?
– O que me levou a muitos sítios durante a minha vida – disse Hercule
Poirot – e que há uns bons anos o levou a si a ver-me a mim. Assassinato.
– Já não trato de assassinatos – disse Spence –, a não ser no caso das
ervas daninhas. É o que estou a fazer agora. A pôr o veneno. Nunca é tão
fácil como se julga, algo está mal, geralmente o tempo. Não pode estar
demasiado húmido, não pode estar demasiado seco, e assim por diante.
Como sabia onde me encontrar? – perguntou enquanto abria o portão e
Poirot entrava.
– Enviou-me um cartão de Natal. Tinha o seu novo endereço impresso.
– Ah sim, é verdade. Sou antiquado, sabe. Gosto de enviar cartões no
Natal a alguns velhos amigos.
– Eu aprecio isso – disse Poirot.
Spence disse:
– Agora estou velho.
– Estamos ambos velhos.
– Não tem muito cabelo grisalho – disse Spence.
– Trato disso com um frasco – disse Hercule Poirot. – Não há necessidade
de aparecer em público com cabelo grisalho a não ser que assim se deseje.
– Bem, não acho que o cabelo preto me ficasse bem – concluiu Spence.
– Concordo – disse Poirot. – O cabelo grisalho dá-lhe um ar muito
distinto.
– Nunca pensaria em mim como um homem distinto.
– Eu penso em si dessa forma. Porque veio viver para Woodleigh
Common?
– Na verdade, vim para cá para me juntar a uma irmã minha. Ela perdeu o
marido, os filhos são casados e vivem no estrangeiro, um na Austrália e o
outro na África do Sul. Por isso mudei-me para aqui. As reformas hoje em
dia não dão para muito, mas vivemos juntos muito confortavelmente. Venha
e sente-se.
Levou-o para o pequeno alpendre envidraçado, onde havia cadeiras e uma
ou duas mesas. O sol de outono batia de forma agradável naquele retiro.
– Que lhe trago? – disse Spence. – Aqui não há luxos, receio. Não há
groselha negra, nem xarope de rosa mosqueta, nem nenhuma das suas
coisas de marca. Cerveja? Ou quer que peça a Elspeth que lhe faça uma
chávena de chá? Ou então posso arranjar-lhe um shandy, ou Coca-Cola, ou
um chocolate quente se quiser. A minha irmã, a Elspeth, é uma apreciadora
de chocolate quente.
– É muito gentil. Para mim, acho que um shandy. Ginger ale e cerveja? É
isso, não é?
– Exatamente.
Entrou na casa e voltou pouco tempo depois com duas grandes canecas de
vidro.
– Faço-lhe companhia – disse ele.
Puxou uma cadeira até à mesa e sentou-se, colocando os dois copos em
frente de si e de Poirot.
– O que foi que disse agora mesmo? – disse, levantando o copo. – Não
diremos «um brinde ao crime». Já não tenho nada a ver com o crime, se
refere o crime que acho que refere, o que de facto creio que tem de ser,
porque não me recordo de algum outro crime recente. Não gosto do tipo
específico de assassinato que acaba de acontecer.
– Não. Não me parecia que gostasse.
– Estamos a falar da criança a quem meteram a cabeça num balde?
– Sim – disse Poirot –, é disso que estou a falar.
– Não sei porque vem falar comigo – disse Spence. – Hoje em dia não
tenho nada a ver com a polícia. Tudo isso terminou há muitos anos.
– Uma vez polícia – disse Hercule Poirot – sempre polícia. Isto é, há
sempre o ponto de vista do polícia por detrás do ponto de vista do homem
comum. Eu sei, eu que falo consigo. Também eu comecei na polícia do meu
país.
– Sim, pois foi. Lembro-me agora de mo ter dito. Bem, suponho que a
nossa perspetiva é um pouco tendenciosa, mas há muito tempo que não
tenho nenhuma ligação ativa.
– Mas ouve os mexericos – disse Poirot. – Tem amigos no ofício. Ouvirá
o que eles pensam ou suspeitam, ou o que sabem.
Spence suspirou.
– Sabe-se demasiado – disse ele –, é um dos problemas hoje em dia. Há
um crime, um crime com um padrão familiar, e sabe-se, isto é, os polícias
no ativo sabem, com alguma certeza, quem cometeu esse crime. Não dizem
aos jornais mas fazem os seus inquéritos, e sabem. Mas se irão além disso...
bem, as coisas têm as suas dificuldades.
– Quer dizer as esposas e as namoradas e assim?
– Em parte, sim. No fim, talvez, apanha-se o culpado. Por vezes passa um
ano ou dois. Eu diria que, de modo geral, Poirot, mais raparigas hoje em dia
casam com más rês do que no meu tempo.
Hercule Poirot pensou, puxando os seus bigodes.
– Sim – disse –, posso ver que assim seja. Suspeito que as raparigas
sempre gostaram de maus elementos, como diz, mas no passado havia mais
salvaguardas.
– Tem razão. Olhavam por elas. As mães olhavam por elas. As tias e
irmãs mais velhas olhavam por elas. As irmãs e irmãos mais novos sabiam
o que se passava. Os pais não eram avessos a expulsar os jovens não
recomendáveis de casa ao pontapé. Por vezes, claro, as raparigas fugiam
com um dos maus elementos. Hoje em dia, nem há necessidade de fazer
isso. A mãe não sabe com quem a rapariga sai, não dizem ao pai com quem
a rapariga sai, os irmãos sabem com quem a rapariga sai mas pensam
«problema dela». Se os pais não consentem, o casal vai a um juiz da paz e
consegue autorização para casar, e então, quando o jovem que toda a gente
sabe ser um mau elemento prova a todos, incluindo à sua esposa, que é um
mau elemento, já a procissão vai no adro! Mas amor é amor; a rapariga não
quer pensar que o seu Henry tem esses hábitos repugnantes, essas
tendências criminosas, e tudo o mais. Mentirá por ele, jurará que o branco é
negro e muito mais. Sim, é difícil. Difícil para nós, quero eu dizer. Bem,
não adianta continuar a dizer que as coisas eram melhores antigamente.
Talvez fôssemos só nós que pensávamos que o eram. Afinal, Poirot, como
se envolveu em tudo isto? Esta não é a sua zona do país, pois não? Sempre
pensei que vivesse em Londres. Quando o conheci vivia.
– Ainda vivo em Londres. Envolvi-me nisto a pedido de uma amiga, Mrs.
Oliver. Lembra-se de Mrs. Oliver?
Spence ergueu a cabeça, fechou os olhos e fez um ar pensativo.
– Mrs. Oliver? Não me parece que me lembre.
– Escreve livros. Histórias de detetives. Conheceu-a, lembrar-se-á,
durante a época em que me convenceu a investigar o assassinato de Mrs.
McGinty. Não se terá esquecido de Mrs. McGinty?
– Santo Deus, não. Mas foi há muito tempo. Deu-me uma ajuda preciosa
nisso, Poirot, de facto muito preciosa. Fui procurá-lo em busca de ajuda, e
não me desiludiu.
– Senti-me honrado, lisonjeado, por me consultar – disse Poirot. – Devo
dizer que desesperei uma vez ou outra. O homem que devíamos salvar, cujo
pescoço devíamos salvar, naqueles tempos, se não me engano, foi há tempo
suficiente para isso... era um homem pelo qual era excessivamente difícil
fazer alguma coisa. O exemplo típico de como não fazer nada de útil por si
próprio.
– Casou com aquela rapariga, não casou? A doida. Não aquela esperta
com o cabelo platinado. Como será que eles se deram? Ouviu alguma coisa
sobre isso?
– Não – disse Poirot. – Presumo que tudo corre bem para eles.
– Não entendo o que ela viu nele.
– É difícil – disse Poirot –, mas é um dos grandes consolos da Natureza
que um homem, por muito pouco atraente que seja, descubra ser atraente
para uma mulher. Só posso dizer ou esperar que tenham casado e vivido
felizes para sempre.
– Não me parece que tenham vivido felizes para sempre se foram
obrigados a viver com a mãe.
– Não, de todo – disse Poirot. – Ou o padrasto – acrescentou.
– Bem – disse Spence –, estamos aqui outra vez a falar dos velhos
tempos. Isso já passou. Sempre pensei que esse homem, agora não me
lembro do nome dele, deveria gerir uma agência funerária. Tinha o aspeto e
a atitude para isso. Talvez o tenha feito. A rapariga tinha dinheiro, não?
Sim, ele teria sido um belo agente funerário. Já o vejo, todo de negro, a
aceitar encomendas para o funeral. Talvez até se entusiasmasse sobre qual o
tipo de madeira usado para o caixão, olmo ou teca, ou o que quer que usem.
Mas nunca teria êxito a vender seguros ou propriedades. Bem, não
divaguemos.
Então disse subitamente:
– Mrs. Oliver. Ariadne Oliver. Maçãs. Foi assim que ela se envolveu
neste caso? Enfiaram a cabeça daquela pobre criança debaixo de água num
balde com maçãs flutuantes, não foi, numa festa? Foi isso que interessou
Mrs. Oliver?
– Não creio que as maçãs a tenham atraído de um modo especial – disse
Poirot –, mas ela estava na festa.
– Disse que ela vivia aqui?
– Não, não vive aqui. Estava hospedada com uma amiga, uma Mrs.
Butler.
– Butler? Sim, conheço-a. Vive não muito longe da igreja. Viúva. O
marido era piloto comercial. Tem uma filha. Uma rapariga bonita. Boas
maneiras. Mrs. Butler é uma mulher bastante atraente, não acha?
– Mal a conheço, mas sim, achei que era muito atraente.
– E como lhe diz isto respeito, Poirot? Não estava cá quando aconteceu,
estava?
– Não. Mrs. Oliver procurou-me em Londres. Estava perturbada, muito
perturbada. Queria que eu fizesse alguma coisa.
Um leve sorriso brotou no rosto do comissário Spence.
– Estou a ver. A velha história de sempre. Eu também o procurei porque
queria que fizesse alguma coisa.
– E eu levei as coisas um passo adiante – disse Poirot. – Eu vim procurá-
lo a si.
– Porque quer que eu faça alguma coisa? Digo-lhe que não há nada que
eu possa fazer.
– Há, sim. Pode falar-me das pessoas. As pessoas que vivem aqui. As
pessoas que foram à festa. Os pais e as mães das crianças que estavam na
festa. A escola, os professores, os advogados, os médicos. Alguém, durante
uma festa, levou uma criança a ajoelhar-se, talvez rindo-se, a dizer «Vou
mostrar-te a melhor maneira de agarrar uma maçã com os dentes. Sei um
truque». E depois ele ou ela, seja quem for, pôs uma mão na cabeça dessa
rapariga. Não deve ter havido muita luta ou barulho, nem nada desse tipo.
– Um caso medonho – disse Spence. – Foi o que pensei quando ouvi falar
dele. O que quer saber? Estou aqui há um ano. A minha irmã está aqui há
mais tempo, dois ou três anos. Não é uma comunidade grande. Não é
particularmente estável. As pessoas vão e vêm. O marido tem um emprego
em Medchester ou em Great Canning, ou um dos locais próximos. Os filhos
frequentam a escola aqui. Depois, talvez o marido mude de emprego e vão
para outro sítio. Não é uma comunidade fixa. Algumas das pessoas estão
aqui há muito tempo, Miss Emlyn, a professora da escola, está e o Dr.
Ferguson também. Mas, em geral, há umas flutuações.
– Suponho – disse Hercule Poirot – que, concordando consigo que este
caso é medonho, eu poderia esperar que soubesse quem são as pessoas
medonhas aqui.
– Sim – disse Spence. – É a primeira coisa que uma pessoa procura, não
é? E o que procuramos a seguir neste tipo de coisa é um adolescente mau.
Quem quer estrangular, afogar ou livrar-se de uma catraia de treze anos?
Não parece haver provas de ataque sexual ou algo do género, que seria a
primeira coisa a procurar. Há muito disso em qualquer cidade pequena ou
vila, hoje em dia. Mais uma vez, creio que há mais do que havia na minha
juventude. Tínhamos os nossos perturbados mentais, ou seja lá como se
chamam, mas não tantos como agora. Suponho que há mais que são
libertados do sítio onde deveriam ser mantidos em segurança. Todos os
nossos asilos estão cheios; sobrelotados; então os médicos dizem «Deixem-
no a ele ou ela viver uma vida normal. Viver com os familiares», etc. E
depois o patife, ou o pobre doente, como quiser vê-lo, é acometido de novo
pelo desejo e outra jovem mulher sai para um passeio e é encontrada numa
saibreira, ou comete a tolice de aceitar boleia num carro. As crianças não
vêm para casa da escola porque aceitaram uma boleia de um estranho,
apesar de as avisarem para não o fazer. Sim, isso acontece muito, hoje em
dia.
– Isso parece adaptar-se ao padrão que temos aqui?
– Bem, é a primeira coisa em que se pensa – disse Spence. – Alguém
estava na festa e sentiu o impulso, digamos. Talvez o tenha feito antes,
talvez apenas o tenha desejado fazer. Eu diria que, de um modo geral,
deveria haver um episódio passado de ataque a uma criança algures. Que eu
saiba, ninguém avançou com nada desse tipo. Não oficialmente, quero eu
dizer. Havia dois da faixa etária certa na festa. O Nicholas Ransom, um
rapaz bem-parecido, de dezassete ou dezoito anos. Ele seria da idade certa.
É da costa leste ou algo assim, creio. Parece ser decente. Parece normal,
mas quem sabe? E há o Desmond, que foi uma vez sinalizado para fazer um
exame psiquiátrico, mas não diria que fosse algo digno de nota. Tem de ser
alguém que estava na festa, apesar de naturalmente supor que qualquer um
poderia ter entrado, vindo de fora. Uma casa não está habitualmente
trancada durante uma festa. Há uma porta ou janela lateral aberta. Suponho
que uma das nossas pessoas desaparafusadas poderia ter vindo ver o que se
passava e ter-se esgueirado. Um risco bastante grande. Concordaria uma
criança, uma criança que tivesse ido a uma festa, em jogar jogos com
alguém que não conhecia? Seja como for, ainda não explicou o que o traz
ao caso, Poirot. Disse que foi Mrs. Oliver. Alguma das ideias malucas dela?
– Não exatamente uma ideia maluca – disse Poirot. – É verdade que os
escritores são dados a ideias malucas. Ideias que talvez sejam muito
improváveis. Mas isto foi algo que ela simplesmente ouviu a rapariga dizer.
– O quê, a criança, a Joyce?
– Sim.
Spence inclinou-se para a frente e olhou para Poirot interrogativamente.
– Vou contar-lhe.
Calma e sucintamente, contou a história como Mrs. Oliver lhe havia
contado.
– Estou a ver – disse Spence, afagando o bigode. – A rapariga disse isso?
Disse que tinha visto um assassinato ser cometido. Disse quando ou como?
– Não – disse Poirot.
– O que antecedeu isso?
– Creio que um comentário sobre os assassinatos nos livros de Mrs.
Oliver. Alguém disse algo acerca disso a Mrs. Oliver. Uma das crianças,
creio, disse algo sobre não haver sangue suficiente nos livros dela ou
cadáveres suficientes. E então a Joyce falou e disse que vira uma vez um
assassinato.
– Gabou-se disso? É a impressão que me está a dar.
– É essa a impressão que Mrs. Oliver teve. Sim, gabou-se disso.
– Poderia não ser verdade.
– Poderia não ser verdade de todo – disse Poirot.
– As crianças fazem muitas vezes declarações extravagantes quando
querem chamar a atenção sobre si próprias, ou para chocar. Por outro lado,
poderia ser verdade. É o que pensa?
– Não sei – disse Poirot. – Uma criança gaba-se de testemunhar um
assassinato. Apenas umas horas mais tarde, essa criança está morta. Tem de
admitir que há motivos para acreditar que poderia, é uma ideia rebuscada
talvez, mas poderia ser causa e efeito. Nesse caso, houve alguém que não
perdeu tempo.
– Sem dúvida – disse Spence. – Quantas pessoas estavam presentes
quando a rapariga fez a sua declaração em relação ao assassinato, sabe ao
certo?
– Mrs. Oliver apenas disse que pensava estarem lá catorze ou quinze
pessoas, talvez mais. Cinco ou seis crianças, cinco ou seis adultos que
organizavam o espetáculo. Mas para ter informação precisa devo confiar em
si, monsieur.
– Bem, isso será fácil – disse Spence. – Não digo que saiba de cabeça
neste instante, mas facilmente a obtenho junto dos habitantes. Quanto à
festa em si, já sei bastante bem. Preponderância de mulheres, no geral. Os
pais não costumam aparecer em festas de crianças. Mas espreitam, por
vezes, ou vêm buscar os filhos. O Dr. Ferguson estava lá, o vigário também.
Além disso, mães, tias, assistentes sociais, duas professoras da escola. Oh,
posso dar-lhe uma lista, cerca de catorze crianças. A mais nova não teria
mais de dez anos, indo até aos adolescentes.
– E suponho que teria conhecimento da lista de suspeitos entre eles? –
perguntou Poirot.
– Bem, não será tão fácil agora, se o que pensa for verdade. Quer dizer
que já não está a procurar uma personalidade com distúrbios sexuais. Está,
em vez disso, a procurar alguém que cometeu um assassinato e escapou,
alguém que nunca esperava ser descoberto e que teve subitamente um
grande choque.
«Raios me partam se consigo pensar em quem terá sido, de qualquer
modo. Não diria que tivéssemos prováveis assassinos por aqui. E de certeza
nada de espetacular em termos de assassinatos.»
– Pode haver prováveis assassinos em qualquer lugar – disse Poirot –, ou,
deveria dizer, assassinos improváveis, mas, mesmo assim, assassinos.
Porque assassinos improváveis não estão tão sujeitos a que se suspeite
deles. Provavelmente, não haverá muitas provas contra eles, e seria um
choque violento para tal assassino descobrir que, na realidade, houvera uma
testemunha do seu crime.
– Porque é que a Joyce não disse nada na altura? Isso é o que eu gostaria
de saber. Acha que foi subornada por alguém em troca do seu silêncio?
Seria decerto muito arriscado.
– Não – disse Poirot. – Pelo que disse Mrs. Oliver, creio que ela não se
apercebeu na altura de que o que estava a testemunhar era um assassinato.
– Oh, isso é com certeza bastante improvável – disse Spence.
– Não necessariamente – disse Poirot. – Era uma criança de treze anos
que falava. Lembrava-se de algo que vira no passado. Não sabemos quando,
exatamente. Poderia ter sido três ou mesmo quatro anos antes. Ela viu algo
mas não se apercebeu do seu verdadeiro significado. Sabe que isso se pode
aplicar a muitas coisas, mon cher. Algum acidente de carro um pouco
estranho. Onde parecesse que o condutor foi direto à pessoa que foi ferida
ou talvez morta. Uma criança poderia não se aperceber que foi propositado
na altura. Mas algo que alguém disse, ou alguma coisa que ela viu ou ouviu
um ano ou dois mais tarde, pode ter reavivado a sua memória e ela pensaria
talvez: «A ou B ou X fê-lo de propósito.» «Talvez fosse na verdade um
assassinato, e não apenas um acidente.» E há muitas outras possibilidades.
Algumas das quais, admito, sugeridas pela minha amiga, Mrs. Oliver, que
consegue facilmente imaginar doze soluções diferentes para tudo, algumas
não muito prováveis, mas todas elas pelo menos remotamente possíveis.
Comprimidos numa chávena de chá dada a alguém. Mais ou menos esse
tipo de coisa. Um empurrão num sítio perigoso, talvez. Não têm por aqui
falésias, o que é uma pena do ponto de vista das teorias prováveis. Sim,
creio que poderá haver uma abundância de possibilidades. Talvez fosse um
romance policial que a rapariga estivesse a ler e que a fizesse lembrar do
incidente. Poderia ser um incidente que a intrigasse na altura, e ela poderia
dizer, quando leu o romance: «Bem, isso pode ter sido tal coisa e tal pessoa.
Será que ele ou ela o fez propositadamente?» Sim, há muitas possibilidades.
– E veio aqui para se debruçar sobre elas?
– Seria do interesse público, acho eu, o senhor não acha? – disse Poirot.
– Ah, devemos ser tomados pelo espírito público, então, eu e o senhor?
– Pode, pelo menos, dar-me informação – disse Poirot. – Conhece as
pessoas daqui.
– Farei o que puder – disse Spence. – E recrutarei a Elspeth. Não há muita
coisa que ela não saiba sobre pessoas.
8 Cume dos Pinheiros, traduzido do inglês. (N. do T.)
 
 
Capítulo 6
 
 
 
 
 

S atisfeito com o que conseguira, Poirot despediu-se do amigo.


A informação que desejava ser-lhe-ia fornecida, não tinha dúvidas
quanto a isso. Conseguira despertar o interesse de Spence. E Spence, uma
vez no encalço de uma pista, não a abandonava. A sua reputação como
oficial de alta patente da divisão de investigação criminal, agora na reforma,
tê-lo-ia sem dúvida ajudado a fazer amigos nas forças policiais envolvidas.
E, em seguida, pensou Poirot ao consultar o seu relógio, encontrar-se-ia
com Mrs. Oliver dentro de exatamente dez minutos à porta de uma casa
chamada Apple Trees. Na verdade, o nome parecia estranhamente
apropriado.
Na realidade, pensou Poirot, não parecia conseguir escapar às maçãs.
Nada poderia ser mais agradável do que uma sumarenta maçã inglesa, e, no
entanto, aqui estavam maçãs misturadas com vassouras, bruxas,
superstições antigas, e uma criança assassinada.
Seguindo o caminho que lhe fora indicado, Poirot chegou pontualmente a
uma casa de tijolo vermelho ao estilo georgiano, cercada por uma sebe de
faia bem-arranjada e um jardim agradável que era possível vislumbrar para
lá desta.
Estendeu a mão, levantou o trinco e entrou pelo portão de ferro forjado,
onde havia uma tabuleta com «Apple Trees» escrito. Um caminho levava à
porta da entrada. Parecendo um daqueles relógios suíços de onde saem
automaticamente figuras de uma porta por cima do mostrador, a porta abriu-
se e Mrs. Oliver assomou aos degraus.
– É absolutamente pontual – disse ela ansiosa. – Esperava por si à janela.
Poirot virou-se e fechou o portão atrás de si com cuidado. Em
praticamente todas as ocasiões em que se encontrara com Mrs. Oliver, quer
por combinação quer por acidente, o tema das maçãs parecia ser
apresentado de imediato. Ela estava a comer uma maçã, ou teria acabado de
comer uma maçã, como o testemunhava um caroço de maçã aninhado no
seu peito amplo, ou trazia consigo um cesto de maçãs. Mas hoje não havia
sinais de maçãs. Muito correto, pensou Poirot com aprovação. Teria sido de
muito mau gosto roer uma maçã aqui, na cena do que fora não só um crime
mas uma tragédia também. Que mais poderia ser senão isso, pensou Poirot.
A morte súbita de uma criança de apenas treze anos. Não gostava de pensar
nisso, e como não gostava de pensar nisso estava ainda mais decidido que
era nisso que iria pensar até que, de uma forma ou de outra, a luz brilharia
na escuridão e ele veria claramente o que viera ver ali.
– Não sei porque não fica com a Judith Butler – disse Mrs. Oliver – em
vez de ficar numa casa de hóspedes de quinta categoria.
– Porque é melhor que eu analise as coisas com um certo grau de
distanciamento – disse Poirot. – Uma pessoa não se deve envolver, sabe.
– Não vejo como pode evitar envolver-se – disse Mrs. Oliver. – Tem de
ver toda a gente e falar com eles, não tem?
– Isso com toda a certeza – disse Poirot.
– Com quem falou até agora?
– Com o meu amigo, o comissário Spence.
– Como é que ele está? – disse Mrs. Oliver.
– Mais velho – disse Poirot.
– Naturalmente – disse Mrs. Oliver –, o que esperava? Está mais surdo,
ou mais cego ou mais gordo ou mais magro?
Poirot pensou.
– Perdeu algum peso. Usa óculos para ler o jornal. Não creio que esteja
surdo, pelo menos que se note.
– E o que pensa ele de tudo isto?
– A madame vai muito depressa – disse Poirot.
– E o que vão ele e o senhor fazer, exatamente?
– Planeei a minha agenda – disse Poirot. – Primeiro vi e consultei o meu
velho amigo. Pedi-lhe que me obtivesse alguma informação que eu de outra
forma não obteria.
– Quer dizer que os polícias de cá são amigos dele e que ele conseguirá
muita informação privilegiada através deles?
– Bem, eu não o diria exatamente dessa forma, mas, sim, é algo parecido
com isso que tenho pensado.
– E depois disso?
– Vim aqui vê-la, madame. Devo ver o sítio onde esta coisa aconteceu.
Mrs. Oliver virou a cabeça e olhou para a casa.
– Não parece ser o tipo de casa onde aconteceria um assassinato, pois
não? – perguntou ela.
Poirot pensou outra vez: Que instinto certeiro que ela tem!
– Não – disse ele –, não parece nada esse tipo de casa. Depois de ver
onde, irei consigo ver a mãe da criança falecida. Ouvirei o que ela me dirá.
Esta tarde o meu amigo Spence marcará um encontro para que eu fale com
o inspetor local a uma hora conveniente. Também gostaria de falar com o
médico de cá. E possivelmente a diretora da escola. Às seis da tarde tomarei
chá e comerei salsichas com o meu amigo Spence e a sua irmã, de novo na
casa deles, e discutiremos.
– Que mais acha que ele lhe poderá dizer?
– Quero conhecer a sua irmã. Vive aqui há mais tempo do que ele. Veio
para cá quando o marido morreu. Ela talvez conheça as pessoas daqui
bastante bem.
– Sabe o que parece? – disse Mrs. Oliver. – Um computador. Sabe. Está a
programar-se. É assim que se diz, não é? Está a introduzir todas estas coisas
o dia todo e depois vai ver o que sai.
– É sem dúvida uma ideia – disse Poirot, com algum interesse. – Sim,
sim, eu faço o papel do computador. Uma pessoa introduz a informação...
– E supondo que obtém as respostas erradas?
– Isso seria impossível – disse Hercule Poirot. – Os computadores não
fazem esse tipo de coisa.
– Não o devem fazer – disse Mrs. Oliver –, mas surpreendê-lo-iam as
coisas que acontecem por vezes. A minha última conta de eletricidade, por
exemplo. Sei que há um provérbio que diz «errar é humano», mas um erro
humano é insignificante comparado com o que um computador pode fazer,
se o tentar. Entre e venha conhecer Mrs. Drake.
Mrs. Drake era realmente excecional, pensou Poirot. Era uma mulher
bonita e alta com quarenta e tal anos, o seu cabelo louro estava a ficar
ligeiramente grisalho, os seus olhos eram de um azul brilhante, e emanava
competência da cabeça aos pés. Qualquer festa organizada por ela teria de
ser um sucesso. No salão, aguardava-os um tabuleiro de café matinal com
dois biscoitos açucarados.
Viu que Apple Trees era uma casa muito bem mantida. Estava bem
mobilada, com tapetes de excelente qualidade, tudo estava
escrupulosamente polido e limpo, e o facto de não ter praticamente nenhum
objeto de interesse marcante não era prontamente percetível. Não era de
esperar. As cores dos cortinados eram agradáveis mas convencionais.
Poderia ser alugada a qualquer momento a um inquilino desejável, por uma
renda alta, sem que fosse necessário arrumar algum tesouro ou fazer alguma
alteração à disposição do mobiliário.
Mrs. Drake cumprimentou Mrs. Oliver e Poirot, e escondeu quase por
completo o que Poirot não pôde evitar de suspeitar que fosse um sentimento
de irritação, suprimido com vigor, face à situação em que encontrava como
a anfitriã de um evento social em que algo tão antissocial como um
assassinato havia acontecido. Ele suspeitou que, como um membro
proeminente da comunidade de Woodleigh Common, ela possuía a sensação
infeliz de ter dado mostras de incompetência. O que acontecera não deveria
ter acontecido. A outra pessoa, na casa de outra pessoa, sim. Mas numa
festa de crianças, combinada por ela, dada por ela, organizada por ela, nada
disto deveria ter acontecido. De alguma forma, ela dever-se-ia ter
certificado de que não acontecesse. E Poirot suspeitava também que ela
pesquisava a sua mente em busca de um motivo. Não tanto um motivo para
que o assassinato ocorresse, mas para descobrir e identificar alguma
incapacidade da parte de alguém que a ajudara e que, por alguma
incompetência ou falta de perceção, falhara ao não ver que algo assim
poderia acontecer.
– M. Poirot – disse Mrs. Drake na sua voz bem-falante, que Poirot pensou
ser agradável numa pequena sala de palestras ou no salão da vila. – Estou
tão contente por ter vindo. Mrs. Oliver disse-me o quão valiosa a sua ajuda
será para nós nesta crise terrível.
– Fique descansada, madame, farei o que puder, mas, como sem dúvida
sabe pela sua experiência de vida, vai ser um caso difícil.
– Difícil? – disse Mrs. Drake. – Claro que vai ser difícil. Parece incrível,
absolutamente incrível, que uma coisa tão medonha pudesse acontecer.
Suponho – acrescentou – que a polícia possa saber alguma coisa? O
inspetor Raglan tem uma reputação local muito boa, creio. Se deveriam
chamar a Scotland Yard ou não, não sei. A ideia parece ser a de que a morte
desta pobre criança deve ter um alcance local. Não preciso de lhe dizer, M.
Poirot, afinal de contas, o senhor lê os jornais como eu, que tem havido
muitas tristes fatalidades com crianças por toda a província. Parecem ser
cada vez mais frequentes. A instabilidade mental parece estar a aumentar,
mas apesar disso devo dizer que as mães e as famílias em geral não cuidam
das crianças como devem, como o faziam antes. As crianças saem da escola
e vão para casa sozinhas, em noites escuras, vão sozinhas em manhãs
escuras. E as crianças, por mais que sejam avisadas, são infelizmente muito
tolas quando se trata de lhes oferecerem boleia num carro vistoso.
Acreditam no que lhes dizem. Calculo que isso não se possa evitar.
– Mas o que aconteceu aqui, madame, foi de uma natureza
completamente diferente.
– Oh, eu sei, eu sei. Por isso utilizei o termo incrível. Ainda não acredito
totalmente – disse Mrs. Drake. – Estava tudo sob controlo. Todos os
preparativos feitos. Tudo corria na perfeição, de acordo com os planos.
Parece... parece incrível. Pessoalmente, penso que tem de haver o que
chamo de interferência exterior neste caso. Alguém entrou na casa, o que
não foi difícil dadas as circunstâncias, alguém com uma mente altamente
perturbada, suponho eu, o tipo de pessoas que são libertadas dos asilos
apenas por não haver lá espaço para elas, pelo que vejo. Hoje em dia, tem
de se estar sempre a criar espaço para doentes novos. Alguém que
espreitasse via que estava a decorrer uma festa de crianças, e este pobre
desgraçado... se é que se pode sentir pena dessas pessoas, eu pessoalmente
acho muito difícil, atraiu a criança de alguma forma e matou-a. Não se
pensa que uma coisa assim possa acontecer, mas aconteceu.
– Talvez me possa mostrar onde...
– É claro. Mais café?
– Não, obrigado.
Mrs. Drake levantou-se.
– A polícia parece pensar que aconteceu enquanto decorria o Snapdragon.
Isso foi na sala de jantar.
Ela atravessou o átrio, abriu a porta e, com a atitude de quem fazia as
honras numa mansão senhorial ao receber uma excursão, indicou a mesa de
jantar grande e as cortinas de veludo.
– Aqui estava escuro, claro, com a exceção da travessa que ardia. E
agora...
Conduziu-os através do átrio e abriu a porta de uma sala pequena com
poltronas, gravuras relacionadas com desporto e estantes de livros.
– A biblioteca – disse Mrs. Drake, e estremeceu ligeiramente. – O balde
estava aqui. Num lençol de plástico, claro...
Mrs. Oliver não os acompanhara à sala. Estava no átrio.
– Não consigo entrar – disse ela a Poirot. – Faz-me pensar demasiado no
caso.
– Agora não há nada para ver – disse Mrs. Drake. – Quero dizer, estou
apenas a mostrar-lhe onde, como me pediu.
– Imagino – disse Poirot – que havia água, uma grande quantidade de
água.
– Havia água no balde, claro – disse Mrs. Drake.
Ela olhou para Poirot como se pensasse que ele não era bom da cabeça.
– E havia água no lençol. Se a cabeça da criança foi empurrada para
debaixo de água, haveria muita água salpicada por toda a parte.
– Oh sim. Mesmo enquanto o jogo das maçãs decorria, o balde teve de ser
enchido uma ou duas vezes.
– E a pessoa que o encheu? Essa pessoa ficou molhada, supõe-se.
– Sim, sim, suponho que sim.
– Não repararam particularmente nisso?
– Não, não, o inspetor perguntou-me isso. Sabe, no fim do serão quase
toda a gente estava desalinhada ou transpirada, ou cheia de farinha. Não
parece haver pistas úteis aqui, de todo. Pelo menos, a polícia não acha que
haja.
– Não – disse Poirot. – Suponho que a única pista era a própria criança.
Espero que me conte tudo o que sabe sobre ela.
– Sobre a Joyce?
Mrs. Drake pareceu algo surpreendida. Foi como se Joyce estivesse, na
sua mente, tão afastada de tudo que ela se surpreendeu por lha lembrarem.
– A vítima é sempre importante – disse Poirot. – Sabe, a vítima é muitas
vezes a causa do crime.
– Bem, imagino que sim, estou a perceber – disse Mrs. Drake, que
claramente não percebia. – Voltamos para o salão?
– E então pode falar-me da Joyce – disse Poirot.
Sentaram-se de novo no salão.
Mrs. Drake parecia desconfortável.
– Na verdade, não sei o que espera que diga, M. Poirot – disse ela. – Com
certeza que pode obter toda a informação da polícia ou da mãe da Joyce.
Pobre mulher, será doloroso para ela, sem dúvida, mas...
– Mas o que eu quero – disse Poirot – não é o retrato de uma filha morta
feito pela mãe. Mas sim uma opinião clara e imparcial de alguém que tem
um bom conhecimento da natureza humana. Eu diria que a madame tem
sido uma trabalhadora ativa em muitas áreas de assistência social aqui.
Ninguém poderia, melhor do que a madame, resumir o carácter e o feitio de
alguém que conhece.
– Bem, é um pouco difícil. Quer dizer, crianças daquela idade... ela tinha
treze anos, creio, doze ou treze... há certas idades em que são todas muito
semelhantes.
– Ah, não, certamente que não – disse Poirot. – Há grandes diferenças de
carácter, de feitio. Gostava dela?
Mrs. Drake pareceu achar a pergunta embaraçosa.
– Bem, é claro que eu... gostava dela. Bem, quero dizer, eu gosto de todas
as crianças. A maior parte das pessoas gosta.
– Ah, aí eu não concordo consigo – disse Poirot. – Eu considero algumas
crianças bastante desagradáveis.
– Bem, concordo que hoje em dia não são muito bem-educadas. Parece
que se deixa tudo nas mãos da escola, e é claro que levam vidas muito
permissivas. Escolhem os seus próprios amigos e... hum... oh, realmente,
M. Poirot.
– Era uma criança simpática ou não? – insistiu Poirot.
Mrs. Drake olhou-o e demonstrou censura.
– Tem consciência, M. Poirot, de que a pobre criança está morta.
– Morta ou viva, é relevante. Talvez se ela fosse uma criança simpática,
ninguém a quisesse matar, mas se ela não fosse uma criança simpática,
alguém poderia querer matá-la, e talvez o fizesse...
– Bem, suponho... decerto não é uma questão de simpatia, pois não?
– Poderia ser. Também me disseram que ela se gabou de ver um
assassinato a ser cometido.
– Oh, isso – disse Mrs. Drake com desprezo.
– Não levou essa declaração a sério?
– Claro que não. Foi uma coisa muito tola de se dizer.
– Como foi que ela o disse?
– Bem, acho que de facto estavam todos muito excitados com a presença
de Mrs. Oliver. É uma pessoa muito famosa, não se esqueça, minha querida.
– disse Mrs. Drake, dirigindo-se a Mrs. Oliver.
A palavra «querida» parecia estar incluída no seu discurso sem qualquer
entusiasmo.
– Não imagino que o assunto teria vindo à baila de outra forma, mas as
crianças estavam excitadas por conhecerem uma escritora famosa...
– Então a Joyce afirmou que vira um assassinato a ser cometido – disse
Poirot pensativo.
– Sim, disse algo do género. Não lhe prestei muita atenção.
– Mas lembra-se de ela o dizer?
– Oh sim, ela disse-o. Mas não acreditei – disse Mrs. Drake. – A irmã
dela calou-a logo, com toda a razão.
– E ela ficou incomodada com isso?
– Sim, continuou a dizer que era verdade.
– De facto, gabou-se disso.
– Se assim o diz, sim.
– Podia ser verdade, suponho – disse Poirot.
– Disparate! Não acredito nisso nem por um minuto – disse Mrs. Drake. –
É o tipo de estupidez que a Joyce diria.
– Era uma rapariga estúpida?
– Bem, era do tipo, creio, que gostava de se exibir – disse Mrs. Drake. –
Sabe, queria sempre mostrar-se mais ou fazer mais do que as outras
raparigas.
– Não tinha um carácter muito encantador – disse Poirot.
– Não, de todo – disse Mrs. Drake. – Era realmente do tipo que se tem de
mandar calar a toda a hora.
– O que disseram as outras crianças que lá estavam? Ficaram
impressionadas?
– Riram-se dela – disse Mrs. Drake. – Claro que isso só piorou as coisas.
– Bem – disse Poirot, enquanto se levantava –, fico contente por ter a sua
garantia quanto a esse ponto. – Inclinou-se educadamente sobre a mão dela.
– Adeus, madame, muito obrigado por me permitir que visse o cenário
desta muito desagradável ocorrência. Espero que não lhe tenha trazido
lembranças desagradáveis de forma demasiado definitiva.
– Claro – disse Mrs. Drake – que é muito doloroso lembrar-me de algo
deste tipo. Eu tinha tantas esperanças de que a nossa festinha corresse bem.
De facto, estava a correr bem e toda a gente parecia estar a divertir-se muito
até que esta coisa terrível aconteceu. No entanto, a única coisa que se pode
fazer é tentar esquecer. Claro, é uma pena que a Joyce tenha feito aquele
comentário pateta sobre ver um assassinato.
– Tiveram alguma vez um assassinato em Woodleigh Common?
– Que eu me lembre, não – disse Mrs. Drake com firmeza.
– Nesta época de maior criminalidade em que vivemos – disse Poirot –,
isso parece algo invulgar, não parece?
– Bem, creio que houve um camionista que matou um amigo, ou algo
desse tipo, e uma rapariguinha que encontraram enterrada numa saibreira a
cerca de vinte e cinco quilómetros daqui, mas isso foi há anos. Foram
ambos crimes sórdidos e desinteressantes. Sobretudo causados pela bebida,
penso eu.
– De facto, o tipo de assassinato que era improvável de ser testemunhado
por uma rapariga de doze ou treze anos.
– Muito improvável, diria eu. E dou-lhe a certeza, M. Poirot, que a
afirmação que a rapariga fez foi somente para impressionar os amigos e
talvez interessar uma personalidade famosa – olhou de uma forma um
pouco fria para Mrs. Oliver.
– De facto – disse Mrs. Oliver –, é culpa minha por ter estado na festa,
suponho.
– Oh, claro que não, minha querida, não quis dizer isso.
Poirot suspirou ao deixar a casa com Mrs. Oliver ao seu lado.
– Um local muito impróprio para um assassinato – disse ele, enquanto
caminhavam pelo trilho até ao portão. – Sem ambiente, sem um sentimento
inquietante de tragédia, sem uma personagem que valesse a pena assassinar,
apesar de que não posso evitar pensar que ocasionalmente alguém poderá
ter vontade de assassinar Mrs. Drake.
– Entendo-o. Por vezes ela consegue ser tremendamente irritante. Tão
satisfeita consigo própria e tão complacente.
– Como é o marido dela?
– Oh, é viúva. O marido morreu há um ano ou dois. Apanhou poliomielite
e era aleijado há anos. Penso que antes era banqueiro. Gostava muito de
jogos e desporto e detestou ter de desistir de tudo isso e ser um inválido.
– Sim, sem dúvida. – Ele regressou ao assunto da criança Joyce. – Diga-
me uma coisa. Entre os que a ouviram, alguém levou a sério a afirmação da
Joyce sobre o assassinato?
– Não sei. Não creio que alguém o fizesse.
– As outras crianças, por exemplo?
– Bem, na verdade pensava nelas. Não, não acho que acreditassem no que
a Joyce dizia. Pensaram que estava a inventar.
– Pensou isso também?
– Bem, na verdade pensei – disse Mrs. Oliver. – Claro – acrescentou –
que Mrs. Drake gostaria de acreditar que o assassinato nunca aconteceu,
mas não se pode chegar a esse ponto, pois não?
– Entendo que isto possa ser doloroso para ela.
– Suponho que o seja, de certa forma – disse Mrs. Oliver –, mas creio que
agora ela já começa a gostar bastante de falar sobre isso. Não penso que ela
goste de se manter sempre calada sobre isso.
– Gosta dela? – perguntou Poirot. – Acha que é uma mulher simpática?
– Faz perguntas muito difíceis. Perguntas embaraçosas – disse Mrs.
Oliver. – Parece que a única coisa pela qual se interessa é se as pessoas são
simpáticas ou não. A Rowena Drake é do tipo mandão, gosta de gerir as
coisas e as pessoas. Ela gere, mais ou menos, todo este sítio, parece-me.
Mas fá-lo de forma muito eficiente. Depende se se gosta de mulheres
mandonas. Eu nem por isso...
– E sobre a mãe da Joyce, que vamos ver agora?
– Ela é uma mulher bastante simpática. Algo estúpida, creio. Tenho pena
dela. É bastante horrível assassinarem-lhe uma filha, não é? E toda a gente
aqui pensa que foi um crime sexual, o que torna tudo pior.
– Mas não havia indícios de agressão sexual, ou assim penso.
– Não, mas as pessoas gostam de pensar que essas coisas acontecem.
Torna o caso mais excitante. Sabe como são as pessoas.
– Uma pessoa pensa que sabe, mas por vezes, bem... não sabemos de
todo.
– Não seria melhor se a minha amiga Judith Butler o levasse a ver Mrs.
Reynolds? Ela conhece-a muito bem, e eu sou uma estranha para ela.
– Faremos tudo como planeado.
– O programa de computador continuará – murmurou Mrs. Oliver com
rebeldia.
 
 
Capítulo 7
 
 
 
 
 

M rs.ar deReynolds contrastava por completo com Mrs. Drake. Não tinha um
competência ponderada, nem parecia provável que alguma vez o
teria.
Vestia de negro convencional, agarrava um lenço húmido com a mão
direita e estava claramente preparada para se desfazer em lágrimas a
qualquer instante.
– É muita bondade sua, sem dúvida – disse ela a Mrs. Oliver –, trazer um
amigo seu para nos ajudar. – Ela pousou uma mão húmida na de Poirot e
olhou para ele, duvidosa. – E se ele puder ajudar de qualquer forma ficarei
decerto muito grata, apesar de não ver o que alguém possa fazer. Nada a
trará de volta, pobre criança. É horrível pensar nisso. Como pôde uma
pessoa matar deliberadamente alguém daquela idade. Se ao menos ela
tivesse gritado. Se bem que suponho que ele empurrou a cabeça dela para
debaixo de água de imediato e a manteve lá. Oh, não suporto pensar nisso.
Não suporto mesmo.
– De facto, madame, não a quero afligir. Não pense nisso. Quero apenas
fazer-lhe umas perguntas que podem ajudar. Ajudar, é claro, a encontrar o
assassino da sua filha. Suponho que não fará ideia alguma de quem poderá
ser?
– Como poderia fazer? Eu nunca pensaria que houvesse alguém, alguém
que vivesse aqui, quero eu dizer. Este é um sítio tão agradável. E as pessoas
que vivem aqui são tão simpáticas. Imagino que foi alguém, algum homem
horrível que entrou por uma das janelas. Talvez tivesse tomado drogas ou
outra coisa. Viu a luz e que havia uma festa, e entrou sem autorização.
– Tem a certeza de que o atacante era um homem?
– Oh, deve ter sido – Mrs. Reynolds parecia chocada. – Tenho a certeza
de que foi. Não pode ter sido uma mulher, pois não?
– Uma mulher podia ser suficientemente forte.
– Bem, de certa forma creio que entendo o que quer dizer. Quer dizer que
as mulheres hoje em dia são mais atléticas. Mas não fariam uma coisa
destas, tenho a certeza disso. A Joyce era uma criança, de treze anos.
– Não a quero angustiar por ficar aqui demasiado tempo, madame, ou
fazer-lhe perguntas difíceis. Estou certo de que a polícia está a fazer isso em
algum outro sítio, e não a quero perturbar por falar de factos dolorosos. Em
relação a um comentário que a sua filha fez na festa. A madame não estava
lá, creio eu?
– Bem, não, não estava. Não me tenho sentido bem ultimamente, e as
festas de crianças podem ser muito cansativas. Levei-as lá de carro, e mais
tarde fui buscá-las. As três crianças foram juntas, sabe. A Ann, é a mais
velha, tem dezasseis anos, e o Leopold que tem quase onze. O que foi que a
Joyce disse que lhe interessa?
– Mrs. Oliver, que estava lá, dir-lhe-á as palavras exatas da sua filha. Ela
disse, creio, que em tempos viu um assassinato a ser cometido.
– A Joyce? Oh, ela não pode ter dito uma coisa dessas. Que assassinato
poderia ela possivelmente ter visto a ser cometido?
– Bem, toda a gente parece pensar que era bastante improvável – disse
Poirot. – Eu apenas gostaria de saber se a madame acha que era improvável.
Ela alguma vez falou consigo sobre isso?
– Ver um assassinato? A Joyce?
– Deve lembrar-se – disse Poirot – que o termo assassinato poderia ser
utilizado por alguém da idade da Joyce de uma forma vaga. Poderia ser
apenas uma questão de alguém ser atropelado por um carro, ou crianças a
lutarem e uma empurrar outra para um riacho ou de uma ponte abaixo. Algo
que não era sério, mas que teve um resultado infeliz.
– Bem, não consigo pensar em nada disso que tenha acontecido aqui e
que a Joyce pudesse ver, e ela certamente que não me disse nada acerca
disso. Ela devia estar a brincar.
– Ela estava muito segura – disse Mrs. Oliver. – Não parava de dizer que
era verdade e que o havia visto.
– Alguém acreditou nela? – perguntou Mrs. Reynolds.
– Não sei – disse Poirot.
– Não creio – disse Mrs. Oliver –, ou talvez não quisessem, bem,
encorajá-la ao dizer que acreditavam.
– Estavam mais dispostos a gozar com ela e dizer que estava a inventar –
disse Poirot, menos gentil do que Mrs. Oliver.
– Bem, isso não foi muito simpático da parte deles – disse Mrs. Reynolds.
– Como se a Joyce dissesse muitas mentiras sobre coisas dessas – estava
corada e indignada.
– Eu sei. Parece improvável – disse Poirot. – Seria mais possível que ela
tivesse cometido um erro, que tivesse visto algo que pensasse poder ser
descrito como um assassinato, não seria? Algum acidente, talvez.
– Ela ter-me-ia dito algo, nesse caso, não teria? – disse Mrs. Reynolds,
ainda indignada.
– Julgar-se-ia que sim – respondeu Poirot. – Ela não disse nada antes?
Pode ter-se esquecido. Especialmente se não foi nada de realmente
importante.
– Quando?
– Não sabemos – disse Poirot. – Essa é uma das dificuldades. Pode ter
sido há três semanas. Ou há três anos. Ela disse que era «bastante nova» na
altura. O que considera uma rapariga de treze anos bastante nova? Não
houve nenhum acontecimento sensacional por aqui, de que se lembre?
– Oh, não creio. Isto é, ouvem-se coisas. Ou leem-se nos jornais. Sabe,
quero dizer mulheres que são atacadas, ou uma rapariga e o seu namorado,
ou coisas desse tipo. Mas nada de importante que eu me lembre, nada pelo
qual a Joyce se interessasse ou prestasse atenção.
– Mas, se a Joyce disse que vira com certeza um assassinato, a madame
diria que ela pensava tê-lo visto de facto?
– Ela não o diria se não o pensasse, pois não? – disse Mrs. Reynolds. –
Penso que na verdade deve ter confundido as coisas.
– Sim, parece possível. Será – perguntou ele – que eu poderia falar com
os seus dois filhos, que também estiveram na festa?
– Bem, é claro, apesar de não saber o que pode esperar que lhe digam. A
Ann está lá em cima a estudar para os exames finais do secundário e o
Leopold está na garagem a montar um modelo de avião.
Leopold era um rapaz robusto e de rosto rechonchudo, completamente
absorto, ao que parecia, em construções mecânicas. Passaram alguns
instantes até que pôde prestar atenção às perguntas que lhe eram feitas.
– Estavas lá, não estavas, Leopold? Ouviste o que a tua irmã disse. O que
foi que ela disse?
– Oh, quer dizer sobre o assassinato? – O seu tom parecia ser de
aborrecimento.
– Sim, é isso que quero dizer – disse Poirot. – Ela disse que viu em
tempos um assassinato. Ela viu mesmo uma coisa dessas?
– Não, é claro que não viu – disse Leopold. – Quem diabos veria ela a ser
assassinado? Isso era típico da Joyce.
– O que queres dizer, típico dela?
– Exibir-se – disse Leopold, enrolando um pedaço de arame e respirando
de forma forçada pelo nariz ao concentrar-se. – Ela era uma rapariga muito
estúpida – acrescentou. – Era capaz de dizer qualquer coisa, sabe, para
chamar a atenção das pessoas.
– Então achas mesmo que ela inventou tudo?
Leopold virou o seu olhar para Mrs. Oliver.
– Acho que ela queria impressioná-la a si um pouco – disse ele. – Escreve
romances policiais, não escreve? Acho que ela se estava a armar para que a
senhora reparasse mais nela do que nos outros.
– Isso também seria típico da Joyce? – disse Poirot.
– Oh, ela diria qualquer coisa – disse Leopold. – Mas aposto que ninguém
acreditou nela.
– Estavas a ouvir? Tu achas que alguém acreditou?
– Bem, ouvi-a a dizê-lo, mas não prestei atenção. A Beatrice riu-se dela e
a Cathie também. Disseram «isso é uma patranha» ou algo assim.
Não parecia haver muito mais a extrair de Leopold. Foram ao andar de
cima, onde Ann, parecendo mais velha do que os seus dezasseis anos,
estava debruçada sobre uma mesa onde havia vários livros de estudo
espalhados em volta dela.
– Sim, eu estava na festa – disse.
– Ouviu a sua irmã dizer alguma coisa sobre ter visto um assassinato?
– Oh sim, ouvi-a. No entanto, não prestei atenção.
– Não pensou que fosse verdade?
– Claro que não era verdade. Não há assassinatos aqui há muito tempo.
Não creio que haja um assassinato a sério há anos.
– Então porque acha que ela o disse?
– Oh, ela gosta de se exibir. Quero dizer, gostava de se exibir. Uma vez
contou uma história maravilhosa sobre ter viajado para a Índia. O meu tio
estivera lá numa viagem, e ela fingiu ter ido com ele. Muitas raparigas na
escola acreditaram mesmo nela.
– Então não se lembra de nada que considere assassinatos que tenham
acontecido aqui nos últimos três ou quatro anos?
– Não, apenas os habituais – disse Ann. – Aqueles sobre os quais se pode
ler todos os dias no jornal. E não foram mesmo aqui em Woodleigh
Common. Foram principalmente em Medchester, acho eu.
– Quem é que você acha que matou a sua irmã, Ann? Devia conhecer os
amigos dela, conheceria qualquer pessoa que não gostasse dela.
– Não imagino quem a quisesse matar. Talvez alguém que fosse doido.
Mais ninguém quereria, pois não?
– Houve alguém que... discutisse com ela ou que não se desse bem com
ela?
– Quer dizer, se ela tinha algum inimigo? Acho que isso é tolice. As
pessoas não têm inimigos de verdade. Há apenas pessoas de quem não se
gosta.
Ao saírem do quarto, Ann disse:
– Não quero ser má com a Joyce, porque ela está morta, e não seria
correto, mas ela era de facto uma mentirosa terrível, sabe. Tenho pena de
dizer coisas sobre a minha irmã, mas é bem verdade.
– Estamos a fazer algum progresso? – disse Mrs. Oliver ao saírem da
casa.
– Nenhum – disse Hercule Poirot. – Isso é interessante – disse ele
pensativo.
Mrs. Oliver não parecia concordar com ele.
 
 
Capítulo 8
 
 
 
 
 

E ram seis horas em Pine Crest. Hercule Poirot colocou um pedaço de


salsicha na boca e seguiu-o com um sorvo de chá. O chá era forte, e para
Poirot particularmente intragável. A salsicha, por outro lado, era deliciosa.
Cozinhada na perfeição. Olhou com apreço para o outro lado da mesa, onde
Mrs. McKay presidia sobre o grande bule castanho.
Elspeth McKay era tão pouco parecida com o seu irmão, o comissário
Spence, de todas as formas possíveis. Onde ele era largo, ela era angular. O
seu rosto fino e aguçado olhava para o mundo comum com uma avaliação
astuta. Era magra como um espeto, e no entanto havia uma certa parecença
entre os dois. Principalmente os olhos e a linha do maxilar muito marcada.
Poderia confiar-se em qualquer um dos dois, pensou Poirot, para ter
discernimento e bom senso. Expressavam-se de diferentes maneiras, mas
isso era tudo. O comissário Spence expressava-se de forma lenta e
cuidadosa como resultado de pensamento ponderado e deliberação. Mrs.
McKay saltava, rápida e aguçada, como um gato sobre um rato.
– Muito depende – disse Poirot – do carácter desta criança, a Joyce
Reynolds. Isso é o que mais me intriga.
Olhou de forma interrogadora para Spence.
– Não se pode guiar por mim – disse Spence. – Eu não vivo aqui há
tempo suficiente. É melhor perguntar à Elspeth.
Poirot olhou para o outro lado da mesa, as suas sobrancelhas arqueadas
de um modo interrogador. Mrs. McKay foi tão direta na resposta como
habitualmente.
– Eu diria que ela era uma perfeita mentirosa – disse ela.
– Não uma rapariga em quem confiaria e em quem acreditaria?
Elspeth abanou a cabeça, decidida.
– Certamente que não. Contava uma patranha, e contava-a bem. Mas eu
nunca acreditaria nela.
– Contava-a com o objetivo de se exibir?
– Exatamente. Contaram-lhe a história indiana, não contaram? Muita
gente acreditou nisso, sabe. A família tinha ido de férias. Algures no
estrangeiro. Não sei se foram os pais ou os tios, mas foram para a Índia e
ela voltou dessas férias com mentiras sobre como a tinham levado com eles.
Um marajá e uma caçada ao tigre, e elefantes... ah, era bom de se ouvir e
muitos à sua volta acreditaram. Mas eu disse logo, está a contar mais do que
o que aconteceu. Podia ser, pensei eu ao início, que estivesse apenas a
exagerar. Mas acrescentava coisas à história de cada vez que a contava.
Muitos mais tigres do que os que eram possíveis. E elefantes também, já
agora. Já a ouvira contar patranhas antes.
– Sempre para chamar a atenção?
– Sim, nisso tem razão. Ela era pródiga em chamar a atenção.
– Porque uma criança contou uma história fantástica sobre uma viagem
que nunca fez – disse o comissário Spence –, não se pode dizer que cada
história que contasse fosse mentira.
– Podia não ser – disse Elspeth –, mas eu diria que a probabilidade é que
habitualmente fosse.
– Então acha que se a Joyce Reynolds se saísse com uma história de que
vira um assassinato a ser cometido, diria que provavelmente estava a mentir
e não acreditaria que a história fosse verdade?
– Isso é o que eu pensaria – disse Mrs. McKay.
– Podias estar enganada – disse o irmão.
– Sim – disse Mrs. McKay. – Qualquer um poder-se-ia enganar. É como a
história do rapaz e o lobo, que gritou tantas vezes «lobo, lobo», que quando
era um lobo de verdade, ninguém acreditou, e o lobo apanhou-o.
– Então para resumir...
– Eu ainda diria que o mais provável é que ela não estivesse a dizer a
verdade. Mas sou uma mulher justa. Podia estar a dizer. Pode ter visto
alguma coisa. Não tanto como disse que viu, mas alguma coisa.
– E fez com que a matassem – disse o comissário Spence. – Deves
lembrar-te disso, Elspeth. Ela fez com que a matassem.
– Isso é verdade – disse Mrs. McKay. – E é por isso que digo que talvez a
julgasse mal. E se o fiz, lamento. Mas pergunte a qualquer pessoa que a
conhecesse e dir-lhe-ão que as mentiras eram normais para ela. Ela estava
numa festa, lembre-se, e estava excitada. Quereria fazer-se notar.
– De facto, não acreditaram nela – disse Poirot.
Elspeth McKay abanou a cabeça, duvidosa.
– Quem poderia ela ter visto a ser assassinado? – perguntou Poirot.
Olhou para o irmão e para a irmã.
– Ninguém – disse Mrs. McKay, decidida.
– Devem ter ocorrido mortes aqui, nos últimos três anos.
– Oh, isso, naturalmente – disse Spence. – Apenas o habitual, velhos ou
inválidos, ou o que seria de esperar... ou talvez um atropelamento e fuga...
– Nenhumas mortes invulgares ou inesperadas?
– Bem – Elspeth hesitou. – Quero dizer...
Spence assumiu o controlo.
– Anotei aqui alguns nomes. – Empurrou o papel na direção de Poirot. –
Poupo-lhe o trabalho de andar por aí a fazer perguntas.
– São possíveis vítimas?
– Não diria tanto. Digamos que estão dentro dos limites da possibilidade.
Poirot leu em voz alta.
– Mrs. Llewellyn-Smythe. Charlotte Benfield. Janet White. Lesley Ferrier
– interrompeu-se, olhou para o outro lado da mesa e repetiu o primeiro
nome. – Mrs. Llewellyn-Smythe.
– Pode ser – disse Mrs. McKay. – Sim, pode ser que tenha alguma coisa.
– Acrescentou uma palavra que parecia ser «ópera».
– Ópera? – Poirot parecia confuso. Não ouvira falar de nenhuma ópera.
– Foi-se embora uma noite – disse Elspeth –, nunca mais se ouviu falar
dela.
– Mrs. Llewellyn-Smythe?
– Não, não. A rapariga da ópera. Ela poderia ter posto algo no remédio
muito facilmente. E recebeu todo aquele dinheiro, não foi? Ou pensou ela
na altura.
Poirot olhou para Spence em busca de esclarecimento.
– E nunca mais se ouviu falar dela – disse Mrs. McKay. – Essas raparigas
estrangeiras são todas iguais.
O significado da palavra «ópera» fez-se claro para Poirot.
– Uma au pair – disse ele.
– Isso mesmo. Viveu com a velha, e uma ou duas semanas depois de a
velha morrer, a rapariga au pair desapareceu.
– Foi com algum homem, diria eu – disse Spence.
– Bem, ninguém sabia nada dele, se foi esse o caso – disse Elspeth. – E
aqui há sempre muito sobre o que se falar. Habitualmente sabe-se quem
anda com quem.
– Alguém pensou que houve alguma coisa de errado acerca da morte de
Mrs. Llewellyn-Smythe? – perguntou Poirot.
– Não. Ela tinha problemas cardíacos. O médico tratava-a regularmente.
– Mas pô-la à cabeça da sua lista de possíveis vítimas, meu amigo?
– Bem, ela era uma mulher rica, muito rica. A morte dela não foi
inesperada mas foi súbita. Eu diria sem cerimónias que o Dr. Ferguson ficou
surpreendido, mesmo que apenas ligeiramente. Acho que esperava que ela
vivesse mais tempo. Mas os médicos têm essas surpresas. Ela não era do
tipo de fazer o que o médico mandasse. Disseram-lhe que não exagerasse,
mas ela fazia o que lhe dava na gana. Primeiro que tudo, era apaixonada
pela jardinagem, e isso não faz bem nenhum a cardíacos.
Elspeth McKay continuou a história.
– Ela veio para cá quando a saúde lhe faltou. Antes vivia no estrangeiro.
Veio para cá para estar próxima dos sobrinhos, Mr. e Mrs. Drake, e
comprou a Quarry House9. Uma casa vitoriana grande, que incluía uma
pedreira abandonada que a atraiu, pensando ver nela potencial. Gastou
milhares de libras para transformar a pedreira num jardim romântico ou seja
lá como se chama a coisa. Chamou um arquiteto paisagista de Wisley ou de
um desses sítios para o desenhar. Oh, posso dizer-lhe que é uma coisa digna
de se ver.
– Irei vê-lo – disse Poirot. – Quem sabe, pode dar-me ideias.
– Sim, eu se fosse a si iria. Vale a pena.
– E ela era rica, segundo diz? – perguntou Poirot.
– Viúva de um grande armador. Tinha rios de dinheiro.
– A morte dela não foi inesperada porque sofria do coração, mas foi
repentina – disse Spence. – Não se levantaram dúvidas de ter sido algo mais
do que causas naturais. Falha cardíaca, ou o nome mais longo que os
médicos usam. Qualquer coisa coronária.
– Não se pôs a questão de haver um inquérito?
Spence abanou a cabeça.
– Já aconteceu antes – disse Poirot. – Uma mulher idosa a quem
recomendam cuidados, não subir e descer escadas a correr, não fazer
jardinagem cansativa, etc., etc. Mas se há uma mulher enérgica que foi uma
entusiasta da jardinagem toda a vida e fez o que lhe apeteceu quase sempre,
então não dará a essas recomendações o devido respeito.
– Isso é bem verdade. Mrs. Llewellyn-Smythe fez da pedreira uma coisa
maravilhosa, ou melhor, o arquiteto paisagístico fê-lo. Ela vira alguns
jardins, na Irlanda, creio eu, e depois foi numa excursão do National Trust10,
de visita a jardins. Com isso em mente, transformaram aquele sítio. Oh sim,
é ver para crer.
– Então está aqui uma morte natural – disse Poirot –, certificada como tal
pelo médico local. É o mesmo médico que cá está agora? E que irei ver em
breve?
– O Dr. Ferguson, sim. É um homem de cerca de sessenta anos, bom
profissional e estimado por aqui.
– Mas suspeitam que a morte dela possa ter sido assassinato? Por alguma
outra razão para além das que já me deram?
– A rapariga da ópera, para começar – disse Elspeth.
– Porquê?
– Bem, deve ter falsificado o testamento. Quem o fez se não foi ela?
– Deve ter mais para me contar – disse Poirot. – O que é isso sobre um
testamento falsificado?
– Bem, houve uma certa agitação quando chegou a altura de homologar o
testamento da velha, ou lá como se diz.
– Era um testamento novo?
– Era o que chamam... algo que soa como um peixe11, um codi... codicilo.
Elspeth olhou para Poirot, que assentiu.
– Ela fizera testamentos antes – disse Spence. – Tudo muito parecido.
Doações a organizações de caridade, legados a antigos criados, mas a maior
parte da fortuna era sempre para o sobrinho dela e a esposa, que eram os
parentes mais próximos.
– E este codicilo específico?
– Deixava quase tudo à rapariga da ópera – disse Elspeth –, «pelos seus
cuidados dedicados e bondade». Algo desse género.
– Então fale-me mais da au pair.
– Ela era de um país qualquer do meio da Europa. Com um nome
comprido.
– Há quanto tempo estava com a velha senhora?
– Pouco mais de um ano.
– Chama-lhe sempre a velha. Que idade tinha ela?
– Sessenta e muitos. Sessenta e cinco, ou seis, digamos.
– Isso não é assim tão velho – disse Poirot, com simpatia.
– Fizera vários testamentos, pelo que se diz – disse Elspeth. – Como o
Bert lhe disse, eram todos parecidos. Deixava dinheiro a uma ou duas
organizações de caridade e depois talvez mudasse de caridades e deixasse
algumas outras lembranças a antigos criados e por aí fora. Mas a maior
parte do dinheiro ia sempre para o sobrinho e a esposa, e creio que para um
outro primo velho que, no entanto, já morrera pela altura da morte dela. Ela
deixou o bungalow que construíra ao tipo da jardinagem, para que lá
vivesse enquanto o desejasse, e alguns rendimentos pelos quais era
esperado que ele mantivesse o jardim da pedreira e permitisse que o público
o visitasse. Algo assim.
– Suponho que a família alegou que o equilíbrio da mente dela fora
perturbado, e que houvera alguma influência indevida?
– Creio que é provável que pudesse ter chegado a isso – disse Spence. –
Mas os advogados, como digo, rapidamente se ocuparam da falsificação.
Aparentemente, não era uma falsificação muito convincente. Descobriram-
na quase de imediato.
– Vieram à tona coisas que mostraram que a rapariga da ópera o poderia
ter feito com bastante facilidade – disse Elspeth. – Sabe, ela escrevia muitas
das cartas de Mrs. Llewellyn-Smythe por ela, e parece que Mrs. Llewellyn-
Smythe detestava enviar cartas datilografadas a amigos, e todas as coisas
desse tipo. Se não fosse uma carta de negócios, ela dizia «escreva à mão e
faça a sua letra o mais parecida que possa com a minha, e assine com o meu
nome». Mrs. Minden, a mulher da limpeza, ouviu-a dizer isso um dia, e
imagino que a rapariga se habituou a fazê-lo e a copiar a letra da sua patroa
e então ocorreu-lhe que poderia fazer isso e safar-se. E foi assim que tudo
aconteceu. Mas como lhe digo, os advogados foram mais espertos e
descobriram.
– Os advogados da própria Mrs. Llewellyn-Smythe?
– Sim. A Fullerton, Harrison e Leadbetter. Uma firma muito respeitável
de Medchester. Haviam sempre tratado dos seus assuntos legais. Enfim,
arranjaram peritos que se ocuparam disso e fizeram-se perguntas, a rapariga
foi interrogada e escapuliu-se. Um dia foi-se, e deixou metade das suas
coisas para trás. Eles preparavam-se para a acusar, mas ela não esperou por
isso. Fugiu. Na verdade, não é assim tão difícil sair deste país, se for feito
com tempo. Afinal, pode-se fazer viagens de um dia ao continente sem
passaporte, e tendo um acordo com alguém do outro lado, podem-se
organizar as coisas muito antes de haver qualquer alarido. Ela
provavelmente regressou ao seu país, mudou de nome, ou foi ao encontro
de amigos.
– Mas todos pensaram que Mrs. Llewellyn-Smythe morreu de causas
naturais? – perguntou Poirot.
– Sim, não penso que houvesse qualquer questão acerca disso. Digo
apenas que é possível porque, como disse, essas coisas já aconteceram antes
sem que o médico suspeitasse. Supondo que a rapariga, a Joyce, ouvira
algo, ouvira a au pair a dar remédios a Mrs. Llewellyn-Smythe e a velha a
dizer «este remédio tem um sabor diferente do habitual». Ou «este tem um
sabor amargo» ou «é estranho».
– Parece que estiveste lá em pessoa a ouvir, Elspeth – disse o comissário
Spence. – Isso é tudo imaginação tua.
– Quando morreu ela? – perguntou Poirot. – Manhã, noite, dentro de casa,
fora de casa, em casa, ou longe de casa?
– Oh, em casa. Viera de fazer coisas no jardim um dia, respirando com
dificuldade. Disse que estava muito cansada e foi deitar-se na cama. E, para
dizê-lo numa frase só, nunca mais acordou. O que é muito natural, ao que
parece, em termos médicos.
Poirot pegou num pequeno caderno. A página tinha já o cabeçalho
«Vítimas». Em baixo, escreveu «N.º 1 sugerido, Mrs. Llewellyn-Smythe».
Nas páginas seguintes do caderno escreveu os outros nomes que Spence lhe
dera. Disse, inquisitivamente:
– Charlotte Benfield?
Spence respondeu prontamente:
– Uma empregada de loja de dezasseis anos. Múltiplos ferimentos na
cabeça. Encontrada num caminho perto da floresta da pedreira. As suspeitas
recaíram sobre dois jovens. Ambos haviam saído com ela de vez em
quando. Não houve provas.
– Eles ajudaram a polícia nos inquéritos? – perguntou Poirot.
– É como diz. É a frase corriqueira. Não ajudaram muito. Estavam
assustados. Contaram algumas mentiras, contradisseram-se. Não
convenciam como prováveis assassinos. Mas qualquer um deles o poderia
ser.
– Como eram?
– Peter Gordon, vinte e um anos. Desempregado. Tivera um ou dois
empregos mas nunca os conseguira manter. Preguiçoso. Bastante bem-
parecido. Estivera em liberdade condicional uma vez ou duas por roubos
pequenos, coisas desse tipo. Nenhum registo prévio de violência. Dava-se
com um grupo algo desagradável de prováveis criminosos jovens, mas
habitualmente conseguia evitar sarilhos graves.
– E o outro?
– Thomas Hudd. Vinte anos. Gaguejava. Tímido. Neurótico. Queria ser
professor, mas não conseguiu. A mãe era viúva. Mãe-galinha. Não o
encorajava a ter amigas mulheres. Mantinha-o debaixo das suas saias o
mais possível. Ele trabalhava numa papelaria. Não havia nada de criminoso
contra ele, mas parecia haver uma possibilidade psicológica. A rapariga
provocava-o. Ciúmes poderiam ser um motivo, mas não houve provas para
apoiar uma acusação. Ambos tinham álibis. O de Hudd era a sua mãe. Ela
teria jurado por tudo neste mundo e no outro que ele esteve em casa com ela
toda a noite, e ninguém pode dizer o contrário, ou que o viu em qualquer
outro sítio, ou nas redondezas do assassinato. Foi dado um álibi ao jovem
Gordon por alguns dos seus amigos menos respeitáveis. Não valia muito,
mas não se poderia refutar.
– Quando aconteceu isto?
– Há dezoito meses.
– E onde?
– Num caminho, num campo não muito longe de Woodleigh Common.
– A mil e duzentos metros – disse Elspeth.
– Perto da casa da Joyce, da casa dos Reynolds?
– Não, foi do outro lado da vila.
– Parece improvável que tenha sido o assassinato do qual a Joyce falava –
disse Poirot, pensativo. – Se uma pessoa vê uma rapariga a ser atingida na
cabeça por um jovem é provável que pense em assassinato de imediato. Não
que espere um ano antes de começar a pensar que foi assassinato.
Poirot leu outro nome.
– Lesley Ferrier.
Spence falou novamente.
– Funcionário numa firma de advogados, de vinte e oito anos, empregado
pelos Messrs. Fullerton, Harrison e Leadbetter de Market Street, em
Medchester.
– Esses eram os advogados de Mrs. Llewellyn-Smythe, creio que disse.
– Sim. Os mesmos.
– E o que aconteceu ao Lesley Ferrier?
– Foi apunhalado pelas costas. Não muito longe do pub Green Swan. Diz-
se que andara de caso com a esposa do senhorio, Harry Griffin. Era bonita,
de facto ainda é. Está a ficar um pouco velha, talvez. Cinco ou seis anos
mais velha do que ele era, mas ela gostava deles novos.
– A arma?
– Não encontraram a faca. Diz-se que o Les acabara com ela e que
começara um caso com outra rapariga, mas nunca se descobriu ao certo
quem era a rapariga.
– Ah. E quem foi suspeito no caso? O senhorio ou a esposa?
– Isso mesmo – disse Spence. – Podia ter sido qualquer um deles. A
esposa parecia mais provável. Era meio cigana, e temperamental. Mas
houve outras possibilidades. O nosso Lesley não tinha uma vida inocente.
Meteu-se em sarilhos com vinte e poucos anos, ao aldrabar as suas contas
algures. Com uma pitada de falsificação. Diz-se que viera de uma família
despedaçada e tudo isso. Os patrões deram-lhe o seu apoio. Apanhou uma
sentença curta e foi contratado pela Fullerton, Harrison e Leadbetter quando
saiu da prisão.
– E depois disso endireitara-se?
– Bem, nada foi provado. Pareceu que sim, pelo menos no que dizia
respeito aos patrões, mas estivera envolvido em algumas transações
questionáveis com amigos. Ele é o que se poderia chamar uma má rês, mas
cuidadoso.
– Então a alternativa era?
– Que tivesse sido apunhalado por um dos seus parceiros menos
respeitáveis. Quando uma pessoa se envolve com um grupo desagradável,
está a pedir uma facada se os deixa ficar mal.
– Mais alguma coisa?
– Bem, ele tinha muito dinheiro na conta bancária. Depositada em
numerário. Nada que indicasse de onde viera. Isso era suspeito, por si só.
– Talvez roubado da Fullerton, Harrison e Leadbetter? – sugeriu Poirot.
– Eles dizem que não. Tiveram um contabilista a trabalhar nisso, a
verificar as coisas.
– E a polícia não teve nenhuma ideia quanto à proveniência do dinheiro?
– Não.
– Mais uma vez – disse Poirot –, não creio que seja o assassinato da
Joyce.
Ele leu o último nome:
– Janet White.
– Encontrada estrangulada num caminho que era um atalho da escola para
casa dela. Ela partilhava um apartamento com outra professora, a Nora
Ambrose. Segundo Nora Ambrose, a Janet White mencionara
ocasionalmente estar nervosa por causa de um homem com quem terminara
uma relação um ano antes, mas que lhe enviara frequentemente cartas
ameaçadoras. Nunca descobriram nada sobre este homem. A Nora Ambrose
não sabia o seu nome, nem sabia ao certo onde ele vivia.
– Aha – disse Poirot –, gosto mais disto.
Fez um visto grosso em tinta preta junto ao nome de Janet White.
– Por que razão?
– É um assassinato mais provável de ser testemunhado por uma rapariga
da idade da Joyce. Ela poderia ter reconhecido a vítima, uma professora que
conhecia e que talvez lhe desse aulas. Não conhecia o atacante,
possivelmente. Poderia ter visto uma luta, depois ouvido uma discussão
entre uma rapariga que conhecia e um homem desconhecido. Quando foi a
Janet White morta?
– Há dois anos e meio.
– Também isso – disse Poirot – é mais ou menos a altura certa. Ambas as
coisas explicam porque não se aperceberia de que o homem que pode ter
visto com as mãos à volta do pescoço da Janet não a estava meramente a
beijar, mas poderia estar a matá-la. Mas à medida que ficou mais velha, a
explicação correta apresentou-se-lhe.
Olhou para Elspeth.
– Está de acordo como meu raciocínio?
– Entendo o que quer dizer – disse Elspeth. – Mas não estará a fazer isto
da maneira errada? À procura de uma vítima de um assassinato passado em
vez de procurar um homem que matou uma criança em Woodleigh
Common há não mais de três dias?
– Vamos do passado para o futuro – disse Poirot. – Digamos que viemos
de há dois anos e meio até há três dias. E, portanto, temos de considerar, o
que sem dúvida já considerou, quem estava em Woodleigh Common entre
as pessoas que estavam na festa que poderia estar ligado com um crime
mais antigo?
– Agora pode limitar-se um pouco mais do que isso – disse Spence. – Isto
é, se estamos certos ao aceitar a sua suposição de que a Joyce foi morta por
causa do que alegou antes acerca de ter visto um assassinato a ser cometido.
Ela disse essas palavras na altura em que os preparativos para a festa
decorriam. Repare, podemos estar enganados ao acreditar que foi esse o
motivo para a morte, mas não creio que nos enganemos. Então digamos que
ela alegou ter visto um assassinato, e alguém que estava presente durante os
preparativos para a festa nessa tarde a pode ter ouvido e atuou o mais rápido
possível.
– Quem estava presente? – disse Poirot. – Monsieur sabe, suponho.
– Sim, tenho aqui a lista para si.
– Verificou-a cuidadosamente?
– Sim verifiquei e voltei a verificar, mas foi uma tarefa árdua. Aqui estão
dezoito nomes.
 
Lista de pessoas presentes durante os preparativos para a festa das
bruxas
Mrs. Drake (dona da casa)
Mrs. Butler
Mrs. Oliver
Miss Whittaker (professora)
Reverendo Charles Cotterell (vigário)
Simon Lampton (cura)
Miss Lee (farmacêutica do Dr. Ferguson)
Ann Reynolds
Joyce Reynolds
Leopold Reynolds
Nicholas Ransom
Desmond Holland
Beatrice Ardley
Cathie Grant
Diana Brent
Mrs. Garlton (empregada doméstica)
Mrs. Minden (mulher da limpeza)
Mrs. Goodbody (ajudante)
 
 
– Tem a certeza de que são estas todas as pessoas?
– Não – disse Spence. – Não tenho a certeza. Não posso ter a certeza.
Ninguém pode. Sabe, ocasionalmente houve pessoas que trouxeram coisas.
Algumas trouxeram lâmpadas coloridas. Alguém trouxe alguns espelhos.
Havia pratos suplementares. Alguém emprestou um balde de plástico. As
pessoas traziam coisas, trocavam uma palavra ou duas e iam-se embora.
Não ficavam para ajudar. Portanto, essa pessoa poderia ter passado
despercebida e não ser recordada como estando presente. Mas essa mesma
pessoa, mesmo que tivesse apenas pousado um balde no átrio, poderia ter
ouvido o que a Joyce dizia no salão. Ela estava a gritar, sabe. Não podemos
limitar-nos a esta lista, mas é o melhor que posso fazer. Aqui está. Dê-lhe
uma vista de olhos. Fiz uma breve nota descritiva junto aos nomes.
– Agradeço-lhe. Só uma pergunta. Deve ter interrogado algumas destas
pessoas, por exemplo as que também estiveram na festa. Alguém, alguém
que fosse, mencionou o que a Joyce dissera sobre ter visto um assassinato?
– Penso que não. Não há registo oficial. A primeira vez que ouvi falar
disso foi quando o senhor mo contou.
– Interessante – disse Poirot. – Poder-se-ia dizer notável.
– É óbvio que ninguém levou isso a sério – disse Spence.
Poirot assentiu com um ar pensativo.
– Tenho de ir para chegar a tempo ao meu encontro com o Dr. Ferguson,
depois da operação que ele está a fazer – disse.
Dobrou a lista de Spence e pô-la no bolso.
9 Casa da pedreira, traduzido do inglês. (N. do T.)
10 Organização governamental que protege jardins, casas e monumentos.
(N. do T.)
11 Bacalhau, cod no inglês. (N. do T.)
 
 
Capítulo 9
 
 
 
 
 

O Dr. Ferguson era um homem de cerca de sessenta anos, de ascendência


escocesa e com modos bruscos. Olhou para Poirot de cima a baixo com
olhos astutos sob sobrancelhas eriçadas, e disse:
– Bem, de que se trata isto? Sente-se. Cuidado com essa perna da cadeira.
A rodinha do pé está solta.
«Talvez eu deva explicar – disse o Dr. Ferguson. – Toda a gente se
conhece, num sítio como este. Aquela escritora trouxe-o cá como se fosse o
maior detetive do mundo para confundir a polícia. É mais ou menos isso,
não é?»
– Em parte – disse Poirot. – Vim cá para visitar um velho amigo, o
comissário Spence, que vive aqui com a irmã.
– Spence? Hum. Bom tipo, o Spence. De uma raça de buldogue. Bom
polícia honesto, à moda antiga. Sem corrupção. Sem violência. Também
não era estúpido. Escorreito.
– Avalia-o corretamente.
– Bem – disse Ferguson –, o que lhe disse e o que lhe contou ele?
– Ele e o inspetor Raglan têm sido ambos extremamente gentis comigo.
Espero que também o seja.
– Não tenho motivos para ser gentil – disse Ferguson. – Não sei o que
aconteceu. A cabeça de uma criança é empurrada para dentro de um balde e
é afogada a meio de uma festa. Caso medonho. Se bem que matar uma
criança não é nada de espantoso hoje em dia. Fui chamado a examinar
demasiadas crianças assassinadas nos últimos sete a dez anos, demasiadas.
Muitas pessoas que deveriam estar sob internamento mental não o estão.
Não há espaço nos asilos. Andam por aí, bem-falantes, bem vestidos e
parecendo iguais a todas as outras pessoas, à procura de alguém a quem
possam matar. E a divertirem-se. Não o costumam fazer numa festa, no
entanto. Demasiadas probabilidades de serem apanhados, suponho, mas a
novidade apela até a um assassino com perturbações mentais.
– Tem alguma ideia de quem a tenha matado?
– Acha realmente que essa é uma pergunta à qual eu possa responder
assim? Teria de ter alguma prova, não teria? Teria de ter a certeza.
– Podia adivinhar – disse Poirot.
– Qualquer um pode adivinhar. Se sou chamado para um caso tenho de
adivinhar se o tipo vai ter sarampo ou é um caso de alergia a marisco ou a
almofadas de penas. Tenho de fazer perguntas para descobrir o que têm
comido, ou bebido, ou onde têm dormido, ou que outras crianças têm
conhecido. Se estiveram num autocarro com as crianças de Mrs. Smith ou
de Mrs. Robinson, que têm todas sarampo, por exemplo. Então avanço com
uma opinião provisória sobre qual das várias possibilidades é, e isso, deixe
que lhe diga, é o que se chama diagnóstico. Não se faz à pressa, e deve ter-
se a certeza.
– Conhecia esta criança?
– Claro. Era uma das minhas pacientes. Aqui somos dois. Eu e o Worrall.
Acontece que eu sou o médico dos Reynolds. Ela era uma criança bastante
saudável, a Joyce. Tinha as pequenas maleitas normais de criança. Nada de
estranho ou invulgar. Comia de mais, falava de mais. Falar de mais não lhe
causara mal nenhum. Comer de mais causava-lhe o que se chamava
antigamente um ataque bilioso de tempos a tempos. Teve papeira e varicela.
Nada mais.
– Mas falara talvez demasiado numa ocasião, como sugere que fazia?
– Então é esse o caminho onde está? Ouvi um boato sobre isso. Do
género de «o que o mordomo viu», só que tragédia em vez de comédia. É
isso?
– Poderia construir um motivo, uma razão.
– Oh sim. Admito-o. Mas há outras razões. Perturbações mentais
parecem ser sempre a resposta, hoje em dia. Pelo menos, nos tribunais.
Ninguém ganhou com a morte dela, ninguém a odiava. Mas parece-me que
com as crianças de hoje não é preciso procurar razões. A razão está noutro
lugar. A razão está na mente do assassino. Na sua mente perturbada ou na
sua mente perversa. Qualquer tipo de mente, o que quiser chamar-lhe. Eu
não sou psiquiatra. Há alturas em que me canso de ouvir aquelas palavras:
«Encarcerado até ao relatório de um psiquiatra», depois de um rapaz forçar
a entrada algures, partir os espelhos, surripiar as garrafas de whisky, roubar
as pratas, dar uma pancada na cabeça de uma velha senhora. Não importa o
que é agora. Mandam-se para relatório psiquiátrico.
– E quem recomendaria monsieur, neste caso, para que fosse mandado
para um relatório psiquiátrico?
– Quer dizer entre os que estavam lá na festança na outra noite?
– Sim.
– O assassino teria de lá estar, não teria? De outra forma não teria havido
um assassinato. Certo? Ele estava entre os convidados, estava entre os
ajudantes ou entrou pela janela com premeditação. Provavelmente conhecia
os fechos daquela casa. Pode ter estado lá dentro antes, a espreitar. Tome
por exemplo um rapaz, ou homem. Quer matar alguém. Nada fora do
normal. Em Medchester tivemos um caso assim. Soube-se cerca de seis ou
sete anos depois. Um rapaz de treze anos. Queria matar alguém, por isso
matou uma criança de nove anos, roubou um carro, conduziu-o onze ou
doze quilómetros até uma mata, queimou-a lá, foi embora e tanto quanto sei
viveu uma vida livre de culpa até ter vinte e um ou vinte e dois anos. Quer
dizer, temos apenas a palavra dele, pode ter continuado a fazê-lo.
Provavelmente fê-lo. Descobriu que gostava de matar pessoas. Não
suponho que tenha matado muitas, ou algum polícia já o teria apanhado
antes. Mas de vez em quando ele sentia o desejo. Relatório psiquiátrico.
Cometeu assassinato enquanto mentalmente perturbado. Estou a tentar
dizer, eu próprio, que é isso que aconteceu aqui. Esse tipo de coisa, de
qualquer forma. Não sou psiquiatra, graças a Deus. Tenho alguns
psiquiatras amigos. Alguns deles são tipos sensatos. Outros... bem, direi
apenas que deveriam ser submetidos a relatórios psiquiátricos. Este tipo que
matou a Joyce tinha provavelmente pais simpáticos, maneiras normais, boa
aparência. Ninguém sonharia que há algo de errado com ele. Alguma vez
deu uma dentada numa maçã vermelha e sumarenta e lá dentro, perto do
caroço, houve algo bastante desagradável que se levantou e abanou a
cabeça na sua direção? Há muitos seres humanos assim por aí. Eu diria
mais hoje em dia do que antes.
– E não tem as suas próprias suspeitas?
– Não posso arriscar-me a diagnosticar um assassinato sem ter provas.
– Ainda assim, admite que deve ter sido alguém na festa. Não pode haver
assassinato sem assassino.
– Pode facilmente em alguns romances policiais que são escritos. A sua
escritora de estimação escreve-os assim, provavelmente. Mas neste caso
concordo. O assassino devia estar lá. Um convidado, ajudante doméstico,
alguém que entrou pela janela. Cometido facilmente se estudasse o fecho da
janela previamente. Pode ter passado por alguma cabeça doida que seria
uma ideia original e divertida ter um assassinato numa festa das bruxas. É o
que tem como ponto de partida, não é? Apenas alguém que estava na festa.
Sob sobrancelhas espessas, um par de olhos brilhou para Poirot.
– Eu próprio estava lá – disse ele. – Cheguei tarde, só para ver o que se
passava.
Assentiu vigorosamente.
– Sim, esse é o problema, não é? Como um anúncio social nos jornais:
 
«Entre os presentes estava... Um assassino.»
 
 
Capítulo 10
 
 
 
 
 

P oirot olhou para The Elms, e aprovou.


Entrou e foi levado por alguém que julgou ser uma secretária ao
escritório da diretora. Miss Emlyn levantou-se da sua mesa para
cumprimentá-lo.
– Estou encantada por conhecê-lo, M. Poirot. Já ouvi falar de si.
– É muito gentil – disse Poirot.
– De uma amiga minha de longa data, Miss Bulstrode. Antiga diretora em
Meadowbank. Talvez se lembre de Miss Bulstrode?
– Seria difícil alguém esquecer-se dela. Uma grande personalidade.
– Sim – disse Miss Emlyn. – Ela fez de Meadowbank a escola que é hoje.
– suspirou levemente e disse: – Mudou um pouco. Objetivos diferentes,
métodos diferentes, mas ainda se destaca como uma escola de distinção, de
progresso, e também de tradição. Ah, enfim, não devemos viver demasiado
no passado. Veio ver-me, sem dúvida, por causa da morte da Joyce
Reynolds. Não sei se tem algum interesse especial no caso. Imagino que
seja um bocado diferente daquilo a que está habituado. Conhecia-a
pessoalmente, ou à família talvez?
– Não – disse Poirot. – Vim a pedido de uma velha amiga, Mrs. Ariadne
Oliver, que estava aqui hospedada e estava presente na festa.
– Ela escreve livros encantadores – disse Miss Emlyn. – Encontrei-me
com ela uma ou duas vezes. Bem, isso torna tudo mais fácil de discutir,
penso eu. Desde que não haja sentimentos pessoais, pode avançar-se. Foi
uma coisa horrorosa. Se posso dizê-lo, uma coisa improvável. As crianças
envolvidas não parecem nem suficientemente velhas nem suficientemente
novas para que o caso pertença a alguma classe especial. Indica um crime
psicológico. Concorda?
– Não – disse Poirot. – Creio que foi um assassinato, como a maioria o é,
cometido por um motivo, possivelmente sórdido.
– De facto. E a razão?
– A razão foi um comentário feito pela Joyce; não na festa em si, segundo
sei, mas antes, quando os preparativos estavam a ser feitos por algumas das
crianças mais velhas e outros ajudantes. Ela anunciou que vira em tempos
um assassinato a ser cometido.
– Acreditaram nela?
– Em termos gerais, creio que não acreditaram nela.
– Isso parece a resposta mais provável. A Joyce... falo-lhe com clareza,
M. Poirot, porque não queremos que sentimentos desnecessários toldem as
faculdades mentais. Ela era uma criança algo medíocre, nem estúpida nem
especialmente intelectual. Ela era, francamente, uma mentirosa compulsiva.
E com isso não quero dizer que fosse especialmente falsa. Não tentava
evitar um ajuste de contas ou ser apanhada num pecadilho. Ela gabava-se.
Gabava-se de coisas que não haviam acontecido, mas que impressionariam
os amigos que a ouviam. Como resultado, claro, eles estavam predispostos
a não acreditar nas patranhas que ela contava.
– Acha que ela se gabou de ter visto um assassinato a ser cometido para
se fazer parecer importante, para intrigar alguém?...
– Sim. E penso que a Ariadne Oliver foi sem dúvida a pessoa que ela
queria impressionar...
– Então não acha que a Joyce viu um assassinato a ser cometido, de todo?
– Duvido muito.
– É da opinião de que ela inventou tudo?
– Não diria isso. Ela testemunhou, talvez, um acidente de carro, ou
alguém que foi atingido com uma bola no campo de golfe e foi ferido... algo
que ela poderia exagerar até ser um acontecimento importante que pudesse
de alguma forma passar por uma tentativa de assassinato.
– Portanto a única suposição que podemos fazer com alguma certeza é a
de que havia um assassino presente na festa das bruxas.
– Com certeza – disse Miss Emlyn, sem hesitar. – Com certeza. Tem toda
a lógica, não tem?
– Tem alguma ideia de quem esse assassino poderá ser?
– Essa é certamente uma pergunta sensível – disse Miss Emlyn. – Afinal,
a maioria das crianças na festa tinha entre nove e quinze anos, e suponho
que quase todas elas tinham sido ou eram alunas da escola. Eu deveria saber
algo sobre elas. Algo, também, sobre as famílias deles e os seus
antecedentes.
– Creio que uma das suas professoras, há um ano ou dois, foi
estrangulada por um assassino desconhecido.
– Refere-se à Janet White? Tinha cerca de vinte e quatro anos. Uma
rapariga muito sensível. Tanto quanto sei, tinha saído sozinha para
caminhar. Poderia ter combinado um encontro com algum jovem, é claro.
Era uma rapariga bastante atraente, de uma forma modesta. O seu assassino
não foi descoberto. A polícia interrogou vários jovens, ou pediu-lhes que
ajudassem com as investigações, conforme dita a técnica deles, mas não
foram capazes de encontrar provas suficientes para acusar alguém. Um caso
nada satisfatório, do ponto de vista deles. E devo dizer, do meu.
– A madame e eu temos um princípio em comum. Não aprovamos o
assassinato.
Miss Emlyn olhou para ele por uns momentos. A sua expressão não
mudou, mas Poirot teve a impressão de que estava a ser avaliado com muito
cuidado.
– Gosto da maneira como o disse – disse ela. – Pelo que se lê e ouve hoje
em dia, parece que o assassinato, sob algumas das suas formas, está lenta
mas progressivamente a tornar-se aceitável para um grande setor da
comunidade.
Ficou silenciosa durante uns minutos, e Poirot também não falou. Pensou
que ela estivesse a considerar um curso a tomar.
Ela levantou-se e tocou uma campainha.
– Creio – disse – que é melhor falar com Miss Whittaker.
Passaram cerca de cinco minutos depois de Miss Emlyn sair da sala e
então a porta abriu-se e uma mulher de cerca de quarenta anos entrou.
Tinha cabelo castanho-avermelhado, curto, e entrou com um passo rápido.
– M. Poirot? – disse ela. – Posso ajudá-lo? Miss Emlyn parece pensar que
sim.
– Se Miss Emlyn pensa que sim, então é quase certo que pode. Eu
acreditaria nela.
– Conhece-a?
– Conheci-a apenas esta tarde.
– Mas fez um juízo sobre ela rapidamente.
– Espero que me diga que tenho razão.
Elizabeth Whittaker soltou um suspiro curto e rápido.
– Oh sim, tem razão. Imagino que isto diga respeito à morte da Joyce
Reynolds. Não sei exatamente como o senhor se envolveu no caso. Através
da polícia? – abanou a cabeça de uma forma ligeiramente descontente.
– Não, não através da polícia. De forma privada, através de uma amiga.
Ela puxou uma cadeira, empurrando-a um pouco para trás de forma a que
ficasse de frente para ele.
– Sim. O que deseja saber?
– Não creio que haja necessidade de lhe dizer. Não é preciso perder
tempo a fazer perguntas que podem não ter qualquer importância.
Aconteceu algo naquela noite na festa que talvez seja melhor que eu saiba.
É assim?
– Sim.
– Esteve na festa?
– Estive lá. – Refletiu durante um ou dois minutos. – Foi uma festa muito
boa. Bem gerida. Bem organizada. Cerca de trinta e tal pessoas estavam lá,
isto é, contando com os todos os diferentes ajudantes. Crianças,
adolescentes, adultos, e alguns empregados de limpeza e ajudantes
domésticos como apoio.
– Tomou parte nos preparativos que foram feitos, segundo creio, nessa
tarde ou nessa manhã?
– Na verdade não havia nada a fazer. Mrs. Drake foi totalmente
competente a lidar com os vários preparativos, com um pequeno número de
pessoas a ajudá-la. Eram mais os preparativos domésticos que eram
necessários.
– Compreendo. Mas foi à festa como convidada?
– Correto.
– E o que aconteceu?
– Não duvido que já saiba tudo sobre como a festa decorreu. Quer saber
se há alguma coisa que eu tenha notado ou que eu pensasse ter algum
significado? Não quero fazê-lo perder o seu tempo indevidamente,
compreenda.
– Estou certo de que não me fará perder o meu tempo. Miss Whittaker,
conte-me simplesmente.
– Os vários eventos aconteceram na ordem que havia sido planeada. O
último evento foi mais uma festividade de Natal ou associada ao Natal, do
que com a Noite das Bruxas. O Snapdragon, uma travessa de uvas-passas
em chamas com brandy vertido por cima, e as pessoas em volta pegam nas
uvas-passas. Há guinchos de riso e de animação. No entanto ficou muito
calor na sala, com a travessa a arder, e eu saí e fui para o átrio. Foi então
que, enquanto ali estava, vi Mrs. Drake a sair do quarto de banho no
patamar do primeiro andar. Carregava um vaso grande com uma mistura de
plantas de outono e flores. Ficou na esquina da escadaria, parando aí um
momento antes de descer. Estava a olhar pelo vão da escada. Não na minha
direção. Olhava para a outra ponta do átrio, onde há uma porta que dá para
a biblioteca. É do lado do átrio oposto ao da porta da sala de jantar. Como
disse, ela olhava nessa direção e estava parada por um momento antes de
descer. Estava a mudar ligeiramente o ângulo do vaso porque era uma coisa
incómoda de carregar, e pesado também, se estava, como supus, cheio de
água. Ela mudava a posição muito cuidadosamente para que o pudesse
segurar com um braço, e pôr o outro braço no corrimão enquanto descia a
esquina ligeiramente torneada da escadaria. Ficou ali um ou dois instantes,
ainda sem olhar para o que carregava, mas sim olhando para baixo, para o
átrio. E de repente fez um movimento brusco, um sobressalto que eu
descreveria como... sim, certamente alguma coisa a havia sobressaltado.
Tanto que ela soltou o vaso e ele caiu, virando-se e fazendo com que a água
jorrasse para cima dela, e o próprio vaso caiu no átrio, onde se desfez em
mil pedaços no chão.
– Estou a ver – disse Poirot. Fez uma pausa de um ou dois minutos,
observando-a. Reparou que os seus olhos eram astutos e conhecedores.
Perguntavam-lhe agora qual a opinião dele sobre o que ela lhe contava. – O
que pensou que acontecera para a sobressaltar?
– Em retrospetiva, depois, pensei que ela vira algo.
– Pensou que ela vira algo – repetiu Poirot, pensativo. – Tal como?
– A direção dos olhos dela, como lhe disse, era a da porta da biblioteca.
Parece-me possível que ela visse a porta abrir, ou a maçaneta girar, ou
mesmo que ela visse algo mais do que isso. Poderia ter visto alguém que
abria a porta e que se preparava para sair. Ela poderia ter visto alguém que
não esperava ver.
– A madame estava a olhar para a porta?
– Não. Eu estava a olhar na direção contrária, para o cimo das escadas e
para Mrs. Drake.
– E tem a certeza de que ela viu algo que a sobressaltou?
– Sim. Talvez nada mais do que isso. Uma porta que se abriu. Uma
pessoa, talvez apenas uma pessoa com quem não contasse, que surgiu.
Apenas o suficiente para que ela largasse o vaso muito pesado cheio de
água e flores, e o deixasse cair.
– Viu alguém a sair por essa porta?
– Não, eu não estava a olhar nessa direção. Não creio que alguém tenha
de facto saído para o átrio. Quem quer que fosse, voltou presumivelmente a
entrar para a sala.
– O que fez Mrs. Drake em seguida?
– Soltou uma aguda exclamação de enfado, desceu as escadas e disse-me:
«Veja o que fiz agora! Que confusão!» Ela varreu algum do vidro partido
com os pés. Ajudei-a a varrer o vidro para uma pilha de cacos no canto.
Não era prático limpar tudo naquele momento. As crianças começavam a
sair da sala do Snapdragon. Fui buscar um pano e enxuguei-a um pouco, e
pouco depois disso a festa chegou ao fim.
– Mrs. Drake não disse nada sobre ter sido sobressaltada, ou fez alguma
referência ao que a poderia ter sobressaltado?
– Não. Nada disso.
– Mas acha que ela foi sobressaltada.
– Talvez, M. Poirot, pense que estou a fazer um alarido desnecessário
sobre algo que não tem importância alguma?
– Não – disse Poirot –, não penso nada do género. Vi Mrs. Drake uma vez
apenas – acrescentou pensativo –, quando fui a casa dela com a minha
amiga, Mrs. Oliver, para visitar, como se poderia dizer para ser
melodramático, a cena do crime. Durante esse breve período que tive para
observar Mrs. Drake não me pareceu que ela fosse uma mulher que se
sobressaltasse facilmente. Concorda comigo?
– Com certeza. Por isso é que me tenho questionado a mim própria desde
então.
– Não fez nenhuma pergunta em particular na altura?
– Não tinha qualquer razão para o fazer. Se a sua anfitriã teve o azar de
deixar cair um dos seus melhores vasos de vidro, e se ele se desfez em mil
pedaços, não é propriamente o papel de um convidado o de dizer «Por que
diabos fez isso?», acusando-a de uma inépcia que lhe asseguro não ser umas
das características de Mrs. Drake.
– E depois disso, como disse, a festa chegou ao fim. As crianças e as suas
mães ou amigos foram embora, e não sabiam da Joyce. Sabemos agora que
a Joyce estava atrás da porta da biblioteca, e que a Joyce estava morta.
Então quem poderia ter sido que estava prestes a sair pela porta da
biblioteca, um pouco antes, digamos, e que depois ouvindo vozes no átrio
fechou a porta outra vez e saiu mais tarde quando havia pessoas no átrio a
despedirem-se, a vestirem os casacos e tudo isso? Presumo, Miss Whittaker,
que foi apenas após o corpo ser encontrado que teve tempo para refletir
sobre o que vira?
– Correto – Miss Whittaker levantou-se. – Temo que não haja mais nada
que lhe possa dizer. Mesmo isto pode ser apenas um detalhe sem
importância.
– Mas digno de nota. Qualquer coisa digna de nota vale a pena ser
lembrada. Já agora, há uma pergunta que gostava de lhe fazer. Duas, na
verdade.
Elizabeth Whittaker voltou a sentar-se.
– Está bem – disse. – Pergunte o que quiser.
– Lembra-se da ordem exata em que os eventos ocorreram na festa?
– Creio que sim. – Elizabeth Whittaker refletiu por uns instantes.
– Começou com uma competição de vassouras. Vassouras decoradas.
Havia três ou quatro pequenos prémios para isso. Depois houve uma
espécie de concurso com balões, batia-se-lhes e eram atirados de um lado
para o outro. Uma espécie de macacada para aquecer as crianças. Houve
uma coisa com espelhos em que as raparigas iam para uma sala pequena e
seguravam um espelho onde se refletia o rosto de um menino ou de um
rapaz.
– Como se faz isso?
– Oh, é muito simples. O lintel da porta havia sido retirado, e então
diferentes rostos espreitavam e eram refletidos no espelho que a rapariga
segurava.
– As raparigas conheciam quem viam refletido no vidro?
– Imagino que algumas sim e outras não. Utilizou-se um pouco de
maquilhagem na metade masculina do assunto. Sabe, uma máscara ou uma
peruca, patilhas, uma barba, alguns efeitos de maquilhagem de palco. A
maioria dos rapazes era já provavelmente conhecida das raparigas e um ou
dois desconhecidos podem ter sido incluídos. De qualquer modo, houve
muitos risinhos felizes – disse Miss Whittaker, mostrando por um instante
uma espécie de desprezo académico por este tipo de diversão. – Depois
disso houve uma corrida de obstáculos e depois foi o jogo em que farinha é
metida num copo que é depois invertido, uma moeda posta em cima e toda
a gente tira uma fatia. Quando a farinha caísse essa pessoa estava fora da
competição e as outras ficavam até que a última ganhava a moeda. Depois
disso houve dança, e depois o jantar. A seguir, como um clímax final, foi o
Snapdragon.
– Quando foi que viu a Joyce pela última vez?
– Não faço ideia – disse Elizabeth Whittaker. – Não a conheço muito
bem. Não é da minha turma. Não era uma rapariga muito interessante, logo
eu não a estaria a observar. Lembro-me de que a vi a cortar a farinha porque
ela era tão desastrada que a virou quase de imediato. Portanto ela estava
viva nessa altura, mas isso foi bastante cedo.
– Não a viu entrar na biblioteca com ninguém?
– Certamente que não. Tê-lo-ia mencionado antes se tivesse visto. Isso
pelo menos poderia ter sido significativo e importante.
– E agora – disse Poirot –, para a minha segunda pergunta ou perguntas.
Há quanto tempo está aqui na escola?
– Fará seis anos no próximo outono.
– E dá aulas de...?
– Matemática e Latim.
– Lembra-se de uma rapariga que dava aqui aulas há dois anos, de seu
nome Janet White?
Elizabeth Whittaker empertigou-se. Levantou-se por momentos da
cadeira, e depois sentou-se novamente.
– Mas o que... isso não tem nada a ver com tudo isto, decerto?
– Pode ter – disse Poirot.
– Mas como? De que forma?
Os círculos académicos não eram tão bem-informados como os mexericos
da vila, pensou Poirot.
– A Joyce alegou perante testemunhas ter visto um assassinato ser
cometido há alguns anos. Pensa que poderia ter sido o assassinato da Janet
White? Como morreu a Janet White?
– Foi estrangulada, ao caminhar da escola para casa uma noite.
– Sozinha?
– Provavelmente não sozinha.
– Mas não com a Nora Ambrose?
– O que sabe sobre a Nora Ambrose?
– Por enquanto nada – disse Poirot –, mas gostaria de saber. Como eram,
a Janet White e a Nora Ambrose?
– Obcecadas por sexo – disse Elizabeth Whittaker –, mas de modos
diferentes. Como poderia a Joyce ter visto alguma coisa desse tipo ou saber
alguma coisa sobre isso? Aconteceu numa alameda perto da floresta da
pedreira. Ela não teria mais de dez ou onze anos.
– Qual delas tinha namorado? – perguntou Poirot. – A Nora ou a Janet?
– Tudo isto é história passada.
– Pecados velhos têm sombras longas12 – citou Poirot. – À medida que
avançamos através da vida, aprendemos o significado desse ditado. Onde
está a Nora Ambrose agora?
– Deixou a escola e ocupou outro posto no Norte de Inglaterra. Ela ficou,
naturalmente, muito perturbada. Elas eram... muito amigas.
– A polícia nunca resolveu o caso?
Miss Whittaker abanou a cabeça. Levantou-se e olhou para o relógio.
– Tenho de ir agora.
– Obrigado pelo que me contou.
12Ditado proveniente da peça Aglaura, de 1637, escrita por Sir John
Suckling. (N. do T.)
 
 
Capítulo 11
 
 
 
 
 

H ercule Poirot olhou para a fachada da Quarry House. Um exemplo


sólido e bem construído de arquitetura de meados do período vitoriano.
Teve uma visão do interior, um aparador de mogno pesado, uma mesa
central retangular também de mogno pesado, uma sala de bilhar talvez, uma
cozinha grande com copa adjacente, lajes de pedra no chão, um enorme
fogão a carvão, sem dúvida agora substituído por eletricidade ou gás.
Reparou que a maior parte das janelas do andar superior estava ainda com
as cortinas corridas. Tocou à campainha. Foi atendido por uma mulher
magra de cabelo grisalho, que lhe disse que o coronel e Mrs. Weston
estavam para fora, em Londres, e regressariam apenas na semana seguinte.
Perguntou sobre a floresta da pedreira e foi-lhe dito que estava aberta ao
público, de graça. A entrada ficava a cerca de cinco minutos a pé, ao longo
da estrada. Ele veria uma placa num portão de ferro.
Encontrou o caminho facilmente, e depois de passar pelo portão virou por
um caminho que descia através de árvores e arbustos.
Em seguida deteve-se e ficou a pensar. A sua mente não se fixou apenas
no que via, no que estava em seu redor. Em vez disso estava a analisar uma
ou duas frases, e a refletir num ou dois factos que o haviam feito pensar
furiosamente, como o expressara a si mesmo. Um testamento falsificado,
um testamento falsificado e uma rapariga. Uma rapariga que desaparecera,
a rapariga a favor de quem o testamento fora falsificado. Um jovem artista
que viera para aqui profissionalmente para fazer de uma pedreira
abandonada de mineral duro um jardim, um jardim romântico. Aqui, Poirot
olhou à sua volta mais uma vez e assentiu com aprovação perante o nome.
Jardim de pedreira era um termo feio. Sugeria o ruído de pedra a ser
rebentada, grandes quantidades de pedra para a construção de estradas a
serem transportadas por camiões. Trazia consigo a exigência industrial. Mas
um jardim romântico, isso era diferente. Trazia consigo lembranças vagas
na sua mente. Então Mrs. Llewellyn-Smythe fora numa excursão do
National Trust aos jardins da Irlanda. Ele próprio estivera na Irlanda cinco
ou seis anos antes. Viajara até lá para investigar um roubo de velhas pratas
de família. Houvera alguns pontos interessantes sobre o caso, que tinham
despertado a sua curiosidade, e tendo (como habitualmente), acrescentou
Poirot este parênteses aos seus pensamentos, resolvido a sua missão com
pleno sucesso, dedicara uns dias a viajar e ver as vistas.
Não se lembrava agora do jardim específico que visitara. Algures,
pensou, não muito longe de Cork. Killarney? Não, Killarney não. Algures
perto de Bantry Bay. E lembrou-se porque fora um jardim muito diferente
dos jardins que aclamara até então como os grandes sucessos da sua época,
os jardins dos châteaux em França, a beleza formal de Versalhes. Aqui,
lembrou-se, começara com um pequeno grupo de pessoas num barco. Um
barco onde dificilmente teria entrado se dois barqueiros fortes não o
tivessem praticamente içado para dentro dele. Haviam remado na direção de
uma ilha pequena, não muito interessante, pensara Poirot, começando a
desejar não ter ido. Os seus pés estavam molhados e frios e o vento soprava
pelas aberturas da sua gabardina. Que beleza, pensara, que formalidade, que
arranjo simétrico de grande beleza poderá haver nesta ilha rochosa com as
suas escassas árvores? Um erro, sem dúvida, um erro.
Haviam atracado num pequeno cais. Os pescadores tinham-no atracado
com a mesma destreza que haviam mostrado antes. Os restantes membros
do grupo tinham ido à frente, falando e rindo. Poirot, reajustando a sua
gabardina e atando os cordões outra vez, seguira-os por um caminho algo
aborrecido com arbustos e moitas e algumas árvores escassas dos dois
lados. Um parque deveras desinteressante, pensou.
E então, subitamente, haviam saído da vegetação para um terraço com
degraus que desciam. Abaixo do terraço, ele olhara para algo que lhe
parecera de imediato absolutamente mágico. Algo que seres elementais
como os que pensava serem comuns na poesia irlandesa tivessem saído das
suas colinas ocas e tivessem criado ali, não tanto através de labuta e
trabalho árduo mas sim com o abanar de uma varinha mágica, um jardim.
Olhava-se de cima para o jardim. A sua beleza, as flores e arbustos, a água
artificial em baixo na fonte, o caminho à sua volta, encantado, belo e
completamente inesperado. Ele interrogara-se como teria sido
originalmente. Parecera demasiado simétrico para ter sido uma pedreira.
Um vale profundo aqui no solo elevado da ilha, mas além dele podiam ver-
se as águas da baía e as colinas que se erguiam do outro lado, os seus cumes
enevoados que constituíam uma cena encantadora. Pensou talvez que
poderia ter sido aquele jardim em particular que levara Mrs. Llewellyn-
Smythe a possuir um jardim assim, para ter o prazer de pegar numa pedreira
pouco cuidada localizada na província presunçosa, arrumada, básica e
essencialmente convencional daquela parte de Inglaterra.
Portanto ela procurara o tipo certo de escravo bem pago para fazer o que
ela ordenasse. E encontrara o jovem profissionalmente qualificado chamado
Michael Garfield, trouxera-o para ali e pagara-lhe uma quantia sem dúvida
avultada, e a seu tempo construíra uma casa para ele. Michael Garfield,
pensou Poirot, não a desiludira.
Foi sentar-se num banco, que fora colocado numa posição estratégica.
Imaginou como o jardim seria na primavera. Havia faias e bétulas jovens
com as suas cascas brancas, que tremiam. Arbustos de espinhos e rosas
brancas, pequenas árvores de zimbro. Mas agora era outono, e o outono
também fora atendido. O dourado e vermelho dos bordos, uma ou duas
árvores de pau-ferro, um caminho que serpenteava em direção a novos
prazeres. Havia arbustos de tojo ou giesta em flor; Poirot não era famoso
por conhecer os nomes de flores ou de arbustos, apenas aprovava e
reconhecia rosas e túlipas.
Mas tudo o que crescia ali tinha a aparência de o ter feito por vontade
própria. Não ordenado ou forçado a submeter-se. E, no entanto, pensou
Poirot, isso não é verdade. Tudo foi ordenado, tudo foi planeado desde a
plantinha que cresce aqui àquele grande arbusto altaneiro que se ergue tão
feroz, com as suas folhas douradas e vermelhas. Oh sim. Tudo aqui foi
planeado e ordenado. Mais ainda, eu diria que obedecera.
Interrogou-se a quem obedecera. A Mrs. Llewellyn-Smythe ou a Michael
Garfield? Faz diferença, disse Poirot para si próprio, sim, faz diferença.
Mrs. Llewellyn-Smythe era conhecedora, estava certo disso. Praticara
jardinagem durante muitos anos, fora sem dúvida membro da Royal
Horticultural Society, fora a exposições, consultara catálogos, visitara
jardins. Viajara para o estrangeiro, sem dúvida, por razões botânicas. Teria
sabido o que queria, teria dito o que queria. Seria isso suficiente? Poirot
pensou que não seria suficiente. Ela poderia ter dado ordens a jardineiros e
ter-se certificado de que as suas ordens eram cumpridas. Mas saberia,
realmente, e veria na sua cabeça como ficariam as suas ordens quando
executadas? Não no primeiro ano em que fossem plantadas, nem mesmo no
segundo, mas sim coisas que veria dois anos mais tarde, três anos mais
tarde, talvez até seis ou sete anos mais tarde. Michael Garfield, pensou
Poirot, Michael Garfield sabe o que ela quer porque ela lho disse, e sabe
como fazer esta pedreira simples de pedra e rocha desabrochar como um
deserto pode desabrochar. Ele planeou-o e concretizou-o; teve sem dúvida o
prazer intenso que tem um artista que recebe uma comissão de um cliente
com muito dinheiro. Aqui estava a sua conceção de uma terra de conto de
fadas escondida numa encosta convencional e algo aborrecida, e aqui
cresceria. Arbustos caros para os quais cheques chorudos teriam de ser
passados, e plantas raras que talvez só pudessem ser obtidas através da boa
vontade de um amigo, e havia aqui também coisas humildes que eram
necessárias e que não custavam quase nada. Na primavera, no canteiro à sua
esquerda haveria prímulas, as suas modestas folhas verdes todas juntas ali
ao lado diziam-lho.
– Em Inglaterra – disse Poirot –, as pessoas mostram-nos os seus
canteiros, levam-nos a ver as suas rosas e dissertam sobre os seus jardins de
íris, e para nos mostrarem que apreciam uma das grandes belezas de
Inglaterra, levam-nos a um jardim num dia em que o sol brilhe e as faias
estejam cheias de folhas, e sob elas todas as campainhas. Sim, é uma visão
muito bonita, mas já me foi mostrada, creio, demasiadas vezes. Prefiro...
O pensamento quebrou-se na sua mente enquanto se recordava do que
preferia. Um passeio de carro pelas alamedas do Devon. Uma estrada
sinuosa com grandes taludes de cada lado, e nesses taludes um grande
tapete a mostrar prímulas. Tão pálidas, tão tímida e subtilmente amarelas, e
emanando aquele cheiro leve e elusivo que a prímula tem em grandes
quantidades, que é mais reconhecido como sendo o cheiro da primavera do
que praticamente qualquer outro. E portanto não seriam apenas arbustos
raros aqui. Seria primavera e outono, também haveria aqui açafrão de
outono. Era um sítio lindo.
Interrogou-se quanto às pessoas que habitavam agora Quarry House.
Tinha os seus nomes, um coronel idoso reformado e a sua esposa, mas com
certeza que Spence poder-lhe-ia ter dito algo mais sobre eles. Tinha a
sensação de que quem quer que fosse dono disto agora não lhe tinha o amor
que a falecida Mrs. Llewellyn-Smythe tivera. Levantou-se e caminhou um
pouco ao longo do caminho. Era um caminho fácil, cuidadosamente
nivelado, concebido, pensou, para que fosse fácil a uma pessoa idosa andar
onde quisesse à vontade, sem um número indevido de degraus íngremes, e
num ângulo e intervalos convenientes um banco que parecia rústico mas
que era muito menos rústico do que parecia. De facto, o ângulo para as
costas e para os pés era extraordinariamente confortável. Poirot pensou para
si mesmo que gostaria de ver esse Michael Garfield. Pensou ser uma coisa
boa. Conhecia o seu trabalho, era um bom planeador e arranjou pessoas
experientes para executar os seus planos, e conseguiu, penso, ordenar os
planos da sua mecenas de tal modo que ela pensasse que todo o
planeamento fora seu. Mas não creio que tenha sido só dela. Foi em grande
parte dele. Sim, eu gostaria de o ver. Se ele ainda estiver na casinha, ou no
bungalow, que suponho ter sido construído para ele... interrompeu o seu
pensamento.
Fixou o olhar. Olhou através de uma pequena reentrância, para onde o
caminho a circundava. Olhou em especial para um arbusto com ramos
vermelhos e dourados que emoldurava algo que Poirot momentaneamente
não soube se estava mesmo ali, ou se era um mero efeito da sombra, da luz
do sol e das folhas.
O que estou a ver?, pensou Poirot. É resultado de um feitiço? Pode ser.
Aqui neste sítio, poderia ser. É um ser humano o que vejo, ou é... que
poderia ser? A sua mente recuou até algumas aventuras suas passadas há
muito anos e que ele batizara de «Os Trabalhos de Hércules». De algum
modo, pensou, este sítio onde ele se sentava não era um jardim inglês.
Havia aqui um ambiente. Tentou identificá-lo. Tinha características de
magia, de feitiço, certamente de beleza, beleza tímida e, no entanto,
selvagem. Aqui, se fosse encenado um teatro, ter-se-ia ninfas, faunos,
beleza grega, mas medo também. Sim, pensou ele, neste jardim romântico
existe medo. Que dissera a irmã de Spence? Algo sobre um assassinato que
ocorrera na pedreira original anos antes? O sangue manchara ali a pedra, e,
depois, a morte fora esquecida, tudo fora coberto, Michael Garfield viera,
planeara e criara um jardim de grande beleza, e uma mulher idosa com
poucos anos de vida pagara dinheiro por isso.
Agora via que era um jovem que estava do outro lado da reentrância,
emoldurado por folhas de um vermelho dourado, e um jovem, Poirot
reconhecia agora, de uma beleza fora do comum. Não se pensava nos
jovens homens dessa forma hoje em dia. Dizia-se de um jovem que era sexy
ou intensamente atraente, e estas provas de lisonja são muitas vezes justas.
Um homem com um rosto enrugado, um homem com cabelo oleoso e
selvagem e cujas feições estivessem longe de serem regulares. Não se dizia
que um homem era bonito. Se alguém o dissesse, di-lo-ia num tom
apologético, como se elogiasse alguma característica há muito morta. As
raparigas sexy não queriam Orfeu e o seu alaúde, queriam um cantor pop
com uma voz rouca, olhos expressivos e montes de cabelo rebelde.
Poirot levantou-se e avançou pelo caminho. Ao chegar ao outro lado da
descida acentuada, o jovem saiu do meio das árvores e veio ao seu
encontro. A sua juventude era a coisa mais característica nele, e no entanto,
como Poirot viu, ele não era realmente jovem. Tinha trinta e muitos, talvez
quarenta anos. O sorriso no seu rosto era muito, muito ligeiro. Não era bem
um sorriso de boas-vindas, era apenas um sorriso de reconhecimento
silencioso. Ele era alto, esguio, com feições de uma grande perfeição tais
como as que poderiam ter sido produzidas por um escultor clássico. Os seus
olhos eram escuros, o seu cabelo era preto e assentava-lhe como o faria um
capacete de cota de malha ou um boné. Por um momento, Poirot
interrogou-se se ele e este jovem não se estariam a encontrar no decorrer de
algum espetáculo que estivesse a ser ensaiado. Se assim for, pensou Poirot,
olhando para as suas galochas, terei de ir ao guarda-roupa equipar-me
melhor. Disse:
– Talvez esteja aqui a invadir propriedade alheia. Se assim for, devo pedir
desculpa. Sou forasteiro nesta parte do mundo. Cheguei ontem apenas.
– Não creio que se possa chamar invasão de propriedade alheia. – A voz
era muito baixa; era educada e, no entanto, desinteressada, de certo modo,
como se os pensamentos deste homem estivessem de facto muito longe. –
Não está aberto ao público, mas as pessoas andam por aqui. O velho
coronel Weston e a mulher não se importam. Importar-se-iam se houvesse
estragos, mas isso não é muito provável.
– Não há vandalismo – disse Poirot, ao olhar em volta. – Não há lixo que
se veja. Nem um pequeno cesto. Isso é bastante incomum, não é? E parece
deserto... estranho. Aqui pensar-se-ia – continuou – que houvesse
namorados a caminhar.
– Os namorados não vêm aqui – disse o jovem. – Dizem que dá azar, por
alguma razão.
– Será que monsieur é o arquiteto? Mas talvez me engane.
– O meu nome é Michael Garfield – disse o jovem.
– Pensei que pudesse ser – disse Poirot. Fez um gesto à sua volta. – Fez
isto?
– Sim – disse Michael Garfield.
– É lindo – disse Poirot. – De certa forma uma pessoa acha um pouco
invulgar quando alguma coisa linda é feita em... bem, francamente, o que é
uma parte aborrecida da paisagem inglesa.
«Dou-lhe os parabéns – acrescentou. – Deve estar satisfeito com o que fez
aqui.»
– Interrogo-me, alguma vez se estará satisfeito?
– Fê-lo, penso, para uma Mrs. Llewellyn-Smythe. Já não é viva, creio. Há
um coronel e Mrs. Weston, julgo eu? São os donos agora?
– Sim. Compraram isto barato. É uma casa grande e deselegante, não é
fácil de gerir, não é o que a maioria das pessoas quer. Ela deixou-a a mim,
no testamento.
– E vendeu-a.
– Vendi a casa.
– E o jardim da pedreira não?
– Oh sim. O jardim da pedreira foi com a casa, praticamente de brinde,
poder-se-ia dizer.
– Então porquê? – disse Poirot. – Isso é interessante. Não se importa que
eu esteja talvez um pouco curioso?
– As suas perguntas não são bem as habituais – disse Michael Garfield.
– Não pergunto tanto por factos como por razões. Porque fez isto e
aquilo? Porque fez B aqueloutro? Porque foi o comportamento de C tão
diferente do de A e B?
– Deveria estar a falar com um cientista – disse Michael. – É uma questão
de genes ou cromossomas, ou pelo menos é o que se diz hoje em dia. A
ordenação, o padrão, e por aí fora.
– Disse ainda agora que não estava completamente satisfeito porque
ninguém o está. A sua patroa, a sua mecenas, como lhe quiser chamar, ela
ficou satisfeita? Com esta coisa tão bela?
– Até certo ponto – disse Michael. – Eu certifiquei-me disso. Ela era fácil
de satisfazer.
– Isso parece muito improvável – disse Hercule Poirot. – Ela tinha,
segundo descobri, mais de sessenta anos. Pelo menos sessenta e cinco. As
pessoas dessa idade ficam muitas vezes satisfeitas?
– Eu assegurei-lhe que a minha execução correspondia exatamente às
suas instruções, imaginação e ideias.
– E foi assim?
– Está seriamente a perguntar-me isso?
– Não – disse Poirot. – Francamente, não.
– Para ter sucesso na vida – disse Michael Garfield –, uma pessoa tem de
seguir a carreira que quer, tem de satisfazer inclinações artísticas, mas tem
também de ser negociante. Tem de vender os seus produtos. Senão, é
forçado a executar as ideias dos outros de formas que não estão de acordo
com as suas. Eu executei principalmente as minhas próprias ideias e vendi-
as, comercializei-as, talvez seja um termo melhor, ao cliente que me
contratou, como se fossem uma execução direta dos seus planos e projetos.
Não é uma arte muito difícil de aprender. Não tem mais que se lhe diga do
que vender a uma criança ovos castanhos em vez de brancos. O cliente tem
de ser assegurado de que são os melhores, os certos. A essência do campo.
A preferência da própria galinha, digamos? Ovos castanhos, de quinta, do
campo. Uma pessoa não os vende se disser «são apenas ovos». Há uma só
diferença entre ovos. Ou são postos de fresco, ou não.
– É um jovem invulgar – disse Poirot. – Arrogante – disse, pensativo.
– Talvez.
– Fez aqui algo de muito belo. Acrescentou visão e planeamento à
matéria-prima dura e rochosa, que foi esventrada na busca da indústria sem
um único pensamento sobre a beleza. Acrescentou imaginação, um
resultado visto na mente, que conseguiu concretizar ao arranjar dinheiro.
Dou-lhe os parabéns. Presto-lhe homenagem. A homenagem de um homem
velho que se aproxima de um tempo em que o final do seu trabalho virá.
– Mas de momento ainda o faz?
– Então sabe quem sou?
Poirot ficou sem dúvida satisfeito. Gostava que as pessoas soubessem
quem era. Hoje em dia temia que a maioria delas não o soubesse.
– O senhor segue o rasto do sangue... Já é sabido aqui. É uma
comunidade pequena, as notícias correm. Foi outra figura pública que o
trouxe aqui.
– Ah, refere-se a Mrs. Oliver.
– Ariadne Oliver. Uma escritora de sucesso. As pessoas querem
entrevistá-la, saber o que ela pensa sobre assuntos como agitação estudantil,
socialismo, roupas de rapariga, se o sexo deveria ser permissivo, e muitas
outras coisas que não lhe dizem respeito.
– Sim, sim – disse Poirot –, acho deplorável. Noto que não descobrem
muito sobre Mrs. Oliver. Descobrem apenas que ela gosta de maçãs. Isso já
é sabido pelo menos há vinte anos, diria eu, mas ela repete-o com um
sorriso amável. Apesar de que, agora, receio que ela já não goste de maçãs.
– Foram as maçãs que o trouxeram até aqui, não foram?
– Maçãs numa festa das bruxas – disse Poirot. – Esteve na festa?
– Não.
– Teve sorte.
– Sorte? – Michael Garfield repetiu a palavra com um tom que soava
levemente a surpresa.
– Ser um dos convidados numa festa onde se comete um assassinato não
é uma experiência agradável. Talvez não tenha tido essa experiência, mas
digo-lhe, tem sorte porque – Poirot tornou-se um pouco mais estrangeiro –
il y a des ennuis, vous comprenez? As pessoas fazem perguntas sobre horas,
datas, questões impertinentes. – Continuou. – Conhecia a criança?
– Oh sim. Os Reynolds são conhecidos por aqui. Conheço a maior parte
das pessoas que vivem nas redondezas. Conhecemo-nos todos uns aos
outros em Woodleigh Common, se bem que não todos da mesma forma. Há
alguma intimidade, algumas amizades, algumas pessoas permanecem como
meros conhecidos, e por aí fora.
– Como era a Joyce?
– Ela era... como dizê-lo? Não era importante. Tinha uma voz bastante
feia. Estridente. Na realidade, é o que me lembro dela. Não gosto muito de
crianças. Aborrecem-me, principalmente. A Joyce aborrecia-me. Quando
falava, era sobre ela mesma.
– Não era interessante?
Michael Garfield pareceu ficar ligeiramente surpreendido.
– Não me parece – disse ele. – Tem de o ser?
– Sou da opinião de que as pessoas desprovidas de interesse têm poucas
probabilidades de serem assassinadas. As pessoas são assassinadas por
lucro, por medo ou por amor. Uma pessoa tem de escolher, mas precisa de
um ponto de partida...
Interrompeu-se e lançou um olhar ao relógio de pulso.
– Tenho de ir. Tenho um compromisso. Mais uma vez, os meus parabéns.
Continuou a descer, seguindo o caminho e escolhendo o trajeto com
cuidado. Ficou contente por, pelo menos uma vez, não ter calçado os seus
sapatos de verniz.
Michael Garfield não era a única pessoa que iria encontrar no jardim
romântico naquele dia. Ao chegar ao fundo reparou que três caminhos
saíam dali em direções ligeiramente diferentes. Na entrada do caminho do
meio, sentada num tronco de árvore caído, uma criança esperava-o. Tornou-
o claro de imediato.
– Suponho que seja M. Hercule Poirot? – disse ela.
A sua voz era clara, com um tom que era quase o de um sino. Ela era uma
criatura frágil. Algo nela condizia com o jardim romântico. Uma dríade ou
algum ser parecido com um duende.
– Esse é o meu nome – disse Poirot.
– Vim ter consigo – disse a criança. – Vem tomar chá connosco, não vem?
– Com Mrs. Butler e Mrs. Oliver? Sim.
– Exato. É a mamã e a tia Ariadne.
Acrescentou com uma nota de censura:
– Está um bocado atrasado.
– Peço desculpa. Parei para falar com uma pessoa.
– Sim, eu vi-o. Estava a falar com o Michael, não estava?
– Conhece-o?
– Claro. Vivemos aqui há muito tempo. Conheço toda a gente.
Poirot interrogou-se que idade teria ela. Perguntou-lho. Ela disse:
– Tenho doze anos. Vou para o colégio interno para o ano que vem.
– E está triste ou contente?
– Não o saberei de verdade até lá chegar. Não acho que goste muito
daqui, não tanto como gostava. – Acrescentou. – Acho melhor vir comigo
agora, por favor.
– Mas é claro. Claro. Peço desculpa por estar atrasado.
– Oh, não tem importância.
– Como se chama?
– Miranda.
– Assenta-lhe bem – disse Poirot.
– Está a pensar em Shakespeare?13
– Sim. Estuda-o na escola?
– Sim. Miss Emlyn leu-nos alguma coisa. Pedi à mamã que me lesse
mais. Gostei. Soa maravilhosamente bem. Um admirável mundo novo. Não
há nada assim, de verdade, pois não?
– Não acredita nisso?
– O senhor acredita?
– Há sempre um admirável mundo novo – disse Poirot –, mas apenas para
pessoas especiais, sabe. Os sortudos. Os que fazem esse mundo dentro deles
próprios.
– Oh, estou a ver – disse Miranda, com um ar de quem via com uma
facilidade aparente, apesar de Poirot se interrogar sobre o que ela via.
Ela voltou-se, começou a andar ao longo do caminho e disse:
– Vamos por aqui. Não é muito longe. Pode atravessar-se a sebe do nosso
jardim.
Depois olhou por cima do ombro e apontou, dizendo:
– Ali no meio, é onde era a fonte.
– Uma fonte?
– Oh, há anos. Imagino que ainda lá esteja, debaixo dos arbustos e das
azáleas e das outras coisas. Foi toda partida, sabe. As pessoas levaram
pedaços mas ninguém fez uma nova.
– Parece uma pena.
– Não sei. Não tenho a certeza. Gosta muito de fontes?
– Ça dépend – disse Poirot.
– Sei alguma coisa de francês – disse Miranda. – Quer dizer isso depende,
não é?
– Está correto. Parece ser muito bem-educada.
– Toda a gente diz que Miss Emlyn é muito boa professora. É a nossa
diretora. É muito rígida e severa, mas por vezes diz-nos coisas muito
interessantes.
– Então é decerto uma boa professora – disse Hercule Poirot. – Conhece
este sítio muito bem, parece saber onde estão todos os caminhos. Vem aqui
muitas vezes?
– Oh sim, é uma das minhas caminhadas preferidas. Ninguém sabe onde
eu estou, sabe, quando venho aqui. Sento-me nas árvores, nos ramos, e
observo. Gosto disso. Ver as coisas acontecerem.
– Que tipo de coisas?
– Principalmente pássaros e esquilos. Os pássaros são muito conflituosos,
não são? Não como naquele trecho de poesia que diz «os pássaros nos seus
pequenos ninhos concordam»14. Na verdade não concordam, pois não? E
observo os esquilos.
– E observa pessoas?
– Às vezes. Mas não há muitas pessoas que venham aqui.
– Porque será?
– Calculo que tenham medo.
– Porque deveriam ter medo?
– Porque uma pessoa foi morta aqui há muito tempo. Antes de ser um
jardim, quero eu dizer. Em tempos foi uma pedreira e depois foi uma
saibreira ou um aterro, e foi aí que a encontraram. Nisso. Acha que o velho
ditado é verdade, o que diz que quem nasce para ser enforcado nunca
morrerá afogado15?
– Hoje em dia ninguém nasce para ser enforcado. Neste país já não se
enforcam pessoas.
– Mas noutros países enforcam. Li nos jornais.
– Ah. Acha que isso é bom ou mau?
A reação de Miranda não foi estritamente em resposta à pergunta, mas
Poirot pensou que talvez fosse suposto ser.
– A Joyce foi afogada – disse ela. – A mamã não queria contar-me, mas
isso foi um pouco tolo, acho eu, não acha? Afinal, tenho doze anos.
– A Joyce era sua amiga?
– Sim. Era uma boa amiga, de certa forma. Contava-me coisas muito
interessantes, por vezes. Tudo sobre elefantes e rajás. Ela tinha ido à Índia
uma vez. Quem me dera ter ido à Índia. A Joyce e eu contávamos os nossos
segredos todos uma à outra. Eu não tenho tanta coisa para contar como a
mamã. A mamã foi à Grécia, sabe. Foi lá que conheceu a tia Ariadne, mas
não me levou com ela.
– Quem lhe contou sobre a Joyce?
– Mrs. Perring. É a nossa cozinheira. Estava a falar com Mrs. Minden,
que vem fazer a limpeza. Alguém segurou a cabeça dela debaixo de água.
– Faz alguma ideia de quem foi esse alguém?
– Não me parece. Elas não pareciam saber, mas também são as duas
bastante estúpidas, na verdade.
– E a Miranda, sabe?
– Eu não estava lá. Eu tinha dores de garganta e febre, por isso a mamã
não me levou à festa. Mas acho que poderia saber. Porque ela foi afogada.
Por isso é que lhe perguntei se achava que as pessoas nasciam para ser
afogadas. Atravessamos a sebe aqui. Cuidado com as roupas.
Poirot seguiu-a. A entrada pela sebe, a partir do jardim da pedreira era
mais adequada à constituição da sua guia infantil com a sua elegância de
duende, era para ela quase uma autoestrada. Foi no entanto cuidadosa com
Poirot, avisando-o de arbustos espinhosos adjacentes e afastando as partes
mais espinhosas da sebe. Saíram num ponto do jardim que ficava junto a
um monte de adubo e viraram por uma esquina junto de uma estrutura para
cultivar pepinos que estava degradada, até onde estavam dois caixotes do
lixo. A partir daí um jardinzinho ordenado, plantado maioritariamente com
rosas, dava acesso fácil ao pequeno bungalow. Miranda guiou-os através de
uma porta envidraçada, anunciando com o orgulho modesto de um
colecionador que acaba de assegurar uma amostra de um escaravelho raro:
– Apanhei-o mesmo.
– Miranda, não o trouxeste pela sebe, pois não? Devias ter ido à volta
pelo caminho do portão lateral.
– Este caminho é melhor – disse Miranda. – Mais rápido e mais curto.
– E suspeito que muito mais doloroso.
– Não me recordo – disse Mrs. Oliver –, apresentei-lhe a minha amiga
Mrs. Butler, não apresentei?
– Claro. No posto dos correios.
A apresentação em questão tinha sido uma coisa de momentos enquanto
estavam na fila em frente ao balcão. Agora Poirot pôde examinar melhor a
amiga de Mrs. Oliver de perto. Antes fora algo como uma mulher magra
com um lenço na cabeça, o que a disfarçava, e uma gabardina. Judith Butler
era uma mulher de cerca de trinca e cinco anos, e, ao passo que a sua filha
se assemelhava a uma dríade ou uma ninfa dos bosques, Judith tinha os
atributos de um espírito das águas. Poderia ser uma donzela do Reno16. Os
seus cabelos louros compridos caíam sobre os seus ombros, ela era delicada
com um rosto longo e faces algo cavadas, enquanto acima delas estavam
dois grandes olhos verde-água orlados por pestanas longas.
– Fico muito feliz por lhe agradecer devidamente, M. Poirot – disse Mrs.
Butler. – Foi muito gentil da sua parte vir aqui quando a Ariadne lho pediu.
– Quando a minha amiga Mrs. Oliver me pede que faça alguma coisa,
tenho sempre de a fazer – disse Poirot.
– Que disparate – disse Mrs. Oliver.
– Ela tinha a certeza, mesmo a certeza, de que o senhor seria capaz de
descobrir tudo sobre este caso pavoroso. Miranda, querida, podes ir à
cozinha? Tens lá scones no tabuleiro por cima do forno.
Miranda desapareceu. Esboçou, ao ir embora, um sorriso conhecedor
dirigido à mãe que disse tanto quanto um sorriso o pode dizer: «Ela está a
afastar-me do caminho por um bocado.»
– Tentei que ela não soubesse – disse a mãe de Miranda – disto, desta
coisa horrível que aconteceu. Mas suponho que era uma causa perdida à
partida.
– De facto – disse Poirot. – Não há nada que corra por uma zona
residencial tão depressa como a notícia de um desastre, em especial um
desastre medonho. E de qualquer forma – acrescentou – não se pode
percorrer a vida durante muito tempo sem se saber o que passa à nossa
volta. E as crianças parecem ser especialmente aptas para esse tipo de
coisas.
– Não sei se foi Burns ou Sir Walter Scott que disse «Há uma criança
entre vós que tudo anota» – disse Mrs. Oliver –, mas ele sabia bem do que
falava.
– A Joyce Reynolds parece ter certamente notado algo como um
assassinato – disse Mrs. Butler. – Quase nem se acredita.
– Que a Joyce notou?
– Queria dizer acreditar que se ela visse tal coisa não teria falado nisso
antes. Não parece nada da Joyce.
– A primeira coisa que todos parecem dizer-me por aqui – disse Poirot,
num tom suave – é que essa rapariga, a Joyce Reynolds, era uma mentirosa.
– Imagino que seja possível – disse Judith Butler – que uma criança
invente uma coisa que depois se venha a descobrir ser verdade?
– Esse é sem dúvida o ponto central de onde começaremos – disse Poirot.
– A Joyce Reynolds foi sem dúvida assassinada.
– E o senhor já começou. Provavelmente já sabe de tudo – disse Mrs.
Oliver.
– Madame, não me peça impossibilidades. Tem sempre tanta pressa.
– Porque não? – disse Mrs. Oliver. – Hoje em dia ninguém conseguiria
fazer nada se não estivesse com pressa.
Miranda regressou nesse momento com um prato cheio de scones.
– Pouso-os aqui? – perguntou. – Suponho que já acabaram de falar, não
acabaram? Ou há mais alguma coisa que querem que vá buscar à cozinha?
Havia uma malícia gentil na sua voz. Mrs. Butler baixou o bule de prata
georgiano até ao guarda-fogo, ligou uma chaleira elétrica que havia sido
desligada mesmo antes de ferver, encheu o bule e serviu o chá. Miranda
distribuiu scones quentes e sanduíches de pepino com uma elegância séria.
– A Ariadne e eu conhecemo-nos na Grécia – disse Judith.
– Eu caí ao mar – disse Mrs. Oliver – quando voltávamos de uma das
ilhas. O mar ficara algo encrespado e os marinheiros diziam sempre «salte»
e claro, dizem-no sempre quando a onda está justamente mais longe, o que
faz com que venha diretamente na nossa direção, mas não se pensa que isso
possa acontecer de verdade e então hesita-se e perde-se a coragem e salta-se
quando parece estar perto, e claro que é nesse momento que vai para longe.
– Fez uma pausa para recuperar o fôlego. – A Judith ajudou a pescar-me e
isso criou uma espécie de laço entre nós, não foi?
– Sim, de facto – disse Mrs. Butler. – Além disso, gostei muito do seu
nome próprio – acrescentou. – Pareceu-me muito apropriado.
– Sim, suponho que é um nome grego. – disse Mrs. Oliver. – É mesmo o
meu nome, sabe. Não o inventei para propósitos literários. Mas nunca me
aconteceu nada como à Ariadne. Nunca fui abandonada numa ilha grega
pelo meu verdadeiro amor ou algo parecido.
Poirot levou a mão ao bigode para esconder o leve sorriso que não
conseguiu evitar que surgisse nos seus lábios ao imaginar Mrs. Oliver no
papel de donzela grega abandonada.
– Não podemos todos estar à altura dos nossos nomes – disse Mrs. Butler.
– Não, de todo. Não a imagino no papel de quem corta a cabeça ao seu
amante. Foi assim que se passou, não foi? Judite e Holofernes17, quero eu
dizer.
– Foi o seu dever patriótico – disse Mrs. Butler –, pelo qual, se bem me
lembro, foi altamente louvada e recompensada.
– Na verdade não estou muito a par de Judite e Holofernes. São dos livros
apócrifos, não são? Bem, se uma pessoa pensar nisso, as pessoas dão a
outras pessoas, aos filhos quero eu dizer, nomes muito estranhos, não dão?
Quem era a que martelou pregos na cabeça de outra pessoa? Jael ou
Sísera18. Nunca me lembro de quem é o homem ou a mulher. Jael, acho eu.
Não creio que me lembre de alguma criança que tenha sido batizada como
Jael.
– Ela apresentou-lhe manteiga num prato majestoso – disse Miranda
inesperadamente, e fez uma pausa enquanto se preparava para levantar o
tabuleiro do chá.
– Não olhe para mim – disse Judith Butler à amiga –, não fui eu que
iniciei a Miranda nos livros apócrifos. É a formação escolar dela.
– Um pouco invulgar para as escolas de hoje em dia, não é? – disse Mrs.
Oliver. – Em vez disso dão-lhes ideias éticas, não é?
– Não Miss Emlyn – disse Miranda. – Ela diz que se formos à igreja hoje
em dia só nos leem a visão moderna da Bíblia nos sermões e essas coisas, e
que isso não tem qualquer mérito literário. Devíamos pelo menos conhecer
a prosa fina e os versos soltos da versão autorizada. Gostei muito da história
de Jael e Sísera – acrescentou. – Não é uma coisa – disse como se meditasse
– que eu alguma vez pensasse em fazer. Martelar pregos na cabeça de
alguém enquanto dormisse, quero dizer.
– Espero bem que não – disse a mãe dela.
– E como faria para se livrar dos seus inimigos, Miranda? – perguntou
Poirot.
– Seria muito bondosa – disse Miranda com um tom suave e
contemplativo. – Seria mais difícil, mas eu preferiria que assim fosse
porque não gosto de ferir. Usaria algum tipo de droga que causasse
eutanásia. Adormeceriam e teriam sonhos bonitos e simplesmente não
acordariam. – Levantou algumas chávenas e o prato do pão e da manteiga. –
Eu lavo a louça, mamã – disse –, se quiser levar M. Poirot a ver o jardim.
Ainda há algumas rosas Queen Elizabeth na parte de trás do canteiro.
Ela saiu da sala transportando o tabuleiro do chá com cuidado.
– A Miranda é uma criança surpreendente – disse Mrs. Oliver.
– Tem uma filha muito bonita, madame – disse Poirot.
– Sim, acho que é bonita agora. Não se sabe como eles vão ser quando
crescerem. Ficam com gordura de criança e por vezes parecem porcos bem
engordados. Mas, agora, ela é como uma ninfa dos bosques.
– Não é de estranhar que ela goste do jardim da pedreira que é ao lado de
sua casa.
– Por vezes eu desejaria que ela não gostasse tanto dele. Fica-se nervosa
quando há pessoas a passearem por sítios isolados, mesmo se são bastante
perto de onde há pessoas ou uma vila. Uma pessoa, oh, uma pessoa tem
sempre muito medo hoje em dia. É por isso... que tem de descobrir por que
razão aconteceu esta coisa terrível à Joyce, M. Poirot. Porque até que
saibamos quem foi, não nos sentiremos seguros por um só minuto, pelos
nossos filhos, quero eu dizer. Ariadne, leva M. Poirot para o jardim? Eu vou
ter convosco daqui a um ou dois minutos.
Pegou nas duas chávenas restantes e num prato e foi para a cozinha.
Poirot e Mrs. Oliver saíram pela porta envidraçada. O jardinzinho era como
a maior parte dos jardins de outono. Retinha algumas vergas-de-ouro e
margaridas-do-outono num canteiro, e umas rosas Queen Elizabeth
levantavam, altivas, as suas cabeças róseas e estatuescas. Mrs. Oliver
caminhou com rapidez até um banco de pedra, sentou-se e fez um gesto a
Poirot para que se sentasse a seu lado.
– Disse que a Miranda era como uma ninfa dos bosques – disse. – O que
acha da Judith?
– Acho que o nome da Judith deveria ser Undine19 – disse Poirot.
– Sim, um espírito da água. Sim, ela parece como se tivesse saído do
Reno, ou do mar, ou de uma lagoa na floresta, ou algo assim. O cabelo dela
parece ter sido mergulhado na água. E no entanto não há nela nada de
desmazelado ou de distraído, pois não?
– Ela também é uma mulher muito bonita – disse Poirot.
– O que pensa dela?
– Ainda não tive tempo para pensar. Acho apenas que é bonita e atraente
e que algo a preocupa muito.
– Bem, claro, é de esperar, não é?
– O que eu gostaria, madame, é que me dissesse o que sabe ou pensa dela.
– Bem, acabei por conhecê-la muito bem no cruzeiro. Sabe, uma pessoa
faz amigos muito íntimos. Apenas uma ou duas pessoas. O resto, bem,
gostam uns dos outros e tudo, mas uma pessoa não se dá ao trabalho de os
ver outra vez. Mas com um ou dois sim. Bem, a Judith foi uma das pessoas
que eu quis realmente ver outra vez.
– Não a conhecia antes do cruzeiro?
– Não.
– Mas conhece-a um pouco?
– Bem, só coisas corriqueiras. É viúva – disse Mrs. Oliver. – O marido
morreu há alguns anos, era piloto. Morreu num acidente de carro. Um
desses choques em cadeia, creio, ao sair de uma autoestrada qualquer que
passa aqui perto para a estrada normal uma noite, ou alguma coisa desse
género. Deixou-a em más condições, calculo. Ela ficou muito destroçada,
acho eu. Não gosta de falar sobre ele.
– A Miranda é a única filha que tem?
– Sim. A Judith faz algum trabalho de secretária em part-time aqui nas
redondezas, mas não tem emprego fixo.
– Ela conhecia as pessoas que viviam na Quarry House?
– O coronel e Mrs. Weston?
– Refiro-me à antiga dona, Mrs. Llewellyn-Smythe, acho que era?
– Penso que sim. Acho que a ouvi mencionar esse nome. Mas ela morreu
há dois ou três anos, por isso é claro que não se ouve falar dela muitas
vezes. Não lhe chegam as pessoas que estão vivas? – perguntou Mrs. Oliver
com alguma irritação.
– Claro que não – disse Poirot. – Também tenho de investigar aquelas que
morreram ou que desapareceram de cena.
– Quem desapareceu?
– Uma rapariga au pair – disse Poirot.
– Oh, bem – disse Mrs. Oliver –, essas estão sempre a desaparecer, não
estão? Afinal, vêm para cá com a viagem paga e depois vão logo para o
hospital porque ficam grávidas e têm um bebé, e chamam-lhe Auguste, ou
Hans ou Boris, ou um nome desses. Ou então vieram para casar com
alguém, ou atrás de algum rapaz por quem estão apaixonadas. Não
acreditaria nas coisas que as minhas amigas me contam! O que se passa
com as au pair parece ser que, ou são uma dádiva dos Céus às mães
sobrecarregadas com trabalho e nunca mais se quer largá-las, ou então
roubam-nos as meias, ou são assassinadas... – parou. – Oh! – disse.
– Acalme-se, madame – disse Poirot. – Não parece haver razões para
pensar que uma au pair tenha sido assassinada, muito pelo contrário.
– O que quer dizer com muito pelo contrário? Não faz sentido.
– Provavelmente não. Mas de qualquer forma...
Pegou no seu caderno e escreveu algo.
– O que está a escrever?
– Certas coisas que aconteceram no passado.
– Parece ficar muito perturbado com todo o passado.
– O passado é o pai do presente – disse Poirot como se ditasse uma
sentença.
Mostrou-lhe o caderno.
– Quer ver o que escrevi?
– Claro que quero. Atrevo-me a dizer que não significará nada para mim.
As coisas que o senhor considera importante escrever, eu nunca considero.
Ele segurou o pequeno caderno negro.
«Mortes: e.g.20 Mrs. Llewellyn-Smythe (rica). Janet White (professora).
Empregado de escritório de advogados – esfaqueado, previamente
acusado de falsificação.»
Por baixo estava escrito «Rapariga da ópera desaparece».
– Que rapariga da ópera?
– É a palavra que a minha amiga, irmã do Spence, usa para o que eu e a
madame chamamos uma rapariga au pair.
– Porque haveria ela de desaparecer?
– Porque era possível que fosse arranjar algum tipo de problemas com a
lei.
O dedo de Poirot desceu até ao próximo registo. A palavra era
simplesmente «falsificação», com dois pontos de interrogação à frente.
– Falsificação? – disse Mrs. Oliver. – Porquê falsificação?
– Isso foi o que eu perguntei. Porquê falsificação?
– Que tipo de falsificação?
– Um testamento foi falsificado, ou melhor um codicilo de um
testamento. Um codicilo em favor da au pair.
– Influência indevida? – sugeriu Mrs. Oliver.
– Falsificação é algo bastante mais sério do que influência indevida –
disse Poirot.
– Não vejo o que isso tem a ver com o assassinato da pobre Joyce.
– Nem eu – disse Poirot. – Mas, por conseguinte, é interessante.
– Qual é a próxima palavra? Não a consigo ler.
– Elefantes.
– Não vejo o que isso tem a ver seja com o que for.
– Pode ter – disse Poirot. – Acredite, pode ter.
Levantou-se.
– Devo deixá-la agora – disse ele. – Por favor, peça desculpa à minha
anfitriã por não me despedir dela. Gostei muito de a conhecer, e à linda e
invulgar filha dela. Diga-lhe que cuide daquela criança.
– A minha mãe disse que eu nunca deveria brincar com as crianças na
floresta21 – citou Mrs. Oliver. – Bem, adeus. Se gosta de ser misterioso,
suponho que continuará a sê-lo. Nem sequer diz o que vai fazer em seguida.
– Marquei um encontro para amanhã de manhã com os Messrs. Fullerton,
Harrison e Leadbetter em Medchester.
– Porquê?
– Para falar sobre falsificação e outros assuntos.
– E depois disso?
– Quero falar com certas pessoas que também estiveram presentes.
– Na festa?
– Não, nos preparativos para a festa.
13 Referência a Miranda, personagem da obra A Tempestade, de William
Shakespeare. (N. do T.)
14 Citação de Isaac Watts, incluída em Divine Songs, de 1715. É também
usada como um provérbio. (N. do T.)
15 Provérbio inglês: If you’re born to be hanged then you’ll never be
drowned. (N. do T.)
16 As donzelas do Reno são três ninfas aquáticas que aparecem no ciclo de
óperas de Richard Wagner, O Anel dos Nibelungos. (N. do T.)
17 Referência ao episódio bíblico, em que Judite, uma jovem princesa
hebraica, que decide, por amor à pátria, seduzir e decapitar o capitão filisteu
Holofernes. (N. do T.)
18 Referência ao episódio da Bíblia hebraica, em que Jael, heroína de
Israel, mata Sísera, capitão dos exércitos de Canaã. Ela mata-o com pregos
enfiados a golpes de martelo nas têmporas. (N. do T.)
197 Undine ou Ondine, um espírito das águas, na mitologia europeia. (N. do
T.)
20 Abreviação do latim exempli gratia, que significa por exemplo. (N. do
T.)
21 Citação de uma canção infantil tradicional inglesa. (N. do T.)
 
 
Capítulo 12
 
 
 
 
 

A sfirma
instalações da Fullerton, Harrison e Leadbetter eram típicas de uma
tradicional e muitíssimo respeitável. A força do tempo fizera-se
sentir. Não havia mais Harrison ou Leadbetter. Havia um Mr. Atkinson e
um jovem Mr. Cole, e havia ainda Mr. Jeremy Fullerton, sócio principal.
Mr. Fullerton era um homem magro com um rosto impassível, uma voz
seca e legal e olhos que eram inesperadamente astutos. Sob a sua mão
estava pousada uma folha de papel, cujas poucas palavras ele acabara de ler.
Leu-as mais uma vez, analisando o seu significado de forma muito exata.
Depois olhou para o homem a quem o recado apresentava.
– M. Hercule Poirot? – Fez a sua própria análise ao visitante. Um homem
idoso, estrangeiro, muito bem vestido, calçado de forma inadequada com
sapatos de verniz que eram, adivinhou de modo astuto Mr. Fullerton,
demasiado pequenos para ele. Umas leves linhas de dor desenhavam-se já
nos cantos dos seus olhos. Um dandy, um peralvilho, um estrangeiro, e que
lhe fora recomendado por, de entre todas as pessoas, o inspetor Raglan, da
divisão de investigação criminal, e que era também atestado pelo
comissário Spence (reformado), anteriormente da Scotland Yard.
– O comissário Spence, hum? – disse Mr. Fullerton.
Fullerton conhecia Spence. Um homem que fizera um bom trabalho na
sua época, fora bastante conceituado entre os seus superiores. Memórias
vagas atravessaram a sua mente. Um caso famoso, mais famoso do que
alguma vez se poderia supor, um caso que se apresentara como simples.
Claro! Ocorreu-lhe que o seu sobrinho Robert estivera ligado ao caso, fora
advogado assistente. Um assassino psicopata, ao que parecera, um homem
que praticamente não se esforçara por tentar defender-se, um homem de
quem se poderia pensar que queria mesmo ser enforcado (porque foi o que
estava em jogo nessa altura). Não eram quinze anos, ou um número de anos
indefinido na prisão. Não. Pagava-se a pena mais elevada, e é pena que
tenham desistido disso, pensou Mr. Fullerton na sua mente seca. Hoje em
dia os jovens bandidos pensavam não arriscar muito ao prolongar uma
agressão até ao ponto em que se tornava mortal. Uma vez que a sua vítima
estava morta, não haveria testemunha para o identificar.
Spence fora o encarregado do caso, um homem calmo e tenaz que
insistira sempre que haviam capturado o homem errado. E haviam
capturado o homem errado, e a pessoa que encontrara a prova de que o
haviam feito fora uma espécie de amador estrangeiro. Um tipo que era um
detetive reformado da polícia belga. Já com alguma idade na altura. E agora
senil, provavelmente, pensou Mr. Fullerton, mas de qualquer forma tomaria
o caminho prudente. Informação era o que lhe queria. Informação que,
afinal de contas, não poderia ser errado fornecer, uma vez que não
conseguia ver que fosse provável ter alguma informação que pudesse ser
útil neste caso específico. Um caso de homicídio infantil.
Mr. Fullerton poderia pensar que tinha uma ideia bastante astuta sobre
quem cometera esse homicídio, mas não tinha a certeza de a querer ter,
porque havia pelo menos três suspeitos no caso. Qualquer um dos três
jovens inúteis o poderia ter feito. Flutuaram-lhe palavras pela cabeça.
Atrasado mental. Relatório psiquiátrico. Seria assim que o caso acabaria,
sem dúvida. De qualquer forma, afogar uma criança durante uma festa...
isso era um assunto muito diferente de uma criança entre inúmeras outras
que não chegara a casa e que aceitara uma boleia num carro depois de ter
sido repetidamente avisada para não o fazer, e que fora encontrada numa
mata ou numa saibreira próxima. Agora uma saibreira. Quando foi isso? Há
já muitos, muitos anos.
Tudo isto demorou cerca de quatro minutos, e então Mr. Fullerton limpou
a garganta de uma forma algo asmática e falou.
– M. Hercule Poirot – disse mais uma vez. – Que posso fazer por si?
Calculo que o assunto seja o desta menina, a Joyce Reynolds. Um caso
medonho, um caso muito medonho. Na verdade não vejo como o possa
ajudar. Sei muito pouco acerca de tudo isso.
– Mas é, creio eu, o conselheiro legal da família Drake?
– Oh sim, sim. Hugo Drake, pobre tipo. Muito simpático. Conheço-os há
anos, desde que compraram Apple Trees e vieram viver para aqui. Coisa
triste, a poliomielite, apanhou-o um ano quando estavam no estrangeiro de
férias. Claro que a saúde mental dele era perfeita. É triste quando isso
acontece a um homem que foi um bom atleta toda a vida, um desportista,
bom a jogar jogos e tudo o resto. Sim. Assunto triste, saber que se é um
aleijado para toda a vida.
– Também foi, penso eu, encarregado dos assuntos legais de Mrs.
Llewellyn-Smythe?
– A tia, sim. Mulher notável, na verdade. Veio viver para aqui, depois de
a sua saúde piorar, para estar perto do sobrinho e da esposa dele. Comprou
aquele elefante branco daquela casa, a Quarry House. Pagou muito mais do
que a casa valia, mas dinheiro não era problema para ela. Ela era muito rica.
Podia ter encontrado uma casa mais bonita, mas era a pedreira que a
fascinava. Levou para lá um arquiteto paisagista, um tipo muito
conceituado, creio. Um desses tipos bonitos, de cabelo comprido, mas ele
era mesmo habilidoso. Saiu-se bem neste trabalho do jardim da pedreira.
Ganhou uma boa reputação por causa disso, saiu na revista Homes and
Gardens e tudo. Sim, Mrs. Llewellyn-Smythe sabia escolher as pessoas.
Não era apenas uma questão de ter um jovem bem-parecido como
protegido. Algumas mulheres idosas são tolas nesse respeito, mas este tipo
tinha cabeça e estava no topo da sua profissão. Mas estou a divagar. Mrs.
Llewellyn-Smythe morreu há quase dois anos.
– Bastante de repente.
Fullerton olhou para Poirot de uma forma severa.
– Bem, não, eu não diria isso. Ela sofria do coração e os médicos
tentavam que ela não se esforçasse demasiado, mas ela era o tipo de mulher
a quem não se dá ordens. Ela não era do tipo hipocondríaco.
Tossiu e disse:
– Mas imagino que nos estejamos a afastar do assunto sobre o qual veio
falar comigo.
– Na verdade, não – disse Poirot –, mas gostaria, se fosse possível, de lhe
fazer algumas perguntas sobre um assunto completamente diferente.
Algumas informações sobre um dos seus funcionários, o Lesley Ferrier.
Mr. Fullerton pareceu um pouco surpreendido.
– Lesley Ferrier? – disse. – Lesley Ferrier. Deixe-me ver. De facto, sabe,
já quase me tinha esquecido do nome dele. Sim, sim, claro. Foi esfaqueado,
não foi?
– É esse o homem a quem me refiro.
– Bem, não sei se lhe posso dizer muito sobre ele. Aconteceu há alguns
anos. Foi esfaqueado uma noite perto do Green Swan. Ninguém foi preso.
Arrisco-me a dizer que a polícia tinha alguma ideia de quem foi o
responsável, mas creio que foi mais uma questão de obter provas.
– O motivo foi sentimental? – indagou Poirot.
– Oh sim, estou certo que sim. Ciúme, sabe. Ele andara metido com uma
mulher casada. O marido dela tinha um pub. O Green Swan em Woodleigh
Common. Um sítio despretensioso. E então parece que o jovem Lesley
começou a divertir-se com uma outra jovem, ou mais do que uma, dizem.
Era mulherengo. Houve sarilhos uma ou duas vezes.
– Ficou satisfeito com ele, como funcionário?
– Eu diria que fiquei não insatisfeito. Ele tinha os seus pontos bons.
Lidava bem com os clientes e estava a estudar para entrar na Ordem. Se
tivesse prestado mais atenção à posição que ocupava e a manter um bom
comportamento, teria sido melhor do que andar metido com uma rapariga
atrás da outra, a maioria das quais eu considero, à minha maneira antiquada,
que não estavam à altura dele. Houve uma discussão uma noite no Green
Swan, e o Lesley Ferrier foi esfaqueado no caminho de casa.
– Acha que alguma das raparigas foi responsável, ou terá sido Mrs. Green
Swan?
– De facto, não é que eu saiba alguma coisa de conclusivo. Creio que a
polícia considerou que foi um caso de ciúmes... mas...
Encolheu os ombros.
– Mas não tem a certeza?
– Oh, isso acontece – disse Mr. Fullerton. – Não há fúria no inferno como
uma mulher desprezada22. Isso está sempre a ser citado no tribunal. Por
vezes é verdade.
– Mas creio que vejo que não está muito seguro de que tenha sido esse o
caso.
– Bem, digamos que eu preferiria ter bastantes mais provas. A polícia
também. A acusação arquivou o caso, creio eu.
– Poderia ter sido algo muito diferente?
– Oh sim. Podiam-se formular diversas teorias. O jovem Ferrier não era
uma personagem muito estável. Bem-educado. A mãe era simpática, viúva.
O pai não era tão satisfatório. Escapou de várias alhadas por uma unha
negra. Má sorte para a esposa. O nosso jovem era parecido com o pai, em
algumas coisas. Envolveu-se umas vezes com uns grupos duvidosos. Dei-
lhe o benefício da dúvida. Ainda era novo. Mas avisei-o de que se estava a
meter com as pessoas erradas. Demasiado ligadas a transações ilegais.
Francamente, se não fosse pela mãe dele, não teria ficado com ele. Ele era
jovem e tinha capacidades; avisei-o uma ou duas vezes e esperei que desse
resultado. Mas hoje em dia há muita corrupção. Tem aumentado, nos
últimos dez anos.
– Acha que alguém podê-lo-ia ter tomado de ponta?
– É bem possível. Essas associações, bandos é uma palavra um pouco
melodramática, mas uma pessoa corre uns certos riscos quando se envolve
com eles. Basta ter a ideia de se afastar deles, e uma faca entre os ombros
não é uma coisa invulgar.
– Ninguém viu o crime acontecer?
– Não. Ninguém viu. Não veriam, claro. Quem quer que tenha sido a
fazer o serviço terá organizado tudo muito bem. Álibi no sítio e hora
corretos, etc., etc.
– E no entanto alguém pode ter visto o crime acontecer. Alguém muito
improvável. Uma criança, por exemplo.
– Tão tarde? Na vizinhança do Green Swan? Não é uma ideia muito
credível, M. Poirot.
– Uma criança – insistiu Poirot – que poder-se-ia lembrar. Uma criança
que regressasse de casa de um amigo. A uma distância curta, digamos, de
sua própria casa. Poderia ter vindo por um caminho ou visto algo detrás de
uma sebe.
– Realmente, M. Poirot, que imaginação que o senhor tem. O que me diz
parece-me muito improvável.
– A mim não me parece tão improvável – disse Poirot. – As crianças
veem coisas. Sabe, é que muitas vezes estão onde não se espera que
estejam.
– Mas decerto que quando chegam a casa contam o que viram?
– Poderiam não o fazer – disse Poirot. – Poderiam não ter a certeza do
que haviam visto. Especialmente se o que haviam visto fosse de todo
assustador para elas. As crianças nem sempre vão para casa e contam um
acidente que viram na rua, ou alguma violência inesperada. As crianças
guardam segredos muito bem. Guardam-nos e pensam neles. Às vezes
gostam de sentir que sabem um segredo, um segredo que guardam só para
elas próprias.
– Contá-lo-iam às mães – disse Mr. Fullerton.
– Não tenho assim tanta certeza – disse Poirot. – Na minha experiência as
coisas que as crianças não contam às mães são muito numerosas.
– Posso saber o que lhe interessa tanto no caso do Lesley Ferrier? A
morte lamentável de um jovem por causa de uma violência que infelizmente
está tantas vezes perto de nós hoje em dia?
– Não sei nada sobre ele. Mas queria saber algo sobre ele porque a sua
morte foi violenta e não se deu há muitos anos. Isso poderia ser importante
para mim.
– Sabe, M. Poirot – disse Mr. Fullerton, com um ligeiro azedume –, não
entendo realmente porque veio até mim, e no que está verdadeiramente
interessado. Não pode decerto suspeitar de alguma ligação entre a morte da
Joyce Reynolds e a morte de um jovem promissor, que tinha porém
atividades um pouco criminosas e que morreu há alguns anos?
– Uma pessoa pode suspeitar de tudo – disse Poirot. – Tem de descobrir-
se mais.
– Desculpe, o que uma pessoa tem de ter em todas as matérias que lidam
com o crime são provas.
– Talvez tenha ouvido dizer que a rapariga morta, a Joyce, foi ouvida por
várias testemunhas a dizer que tinha visto um assassinato com os seus
próprios olhos.
– Num lugar como este – disse Mr. Fullerton –, ouve-se qualquer boato
que circule. Posso acrescentar que é ouvido também sob uma forma
exagerada e pouco credível.
– Isso também – disse Poirot – é bem verdade. A Joyce tinha, segundo me
dizem, apenas treze anos. Uma criança de nove anos poder-se-ia lembrar de
algo que visse, um acidente com atropelamento e fuga, uma discussão ou
luta com facas numa noite escura, ou uma professora que foi estrangulada,
digamos... essas coisas deixam marcas muito fortes na mente de uma
criança acerca das quais ela não falaria, estando talvez incerta quanto aos
factos que vira, e refletindo sobre eles. Até possivelmente esquecendo-se
deles, até que alguma coisa lhe acontecesse que a fizesse lembrar. Concorda
que é algo que poderia acontecer?
– Oh sim, sim mas não creio... Penso que é uma suposição muito
rebuscada.
– Também houve aqui, segundo creio, um desaparecimento de uma
rapariga estrangeira. O seu nome era Olga ou Sonia, não tenho a certeza
quanto ao apelido.
– Olga Seminoff. Sim, claro.
– Temo que não fosse uma personagem de confiança?
– Não.
– Ela era acompanhante, ou enfermeira de Mrs. Llewellyn-Smythe, que
me descreveu ainda agora, não era? Tia de Mrs. Drake...
– Sim. Ela teve várias raparigas nesse cargo, duas outras raparigas
estrangeiras, acho eu, uma das quais com quem ela se zangou quase de
imediato, e outra que era simpática mas terrivelmente estúpida. Mrs.
Llewellyn-Smythe não tinha paciência para aturar tolos. A Olga, a sua
última tentativa, parecia ter-se adaptado a ela muito bem. Ela não era, se
bem me lembro, uma rapariga especialmente bonita – disse Mr. Fullerton. –
Era baixa, bastante forte, tinha uma atitude severa, e as pessoas da
vizinhança não gostavam muito dela.
– Mas Mrs. Llewellyn-Smythe gostava dela – sugeriu Poirot.
– Ela apegou-se muito a ela de uma forma imprudente, ao que parecia na
altura.
– Ah, de facto.
– Não tenho qualquer dúvida – disse Mr. Fullerton – de que não lhe digo
nada que não tenha ouvido já. Como lhe digo, essas coisas espalham-se
como fogo.
– Segundo me dizem, Mrs. Llewellyn-Smythe deixou uma quantia
avultada de dinheiro à rapariga.
– Uma coisa muito surpreendente – disse Mr. Fullerton. – Mrs.
Llewellyn-Smythe não mudava os termos essenciais do seu testamento há
muitos anos, exceto para adicionar novas organizações de caridade ou
alterar legados que haviam sido anulados por morte. Talvez lhe diga o que
já sabe, se está interessado neste caso. O dinheiro dela sempre fora deixado
conjuntamente ao seu sobrinho, Hugo Drake, e à esposa dele, que era
também sua prima direita, e também sobrinha de Mrs. Llewellyn-Smythe.
Se algum deles falecesse antes dela o dinheiro iria para o sobrevivente.
Foram feitas bastantes doações a organizações de caridade e a antigos
criados. Mas a que se alegava ser a disposição final das posses dela foi feita
cerca de três semanas antes da sua morte, e não, como até então, redigida
pela nossa firma. Era um codicilo escrito pela mão dela. Incluía uma ou
duas caridades, não tantas como antes, os antigos criados não recebiam
quaisquer legados, e o resíduo total da sua considerável fortuna era deixado
à Olga Seminoff em gratidão pelo serviço dedicado e afeto que ela lhe
mostrara. Uma disposição muito surpreendente, que parecia ser diferente de
tudo o que Mrs. Llewellyn-Smythe fizera antes.
– E então?
– Presumivelmente conhece mais ou menos os desenvolvimentos. Pelo
depoimento dado por peritos em caligrafia, tornou-se claro que o codicilo
era uma falsificação absoluta. Tinha apenas uma leve semelhança com a
caligrafia de Mrs. Llewellyn-Smythe, nada mais do que isso. Mrs. Smythe
não gostava da máquina de escrever e pedia frequentemente a Olga que
escrevesse cartas de cariz pessoal, copiando a letra da sua patroa o quanto
fosse possível, por vezes até assinando a carta como a sua patroa. Tinha
muita prática nisso. Parece que quando Mrs. Llewellyn-Smythe morreu a
rapariga foi ainda mais longe e pensou ser suficientemente competente para
tornar a sua letra aceitável como sendo da sua patroa. Mas esse tipo de coisa
não adianta com peritos. Não, de facto não adianta.
– Estavam prestes a tomar providências para contestar o documento?
– Exatamente. Claro que houve o atraso legal costumeiro até que o
processo chegasse de facto ao tribunal. Durante esse período a rapariga
perdeu a coragem e bem, como o senhor disse agora mesmo, ela...
desapareceu.
22 Citação da peça The Mourning Bride de 1697, escrita por William
Congreve. (N. do T.)
 
 
Capítulo 13
 
 
 
 
 

D epois de Hercule Poirot se despedir e sair, Jeremy Fullerton sentara-se à


sua secretária batendo nela suavemente com os dedos. No entanto, os
seus olhos estavam distantes, perdidos enquanto pensava.
Pegou num documento que estava à sua frente e pousou os olhos nele,
mas sem focar o olhar. O zumbido discreto do telefone interno fê-lo pegar
no auscultador da sua secretária.
– Sim, Miss Miles?
– Está aqui Mr. Holden, sir.
– Sim. Sim, creio que tinha a sua marcação há quase três quartos de hora.
Deu alguma razão para estar tão atrasado? Sim, sim. Compreendo muito
bem. O mesmo tipo de desculpa que deu da última vez. Diga-lhe que estive
com outro cliente, e que agora não tenho tempo. Marque com ele para a
próxima semana, sim? Não podemos admitir este tipo de coisa.
– Sim, Mr. Fullerton.
Voltou a pousar o auscultador e sentou-se a olhar pensativo para o
documento que estava à sua frente. Ainda não o estava a ler. A sua mente
revia acontecimentos do passado. Há dois anos, perto disso, e nesta manhã
aquele homenzinho estranho com os seus sapatos de verniz e os seus
grandes bigodes, lembrara-o de tudo, ao fazer todas aquelas perguntas.
Agora lembrava-se de uma conversa de há quase dois anos.
Viu outra vez, sentada na cadeira à sua frente, uma rapariga, uma figura
baixa e forte, a pele castanha cor de azeitona, a boca generosa de um
vermelho-escuro, as maçãs do rosto e a ferocidade dos olhos azuis que
olharam sob os seus sobrolhos pesados e salientes. Um rosto arrebatado, um
rosto cheio de vitalidade, um rosto que conhecera o sofrimento, que
provavelmente sempre o conheceria, mas nunca o aprenderia a aceitar. O
tipo de mulher que lutaria e protestaria até ao fim. Interrogou-se, onde
estava agora? De alguma forma ou de outra, conseguira... o que conseguira
ela exatamente? Quem a ajudara? Alguém a ajudara? Alguém tivera de o
fazer.
Regressara, supôs, a algum ponto agitado da Europa Central, de onde
viera, onde pertencia, onde tivera de regressar porque não houvera outro
caminho a seguir a não ser que ela se contentasse com a perda da liberdade.
Jeremy Fullerton era um defensor da lei. Acreditava na lei, desprezava
muitos dos magistrados de hoje em dia com as suas sentenças fracas, a sua
aceitação de necessidades escolásticas. Estudantes que roubavam livros, a
jovem mulher casada que limpava prateleiras de supermercados, raparigas
que roubavam dinheiro aos patrões, rapazes que destruíam cabines
telefónicas, nenhuns deles realmente necessitados, nenhuns deles
desesperados, a maioria nada conhecera a não ser um excesso de
benevolência na educação e uma crença fervorosa de que podiam roubar
qualquer coisa que não pudessem comprar. E, no entanto, a par da sua
crença intrínseca na administração justa da lei, Mr. Fullerton era um homem
que tinha compaixão. Conseguia ter pena das pessoas. Conseguia ter pena, e
teve pena de Olga Seminoff, embora ficasse pouco afetado pelos
argumentos veementes que apresentara em defesa própria.
– Vim ter consigo para que me ajude. Pensei que me ajudaria. Foi
bondoso no ano passado. Ajudou-me com os formulários para que pudesse
ficar mais um ano em Inglaterra. Então dizem-me: «Não precisa de
responder a nenhumas perguntas às quais não queira responder. Pode ser
representada por um advogado.» Então venho até si.
– As circunstâncias que relatou – e Mr. Fullerton lembrou-se da forma
seca e fria com que dissera aquelas palavras, ainda mais seca e fria por
causa da pena que estava por detrás da natureza seca da declaração – não se
aplicam. Neste caso não posso agir em sua representação legal. Já
represento a família Drake. Como sabe, era o solicitador de Mrs. Llewellyn-
Smythe.
– Mas ela está morta. Ela não quer um solicitador, quando está morta.
– Ela gostava de si – disse Mr. Fullerton.
– Sim, ela gostava de mim. É isso que lhe digo. É por isso que ela queria
dar-me o dinheiro.
– Todo o seu dinheiro?
– Porque não? Porque não? Ela não gostava dos parentes.
– Engana-se. Ela gostava muito da sobrinha e do sobrinho.
– Bem, então, ela podia gostar de Mr. Drake mas não gostava de Mrs.
Drake. Achava-a muito cansativa. Mrs. Drake interferia. Nem sempre
deixava Mrs. Llewellyn-Smythe fazer o que queria. Não a deixava comer a
comida da qual ela gostava.
– Ela é uma mulher muito conscienciosa, e tentava que a sua tia
obedecesse às ordens do médico quanto à dieta e não fazer demasiado
exercício, e muitas outras coisas.
– As pessoas nem sempre querem obedecer às ordens de um médico. Não
querem que os parentes interfiram com elas. Gostam de viver as suas vidas
e de fazer o que querem, e de ter o que querem. Ela tinha muito dinheiro.
Ela podia ter tudo o que quisesse! Podia ter quanto quisesse de tudo. Era
rica, rica, muito rica, e podia fazer o que quisesse com o dinheiro. Eles já
têm bastante dinheiro, Mr. e Mrs. Drake. Têm uma bela casa, roupas e dois
carros. Estão muito bem na vida. Porque deveriam ter ainda mais?
– Eram os seus únicos parentes vivos.
– Ela queria que eu ficasse com o dinheiro. Tinha pena de mim. Sabia
aquilo por que eu passara. Sabia do meu pai, preso pela polícia e levado
embora. Nunca mais o vimos, a minha mãe e eu. E depois a minha mãe e a
forma como morreu. Toda a minha família morreu. É terrível, aquilo por
que passei. Não sabe o que é viver num Estado policial, como eu vivi. Não,
não. O senhor está do lado da polícia. Não está do meu lado.
– Não – disse Mr. Fullerton –, não estou do seu lado. Lamento muito o
que lhe aconteceu, mas foi você que provocou este sarilho.
– Isso não é verdade! Não é verdade que eu tenha feito algo que não
devesse fazer. Que fiz eu? Fui bondosa com ela, fui simpática. Levava-lhe
muitas coisas que não devia comer. Chocolates e manteiga. Nada a não ser
gorduras vegetais, o tempo todo. Ela não gostava de gorduras vegetais. Ela
queria manteiga. Queria muita manteiga.
– Não é apenas uma questão de manteiga – disse Mr. Fullerton.
– Cuidei dela, fui simpática com ela! E por isso ela ficou grata. E então
quando morreu e descobri que na sua gentileza e afeto deixou um papel
assinado no qual me deixava todo o seu dinheiro, então esses Drake vêm e
dizem que não o receberei. Dizem todo o tipo de coisas. Dizem que eu era
uma má influência. E dizem coisas piores. Muito piores. Dizem que eu
própria escrevi o testamento. Isso é um disparate. Ela escreveu-o. Ela
escreveu-o. E depois mandou-me sair do quarto. Chamou a mulher da
limpeza e o jardineiro, Jim.
«Disse que eles tinham de assinar o papel, não eu. Porque eu ia receber o
dinheiro. Porque não hei de receber o dinheiro? Porque não posso ter
alguma boa sorte na minha vida, alguma felicidade? Parecia tão
maravilhoso. Todas as coisas que planeei fazer quando soube.»
– Não tenho dúvidas, sim, não tenho dúvidas.
– Porque não hei de ter planos? Porque não alegrar-me? Vou ser feliz e
rica e vou ter todas as coisas que quero. Que fiz de errado? Nada. Nada,
digo-lhe. Nada.
– Tentei explicar-lhe – disse Mr. Fullerton.
– Isso é tudo mentira. Diz que eu minto. Diz que escrevi o papel. Não o
escrevi. Ela escreveu-o. Ninguém pode dizer o contrário.
– Certas pessoas podem dizer muitas coisas – disse Mr. Fullerton. –
Escute. Pare de protestar e escute-me. É verdade que Mrs. Llewellyn-
Smythe nas cartas que escrevia para ela, muitas vezes lhe pedia para copiar
a letra dela o melhor que pudesse, não é? Isso era porque tinha a ideia
antiquada de que enviar cartas escritas à máquina a amigos ou conhecidos
era um ato rude. É uma ideia que sobreviveu dos tempos vitorianos. Hoje
em dia ninguém se importa se recebe cartas escritas à mão ou à máquina.
Mas para Mrs. Llewellyn-Smythe isso era pouco cortês. Entende o que
estou a dizer?
– Sim, entendo. Por isso ela pediu-me. Diz-me: «Então, Olga, estas
quatro cartas, vais responder-lhes como te disse e como anotaste. Mas vais
escrevê-las à mão e vais fazer a letra o mais parecida possível com a
minha.» E disse-me que praticasse escrever com a sua letra, para reparar
como ela fazia os «a»s e os «b»s e os «l»s e todas as letras. «Desde que seja
razoavelmente parecida com a minha letra», disse ela, «está bem, e depois
podes assinar o meu nome. Mas não quero que as pessoas pensem que já
não consigo escrever as minhas próprias cartas. Apesar de que, como sabes,
o reumatismo no meu pulso está a piorar e tenho mais dificuldade, mas não
quero as minhas cartas pessoais escritas à máquina.»
– Podia tê-las escrito na sua letra normal – disse Mr. Fullerton – e feito
uma nota no fim a dizer «pela secretária» ou pôr as suas iniciais se quisesse.
– Ela não queria que eu fizesse isso. Queria que se pensasse que ela
própria escrevera as cartas.
E isso, pensou Mr. Fullerton, podia bem ser verdade. Era uma coisa muito
própria de Louise Llewellyn-Smythe. Ela tivera sempre um enorme
ressentimento por não poder continuar a fazer as coisas que fizera antes, por
não poder caminhar distâncias longas ou subir colinas rapidamente, ou fazer
certas ações com as mãos, especialmente a mão direita. Queria poder dizer
«Estou perfeitamente bem, perfeitamente, e não há nada que não consiga
fazer se me decidir a isso». Sim, o que Olga lhe contava agora era
completamente verdade, e essa era uma das razões pelas quais o codicilo
anexado ao último testamento devidamente redigido e assinado por Louise
Llewellyn-Smythe fora aceite, a princípio sem suspeitas. Foi no seu próprio
gabinete, refletiu Mr. Fullerton, que se haviam levantado suspeitas porque
tanto ele como o seu sócio mais novo conheciam muito bem a letra de Mrs.
Llewellyn-Smythe. Fora o jovem Cole que dissera primeiro:
– Sabe, de facto não acredito que a Louise Llewellyn-Smythe tenha
escrito esse codicilo. Sei que ela tem sofrido de artrite ultimamente, mas
olhe para estes exemplos da letra dela que eu trouxe dos documentos para
lhe mostrar. Há algo de errado neste codicilo.
Mr. Fullerton concordara que havia algo de errado. Dissera que
procurariam a opinião de um perito nessa questão da letra. A resposta fora
muito definitiva. Opiniões separadas não haviam variado. A letra do
codicilo não era definitivamente a de Louise Llewellyn-Smythe. Se Olga
tivesse sido menos gananciosa, pensou Mr. Fullerton, se ela se tivesse
contentado com escrever um codicilo que começasse como esse começara:
«Pelo seu grande cuidado e atenção comigo, o afeto e bondade que me
mostrou, deixo...» Fora assim que começara, era como poderia ter
começado, e se continuasse a especificar uma boa quantia redonda de
dinheiro a deixar à dedicada au pair, os parentes talvez tivessem
considerado exagerado, mas teriam aceitado sem questionar. Mas cortar
completamente os parentes, o sobrinho que fora o legatário residual nos
quatro testamentos que ela fizera num período de quase vinte anos, deixar
tudo à desconhecida Olga Seminoff... isso não era próprio do carácter de
Louise Llewellyn-Smythe. De facto, uma alegação de influência indevida
poderia de qualquer forma invalidar um documento desses. Não. Ela fora
gananciosa, essa jovem calorosa e impulsiva. Mrs. Llewellyn-Smythe
dissera-lhe, possivelmente, que algum dinheiro lhe seria deixado por causa
da sua bondade, da sua atenção, por causa do afeto que uma velha senhora
começava a sentir por essa rapariga que satisfazia todos os seus caprichos,
que fazia tudo o que ela lhe pedisse. E isso abrira uma janela para Olga.
Ficaria com tudo. A velha deixar-lhe-ia tudo, e ela ficaria com todo o
dinheiro. Todo o dinheiro e a casa, as roupas e as joias. Tudo. Uma rapariga
gananciosa. E agora o castigo apanhara-a.
E Mr. Fullerton, contra a sua vontade, contra os seus instintos legais e
contra muito mais, sentira pena dela. Muita pena dela. Ela conhecera o
sofrimento desde criança, conhecera os rigores de um Estado policial,
perdera os pais, perdera um irmão e uma irmã, conhecera a injustiça e o
medo, e isso desenvolvera nela uma característica com que sem dúvida
nascera mas que nunca tivera hipótese de gozar. Desenvolvera uma
ganância infantil e impulsiva.
– Todos estão contra mim – dissera Olga. – Todos. Estão todos contra
mim. Não são justos porque sou estrangeira, porque não pertenço a este
país, porque não sei o que dizer, o que fazer. O que posso fazer? Porque não
me diz o que posso fazer?
– Porque não acho que haja de facto muito que possa fazer – disse Mr.
Fullerton. – A sua melhor hipótese é contar toda a verdade.
– Se digo o que quer que eu diga, será tudo mentira e não a verdade. Ela
fez aquele testamento. Ela escreveu-o lá. Disse-me que saísse do quarto
enquanto os outros o assinavam.
– Há provas contra si, sabe. Há pessoas que dirão que Mrs. Llewellyn-
Smythe muitas vezes não sabia o que assinava. Tinha diversos documentos
de tipos diferentes, e nem sempre relia o que lhe apresentavam.
– Bem, então ela não sabia o que dizia.
– Minha cara jovem – disse Mr. Fullerton –, a sua melhor esperança é o
facto de que é o seu primeiro crime, de que é estrangeira, de que entende a
língua inglesa apenas de uma forma rudimentar. Nesse caso pode escapar
com uma pena menor, ou pode de facto ficar em liberdade condicional.
– Oh, palavras. Nada mais que palavras. Serei posta na prisão e nunca
mais serei libertada.
– Agora está a dizer disparates – disse Mr. Fullerton.
– Seria melhor se eu fugisse, se fugisse e me escondesse para que
ninguém me encontrasse.
– A partir do momento em que haja um mandado para a sua prisão, será
encontrada.
– Não se eu o fizesse rapidamente. Não se fosse já. Não se alguém me
ajudasse. Se eu fugisse. Fugisse de Inglaterra. Num barco ou num avião. Eu
poderia encontrar alguém que falsifique passaportes ou vistos, ou seja o que
for que seja preciso. Alguém que faça algo por mim. Tenho amigos. Tenho
pessoas que gostam de mim. Alguém poder-me-ia ajudar a desaparecer. Isso
é o que eu precisava. Eu podia usar uma peruca. Podia andar de muletas.
– Ouça – dissera Mr. Fullerton, e falara então com autoridade. – Lamento
muito por si. Recomendar-lhe-ei um advogado que fará o melhor por si.
Não pode ter esperanças de desaparecer. Está a falar como uma criança.
– Tenho dinheiro suficiente. Poupei dinheiro.
E então dissera:
– Tentou ser bondoso. Sim, eu acredito nisso. Mas não fará nada porque é
a lei... a lei. Mas alguém me ajudará. Alguém o fará. E eu escaparei para
onde ninguém me encontrará.
Ninguém, pensou Mr. Fullerton, a encontrara. Interrogou-se... sim;
interrogou-se repetidamente, onde ela estava ou poderia estar agora.
 
 
Capítulo 14
 
 
 
I
 
 

A oditoentrar em Apple Trees, Hercule Poirot foi conduzido ao salão e foi-lhe


que Mrs. Drake viria dentro de pouco tempo.
Ao passar através do átrio ouviu o zumbido de vozes femininas do outro
lado do que pensou ser a porta da sala de jantar.
Poirot atravessou até à janela da sala de estar e observou o jardim
aprumado e agradável. Bem organizado, mantido sob um controlo
consciencioso. Ainda sobreviviam algumas margaridas-do-outono
exuberantes, atadas de forma severa a paus; os crisântemos ainda não
haviam desistido da vida. Havia ainda uma ou duas rosas persistentes que
escarneciam da chegada do inverno.
Poirot não conseguia vislumbrar por enquanto algum indício das
atividades preliminares de um arquiteto paisagista. Tudo era cuidado e
convenção. Interrogou-se se Mrs. Drake fora demasiado para Michael
Garfield. Se ele espalhara os seus iscos em vão. Mostrava todos os sinais de
permanecer um jardim suburbano mantido de forma esplêndida.
A porta abriu-se.
– Peço desculpa por fazê-lo esperar, M. Poirot – disse Mrs. Drake.
Lá fora no átrio havia o zumbido decrescente de vozes enquanto várias
pessoas se despediam e iam embora.
– É a nossa festa de Natal da igreja – explicou Mrs. Drake. – Uma reunião
da comissão para tratar dos preparativos. Estas coisas demoram sempre
mais do que deveriam, claro. Há sempre alguém que se opõe a alguma
coisa, ou que tem uma boa ideia... boa ideia essa que acaba habitualmente
por ser totalmente impossível.
Havia no seu tom algo de azedo. Poirot conseguia imaginar que Rowena
Drake chamasse absurdas a certas coisas, de um modo firme e decisivo.
Percebia, pelos comentários que ouvira da irmã de Spence, por alusões que
outras pessoas haviam feito e por várias outras fontes, que Rowena Drake
tinha o tipo de personalidade dominante que todos esperam que comande as
coisas, e por quem ninguém nutre muito afeto enquanto o faz. Imaginava,
também, que a sua diligência não seria do tipo que seria apreciada por uma
parente idosa que era também do mesmo tipo. Mrs. Llewellyn-Smythe,
segundo lhe havia sido dito, viera para ali viver para estar próxima do
sobrinho e da esposa dele, e a esposa tomara prontamente a seu cargo a
supervisão e cuidado da tia do seu marido na medida do possível sem viver
na sua casa. Mrs. Llewellyn-Smythe teria provavelmente reconhecido para
si própria que devia bastante a Rowena, e teria ao mesmo tempo ficado
ressentida com o que sem dúvida julgara ser a sua atitude autoritária.
– Bem, agora já foram todos embora – disse Rowena Drake, ouvindo a
porta do átrio fechar-se pela última vez. – Então o que posso fazer por si?
Alguma coisa mais relacionada com aquela festa medonha? Desejava nunca
a ter organizado aqui. Mas nenhuma outra casa parecia adequada. Mrs.
Oliver ainda está hospedada com a Judith Butler?
– Sim. Creio que regressa a Londres dentro de um ou dois dias. Não a
havia conhecido antes?
– Não. Adoro os livros dela.
– Creio que é considerada como uma escritora muito boa – disse Poirot.
– Oh, bem, ela é boa escritora. Quanto a isso não há dúvida. É uma
pessoa muito divertida, também. Ela tem algumas ideias, quero dizer, sobre
quem poderá ter feito esta coisa terrível?
– Penso que não. E a madame?
– Já lhe disse. Não faço a mínima ideia.
– Talvez me dissesse isso, e, no entanto, poderia talvez ter algo que fosse
uma ideia muito boa, mas apenas uma ideia, não poderia? Uma ideia
semiformada. Uma ideia possível.
– Porque pensaria isso?
Olhou-o com curiosidade.
– Poderia ter visto alguma coisa, algo que fosse bastante pequeno e nada
importante, mas que após reflexão pudesse parecer-lhe mais significativo,
talvez, do que a princípio.
– Deve ter algo em mente, M. Poirot, algum incidente concreto.
– Bem, admito. É por algo que me foi dito.
– Deveras! E quem o disse?
– Uma Miss Whittaker. Professora.
– Oh sim, claro. A Elizabeth Whittaker. Ela é a professora de Matemática
em The Elms, não é? Ela esteve na festa, lembro-me. Ela viu alguma coisa?
– Não foi tanto o que ela viu, foi ela ter a ideia de que a madame pode ter
visto alguma coisa.
Mrs. Drake fez um ar surpreendido e abanou a cabeça.
– Não consigo pensar em nada que possa ter visto – disse Rowena Drake
–, mas nunca se sabe.
– Tinha a ver com um vaso – disse Poirot. – Um vaso com flores.
– Um vaso com flores? – Rowena Drake parecia perplexa. Depois o seu
sobrolho parou de franzir. – Oh, claro, eu sei. Sim, havia um vaso grande
com folhas de outono e crisântemos na mesa do canto das escadas. Um vaso
de vidro muito bonito. Um dos meus presentes de casamento. As folhas
pareciam murchas e uma ou duas das flores também. Lembro-me de reparar
nisso ao passar pelo átrio, foi perto do fim da festa, acho eu, por essa altura,
mas não tenho a certeza... interroguei-me porque teria aquele aspeto, e pus
os dedos no vaso, e descobri que algum idiota se esquecera de lhe pôr água
depois de fazer o arranjo. Fiquei muito zangada. Então entrei na casa de
banho e enchi-o. Mas o que poderia eu ter visto naquela casa de banho?
Não estava lá ninguém. Tenho a certeza. Creio que alguns dos rapazes e
raparigas mais velhos estavam lá, como dizem os Americanos, «na
marmelada», de forma inofensiva, durante a festa, mas de certeza que não
estava lá ninguém quando entrei com o vaso.
– Não, não, não me refiro a isso – disse Poirot. – Mas foi-me dito que
houve um acidente. Que o vaso lhe fugiu das mãos e que caiu cá abaixo no
átrio e se partiu em pedaços.
– Oh sim – disse Rowena. – Partiu-se em mil pedaços. Fiquei bastante
transtornada porque, como disse, foi um dos nossos presentes de casamento,
e era de facto um vaso de flores perfeito, suficientemente pesado para
conter bouquets de outono grandes e coisas assim. Escorregou-me das mãos
e partiu-se no átrio. A Elizabeth Whittaker estava lá. Ajudou-me a apanhar
os pedaços e a varrer algum do vidro partido para o caso de alguém o pisar.
Varremo-lo para um canto junto do relógio grande, para que fosse limpo
mais tarde.
Olhou para Poirot com um ar interrogador.
– Refere-se a esse incidente? – perguntou.
– Sim – disse Poirot. – Miss Whittaker interrogou-se, creio, como havia
deixado cair o vaso. Pensou que algo talvez a tivesse sobressaltado.
– Me tivesse sobressaltado? – Rowena Drake olhou para ele, e franziu o
sobrolho ao pensar outra vez. – Não, pelo menos não creio que estivesse
sobressaltada. Foi apenas uma daquelas situações em que as coisas nos
escorregam das mãos. Às vezes quando se lava a louça. Na verdade acho
que é resultado do cansaço. Estava bastante cansada a essa hora, com os
preparativos para a festa e tratar da festa e todo o resto. Correu muito bem,
devo dizer. Creio que foi... oh, apenas uma dessas ações desastradas que
não se consegue evitar quando se está cansado.
– Não houve nada, tem a certeza, que a tenha sobressaltado? Algo
inesperado que tenha visto?
– Visto? Onde? No átrio lá em baixo? Não vi ninguém no átrio. Estava
vazio nesse momento porque todos estavam no Snapdragon exceto Miss
Whittaker, claro. E eu não creio que tenha reparado nela até que ela veio
ajudar quando desci a correr.
– Viu alguém, talvez, a sair pela porta da biblioteca?
– A porta da biblioteca... sei a que se refere. Sim, eu poderia ter visto
isso. – Parou durante um bom bocado, depois olhou para Poirot com um
olhar direto e firme. – Não vi ninguém a sair da biblioteca – disse ela. –
Absolutamente ninguém...
Ele ficou intrigado. Foi a forma como ela o disse que despertou a
convicção na sua mente de que ela não dizia a verdade, que em vez disso
ela havia visto alguém ou alguma coisa, talvez a porta a abrir-se apenas um
pouco, um mero vislumbre talvez de uma figura lá dentro. Mas ela foi firme
na sua negação. Interrogou-se, porque teria sido ela tão firme? Porque a
pessoa que tinha visto era uma pessoa que ela não queria acreditar por um
instante ter algo a ver com o crime cometido no outro lado da porta?
Alguém de quem ela gostava, ou alguém, como pensou que parecia ser mais
provável, que ela desejava proteger. Alguém, talvez, que não tivesse
passado muito para além da infância, alguém que ela julgasse não estar
verdadeiramente consciente da coisa terrível que acabara de fazer.
Julgou-a como sendo uma criatura dura mas uma pessoa íntegra. Pensou
que ela era, como muitas mulheres do mesmo tipo, mulheres que eram
muitas vezes magistradas, que geriam assembleias municipais ou
organizações de caridade, ou se interessavam pelo que se chamou em
tempos de «boas obras».
Mulheres que tinham uma crença extraordinária em circunstâncias
atenuantes, que estavam prontas, estranhamente, a desculpar o jovem
criminoso. Um rapaz adolescente, uma rapariga com deficiência mental.
Talvez alguém que já tivesse estado, qual era o termo, «a cargo do Estado».
Se tivesse sido esse o tipo de pessoa que vira a sair da biblioteca, então ele
pensou que fosse possível que o instinto protetor de Rowena Drake tivesse
entrado na jogada. Não era inédito nos dias que correm que crianças
cometessem crimes, crianças bastante jovens. Crianças de sete anos, de
nove anos e por aí fora, e era muitas vezes difícil saber como tratar estes
jovens criminosos aparentemente natos que apareciam perante os tribunais
de menores. Tinham de se inventar desculpas para eles. Lares desfeitos.
Pais negligentes e pouco adequados. Mas as pessoas que falavam com mais
veemência a favor deles, as pessoas que procuravam criar todas as
desculpas para eles, eram geralmente do tipo de Rowena Drake. Uma
mulher severa e crítica, exceto nesses casos.
Poirot não concordava com isso. Era um homem que pensava sempre na
justiça em primeiro lugar. Suspeitava, desde sempre, da misericórdia,
demasiada misericórdia, isto é. Demasiada misericórdia, como sabia pela
experiência prévia tanto na Bélgica e neste país, resultava muitas vezes em
crimes subsequentes que eram fatais para vítimas inocentes que não
precisavam de ter sido vítimas se a justiça tivesse vindo em primeiro lugar e
a misericórdia em segundo.
– Compreendo – disse Poirot. – Compreendo.
– Não acha possível que Miss Whittaker possa ter visto alguém entrar na
biblioteca? – sugeriu Mrs. Drake.
Poirot ficou interessado.
– Ah, acha que pode ter sido isso?
– Pareceu-me uma mera possibilidade. Ela pode ter vislumbrado alguém
a entrar na biblioteca, digamos, talvez cinco minutos antes, e depois,
quando eu deixei cair o vaso, pode ter-lhe parecido que eu poderia ter visto
a mesma pessoa. Que eu poderia ter visto quem era. Talvez ela não queira
dizer algo que possa sugerir, talvez injustamente, alguma pessoa que ela só
vira de relance, não de modo a ter certeza. Uma vista de trás de uma
criança, ou de um jovem rapaz talvez.
– A madame acha que foi, digamos, uma criança, um rapaz ou rapariga,
uma mera criança, ou um jovem adolescente, não acha? Não tem a certeza
de qual deles, mas, digamos, acha que são o tipo mais provável de ter
cometido o crime que discutimos?
Ela considerou a questão de modo pensativo, na sua mente.
– Sim – disse por fim –, suponho que acho. Não pensei nisso a fundo.
Parece-me que hoje em dia os crimes são tantas vezes associados com os
jovens. Pessoas que na realidade não sabem bem o que fazem, que desejam
vinganças tontas, que têm um instinto para a destruição. Mesmo as pessoas
que destroem cabines telefónicas, ou que furam pneus de carros, fazem todo
o tipo de coisas para magoar outras pessoas, apenas porque odeiam, não
alguém em particular, mas todo o mundo. É uma espécie de sintoma desta
época. Por isso imagino que quando aparece algo como uma criança
afogada numa festa sem razão, uma pessoa presume que seja alguém que
não é ainda totalmente responsável pelas suas ações. Não concorda comigo
que, que... bem, que isso é com certeza o mais provável neste caso?
– Creio que a polícia partilha do seu ponto de vista, ou partilhava.
– Bem, eles têm a obrigação de saber. Temos uma polícia muito boa neste
distrito. Saíram-se bem em diversos crimes. São minuciosos e nunca
desistem. Penso que vão provavelmente resolver este assassinato, apesar de
que não creio que o farão muito rapidamente. Estas coisas parecem demorar
muito tempo. Um longo tempo de recolha paciente de provas.
– As provas neste caso não serão muito fáceis de recolher, madame.
– Não, calculo que não. Quando o meu marido foi morto... ele era
aleijado, sabe. Estava a atravessar a estrada e um carro atropelou-o e atirou-
o ao chão. Nunca encontraram a pessoa responsável. Como sabe, o meu
marido, ou talvez não saiba, o meu marido era uma vítima da poliomielite.
Ficou parcialmente paralisado em resultado disso, há seis anos. O seu
estado melhorara, mas ainda era aleijado, e ser-lhe-ia difícil sair do caminho
se um carro se dirigisse a ele com velocidade. Quase senti que foi culpa
minha, apesar de que ele insistia sempre em sair sem mim ou sem ter
alguém com ele, porque teria sentido muito ressentimento se estivesse
entregue ao cuidado de uma enfermeira, ou de uma esposa que assumisse o
papel de uma enfermeira, e ele era sempre muito cuidadoso antes de
atravessar uma estrada. Ainda assim, uma pessoa culpa-se a si própria
quando os acidentes acontecem.
– Isso aconteceu logo a seguir à morte da sua tia?
– Não. Ela morreu pouco tempo depois. Parece que tudo acontece ao
mesmo tempo, não parece?
– Isso é bem verdade – disse Hercule Poirot. Continuou: – A polícia não
foi capaz de localizar o carro que atropelou o seu marido?
– Era um Grasshopper Mark 7, creio. A cada três carros que se veem na
estrada, um é um Grasshopper Mark 7, ou era na altura. É o carro mais
popular no mercado, pelo que me dizem. Pensam que foi roubado no
mercado em Medchester. Um parque de estacionamento que há lá. Pertencia
a um Mr. Waterhouse, um comerciante de sementes idoso em Medchester.
Mr. Waterhouse era um condutor lento e cuidadoso. De certeza que não foi
ele que causou o acidente. Foi claramente um desses casos onde jovens se
apoderam dos carros. Uma pessoa sente por vezes que jovens tão
descuidados, ou deveria dizer indiferentes, deveriam ser tratados com mais
severidade do que são agora.
– Uma pena de prisão longa, talvez. Ser meramente multado, e a multa
ser paga por familiares complacentes, faz pouca impressão.
– Uma pessoa tem de se lembrar – disse Rowena Drake –, de que há
gente jovem numa idade em que é vital que continuem com os seus estudos
se querem ter hipótese de ter sucesso na vida.
– A educação é uma vaca sagrada – disse Hercule Poirot. – Esta é uma
frase que ouvi ser dita – acrescentou rapidamente – por pessoas... bem,
devo dizer que por pessoas que têm obrigação de saber. Pessoas que
ocupam elas próprias cargos académicos de alguma categoria.
– Talvez não façam concessões à juventude, a uma má educação. Lares
desfeitos.
– Então acha que precisam de algo mais do que penas de prisão?
– Tratamento corretivo apropriado – disse Rowena Drake com firmeza.
– E isso vai fazer, utilizando outro velho provérbio, com que o pau que
nasça torto se endireite? Não acredita na máxima «a cada homem lhe
penduraremos ao pescoço o seu destino»23?
Mrs. Drake pareceu extremamente duvidosa e ligeiramente incomodada.
– Um provérbio islâmico, creio – disse Poirot. Mrs. Drake pareceu não
ficar impressionada.
– Espero – disse ela – que não retiremos as nossas ideias, ou talvez
devesse dizer os nossos ideais, do Médio Oriente.
– Uma pessoa deve aceitar os factos – disse Poirot –, e um facto que é
exprimido por biólogos modernos, biólogos ocidentais – apressou-se a
acrescentar –, parece sugerir com muita veemência que a raiz das ações de
uma pessoa reside na sua constituição genética. Que um assassino de vinte e
quatro anos era um assassino em potência com três ou quatro anos. Ou, é
claro, um matemático ou um génio musical.
– Não estamos a falar de assassinos – disse Mrs. Drake. – O meu marido
morreu em resultado de um acidente. Um acidente causado por uma
personalidade descuidada e mal-adaptada. Quem quer que fosse o rapaz ou
o homem, não há sempre a esperança da eventual adaptação à crença e
aceitação de que é um dever ter consideração pelos outros, de ser ensinado
a sentir repulsa por se roubar uma vida inadvertidamente, simplesmente
através do que se pode descrever como negligência criminosa e que não foi
realmente criminosa na sua intenção?
– Tem a certeza, portanto, de que não foi criminosa na sua intenção?
– Duvidaria muito – Mrs. Drake pareceu ficar algo surpreendida.
– Não penso que a polícia alguma vez considerasse essa possibilidade
seriamente. Eu não o fiz de certeza. Foi um acidente. Um acidente muito
trágico que alterou o curso de muitas vidas, incluindo a minha.
– Diz que não estamos a falar de assassinos – disse Poirot. – Mas no caso
da Joyce é disso mesmo que estamos a falar. Não houve acidente nisso.
Mãos intencionais empurraram a cabeça daquela criança para dentro de
água, segurando-a até que a morte ocorresse. Intenção premeditada.
– Eu sei. Eu sei. É terrível. Não gosto de pensar nisso, de ser lembrada
disso.
Levantou-se, movimentando-se de forma irrequieta. Poirot prosseguiu,
implacável.
– Ainda temos à nossa frente uma escolha quanto a isso. Ainda temos de
encontrar o motivo.
– Parece-me que tal crime deve ter sido completamente desprovido de
motivo.
– Quer dizer cometido por alguém com perturbações mentais de tal ordem
que gostasse de matar alguém? Presumivelmente de matar alguém novo e
imaturo.
– Ouve-se falar de casos desses. Qual a causa primeira deles, é difícil de
descobrir. Mesmo os psiquiatras discordam uns dos outros.
– Recusa-se a aceitar uma explicação mais simples?
Ela pareceu ficar desconcertada.
– Mais simples?
– Alguém que não fosse mentalmente perturbado, não um possível caso
acerca do qual os psiquiatras discordassem. Talvez alguém que apenas
quisesse estar seguro.
– Seguro? Oh, quer dizer...
– A rapariga gabara-se nesse mesmo dia, algumas horas antes, de que vira
alguém cometer um assassinato.
– A Joyce – disse Mrs. Drake com uma certeza calma – era uma
rapariguinha muito parva. Não era sempre, receio, muito verdadeira.
– É o que todos me disseram – disse Hercule Poirot. – Começo a
acreditar, sabe, que o que todos me disseram deve ser verdade – acrescentou
com um suspiro. – Geralmente é.
Levantou-se, adotando uma atitude diferente.
– Devo pedir desculpas, madame. Falei-lhe de coisas dolorosas, coisas
que na verdade não me dizem respeito. Mas pelo que me disse Miss
Whittaker pareceu...
– Porque não descobre mais junto dela?
– Quer dizer...?
– Ela é professora. Ela sabe, muito melhor do que eu, quais as
potencialidades, como lhes chamou, que existem nas crianças a quem
ensina.
Fez uma pausa e depois disse:
– Miss Emlyn também.
– A diretora? – Poirot pareceu surpreendido.
– Sim. Ela sabe muita coisa. Quero dizer, ela é uma psicóloga nata. O
senhor disse que eu poderia ter ideias, semiformadas, sobre quem matou a
Joyce. Eu não as tenho, mas penso que Miss Emlyn poderá tê-las.
– Isso é interessante...
– Não quero dizer que tenha provas. Quero dizer que ela simplesmente
sabe. Ela poder-lhe-ia dizer, mas não creio que o fará.
– Começo a ver – disse Poirot – que tenho ainda um longo caminho a
percorrer. As pessoas sabem coisas, mas não mas dizem.
Olhou pensativamente para Rowena Drake.
– A sua tia, Mrs. Llewellyn-Smythe, teve uma au pair que cuidava dela,
uma rapariga estrangeira.
– Parece ter-se apercebido muito bem dos mexericos locais. – Rowena
falou num tom seco. – Sim, é verdade. Ela foi-se embora de um modo algo
repentino pouco tempo depois da morte da minha tia.
– Teve boas razões para o fazer, ao que parece.
– Não sei se é difamação ou calúnia dizê-lo, mas não parece haver dúvida
de que ela falsificou um codicilo do testamento da minha tia, ou que alguém
a ajudou a fazê-lo.
– Alguém.
– Ela era amiga de um jovem que trabalhava num escritório de um
solicitador em Medchester. Ele estivera envolvido num caso de falsificação
antes. O caso nunca chegou a tribunal porque a rapariga desapareceu. Ela
apercebeu-se de que o testamento não seria admitido em tribunal de
sucessão, e de que haveria um caso em tribunal penal. Deixou a vizinhança
e nunca mais se ouviu falar dela.
– Ela veio também de um lar desfeito, segundo ouvi dizer – disse Poirot.
Rowena Drake olhou para ele com severidade mas ele sorria
amavelmente.
– Obrigado por tudo o que me contou, madame – disse ele.
 
 
II
 
Quando Poirot saíra da casa, foi dar uma pequena caminhada ao longo de
um desvio da estrada principal que tinha um sinal que dizia «estrada do
Cemitério de Helpsly». Não demorou a chegar ao cemitério em questão. Era
uma caminhada de dez minutos, no máximo. Era óbvio que se tratava de um
cemitério que fora feito nos últimos dez anos, presumivelmente para lidar
com a importância crescente de Woodleigh como zona residencial. A igreja,
que era de um tamanho razoável e que era datada de há um ou dois séculos,
tinha um recinto muito pequeno à sua volta, o qual já estava bem
preenchido. Por isso o cemitério novo nascera com um caminho pedonal
que o ligava através de dois campos. Poirot pensou que era um cemitério
moderno e prático com sentimentos apropriados gravados em lajes de
mármore ou granito; tinha urnas, brita, pequenas plantações de arbustos ou
flores. Nada de epitáfios antigos ou dedicatórias interessantes. Nada de
importância para um antiquário. Limpo, asseado, bem-arranjado e com
sentimentos adequados exprimidos.
Parou para ler uma tabuleta erigida numa campa contemporânea com
várias outras junto dela, todas datadas de dois ou três anos antes. Tinha uma
dedicatória simples, «Consagrada à memória de Hugo Edmund Drake,
marido amado de Rowena Arabella Drake, que partiu desta vida em 20 de
março de 19...
 
Ele concede o seu sono amado
 
Ocorreu a Poirot, ainda fresco do impacto da dinâmica Rowena Drake,
que talvez o sono tivesse sido bem-vindo pelo falecido Mr. Drake.
Uma urna de alabastro fora ali fixada e continha restos de flores. Um
jardineiro idoso, obviamente empregado para cuidar das campas dos bons
cidadãos idos desta vida, aproximou-se de Poirot na esperança amigável de
alguns minutos de conversa enquanto pousou a sua enxada e a sua vassoura
ao lado.
– É forasteiro nestes lados, acho eu – disse ele –, não é, sir?
– É bem verdade – disse Poirot. – Sou forasteiro no meio de vós como o
foram os meus pais antes de mim.24
– Ah sim. Temos esse texto algures, ou algo parecido. Além no canto, é
onde está. – Continuou. – Era um senhor simpático, Mr. Drake. Um
aleijado, sabe. Teve aquela paralisia infantil, como lhe chamam, apesar de
que muitas vezes não são crianças que sofrem dela. São adultos. Homens, e
mulheres também. A minha mulher tinha uma tia, que a apanhou em
Espanha. Foi lá numa excursão, e tomou banho algures num rio. E depois
disseram que foi infeção da água, mas não acho que saibam muito. Os
médicos não sabem, se quer saber. Ainda assim, tem feito diferença hoje em
dia. Toda esta inoculação que dão às crianças, e isso. Não há tantos casos
como havia. Sim, ele era um senhor simpático, e não se queixava, embora o
afetasse, ser aleijado, quero eu dizer. Ele tinha sido um belo desportista, no
tempo dele. Jogava aqui na equipa de críquete da vila. Muitos pontos
marcou ele. Sim, era um senhor simpático.
– Morreu num acidente, não foi?
– Assim foi. A atravessar a estrada, perto do crepúsculo. Um desses
carros veio, com um par desses rufiões com barbas até às orelhas lá dentro.
É o que dizem. Nem pararam. Continuaram. Nem olharam para ver.
Abandonaram o carro algures num parque de estacionamento a uns trinta
quilómetros. Também não era o carro deles. Roubaram-no de um parque de
estacionamento algures. Ah, é terrível, muitos desses acidentes hoje em dia.
E muitas vezes a polícia não pode fazer nada acerca deles. A esposa dele
era-lhe muito dedicada. Ficou muito transtornada. Vem cá quase todas as
semanas, traz flores e põe-nas aí. Sim, eram um casal muito dedicado. Na
minha opinião, ela não fica aqui muito mais tempo.
– De verdade? Mas ela tem uma casa muito agradável aqui.
– Sim, oh sim. E ela faz muito na vila, sabe. Todas essas coisas, institutos
de mulheres, chás e várias associações e tudo isso. Ela gere muitas coisas.
Gere coisas a mais para o gosto de muitas pessoas. Mandona, sabe.
Mandona e intrometida, é o que dizem algumas pessoas. Mas o vigário
depende dela. Ela faz coisas. Atividades para mulheres e isso. Organiza
excursões e saídas. Ah sim. Muitas vezes pensei, se bem que não gostaria
de o dizer à minha mulher, que todas essas boas obras que essas senhoras
fazem, não fazem com que se goste mais das próprias senhoras. Sabem
sempre mais, elas. Estão sempre a dizer o que se deve fazer e o que não se
deve fazer. Sem liberdade. Hoje em dia não há muita liberdade por aqui.
– E, no entanto, acha que Mrs. Drake pode ir-se embora daqui?
– Não me espantaria se ela fosse embora viver algures no estrangeiro.
Eles gostavam de estar no estrangeiro, iam lá nas férias.
– Porque acha que ela se quer ir embora daqui?
Um sorriso malicioso repentino surgiu no rosto do velho.
– Bem, eu diria, sabe, que ela fez tudo o que poderia fazer aqui. Para
dizê-lo de forma bíblica, ela precisa de outra vinha para cultivar. Precisa de
mais boas obras. Aqui já não há mais obras boas para serem feitas. Ela já
fez tudo, e mais do que era preciso fazer, na opinião de alguns.
– Então ela precisa de um novo campo para lavrar?
– Acertou. Será melhor assentar noutro sítio onde pode corrigir muitas
coisas e intimidar muitas outras pessoas. Ela aqui já nos tem como nos quer
e não há muito para ela fazer.
– Talvez – disse Poirot.
– Nem sequer tem o marido para cuidar. Cuidou dele durante uns anos.
Isso deu-lhe um objetivo na vida, poder-se-ia dizer. Com isso e um monte
de atividades complementares, ela podia estar sempre ocupada. Ela é do
género que gosta de estar sempre ocupada. E não tem filhos, o que é uma
pena. Por isso é minha opinião que ela deverá começar de novo noutro
lugar.
– Pode ter alguma razão. Para onde iria?
– Isso não sei. Um desses sítios da Riviery25 talvez, ou há também quem
vá para Espanha ou Portugal. Ou Grécia, ouvi-a falar da Grécia, ilhas. Mrs.
Butler, ela foi à Grécia numa dessas excursões. Helénicas, é o que lhes
chamam, o que me soa a mim como alguma coisa infernal.
Poirot sorriu.
– As ilhas da Grécia – murmurou. Depois perguntou: – Gosta dela?
– Mrs. Drake? Não diria exatamente que gosto dela. Ela é uma boa
mulher. Cumpre com o seu dever para com o seu vizinho e isso tudo... mas
ela irá sempre precisar de um potentado de vizinhos para com quem
cumprir o seu dever, e se me pergunta, ninguém gosta realmente de pessoas
que estão sempre a cumprir o seu dever. Diz-me como podar as minhas
rosas, o que eu já sei muito bem fazer. Sempre atrás de mim para cultivar
algum novo tipo de legume. A couve chega-me muito bem, e fico-me por
ela.
Poirot sorriu. Disse:
– Devo pôr-me a caminho. Pode dizer-me onde vivem o Nicholas
Ransom e o Desmond Holland?
– Depois da igreja, terceira casa à esquerda. São hóspedes de Mrs. Brand,
vão todos os dias para o Instituto Técnico de Medchester para estudar. Já
devem estar em casa.
Lançou um olhar interessado a Poirot.
– Então é por aí que a sua cabeça está a ir? Já há outros que pensam o
mesmo.
– Não, eu não penso nada por enquanto. Mas eles estavam entre os
presentes, é só isso.
Enquanto se despedia e se afastava, pensou: «Entre os presentes... já
quase cheguei ao fim da minha lista.»
23 Parafraseado do Corão, capítulo 17, versículo 13: «E a cada homem lhe
penduraremos ao seu pescoço a sua obra.» (N. do T.)
24 Citação da Bíblia, salmo 39, versículo 12: porque «sou um estrangeiro
contigo e peregrino, como todos os meus pais». (N. do T.)
25 Alteração de Riviera, zona costeira francesa. (N. do T.)
 
 
Capítulo 15
 
 
 
 
 

D ois– pares de olhos olharam para Poirot com ansiedade.


Não vejo o que mais lhe podemos dizer. Já fomos ambos
entrevistados pela polícia, M. Poirot.
Poirot olhou de um rapaz para o outro. Eles não se descreveriam como
rapazes; a sua atitude era cuidadosamente adulta. De tal forma que se uma
pessoa fechasse os olhos, a sua conversa teria passado por uma de velhos
cavalheiros de clube. Nicholas tinha dezoito anos. Desmond tinha
dezasseis.
– Para fazer a vontade a uma amiga, conduzo as minhas investigações
junto daqueles presentes numa certa ocasião. Não a festa da Noite das
Bruxas em si mas os preparativos para a festa. Vocês estavam ambos
presentes.
– Sim, estávamos.
– Até agora – disse Poirot – entrevistei mulheres de limpeza, tive o
benefício das opiniões da polícia, de conversas com o médico, o que
examinou o cadáver primeiro, falei com uma professora que estava
presente, com a diretora da escola, com familiares desgostosos, ouvi muitos
dos mexericos da vila... Já agora, dizem-me que têm aqui uma bruxa local?
Os dois jovens à sua frente riram-se ambos.
– Refere-se à Mãe Goodbody. Sim, ela veio à festa e fez o papel de bruxa.
– Cheguei agora – disse Poirot – à geração mais nova, àqueles com visão
e ouvido apurados e que têm conhecimentos científicos modernos e
filosofia astuta. Estou ansioso, muito ansioso, por ouvir as vossas opiniões
sobre o assunto.
Dezoito e dezasseis, pensou para si mesmo, enquanto olhava para os dois
rapazes à sua frente. Jovens para a polícia, rapazes para ele, adolescentes
para os jornalistas. Chamem-lhes o que quiserem. Produtos dos dias de
hoje. Nenhum deles, ajuizou, de todo estúpido, mesmo se não fossem da
mentalidade elevada que acabara de sugerir através de uma oferta lisonjeira
para começar a conversa. Tinham estado na festa. Tinham também estado lá
antes para fazer tarefas auxiliares para Mrs. Drake.
Haviam subido a escadotes, colocado abóboras amarelas em posições
estratégicas, feito algum trabalho elétrico com luzes, um ou outro havia
produzido efeitos habilidosos com um belo conjunto de fotografias falsas de
possíveis maridos, como eram imaginados por esperançosas raparigas
adolescentes. Tinham também, por acaso, a idade certa para estar à cabeça
da lista de suspeitos na mente do inspetor Raglan e, segundo parecia, na
opinião de um jardineiro idoso. A percentagem de assassinatos cometidos
por esta faixa etária tendia a subir nos últimos anos. Não que Poirot se
inclinasse para essa suspeita específica, mas tudo era possível. Era até
possível que a morte que acontecera dois ou três anos antes pudesse ter sido
cometida por um rapaz, jovem, ou adolescente de treze ou catorze anos de
idade. Casos desses haviam aparecido em histórias recentes nos jornais.
Mantendo todas as possibilidades em mente, empurrou-as como se para
trás de uma cortina por enquanto, e concentrou-se ao invés na sua avaliação
destes dois, o seu aspeto, as suas roupas, a sua atitude, as suas vozes e por
aí fora, à maneira de Hercule Poirot, mascarando-se com um escudo
estrangeiro de palavras lisonjeiras e maneirismos estrangeiros muito
exagerados, para que eles próprios sentissem um agradável desprezo por
ele, ainda que o escondessem atrás de educação e boas maneiras. Porque
ambos tinham maneiras excelentes. Nicholas, o de dezoito anos, era bonito,
usava patilhas, cabelo que descia pelo pescoço e um traje negro um pouco
fúnebre. Não como luto pela tragédia recente, mas no que era obviamente o
seu gosto pessoal quanto a roupas modernas. O mais novo usava um casaco
de veludo rosa, calças cor de malva e uma espécie de camisa com folhos.
Ambos claramente gastavam muito dinheiro nas suas roupas, que não eram
decerto compradas localmente e que eram com toda a probabilidade pagas
por eles próprios e não por pais ou encarregados de educação.
O cabelo de Desmond era ruivo e volumoso, como lã.
– Estiveram lá na manhã ou na tarde da festa, segundo o que me dizem, a
ajudar com os preparativos?
– Ao princípio da tarde – corrigiu Nicholas.
– Que tipo de preparativos ajudaram a fazer? Ouvi várias pessoas falarem
de preparativos, mas não entendo muito bem. Nem todos correspondem.
– Grande parte da iluminação, para começar.
– Subir degraus para pendurar coisas que tinham de ficar altas.
– Dizem-me também que houve muitos bons resultados fotográficos.
Desmond meteu de imediato a mão ao bolso e tirou uma capa de onde
retirou alguns cartões.
– Falsificámos estes antes – disse ele. – Maridos para as miúdas –
explicou. – São todas iguais, as miúdas. Querem todas coisas modernas.
Não são um mau conjunto, pois não?
Passou alguns exemplares a Poirot, que olhou de forma interessada para
uma reprodução pouco nítida de um jovem de barba ruiva e de outro jovem
com uma auréola de cabelo, um terceiro cujo cabelo lhe caía quase até aos
joelhos, e havia alguns bigodes sortidos, e outros adornos faciais.
– Fizemo-las todas bastantes diferentes. Não ficou mal, pois não?
– Tiveram modelos, suponho?
– Oh, são todas de nós. Só maquilhagem, sabe. O Nick e eu fizemo-las.
Algumas o Nick tirou-me a mim, e algumas tirei-lhe eu. Só variámos o que
se poderia chamar de motif do cabelo.
– Muito engenhoso – disse Poirot.
– Deixámo-las um pouco desfocadas, sabe, para que se parecessem mais
com fotografias de espíritos, se quiser.
O outro rapaz disse:
– Mrs. Drake ficou muito satisfeita com elas. Deu-nos os parabéns.
Também a fizeram rir. Foi principalmente trabalho elétrico que fizemos na
casa. Sabe, colocar uma ou duas luzes para que quando as raparigas se
sentassem com o espelho um de nós pudesse tomar posição, e ao mexer
num cartão a rapariga veria um rosto no espelho, mas repare que com o tipo
certo de cabelo. Barba ou bigode ou algo.
– Sabiam que era você e o seu amigo?
– Oh, não creio que o soubessem de todo. Na festa, não sabiam. Sabiam
que estivéramos a ajudar com algumas coisas na casa, mas não acho que
nos reconhecessem nos espelhos. Diria que não eram espertas o suficiente.
Além disso, nós arranjáramos uma espécie de maquilhagem instantânea
para mudar a imagem. Primeiro eu, depois o Nicholas. As raparigas
guincharam e gritaram. Muito engraçado.
– E as pessoas que estavam lá de tarde? Não lhes peço que se lembrem de
quem estava na festa.
– Na festa, devem ter estado cerca de trinta, suponho, por lá. À tarde
estava Mrs. Drake, claro, e Mrs. Butler. Uma das professoras, acho que o
nome dela é Whittaker. Mrs. Flatterbut, ou um nome desses. É a mulher ou
irmã do organista. A farmacêutica do Dr. Ferguson, Miss Lee; era a sua
tarde de folga e ela veio ajudar e alguns dos miúdos vieram para ajudar no
que pudessem. Não que ache que tenham sido uma grande ajuda. As
raparigas só andavam por lá a rir-se.
– Ah sim. Lembram-se quais as raparigas que lá estavam?
– Bem, as Reynolds estavam lá. A pobre Joyce, claro. A que foi morta e
Ann, a irmã mais velha. Uma rapariga assustadora. Está sempre a dar-se
ares. Pensa que é muito esperta. Tem a certeza de que vai passar nos exames
finais todos. E o miúdo pequeno, o Leopold, é terrível – disse Desmond. –
É um sorrateiro. Está sempre a ouvir as conversas dos outros. Inventa
histórias. Um traste. E estavam lá a Beatrice Ardley e a Cathie Grant, que é
burra de todo, e um par de mulheres ajudantes, claro. Mulheres de limpeza,
quero eu dizer. E a escritora, a que o trouxe cá.
– Alguns homens?
– Oh, o vigário deu uma espreitadela, se isso conta. Um velhote
simpático, algo burro. E o novo cura. Gagueja quando está nervoso. Não
está cá há muito tempo. Não consigo pensar em mais nada por agora.
– E depois dizem-me que ouviram essa rapariga, a Joyce Reynolds, a
dizer alguma coisa sobre ter visto um assassinato a ser cometido.
– Não ouvi – disse Desmond. – Ela disse isso?
– Oh, é o que andam a dizer – disse Nicholas. – Eu não a ouvi, calculo
que não estava na sala quando ela o disse. Onde estava ela, quero dizer,
quando o disse?
– No salão.
– Sim, bem, a maior parte das pessoas estava lá a não ser que estivessem
a fazer alguma coisa de especial. Claro que o Nick e eu – disse Desmond –
estávamos quase sempre na sala onde as raparigas iriam procurar os seus
futuros amantes nos espelhos. A prender fios e várias coisas assim. Ou
então estávamos nas escadas a arranjar as luzes. Estivemos no salão uma ou
duas vezes a pôr as abóboras e a pendurar uma ou duas que tinham sido
entalhadas para se colocarem luzes dentro delas. Mas não ouvi nada desse
género quando estivemos lá. E tu, Nick?
– Não ouvi – disse Nick. Acrescentou com algum interesse: – A Joyce
disse mesmo que tinha visto um assassinato a ser cometido? Muito
interessante, sabe, se ela o viu, não é?
– Porque é tão interessante?
– Bem, é PES, não é? Quero dizer, é assim. Ela viu um assassinato a ser
cometido e uma ou duas horas depois ela própria é assassinada. Imagino
que tenha tido uma espécie de visão. Dá que pensar. Sabem estas últimas
experiências que têm feito, parece que há algo que se pode fazer para
ajudar, arranjando um elétrodo, ou algo do género, preso à veia jugular. Li
isso algures.
– Nunca foram muito longe com essa coisa da PES – disse Desmond com
escárnio. – As pessoas sentam-se em salas diferente a olhar para uns cartões
empilhados ou palavras com quadrados e figuras geométricas. Mas nunca
veem as coisas certas, ou quase nunca.
– Bem, tem de se ser muito novo para conseguir. Os adolescentes são
muito melhores do que pessoas mais velhas.
Hercule Poirot, que não desejava ouvir esta discussão científica de alto
nível, interrompeu.
– Pelo que se lembram, nada ocorreu durante a vossa presença na casa
que lhes parecesse ser sinistro ou de qualquer modo significante. Alguma
coisa na qual mais ninguém provavelmente teria reparado, mas que pudesse
ter chamado a vossa atenção.
Nicholas e Desmond franziram o sobrolho com intensidade, obviamente
dando voltas à cabeça para produzir algum incidente importante.
– Não, foi só muita tagarelice, arrumação e fazer coisas.
– Tem algumas teorias próprias?
Poirot dirigiu-se a Nicholas.
– O quê, teorias sobre quem matou a Joyce?
– Sim. Refiro-me a algo que possa ter notado que o levasse a uma
suspeita com motivos puramente psicológicos.
– Sim, estou a ver o que quer dizer. Isso pode estar certo.
– Eu aposto na Whittaker – disse Desmond, interrompendo a
concentração de Nicholas.
– A professora? – perguntou Poirot.
– Sim. Uma autêntica velha solteirona, sabe. Faminta de sexo. E todo
aquele ensino, enfiada no meio de tantas mulheres. Lembra-se, uma das
professoras foi estrangulada há um ou dois anos. Ela era um pouco
estranha, ao que dizem.
– Lésbica? – perguntou Nicholas, num tom de homem viajado.
– Não me espantaria. Lembras-te da Nora Ambrose, a rapariga com quem
ela vivia? Não era feia. Tinha um namorado ou outro, ao que dizem, e a
rapariga com quem vivia zangou-se com ela por causa disso. Alguém disse
que ela era mãe solteira. Ela tinha ido para fora durante dois períodos
escolares com uma doença qualquer e depois voltou. Dizem de tudo neste
ninho de mexericos.
– Bem, de qualquer forma a Whittaker esteve no salão quase toda a
manhã. Provavelmente ouviu o que a Joyce disse. Pode ter-lhe dado ideias,
não pode?
– Olha lá – disse Nicholas –, supondo que a Whittaker, que idade terá ela?
Quarenta e tal? A chegar aos cinquenta... as mulheres de facto ficam um
pouco estranhas nessa idade.
Olharam ambos para Poirot, com um ar de cães satisfeitos depois de
apanharem algo de útil que o dono pedira.
– Aposto que Miss Emlyn sabe se é verdade. Não há muito que ela não
saiba, do que se passa na sua escola.
– Ela não o diria?
– Talvez sinta que deve ser leal e protegê-la.
– Oh, não creio que fizesse isso. Se ela pensasse que Miss Whittaker
estava a ficar doida, então, quero dizer, muitos alunos na escola poderiam
ser mortos.
– E o cura? – disse Desmond, esperançoso. – Ele pode ser um pouco
doido. Sabes, o pecado original e tudo isso, e a água e as maçãs e essas
coisas e depois... olha, tive uma boa ideia. Imagina que ele é um pouco
doido. Não está aqui há muito tempo. Ninguém sabe muito sobre ele.
Imagina que é o Snapdragon que lhe põe ideias na cabeça. Fogo do Inferno!
Aquelas chamas todas a subirem! Depois, agarrou a Joyce e disse «anda
comigo e eu mostro-te uma coisa», e levou-a para a sala das maçãs e disse
«ajoelha-te». Disse «isto é o batismo» e empurrou-lhe a cabeça lá para
dentro. Vês? Tudo encaixaria.
Adão e Eva, e a maçã, o fogo do Inferno, o Snapdragon, e ser batizado de
novo para curar o pecado.
– Talvez se tenha exposto a ela antes – disse Nicholas com esperança.
– Quero dizer, tem de haver sempre um pano de fundo de sexo nestas
coisas todas.
Olharam ambos para Poirot com rostos satisfeitos.
– Bem – disse Poirot –, deram-me com certeza algo sobre o que pensar.
 
 
Capítulo 16
 
 
 
 
 

H ercule Poirot olhou para o rosto de Mrs. Goodbody com interesse. Era
de facto um modelo perfeito para uma bruxa. O facto de ser quase
indubitavelmente acompanhado por um carácter de extrema amabilidade
não desfazia a ilusão. Ela falava com gosto e prazer.
– Sim, eu estive mesmo lá em cima. Eu faço sempre de bruxa por aqui. O
vigário elogiou-me no ano passado e disse que se eu fizesse um bom papel
no espetáculo me daria um novo chapéu de funil. Um chapéu de bruxa
gasta-se como tudo o resto. Sim, eu estive lá em cima nesse dia. Eu faço as
rimas, sabe. Quero dizer a rimas para as raparigas, usando o nome próprio
delas. Uma para a Beatrice, outra para a Ann e para as outras. E dou-as a
quem quer que seja que faça a voz do espírito e eles recitam-nas para a
rapariga no espelho, e os rapazes, o jovem Nicholas e o menino Desmond,
eles mandam as fotografias falsas a flutuar para baixo. Matam-me de riso,
por vezes. Ver esses rapazes a colar pelos na cara e a fotografarem-se um ao
outro. E as coisas com que eles se vestem! Vi o menino Desmond no outro
dia, e nem acreditaria no que ele tinha vestido. Um casaco rosa e calças de
montar fulvas. Batem as raparigas aos pontos. A única coisa de que as
raparigas se lembram é de encurtar as saias cada vez mais alto, e isso não
lhes adianta muito porque têm de pôr mais coisas por baixo. Quero dizer,
com as coisas a que chamam meias elásticas e collants, que costumavam ser
só para coristas no meu tempo e para mais ninguém... gastam o dinheiro
todo nisso. Mas os rapazes, Céus, parecem martins-pescadores, pavões ou
aves-do-paraíso. Bem, eu gosto de ver um pouco de cor e penso sempre que
deve ter sido divertido naqueles velhos tempos históricos como se vê nos
retratos. Sabe, toda a gente com rendas e caracóis e chapéus de cavaleiro e
tudo o resto. Davam às raparigas alguma coisa para onde olhar. E gibão e
calção. As raparigas nos tempos históricos só pensavam, a meu ver, em pôr
saias de balão, crinolinas chamaram-se depois, e grandes folhos à volta do
pescoço! A minha avó, costumava dizer-me que as suas jovens senhoras,
ela foi serviçal, sabe, numa boa família vitoriana, e as suas jovens senhoras
(acho que foi antes do tempo de Vitória)... foi no tempo em que estava no
trono o rei que tinha uma cabeça como uma pera, o Billy Tonto, Guilherme
IV, bem então, as suas jovens senhoras, refiro-me às jovens senhoras da
minha avó, costumavam ter vestidos de musselina muito compridos até aos
tornozelos, muito formais, mas elas costumavam molhar as suas musselinas
para que se colassem ao corpo. Sabe, colavam-se e mostravam tudo o que
havia para mostrar. Andavam com um ar tão púdico, mas agradavam aos
cavalheiros, isso é que agradavam.
– Emprestei a minha bola de bruxa a Mrs. Drake para a festa. Comprei
essa bola de bruxa numa feira algures. Está ali pendurada junto à chaminé,
vê? Um azul-escuro brilhante e bonito. Tenho-a sobre a minha porta.
– Lê sinas?
– Não posso dizer que sim, pois não? – deu uma risada. – A polícia não
gosta disso. Não que se importem com o tipo de sinas que eu leio. Não tem
nada que saber, poder-se-ia dizer. Num sítio como este sabe-se sempre
quem anda com quem, e isso torna tudo fácil.
– Não pode olhar para a sua bola de bruxa, lá dentro, e ver quem matou
aquela rapariguinha, a Joyce?
– Está a fazer confusão – disse Mrs. Goodbody. – É uma bola de cristal
onde se olha para ver coisas, não uma bola de bruxa. Se eu lhe dissesse
quem acho que foi que o fez, não gostaria. Diria que foi contra a Natureza.
Mas há muitas coisas que acontecem que são contra a Natureza.
– Talvez tenha razão.
– Este é um bom sítio para se viver, em geral. Quero dizer, as pessoas são
decentes, a maioria, mas onde quer que se vá, o Diabo tem sempre lá alguns
dos seus. Nascidos e criados para tal.
– Refere-se... a magia negra?
– Não, não me refiro a isso. – Mrs. Goodbody troçava. – Isso é um
disparate. É para pessoas que gostam de se mascarar e fazer asneiras. Sexo
e tudo isso. Não, eu refiro-me àqueles que o Diabo tocou com a sua mão.
Nascem assim. Os filhos de Lúcifer. Nascem de tal forma que matar nada
significa para eles, não se lhes trouxer lucro. Quando querem uma coisa,
querem-na. E são implacáveis ao persegui-la. Podem ser bonitos como
anjos. Conheci uma rapariguinha em tempos. Sete anos de idade. Matou o
seu irmãozinho e a sua irmãzinha. Eram gémeos. Cinco ou seis meses de
idade, não mais do que isso. Sufocou-os nos carrinhos.
– Isso aconteceu aqui em Woodleigh Common?
– Não, não, não foi em Woodleigh Common. Vi isso lá em cima no
Yorkshire, se bem me lembro. Um caso medonho. Criatura linda que ela
era. Podia-se-lhe pregar um par de asas, deixá-la subir a uma plataforma e
cantar hinos de Natal, e pareceria perfeita para o papel. Mas não era. Era
podre por dentro. Saberá o que quero dizer. Não é um jovem. Sabe a
maldade que há pelo mundo.
– Infelizmente! – disse Poirot. – Tem razão. Sei bem de mais. Se a Joyce
viu de facto um assassinato a ser cometido...
– Quem diz que ela viu? – disse Mrs. Goodbody.
– Ela própria o disse.
– Não há razão para acreditar. Ela sempre foi uma pequena mentirosa. –
Ela lançou-lhe um olhar severo. – Não acreditará nisso, imagino?
– Sim – disse Poirot. – Acredito. Demasiadas pessoas mo disseram, para
que continue a não acreditar.
– Aparecem coisas estranhas nas famílias – disse Mrs. Goodbody. – Tome
os Reynolds como exemplo. Há Mr. Reynolds. Está no ramo imobiliário.
Nunca foi muito bom e nunca o será. Nunca teve muito jeito, como se diz.
E Mrs. Reynolds, sempre preocupada e incomodada com tudo. Nenhum dos
três filhos sai aos pais. Há a Ann, sabe, ela é inteligente. Vai sair-se bem nos
estudos. Irá para a universidade, não me espantaria, talvez estude para ser
professora. Diga-se que é muito convencida. É tão convencida que ninguém
a aguenta. Nenhum dos rapazes olha para ela. E depois havia a Joyce. Não
era inteligente como a Ann, nem tão inteligente como o seu irmão mais
novo, o Leopold, mas queria sê-lo. Queria sempre saber mais do que os
outros e ser melhor do que os outros, e diria qualquer coisa para que as
pessoas prestassem atenção. Mas não acredite que alguma coisa que ela
tenha dito seja verdade. Porque quase nunca era.
– E o rapaz?
– O Leopold? Bem, ele só tem nove ou dez anos, creio, mas é mesmo
inteligente. E habilidoso com as mãos e de outras formas também. Quer
estudar coisas como Física. Também é bom a Matemática. Surpreenderam-
se com isso na escola. Sim, ele é esperto. Será um desses cientistas, calculo.
Se quer saber, as coisas que fará quando for cientista e as coisas que
inventará... serão medonhas, como bombas atómicas! Ele é do tipo que
estuda e é tão inteligente e inventa alguma coisa que destruirá meio mundo
e a todos nós desgraçados. Tenha cuidado com o Leopold. Engana as
pessoas, sabe, e ouve as conversas. Descobre todos os seus segredos.
Gostava de saber onde arranja ele o dinheiro. Não é da mãe ou do pai. Eles
não lhe podem dar muito. Ele tem sempre muito dinheiro. Guarda-o numa
gaveta por baixo das meias. Ele compra coisas. Muitas engenhocas caras.
Onde arranja ele o dinheiro? Isso é o que eu gostaria de saber. Eu diria que
descobre os segredos das pessoas, e obriga-as a pagar a troco de não abrir a
boca.
Ela fez uma pausa, para recuperar o fôlego.
– Bem, receio que não o possa ajudar, de qualquer modo.
– Ajudou-me muito – disse Poirot. – O que aconteceu à rapariga
estrangeira que dizem ter fugido?
– Na minha opinião não foi longe. Dlim-dlão, no poço a encontrarão26.
Pelo menos é o que sempre pensei.
26 Frase de uma rima infantil inglesa: ding dong dell, pussy’s in the well.
(N. do T.)
 
 
Capítulo 17
 
 
 
 
 

–D esculpe,
minuto.
minha senhora, gostaria de saber se poderia falar consigo um

Mrs. Oliver, que estava no alpendre da casa da sua amiga a olhar para ver
se havia algum sinal da aproximação de Hercule Poirot, que a avisara pelo
telefone de que viria vê-la agora, olhou em volta.
Uma mulher de meia-idade e bem-arranjada estava parada, torcendo as
mãos de modo nervoso com as suas elegantes luvas de algodão.
– Sim? – disse Mrs. Oliver, acrescentando um ponto de interrogação
através da entoação.
– Desculpe incomodá-la, mas pensei... bem, pensei...
Mrs. Oliver ouviu mas não tentou induzi-la a falar. Interrogou-se sobre o
que tanto preocuparia a mulher.
– Calculo corretamente que seja a senhora que escreve histórias, não
calculo? Histórias sobre crimes e assassinatos e coisas desse género.
– Sim – disse Mrs. Oliver –, sou eu.
A sua curiosidade estava agora desperta. Seria isto um prefácio para um
pedido de autógrafo ou até uma fotografia autografada? Nunca se sabia. As
coisas mais improváveis aconteciam.
– Pensei que seria a pessoa certa para me dizer – disse a mulher.
– É melhor sentar-se – disse Mrs. Oliver.
Ela previu que a Mrs. Sei-lá-Quem (usava aliança portanto era Mrs.), era
do tipo que demora algum tempo a chegar ao fundo da questão. A mulher
sentou-se e continuou a torcer as mãos enluvadas.
– Está preocupada com alguma coisa? – disse Mrs. Oliver, fazendo o
melhor que podia para que a conversa fluísse.
– Bem, gostaria de um conselho, é verdade. É sobre algo que aconteceu
há algum tempo e não me preocupou na altura. Mas sabe como é. Uma
pessoa pensa nas coisas e quer ter alguém a quem possa ir perguntar sobre
elas.
– Compreendo – disse Mrs. Oliver, esperando inspirar confiança com esta
afirmação completamente superficial.
– Vendo as coisas que aconteceram recentemente, nunca se sabe, pois
não?
– Refere-se...?
– Refiro-me ao que aconteceu na festa das bruxas, ou lá como lhe
chamaram. Quero dizer mostra que há aqui pessoas que não são de
confiança, não mostra? E mostra a uma pessoa coisas que não eram antes
como uma pessoa pensava que eram. Quero dizer, poderiam não ter sido o
que uma pessoa pensava que eram, se bem me entende.
– Sim? – disse Mrs. Oliver, acrescentando um tom de interrogação ainda
maior ao monossílabo. – Não creio saber o seu nome – acrescentou.
– Leaman. Mrs. Leaman. Faço limpezas para ajudar às senhoras daqui.
Desde que o meu marido morreu, e isso foi há cinco anos. Trabalhei para
Mrs. Llewellyn-Smythe, a senhora que vivia em Quarry House, antes de o
coronel e Mrs. Weston virem. Não sei se a conheceu.
– Não – disse Mrs. Oliver –, nunca a conheci. É a primeira vez que venho
a Woodleigh Common.
– Compreendo. Bem, talvez não saiba muito do que se passava na altura,
e o que foi dito nessa altura.
– Ouvi falar disso algumas vezes desde que estou aqui – disse Mrs.
Oliver.
– Sabe, não sei nada sobre a lei, e fico sempre preocupada quando é uma
questão de lei. Advogados, quero eu dizer. Podem fazer confusão e eu não
gostaria de ir à polícia. Não teria nada a ver com a polícia, sendo um
assunto legal, pois não?
– Talvez não – disse Mrs. Oliver, com cautela.
– Saberá talvez o que disseram na altura sobre o codi... não sei, uma
palavra como codi. Como o peixe, quero eu dizer.
– Um codicilo do testamento? – sugeriu Mrs. Oliver.
– Sim, é isso. É isso que quero dizer. Mrs. Llewellyn-Smythe, sabe, fez
um desses cod... codicilos e deixou todo o seu dinheiro à rapariga
estrangeira que tomava conta dela. E isso foi uma surpresa, porque tinha
familiares a viver aqui, e tinha no fim de contas vindo para cá para viver
junto deles. Era-lhes muito dedicada, em particular a Mr. Drake. E pareceu
estranho às pessoas, na verdade. E depois os advogados, sabe, começaram a
dizer coisas. Disseram que Mrs. Llewellyn-Smythe não tinha escrito o
codicilo de todo. Que a rapariga estrangeira o tinha feito, já que fizera com
que o dinheiro todo fosse para ela. E disseram que iam levar isso à lei. Que
Mrs. Drake ia contraceptar o testamento, se é que é essa a palavra certa.
– Os advogados iam contestar o testamento. Sim, creio que ouvi algo
sobre isso – disse Mrs. Oliver, num tom encorajador. – E sabe algo sobre
isso, talvez?
– Não fiz por mal – disse Mrs. Leaman. Fez-se sentir na sua voz uma
ligeira lamúria, com a qual Mrs. Oliver já se tinha deparado várias vezes no
passado.
Mrs. Leaman, pensou, era presumivelmente uma mulher não muito digna
de confiança em alguns aspetos, uma coscuvilheira talvez, alguém que
escutava atrás das portas.
– Não disse nada na altura – disse Mrs. Leaman –, porque não sabia bem,
sabe. Mas eu pensei que era estranho e confesso a uma senhora como a
senhora, que sabe o que são estas coisas, que quis saber a verdade.
Trabalhara para Mrs. Llewellyn-Smythe durante algum tempo, e uma
pessoa quer saber como é que as coisas aconteceram.
– De facto – disse Mrs. Oliver.
– Se eu pensasse que fiz algo que não deveria ter feito, bem, é claro que
contaria tudo. Mas não pensei ter feito nada de verdadeiramente errado,
sabe. Não naquela altura, se me compreende – acrescentou.
– Oh sim – disse Mrs. Oliver –, estou certa de que compreendo. Continue.
Era sobre o codicilo.
– Sim, sabe, um dia Mrs. Llewellyn-Smythe, ela não se sentira muito bem
nesse dia e então pediu-nos que entrássemos. A mim e ao jovem Jim, que
ajuda no jardim e traz a lenha e o carvão e essas coisas. Então entrámos no
quarto dela, onde ela estava, e ela tinha uns papéis à frente dela na
secretária. E ela vira-se para uma rapariga estrangeira, Miss Olga era o que
lhe chamávamos todos, e disse «Tu sais do quarto agora, querida, porque
não deves estar envolvida nesta parte», ou algo do género. Então Miss Olga,
ela sai do quarto, e Mrs. Llewellyn-Smythe, ela diz-nos que nos
aproximemos e diz: «Este é o meu testamento.» Tinha um pedaço de mata-
borrão no cimo mas a parte de baixo está bem à vista. Ela disse: «Estou a
escrever algo aqui neste pedaço de papel e quero que sejam testemunhas do
que escrevi e da minha assinatura no fim.» Então ela começa a escrever na
página. Usava sempre uma caneta com um traço imperfeito, nunca usava
esferográficas nem nada assim. E escreve duas ou três linhas e depois
assinou o nome, e então diz-me: «Agora, Mrs. Leaman, escreva o seu nome
aqui. O seu nome e a sua morada.» E depois diz ao Jim: «E agora escreva o
seu nome aqui em baixo, e a sua morada também. Assim. Já está. Agora
viram-me escrever aquilo e viram a minha assinatura e escreveram os
vossos nomes, ambos, e então é assim.» E depois ela diz: «É tudo. Muito
obrigada.» Por isso nós saímos do quarto. Bem, não pensei mais nisso na
altura, mas intrigou-me bastante. E aconteceu enquanto voltava a cabeça,
mesmo quando ia a sair do quarto. Sabe, a porta nem sempre fecha bem.
Tem de ser puxada, para que faça um clique. E então eu estava a fazer isso...
não estava mesmo a olhar, se me entende...
– Entendo-a – disse Mrs. Oliver, de forma descomprometida.
– E então eu vejo Mrs. Llewellyn-Smythe a levantar-se da cadeira, ela
tinha artrite e por vezes tinha dores ao mexer-se, e a deslocar-se até à
estante, e pegou num livro e põe o pedaço de papel que ela acabara de
assinar, que estava num envelope, num dos livros. Um livro grande e alto
que estava na prateleira de baixo. Bem, nunca mais pensei nisso, por assim
dizer. Não, de facto, não pensei. Mas quando se levantou toda esta
confusão, bem, é claro que eu senti... pelo menos, eu... – parou.
Mrs. Oliver teve uma das suas intuições úteis.
– Mas com certeza – disse – não esperou assim tanto tempo...
–Bem, dir-lhe-ei a verdade. Admito que estava curiosa. Afinal de contas,
uma pessoa quer saber quando assina qualquer coisa, o que foi que assinou,
não quer? É a natureza humana.
– Sim – disse Mrs. Oliver –, é a natureza humana.
Pensou que a curiosidade era uma parte grande da composição da
natureza humana de Mrs. Leaman.
– Por isso admito que no dia seguinte, quando Mrs. Llewellyn-Smythe
tinha ido de carro a Medchester e eu estava a arrumar o seu quarto como era
hábito, um quarto de descanso que ela tinha porque precisava de muito
descanso. E penso: «Bem, uma pessoa deve mesmo saber o que assinou,
quando assina uma coisa.» Dizem sempre que com essas coisas de contrato
que se deve ler as letras miudinhas.
– Ou neste caso, a escrita à mão – sugeriu Mrs. Oliver.
– Então eu pensei, bem, não há mal, não é como se estivesse a roubar
alguma coisa. Eu tive de assinar o meu nome, e pensei que deveria saber o
que assinara. Então dei uma olhadela às estantes. De qualquer forma
precisavam de que lhes limpasse o pó. E encontrei-o. Estava na prateleira
de baixo. Era um livro antigo, do género de livro da rainha Vitória. E
encontrei o envelope com um papel dobrado lá dentro e o título do livro era
Enquire Within Upon Everything27. E pareceu-me então que era como se
estivesse destinado, sabe o que quero dizer?
– Sim – disse Mrs. Oliver. – Era com certeza o destino. E então tirou o
papel e olhou para ele.
– É isso, minha senhora. E se fiz mal ou não, não sei. Mas de qualquer
forma, lá estava. Era mesmo um documento legal. Na última página estava
a escrita que ela fizera na manhã anterior. Escrita nova com uma caneta
nova que ela usava, e que tinha um traço imperfeito. Estava nítido o
suficiente para que pudesse ser lido, apesar de que ela tinha uma letra um
pouco angulosa.
– E o que dizia? – perguntou Mrs. Oliver, a sua curiosidade juntando-se
agora à que fora previamente sentida por Mrs. Leaman.
– Bem, dizia algo como, pelo que me lembro, não tenho a certeza das
palavras exatas, algo sobre um codicilo e que, depois dos legados
mencionados no seu testamento, ela deixava toda a sua fortuna à Olga, não
tenho a certeza do seu apelido, começava com um S. Seminoff, ou alguma
coisa parecida, em consideração pela sua grande bondade e atenção para
com ela durante a sua doença. E estava lá escrito, e ela assinara e eu
assinara, e Jim assinara. Então eu pu-lo de volta onde estava porque não
gostaria que Mrs. Llewellyn-Smythe soubesse que eu andava a bisbilhotar
nas coisas dela.
«Bem, disse para comigo, bem, isto é uma surpresa. E pensei, que
surpresa aquela rapariga estrangeira receber todo aquele dinheiro, porque
todos sabemos que Mrs. Llewellyn-Smythe era muito rica. O marido dela
fora armador e deixara-lhe uma grande fortuna, e eu pensei, bem, há
pessoas com sorte. Veja bem, eu não gostava muito de Miss Olga. Ela tinha
uma atitude severa por vezes, e tinha bastante mau feitio. Mas dir-lhe-ei que
era sempre muito atenciosa e educada e tudo mais, com a velha senhora.
Estava a cuidar de si, na verdade, e safou-se. E eu pensei, bem, deixar todo
aquele dinheiro a alguém que não é da família. Depois pensei, bem, talvez
tenha tido uma desavença com eles e o mais provável é que passe, por isso
talvez ela rasgue isto e faça outro testamento ou codicilo, afinal. Mas, de
qualquer forma, foi isso, e eu pus o papel de volta e esqueci-me dele,
suponho.
«Mas quando se levantou toda a confusão por causa do testamento, e se
falou de como fora falsificado e que Mrs. Llewellyn-Smythe nunca poderia
ter escrito aquele codicilo, porque era isso o que diziam, veja bem, que não
tinha sido a velha senhora a escrevê-lo, que fora outra pessoa...»
– Compreendo – disse Mrs. Oliver. – E, então, o que fez?
– Eu não fiz nada. E é isso que me preocupa... não me apercebi das coisas
de imediato. E quando já refletira um pouco sobre as coisas não sabia ao
certo o que deveria fazer e pensei, bem, era tudo conversa porque os
advogados estavam contra a estrangeira, como costumam estar sempre
todas as pessoas. Eu própria não gosto muito de estrangeiros, admito-o. De
qualquer forma, lá estava, e a jovem senhora lá andava a pavonear-se,
dando-se ares, nas suas sete quintas e eu pensei, bem, talvez seja tudo
alguma coisa legal, eles dirão que ela não tem direito ao dinheiro porque
não era parente da velha senhora. Por isso tudo ficará bem. E ficou, de certa
forma, porque desistiram de levar o caso a tribunal. Não chegou a tribunal e
tanto quanto se soube, Miss Olga fugiu. Regressou algures para o
continente, de onde viera. Então parece que deve ter havido alguns truques
da parte dela. Talvez ela ameaçasse a velha senhora e a obrigasse a fazê-lo.
Nunca se sabe, pois não? Um dos meus sobrinhos, que vai ser médico, diz
que se consegue fazer coisas maravilhosas com hipnotismo. Pensei que ela
talvez tivesse hipnotizado a velha senhora.
– Isto foi há quanto tempo?
– Mrs. Llewellyn-Smythe morreu há... deixe-me ver, quase dois anos.
– E isso não a preocupou?
–Não, não me preocupou. Não naquela altura. Porque sabe, não se
colocou a hipótese de Miss Olga fugir com o dinheiro, por isso não vi que
houvesse necessidade de eu...
– Mas agora já pensa de outra forma?
– Foi aquela morte horrenda, a criança que foi empurrada para dentro de
um balde de maçãs. A dizer coisas sobre um assassinato, a dizer que vira
algo ou que sabia algo sobre um assassinato. E pensei que talvez Miss Olga
tivesse assassinado a velha senhora porque sabia que aquele dinheiro todo
ia para ela e que depois se assustou quando se levantou a confusão e vieram
advogados e polícia, talvez, e então fugiu. Então pensei bem, talvez eu
devesse, bem, devesse contar a alguém, e pensei que a senhora seria alguém
que tem amigos em departamentos legais. Amigos na polícia talvez, e que
lhes explicaria que eu estava apenas a limpar o pó numa estante, e que esse
papel estava lá dentro de um livro e que eu o voltei a pôr onde pertencia.
Não o tirei nem nada.
– Mas foi isso o que aconteceu nessa ocasião? Viu Mrs. Llewellyn-
Smythe escrever um codicilo no testamento. Viu-a escrever o seu nome e
você e esse tal Jim Qualquer-Coisa estavam ambos lá e escreveram ambos
os vossos próprios nomes. Foi isso, não foi?
– Foi isso.
– Então se ambos viram Mrs. Llewellyn-Smythe escrever o nome dela,
então aquela assinatura não poderia ser uma falsificação, pois não? Não se a
viu escrevê-la, ela própria.
– Vi-a escrevê-la, ela própria, e o que lhe digo é a verdade. E o Jim
também o diria só que ele foi para a Austrália. Foi há mais de um ano e não
sei a morada dele nem nada. Ele não era de cá, de qualquer modo.
– E o que quer que eu faça?
– Bem, quero que me diga se há alguma coisa que eu deva dizer, ou
fazer... agora. Se bem que ninguém me perguntou. Nunca ninguém me
perguntou se eu sabia alguma coisa de um testamento.
– O seu nome é Leaman. Qual é o nome próprio?
– Harriet.
– Harriet Leaman. E o Jim, qual é o apelido dele?
– Bem, qual era? Jenkins. É isso. James Jenkins. Ficar-lhe-ia muito
agradecida se me pudesse ajudar porque me preocupa, sabe. Este sarilho
todo que aí vem se aquela Miss Olga o fez, se assassinou Mrs. Llewellyn-
Smythe, quero dizer, e a pequena Joyce a viu fazê-lo... Ela ficou mesmo
radiante com aquilo tudo, Miss Olga, isto é, ouvir dos advogados sobre
receber muito dinheiro. Mas foi diferente quando a polícia veio fazer
perguntas, e ela foi-se muito repentinamente. Ninguém me perguntou nada.
Mas agora não consigo evitar interrogar-me se deveria ter dito alguma coisa
na altura.
– Creio – disse Mrs. Oliver – que provavelmente terá de contar esta sua
história a quem quer que tenha representado Mrs. Llewellyn-Smythe como
advogado. Tenho a certeza de que um bom advogado entenderá muito bem
o que sentiu e os seus motivos.
– Bem, tenho a certeza de que se a senhora falasse por mim e lhes
dissesse, sendo uma senhora que sabe como são as coisas, como as coisas se
passaram, e como eu nunca quis... bem, não quis fazer nada de desonesto de
maneira nenhuma. Quero dizer, só fiz...
– Tudo o que fez foi não dizer nada – disse Mrs. Oliver. – Parece uma
explicação bastante razoável.
– E se partisse da senhora, falando em meu nome primeiro, sabe, para
explicar, eu ficar-lhe-ia grata para sempre.
– Farei o que puder – disse Mrs. Oliver.
Os seus olhos desviaram-se para o caminho do jardim, onde viu uma
figura bem-arranjada que se aproximava.
– Bem, muito obrigada. Disseram que era uma senhora muito simpática, e
eu estou-lhe mesmo muito agradecida.
Ela levantou-se, voltou a colocar as luvas de algodão que torcera
completamente na sua angústia, fez um leve aceno ou vénia, e saiu
rapidamente. Mrs. Oliver aguardou que Poirot se aproximasse.
– Venha cá – disse ela – e sente-se. O que passa consigo? Parece
transtornado.
– Os meus pés doem-me imenso – disse Hercule Poirot.
– São esses seus sapatos de verniz horríveis – disse Mrs. Oliver. – Sente-
se. Diga-me o que me veio contar, e depois eu dir-lhe-ei uma coisa que o
poderá surpreender!
27 Enquire Within Upon Everything, cujo título traduzido é Informe-se Aqui
Sobre Tudo, é um livro de instruções para a vida doméstica, publicado em
1856 pela editora londrina Houlston and Sons. Foi criado com a intenção de
fornecer informação enciclopédica sobre temas como etiqueta, jogos de
salão, receitas, dicas de lavandaria, preparação de festas e primeiros
socorros. (N. do T.)
 
 
Capítulo 18
 
 
 
 
 

P oirot sentou-se, esticou as pernas e disse:


– Ah! Assim é melhor!
– Tire os sapatos – disse Mrs. Oliver – e descanse os pés.
– Não, não poderia fazer isso. – A mera possibilidade parecia chocar
Poirot.
– Bem, somos velhos amigos – disse Mrs. Oliver –, e a Judith não se
importaria se viesse cá fora. Sabe, se me permite dizê-lo, não deveria usar
sapatos de verniz no campo. Porque não arranja um bom par de sapatos de
camurça? Ou as coisas que todos os rapazes com ar de hippie usam hoje em
dia? Sabe, o tipo de sapato que se calça sem apertar, que nunca tem de se
limpar, aparentemente limpam-se a eles próprios através de um processo
extraordinário qualquer. Umas dessas artimanhas para poupar trabalho.
– Não gostaria nada disso – disse Poirot num tom severo. – Nada mesmo!
– O seu problema é – disse Mrs. Oliver, começando a desembrulhar na
mesa um pacote que acabara obviamente de comprar –, o seu problema é
que insiste em ser elegante. Importa-se mais com as roupas e os bigodes,
com o aspeto e com o que veste do que com o conforto. O conforto é
realmente a melhor coisa. Depois de passar, digamos, dos cinquenta, o
conforto é a única coisa que importa.
– Madame, chère madame, não sei se concordo consigo.
– Bem, deveria – disse Mrs. Oliver. – Se não, sofrerá muito, e será pior de
ano para ano.
Mrs. Oliver retirou uma caixa colorida de um saco de papel. Tirando a
tampa desta, pegou numa pequena porção do seu conteúdo e transferiu-a
para a sua boca. Depois lambeu os dedos, limpou-os a um lenço, e
murmurou, de forma um pouco vaga:
– Pegajoso.
– Já não come maçãs? Sempre a vi com um saco de maçãs na mão, ou a
comê-las, ou por vezes o saco rompia e elas caíam para a rua.
– Disse-lhe – disse Mrs. Oliver – que nunca mais quero ver uma maçã.
Não. Odeio maçãs. Calculo que um dia isto me passará e conseguirei comê-
las outra vez, mas... bem, não gosto das associações que faço com maçãs.
– E o que é que come agora? – Poirot pegou na tampa colorida, decorada
com um retrato de uma palmeira. – Tâmaras de Tunes – leu. – Ah, agora
são tâmaras.
– Sim – disse Mrs. Oliver. – Tâmaras.
Pegou noutra tâmara e pô-la na boca, e retirou um caroço, que atirou para
um arbusto e continuou a mastigar.
– Tâmaras – disse Poirot. – É extraordinário.
– O que há de extraordinário em comer tâmaras? As pessoas comem-nas.
– Não, não, não me referia a isso. Não a comê-las. É extraordinário que
mo diga assim... tâmaras28.
– Porquê? – perguntou Mrs. Oliver.
– Porque – disse Poirot – uma e outra vez indica-me o caminho, como se
diz, o chemin que eu deveria tomar, ou que eu já tomei. Mostra-me o
caminho que eu devo seguir. Datas. Até este momento não me apercebi do
quanto as datas são importantes.
– Não vejo como podem datas ter alguma coisa a ver com o que
aconteceu aqui. Quero dizer, não há nenhum tempo real envolvido. Tudo se
passou, o quê, há apenas cinco dias.
– O acontecimento deu-se há quatro dias. Sim, isso é bem verdade. Mas
para tudo o que acontece tem de haver um passado. Um passado que está
agora incorporado no presente, mas que existiu ontem, no mês passado ou
no ano passado. O presente tem quase sempre as raízes no passado. Há um
ano ou dois, talvez três anos, um assassinato foi cometido. Uma criança viu
esse assassinato. Porque essa criança viu esse assassinato numa certa data
agora há muito passada, essa criança morreu há quatro dias. Não é assim?
– Sim. É assim. Pelo menos, imagino que sim. Pode não ter sido assim de
todo. Pode ter sido apenas algum maluco com perturbações mentais que
gostava de matar pessoas e cuja ideia de brincar com água é empurrar a
cabeça de uma pessoa para debaixo dela e segurá-la. Podia descrever-se
como um pouco de diversão de um delinquente mental numa festa.
– Não foi por acreditar nisso que veio ter comigo, madame.
– Não – disse Mrs. Oliver. – Não, não foi. Não gostei da sensação que as
coisas me deram. Continuo a não gostar.
– E eu concordo consigo. Creio que tem toda a razão. Se uma pessoa não
gosta da sensação que as coisas lhe dão, deve saber porquê. Estou a tentar
com muito afinco, embora possa não o parecer, descobrir porquê.
– A andar por aí a falar com as pessoas, a descobrir se são simpáticas ou
não e depois a fazer-lhes perguntas?
– Exatamente.
– E o que descobriu?
– Factos – disse Poirot. – Factos que serão a seu tempo ancorados por
datas, digamos.
– Isso é tudo? O que mais descobriu?
– Que ninguém acredita na veracidade da Joyce Reynolds.
– Quando ela disse que viu alguém ser morto? Mas eu ouvi-a.
– Sim, ela disse-o. Mas ninguém acredita que seja verdade. A
probabilidade é, portanto, que não seja verdade. Que ela não viu tal coisa.
– Parece-me – disse Mrs. Oliver – que os seus factos o estão a levar para
trás, em vez de ficarem no sítio ou de avançarem.
– As coisas devem bater certo. Tome o exemplo da falsificação. O facto
da falsificação. Toda a gente diz que uma rapariga estrangeira, a au pair, se
tornou tão querida de uma viúva idosa e muito rica, que essa viúva rica
deixou um testamento, ou um codicilo num testamento, em que deixava
todo o seu dinheiro a essa rapariga. Falsificou a rapariga o testamento ou foi
outra pessoa que o falsificou?
– Quem mais o poderia ter falsificado?
– Havia outro falsificador nesta vila. Alguém, isto é, que fora em tempos
acusado de falsificação mas que escapara com uma sentença leve por ser a
primeira ofensa, e por ter circunstâncias atenuantes.
– É uma personagem nova? Alguém que conheço?
– Não, não o conhece. Está morto.
– Oh? Quando morreu?
– Há cerca de dois anos. Ainda não sei a data exata. Mas terei de o saber.
Ele é alguém que praticara falsificação e que vivia neste local. E, por causa
do que se poderia chamar de um pequeno problema de saias que despertou
ciúmes e várias emoções, foi uma noite esfaqueado e morreu. Tenho a ideia,
sabe, de que muitos incidentes separados podem estar mais intimamente
relacionados do que as pessoas pensam. Não quaisquer uns. Provavelmente
não todos, mas alguns.
– Parece interessante – disse Mrs. Oliver –, mas não vejo...
– Eu também não por enquanto – disse Poirot. – Mas creio que as datas
podem ajudar. Datas de certos acontecimentos, onde as pessoas estavam, o
que lhes aconteceu, o que estavam a fazer. Toda a gente pensa que a
rapariga estrangeira falsificou o testamento e provavelmente – disse Poirot
– toda a gente tinha razão. Era quem tinha a ganhar com isso, não era?
Espere, espere...
– Espero porquê? – disse Mrs. Oliver.
– Passou-me uma ideia pela cabeça – disse Poirot.
Mrs. Oliver suspirou e tirou outra tâmara.
– Regressa a Londres, madame? Ou a sua estadia aqui será longa?
– Depois de amanhã – disse Mrs. Oliver. – Não posso ficar mais tempo.
Tenho muitas coisas a tratar.
– Diga-me, então, no seu apartamento, na sua casa, não me lembro como
é, mudou de casa tantas vezes, há quarto de hóspedes?
– Nunca confesso que haja – disse Mrs. Oliver. – Se uma pessoa confessa
que tem um quarto de hóspedes livre em Londres, está a pedi-las. Todos os
seus amigos, e não só amigos, conhecidos, e mesmo os primos em terceiro
grau dos conhecidos por vezes, escrevem-lhe cartas e perguntam se uma
pessoa se importa de os hospedar por uma noite. Bem, eu importo-me. Com
lençóis e roupa suja, fronhas e chá de manhã cedo, e muitas vezes contando
com que lhes sirvam refeições, as pessoas vêm. Por isso não deixo que se
saiba que tenho um quarto vago. Os meus amigos vêm ficar comigo. As
pessoas que eu realmente quero ver, mas os outros... não, não sou prestável.
Não gosto que me usem.
– Quem gosta? – disse Hercule Poirot. – É muito sábia.
– De qualquer forma, porque quer saber?
– Poderia hospedar uma ou duas pessoas, caso surgisse a necessidade?
– Poderia – disse Mrs. Oliver. – Quem quer que eu hospede? Não o
senhor. Tem um apartamento próprio, esplêndido. Ultramoderno, muito
abstrato, todo quadrados e cubos.
– É só que pode ser uma precaução sensata a tomar.
– Para quem? Mais alguém vai ser morto?
– Confio e rezo para que não, mas pode estar dentro das possibilidades.
– Mas quem? Quem? Não entendo.
– Quão bem conhece a sua amiga?
– Conhecê-la? Não bem. Quero dizer, gostámos uma da outra num
cruzeiro e ganhámos o hábito de nos juntarmos. Havia algo de, como o
direi, emocionante nela. Diferente.
– Pensou que poderia pô-la num livro um dia?
– Detesto mesmo que usem essa frase. As pessoa estão sempre a dizer-me
isso e não é verdade. Não o é, de facto. Não ponho pessoas nos livros.
Pessoas que encontro, pessoas que conheço.
– Não é correto dizer, madame, que por vezes põe pessoas em livros?
Pessoas que encontra, mas não, concordo, pessoas que conhece. Isso não
seria divertido.
– Tem razão – disse Mrs. Oliver. – Às vezes é realmente bom a adivinhar
coisas. Quero dizer, uma pessoa vê uma mulher gorda sentada num
autocarro a comer um pão de passas e os lábios dela movem-se para além
do ato de comer, e pode ver-se que ela está a dizer alguma coisa a alguém,
ou a pensar numa chamada telefónica que vai fazer, ou talvez uma carta que
irá escrever. E olha-se para ela e estuda-se os sapatos dela e a saia que tem
vestida, e o seu chapéu, e adivinha-se a idade dela e se tem aliança de
casamento e algumas outras coisas. E depois sai-se do autocarro. Uma
pessoa não a quer ver outra vez, mas tem uma história na cabeça sobre
alguém que se chama Mrs. Carnaby que vai para casa de autocarro, depois
de ter um encontro muito estranho algures onde viu alguém numa pastelaria
e se lembrou de alguém que apenas vira uma vez, que ouviu dizer estar
morto e que aparentemente não está morto. Céus – disse Mrs. Oliver,
parando para recuperar o fôlego. – Sabe, é bem verdade. Eu sentei-me à
frente de alguém num autocarro mesmo antes de sair de Londres, e cá está
tudo a funcionar lindamente na minha cabeça. Em breve terei a história
completa. A sequência inteira, o que ela vai dizer quando regressar, se isso
lhe trará perigo ou o trará a outra pessoa. Acho que até sei o nome dela. O
seu nome é Constance. Constance Carnaby. Só há uma coisa que pode
estragar tudo. Bem, se eu a encontrasse outra vez noutro autocarro, ou
falasse com ela, ou ela falasse comigo, ou se eu começasse a descobrir
coisas sobre ela. Isso estragaria tudo, é claro.
– Sim, sim. A história deve ser sua, a personagem é sua. Ela é sua filha. A
madame fê-la, começa a entendê-la, sabe como ela se sente, sabe onde ela
vive e sabe o que ela faz. Mas tudo isso começou com um ser humano vivo,
real, e se a madame descobrisse como era esse ser humano real... bem,
então não haveria história, pois não?
– Acertou outra vez – disse Mrs. Oliver. – Quanto ao que dizia sobre a
Judith, creio que é verdade. Quero dizer, estivemos juntas no cruzeiro, e
fomos ver os sítios mas não cheguei a conhecê-la bem, na verdade. É viúva,
o marido dela morreu, e ela ficou com algumas dificuldades com uma
criança, a Miranda, que o senhor já viu. E é verdade que tenho uma
sensação algo estranha sobre elas. Uma sensação como se elas tivessem
importância, como se estivessem envolvidas num drama interessante. Não
quero saber qual é o drama. Não quero que elas me digam. Quero pensar no
tipo de drama em que gostaria que elas estivessem.
– Sim. Sim, vejo que elas são, bem, candidatas à inclusão noutro
bestseller de Ariadne Oliver.
– O senhor é realmente mau, às vezes – disse Mrs. Oliver. – Faz com que
soe tudo tão ordinário. – Fez uma pausa, pensativa. – Talvez o seja.
– Não, não, não é ordinário. É apenas humano.
– E quer que convide a Judith e a Miranda para o meu apartamento ou
casa em Londres?
– Ainda não – disse Poirot. – Não até que eu tenha a certeza de que uma
das minhas pequenas ideias possa estar certa.
– O senhor e as suas pequenas ideias! Agora eu tenho uma notícia para si.
– Madame, delicia-me.
– Não tenha tanta certeza. Provavelmente irá transtornar-lhe as ideias.
Suponha que lhe digo que a falsificação de que se fartou de falar não o era
de todo.
– O que me diz?
– Mrs. Ap Jones Smythe, ou lá como é o nome dela, fez um codicilo no
testamento, em que deixava todo o seu dinheiro à au pair, e duas
testemunhas viram-na assiná-lo, e também o assinaram na presença uma da
outra. Agora tome lá esta no seu bigode.
28 Dates, no inglês, que quer também dizer datas. (N. do T.)
 
 
Capítulo 19
 
 
 
 
 

–M rs...– ÉLeaman... – disse Poirot, enquanto escrevia o nome.


isso. Harriet Leaman. E a outra testemunha parece ter sido um
tal James Jenkins. A última vez que se ouviu falar dele estava a caminho da
Austrália. E a última vez que se ouviu falar de Miss Olga Seminoff
regressava para a Checoslováquia, ou seja lá de onde ela veio. Toda a gente
parece ter ido para outro sítio.
– Quão de confiança acha que é esta Mrs. Leaman?
– Não creio que ela tenha inventado isto tudo, se é isso que quer dizer.
Creio que ela assinou alguma coisa, que estava curiosa sobre isso, e que
aproveitou a primeira oportunidade que teve para descobrir o que tinha
assinado.
– Sabe ler e escrever?
– Suponho que sim. Mas concordo que as pessoas por vezes não são
muito boas a ler a letra de senhoras idosas, que é muito angulosa e muito
difícil de ler. Se houvesse boatos a circular mais tarde, sobre esse
testamento ou codicilo, ela poderia pensar que era isso que estava a ler
nesse documento algo indecifrável.
– Um documento genuíno – disse Poirot. – Mas houve também um
codicilo falsificado.
– Quem diz isso?
– Os advogados.
– Talvez não tenha sido falsificado.
– Os advogados são muito meticulosos nestes assuntos. Estavam
preparados para ir a tribunal com peritos a testemunhar.
– Oh, bem – disse Mrs. Oliver –, então é fácil de ver o que deve ter
acontecido, não é?
– O que é fácil? O que aconteceu?
– Bem, é claro, no dia seguinte ou uns dias depois, ou até uma semana
mais tarde, Mrs. Llewellyn-Smythe teve uma zanga com a sua dedicada
companheira au pair, ou teve uma reconciliação deliciosa com o seu
sobrinho Hugo, ou a sua sobrinha Rowena, e rasgou o testamento ou riscou
o codicilo, ou algo do género, ou queimou-o.
– E depois disso?
– Depois disso, imagino, Mrs. Llewellyn-Smythe morre, e a rapariga
aproveita a oportunidade e escreve um novo codicilo em termos
aproximadamente iguais numa letra o mais parecida com a de Mrs.
Llewellyn-Smythe quanto pode, e as duas assinaturas das testemunhas o
mais parecidas que pode. Provavelmente conhece a letra de Mrs. Llewellyn-
Smythe bastante bem. Estaria no cartão do serviço de saúde ou algo assim,
e ela apresenta-o, pensando que alguém afirmará ter testemunhado o
testamento e que tudo correria bem. Mas a falsificação dela não é
suficientemente boa e então começam os problemas.
– Permite-me, chère madame, que use o seu telefone?
– Permito-lhe que use o telefone da Judith Butler, sim.
– Onde está a sua amiga?
– Oh, foi arranjar o cabelo. E a Miranda foi dar um passeio. Vá, está na
sala depois dessa janela aí.
Poirot entrou e regressou cerca de dez minutos mais tarde.
– Então? O que esteve a fazer?
– Telefonei a Mr. Fullerton, o solicitador. Agora dir-lhe-ei uma coisa. O
codicilo, o codicilo falsificado que foi apresentado ao tribunal de sucessão
não foi testemunhado pela Harriet Leaman. Foi testemunhado por uma tal
Mary Doherty, falecida, que estivera ao serviço de Mrs. Llewellyn-Smythe
mas que morrera recentemente. A outra testemunha era o James Jenkins,
que, como lhe disse a sua amiga Mrs. Leaman, partiu para a Austrália.
– Então houve um codicilo falsificado – disse Mrs. Oliver. – E parece ter
havido um codicilo verdadeiro também. Olhe lá, Poirot, isto não estará tudo
a ficar um pouco complicado de mais?
– Está a ficar incrivelmente complicado – disse Hercule Poirot. – Há, se
posso mencioná-lo, demasiada falsificação por aí.
– Talvez o verdadeiro ainda esteja na biblioteca na Quarry House, dentro
das páginas do Enquire Within Upon Everything.
– Dizem-me que todos os objetos da casa foram vendidos aquando da
morte de Mrs. Llewellyn-Smythe, exceto algumas peças de mobília de
família e alguns retratos de família.
– O que precisamos – disse Mrs. Oliver – é de uma coisa como o Enquire
Within agora. É um título bonito, não é? Lembro-me de que a minha avó
tinha um. Podia mesmo informar-se sobre qualquer coisa, sabe. Informação
legal e receitas de cozinha, e como tirar nódoas de tinta de linho. Como
fazer pó de arroz caseiro que não estragasse a pele. Oh, e muito mais. Sim,
não gostaria de ter um livro assim agora?
– Sem dúvida – disse Hercule Poirot – que daria a receita para o
tratamento de pés cansados.
– Muitas delas, diria eu. Mas porque não usa sapatos próprios para o
campo?
– Madame, gosto de ter uma aparência soigné29.
– Bem, então terá de continuar a usar coisas dolorosas, e aguentar – disse
Mrs. Oliver. – De qualquer forma, agora não entendo nada. Aquela mulher,
a Leaman, estava agora mesmo a contar-me um monte de mentiras?
– É sempre possível.
– Alguém lhe disse que contasse um monte de mentiras?
– Também isso é possível.
– Alguém lhe pagou para me contar um monte de mentiras?
– Continue – disse Poirot –, continue. Está a sair-se muito bem.
– Suponho – disse Mrs. Oliver pensativa – que Mrs. Llewellyn-Smythe,
como muitas outras mulheres ricas, gostava de fazer testamentos. Calculo
que tenha feito muitos ao longo da sua vida. Sabe, beneficiando uma pessoa
e depois outra. Mudando. Os Drake estavam bem na vida, afinal. Calculo
que ela sempre lhes deixou pelo menos um belo legado, mas pergunto-me
se ela alguma vez terá deixado tanto a outra pessoa como parece, segundo
Mrs. Leaman e o testamento falsificado também, ter deixado àquela
rapariga, a Olga. Devo dizer que gostaria de saber um pouco mais sobre
essa rapariga. Ela parece ter muito sucesso a desaparecer como que por um
golpe de magia.
– Espero saber mais sobre ela muito em breve – disse Hercule Poirot.
– Como?
– Informação que receberei dentro de pouco tempo.
– Sei que tem andado aqui a pedir informações.
– Não só aqui. Tenho um agente em Londres que obtém informação para
mim, tanto no estrangeiro como neste país. Devo receber algumas notícias
da Herzegovina, possivelmente em breve.
– Descobrirá se ela alguma vez regressou?
– Isso pode ser uma das coisas que descobrirei, mas parece mais provável
que eu possa receber informação de um tipo diferente, talvez cartas escritas
durante a sua estadia neste país, mencionando amigos que ela possa ter feito
aqui, de quem possa ter ficado íntima.
– E que tal a professora? – disse Mrs. Oliver.
– A qual se refere?
– Refiro-me à que foi estrangulada, a de que lhe falou a Elizabeth
Whittaker? – acrescentou ela. – Não gosto muito da Elizabeth Whittaker.
Uma espécie cansativa de mulher, mas imagino que seja esperta. –
Acrescentou de modo sonhador. – Não poria de parte a ideia de que ela
pudesse conceber um assassinato.
– Estrangular outra professora, é o que quer dizer?
– Uma pessoa deve explorar todas as possibilidades.
– Confiarei, como tantas vezes o fiz, na sua intuição, madame.
Mrs. Oliver comeu outra tâmara, pensativa.
29 Palavra francesa, significa impecável. (N. do T.)
 
 
Capítulo 20
 
 
 
 
 

Q uando saiu da casa de Mrs. Butler, Poirot foi pelo mesmo caminho que
lhe fora mostrado por Miranda. A abertura na sebe pareceu-lhe ter sido
alargada desde a última vez. Talvez alguém ligeiramente mais corpulento
do que Miranda a tivesse utilizado também. Subiu o caminho para a
pedreira, reparando mais uma vez na beleza da cena. Um sítio lindo, e no
entanto, de certa forma, Poirot sentiu como sentira antes que podia ser um
sítio assombrado. Havia nele uma espécie de crueldade pagã. Podia ser ao
longo destes caminhos que as fadas caçavam as suas vítimas, ou que uma
deusa cruel decretava quais os sacrifícios que deveriam ser oferecidos.
Compreendia por que não se tornara num local de piqueniques. Por
alguma razão, uma pessoa não queria trazer os ovos cozidos, alface e
laranjas, e sentar-se aqui a fazer piadas e a divertir-se. Era diferente, muito
diferente. Teria sido melhor, talvez, pensou de repente, se Mrs. Llewellyn-
Smythe não tivesse querido esta transformação de conto de fadas. Poder-se-
ia ter feito um jardim romântico modesto a partir de uma pedreira sem este
ambiente, mas ela fora uma mulher ambiciosa, ambiciosa e muito rica.
Pensou durante uns momentos em testamentos, o tipo de testamentos feitos
por mulheres ricas, o tipo de mentiras contadas acerca dos testamentos
feitos por mulheres ricas, os sítios onde os testamentos de mulheres ricas
eram por vezes escondidos, e tentou colocar-se na mente de um falsificador.
Sem dúvida que o testamento que fora apresentado no tribunal de sucessão
era uma falsificação. Mr. Fullerton era um advogado cuidadoso e
competente. Tinha a certeza disso. Também era o tipo de advogado que
nunca aconselharia um cliente a apresentar um caso ou a tomar
providências legais a não ser que houvesse muito boas provas e justificação
para o fazer.
Dobrou uma esquina no caminho, sentindo que nesse momento os seus
pés eram muito mais importantes do que as suas especulações. Tomava um
atalho para a habitação do comissário Spence ou não? Em linha reta talvez,
mas a estrada principal seria melhor para os seus pés. Este caminho não era
de relva ou de musgo, tinha a dureza da pedra da pedreira. Então parou.
À sua frente estavam duas figuras. Sentado numa saliência da rocha
estava Michael Garfield. Tinha um bloco de desenho nos joelhos e estava a
desenhar, a sua atenção concentrada no que estava a fazer. Um pouco
afastada dele, de pé perto de um riacho diminuto mas melodioso que corria
desde cima, estava Miranda Butler. Hercule Poirot esqueceu os pés,
esqueceu as dores e tormentos do corpo humano, e concentrou-se de novo
na beleza que os seres humanos conseguiam alcançar. Não havia dúvidas de
que Michael Garfield era um jovem muito bonito. Não sabia dizer se
gostava de Michael Garfield ou não. É sempre difícil saber se se gosta de
alguém bonito. Gosta-se de olhar para a beleza, ao mesmo tempo que não se
gosta da beleza quase por princípio. As mulheres podiam ser bonitas, mas
Hercule Poirot não tinha de todo a certeza de que gostava de beleza em
homens. Não teria gostado de ser um jovem bonito, não que houvesse
alguma hipótese de isso acontecer. Havia apenas uma coisa na sua própria
aparência que agradava realmente a Hercule Poirot, e isso era a profusão do
seu bigode e a forma como respondia aos cuidados, tratamento e corte. Era
magnífico. Não conhecia ninguém que tivesse um bigode minimamente tão
bom. Nunca fora bonito nem bem-parecido. Certamente que nunca fora
lindo.
E Miranda? Pensou novamente o que pensara antes, que era o seu ar
grave que era tão atraente. Interrogou-se sobre o que lhe iria na mente. Era
o tipo de coisa que nunca se saberia. Ela não diria facilmente em que
pensava. Duvidava que ela dissesse o que pensava, se lho perguntassem.
Tinha uma mente original, pensou, uma mente que refletia. Também pensou
que ela era vulnerável. Muito vulnerável. Havia outras coisas que sabia
sobre ela, ou pensava saber. Eram só pensamentos, mas no entanto tinha
quase a certeza.
Michael Garfield olhou para cima.
– Ah! Señor Moustachios. Uma muito boa tarde para si, sir.
– Posso ver o que está a fazer ou será que isso o incomodaria? Não quero
ser importuno.
– Pode ver – disse Michael Garfield – não me faz diferença. –
Acrescentou de forma amável. – Estou a divertir-me imenso.
Poirot colocou-se atrás do ombro dele. Acenou com a cabeça. Era um
desenho a lápis muito delicado, as linhas quase invisíveis. O homem sabia
desenhar, pensou Poirot. Não só jardins de design. Disse, quase sem se
ouvir:
– Encantador!
– Também acho – disse Michael Garfield.
Deixou que fosse duvidoso estar a referir-se ao desenho que estava a
fazer, ou à modelo.
– Porquê? – perguntou Poirot.
– Porque estou a fazê-lo? Acha que tenho uma razão?
– Podia ter.
– Tem razão. Se me for embora daqui, há uma ou duas coisas das quais
me quero lembrar. A Miranda é uma delas.
– Esquecer-se-ia dela facilmente?
– Muito facilmente. Sou assim. Mas esquecer-se de alguma coisa ou de
alguém, ser incapaz de visualizar um rosto, uma curva do ombro, um gesto,
uma árvore, uma flor, um contorno da paisagem, saber como era vê-lo mas
não conseguir trazer essa imagem de volta ao olhar, isso por vezes causa,
como direi, quase agonia. Sabe, uma pessoa regista, e tudo passa.
– Não o jardim da pedreira ou o parque. Isso não passou.
– Não acha? Em breve passará. Passará se ninguém estiver aqui. A
Natureza toma o controlo, sabe. Precisa de amor e atenção e cuidado e
perícia. Se uma Câmara Municipal tomar o controlo, e isso é o que acontece
muitas vezes hoje em dia, então será o que chamam de «mantido». O tipo
mais recente de arbusto será introduzido, serão feitos caminhos
suplementares, bancos serão postos a certas distâncias. Talvez até sejam
colocados caixotes do lixo. Oh, são tão cuidadosos, bondosos ao
preservarem. Não se pode preservar isto. É selvagem. Manter uma coisa
selvagem é muito mais difícil do que preservá-la.
– M. Poirot – a voz de Miranda atravessou o riacho.
Poirot avançou, de modo a estar ao alcance da voz dela.
– Então encontro-a aqui. Veio fazer de modelo para o seu retrato?
Ela abanou a cabeça.
– Não vim para isso. Isso aconteceu.
– Sim – disse Michael Garfield –, sim, aconteceu. Por vezes uma pessoa
tem um pouco de sorte.
– Estava só a caminhar no seu jardim favorito?
– Na verdade estava à procura do poço – disse Miranda.
– Um poço?
– Havia um poço dos desejos neste bosque, em tempos.
– Numa antiga pedreira? Não sabia que tinham poços em pedreiras.
– Sempre houve um bom bosque à volta da pedreira. Bem, sempre houve
aqui árvores. O Michael sabe onde é o poço mas não mo diz.
– Será muito mais divertido para si – disse Michael Garfield – continuar a
procurá-lo. Especialmente se não tiver a certeza de que existe de facto.
– A velha Mrs. Goodbody sabe tudo sobre ele. – E acrescentou: – Ela é
uma bruxa.
– Certo – disse Michael. – Ela é a bruxa local, M. Poirot. Há sempre uma
bruxa local, sabe, na maioria dos sítios. Nem sempre se chamam a si
próprias bruxas, mas toda a gente sabe. Leem uma sina ou enfeitiçam as
suas begónias, ou mirram as suas peónias, ou impedem a vaca de um
agricultor de dar leite, e provavelmente também dão poções de amor.
– Era um poço dos desejos – disse Miranda. – As pessoas costumavam vir
aqui e pedir desejos. Tinham de dar três voltas ao poço para trás e ficava
numa encosta da colina, por isso nem sempre era fácil. – Ela olhou para
além de Poirot, para Michael Garfield. – Um dia encontrá-lo-ei – disse ela
–, mesmo que não mo diga. É algures por aqui, mas foi selado, disse Mrs.
Goodbody. Oh! Há anos. Selado porque diziam que era perigoso. Uma
criança caiu lá dentro há anos, Kitty Qualquer-Coisa. Mais alguém pode ter
caído lá dentro.
– Bem, continue a pensar assim – disse Michael Garfield. – É uma boa
história local, mas há um poço dos desejos em Little Belling.
– Claro – disse Miranda. – Sei tudo sobre esse. É muito vulgar – disse ela.
– Toda a gente sabe disso, é muito parvo. As pessoas atiram moedinhas lá
para dentro e já não há lá água por isso não há nem um salpico.
– Bem, lamento.
– Eu dir-lhe-ei quando o encontrar – disse Miranda.
– Não deve acreditar em tudo que uma bruxa diz. Não acredito que
alguma criança tenha caído lá dentro. Imagino que um gato tenha lá caído
uma vez e se tenha afogado.
– Dlim-dlão, no poço a encontrarão – disse Miranda.
Levantou-se.
– Agora tenho de ir – disse. – A mãezinha está à minha espera.
Saiu da saliência rochosa com cuidado, sorriu para ambos os homens e
partiu por um caminho ainda mais intransigente, do outro lado da água.
– Dlim-dlão – disse Poirot, pensativo. – Uma pessoa acredita no que quer
acreditar, Michael Garfield. Ela tinha ou não razão?
Michael Garfield olhou para ele de forma pensativa, e sorriu.
– Ela tem razão – disse ele. – Há um poço, e como ela disse está selado.
Suponho que devia ser perigoso. Não creio que tenha sido alguma vez um
poço de desejos. Creio que isso é um pouco fantasia de Mrs. Goodbody. Há
uma árvore dos desejos, ou houve em tempos. Uma faia a meio da encosta,
e creio que as pessoas lhe davam três voltas a andar para trás e pediam um
desejo.
– O que aconteceu a isso? Já não andam à volta da árvore?
– Não. Acho que foi atingida por um relâmpago há cerca de seis anos.
Partida em duas. Por isso essa bela história já era.
– Contou isso à Miranda?
– Não. Acho que prefiro deixá-la com o poço. Uma faia rebentada não
seria muito divertida para ela, pois não?
– Devo pôr-me a caminho – disse Poirot.
– Vai outra vez ter com o seu amigo polícia?
– Sim.
– Está com um ar cansado.
– Estou cansado – disse Hercule Poirot. – Estou extremamente cansado.
– Estaria mais confortável com sapatos de lona ou sandálias.
– Ah, ça, non.
– Estou a ver. É ambicioso, quando se trata do vestuário. – Olhou para
Poirot. – O tout ensemble, é muito bom e especialmente, se posso
mencioná-lo, o seu magnífico bigode.
– Estou-lhe grato – disse Poirot – que tenha reparado nisso.
– A questão é mais, poderia alguém não reparar nele?
Poirot inclinou a cabeça para um lado. Depois disse:
– Falou do desenho que está a fazer porque deseja lembrar-se da jovem
Miranda. Quer isso dizer que se vai embora daqui?
– Pensei nisso, sim.
– E, no entanto, parece-me que está bien placé ici.
– Oh sim, com uma posição eminente. Tenho uma casa onde viver, uma
casa pequena mas projetada por mim, e tenho o meu trabalho, mas isso é
menos satisfatório do que costumava ser. Por isso começo a ficar irrequieto.
– Porque é o seu trabalho menos satisfatório?
– Porque as pessoas querem que eu faça as coisas mais atrozes. Querem
que melhore os seus jardins, pessoas que compraram terrenos e estão a
construir uma casa, e querem o jardim projetado.
– Não está a fazer o jardim para Mrs. Drake?
– Ela quer que o faça, sim. Dei-lhe umas sugestões e ela pareceu
concordar com elas. Não creio, porém – acrescentou de forma pensativa –,
que confie realmente nela.
– Quer dizer que ela não o deixaria fazer o que quereria?
– Quero dizer que ela certamente faria o que ela quisesse, e que apesar de
gostar das ideias que eu apresentei, ela exigiria de repente algo
completamente diferente. Algo utilitário, caro e vistoso talvez. Intimidar-
me-ia, acho eu. Insistiria em que executasse as ideias dela. Eu não
concordaria, discutiríamos. Então, em suma, é melhor que eu me vá embora
antes de discutir. E não só com Mrs. Drake mas com muitos outros
vizinhos. Sou bastante conhecido. Não preciso de ficar sempre no mesmo
sítio. Podia encontrar algum outro canto em Inglaterra, ou poderia ser um
canto da Normandia ou da Bretanha.
– Algum local onde possa melhorar, ou ajudar, a Natureza? Onde possa
fazer experiências ou plantar coisas estranhas onde elas nunca cresceram,
onde nem o sol queimará nem o frio destruirá? Algum bom pedaço de terra
árida onde pode divertir-se a fingir-se Adão, mais uma vez? Sempre foi
irrequieto?
– Nunca fiquei muito tempo no mesmo sítio.
– Já esteve na Grécia?
– Sim. Gostaria de ir à Grécia outra vez. Sim, o senhor tem uma certa
razão. Um jardim numa encosta grega. Deve haver lá ciprestes, e não muito
mais. Um rochedo árido. Mas se uma pessoa o quisesse, o que não poderia
lá haver?
– Um jardim onde os deuses poderiam caminhar...
– Sim. O senhor consegue ler mentes, não, M. Poirot?
– Quisera eu fazê-lo. Há tantas coisas que eu gostaria de saber e de não
saber.
– Agora está a falar de alguma coisa bastante prosaica, não está?
– Infelizmente, sim.
– Fogo posto, assassinato e morte súbita?
– Mais ou menos. Não sei se pensava em fogo posto. Diga-me, Mr.
Garfield, já cá está há algum tempo, conheceu um homem chamado Lesley
Ferrier?
– Sim, lembro-me dele. Trabalhava num escritório de um solicitador em
Medchester, não trabalhava? Fullerton, Harrison e Leadbetter. Funcionário
assistente, algo desse tipo. Um tipo bem-parecido.
– Teve um fim súbito, não teve?
– Sim. Foi esfaqueado uma noite. Problemas de mulheres, segundo sei.
Toda a gente parece pensar que a polícia sabe muito bem quem o fez, mas
não arranjam as provas que querem. Ele estava mais ou menos envolvido
com uma mulher chamada Sandra, não me lembro agora do nome dela,
Sandra Qualquer-Coisa, sim. O marido dela tomava conta do pub local. Ela
e o jovem Lesley tinham um caso, e então o Lesley meteu-se com outra
rapariga. Ou pelo menos foi essa a história.
– E a Sandra não gostou disso?
– Não, não gostou mesmo. Veja, ele era mulherengo. Havia duas ou três
com quem ele andava.
– Eram todas raparigas inglesas?
– Porque pergunta isso? Não, não creio que ele se limitasse a raparigas
inglesas, desde que falassem inglês suficiente para que entendessem mais
ou menos o que ele lhes dizia, e ele entendesse o que elas lhe diziam.
– Sem dúvida que há de tempos a tempos raparigas estrangeiras nestas
redondezas?
– Claro que sim. Há alguma vizinhança onde não haja? Raparigas au
pair, fazem parte da vida diária. Feias, bonitas, honestas, desonestas, umas
que ajudam mães cabeça no ar e algumas que não ajudam nada, e algumas
que se vão embora.
– Como a Olga?
– Como diz, como a Olga.
– O Lesley era amigo da Olga?
– Oh, é por aí que a sua mente vai. Sim, era. Não creio que Mrs.
Llewellyn-Smythe soubesse muito acerca disso. Creio que a Olga era
bastante cuidadosa. Ela falava seriamente de alguém com quem ela tinha
esperanças de casar um dia no seu país. Não sei se era verdade ou se ela
inventou. O jovem Lesley era um jovem bonito, como já disse. Não sei o
que ele viu em Olga, ela não era muito bonita. Ainda assim... – pensou
durante um ou dois minutos – ela tinha um ar intenso. Um jovem inglês
poder-se-ia sentir atraído por isso, acho eu. De qualquer forma, o Lesley
sentiu-se, e as suas outras namoradas não gostaram.
– Isso é muito interessante – disse Poirot. – Pensei que me poderia dar a
informação que eu queria.
Michael Garfield olhou para ele de forma curiosa.
– Porquê? De que se trata tudo isto? Onde entra o Lesley no caso? Porquê
este desenterrar do passado?
– Bem, há coisas que uma pessoa quer saber. Quer saber como as coisas
acontecem. Estou a olhar ainda mais para trás. Antes do tempo em que
esses dois, a Olga Seminoff e o Lesley Ferrier, se conheceram secretamente
sem que Mrs. Llewellyn-Smythe o soubesse.
– Bem, não tenho certeza disso. Isso é apenas, bem, é só ideia minha. Eu
via-os bastantes vezes, mas a Olga nunca me fazia confidências. Quanto ao
Lesley Ferrier, eu mal o conhecia.
– Eu quero ir atrás disso. Ele tinha, segundo me dizem, certas
desvantagens no seu passado.
– Creio que sim. Sim, bem, de qualquer modo é o que foi dito por aqui.
Mr. Fullerton deu-lhe emprego e tinha esperanças de fazer dele um homem
honesto. É um bom tipo, o velho Fullerton.
– O seu delito fora, creio, falsificação?
– Sim.
– Foi uma primeira ofensa, e disseram ter havido circunstâncias
atenuantes. Ele tinha uma mãe doente ou um pai bêbado, ou algo desse tipo.
De qualquer forma, escapou com uma pena leve.
– Nunca ouvi os detalhes. Foi algo com que ele aparentemente se safara,
mas vieram contabilistas e descobriram. Estou a ser vago. Isto é só boato.
Falsificação. Sim, foi essa a acusação. Falsificação.
– E quando Mrs. Llewellyn-Smythe morreu e o seu testamento teve de ser
levado ao tribunal de sucessão, descobriram que o testamento era
falsificado.
– Sim, vejo como a sua mente funciona. Está a encaixar essas duas coisas
como se estivessem ligadas.
– Um homem que teve, até certo ponto, êxito como falsificador. Um
homem que travara amizade com uma rapariga, uma rapariga que, se um
testamento tivesse sido aceite quando submetido ao tribunal de sucessão,
teria herdade a maior parte de uma vasta fortuna.
– Sim, sim, isso mesmo.
– E essa rapariga e o homem que cometeu o delito de falsificação eram
grandes amigos. Ele deixara a sua namorada e envolvera-se em vez disso
com a rapariga estrangeira.
– O que está a sugerir é que o testamento falsificado foi falsificado pelo
Lesley Ferrier.
– Parece haver uma grande probabilidade de que isso tenha acontecido,
não parece?
– A Olga conseguia supostamente copiar a letra de Mrs. Llewellyn-
Smythe bastante bem, mas isso sempre me pareceu uma questão um pouco
duvidosa. Ela escreveu cartas à mão para Mrs. Llewellyn-Smythe, mas não
imagino que fossem na verdade muito parecidas. Não o suficiente para
passarem por uma análise. Mas se ela e o Lesley estavam metidos nisso
juntos, isso é diferente. Atrevo-me a dizer que ele conseguiria fazer um
bom trabalho, e era suficientemente confiante para que passasse. Mas ele
também deve ter tido a certeza disso quando cometeu o primeiro delito, e
enganou-se, e suponho que se enganou desta vez. Calculo que quando soou
o alarme, quando os advogados começaram a levantar problemas e
dificuldades, e chamaram peritos para examinar as coisas e começaram a
fazer perguntas, pode ser que ela perdesse a coragem, e discutisse com o
Lesley. E depois fugiu, com esperanças de que ele pagasse as favas.
Ele abanou vigorosamente a cabeça.
– Porque vem aqui falar de coisas destas comigo, no meu lindo bosque?
– Queria saber.
– É melhor não saber. É melhor nunca saber. E melhor deixar as coisas
como estão. Não empurrar, investigar e atiçar.
– Monsieur quer a beleza – disse Hercule Poirot. – Beleza a qualquer
preço. Para mim, é a verdade que eu quero. Sempre a verdade.
Michael Garfield riu-se.
– Vá para casa ter com os seus amigos polícias e deixe-me aqui no meu
pequeno paraíso. Vade retro, Satanás.
 
Capítulo 21
 
 
 
 
 

P oirot subiu a encosta. De repente deixou de sentir dores nos pés. Algo
lhe ocorrera. O encaixar de coisas que ele pensara e sentira, coisas que
soubera estarem ligadas, mas que não vira como. Agora tinha consciência
do perigo, perigo que poderia atingir alguém a qualquer momento se não
fossem tomadas providências para o impedir. Perigo grave.
Elspeth McKay veio à porta, ao seu encontro.
– Está com um ar exausto – disse. – Entre e sente-se.
– O seu irmão está cá?
– Não. Foi até à esquadra. Creio que aconteceu algo.
– Aconteceu algo? – Ele estava espantado. – Tão cedo? Não é possível.
– Hum? – disse Elspeth. – O que quer dizer?
– Nada. Nada. Aconteceu algo a alguém, é o que quer dizer?
– Sim, mas não sei quem, exatamente. Seja como for, o Raglan telefonou
e pediu-lhe que fosse lá. Arranjo-lhe uma chávena de chá?
– Não – disse Poirot –, agradeço-lhe muito, mas creio... creio que vou
para casa.
Ele não conseguia enfrentar a perspetiva de chá preto amargo. Pensou
numa boa desculpa que disfarçasse qualquer sinal de falta de educação.
– Os meus pés – explicou. – Os meus pés. Não estou apropriadamente
arranjado para o campo, em termos de calçado. Uma mudança de sapatos
seria desejável.
Elspeth McKay olhou para eles.
– Não – disse ela –, vejo que não são adequados. O verniz faz inchar os
pés. Já agora, há uma carta para si. Com carimbos estrangeiros. Veio de
fora, a cargo do comissário Spence, Pine Crest. Trago-lha já.
Voltou passados alguns minutos, e entregou-lhe a carta.
– Se não quiser o envelope, eu gostaria de ficar com ele para um dos
meus sobrinhos, que coleciona selos.
– É claro. – Poirot abriu a carta e deu-lhe o envelope. Ela agradeceu-lhe e
voltou a entrar em casa.
Poirot desdobrou a folha e leu.
O serviço estrangeiro de Mr. Goby era gerido com a mesma competência
demonstrada por ele no serviço inglês. Não poupava despesas e obtinha
resultados de forma rápida.
É verdade que os resultados não eram de grande monta. Poirot não
pensara que iriam ser.
Olga Seminoff não regressara à sua cidade natal. Não tinha família viva.
Tinha uma amiga, uma mulher idosa, com quem se correspondera de modo
intermitente, para dar notícias da sua vida em Inglaterra. Tivera boas
relações com a patroa, que fora em algumas ocasiões exigente, mas também
generosa.
As cartas de Olga que haviam sido recebidas eram datadas de há um ano
e meio aproximadamente. Fazia nelas menção de um jovem. Havia
insinuações de que pensavam em casamento, mas o jovem, cujo nome não
mencionou, tinha ainda de singrar na vida, por isso nada podia ser decidido
de imediato. Na sua última carta falava com alegria de boas perspetivas.
Quando não vieram mais cartas, a amiga idosa supôs que Olga se casara
com o seu inglês e que mudara de morada. Acontecem coisas dessas muito
frequentemente com raparigas que vão para Inglaterra. Se estavam casadas
e felizes, era comum nunca mais escreverem.
Ela não se preocupara.
Encaixava, pensou Poirot. Lesley falara de casamento, mas poderia não o
querer de facto. Mrs. Llewellyn-Smythe fora chamada de «generosa».
Lesley recebera dinheiro de alguém, de Olga talvez (dinheiro que lhe fora
dado pelos patrões), para o induzir a fazer a falsificação para ela.
Elspeth McKay voltou a sair para o terraço. Poirot consultou-a quanto às
suas suspeitas sobre uma parceria entre Olga e Lesley.
Ela pensou durante um momento. Depois o oráculo falou.
– Se assim foi, foram muito discretos. Nunca houve boatos sobre esses
dois. Num sítio como este há sempre boato caso haja alguma coisa.
– O jovem Ferrier estava envolvido com uma mulher casada. Pode ter
avisado a rapariga para não dizer nada sobre ele à sua patroa.
– É provável. Mrs. Smythe provavelmente saberia que o Lesley Ferrier
era má peça, e avisaria a rapariga para não querer nada com ele.
Poirot dobrou a carta e pô-la no seu bolso.
– Gostava que me deixasse arranjar-lhe um bule de chá.
– Não, não, tenho de ir para a minha casa de hóspedes e mudar de
sapatos. Não sabe quando o seu irmão voltará?
– Não faço ideia. Não disseram para o que precisavam dele.
Poirot caminhou pela estrada até à sua casa de hóspedes. Ficava apenas a
umas centenas de metros. Enquanto subia em direção à porta, esta foi aberta
e a sua senhoria, uma senhora bem-disposta com trinta e tal anos, veio ao
seu encontro.
– Está aqui uma senhora para falar consigo – disse ela. – Está já há algum
tempo à espera. Disse-lhe que não sabia ao certo onde o senhor tinha ido ou
quando voltaria, mas ela disse que esperaria.
Acrescentou:
– É Mrs. Drake. Está transtornada, diria eu. Geralmente é tão calma
acerca de tudo, mas acho realmente que está em estado de choque. Está na
sala de estar. Quer que lhe traga um chá ou algo?
– Não – disse Poirot. – Acho que será melhor não o fazer. Primeiro
ouvirei o que ela tem a dizer.
Abriu a porta e entrou na sala de estar. Rowena Drake estivera junto à
janela. Não era a janela que dava para o caminho, por isso não vira que ele
chegara. Virou-se de forma abrupta ao ouvir o som da porta.
– M. Poirot. Por fim. Pareceu tanto tempo.
– Desculpe-me, madame. Estive na floresta da pedreira e também a
conversar com a minha amiga, Mrs. Oliver. E depois falei com dois rapazes,
o Nicholas e o Desmond.
– O Nicholas e o Desmond? Sim, eu sei. Interrogo-me... oh, uma pessoa
pensa tanta coisa.
– Está transtornada – disse Poirot de um modo gentil.
Não era uma coisa que pensara alguma vez ver. Rowena Drake
transtornada, não mais senhora dos acontecimentos, já não organizadora de
tudo, e a forçar as suas decisões sobre os outros.
– Ouviu dizer, não ouviu? – perguntou ela. – Oh, bem, talvez não tenha
ouvido.
– O que deveria eu ter ouvido dizer?
– Algo terrível. Ele, ele está morto. Alguém o matou.
– Quem está morto, madame?
– Então de facto ainda não ouviu. E ele é apenas uma criança, e eu
pensei... oh, que parva tenho sido. Dever-lhe-ia ter dito. Quando me
perguntou. Sinto-me terrivelmente, terrivelmente culpada por pensar que eu
é que sabia e pensar... mas tive as melhores intenções, M. Poirot, deveras
que tive.
– Sente-se, madame, sente-se. Acalme-se e conte-me. Morreu uma
criança, outra criança?
– O irmão dela – disse Mrs. Drake. – O Leopold.
– O Leopold Reynolds?
– Sim. Encontraram o corpo dele num dos caminhos do campo. Ele devia
estar a regressar da escola e deve ter saído do caminho para brincar no
riacho que há aqui perto. Alguém o prendeu dentro do riacho, prendeu a
cabeça dele debaixo de água.
– O mesmo tipo de coisa que fizeram à Joyce?
– Sim, sim. Compreendo que seja, que seja algum tipo de loucura. E uma
pessoa não sabe quem, isso é o que é terrível. Uma pessoa não faz a mínima
ideia. E eu pensei que sabia. Eu pensei mesmo, suponho, sim, foi uma coisa
muito malvada.
– Tem de contar-me, madame.
– Sim, quero contar-lhe. Vim aqui para lhe contar. Porque, sabe, o senhor
veio ter comigo depois de ter falado com a Elizabeth Whittaker. Depois de
ela lhe ter contado que algo me assustara. Que eu vira alguma coisa.
Alguma coisa no átrio da casa, de minha casa. Eu disse que não vira nada e
que nada me assustara porque, sabe, eu pensei... – parou.
– O que viu?
– Dever-lhe-ia ter contado na altura. Vi a porta da biblioteca aberta, aberta
de forma muito cuidadosa e, então, ele saiu. Ele não saiu logo. Ficou na
entrada e depois fechou a porta rapidamente e voltou a entrar.
– Quem era?
– O Leopold. O Leopold, a criança que foi morta agora. E, sabe, eu pensei
que eu, oh, que erro, que erro horrível. Se eu lhe tivesse dito, talvez, talvez
o senhor tivesse chegado ao fundo da questão.
– Pensou? – disse Poirot. – Pensou que o Leopold matara a irmã. Foi isso
que pensou?
– Sim, foi o que pensei. Não na altura, claro, porque não sabia que ela
estava morta. Mas o rosto dele tinha um olhar estranho. Ele sempre foi uma
criança estranha. De certa forma, uma pessoa tem medo dele porque ele não
é normal. Muito esperto e com um QI elevado, mas mesmo assim não é
normal.
«E eu pensei ‘porque está o Leopold a sair dali em vez de estar no
Snapdragon?’, e pensei ‘O que esteve ele a fazer? Está tão estranho.’ E
então, bem, não voltei a pensar mais nisso, mas suponho que o olhar dele
me perturbou. Por isso é que deixei cair o vaso. A Elizabeth ajudou-me a
apanhar os cacos, e voltei para o Snapdragon e não pensei mais nisso. Até
que encontrámos a Joyce. Foi aí que pensei...»
– Pensou que o Leopold o fizera?
– Sim. Sim, pensei isso. Pensei que isso explicava o olhar dele. Pensei
que sabia. Pensei sempre, toda a minha vida pensei demasiadas vezes que
sabia tudo, que tinha razão. E posso enganar-me muito. Sabe, porque ele ser
morto deve querer dizer algo muito diferente. Ele deve ter entrado lá, e deve
tê-la encontrado, morta, e isso deu-lhe a ele um choque terrível, e ficou
assustado. E então ele quis sair do quarto sem que ninguém o visse, e
calculo que tenha olhado para cima e me tenha visto, e tenha entrado na sala
e fechado a porta, e esperado até que o átrio estivesse vazio antes de sair.
Mas não porque a tinha matado. Não. Apenas o choque de a encontrar
morta.
– E no entanto não disse nada? Não mencionou o que tinha visto, mesmo
depois de a Joyce ser descoberta?
– Não. Eu, oh, eu não podia. Ele é, sabe, ele é tão novo... era tão novo,
suponho que devo dizê-lo assim agora. Dez. Dez, no máximo onze, e, quero
dizer, eu senti que ele não podia saber o que fazia, não podia ter sido culpa
dele exatamente. Ele não devia ser moralmente responsável. Ele sempre foi
um pouco estranho, e eu pensei que se poderia arranjar tratamento para ele.
Não deixar tudo para a polícia. Não mandá-lo para sítios aprovados. Eu
pensei que se poderia arranjar tratamento psicológico para ele, se fosse
necessário. Eu, eu não fiz por mal. Tem de acreditar em mim, eu não fiz por
mal.
Palavras tão tristes, pensou Poirot, das mais tristes do mundo inteiro. Mrs.
Drake pareceu adivinhar o que ele pensava.
– Sim – disse ela –, «eu tentei fazer o melhor». «Não fiz por mal.» Uma
pessoa pensa sempre que sabe o que é melhor para os outros, mas não sabe.
Porque a razão pela qual ele estava tão perturbado devia ser porque viu
quem era o assassino, ou viu algo que daria uma pista sobre quem seria o
assassino. Algo que fez com que o assassino se sentisse inseguro. E então,
então ele esperou até ter o rapaz sozinho e afogou-o no riacho para que ele
não falasse, para que não contasse. Se ao menos eu tivesse falado, se eu lhe
tivesse contado, ou à polícia, ou a alguém, mas pensei que sabia o que era
melhor.
– Hoje mesmo – disse Poirot, depois de ter ficado em silêncio por uns
momentos, a ver Mrs. Drake conter o seu choro – foi-me dito que o
Leopold andava com muito dinheiro ultimamente. Alguém lhe deve ter
pagado para que ficasse em silêncio.
– Mas quem, quem?
– Descobriremos – disse Poirot. – Já não falta muito tempo.
 
 
Capítulo 22
 
 
 
 
 

N ãooutros.
era muito característico de Hercule Poirot pedir as opiniões dos
Ficava habitualmente bastante satisfeito com as suas próprias
opiniões. No entanto, em certas alturas abria exceções. Esta era uma delas.
Ele e Spence haviam tido uma conversa breve e depois Poirot contactara
um serviço de aluguer de automóveis, e, depois de uma outra curta conversa
com o seu amigo e com o inspetor Raglan, partira de carro. Combinara que
seria conduzido de volta a Londres, mas fizera uma paragem no caminho.
Foi até The Elms. Disse ao condutor do carro que não demoraria, um quarto
de hora no máximo, e depois procurou uma audiência com Miss Emlyn.
– Desculpe incomodá-la a esta hora. É sem dúvida a sua hora de cear, ou
de jantar.
– Bem, pelo menos tenho por si a consideração de pensar, M. Poirot, que
não me incomodaria nem à ceia nem ao jantar sem ter uma razão válida
para o fazer.
– É muito gentil. Para ser franco, preciso do seu conselho.
– Sim?
Miss Emlyn parecia algo surpreendida. Mais do que surpreendida, parecia
cética.
– Isso não parece muito característico da sua parte, M. Poirot. Não
costuma ficar satisfeito com as suas próprias opiniões?
– Sim, fico satisfeito com as minhas opiniões, mas dar-me-ia alento e
apoio se alguém cuja opinião respeito concordasse com elas.
Ela não falou, olhou apenas para ele com curiosidade.
– Sei quem é o assassino da Joyce Reynolds – disse ele. – Acredito que a
madame também o sabe.
– Eu não disse isso – disse Miss Emlyn.
– Não. Não o disse. E isso podia levar-me a crer que é apenas uma
opinião sua.
– Um palpite? – inquiriu Miss Emlyn, e o seu tom era mais frio do que
nunca.
– Eu preferiria não utilizar essa palavra. Preferiria dizer que tem uma
opinião forte.
– Muito bem. Admito que tenho uma opinião forte. Isso não quer dizer
que eu a repita ao senhor.
– O que eu gostaria de fazer, mademoiselle, é escrever quatro palavras
num pedaço de papel. Perguntar-lhe-ei se concorda com as quatro palavras
que escrevi.
Miss Emlyn levantou-se. Atravessou a sala até à sua secretária, pegou
num pedaço de papel e levou-o até junto de Poirot.
– Despertou o meu interesse – disse ela. – Quatro palavras.
Poirot tirou uma caneta do bolso. Escreveu no papel, dobrou-o e deu-lho.
Ela pegou nele, endireitou-o e segurou-o na mão, olhando para ele.
– Então?
– Quanto a duas das palavras nesse papel, concordo, sim. As outras duas,
é mais difícil. Não tenho provas e, na realidade, as ideias não me haviam
passado pela cabeça.
– Mas no caso das duas primeiras palavras, tem provas concretas?
– Penso que sim.
– Água – disse Poirot, de forma pensativa. – Assim que ouviu isso, soube.
Assim que eu ouvi isso, eu soube. Tem a certeza, eu tenho a certeza. E
agora – disse Poirot – um rapaz foi afogado num riacho. Ouviu falar disso?
– Sim. Alguém me telefonou a contar. O irmão da Joyce. Como estava ele
envolvido nisto?
– Queria dinheiro – disse Poirot. – E recebeu-o. E, então, quando se
apresentou uma oportunidade conveniente, foi afogado num riacho.
A voz dele não se alterou. Adquiriu talvez uma nota mais severa, em vez
de se suavizar.
– A pessoa que me contou – disse ele – estava cheia de compaixão.
Transtornada emocionalmente. Mas eu não sou assim. Era jovem, esta
segunda criança que morreu, mas a sua morte não foi um acidente. Foi,
como tantas coisas na vida, resultado das suas ações. Ele queria dinheiro e
correu um risco. Era esperto o suficiente, astuto o suficiente para saber que
estava a correr um risco, mas queria o dinheiro. Tinha dez anos, mas causa
e efeito são iguais nessa idade ao que seriam aos trinta, cinquenta ou
noventa. Sabe o que é a primeira coisa em que penso em casos destes?
– Eu diria – disse Miss Emlyn – que está muito mais preocupado com
justiça do que com compaixão.
– Compaixão – disse Poirot – da minha parte em nada ajudaria o Leopold.
Ele está para além de ajudas. Justiça, se a obtivermos, eu e a madame,
porque creio que pensa como eu neste caso, poder-se-ia dizer que a justiça
também não ajudaria o Leopold. Mas poderia ajudar algum outro Leopold,
poderia ajudar a manter vivas outras crianças, se alcançarmos a justiça em
breve. Não é uma coisa segura, um assassino que matou mais do que uma
vez, para quem matar foi uma forma de segurança. Estou agora de partida
para Londres onde me vou encontrar com pessoas para discutir uma forma
de abordar o caso. Para os converter, talvez, até terem a certeza que eu
próprio tenho sobre o caso.
– Talvez tenha dificuldades – disse Miss Emlyn.
– Não, não creio. Os meios e as maneiras podem ser difíceis mas creio
que posso convertê-los ao meu conhecimento do que aconteceu. Porque eles
possuem mentes que entendem a mente criminosa. Há mais uma coisa que
gostaria de lhe perguntar. Quero a sua opinião. Apenas uma opinião desta
vez, não provas. A sua opinião quanto ao carácter do Nicholas Ransom e do
Desmond Holland. Aconselhar-me-ia a confiar neles?
– Diria que ambos são absolutamente de confiança. Essa é a minha
opinião. São de muitas formas extremamente tolos, mas apenas nos aspetos
efémeros da vida. São essencialmente de confiança. De confiança como
uma maçã sem bicho.
– Regressamos sempre às maçãs – disse Hercule Poirot de forma triste.
– Agora tenho de ir. O meu carro está à espera. Ainda há mais uma visita
que tenho de fazer.
 
 
Capítulo 23
 
 
 
I
 
 

–O uviu dizer o que se passa na floresta da pedreira? – disse Mrs.


30
Cartwright, enquanto punha um pacote de Fluffy Flakelets e Wonder
White31 no seu saco de compras.
– Floresta da pedreira? – disse Elspeth McKay, que era com quem ela
falava. – Não, não ouvi nada de especial.
Pegou num pacote de cereais. As duas mulheres estavam no
supermercado que abrira recentemente, a fazer as suas compras matinais.
– Andam a dizer que as árvores de lá são perigosas. Um par de homens
do departamento florestal chegou de manhã. É ali na encosta da colina,
onde há uma inclinação forte e uma árvore de lado. Suponho que pode ser
que tenha caído uma árvore. Uma delas foi atingida por um relâmpago no
inverno passado, mas isso foi mais longe, acho eu. De qualquer modo
andam a escavar as raízes de uma árvore, e um pouco mais em volta
também. É pena. Vão dar cabo do lugar.
– Oh, bem – disse Elspeth McKay –, calculo que sabem o que fazem.
Alguém os chamou, calculo.
– Também têm lá um par de polícias, a impedir que as pessoas se
aproximem. A afastá-las das coisas. Dizem que têm de descobrir quais são
as árvores doentes primeiro.
– Compreendo – disse Elspeth McKay.
Era possível que compreendesse. Não que alguém lhe tivesse explicado,
mas de qualquer modo, Elspeth nunca precisava que lho explicassem.
 
 
II
 
Ariadne Oliver alisou um telegrama que acabara de receber à sua porta.
Estava tão habituada a receber telegramas pelo telefone, empreender
caçadas frenéticas pelo lápis para os anotar, insistindo com firmeza em
querer que uma cópia de confirmação lhe fosse enviada, que ficou muito
espantada por receber o que chamava um «telegrama verdadeiro» outra vez.
 
«POR FAVOR LEVE MRS. BUTLER E MIRANDA PARA O SEU
APARTAMENTO DE IMEDIATO. NÃO HÁ TEMPO A PERDER.
IMPORTANTE VER MÉDICO PARA OPERAÇÃO.
Foi para a cozinha, onde Judith Butler estava a fazer geleia de marmelo.
– Judy – disse Mrs. Oliver –, vá fazer uma mala, vou para Londres e você
vem comigo, e a Miranda, também.
– É muito simpático da sua parte, Ariadne, mas tenho muito para fazer
aqui. Também não precisa de ir hoje à pressa, pois não?
– Preciso, sim, disseram-me para o fazer – disse Mrs. Oliver.
– Quem lhe disse, a sua governanta?
– Não – disse Mrs. Oliver. – Outra pessoa. Uma das poucas pessoas a
quem obedeço. Venha. Despache-se.
– Não quero sair de casa agora. Não posso.
– Tem de vir – disse Mrs. Oliver. – O carro está pronto. Já o trouxe para a
frente de casa. Podemos ir já.
– Não creio que queira levar a Miranda. Posso deixá-la aqui com alguém,
com os Reynolds ou com a Rowena Drake.
– A Miranda também vem – Mrs. Oliver interrompeu com decisão. – Não
levante dificuldades, Judy. Isto é sério. Não sei como pode sequer pensar
em deixá-la com os Reynolds. Dois dos filhos deles foram mortos, não
foram?
– Sim, sim, isso é bem verdade. Acha que se passa alguma coisa errada
naquela casa. Quero dizer, alguém lá que, oh, o que quero eu dizer?
– Estamos a falar de mais – disse Mrs. Oliver. – De qualquer forma –
acrescentou –, se alguém vai ser morto, parece-me que o mais provável é
que seja a Ann Reynolds.
– O que se passa com a família? Porque haviam de ser mortos, um atrás
do outro? Oh, Ariadne, é assustador!
– Sim – disse Mrs. Oliver –, mas há alturas em que se deve ficar
assustado. Acabei de receber um telegrama e ajo de acordo com ele.
– Oh, não ouvi o telefone.
– Não veio pelo telefone. Veio pela porta.
Hesitou um momento, e depois mostrou-o à sua amiga.
– O que quer isto dizer? Operação?
– Amígdalas, provavelmente – disse Mrs. Oliver. – A Miranda teve dores
de garganta a semana passada, não teve? Bem, o que seria mais plausível do
que ela consultar um especialista da garganta em Londres?
– Está doida, Ariadne?
– Provavelmente – disse Mrs. Oliver –, doida varrida. Venha, a Miranda
vai gostar de estar em Londres. Não precisa de se preocupar. Ela não vai
fazer operação nenhuma. É o que se chama de «fachada» em histórias de
espionagem. Levamo-la ao teatro, ou à ópera, ou ao ballet, o que ela gostar
mais. Em geral, penso que seria melhor levá-la ao ballet.
– Estou assustada – disse Judith.
Ariadne Oliver olhou para a sua amiga. Ela tremia ligeiramente. Mrs.
Oliver pensou que se parecia mais do que nunca com Undine. Parecia
desfasada da realidade.
– Ande lá – disse Mrs. Oliver. – Prometi ao Hercule Poirot que a levaria
quando ele mo dissesse. Bem, ele disse-mo.
– O que se passa aqui? – disse Judith. – Não sei porque vim para cá.
– Por vezes interroguei-me porque o fez – disse Mrs. Oliver –, mas não se
pode entender os sítios para onde as pessoas vão viver. Um amigo meu foi
viver para Moreton-in-the-Marsh no outro dia. Perguntei-lhe porque foi
para lá viver. Ele disse que sempre quisera e pensara nisso. Quando se
reformasse queria ir para lá. Disse-lhe que nunca lá fora mas que me
parecia ser húmido. Como era na verdade? Ele disse que não sabia porque
nunca lá tinha estado. Mas sempre quis viver lá. Ele estava lúcido, já agora.
– E ele foi?
– Sim.
– Gostou quando lá chegou?
– Bem, ainda não o ouvi dizer isso – disse Mrs. Oliver. – Mas as pessoas
são muito estranhas, não são? As coisas que querem fazer, as coisas que
simplesmente têm de fazer... – Foi para o jardim e gritou:
– Miranda, vamos para Londres.
Miranda veio na direção delas devagar.
– Vamos para Londres?
– A Ariadne vai levar-nos de carro – disse a mãe dela. – Vamos ver uma
peça de teatro. Mrs. Oliver acha que talvez consiga arranjar-nos bilhetes
para o ballet. Gostavas de ir ao ballet?
– Adorava – disse Miranda. Os seus olhos brilharam. – Tenho de ir
despedir-me de um dos meus amigos antes.
– Vamos sair agora mesmo.
– Oh, eu não demoro assim tanto, mas preciso de explicar. Há coisas que
prometi fazer.
Correu para o jardim e desapareceu pelo portão.
– Quem são os amigos da Miranda? – perguntou Mrs. Oliver, com alguma
curiosidade.
– Na verdade, nunca sei – disse Judith. – Ela nunca diz nada, sabe. Por
vezes creio que as únicas coisas que ela sente serem os seus amigos são os
pássaros que observa na floresta. Ou esquilos, ou coisas assim. Acho que
toda a gente gosta dela mas não sei se ela tem amigos a sério. Quero dizer,
ela não traz nenhumas raparigas para tomarem chá, nem nada assim. Não
tanto como as outras raparigas. Acho que de facto a melhor amiga dela era a
Joyce Reynolds.
Acrescentou de modo vago:
– A Joyce costumava contar-lhe coisas fantásticas sobre elefantes e tigres.
– Levantou-se. – Bem, tenho de ir fazer a mala, suponho, se insiste. Mas
não quero ir embora. Há muitas coisas que estou a fazer, como esta geleia
e...
– Tem de vir – disse Mrs. Oliver. Foi bastante firme.
Judith desceu as escadas de novo com um par de malas ao mesmo tempo
que Miranda entrou a correu pela porta lateral, um pouco sem fôlego.
– Não vamos almoçar primeiro? – perguntou.
Apesar da sua aparência de duende, era uma criança saudável que gostava
de comida.
– Pararemos para almoçar no caminho – disse Mrs. Oliver. – No Black
Boy, em Haversham. Isso seria bom. Fica a cerca de três quartos de hora
daqui e come-se bem. Venha, Miranda, vamos sair agora.
– Não vou ter tempo de dizer à Cathie que não posso ir ao cinema com
ela amanhã. Oh, talvez possa ligar-lhe.
– Bem, despacha-te – disse a mãe dela.
Miranda correu para a sala de estar, onde estava o telefone. Judith e Mrs.
Oliver puseram as malas no carro. Miranda saiu da sala de estar.
– Deixei recado – disse ela sem fôlego. – Está tudo bem agora.
– Acho que está doida, Ariadne – disse Judith, enquanto entravam no
carro. – Mesmo doida. O que significa tudo isto?
– Saberemos a seu tempo, imagino – disse Mrs. Oliver. – Não sei se sou
doida ou se ele o é.
– Ele? Quem?
– Hercule Poirot – disse Mrs. Oliver.
 
 
III
 
Em Londres, Hercule Poirot estava sentado numa sala com mais quatro
homens. Um deles era o inspetor Timothy Raglan, com o aspeto respeitável
e rosto insondável que eram invariavelmente habituais quando na presença
dos seus superiores; o segundo era o comissário Spence. O terceiro era
Alfred Richmond, chefe da polícia do condado, e o quarto homem era um
rosto severo e legal do gabinete do procurador-geral. Olharam para Hercule
Poirot com expressões variadas, ou com o que se poderia chamar de não
expressões.
– Parece ter bastante certeza, M. Poirot.
– Tenho bastante certeza – disse Hercule Poirot. – Quando uma coisa se
apresenta de tal forma, uma pessoa apercebe-se de que tem de ser dessa
forma, apenas procura razões para que não o seja. Se não encontra razões
para que não o seja, então uma pessoa vê a sua opinião fortalecida.
– Os motivos parecem um pouco complexos, se me permite dizer.
– Não – disse Poirot –, na verdade, não são complexos. Mas tão simples
que se tornam difíceis de ver claramente.
O advogado fez um ar cético.
– Teremos uma prova decisiva muito em breve – disse o inspetor Raglan.
– Claro, se tiver havido um erro nessa questão...
– Dlim-dlão, no poço a encontrarão? – disse Hercule Poirot. – É isso que
quer dizer?
– Bem, deve concordar que é apenas uma teoria da sua parte.
– As provas sempre apontaram para isso. Quando uma rapariga
desaparece, não há muitas razões. A primeira é a de que fugiu com um
homem. A segunda é a de que está morta. Todo o resto é bastante rebuscado
e praticamente nunca acontece.
– Não há pontos especiais para os quais possa dirigir a nossa atenção, M.
Poirot?
– Sim. Tenho estado em contacto com uma empresa imobiliária muito
conhecida. Amigos meus, que se especializam em propriedades nas Índias
Ocidentais, no Egeu, no Adriático, no Mediterrâneo e noutros sítios.
Especializam-se em sol e os seus clientes são habitualmente ricos. Aqui está
uma compra recente que talvez lhes interesse.
Entregou um papel dobrado.
– Acha que isto está relacionado?
– Tenho a certeza disso.
– Pensei que a venda de ilhas era proibida por esse governo específico?
– O dinheiro encontra geralmente uma maneira.
– Não há mais nada que queira explicar?
– É possível que dentro de vinte e quatro horas eu possa ter para os
messieurs algo que irá mais ou menos fechar o assunto.
– E isso é?
– Uma testemunha ocular.
– Quer dizer...
– Uma testemunha ocular de um crime.
O advogado olhou para Poirot com uma descrença crescente.
– Onde está essa testemunha ocular agora?
– Espero e confio que a caminho de Londres.
– Parece... transtornado.
– Isso é verdade. Fiz o que pude para cuidar das coisas, mas admito-lhe
que estou assustado. Sim, estou assustado apesar da medida de proteção que
tomei. Porque, sabe, estamos... como descrevê-lo? Estamos a lutar contra a
crueldade, a velocidade de reação, a ganância para lá do limite humano
esperado e talvez, não tenho a certeza mas penso que seja possível, um
toque, digamos, de loucura? Não a princípio, mas cultivada. Uma semente
que germinou e cresceu rapidamente. E agora talvez tenha tomado o
controlo, e tenha inspirado uma atitude desumana em vez de humana em
relação à vida.
– Teremos de ter algumas opiniões suplementares sobre isto – disse o
advogado. – Não nos podemos precipitar. Claro que muito depende de,
hum, do assunto florestal. Se isso for positivo, teremos de pensar de novo.
Hercule Poirot levantou-se.
– Vou-me embora. Disse-lhes tudo o que sei e tudo o que temo e
considero ser possível. Permanecerei em contacto convosco.
Apertou a mão de todos com precisão estrangeira, e saiu.
– Aquele homem é um pouco charlatão – disse o advogado. – Não acham
que seja um pouco tocado, pois não? Tocado nas ideias, quero eu dizer? Ele
já é de uma certa idade. Não sei se uma pessoa pode confiar nas faculdades
de um homem daquela idade.
– Acho que pode confiar nele – disse o chefe da polícia. – Pelo menos,
essa é a minha impressão. Spence, conheço-o há muitos anos. É amigo dele.
Acha que ele ficou um bocado senil?
– Não, não acho – disse o comissário Spence. – Qual é a sua opinião,
Raglan?
– Conheci-o recentemente, apenas, sir. Ao princípio pensei que o seu,
bem, o seu modo de falar, as suas ideias, talvez fossem fantasiosas. Mas de
modo geral estou convencido. Penso que se irá provar que tem razão.
30 Marca de cereais. (N. do T.)
31 Marca de pão de forma. (N. do T.)
 
 
Capítulo 24
 
 
 
 
 

M rs.bastante
Oliver tinha-se metido numa mesa à janela do Black Boy. Era ainda
cedo, por isso a sala de jantar não estava muito cheia. Em
seguida, Judith Butler regressou do quarto de banho e sentou-se à frente
dela a examinar a ementa.
– Do que gosta a Miranda? – perguntou Mrs. Oliver. – Mais vale pedir
para ela também. Calculo que voltará daqui a nada.
– Ela gosta de frango assado.
– Bem, então é fácil. E a senhora?
– Eu quero o mesmo.
– Três de frango assado – pediu Mrs. Oliver.
Encostou-se, estudando a sua amiga.
– Porque olha para mim dessa forma?
– Estava a pensar – disse Mrs. Oliver.
– A pensar o quê?
– A pensar o quão pouco a conheço.
– Bem, isso é igual com toda a gente, não é?
– Quer dizer que nunca se sabe tudo sobre ninguém.
– Eu acho que não.
– Talvez tenha razão – disse Mrs. Oliver.
Ambas as mulheres ficaram caladas por algum tempo.
– São um pouco lentos a servir aqui.
– Acho que vem aí – disse Mrs. Oliver.
Uma empregada de mesa chegou com um tabuleiro cheio de pratos.
– A Miranda está a demorar muito. Ela sabe onde é a sala de jantar?
– Claro que sabe. Olhámos à entrada. – Judith levantou-se de modo
impaciente. – Vou ter de a ir buscar.
– Será que ela enjoa de carro?
– Costumava enjoar quando era mais nova.
Voltou alguns quatro ou cinco minutos mais tarde.
– Não está no quarto de banho das senhoras – disse ela. – Há uma porta à
entrada que dá para o jardim. Talvez ela tenha saído por aí para olhar para
um pássaro ou algo assim. Ela é assim.
– Hoje não há tempo para ver pássaros – disse Mrs. Oliver. – Vá chamá -
la. Temos de ir.
 
 
II
 
Elspeth McKay espetou algumas salsichas com um garfo, pousou-as num
prato de levar ao forno, pô-lo no Frigidaire e começou a descascar batatas.
O telefone tocou.
– Mrs. McKay? Aqui é o sargento Goodwin. O seu irmão está?
– Não. Hoje está em Londres.
– Já telefonei para lá. Ele já saiu. Quando ele voltar, diga-lhe que tivemos
um resultado positivo.
– Quer dizer que encontraram um corpo no poço?
– Não adianta muito ficar de boca calada. A palavra já se espalhou.
– Quem é? A au pair?
– Parece que sim.
– Pobre rapariga – disse Elspeth. – Ela atirou-se lá para dentro, ou quê?
– Não foi suicídio, foi esfaqueada. Foi mesmo assassinato.
 
 
III
 
Depois de a sua mãe sair do quarto de banho das senhoras, Miranda
esperou um ou dois minutos. Depois abriu a porta, espreitou
cuidadosamente, abriu a porta lateral para o jardim, que ficava perto, e
correu pelo caminho do jardim, que levava às traseiras do que fora em
tempos uma pousada de diligências e era agora uma garagem. Saiu por uma
porta pequena que permitia aos peões passar para uma alameda, no exterior.
Um pouco mais ao longo da alameda estava um carro estacionado. Um
homem com sobrancelhas grisalhas e salientes, e uma barba grisalha estava
sentado lá dentro a ler um jornal. Miranda abriu a porta e entrou para o
lugar do passageiro. Riu-se.
– Está com um ar muito engraçado.
– Ria-se bem, ninguém a impede.
O carro arrancou, desceu a alameda, virou à direita, à esquerda, à direita
de novo e foi dar a uma estrada secundária.
– Por enquanto estamos bem – disse o homem da barba grisalha. – Na
altura certa verá o machado de lâmina dupla como deve ser visto. E
Kilterbury Down também. Uma vista maravilhosa.
Um carro passou muito veloz, tão perto que quase foram forçados a sair
para a sebe.
– Jovens idiotas – disse o homem da barba grisalha.
Um dos rapazes tinha cabelo comprido por cima dos ombros e óculos
grandes, que lhe davam aspeto de mocho. O outro tentava dar-se uma
aparência um pouco mais espanhola, com patilhas.
– Não acha que a mãezinha se vai preocupar comigo? – perguntou
Miranda.
– Ela não terá tempo de se preocupar consigo. Quando ela se preocupar
consigo, já terá chegado onde quer estar.
 
 
IV
 
Em Londres, Hercule Poirot pegou no telefone. A voz de Mrs. Oliver
soou.
– Perdemos a Miranda.
– O que quer dizer, perderam-na?
– Almoçámos no Black Boy. Ela foi ao quarto de banho. Não voltou.
Alguém disse que a viu partir num carro conduzido por um homem idoso.
Mas podia não ser ela. Podia ser outra pessoa. Podia...
– Alguém devia ter ficado com ela. Nenhuma de vocês devia tê-la perdido
de vista. Disse-lhe que havia perigo. Mrs. Butler está muito preocupada?
– Claro que está preocupada. O que acha? Está desesperada. Insiste em
telefonar à polícia.
– Sim, isso seria a coisa natural a fazer. Eu também lhes telefonaria.
– Mas porque haveria a Miranda de estar em perigo?
– Não sabe? Já devia saber. – Acrescentou: – Encontraram o corpo.
Acabei de saber...
– Que corpo?
– Um corpo num poço.
 
 
Capítulo 25
 
 
 
 
 

–L indo – disse Miranda, olhando à sua volta.


Kilterbury Ring era uma referência da beleza local embora as suas
ruínas não fossem particularmente famosas. Haviam sido desmanteladas há
centenas de anos. E, no entanto, aqui e ali, ainda havia uma pedra
megalítica alta, de pé, revelando um longo passado de culto ritual. Miranda
fez perguntas.
– Porque tinham aqui estas pedras todas?
– Para rituais. Rituais de culto. Rituais de sacrifício. A Miranda entende o
sacrifício, não entende?
– Acho que sim.
– Tem de ser, sabe. É importante.
– Quer dizer, não é uma espécie de castigo? É outra coisa?
– Sim, é outra coisa. Uma pessoa morre para que outras possam viver.
Morre-se para que a beleza viva. Para que seja criada. Isso é que é
importante.
– Pensei que talvez...
– Sim, Miranda?
– Pensei que talvez se morresse porque o que se fez matou outra pessoa.
– O que lhe pôs essa ideia na cabeça?
– Estava a pensar na Joyce. Se eu não lhe tivesse contado uma coisa, ela
não teria morrido, pois não?
– Talvez não.
– Tenho estado preocupada desde que a Joyce morreu. Eu não precisava
de lhe ter contado, pois não? Eu contei-lhe porque queria ter alguma coisa
que valesse a pena para lhe contar. Ela tinha ido à Índia e estava sempre a
falar disso, sobre os tigres e os elefantes e os ornamentos e decorações
douradas deles. E acho também que, de repente, eu quis que mais alguém
soubesse, porque eu não me tinha lembrado disso antes.
Acrescentou:
– Isso, isso também foi um sacrifício?
– De certo modo.
Miranda permaneceu num estado contemplativo, e depois disse:
– Não são já horas?
– O sol ainda não está bem no sítio certo. Mais cinco minutos, talvez, e
cairá diretamente na pedra.
Sentaram-se mais uma vez em silêncio, ao lado do carro.
– Agora, acho eu – disse o companheiro de Miranda, olhando o céu no
sítio onde o sol mergulhava em direção ao horizonte. – Agora é um
momento maravilhoso. Não há ninguém aqui. Ninguém sobe nesta altura do
dia e vem até ao topo de Kilterbury Down para ver o Kilterbury Ring.
Demasiado frio em novembro e já não há amoras. Primeiro mostro-lhe o
machado de lâmina dupla. O machado de lâmina dupla na pedra. Esculpido
ali quando eles vieram de Micenas e de Creta há centenas de anos. É
maravilhoso, não é, Miranda?
– Sim, é muito maravilhoso – disse Miranda. – Mostre-me.
Caminharam até à pedra mais alta. Ao lado dela estava uma outra caída e
mais um pouco abaixo no declive estava uma ligeiramente inclinada, como
se curvada com o cansaço dos anos.
– Está feliz, Miranda?
– Sim, estou muito feliz.
– Lá está o símbolo, aqui.
– É mesmo o machado de lâmina dupla?
– Sim, está gasto pelo tempo mas é aquilo. É o símbolo. Ponha lá a sua
mão. E agora, agora vamos fazer um brinde ao passado e ao futuro, e à
beleza.
– Oh, que bonito – disse Miranda.
Um cálice dourado foi posto na mão dela, e de um frasco o seu
companheiro verteu um líquido dourado para dentro dele.
– Sabe a fruta, a pêssego. Beba, Miranda, e será ainda mais feliz.
Miranda pegou no cálice dourado. Cheirou-o.
– Sim. Sim, cheira a pêssego. Oh, veja, está ali o sol, mesmo vermelho-
dourado, como se estivesse pousado na ponta do mundo.
Ele virou-a para lá.
– Segure o cálice e beba.
Ela virou-se de forma obediente. Uma mão estava ainda na pedra
megalítica e no seu símbolo semierguido. O seu companheiro estava agora
atrás dela. De debaixo da pedra inclinada na encosta, saíram duas figuras,
dobradas. Os que estavam no topo estavam de costas para elas, e nem
sequer repararam nelas. Correram pela encosta acima, depressa mas
silenciosamente.
– Beba pela beleza, Miranda.
– Bebe o tanas! – disse uma voz atrás deles.
Um casaco de veludo rosa passou disparado por cima, uma faca foi
retirada da mão que subia lentamente. Nicholas Ransom agarrou Miranda,
segurando-a com força e arrastando-a para longe dos outros dois que
lutavam.
– Sua pequena idiota – disse Nicholas Ransom. – Vir aqui com um
maldito assassino. Devias saber o que andas a fazer.
– Eu sabia, de certa forma – disse Miranda. – Eu ia ser um sacrifício,
acho eu, porque foi tudo culpa minha. Foi por minha causa que a Joyce foi
morta. Por isso é que eu devia ser sacrificada, não era? Seria uma espécie
de morte ritual.
– Não comeces a dizer asneiras sobre mortes rituais. Encontraram a outra
rapariga. Sabes, a au pair que tinha desaparecido há tanto tempo. Um par
de anos ou algo assim. Todos pensavam que ela tinha fugido porque
falsificara um testamento. Ela não tinha fugido. Encontraram o corpo dela
no poço.
– Oh! – Miranda soltou um grito de angústia repentino. – Não no poço
dos desejos? Não no poço dos desejos que eu tanto queria encontrar? Oh,
não quero que ela esteja no poço dos desejos. Quem, quem a pôs lá?
– A mesma pessoa que te trouxe aqui.
 
 
Capítulo 26
 
 
 
 
 

M ais uma vez quatro homens estavam sentados a olhar para Poirot.
Timothy Raglan, o comissário Spence e o chefe de polícia tinham o ar
de um gato que espera que um pires de leite se materialize a qualquer
momento. O quarto homem ainda tinha a expressão de quem ainda não
acreditava.
– Bem, M. Poirot – disse o chefe da polícia, tomando as rédeas do
acontecimento e deixando o homem da procuradoria-geral a segurar uma
pasta. – Estamos todos aqui...
Poirot fez um gesto com a mão. O inspetor Raglan saiu da sala e
regressou indicando o caminho a uma mulher de trinta e tal anos, uma
rapariga e dois rapazes adolescentes.
Apresentou-os ao chefe de polícia.
– Mrs. Butler, Miss Miranda Butler, Mr. Nicholas Ransom e Mr.
Desmond Holland.
Poirot levantou-se e pegou na mão de Miranda.
– Sente-se aqui ao lado da sua mãe, Miranda... Mr. Richmond, que é
como se chama o chefe da polícia, quer fazer-lhe algumas perguntas. Quer
que responda às perguntas. Diz respeito a uma coisa que viu, há mais de um
ano, quase dois. Mencionou isto a uma pessoa, e se compreendo, a uma só
pessoa. Está correto?
– Disse à Joyce.
– E o que disse à Joyce exatamente?
– Que tinha visto um assassinato.
– Disse a mais alguém?
– Não. Mas creio que o Leopold adivinhou. Ele ouve, sabe. Atrás das
portas. Esse tipo de coisa. Gosta de saber os segredos das pessoas.
– Ouviu dizer que a Joyce Reynolds, na tarde antes da festa das bruxas,
contou que ela própria havia visto um assassinato a ser cometido. Isso era
verdade?
– Não. Ela estava só a repetir o que eu lhe dissera, mas a fingir que lhe
acontecera a ela.
– Conte-nos agora o que foi que viu.
– A princípio não sabia que tinha sido um assassinato. Pensei que tinha
sido um acidente. Pensei que ela caíra de algum sítio.
– Onde foi isto?
– No jardim da pedreira, no vale onde era a fonte. Eu estava nos ramos de
uma árvore. Tinha estado a olhar para um esquilo e uma pessoa tem de estar
muito quieta, senão eles fogem. Os esquilos são muito rápidos.
– Diga-nos o que viu.
– Um homem e uma mulher pegaram nela e estavam a levá-la pelo
caminho acima. Pensei que a levassem ao hospital ou para a Quarry House,
depois a mulher parou de repente e disse «Está alguém a observar-nos», e
ficou a olhar para a minha árvore. Por alguma razão senti-me assustada.
Fiquei muito quieta. O homem disse «disparate», e continuaram. Vi que
havia sangue num cachecol e havia uma faca com sangue, e pensei que
talvez alguém se tivesse tentado matar, e continuei muito quieta.
– Porque estava assustada?
– Sim, mas não sei porquê.
– Não contou à sua mãe?
– Não. Pensei que talvez eu não devesse estar ali a ver. E depois no dia
seguinte ninguém disse nada sobre um acidente, e esqueci-me. Nunca mais
pensei nisso até...
Ela parou de repente. O chefe da polícia abriu a boca, e depois fechou-a.
Ele olhou para Poirot e fez um gesto muito discreto.
– Sim, Miranda – disse Poirot –, até o quê?
– Foi como se estivesse a acontecer tudo outra vez. Desta vez era um
pica-pau verde, e eu estava muito quieta atrás de uns arbustos. E esses dois
estavam lá sentados a falar, sobre uma ilha, uma ilha grega. Ela disse algo
como: «Está tudo assinado. É nosso, podemos ir buscá-lo quando
quisermos. Mas é melhor irmos devagar, não apressar as coisas.» Depois o
pica-pau voou, e eu mexi-me. Ela disse: «Está calado, está alguém a
observar-nos.» Foi da mesma maneira que ela o disse antes, e tinha o
mesmo olhar, e eu fiquei assustada outra vez, e lembrei-me. E desta vez eu
soube. Soube que tinha sido assassinato que eu vira e que tinha havido um
cadáver, e que eles o estavam a transportar para o esconder algures. Sabe,
eu já não era uma criança. Eu sabia, das coisas e o que elas querem dizer, o
sangue e a faca, e o corpo todo mole...
– Quando foi isso? – perguntou o chefe da polícia. – Há quanto tempo?
Miranda pensou por um momento.
– Em março passado, mesmo depois da Páscoa.
– Pode dizer com toda a certeza quem eram essas pessoas, Miranda?
– É claro que posso. – Miranda tinha um ar desnorteado.
– Viu os rostos deles?
– Claro.
– Quem eram?
– Mrs. Drake e Michael...
Não era uma denúncia dramática. A voz dela era calma, e continha algo
como espanto, mas também convicção.
O chefe da polícia disse:
– Não contou a ninguém. Porquê?
– Pensei, pensei que poderia ter sido um sacrifício.
– Quem lhe disse isso?
– Disse-mo o Michael, ele disse que os sacrifícios eram necessários.
Poirot disse de uma forma suave:
– Amava o Michael?
– Oh, sim – disse Miranda. – Amava-o muito.
 
 
Capítulo 27
 
 
 
 
 

–A gora
tudo.
que o tenho aqui por fim – disse Mrs. Oliver – quero saber de

Olhou para Poirot com determinação e perguntou de forma severa:


– Porque não veio antes?
– As minhas desculpas, madame. Tenho estado muito ocupado a ajudar a
polícia com as suas investigações.
– Quem faz isso são os criminosos. Por que diabos se lembrou de que a
Rowena Drake estivesse envolvida num assassinato? Não poderia ter sido
tudo planeado por mais ninguém?
– Foi simples assim que obtive a pista vital.
– A que chama a pista vital?
– Água. Eu queria alguém que tivesse estado na festa e que estivesse
molhada, e que não devesse estar molhada. Quem quer que fosse que matou
a Joyce Reynolds teria necessariamente de se ter molhado. Se uma pessoa
segura uma criança cheia de vigor com a cabeça dela dentro de um balde
cheio de água, haverá luta e salpicos e ficará molhada. Então algo tem de
acontecer que forneça uma explicação inocente de como ficou molhada.
Quando toda a gente se acotovelou na sala de jantar para ver o Snapdragon,
Mrs. Drake levou a Joyce com ela para a biblioteca. Se a anfitriã pede que
vá com ela, uma pessoa vai, naturalmente. E a Joyce, com toda a certeza,
não suspeitava de Mrs. Drake. A Miranda apenas lhe dissera que vira uma
vez um assassinato a ser cometido. E então a Joyce foi morta e a sua
assassina ficou bastante encharcada de água. Tinha de haver uma razão para
isso e ela tratou de criar uma razão. Tinha de arranjar uma testemunha de
como se tinha molhado. Esperou no patamar com um enorme vaso de flores
cheio de água. A seu devido tempo Miss Whittaker saiu da sala do
Snapdragon, estava calor lá dentro. Mrs. Drake fingiu ficar nervosamente
sobressaltada, e deixou cair o vaso, tendo o cuidado de se encharcar a si
própria ao deixar cair o vaso para o átrio lá em baixo. Desceu as escadas a
correr, e ela e Miss Whittaker apanharam os cacos e as flores enquanto Mrs.
Drake se queixava da perda do seu bonito vaso. Ela conseguiu transmitir a
Miss Whittaker a impressão de que vira algo ou alguém sair da sala onde
um assassinato fora cometido. Miss Whittaker apreendeu a mensagem
como sendo válida, mas quando a mencionou a Miss Emlyn, Miss Emlyn
apercebeu-se de algo sobre ela que era realmente interessante. E então
exortou Miss Whittaker a contar-me a história.
«E então – disse Poirot, torcendo o seu bigode – também eu soube quem
era o assassino da Joyce.»
– E, afinal, a Joyce nunca vira nenhum assassinato a ser cometido!
– Mrs. Drake não sabia isso. Mas sempre suspeitara que alguém estivera
lá na floresta da pedreira quando ela e o Michael Garfield mataram a Olga
Seminoff, e que poderia tê-lo testemunhado.
– Quando soube o senhor, que tinha sido a Miranda e não a Joyce?
– Assim que o senso comum me forçou a aceitar o veredicto universal de
que a Joyce era uma mentirosa. Então a Miranda foi indicada claramente.
Ela ia à floresta da pedreira com frequência, ver pássaros e esquilos. A
Joyce era, como me disse a Miranda, a sua melhor amiga. Ela disse:
«Contamos tudo uma à outra.» A Miranda não estava na festa, por isso a
Joyce, a mentirosa compulsiva, podia usar a história que a sua amiga lhe
contara de ter visto um assassinato a ser cometido, provavelmente para a
impressionar a si, madame, a conhecida escritora de romances policiais.
– Isso, culpe-me de tudo.
– Não, não.
– A Rowena Drake – meditou Mrs. Oliver. – Ainda não acredito nisto, da
parte dela.
– Ela tinha todas as qualidades necessárias. Sempre me interroguei, que
tipo de mulher seria Lady Macbeth. Como seria ela se a conhecêssemos na
vida real? Eu creio que a conheci, de facto.
– E o Michael Garfield? Parecem formar um par tão improvável.
– Interessante, Lady Macbeth e Narciso, uma combinação pouco comum.
– Lady Macbeth – murmurou Mrs. Oliver, pensativa.
– Ela era uma mulher bonita, eficiente e competente, uma administradora
nata, uma atriz inesperadamente boa. Deveria tê-la ouvido a lamentar-se da
morte do pequeno Leopold, e a chorar com grandes soluços num lenço
seco.
– Nojenta.
– Lembra-se que lhe perguntei quem eram, na sua opinião, pessoas
simpáticas ou não.
– O Michael Garfield estava apaixonado por ela?
– Duvido que o Michael Garfield tenha alguma vez amado alguém que
não ele próprio. Queria dinheiro, muito dinheiro. Talvez pensasse, a
princípio, poder influenciar Mrs. Llewellyn-Smythe a adorá-lo ao ponto de
fazer um testamento a seu favor, mas Mrs. Llewellyn-Smythe não era esse
tipo de mulher.
– E a falsificação? Ainda não entendo isso. Para que foi isso tudo?
– Ao princípio foi confuso. Demasiada falsificação, poder-se-ia dizer.
Mas se uma pessoa pensasse nisso, o propósito era claro. Tinha apenas de
pensar no que realmente aconteceu.
– A fortuna de Mrs. Llewellyn-Smythe ia toda para a Rowena Drake. O
codicilo que foi apresentado era tão obviamente falsificado que qualquer
advogado poderia percebê-lo. Seria contestado, e as provas dadas por
peritos fariam com que fosse rejeitado, e o testamento original vingaria.
Como o marido da Rowena Drake morrera recentemente, ela herdaria tudo.
– Mas e o codicilo que foi testemunhado pela mulher da limpeza?
– A minha conclusão é a de que Mrs. Llewellyn-Smythe descobriu que o
Michael Garfield e a Rowena Drake tinham um caso, provavelmente antes
da morte do marido desta. Na sua fúria, Mrs. Llewellyn-Smythe fez um
codicilo ao seu testamento em que deixava tudo à sua au pair. A rapariga
provavelmente contou isto ao Michael, na esperança de casar com ele.
– Pensei que fosse o jovem Ferrier?
– Isso foi uma história plausível que me foi contada pelo Michael. Não
houve confirmação disso.
– Então se ele sabia que havia um codicilo verdadeiro porque não casou
com a Olga e se apoderou do dinheiro dessa forma?
– Porque duvidou de que ela conseguiria realmente ficar com o dinheiro.
Há uma coisa chamada influência indevida. Mrs. Llewellyn-Smythe era
uma mulher idosa e também doente. Todos os seus testamentos prévios
haviam sido a favor dos seus parentes e amigos, testamentos sensatos que
são aprovados pelos tribunais. Essa rapariga de proveniência estrangeira só
a conhecia há um ano, e não tinha qualquer direito sobre ela. O codicilo
ainda que genuíno poderia ter sido rejeitado. Além disso, duvido que a
Olga conseguisse de facto comprar uma ilha grega, ou que estivesse de
facto disposta a fazê-lo. Não tinha amigos influentes, ou contactos no
mundo dos negócios. Ela foi atraída pelo Michael, mas via-o como um bom
partido para casar, e que lhe daria a possibilidade de ficar em Inglaterra, que
era o que queria fazer.
– E a Rowena Drake?
– Estava apaixonada. O seu marido fora um aleijado inválido durante
muitos anos. Ela era de meia-idade mas era uma mulher fogosa, e um jovem
de grande beleza entrou na sua órbita. As mulheres apaixonavam-se por ele
facilmente, mas ele queria, não a beleza das mulheres, mas sim a aplicação
do seu próprio ímpeto criativo para criar a beleza. Para isso queria dinheiro,
muito dinheiro. Quanto ao amor, ele só se amava a si próprio. Ele era
Narciso. Há uma velha canção francesa que ouvi há muitos anos...
Cantarolou de forma suave.
 
«Regarde, Narcisse
Regarde dans l’eau
Regarde, Narcisse, que tu es beau
Il n’y a au monde
Que la Beauté
Et la Jeunesse,
Hélas! Et la Jeunesse...
Regarde, Narcisse...
Regarde dans l’eau...»
 
– Não acredito, simplesmente não acredito que alguém cometa um
assassinato só para fazer um jardim numa ilha grega – disse Mrs. Oliver
com um tom incrédulo.
– Não acredita? Não consegue visualizar como ele o fizera na sua mente?
Rochedo nu, talvez, mas formado de modo a conter possibilidades. Terra,
carregamentos de terra fértil para vestir os ossos nus das rochas, e depois
plantas, sementes, arbustos, árvores. Talvez ele tivesse lido no jornal sobre
um milionário armador que criou um jardim numa ilha para a sua amada. E
então surgiu-lhe a ideia, ele faria um jardim, não para uma mulher, mas para
si próprio.
– Ainda o acho completamente doido.
– Sim. Acontece. Duvido que achasse o seu motivo sórdido. Pensava nele
apenas como necessário para criar mais beleza. Enlouquecera através da
criação. A beleza da floresta da pedreira, a beleza de outros jardins que
projetara e fizera, e agora imaginara ainda mais, uma ilha inteira de beleza.
E lá estava a Rowena Drake, apaixonada por ele. Ela não significou mais
para ele do que a fonte do dinheiro para criar beleza. Sim, ele enlouquecera,
talvez. Aqueles que os deuses destroem são primeiro enlouquecidos.
– Ele queria a sua ilha assim tanto? Mesmo com a Rowena Drake
amarrada ao seu pescoço? A mandar nele o tempo todo?
– Os acidentes acontecem. Penso que a seu tempo, aconteceria um a Mrs.
Drake.
– Mais um assassinato?
– Sim. Começou de forma simples. A Olga tinha de ser afastada porque
sabia do codicilo, e tinha também de ser o bode expiatório, marcada como
falsificadora. Mrs. Llewellyn-Smythe escondera o documento original, por
isso penso que o jovem Ferrier foi pago para produzir um documento
falsificado semelhante. Tão obviamente falsificado que levantaria de
imediato as suspeitas. Isso selou a sentença de morte dele. Muito cedo
decidi que o Lesley Ferrier não tivera qualquer arranjo ou caso amoroso
com a Olga. Isso era uma sugestão que me fora feita pelo Michael Garfield,
mas creio que foi o Michael que pagou ao Lesley. Foi o Michael que
levantou um cerco aos sentimentos da au pair, recomendando-lhe que
ficasse calada e não contasse à sua patroa, falando da possibilidade de
casamento no futuro, mas ao mesmo tempo marcando-a de forma fria como
sendo a vítima de quem ele e a Rowena Drake precisariam, para que o
dinheiro chegasse a eles. Não era necessário que a Olga Seminoff fosse
acusada de falsificação, ou levada a tribunal. Apenas que fosse suspeita. A
falsificação parecia beneficiá-la. Poderia ter sido feita por ela muito
facilmente, havia provas de que ela copiara efetivamente a letra da sua
patroa e se ela desaparecesse de repente, seria presumido que ela era não só
uma falsificadora, mas que também tivesse auxiliado a morte repentina da
sua patroa. Então, numa ocasião propícia, a Olga Seminoff morreu. O
Lesley Ferrier foi morto no que se diz ser um esfaqueamento por um bando,
ou um esfaqueamento por uma mulher ciumenta. Mas a faca que foi
encontrada no poço corresponde às feridas que ele sofreu. Sabia que o
corpo da Olga tinha de estar escondido algures nestas redondezas, mas não
fazia ideia de onde até que ouvi a Miranda perguntar sobre um poço dos
desejos um dia, a pedir ao Michael Garfield que a levasse lá. E ele recusava.
Pouco depois, quando falava com Mrs. Goodbody, eu disse que me
interrogava para onde teria ido a rapariga, e ela disse «Dlim-dlão, no poço a
encontrarão» e então tive a certeza de que o corpo da rapariga estava no
poço dos desejos. Descobri que era na floresta, na floresta da pedreira, num
declive não muito longe da cabana do Michael Garfield e pensei que a
Miranda poderia ter visto o assassinato em si ou quando se desfizeram do
corpo. Mrs. Drake e o Michael temiam que alguém tivesse sido testemunha,
mas não faziam ideia de quem fora, e como nada aconteceu sentiram-se
seguros. Fizeram os seus planos, não tinham pressa, mas iniciaram as
coisas. Ela falou de comprar terra no estrangeiro, passou às pessoas a ideia
de que queria sair de Woodleigh Common. Demasiadas lembranças tristes,
referindo-se sempre ao seu desgosto pela morte do marido. Tudo corria bem
quando veio o choque da Noite das Bruxas e da afirmação repentina da
Joyce de que testemunhara um assassinato. Então a Rowena soube, ou
julgou que sabia, quem estivera na floresta naquele dia. Por isso agiu
rapidamente. Mas mais viria. O jovem Leopold pediu dinheiro, queria
comprar coisas, disse ele. O que ele adivinhara ou sabia é incerto, mas ele
era irmão da Joyce, e eles provavelmente pensaram que ele sabia muito
mais do que sabia de facto. E então, também ele morreu.
– Suspeitou dela por causa da pista da água – disse Mrs. Oliver. – Como
suspeitou do Michael Garfield?
– Ele encaixava – disse Poirot de forma simples. – E, então, da última vez
que falei com o Michael Garfield, tive a certeza. Ele disse-me, rindo-se:
«Vade retro, Satanás. Vá juntar-se aos seus amigos polícias.» E soube logo,
com certeza. Era o inverso. Disse para mim: «estou a deixar-te a ti para
trás, Satanás.» Um Satanás tão jovem e belo como Lúcifer pode parecer aos
mortais...
Havia outra mulher na sala, que até agora não falara, mas que se mexeu
na cadeira.
– Lúcifer – disse ela. – Sim, entendo agora. Sempre o foi.
– Ele era muito bonito – disse Poirot – e amava a beleza. A beleza que
fazia com a sua mente, imaginação e mãos. Sacrificaria qualquer coisa por
ela. Creio que à sua maneira amava a pequena Miranda, mas estava disposta
a sacrificá-la, para se salvar. Planeou a morte dela de forma muito
cuidadosa. Tornou-a num ritual e pode dizer-se que a doutrinou com a ideia.
Ela dever-lhe-ia dizer se fosse deixar Woodleigh Common, deu-lhe
instruções para que se encontrasse com ele na pousada onde almoçou com
Mrs. Oliver. Ela seria encontrada em Kilterbury Ring, lá ao lado do símbolo
do machado de lâmina dupla, com um cálice dourado a seu lado, um ritual
de sacrifício.
– Louco – disse Judith Butler –, ele devia estar louco.
– Madame, a sua filha está em segurança. Mas há uma coisa que eu
gostaria muito de saber.
– Acho que o senhor merece saber tudo o que eu lhe possa dizer, M.
Poirot.
– Ela é sua filha... era também filha do Michael Garfield?
Judith ficou em silêncio por uns momentos, e depois disse:
– Sim.
– Mas ela não sabe disso?
– Não. Não faz ideia. Encontrá-lo aqui foi pura coincidência. Conheci-o
quando era nova. Apaixonei-me loucamente e depois, depois tive medo.
– Medo?
– Sim. Não sei porquê. Não de algo que ele fizesse, apenas medo da
natureza dele. A gentileza dele, mas por detrás disso, frieza e crueldade.
Tive medo até da paixão dele pela beleza e pela criação no seu trabalho.
Não lhe disse que ia ter uma filha. Deixei-o, fui-me embora e o bebé
nasceu. Inventei a história de um marido piloto que tivera um acidente.
Mudei-me de sítio para sítio, irrequieta. Vim para Woodleigh Common mais
ou menos por acaso. Tinha contactos em Medchester, onde poderia arranjar
trabalhos de secretária. E então um dia o Michael Garfield veio para cá
trabalhar na floresta da pedreira. Não me importei, acho eu. Nem ele. Isso
terminara há muito tempo, mas mais tarde, ainda que não me apercebesse
da frequência com que a Miranda ia para a floresta, preocupei-me...
– Sim – disse Poirot –, havia uma ligação entre eles. Uma afinidade
natural. Eu vi a semelhança entre eles, só que o Michael Garfield, o
seguidor de Satanás, o belo, era maléfico, e a sua filha tem inocência e
sabedoria, e não há Mal nela.
Ele foi até à sua secretária e trouxe um envelope. Dele retirou um
delicado desenho a lápis.
– A sua filha – disse.
Judith olhou para ele. Estava assinado «Michael Garfield».
– Ele estava a desenhá-la junto ao riacho – disse Poirot –, na floresta da
pedreira. Ele desenhava-o, disse, para que não se esquecesse. Tinha medo
de esquecer. No entanto, isso não o impediria de a matar.
Então apontou para uma palavra escrita a lápis no canto superior
esquerdo.
– Consegue ler isso?
Ela soletrou lentamente.
– Iphigenia.
– Sim – disse Poirot – Iphigenia. Agamémnon sacrificou a sua filha, para
que houvesse vento para levar os seus navios para Troia. O Michael
sacrificaria a sua filha para que pudesse ter um novo jardim do Éden.
– Ele sabia o que estava a fazer – disse Judith. – Será que alguma vez se
arrependeria?
Poirot não respondeu. Formava-se na sua mente o retrato de um jovem de
beleza única, deitado junto da pedra megalítica marcada com um machado
de lâmina dupla, ainda segurando nos seus dedos mortos o cálice dourado
que agarrara e esvaziara quando viera repentinamente o castigo, para salvar
a sua vítima e entregá-lo à justiça.
Fora assim que morrera Michael Garfield, uma morte apropriada, pensou
Poirot, mas, infelizmente, não haveria nenhum jardim a florescer numa ilha
nos mares gregos...
E, em vez disso, haveria Miranda. Viva, jovem e bela. Levantou a mão de
Judith e beijou-a.
– Adeus, madame, e lembre-me à sua filha.
– Ela dever-se-ia lembrar de si sempre, e do que lhe deve.
– É melhor não, algumas memórias é melhor enterrar. Continuou em
direção a Mrs. Oliver.
– Boa noite, chére madame. Lady Macbeth e Narciso. Foi deveras
interessante. Devo agradecer-lhe tê-lo trazido à minha atenção...
– É isso mesmo – disse Mrs. Oliver numa voz exasperada –, culpe-me de
tudo como sempre!

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