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ARQUIVISTA

Teste… Teste… Teste… 1, 2, 3… Certo.

Meu nome é Jonathan Sims. Eu trabalho para o Instituto Magnus, em Londres, uma
organização dedicada à pesquisa acadêmica sobre o esotérico e o paranormal. O chefe
do Instituto, Sr. Elias Bouchard, me contratou para substituir a Arquivista Chefe anterior,
uma tal de Gertrude Robinson, que faleceu recentemente.

Tenho trabalhado como pesquisador no Instituto há quatro anos e conheço a maior


parte dos nossos contratos e projetos mais significativos. A maioria chega a becos sem
saída, previsivelmente; incidentes do sobrenatural como esses — e eu sempre enfatizo
que há pouquíssimos casos genuínos — tendem a resistir a conclusões fáceis. Quando
uma investigação vai o mais longe possível, ela é transferida para os Arquivos. O
Instituto foi fundado em 1818, o que significa que o Arquivo contém quase 200 anos de
registros de casos neste momento. Combine isso com o fato de que a maior parte do
Instituto prefere a Torre de Marfim da academia ao complicado trabalho de lidar com
depoimentos ou experiências recentes e você tem a receita para uma biblioteca
impecavelmente organizada e um arquivo absolutamente bagunçado. Isso não é
necessariamente um problema — os sistemas modernos de arquivamento e indexação
são uma verdadeira maravilha, e tudo o que eles precisam é de um arquivista decente
para mantê-los em ordem. Gertrude Robinson aparentemente não era essa arquivista.

De onde estou sentado, posso ver milhares de arquivos. Muitos se espalham livremente
pelo local, outros amassados em caixas não marcadas. Alguns têm datas ou rótulos
úteis, como 86-91 G/H. Não apenas isso, mas a maioria parece ter sido escrita à mão
ou produzida em uma máquina de escrever, sem acompanhamento de versões digitais
ou de áudio de qualquer tipo. Na verdade, acredito que o primeiro computador a entrar
nesta sala é o laptop que eu trouxe hoje. Mais importante, parece que poucas das
investigações reais foram armazenadas nos Arquivos, então a única coisa na maioria
dos registros são os próprios depoimentos.

Vou levar muito, muito tempo para organizar essa bagunça. Consegui arranjar os
serviços de dois pesquisadores para me auxiliar — bem, tecnicamente são três, mas
não conto o Martin já que é improvável que ele contribua com alguma coisa além de
atrasos. Pretendo digitalizar o máximo de registros possíveis e gravar versões em
áudio, embora alguns tenham que estar em um gravador comum pois minhas tentativas
de registrá-los no meu laptop acabaram com… distorções de áudio significativas. Junto
com isso, Tim, Sasha e, sim, suponho que Martin, farão algumas investigações
suplementares para ver quais detalhes podem estar faltando no que temos.
Tentarei apresentá-las da maneira mais sucinta que puder no final de cada depoimento.
Não posso, infelizmente, prometer alguma ordem no que diz respeito às datas ou temas
dos depoimentos que serão registrados, e posso apenas me desculpar a qualquer
pesquisador futuro que tente usar esses arquivos para suas próprias investigações.

Provavelmente já gastei tempo demais me desculpando pelo estado deste local, e


suponho que precisamos começar por algum lugar.

Depoimento de Nathan Watts, a respeito de um encontro no Antigo Mercado de Peixe


em Edimburgo. Depoimento original prestado em 22 de abril de 2012. Gravação de
áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Tudo aconteceu alguns anos atrás, então peço desculpas se alguns dos detalhes
estiverem um pouco errados. Quer dizer, eu sinto que as lembranças são claras, mas
às vezes as coisas são tão estranhas que você começa a duvidar de si mesmo. Mesmo
assim, acho que “estranho” é o trabalho de vocês, né?

Estou estudando na Universidade de Edimburgo. Bioquímica, especificamente, e eu


estava no segundo ano na época em que isso aconteceu. Eu não estava em nenhum
tipo de acomodação universitária naquele tempo e alugava um apartamento estudantil
em Southside com alguns outros segundanistas. Pra ser honesto, eu não saía muito
com eles. Tirei um ano de folga antes de me matricular e meu aniversário é na parte
errada de setembro, então eu era quase dois anos mais velho do que a maioria dos
meus colegas quando comecei o curso. Entenda que eu me dava bem com eles, mas
acabava saindo com alguns dos alunos mais velhos.

É por isso que eu estava na festa pra começo de conversa. Michael MacAulay, um
grande amigo meu, tinha acabado de ser aceito para fazer um mestrado em
Geociências, então decidimos que precisávamos comemorar. Bem, talvez ‘festa’ não
seja bem a palavra certa, nós meio que invadimos o bar Albanach na Royal Mile e
bebemos por tempo suficiente para que eventualmente tivéssemos a parte de trás do
lugar só para nós. Enfim, eu não sei o quanto você sabe sobre os bares de Edimburgo,
mas o Albanach tem uma grande variedade de excelentes uísques, e eu posso ter
exagerado um pouco. Tenho vagas lembranças de Mike sugerindo que eu diminuísse o
ritmo, ao que eu respondia com xingamentos sem rodeios por ele não celebrar
adequadamente suas próprias conquistas… Ou algo assim.

Resumindo, fiquei muito mal por volta da meia-noite e decidi voltar a pé para casa. Não
era longe do meu apartamento, talvez meia hora se eu estivesse sóbrio, e lembro que a
noite estava gelada o suficiente para que eu tivesse esperanças de que o frio me
animasse um pouco. Rumei para a Cowgate, e a maneira mais rápida de chegar lá de
onde eu estava é pelo Antigo Mercado de Peixe. Eu tenho certeza de que você não
precisa que eu te diga que existem algumas colinas íngremes em Edimburgo, mas o
Antigo Mercado de Peixe é excepcional, mesmo para esses padrões. Às vezes pode
atingir um ângulo de trinta ou quarenta graus, o que é bastante difícil de percorrer
quando você não tem tanto espírito escocês dentro de você. E como mencionei, eu não
tinha muito, então provavelmente não foi tão surpreendente quando eu levei um tombo
bem feio no meio da rua. Em retrospecto, a queda não foi tão ruim quanto poderia ter
sido, mas naquela hora realmente me desestabilizou e deixou alguns hematomas feios.
Me levantei do melhor jeito que pude, verifiquei se não havia me machucado seriamente
— nenhum osso quebrado ou algo do tipo —, e decidi bolar um cigarro para me
acalmar. Foi quando eu ouvi.

“Você tem um cigarro?”

Me sobressaltei com as palavras, já que acreditava estar sozinho. Tentando me


recompor rapidamente e olhando em volta, notei um pequeno beco do outro lado da
rua. Era muito estreito e completamente escuro, com uma escada curta que o conduzia.
Eu podia ver uma luminária um pouco acima na parede em sua entrada, mas ela não
estava funcionando ou não estava ligada, o que significa que depois de alguns passos o
beco estava absorto em escuridão total. Parada ali, a alguns degraus da rua, estava
uma figura. Era difícil dizer muito sobre ela visto que estava nas sombras, mas se eu
tivesse que adivinhar, diria que a voz soava masculina. Ele parecia balançar
suavemente enquanto eu observava, e presumi que, assim como eu, provavelmente
estava um pouco bêbado.

Acendi meu próprio cigarro e o estendi em direção a ele, embora não tenha me
aproximado, e perguntei se ele aceitava um manualmente feito. A figura não se moveu,
apesar de continuar com aquele balanço suave. Escrevendo agora, parece tão óbvio
que algo estava errado. Se eu não estivesse tão bêbado talvez teria percebido mais
rápido, mas mesmo quando o estranho fez a pergunta novamente, “Você tem um
cigarro?” totalmente sem entonação, eu ainda não entendia por que estava tão inquieto.

Eu encarei o estranho e quando meus olhos começaram a se ajustar pude perceber


mais detalhes. Eu pude ver que seu rosto estava vazio, sem expressão, e sua pele
parecia úmida e ligeiramente funda, como se estivesse com febre alta. O balanço era
mais forte agora, parecendo vir da cintura; para os lados, para frente e para trás. A essa
altura eu havia acabado de enrolar um segundo cigarro e cuidadosamente o estendi
para ele, mas não me aproximei. Eu tinha decidido que se esse esquisitão queria um
cigarro ele teria que sair daquele beco assustador. Ele não se aproximou, não fez
nenhum movimento, exceto por aquele maldito balanço. Por alguma razão o
pensamento de um tamboril surgiu na minha cabeça, o único ponto de luz pendurado na
escuridão escondendo a coisa que te atrai.

“Você tem um cigarro?”, ele falou novamente com a mesma voz monótona e eu percebi
exatamente o que estava errado. Sua boca estava fechada, tinha estado o tempo todo.
O que quer que estivesse repetindo aquela pergunta não era a figura no beco. Eu olhei
para os seus pés e vi que eles não estavam realmente tocando o chão. A forma do
estranho estava sendo levantada, muito ligeiramente, e movida suavemente de um lado
para o outro.

Larguei o cigarro e agarrei meu celular, tentando ligar a lanterna. Não sei por que não
corri ou o que esperava ver naquele beco, mas queria olhar melhor. Assim que peguei
meu celular a figura desapareceu. Ele meio que se dobrou na cintura e desapareceu na
escuridão, como se uma corda tivesse se esticado e o puxado de volta. Acendi a
lanterna e olhei para o beco, mas não vi nada. Apenas silêncio e escuridão. Cambaleei
de volta para a Royal Mile, que ainda tinha luzes e pessoas, e chamei um táxi para me
levar para casa.

Dormi até tarde no dia seguinte. Eu havia me certificado de que não teria nenhuma
palestra ou aula já que pretendia dormir bastante após uma noite pesada de bebedeira,
e acho que dormi, embora aquele encontro bizarro continuasse passando em minha
mente. E assim, depois de tomar dois litros de água, alguns analgésicos e um café da
manhã muito calórico, me senti humano o suficiente para deixar meu apartamento e ir
investigar o local à luz do dia. O resultado não foi esclarecedor. Não havia marcas,
manchas de sangue, nada que indicasse que a figura oscilante algum dia estivera ali. A
única coisa que encontrei foi um cigarro Marlboro vermelho não fumado no chão logo
abaixo da luminária queimada.

Além disso, eu realmente não sabia o que fazer. Pesquisei o máximo que pude sobre o
lugar, mas não encontrei ninguém que houvesse tido alguma experiência semelhante à
minha, e aparentemente não existia nenhum folclore ou lenda urbana que eu pudesse
descobrir sobre o Antigo Mercado de Peixe. Os poucos amigos para quem contei sobre
o acontecido presumiram que eu tinha sido abordado por algum estranho e o álcool fez
com que tudo parecesse mais esquisito do que realmente foi. Tentei explicar que nunca
tive alucinações enquanto estava bêbado e que não tinha como aquele cara ser apenas
uma pessoa normal, mas eles sempre me lançavam um daqueles olhares, algo entre
pena e preocupação, então eu apenas calava a boca.

Eu nunca descobri mais nada sobre o caso, mas alguns dias depois vi alguns
comunicados de pessoas desaparecidas serem feitos pelo campus. Outro aluno havia
desaparecido. Seu nome era John Fellowes. Eu não conhecia o cara realmente e não
podia dizer muito sobre ele, exceto por duas coisas que me pareciam muito
importantes: ele estava naquela mesma festa e, pelo que eu me lembre, ainda estava lá
quando eu saí. A outra coisa é que, bem… Na foto em que eles usaram para o seu
comunicado de desaparecimento eu não pude deixar de notar que havia um maço de
cigarros Marlboro vermelho saindo de seu bolso.

Eu não parei de fumar, mas acho que agora pego muito mais táxis se estiver sozinho na
rua à noite.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

A investigação na época e o acompanhamento que fizemos nos últimos dias não


encontraram evidências que comprovem o relato do Sr. Watts sobre sua experiência. Eu
estava inicialmente inclinado a arquivar novamente esse depoimento na seção
'Desacreditados’ do Arquivo, uma nova categoria que criei e suspeito que abrigará a
maior parte desses registros. No entanto, Sasha fez algumas pesquisas nos relatórios
policiais da época e descobriu que entre 2005 e 2010, quando o encontro do Sr. Watts
supostamente ocorreu, houve seis desaparecimentos dentro e ao redor do Antigo
Mercado de Peixe: Jessica McEwen em novembro de 2005, Sarah Baldwin em agosto
de 2006, Daniel Rawlings em dezembro do mesmo ano, e Ashley Dobson e Megan
Shaw em maio e junho de 2008. E então, finalmente, como o Sr. Watts mencionou,
John Fellowes em março de 2010. Todos os seis desaparecimentos permanecem sem
solução. Baldwin e Shaw eram definitivamente fumantes, mas não há nenhuma
evidência sobre os outros, se é que estão conectados.

Sasha encontrou mais uma coisa, especificamente no caso de Ashley Dobson. Era uma
cópia da última fotografia tirada pelo seu celular e enviada para sua irmã Siobhan. A
legenda era “dá uma olhada nesse esquisitão bêbado lol”, mas a foto é de um beco
escuro, aparentemente vazio, com escadas que levam até ele. Parece ser o mesmo
beco que o Sr. Watts descreveu em seu depoimento, aquele que de acordo com os
mapas da área leva à Praça Tron, mas aparentemente não há ninguém na fotografia.
Contudo, Sasha tomou a liberdade de passá-la em alguns programas de edição, e
aumentar o contraste pareceu revelar o contorno de uma mão longa e fina, mais ou
menos na altura da cintura de um homem de tamanho médio.

Acho estranhamente difícil ignorar a sensação de que ela está acenando.

Fim da gravação

ARQUIVISTA
Depoimento de Joshua Gillespie, a respeito de seu tempo na posse de um caixão de
madeira aparentemente vazio. Depoimento original prestado em 22 de novembro de
1998. Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus,
Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Tudo começou quando eu estava em Amsterdã para passar as férias com alguns
amigos meus. Tudo que você está pensando agora: você está certo. Todos tínhamos
vinte e poucos anos, havíamos acabado de nos formar e decidimos passar algumas
semanas enlouquecendo no continente, então certamente você pode preencher todos
os espaços em branco. Tiveram poucos momentos em que eu diria que estava
totalmente sóbrio e menos ainda onde eu agisse assim, embora não fosse tão ruim
quanto alguns de meus amigos, que às vezes tinham dificuldade em se controlar. Pode
ter sido por isso que saí sozinho naquela manhã — não tenho ideia da data exata, mas
foi em meados de maio. Os outros estavam dormindo para se livrar de suas ressacas
para variar e eu decidi sair para o lindo sol daquela manhã na Holanda e dar um
passeio. Antes de me formar em Cardiff com os outros eu estudava Arquitetura, então
estava animado para passar algumas horas passeando sozinho e realmente apreciando
os prédios do centro de Amsterdã. Não me decepcionei – é uma cidade linda, mas
percebi tarde demais que não havia levado nenhum mapa ou guia turístico comigo e
uma ou duas horas depois estava completamente perdido.

Eu não estava particularmente preocupado já que ainda estava no meio da tarde


naquele momento e me perder nas ruas era o que eu estava tentando fazer, mas ainda
assim decidi que seria melhor fazer algum esforço para encontrar o caminho de volta
para onde meus amigos e eu estávamos hospedados na Elandsstraat. Eventualmente
acabei conseguindo, mas minha incapacidade de falar holandês fez com que eu
passasse um bom tempo andando na direção errada nos vários bondes. Quando voltei
para Elandsstraat estava começando a escurecer e eu estava me sentindo meio
estressado, então decidi dar um pulo em um dos cafés para relaxar antes de me juntar
aos meus amigos. Eu não sei dizer exatamente quanto tempo fiquei lá, mas sei que já
estava totalmente escuro quando percebi que não estava sentado sozinho à minha
mesa. Várias vezes tentei descrever o homem que agora estava sentado à minha
frente, mas é difícil. Ele era baixo, muito baixo, e parecia ter uma densidade estranha
nele. Seu cabelo era castanho, eu acho, cortado bem curto, e ele estava bem barbeado.

Seu rosto e roupas eram completamente normais, e quanto mais tento pensar em como
ele era exatamente, mais difícil é imaginá-lo claramente. Porém, para ser honesto estou
inclinado a culpar as drogas.

O homem se apresentou como John e perguntou como eu estava. Respondi da melhor


maneira que pude e ele acenou afirmativamente, dizendo que também era um inglês
numa terra estrangeira. Lembro que ele usou exatamente essa frase porque me
pareceu muito estranha na época. Ele disse que era de Liverpool — embora eu não me
lembre de ele ter qualquer tipo de sotaque — e que estava procurando por um amigo
em quem pudesse confiar para um favor.

Mas por mais chapado que eu estivesse, fiquei desconfiado assim que ele disse aquela
última parte e comecei a balançar a cabeça. John disse que não era nada muito
inconveniente, apenas cuidar de um pacote para ele até que alguns amigos o
buscassem e que pagaria bem. Achei que ele estava falando sobre contrabando e já ia
recusar novamente quando ele enfiou a mão em sua… jaqueta, eu acho? E puxou um
envelope. Dentro havia 10.000 libras. Eu sei; eu contei. Eu sabia que era uma jogada
estúpida, mas não parava de me lembrar do meu amigo Richard me contando sobre
como tinha sido fácil passar meio quilo de haxixe pela alfândega em sua primeira
viagem à Holanda, e segurando tanto dinheiro em mãos… Eu disse sim. John sorriu,
agradeceu e disse que entraria em contato. Ele saiu do café e eu imediatamente
comecei a entrar em pânico com o que havia concordado fazer. Eu queria correr atrás
dele e devolver o dinheiro mas algo me segurava, me mantinha preso na cadeira. Eu só
fiquei sentado lá por um longo tempo.

Não me lembro muito dos próximos dias, exceto de me preocupar sobre quando veria
John de novo. Tive o cuidado de não gastar nada do dinheiro que ele me deu e decidi
que o devolveria assim que ele aparecesse. Eu diria que havia cometido um erro e não
poderia pegar o dinheiro e nem cuidar de nada dele. Tentei me divertir, mas era como
se uma sombra pairasse sobre mim e eu não conseguia parar de pensar nisso. Esperei
por dias até o fim da viagem, mas ele nunca apareceu. Eu obsessivamente verifiquei
minha mala antes de embarcar no avião para casa apenas para o caso de alguém ter
colocado algo dentro dela, mas não havia nada novo lá. Eu voei de volta para a
Inglaterra com os meus amigos ainda chapados e 10.000 libras enfiadas no bolso do
meu casaco. Foi surreal.

Foi só quase um ano depois que me senti confiante o suficiente para realmente gastar
um pouco do dinheiro. Eu me mudei para trabalhar para uma pequena firma de
arquitetos em Bournemouth, na costa sul. Era um trabalho para novatos e o salário não
era ótimo mas foi a única oferta que eu recebi na área que escolhi, então  me mudei
para lá com a esperança de obter alguma experiência e uma posição melhor em um ou
dois anos. Bournemouth era uma cidade litorânea de tamanho decente embora muito
menos idílica do que eu pensava que seria, mas os aluguéis de uma casa só para mim
estavam um pouco fora da minha faixa de preço, dado meu salário inicial. Eu não
conhecia mais ninguém lá e não queria dividir meu espaço com estranhos, então decidi
usar parte do dinheiro que ganhei em Amsterdã no ano anterior. Concluí que era
improvável que eles me encontrassem nessa altura do campeonato – eu não dei a John
nenhuma das minhas informações quando ele falou comigo, nem mesmo meu nome, e
se eles não tinham sido capazes de me encontrar durante o último ano, eu duvidava
que eles fossem capazes de me rastrear aqui. Além disso, se fosse contrabando de
drogas como eu suspeitava, 10.000 libras provavelmente não era tanto dinheiro para
eles a ponto de me rastrearem até aqui. Além disso — e olhando para trás isso parece
estúpido —, eu tinha acabado de deixar minha barba crescer e pensei que seria difícil
alguém me reconhecer como o mesmo cara, então… Eu gastei um pouco do dinheiro de
John no aluguel de um belo apartamento de um quarto no Triângulo, perto do centro da
cidade, e me mudei quase imediatamente.

Cerca de uma semana depois eu estava na minha cozinha cortando algumas frutas
para o café da manhã e ouvi a campainha tocar. Atendi para ver dois entregadores de
rosto avermelhado. Eles carregavam um pacote imenso entre eles, que claramente
tiveram de manobrar para subir as escadas estreitas do prédio em que eu morava. Eles
perguntaram se eu era Joshua Gillespie e, quando eu disse que sim, eles disseram que
tinham uma entrega endereçada a mim e a empurraram para o corredor. Eles não
pareciam ser de nenhuma empresa de entrega que eu conhecia e não estavam usando
nenhum uniforme. Tentei fazer algumas perguntas, mas assim que colocaram a caixa
no chão eles se viraram e saíram. Os dois tinham mais de um metro e oitenta de altura
e eram muito imponentes, então não havia muito que eu pudesse fazer para impedi-los
de irem embora, mesmo se eu quisesse. A porta bateu atrás deles e eu fiquei sozinho
com esse pacote.

Tinha cerca de dois metros de comprimento, talvez um metro de largura e


aproximadamente a mesma profundidade. Estava lacrado com fita adesiva e no topo
estava escrito o meu nome e endereço em letras grossas e curvas, mas não havia
endereço de remetente ou carimbo de qualquer tipo. Eu estava começando a arriscar
me atrasar para o trabalho a essa altura, mas decidi que não conseguiria sair sem ver o
que havia dentro, então peguei uma faca no balcão da cozinha e cortei a fita que
mantinha a caixa fechada.

Dentro havia um caixão. Não sei o que eu esperava, mas não era isso. Minha faca caiu
no chão e eu apenas o encarei surpreso e sem palavras. Era feito de madeira amarela
clara e sem verniz, e havia uma grossa corrente de metal enrolada em volta, fechada no
topo com um pesado cadeado de ferro. A fechadura estava trancada, mas a chave
estava dentro dela. Comecei a estender a mão para pegá-la quando notei duas outras
coisas na tampa do caixão. A primeira era um pedaço de papel dobrada ao meio e
colocada sob a corrente, o qual eu peguei. A outra era a presença de duas palavras
gravadas profundamente na madeira do caixão em letras de sete centímetros de altura.
Elas diziam: NÃO ABRA.

Retirei minha mão do cadeado lentamente, sem saber o que deveria fazer. Em algum
momento devo ter me sentado porque me vi no chão, encostado na parede, olhando
para aquela coisa bizarra que inexplicavelmente apareceu na minha casa. Eu me
lembrei do pedaço de papel naquele momento e o desdobrei, mas ele simplesmente
dizia “Entregue com gratidão — J”. Por mais estranho que pareça, foi só então que fiz a
conexão com o homem que conheci em Amsterdã. Ele me disse que queria que alguém
cuidasse de um pacote por um tempo. Era esse o pacote de que ele estava falando? Eu
deveria cuidar de um cadáver? Quem viria buscá-lo? Quando?

Liguei para o trabalho para dizer que estava doente e fiquei ali sentado, observando o
caixão pelo que podem ter sido minutos ou horas. Eu só não tinha ideia do que fazer.
Eventualmente eu me preparei e me movi em direção a ele, até que meu rosto estivesse
a apenas alguns centímetros de distância da tampa. Respirei fundo, tentando descobrir
se conseguiria sentir o cheiro de alguma coisa lá dentro. Nada. Se havia um cadáver ali,
ainda não havia começado a feder. Não que eu realmente soubesse como cheirava um
cadáver. Era o início do verão a essa altura, o que significava que ele deveria ter
morrido recentemente. Se é que havia um corpo ali. Quando me levantei, minha mão
roçou a madeira do caixão e eu percebi que estava quente. Muito quente, como se
tivesse passado horas ao sol. Algo sobre ele fez minha pele arrepiar um pouco e eu
retirei minha mão rapidamente.

Resolvi fazer uma xícara de chá. Foi um alívio ficar ao lado da chaleira, já que daquele
ângulo eu não conseguia ver aquela coisa no corredor. Eu poderia simplesmente
ignorá-lo. Não me mexi mesmo depois de encher minha caneca; eu só fiquei ali parado,
bebendo meu chá, nem mesmo percebendo que ainda estava quente demais para
beber confortavelmente. Quando finalmente tive coragem de voltar para o corredor, o
caixão ainda estava lá, imóvel.

Finalmente tomei uma decisão e, segurando firmemente o cadeado, removi a chave e a


coloquei na mesa do corredor ao lado da porta. Em seguida peguei o caixão e a
corrente e comecei a puxá-los ainda mais para o meu apartamento. Era estranho tocá-
lo: a madeira ainda tinha aquele calor perturbador, mas a corrente estava tão fria
quanto você esperaria de um pedaço grosso de ferro e aparentemente não havia
recebido nenhum calor. Eu não tinha nenhum armário com espaço suficiente para
guardar aquela coisa, então no final eu apenas o arrastei para a minha sala e o
empurrei contra a parede, o mais afastado possível. Cortei a caixa de papelão em que
estava lacrado e a coloquei com o lixo do lado de fora. E assim, aparentemente
comecei a guardar um caixão em minha casa.

Na época acho que presumi que estava cheio de drogas, se é que eu pude presumir
alguma coisa sobre a situação. Por que alguém armazenaria algo de forma tão
perceptível ou com um completo estranho como eu? Essas não eram perguntas para as
quais eu poderia adivinhar uma resposta, mas decidi que era melhor pensar sobre isso
o menos possível. Pelos próximos dias evitei a minha sala de estar, uma vez que
descobri que ficar tão perto da coisa me deixava nervoso. Eu também estava alerta
para qualquer cheiro de podridão, o que poderia indicar que afinal havia algo morto
dentro do caixão. Porém, nunca senti cheiro de nada, e conforme os dias passavam,
percebi que notava meu pacote misterioso cada vez menos.

Cerca de uma semana depois que ele chegou, eu finalmente comecei a usar minha sala
de estar novamente. Eu geralmente assistia à TV e ficava de olho no caixão imóvel. A
certa altura fiquei tão pretensioso ao ponto de realmente usá-lo como mesa. Certa hora
eu estava bebendo um copo de suco de laranja e distraidamente o coloquei em cima da
tampa, sem perceber exatamente o que tinha feito. Pelo menos não até ouvir um
movimento embaixo dele. Eu congelei, ouvindo e o encarando atentamente, desejando
ter imaginado coisas. Mas então aconteceu de novo — um arranhão suave, mas
insistente, logo abaixo de onde eu havia colocado meu copo. Foi lento e deliberado e
causou ondulações suaves que se espalharam pela superfície do meu suco.
Nem preciso dizer que fiquei aterrorizado. Mais do que isso, fiquei confuso. A esse
ponto o caixão estava deitado na minha sala de estar, acorrentado e imóvel, por bem
mais de uma semana. Se houvesse algo vivendo lá quando foi entregue, parecia
improvável que ainda estivesse vivo. E por que não havia feito nenhum barulho antes,
se havia algo ali capaz de se mover? Eu gentilmente peguei meu copo e imediatamente
os arranhões pararam. Esperei algum tempo considerando minhas opções antes de
colocá-lo de volta na outra extremidade da tampa. Demorou cerca de quatro segundos
para o arranhar começar novamente, agora mais insistentemente. Quando tirei o copo
dessa vez ele não parou por outros cinco minutos. Decidi não fazer mais experimentos
e em vez disso tomei a decisão deliberada de ignorá-lo. Naquele ponto eu senti que
precisava usar a chave de ferro pesada para abri-lo e ver por mim mesmo o que havia
lá dentro ou seguir as instruções escavadas e nunca olhar lá dentro. Alguns podem me
chamar de covarde, mas eu decidi pela última opção – que interagiria com ele o menos
possível enquanto ele vivesse na minha casa. Bem, acho que viver pode ser o termo
errado.

Eu sabia que tinha tomado a decisão certa na próxima vez em que choveu e ouvi a
caixa começar a gemer. Era um sábado e eu estava passando o dia em casa fazendo
algumas leituras leves. Eu tinha poucos amigos em Bournemouth — algo sobre ter um
caixão misterioso deitado na minha sala de estar me deixava relutante em criar o tipo
de conexão que poderia fazer pessoas aparecerem por aqui, então passei a maior parte
do meu tempo livre sozinho. Eu não assistia muita televisão mesmo antes de minha
sala de estar ser ocupada em armazenar essa coisa, então agora eu me encontrava
sentado em meu quarto lendo com bastante frequência. Lembro que tinha acabado de
começar Mundo Perdido de Michael Crichton na época, e começou a chover lá fora. Foi
uma chuva forte e pesada, do tipo que cai direto sem vento para atrapalhá-la, até tudo
ficar escuro e molhado. Mal passava do meio-dia, mas lembro que o céu estava tão
nublado e sombrio que tive de me levantar para acender a luz. Foi quando eu ouvi.

Foi um som baixo e suave. Eu vi Madrugada dos Mortos, eu sei como os gemidos dos
mortos-vivos devem soar, mas não era isso. Era quase… melodioso. Soava quase
como um canto se fosse abafado por seis metros de solo compactado. A princípio,
pensei que pudesse estar vindo de um dos outros apartamentos do meu prédio, mas à
medida que continuava e os pelos dos meus braços começavam a se arrepiar,
eu soube… Eu simplesmente soube de onde vinha. Fui até a sala de estar e fiquei
parado na porta, observando enquanto a caixa de madeira lacrada continuava a gemer
o som suave e musical na chuva. Não havia nada a ser feito, eu tinha tomado a decisão
de não abri-lo e isso certamente não me fez querer reconsiderar. Então eu só voltei
para o meu quarto, coloquei uma música e aumentei o volume o suficiente para abafar
os sons.

E assim continuou por alguns meses. O que quer que estivesse no caixão o arranharia
sob qualquer coisa colocada em cima dele e gemeria sempre que chovesse, e era isso.
Suponho que isso mostra que você pode se acostumar com qualquer coisa se for
preciso, não importa o quão bizarro seja. Ocasionalmente pensei em tentar me livrar
dele ou encontrar pessoas como vocês para investigar, mas no final decidi que na
verdade tinha mais medo do responsável por me confiar o caixão do que do próprio
caixão. Então eu mantive em segredo.

A única coisa que me preocupava era dormir. Acho que me deu pesadelos. Não me
lembro dos meus sonhos, nunca me lembrei, e se eu estava tendo pesadelos não era
diferente – eu não me lembrava deles e certamente não me lembro agora. Mas eu sei
que continuava acordando em pânico, segurando minha garganta e lutando para
respirar. Eu também comecei a ter sonambulismo. Na primeira vez que aconteceu foi o
frio que me acordou. Estava no meio do inverno eu não costumo deixar o aquecedor
ligado quando estou dormindo. Levei alguns segundos para processar totalmente onde
eu estava. Eu estava parado no escuro, na minha sala de estar, sobre o caixão. O que
mais me perturbou na situação foi o fato de que quando acordei eu estava com a chave
na mão.

Obviamente, isso me preocupou. Eu até fui ao médico por causa disso, que me
encaminhou para a clínica do sono em um hospital próximo, mas os problemas nunca
aconteciam em um ambiente clínico. Decidi esconder a chave em lugares cada vez
mais difíceis de acessar, mas mesmo assim continuava acordando com ela e estava
começando a entrar em pânico. Quando acordei uma manhã e percebi que havia
colocado a chave na fechadura e estava a um passo de abri-la, eu soube que precisava
encontrar uma solução. No fim o que eu resolvi a fazer foi talvez um pouco elaborado,
mas pareceu funcionar: colocava a chave dentro de uma tigela com água e depois a
colocava no freezer, revestindo-a em um bloco sólido de gelo. Às vezes ainda me
pegava tentando alcançar a chave durante o sono, mas o frio do gelo sempre me
acordava muito antes de eu poder fazer qualquer coisa com ele. E no final isso se
tornou apenas mais uma parte da minha rotina.

Vivi assim por quase um ano e meio. É engraçado como o medo pode se tornar tão
rotineiro quanto a fome — a certo ponto, eu apenas aceitei. Minha primeira pista de que
meu tempo com o caixão estava chegando ao fim foi quando começou a chover e houve
silêncio. A princípio não percebi, já que meu hábito naquele tempo era colocar música
assim que o clima começasse a mudar, mas depois de alguns minutos percebi que não
havia nada para abafar. Desliguei minha música e fui verificar. A sala estava silenciosa.
Então veio uma batida na porta. O som era leve e discreto, mas soou como um trovão
no apartamento silencioso. Eu sabia o que veria assim que abrisse a porta, e estava
certo. John e os dois entregadores estavam ali. Não fiquei surpreso em vê-los, como eu
disse, mas eles pareciam bastante surpresos em me ver. John demorou um segundo
para me olhar de cima a baixo, quase incrédulo, enquanto eu perguntava se eles tinham
vindo buscar o caixão.

Ele disse que sim, e que esperava que não tivesse dado muito trabalho. Eu disse a ele
onde ele poderia enfiar o caixão e ele não pareceu ter uma resposta para aquilo. Ele
pareceu genuinamente impressionado, entretanto, quando tirei a chave do freezer. Eu
nem tentei descongelar — eu estava tão ansioso para tirar aquela coisa da minha vida
que simplesmente derrubei a tigela de gelo no chão e a quebrei. Observei John pegar a
chave gelada do chão e disse a eles que estava na sala de estar. Eu não os segui. Eu
não queria ver o que eles fariam com o caixão. Não queria ver se eles o abririam. E
quando a gritaria começou, eu não queria ver quem estava gritando ou por quê. Só saí
da cozinha quando os dois entregadores carregaram o caixão pela porta. Eu os
segui escada abaixo e assisti sob a chuva torrencial enquanto eles o trancavam em
uma pequena van marcada “Entregas de Breekon e Hope”. E então eles foram embora.
Não havia sinal de John.

Essa foi a última vez que ouvi sobre isso. Consegui um novo emprego e me mudei para
Londres um pouco depois, e agora eu apenas tento não pensar muito no assunto.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

É sempre bom saber que minha cidade natal não é totalmente isenta de ocorrências
estranhas e histórias sinistras. Sorvete, praias e tédio são muito bons, mas estou feliz
em saber que Bournemouth tem pelo menos algumas aparições para chamar de suas.
Dito isso, o fato é que o depoimento do Sr. Gillespie começa com o uso de drogas e
continua com a falta de testemunhas que a comprovem como um tema central, o que
significa que uma história sinistra é tudo o que ela é. Ao que tudo indica, quando o
Instituto investigou pela primeira vez não foram capazes de encontrar uma única
evidência para apoiar a existência desse caixão arranhado, e pra ser honesto não achei
que valeria a pena perder o tempo de ninguém agora, quase vinte anos depois.

Dito isso, eu mencionei o assunto a Tim ontem e aparentemente ele fez algumas
pesquisas por conta própria. Breekon e Hope de fato existiram, e foram um serviço de
correios que funcionou até 2009, quando entraram em falência. Eles estavam
localizados em Nottingham, no entanto, bem ao norte de Bournemouth, e se
mantiveram registros de suas entregas não estão mais disponíveis.

O que é interessante, entretanto, é o endereço que o Sr. Gillespie forneceu para o


apartamento em que tudo isso aconteceu. A associação habitacional que o administra
mantém registros extensos sobre os inquilinos que moraram em seus edifícios, datando
cerca de quarenta ou cinquenta anos. Pelo que Tim pôde descobrir, parece que durante
os dois anos de sua residência o Sr. Gillespie foi a única pessoa morando naquele
edifício inteiro, com os outros sete apartamentos totalmente vazios. Ninguém se mudou
para lá depois de sua partida, e o prédio foi vendido a um construtor e demolido logo
após esse depoimento ter sido originalmente fornecido. Previsivelmente, ninguém que
trabalhou para aquela associação habitacional nos anos 90 ainda está lá, e apesar dos
esforços de Tim, não conseguimos nenhuma explicação de por que, em um prédio
daquele tamanho, o Sr. Gillespie passou quase dois anos morando sozinho, a não ser
por um velho caixão de madeira.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Amy Patel, a respeito do suposto desaparecimento de seu conhecido,
Graham Folger. Depoimento original prestado em 1º de julho de 2007. Gravação de
áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Conheci o Graham há mais ou menos dois anos. É difícil dizer exatamente quando nos
conhecemos ou até mesmo quando começamos a conversar, já que estávamos tendo
uma disciplina juntos na época. Tenho certeza de que houve bastante discussão ou
interação antes de sabermos os nomes um do outro, mas comecei meu curso em
setembro de 2005, então, é, cerca de dois anos. Decidi fazer um curso de Criminologia
na Universidade Birkbeck como uma forma de sair da rotina de escritório — sou analista
de compliance na Deloitte, e se você acha que isso parece chato, bem… É. É chato. Eu
sabia que um curso noturno de Criminologia não iria a lugar nenhum, é claro, mesmo
que eu me formasse. Eu só tinha que arrumar algo para deixar minha vida um pouco
mais interessante, e era isso ou me tornar uma alcoólatra, então…

Desculpe, estou fugindo do assunto. No começo eu achava Graham um pouco


desconcertante, pra ser honesta. Ele era um fumante inveterado e usava desodorante
demais para tentar disfarçar o cheiro. Era um pouco mais velho do que eu, talvez dez
anos ou mais. Quer dizer, eu nunca perguntei a idade dele, não éramos  tão próximos,
mas ele estava começando a ficar grisalho e dava pra ver que o cansaço em seu rosto
não era apenas por uma única noite de sono perdida. Isso não quer dizer que não era
bonito — ele tinha um rosto redondo e largo e olhos azuis bem profundos, mas não
fazia o meu tipo. Ele falava bem nos trabalhos em grupo — pelo menos quando falava
—, e acho que uma vez comentou que havia estudado em Oxford, embora eu não saiba
em qual faculdade. Eu percebi antes que durante as palestras ele sempre parecia estar
rabiscando furiosamente em um caderno, mesmo quando o palestrante não estava
falando. No começo eu apenas pensei que ele era meticuloso, mas juro que o vi
preencher um caderno A5 inteiro em uma aula. Lembro que era uma palestra sobre a
juventude e o sistema judiciário em que o palestrante era tão lento que não encheria
aquele caderno mesmo se Graham estivesse escrevendo literalmente cada palavra.
Sem falar que uma vez pedi suas anotações emprestadas para uma redação e ele me
lançou um olhar estranho e disse que não fazia anotações.

Então sim, a questão é que eu não o chamaria de amigo, mas nos dávamos bem. Foi
cerca de quatro meses após o início do meu curso que encontrei o Graham fora da
universidade. Eu estava no ônibus noturno para casa depois de tomar alguns drinques e
acabar perdendo o horário de sempre. Eu moro em Clapham, então há um serviço de
ônibus noturno bastante rotineiro indo para lá. É claro que rotineiro também significa
bêbados irritados vomitando, então, é, eu geralmente tento ser discreta me sentando
em um banco na parte de trás do andar de cima. Foi lá que eu vi o Graham. Ele estava
sentado bem na frente, olhando pela janela. Observar as pessoas é um dos meus
passatempos vergonhosos, então decidi não dizer olá, pelo menos não imediatamente.
Eu também não me decepcionei — ele estava mais estranhamente sozinho do que
durante as aulas. Estávamos no meio do inverno na época, então as janelas
embaçavam com a condensação, mas ele limpava a que estava à sua frente quase
obsessivamente no momento em que começasse a obscurecer sua visão. Ele parecia
estar examinando atentamente a rua em busca de algo, apesar de às vezes esticar o
pescoço para olhar para os telhados dos edifícios que passavam. Ele parecia nervoso
também, e respirava muito mais rápido do que o normal, o que embaçava ainda mais
sua janela. Foi um pouco inquietante de se assistir, pra ser honesta, e finalmente decidi
dizer a ele que eu estava lá.

Ele se assustou um pouco quando eu o cumprimentei, e perguntei se ele estava bem.


Ele me disse que normalmente não ficava fora até tão tarde e achava o transporte
público noturno perturbador. Me sentei ao lado dele e ele pareceu ficar muito mais
relaxado, então não prorroguei o assunto. Conversamos um pouco sobre nada em
particular, até que o ônibus começou a se aproximar da minha parada. Quando me
levantei percebi que Graham havia se levantado exatamente ao mesmo tempo que eu,
e notei com certo desconforto que devíamos morar no mesmo ponto. Não me entenda
mal, eu até gostava do cara, mas ainda não me sentia bem com ele sabendo onde eu
morava. Mas, é, era óbvio que eu tinha me levantado para descer do ônibus, então eu
não poderia simplesmente ir até a próxima parada, e não era que eu me sentisse em
perigo com o Graham, apenas sou uma pessoa reservada. Decidi só caminhar com ele
o quanto fosse necessário e me certificar de que ele não visse em qual prédio eu
entraria. Talvez nem fossemos para a mesma direção.

Sim, nós íamos exatamente para a mesma direção. Parecíamos até estar indo para a
mesma rua.

Foi nesse ponto que senti uma mão agarrar meu ombro e me empurrar para o meio da
rua. Não sei bem como explicar, num momento eu estava caminhando e no outro eu
estava voando em direção ao chão. Não poderia ter sido o Graham — ele estava na
minha frente na hora, e eu poderia jurar que não havia mais ninguém na rua. Não havia
nenhum carro vindo, mas bati minha cabeça com força. Acho que devo ter ficado
inconsciente por alguns segundos porque a próxima coisa da qual me lembro é de
um Graham em pânico ao telefone chamando uma ambulância. Tentei dizer a ele que
eu estava bem, mas não consegui sequer pronunciar as palavras, o que, é…
Provavelmente significava que eu não estava bem.

A ambulância chegou em pouco tempo, considerando que era Londres em uma noite de
sexta-feira, e os paramédicos me deram uma examinada. Me disseram que o ferimento
em si não era sério — aparentemente ferimentos na cabeça sempre sangram bastante
e não é nada para entrar em pânico — mas que eu tive uma concussão bem feia e não
deveria ser deixada sozinha pelas próximas horas. Mesmo que já estivéssemos perto
da minha porta, por algum motivo decidi que Graham nunca saberia onde eu morava.
Pensando agora provavelmente foi a concussão falando, mas o resultado foi que eu
concordei em voltar ao apartamento de Graham para me recuperar. Ele ficou bastante
constrangido com a coisa toda se esforçou bastante para me garantir de que não havia
nada de inapropriado na situação; aparentemente ele era gay, o que admito ter
realmente me tranquilizado um pouco. Ainda assim estava claro que nenhum de nós
esperava terminar a noite daquela forma.

No final das contas o apartamento de Graham ficava do outro lado da rua do meu,
apenas um pouco mais pra baixo. Eu me perguntei se poderia ver a minha janela pela
dele, e lembro de ter o estranho pensamento de que se eu tivesse que olhar para fora
eu precisaria ter cuidado com a sua floreira, pois podia ver os ganchos que a prendiam
à armação. Eu perguntei o que ele cultivava e ele me olhou como se minha concussão
estivesse me impedindo de fazer sentido novamente. Quer dizer, talvez estivesse,
porque quando olhei para a janela de novo os ganchos haviam sumido e não havia sinal
de nenhuma floreira. Naquela hora culpei o ferimento na cabeça, e mesmo agora ainda
não tenho certeza.

O apartamento em si era simples, bem grande para os padrões de Londres. Tinha


apenas alguns móveis e muitas estantes de livros, cada uma coberta com fileiras e mais
fileiras de cadernos idênticos, sem sistema de marcação aparente ou algo que
indicasse o conteúdo. Comecei a perguntar sobre eles, mas minha cabeça latejava e eu
não me sentia bem para ouvir qualquer resposta que pudesse vir. Graham me levou até
o sofá e desapareceu para buscar um saco de gelo e uma caneca de chá açucarado.
Aceitei os dois gentilmente embora não estivesse muito a fim de conversar. Graham
claramente se sentiu constrangido o suficiente com o silêncio para falar por nós dois, e
eu descobri mais sobre ele na hora seguinte do que jamais tive o desejo de saber.
Aparentemente seus pais morreram em um acidente de carro alguns anos antes e
deixaram muito dinheiro e aquele apartamento. Ele não precisava mais trabalhar e
então se viu meio à deriva, fazendo cursos noturnos na faculdade para passar o tempo
e abrir a mente — palavras dele, não minhas. Ele disse que estava tentando descobrir o
que fazer da vida.

Ele continuou falando por um tempo, mas eu parei de ouvir em certo ponto pois fiquei
extasiada com a mesa em que ele havia colocado o meu chá. Era uma coisa de
madeira ornamentada, com um padrão sinuoso de linhas tecendo seu caminho em
direção ao centro. O padrão era hipnótico e mudava enquanto eu observava, como uma
ilusão de ótica. Eu percebi meus olhos seguindo as linhas em direção ao meio da mesa,
onde não havia nada além de um pequeno orifício quadrado. Graham percebeu que eu
estava encarando e me disse que móveis antigos interessantes eram uma de suas
poucas paixões verdadeiras. Aparentemente ele encontrou a mesa em uma loja de
segunda mão durante seus dias de estudante e se apaixonou por ela. Estava em um
estado péssimo, mas ele gastou um bom tempo e muito dinheiro a restaurando, embora
nunca tivesse sido capaz de descobrir o que deveria ir no centro. Ele presumiu que
fosse uma peça separada e não conseguiu rastreá-la. E sim, como a maior parte de sua
conversa eu teria achado entediante mesmo se eu não tivesse uma concussão. Mas a
essa altura eu estava começando a me sentir bem o suficiente para ir embora e
comecei a dar desculpas ao Graham. Ele expressou preocupação, disse que não tinha
levado tanto tempo quanto os médicos sugeriram, mas se eu precisava… Bem, você
entendeu. No final eu fui embora pois continuava me perdendo nas linhas da mesa e os
canos do lado de fora da janela faziam um barulho tão estranho que não achei que ficar
ajudaria a me recuperar.

Fui direto para casa me certificando de que Graham não poderia me ver de sua janela e
passei algumas horas assistindo TV até me recuperar o suficiente para ir dormir.
Quando acordei na manhã seguinte já estava me sentindo mais ou menos bem, embora
tivesse um curativo sobre o corte na testa e tentasse não pensar muito na noite anterior.

Porém, em uma noite alguns dias depois me peguei olhando pela minha janela, aquela
que dava para a rua, e me lembrei de quão perto Graham morava. Eu olhei para ver se
conseguia descobrir qual janela era a dele e, sim, com certeza, lá estava ela. Na
verdade, eu tinha uma visão incrivelmente clara de seu apartamento, e pude vê-lo
sentado no sofá, lendo um dos cadernos de sua estante. Percebi que, se eu podia vê-lo
tão claramente, se decidisse olhar para cima ele provavelmente poderia me ver tão bem
quanto, e com algum resquício da minha apreensão daquela sexta-feira decidi desligar
a luz do meu apartamento, então ele não me veria se olhasse para cima. E então voltei
a observá-lo.

Sim, eu sei que isso parece assustador. Realmente não era para ser. Eu disse
anteriormente que realmente gosto de observar as pessoas, e independentemente do
quão chato possa ter sido conversar com ele, Graham era estranhamente fascinante de
observar. Então foi o que eu fiz. E não apenas naquela noite, aliás. Sim, não há
nenhuma maneira não sinistra de dizer que observar Graham se tornou o meu hobby.
Foi estranho, eu admito. Mas eu simplesmente não pude me conter. Concluí que não
estava o observando com nenhum propósito ou malícia em mente. Foi puramente um
interesse individual em sua vida. E em minha defesa eu teria parado muito antes se não
fossem pelas coisas bizarras que ele fazia. Ele constantemente reordenava seus diários
sem qualquer sistema aparente de organização, na maioria das vezes sem nem mesmo
abri-los. Às vezes ele pegava um caderno aparentemente aleatório das prateleiras e
começava a rabiscar nele, embora eu pudesse ver que a página já estava coberta de
coisas escritas. Uma vez, e eu juro que isso é verdade, eu o vi pegar um de seus
cadernos e começar a rasgar as páginas uma de cada vez. E então, lenta e
deliberadamente, ele as comeu. Deve ter levado três horas para engolir o caderno todo,
mas ele não parou e nem fez uma pausa, apenas continuou.

Mesmo quando ele não estava fazendo nada com os cadernos havia uma energia
estranha nele. Pelo que eu podia ver, ele estava constantemente nervoso e se
assustava toda vez que algum barulho alto passava na rua abaixo. Uma sirene da
polícia, uma garrafa quebrando… Inferno, eu até o vi surtar por causa de um caminhão
de sorvete uma vez. Cada vez ele ficava de pé, corria para a janela e começava a olhar
para fora; esticando descontroladamente o pescoço de um lado para o outro. Às vezes
ele olhava para cima, mas eu aprendi seus padrões bem o suficiente para evitar ser
vista. Então, de repente, ele decidia que não havia nenhum problema e voltava para o
quer que estivesse fazendo antes.

E com “o que quer que estivesse fazendo antes”, sim, quero dizer:  nada. Ele
aparentemente não tinha uma televisão ou um computador — os únicos livros que
parecia ter eram seus próprios cadernos, e eu só o vi comer comida para viagem. Não
sei quantas vezes o vi comer a mesma pizza — pepperoni com pimenta-jalapenho e
anchovas. Sim, eu sei. Mas no resto do tempo ele apenas sentava lá, fumando; às
vezes olhando para o nada, às vezes encarando aquela mesa de madeira dele. E sim,
eu lembro que aquele padrão era meio hipnótico e que eu mesma passei mais do que
alguns minutos olhando para ele quando estava lá, mas ele não fazia praticamente mais
nada.

Quem sabe ele tinha uma vida rica e gratificante fora do apartamento, ele certamente
saía regularmente; e, é, eu não iria tão longe ao ponto de segui-lo. Na verdade, eu
sempre esperava um bom tempo antes de sair do meu próprio prédio para ter certeza
de não acabar esbarrando nele. Eu ainda não queria que ele soubesse onde eu morava,
embora agora por razões bem diferentes. No final das contas, contudo, isso era um
hobby, não uma obsessão, e muitas vezes passavam dias sem que eu sequer visse o
Graham. Talvez eu tenha perdido coisas que explicariam seu comportamento. Eu
só… Gostaria de ter perdido o que aconteceu no dia 7 de abril. E então talvez eu
apenas pensasse que ele se mudou, ou… Não sei. Eu só queria não ter visto.

O trabalho tinha sido intenso por alguns meses, com tantas horas extras que tive de
largar o curso. Estava tudo bem, na verdade, como eu não tinha realmente falado com
Graham desde a noite em que machuquei a cabeça. Acho que ele ainda se sentia
constrangido com isso, e eu o vi fazer tantas coisas estranhas sozinho em seu
apartamento que acho que tive dificuldades em ter uma conversa normal com ele.
Enfim, naquela semana eu mal tive tempo para comer, muito menos para continuar o
lance de observar o Graham, então quando cheguei em casa por volta das dez e meia
da noite meu primeiro pensamento foi apenas cair na cama. Mas era sexta-feira e eu
tinha bebido uma grande quantidade de café para continuar no trabalho, então, é, eu
estava bem acordada e ansiosa para um longo descanso no dia seguinte. Então quando
vi que a luz de Graham ainda estava acesa decidi passar alguns minutos relaxantes
verificando como ele estava.

A luz dele estava acesa, mas eu não podia vê-lo, e me perguntei se talvez ele tivesse
ido para a cama e simplesmente esquecido de desligá-la. O mais provável era que ele
estivesse apenas no banheiro, então decidi esperar mais um pouco. Enquanto encarava
a janela, eu percebi que havia algo… Não sei, incomum nela. Parecia diferente de
alguma forma, mas eu não conseguia descobrir o que era. E então eu percebi. No início
eu pensei que fosse apenas um cano de água correndo pela lateral do prédio, preso
logo abaixo da janela aberta de Graham. A luz dos postes não chegava até seu
apartamento no quarto andar, e o parapeito da janela lançava uma sombra que impedia
a luz do quarto de iluminá-lo, mas era longo, reto, escuro e, pelo que pude ver, parecia
apenas um cano, exceto que eu estive vigiando aquela janela há meses e poderia jurar
que nunca tinha existido um cano ali antes.

E enquanto eu o encarava, ele se moveu. Começou a se dobrar lentamente, e eu


percebi que estava olhando para um braço, um braço longo e fino. Quando dobrou a
junta perto de onde terminava o braço, acho que vi outra junta mais para baixo, também
se movendo e dobrando o que só pude supor serem cotovelos? Ele enganchou a ponta
do membro pela janela. Quando digo que se moveu, não é bem isso. Ele  mudou. Como
quando você olha para uma daquelas pinturas de olho mágico antigas e muda de ver
uma imagem para outra. Eu nunca vi nada que pudesse realmente chamar de mão, mas
ainda assim ela se puxou pela janela. Demorou menos de um segundo e não consegui
ver direito o que era, eu só vi esses… Braços? Pernas? Pelo menos quatro deles, mas
poderia haver mais, e eles meio que se dobraram pela janela em um flash de cinza
manchado. Acho que essa era a cor — era praticamente uma silhueta, e se houvesse
um corpo ou cabeça, ela se deslocava para dentro mais rápido do que eu podia ver. No
momento em que entrou, a luz do apartamento de Graham se apagou e a janela bateu
atrás dele.

Então… É, eu só meio que fiquei lá por um longo tempo, tentando processar o que tinha
acabado de ver. Eu podia perceber alguns movimentos vagos de dentro do apartamento
de Graham, mas não conseguia ver nada com clareza. Finalmente decidi que deveria
ligar para a polícia, embora não tivesse ideia do que dizer a eles. No fim eu
simplesmente disse que tinha visto alguém suspeito entrando por uma janela do quarto
andar no endereço dele e desliguei antes que me perguntassem quem estava falando.
Então eu esperei e observei o apartamento escuro à frente. Eu não conseguia desviar o
olhar — estava convencida de que se parasse de olhar aquele… O que diabos aquilo
fosse, iria se dobrar de volta, se esticar e entrar na minha casa. Nada saiu.

Cerca de dez minutos depois vi um carro da polícia subindo a rua. Sem sirenes, sem
luzes piscando, mas eles estavam aqui, e imediatamente comecei a me sentir melhor.
Olhando para cima, no entanto, vi que a luz havia se acendido no apartamento de
Graham. Não havia sinal da coisa que eu tinha visto entrar, mas quando a polícia
apertou a campainha do lado de fora do prédio vi alguém caminhando em direção à
porta para deixá-los entrar. Não era o Graham.

Eu não consigo enfatizar o suficiente o quanto aquilo não era o Graham. Ele parecia
completamente diferente. Ele era talvez alguns centímetros mais baixo e tinha um rosto
comprido e quadrado com cabelo loiro encaracolado, enquanto o de Graham era escuro
e cortado curto. Ele estava vestido com as roupas de Graham, no entanto; eu reconheci
a camisa pelos meus meses assistindo, mas ele não era o Graham. Eu assisti enquanto
o Não-Graham caminhou pela porta e deixou os dois policiais entrarem. Eles
conversaram por um tempo e o Não-Graham parecia preocupado, e juntos começaram
a vasculhar o apartamento. Eu observei, esperando que a coisa aparecesse, ou que
eles encontrassem o Graham real, mas eles não encontraram. Certo momento vi um
dos policiais pegar um objeto vermelho-escuro que reconheci como um passaporte.
Meu coração bateu mais rápido quando a vi abri-lo e olhar para Não-Graham,
claramente comparando, esperando pelo momento em que ela perceberia o impostor.
Em vez disso ela apenas riu, apertou a mão do Não-Graham e eles foram embora.
Observei o carro da polícia ir embora com uma sensação de impotência, e quando olhei
para cima ele estava parado na janela de Graham, olhando para mim. Eu fiquei lá,
congelada quando seus olhos arregalados e fixos encontraram os meus, e um sorriso
frio e cheio de dentes se espalhou pelo seu rosto. E então em um movimento rápido ele
fechou as cortinas e foi embora.

Eu não dormi naquela noite, e nunca mais vi o Graham. Mas eu via essa pessoa nova o
tempo todo. Durante a semana seguinte eu o vi retirando grandes sacos de lixo que
pareciam pesados várias vezes ao dia. Levei um tempo para perceber que ele estava
se livrando dos velhos cadernos de Graham, mas logo o apartamento estava vazio sem
eles. Acho que ele fez outra redecoração, mas eu nunca olhei direito, já que as únicas
vezes que estava com as cortinas abertas eram quando ele encarava fixamente o meu
apartamento, o que agora fazia todas as noites. Tentei encontrar evidências do antigo
Graham, mas tudo que pude encontrar online com uma imagem, era sempre uma foto
dessa nova pessoa. Até perguntei a alguns dos meus antigos colegas de classe, mas
nenhum deles parecia se lembrar dele.

Eventualmente, eu me mudei. Eu realmente gostava da minha antiga casa em Clapham,


mas, é, ficou insuportável. A gota d'água foi quando eu estava saindo para o trabalho
uma manhã e percebi tarde demais que o Não-Graham estava saindo de seu prédio na
mesma hora. Ele me cumprimentou pelo nome, e sua voz não era nada como deveria
ser. Comecei a dar desculpas e me apressar, mas ele apenas me encarou e sorriu.

“Não é engraçado, Amy, como você pode viver tão perto e nunca perceber? Vou ter que
compensar a visita algum dia.”

Eu me mudei uma semana depois e nunca mais o vi.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Eu estava tentado a descartar isso como uma alucinação resultante de complicações de


trauma cranioencefálico de longo prazo, mas Tim veio com este caso e conseguiu obter
os registros médicos da Sra. Patel. Só Deus sabe como ele os conseguiu, mas é melhor
não estar usando os fundos do Instituto para cortejar balconistas novamente. Os
registros simplesmente não validam a ideia de que ela estava sofrendo desse tipo de
problema. Sem mencionar que geralmente não confio muito no testemunho de colegas
de trabalho, mas o trabalho dela realmente não parece ser do tipo que você poderia
fazer com um senso de realidade comprometido. A Sra. Patel recusou o nosso pedido
de uma entrevista de acompanhamento e parece estar tentando se distanciar desses
acontecimentos.

Graham Folger definitivamente existiu e parece combinar com a história dela. De acordo
com os registros do legista, Desmond e Samantha Folger, seus pais, morreram na M1
perto de Sheffield em 4 de agosto de 2001, e o nome de Graham Folger aparece no
registro de várias faculdades e universidades dentro e nos arredores de Londres pelos
próximos anos. O apartamento que ela mencionou pertencia a Folger, mas foi vendido
por uma agência no início de 2007. Todas as fotografias que conseguimos obter
parecem corresponder à descrição deste “Não-Graham” que a Sra. Patel descreveu,
exceto por algumas fotos Polaroids, anexas, que parecem ser do final dos anos 80 e
mostram os dois pais ao lado de um adolescente de cabelos escuros que não combina
com as fotos posteriores.

Não parece haver muito mais a ser feito aqui. A Sra. Patel como muitos de nossos
casos parece ter estado mais interessada em dar seu depoimento como uma forma de
encerramento pessoal do que como o início de uma investigação séria. Ela nem se
interessou quando Sasha disse que havíamos conseguido localizar o que
acreditávamos ser um dos diários de Graham Folger. Duvido que teria feito algum bem
— ele apenas diz a mesma coisa em todas as páginas: as palavras “Continue Vigiando”,
de novo e de novo.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Dominic Swain, a respeito de um livro que ficou brevemente em sua
posse no inverno de 2012. Depoimento original prestado em 28 de junho de 2013.
Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Trabalho como técnico de teatro em vários locais do West End; eu mexo principalmente
com as luzes, mas muitos lugares menores não podem pagar equipes grandes para
suas produções, então acabo fazendo um pouco de tudo. Acho que isso não é
diretamente relevante para a minha experiência, mas só quero que saiba que não sou
uma pessoa maluca vagando pela rua. Eu trabalho, faço coisas práticas com as minhas
mãos e não estou propenso a voos loucos da imaginação.

Naquele dia, eu ia assistir a uma matinê de As Troianas no The Gate Theatre, em
Notting Hill. Uma amiga minha, Katherine Mendes, estava no elenco e tentava me
convencer a assistir já há algum tempo. Trabalhamos juntos na produção de  A
Gaivota alguns anos antes e tinha rolado algo entre nós naquela época. Agora eu tinha
acabado de ficar solteiro, então estava ansioso para encontrá-la e ver se alguma das
velhas faíscas ainda existiam. Acabei indo com ela na tarde de sábado, dia 10 de
novembro — me lembro da data exata pois havíamos discutido muito a respeito dela, já
que estávamos ambos envolvidos em apresentações diferentes na época, tornando as
noites difíceis.

Então, no sábado à tarde, eu estava em Notting Hill Gate, matando uma ou duas horas
antes do início da apresentação. Bem, Notting Hill não é um lugar que eu vá com
frequência já que tende a ser caro, mesmo para Londres. E não sei o quanto você sabe
sobre técnicos de teatro, mas geralmente não somos profissionais muito bem pagos.
Ainda assim, eu tinha algumas lembranças vagas de que existia uma loja de caridade
da Oxfam em algum lugar por ali, já que eu já havia comprado uma túnica militar antiga
e bonita lá que continua sendo uma das minhas jaquetas favoritas. Encontrei a loja
facilmente e passei cerca de dez minutos examinando as roupas e bugigangas, mas
fiquei um pouco decepcionado. Era menor do que eu me lembrava e parecia conter as
mesmas curiosidades tediosas de todas as lojas de caridade. Eu ainda tinha algum
tempo para matar, então decidi dar uma olhada nos livros, algo que raramente me dou
ao trabalho de fazer normalmente.

Encontrei o livro na estante de Ficção Científica e Fantasia. A princípio presumi que


fosse algum tipo de edição especial de couro sintético e tive certeza de que quem o
colocou à venda deve ter pensado o mesmo, porque o preço era de apenas quatro
libras. No entanto, havia algo sobre ele que me fez dar outra olhada, e ao pegá-lo, senti
a costura e percebi que poderia muito bem ter sido encadernado em couro verdadeiro,
provavelmente de bezerro, dada a sua maciez. Não sou especialista em livros de forma
alguma, mas ele parecia antigo, e pensei que poderia ter sido encadernado à mão, pois
as páginas eram ligeiramente desiguais. Não havia nenhuma sobrecapa e na capa
nenhum título, mas gravadas na lombada em letras douradas desbotadas estavam as
palavras Ex Altiora. Eu estudei um pouco de latim na escola quando era criança, mas
não tive muitos motivos para usá-lo desde então, portanto você vai ter que me perdoar
se minhas traduções não fizerem muito sentido, mas eu acredito que significava “Do
Alto” ou “Fora das Alturas”.

Fiquei surpreso para dizer o mínimo — o livro claramente valia muito mais do que o
preço pelo qual estava sendo vendido. Se o vendedor que o colocou ali estivesse
prestando atenção, estaria na caixa de vidro onde guardavam as coisas que as pessoas
doavam que eram realmente valiosas. Eu dei uma olhada, mas parecia estar
inteiramente escrito em latim, então não tive muita sorte em descobrir sobre o que se
tratava. A única parte em inglês parecia ser um carimbo na frente que dizia “Da
biblioteca de Jurgen Leitner”, embora nenhum autor estivesse listado. Havia também
várias ilustrações em preto e branco — xilogravuras, eu acho — cada uma mostrando
uma montanha ou um penhasco ou o que parecia ser um céu noturno vazio. Tive uma
sensação estranha quando olhei para aquela imagem como se por mais simples que
fosse eu estivesse prestes a cair nela, e meu estômago deu uma revirada estranha,
quase me fazendo deixar o livro cair no meio da Oxfam.

Decidi comprá-lo. Mesmo que eu nunca descobrisse como ler aquela coisa, claramente
valia muito mais do que eles estavam pedindo. Eu me senti um pouco idiota por não
avisá-los sobre o quão valioso ele era, quase como se estivesse roubando dinheiro da
caridade, mas no final percebi que não era meu trabalho definir os preços na loja, e
além disso aquele livro havia me deixado absolutamente fascinado. A mulher que
trabalhava no caixa nem ergueu uma sobrancelha quando eu entreguei o dinheiro e
paguei as quatro libras. Saí na esperança de encontrar um café onde pudesse sentar e
dar outra olhada, mas foi então que notei a hora. De alguma forma eu passei uma hora
naquela loja, e agora estava quase atrasado para a peça de Katherine. Felizmente
cheguei a tempo, mas tive que correr um pouco.

A peça foi boa. Nunca fui fã do teatro grego, e essa apresentação não foi a que me
conquistou. Katherine foi excelente, é claro, mas francamente o resto da peça foi um
pouco trivial. Ainda assim, não sou crítico de teatro e não estava exatamente prestando
toda a atenção do mundo, pois estava convencido de que havia um problema com as
luzes do palco. Durante todo o show senti um cheiro sútil de ozônio e fiquei
preocupado. A única outra vez que senti esse cheiro no teatro foi quando um dos meus
ajudantes acidentalmente encomendou o tipo errado de luz e acabamos instalando um
projetor com uma lâmpada de xenônio-mercúrio — o tipo usado para esterilizar
equipamentos médicos com UV. Identifiquei o problema antes de qualquer coisa
acontecer, mas ainda me lembro daquele cheiro intenso de ozônio. Ainda assim,
ninguém mais pareceu notar e eu não conseguia ver nada no equipamento de luz do
teatro que pudesse causar o odor, então tentei apenas ignorá-lo.

Depois que a apresentação terminou, Katherine e eu jantamos rapidamente antes de


irmos para nossas respectivas apresentações noturnas. Fiquei decepcionado ao
perceber que qualquer atração que houvesse entre nós parecia ter desaparecido
completamente, e apesar de termos passado algumas horas agradáveis juntos era
óbvio que nenhum de nós queria continuar com aquilo. Eu mostrei o livro a ela, no
entanto. Ela sabia ainda menos latim do que eu, mas ficou impressionada. Ela disse
que parecia valioso e que eu deveria levá-lo a algum lugar para ser avaliado, embora
ela não tenha olhado os detalhes, pois as fotos por algum motivo a deixavam com
vertigem.

Nada digno de nota ocorreu depois que eu saí. Apresentei minha peça, uma produção
de Muito Barulho por Nada lá no teatro Courtyard, sem contratempos. Voltei tarde para
casa pois tinha saído para tomar um drinque com o diretor de palco e alguns atores, e
me sentia muito acordado para simplesmente ir para a cama, então me servi um pouco
de gim-tônica e decidi olhar o livro mais detalhadamente. Claramente eu não tinha
aprendido mais latim desde quando o comprei doze horas antes, então ler ainda estava
fora de questão — mas continuei a dar uma olhada mais de perto nas xilogravuras.
Havia cerca de uma dúzia delas, a maioria de montanhas e penhascos, mas uma
parecia ser uma torre, assomando sobre a paisagem rural em um ângulo estranho, com
pequenos pássaros rondando o cume. E então havia aquela imagem de um céu vazio.
Nunca tive medo de altura, mas olhando para aquela imagem eu me senti… Não sei
direito. Eu simplesmente não conseguia olhar para ela por muito tempo. Parecia se abrir
infinitamente, não havia nada a fazer senão cair nela. Era ainda mais estranho porque
não havia muita coisa na imagem em si exceto pela tinta preta e algumas estrelas
estilizadas, mas algo nas proporções surtia esse efeito em mim.

Eu decidi que talvez Katherine estivesse certa e ele poderia ser valioso como uma
antiguidade, então eu fiz algumas pesquisas para tentar descobrir mais sobre ele. O
latim caiu em desuso como língua para textos acadêmicos no século 18 e eu realmente
duvidava que aquela coisa fosse tão antiga. Desde então, ele só foi realmente usado
para textos religiosos, mas o livro certamente não parecia estar cheio de orações.
Pesquisar Ex Altiora online não adiantou muito — a frase era usada em algumas
orações antigas, havia uma empresa chamada Altiora e algo em italiano sobre futebol,
mas nada que parecesse minimamente relacionado ao meu livro. Procurar por Jurgen
Leitner não foi muito mais produtivo. Apareceu uma página sobre um músico austríaco
e algumas outras do Facebook, embora todos parecessem ter tremas em seus nomes,
ao contrário do que estava no livro, e nenhum deles parecia o tipo de pessoa a ter uma
biblioteca cheia de textos estranhos em latim. A única coisa que encontrei que parecia
vagamente relevante foi uma listagem no eBay de 2007. O leilão foi intitulado “Chave de
Salomão, 1863 — propriedade de MacGregor Mathers e Jurgen Leitner”, e foi comprado
por pouco mais de 1.200 libras por um usuário desativado — grratodebiblioteca1818.
Não havia imagem ou descrição — apenas o título e o lance vencedor. Decidi encerrar
a noite e ir para cama. Acho que tive um pesadelo, mas não me lembro dos detalhes.

Dormi até muito tarde no dia seguinte e quando acordei não havia muita luz do sol, mas
passei o tempo até o horário da minha apresentação contatando vendedores de livros
que eu havia procurado online. Todos eles estimaram a idade do livro entre 100 e 150
anos e disseram que parecia ter sido encadernado por encomenda. A maioria fez uma
oferta para comprá-lo por algumas centenas de libras, mas nesse ponto eu estava mais
interessado em obter informações sobre ele. Infelizmente, nenhum deles tinha ouvido
falar do livro antes ou se familiarizava com seu conteúdo. O último vendedor que
procurei reconheceu o nome Jurgen Leitner, no entanto. Ela me disse que Leitner tinha
sido um grande nome na cena literária durante os anos 90; um escandinavo rico e
solitário pagando quantias absurdas de dinheiro por quaisquer livros que lhe
chamassem a atenção. Dizia-se que ele costumava encomendar o encadernamento de
livros fornecendo um manuscrito, ou até mesmo contratava autores para produzir obras
para seu dossiê — embora ela não conhecesse nenhum escritor que tivesse trabalhado
com Leitner. Ele sumiu da vista do público por volta de 1995, mas ela lembrou que ele
costumava negociar frequentemente com a Pinhole Books em Morden, e me deu os
detalhes de Mary Keay, a dona.

Eu fui e apresentei minha peça depois disso. Aliás, era última noite da temporada — e
embora eu não tivesse perdido uma única deixa da iluminação, durante todo o tempo eu
simplesmente não conseguia tirar o livro da minha cabeça. Eu senti como se houvesse
algo que estava faltando, fora do meu alcance. E durante todo o tempo eu pude sentir
aquele mesmo cheiro fraco de ozônio. Era ozônio? Havia algo a mais ali. Algo que eu
conhecia, mas não conseguia me lembrar. Cada vez que eu sentia que estava mais
perto, era tomado por uma tontura e náusea que ameaçava me derrubar.

Eu não fui à festa do elenco depois, optando por uma longa caminhada para “clarear
minha cabeça” no ar frio de novembro. Não sei por quanto tempo caminhei. Deve ter se
passado horas, mas parecia o certo, como se fosse tudo o que eu podia fazer.
Caminhar parecia tão natural quanto cair. Foi só quando um homem gritou comigo por
quase tropeçar nele que parei e observei o que estava à minha volta. Eu não tinha ideia
de onde estava. Peguei meu telefone para encontrar a estação mais próxima e vi que
estava a apenas uma rua de distância de Morden. Me senti tonto de repente, e quando
olhei para o prédio à minha frente não fiquei nem um pouco surpreso ao ver uma placa
de latão onde se lia “Livros Pinhole — Somente com hora marcada” ao lado de uma
porta de madeira com manchas escuras sem identificação. Toquei a campainha e
esperei.

A mulher que abriu a porta não era nada como eu esperava. Ela era muito velha e
dolorosamente magra, mas sua cabeça estava completamente raspada e cada
centímetro de pele que eu podia ver estava tatuado com palavras escritas em uma
escrita que eu não reconheci. Ela estava no fim de um lance de escadas, e do topo eu
podia ouvir o som de death metal retumbando em alto-falantes potentes. Eu me
perguntei por um momento se ela recebia reclamações dos vizinhos por ouvir música
tão alto às duas horas da manhã, e percebi assustado que eram duas horas da manhã.
Me desculpei por incomodá-la tão tarde e perguntei se ela era Mary Keay. Ela apenas
bufou e perguntou de uma maneira decididamente hostil se eu tinha um compromisso.
Enfiei a mão na bolsa e tirei de lá Ex Altiora, o abrindo para mostrar o nome de Leitner
no livro. Ao ver isso seus olhos pareceram se iluminar e ela se virou para subir as
escadas. Ela não fechou a porta atrás dela, então tomei isso como um convite e a
segui.

Entramos em um conjunto de cômodos apertados, com livros empilhados em todos os


cantos imagináveis, quase a ponto de eu ter que tomar cuidado ao segui-la pelo
labirinto para não virar na direção errada. Eu percebi que ela estava falando, e não
parecia se importar se eu a ouvia por cima da música ou não. Ela disse que fazia muito
tempo desde que ela havia encontrado um Leitner, embora “seu Gerard” ficasse de
olho. Ela não deu nenhuma pista sobre quem poderia ser esse Gerard dela; essa velha
estranha não parecia interessada em realmente ler ou examinar meu livro a fundo, mas
perguntou se eu queria ver o dela. Eu apenas concordei. Eu estava perdido ali, não
tinha ideia do que estava acontecendo. Eu apenas sabia que não sentia o cheiro de
ozônio desde que chegara ali.

Segui Mary Keay até um estúdio sombrio. Era pequeno no início, mas cada parede
estava completamente coberta por estantes de livros lotadas, sobrecarregando ainda
mais o espaço. Imediatamente minha anfitriã começou a examiná-las atentamente,
murmurando para si mesma sobre onde “ele” teria colocado. Eu fiquei parado lá sem
jeito, não querendo encarar a velha, mas também hesitante em fazer qualquer outra
coisa. Além das estantes de livros, não havia muito na sala além de uma escrivaninha
gasta com uma cadeira de aparência muito antiga atrás dela. A mesa estava coberta de
papéis, arame de pesca e um aparelho de barbear. Acho que isso diz algo sobre meu
estado de espírito naquele ponto, mas eu nem sequer pensei duas vezes sobre aqueles
itens. Em vez disso, fixei minha atenção em uma foto pendurada em uma pequena área
da parede não coberta por estantes de livros. Era uma pintura de um olho. Muito
detalhada, e a princípio quase diria que era praticamente fotorrealística. Mas quanto
mais eu olhava, mais via os padrões e simetrias que se formavam em uma única
imagem, até que eu estava tão focado neles que comecei a ter dificuldade em ver o
próprio olho. Escritas abaixo da imagem estavam três linhas, em uma caligrafia verde
bonita: “Conceda-nos a visão que não podemos conhecer. Conceda-nos o aroma que
não podemos sentir. Conceda-nos o som que não podemos chamar.”

Nesse momento, Mary Keay voltou com duas xícaras de chá. Eu nem tinha notado ela
saindo e também não pedi a xícara de chá preto que ela colocou em minha mão. Ela
perguntou se eu gostei da pintura e me disse que o seu Gerard tinha feito. Disse que
ele era um artista muito talentoso. Murmurei algo em aprovação, não me lembro
exatamente o quê, e olhei para a xícara de chá em minha mão. Ela não me ofereceu
leite, e agora estava ocupada vasculhando as prateleiras novamente, sua própria xícara
esquecida na mesa. Tentei beber o chá por educação, mas tinha um gosto horrível,
como poeira e fumaça. Acho que algum dia pode ter sido  lapsang souchong, mas se foi,
deve ter sido anos atrás.

Finalmente, Mary encontrou o livro que procurava e o pegou da estante. Ela me


entregou um livro que à primeira vista parecia quase idêntico ao meu exemplar de  Ex
Altiora, exceto que o couro estava em um condições um pouco melhores. Não tinha
título, mas ao abri-lo pude ver que estava escrito em letras que eu não reconhecia. Não
havia ilustrações neste livro e as únicas palavras em inglês que consegui encontrar
estavam no carimbo: “Da biblioteca de Jurgen Leitner”. Igual ao meu. Mary me disse
que estava escrito em sânscrito, mas quando perguntei se ela podia ler, ela
simplesmente começou a rir.

Ela pegou o livro de volta e caminhou até a mesa onde a única lâmpada da sala lançava
sombras nítidas pelo chão. Ela deliberadamente segurou o livro nas sombras por alguns
segundos e então o devolveu para mim. Percebi pela primeira vez que a música heavy
metal não estava mais tocando, e a sala estava totalmente silenciosa. Eu abri o livro, e
por alguns segundos fiquei confuso ao ver que nada parecia ter mudado. A escrita
ainda era ininteligível para mim e não parecia diferente. Eu o ergui para dar uma olhada
mais de perto, e quando o fiz ouvi algo cair de leve no chão. Eu olhei para baixo e vi
ossos. Ossos de animais pequenos pelo que podia presumir, mas cada um estava
ligeiramente dobrado e deformado em formatos que ossos não deveriam formar.
Enquanto eu olhava para eles, Mary Keay pegou o livro de mim e o passou pelas
sombras mais uma vez. Mais ossos caíram. Ela fez isso várias vezes, até que uma
pequena pilha se formou aos meus pés.

Eu não sabia o que dizer. A essa altura minha cabeça latejava e a sensação daquele
lugar escuro e apertado com seu chá velho e livros antigos estava começando a me
oprimir. Tudo que eu conseguia pensar em perguntar era se meu livro também fazia
isso. Mary Keay riu e me disse para testar por mim mesmo. Comecei a folhear aquelas
páginas. Eu não havia passado por nenhuma sombra mas sabia que algo havia
mudado. As xilogravuras eram mais nítidas de alguma forma, e por baixo de cada uma
havia novas linhas, grossas e escuras, estendendo-se do céu. E então cheguei à
imagem daquela noite vazia. Mas agora ela tinha um padrão nítido e ramificado
entalhado nela. Um padrão que eu reconheci. Meu estômago embrulhou, como se o
chão tivesse sumido e eu estivesse caindo.
Lutando para ficar de pé, murmurei alguma desculpa e comecei a me retirar, o cheiro de
ozônio estava de volta agora, mais forte do que nunca, e eu precisava sair. Eu caí da
escada enquanto fugia, machucando meu quadril e torcendo meu tornozelo
dolorosamente, mas não me importei. Saí mancando daquele lugar o mais rápido que
pude e chamei um táxi para me levar para casa, os dedos ainda firmemente presos em
meu livro.

O padrão de ramificação que vi naquela foto é conhecido como a figura de Lichtenberg.


Ele mostra os caminhos divergentes da eletricidade em um material isolante, como vidro
ou resina. Eu sabia disso pelo padrão de cicatrizes nas costas do meu amigo de
infância, que foi atingido por um raio por minha causa. Seu nome era Michael Crew, e
nós tínhamos 8 anos na época, brincando em um campo perto da casa da minha avó.
Quando a tempestade começou, Michael disse que deveríamos entrar, mas eu queria
continuar brincando na chuva. Eu disse isso a ele, e ele apenas suspirou e me disse
que tudo bem. Foi quando disse essas palavras que ele foi atingido. O barulho foi tão
alto que abafou seus gritos completamente, mas foi o cheiro que realmente me marcou:
aquele cheiro poderoso de ozônio, misturado com o cheiro de carne cozinhando.
Michael sobreviveu no final, mas a cicatriz, aquela cicatriz ramificada de Lichtenberg,
permaneceu com ele pelo resto de sua vida.

Quando cheguei em casa precisei de toda a minha concentração para subir as escadas,
e quando finalmente consegui alcançar o meu sofá eu não conseguia afastar aquela
sensação de estar caindo. O cheiro era tão forte que eu mal conseguia respirar. Eu não
olhei para o livro, apenas fiquei lá. Sentia como se estivesse esperando por algo, mas
não fazia ideia do quê.

Quando a batida na porta finalmente veio, eu estava quase me sentindo recomposto o


suficiente para atender. Quase. Ainda demorei quase cinco minutos para reunir a
coragem para abri-la. Não bateram de novo, mas eu tinha certeza de que o que quer
que estivesse do outro lado não tinha ido embora. Estendi a mão, agarrei a maçaneta e
abri a porta. Parado logo após a soleira estava um homem em um longo casaco de
couro escuro. Seu cabelo era tingido num preto artificial e ele tinha o olhar e a barba por
fazer de alguém que não dormia há alguns dias. Eu perguntei se ele era Gerard Keay.
Ele disse que sim e que gostaria de ver meu livro. Eu balancei a cabeça
silenciosamente e ele me seguiu para dentro, fechando a porta atrás de si.

Peguei o livro e o coloquei sobre a mesa. Gerard o observou por um tempo, mas não o
tocou. Finalmente ele balançou a cabeça e se ofereceu para comprá-lo de mim por
cinco mil libras. Quase ri quando ele disse aquilo. Eu o teria vendido por uma fração
daquele valor. Eu poderia até ter dado de graça se não fosse pela sensação de que
aquilo… não contaria, por algum motivo. É difícil explicar. Eu não me importava com o
que ele planejava fazer com o livro, eu só queria me livrar dele, então concordei.

Gerard não parecia exatamente feliz com a notícia. Ele apenas balançou a cabeça
seriamente e se dirigiu para a porta dizendo que precisava pegar o dinheiro e voltar. Eu
não tentei impedi-lo. Ele saiu fechando a porta atrás de si e eu estava sozinho
novamente. O encontro todo durou pouco mais de um minuto.

Eu sentei lá, esperando ele voltar em silêncio. Foi horrível e eu precisava encontrar uma
maneira de me distrair do cheiro insidioso, então decidi pegar meu computador e ver o
que poderia descobrir sobre Gerard e Mary Keay. Eu não sei que tipo de coisa eu
esperava encontrar ao digitar seus nomes, mas certamente não era uma notícia de
2008 sobre o assassinato de Mary Keay. A polícia invadiu no final de setembro depois
que vizinhos reclamaram do cheiro, e a encontraram morta no escritório. A causa da
morte foi aparentemente determinada como uma overdose de analgésicos, mas foi
julgado um homicídio devido a “extensa mutilação do corpo após a morte”. Grandes
pedaços de sua pele foram arrancados e pendurados para secar em um arame de
pesca por toda a sala. O artigo tinha uma foto de Mary Keay, e não havia dúvida de que
era a mesma velha que conheci em Morden, embora na fotografia ela parecesse
ter uma cabeça cheia de cabelo e nenhuma tatuagem visível.

Comecei a procurar freneticamente por qualquer outra informação que pudesse


encontrar, outras notícias cobriram o julgamento de Gerard pelo assassinato de sua
mãe. Aparentemente, ele foi absolvido depois que uma peça significativa de evidência
foi considerada improcedente, embora nenhum dos relatórios parecesse saber
exatamente o que era essa evidência. Foi neste momento que a batida veio novamente.
Gerard havia voltado.

Eu abri a porta. Por um momento pensei em não deixá-lo entrar, mas sabia que ele
esperaria lá o tempo que precisasse, e não conseguia raciocinar com o fedor de ozônio
que penetrava em cada um dos meus sentidos. Não consegui esconder o terror em meu
rosto quando ele entrou, mas se ele percebeu a mudança em meu comportamento, não
reagiu. Ele simplesmente me entregou um envelope cheio de dinheiro. Eu nem me
preocupei em contar antes de lhe entregar o livro. Ele olhou para o título e então o
folheou muito rapidamente, antes de rir apenas uma vez e balançar a cabeça
aparentemente para si mesmo, como se tivesse acabado de chegar a algum tipo de
decisão.

Eu esperava que Gerard fosse embora imediatamente, mas em vez disso ele caminhou
até a minha lixeira de metal e colocou o livro dentro. Ele enfiou a mão no bolso da
jaqueta e tirou uma garrafa de fluido de isqueiro e uma caixa de fósforos. Em poucos
segundos o livro estava em chamas e o cheiro desapareceu quase imediatamente.
Mesmo quando minha cabeça começou a clarear eu senti que tinha que perguntar a ele
o porquê, mas ele apenas balançou a cabeça.

“Minha mãe nem sempre sabe o que é melhor para nossa família.” Isso foi tudo que ele
disse antes de pegar a lixeira, agora cheia de cinzas que fumegavam suavemente. Eu
avisei que estaria muito quente para segurar, mas ele deu de ombros e disse que já
tinha feito coisa pior. Então Gerard Keay foi embora, e eu nunca mais vi ele ou o livro
novamente.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Se eu nunca ouvir o nome Jurgen Leitner novamente será ótimo. Suponho que era
esperar demais que tivéssemos finalmente lidado com tudo o que restou de sua
biblioteca após o incidente em 1994, mas teria sido útil se Gertrude tivesse pelo menos
pensado em adicionar este depoimento ao arquivo do projeto atual. Quem sabe quantos
outros depoimentos aqui podem abordar os livros dele ou outros projetos atualmente
ativos do Instituto? Se a minha sorte até agora for real, então eu diria  que é improvável
que este seja um exemplo isolado. Quanto mais eu descubro sobre esse arquivo mais
parece que Gertrude simplesmente pegou os depoimentos escritos e os jogou nessas
pastas sem sequer lê-los. Visto que ela foi Arquivista Chefe por mais de cinquenta anos,
isso é… Este pode ser um trabalho maior do que eu pensava.

Independentemente disso, a maioria dos detalhes verificáveis no relato do Sr. Swain


parecem coincidir com as nossas próprias pesquisas. Martin não conseguiu encontrar
nenhum registro de Ex Altiora como título em catálogos existentes de literatura
esotérica ou semelhante, então designei Sasha para verificar novamente. Nada ainda. É
possível que o Sr. Swain tenha errado o título? Parece improvável dada a simplicidade
dele, e as… ocorrências que ele descreve certamente parecem ter sido devido à
proximidade de um verdadeiro livro de Leitner. Ainda assim, todos os outros livros de
sua biblioteca eram edições personalizadas de textos conhecidos sobre demonologia ou
o arcano. Se há Leitners por aí dos quais nem ouvimos falar, temo que isso possa ser
motivo para um pequeno alarme.

Detalhes úteis para acompanhamento são poucos e distantes entre si, no entanto. Os
registros de doações na loja de caridade da Oxfam em Notting Hill Gate têm apenas
doações anônimas listadas para livros em outubro/novembro de 2012 e obviamente
nenhum dos funcionários se lembra do livro. Também não conseguimos localizar Gerard
Keay. Além desse encontro ele parece ter desaparecido quase totalmente após o fim de
seu julgamento. A descrição que o Sr. Swain fornece parece corresponder às fotos
arquivadas de Gerard e Mary Keay, e pela descrição parece que ele realmente
encontrou o que costumava ser a Livros Pinhole em Morden, embora ela esteja fechada
desde 2008 por motivos óbvios, e nenhum novo inquilino se mudou até 2014. Havia,
porém, uma coisa interessante que Tim encontrou no relatório oficial da polícia sobre a
morte de Mary Keay — aparentemente, as camadas de pele ressecadas foram escritas
com marcador permanente. Não houve transcrição ou tradução no relatório, mas o
idioma foi identificado como sânscrito.

Portanto, parece que não temos pistas concretas para prosseguir. Ainda assim,
conversarei sobre isso com Elias e recomendarei que a busca por quaisquer outros
livros perdidos da biblioteca de Leitner seja considerada a maior prioridade deste
Instituto. Jurgen Leitner já causou danos suficientes ao mundo e devemos buscar todos
os caminhos disponíveis para garantir que ele não cause mais.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Kieran Woodward a respeito de itens recuperados do lixo da Estrada
Lancaster 93, em Walthamstow. Depoimento original prestado em 23 de fevereiro de
2009. Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus,
Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu trabalho como coletor de lixo para o Conselho Florestal de Waltham. Não é um
trabalho ruim contanto que você aguente o cheiro e as manhãs, sem falar que quando o
inverno realmente começa pode ser bem desagradável. Eu tive que tirar o gelo de
várias latas de lixo no meu tempo, apenas para conseguir abri-las. Ainda assim, o
pagamento é bem decente; pelo menos quando você acrescenta as horas extras e os
bônus, e depois de fazer as rondas, você normalmente fica livre pelo resto do dia. Então
você trabalha menos horas do que um macaco comum de escritório; só que essas
horas tendem a ser muito menos agradáveis do que qualquer coisa que você
provavelmente encontrará olhando para uma planilha de contabilidade. Mas não vim
aqui para falar sobre os prós e contras de se trabalhar na coleta de lixo. Pelo menos eu
acho que vim falar sobre um problema muito específico que encontrei no ano passado
enquanto fazia a coleta de lixo na Rodovia Lancaster 93.

Agora, você encontra coisas estranhas neste trabalho o tempo todo. As pessoas têm
um bloqueio mental estranho — a ideia de que assim que colocam algo no lixo ele
desaparece, foi oficialmente transformado em lixo e ninguém mais o verá. O fato de que
alguém terá que levá-lo da sua lixeira para o aterro sanitário ou o centro de reciclagem
realmente não passa pela cabeça delas, e ninguém parece perceber que cerca de uma
dúzia de pessoas podem acabar vendo o que você joga fora antes que finalmente
desapareça para sempre. Mas não, de acordo com o que o resto do mundo pensa sobre
isso, uma vez que foi jogado fora, acabou; está muito além de qualquer compreensão
humana. Isso leva aqueles que trabalham na coleta de lixo a ver um lado estranho da
humanidade, mas um lado honesto. Se você é um bêbado, há grandes chances de que
seus lixeiros saibam o quanto você bebe melhor do que você, porque esvaziamos todas
as garrafas. E sim, nós nos lembramos, e também te julgamos bastante às vezes,
embora não sobre as coisas que você possa pensar — você pode jogar fora uma
montanha de pornografia grotesca e, contanto que você tenha amarrado em pacotes
organizados, nós estamos de boa com isso. Mas se você jogar fora a areia do gato
sem ensacar adequadamente, pode acreditar que ganhou o ódio de cada lixeiro que já
jogou um saco fora. Enfim, estou fugindo do assunto.

A questão é: o saco de cabeças de boneca não me incomodou. Quer dizer, foi bizarro,
não me entenda mal — centenas de pequenas cabeças de plástico me encarado do
saco de lixo, mas com exceção de um rasgo pequeno na lateral da sacola preta elas
foram jogadas fora com muito cuidado, e foram fáceis de jogar no caminhão. A sacola
estava cheia delas, foi colocada ao lado da lixeira verde de reciclagem e a princípio
pensei que fosse apenas uma única boneca com a cabeça posicionada perto do rasgo,
mas quando joguei a sacola no caminhão o rasgo se partiu, espalhando um monte
daquelas coisas. Eu diria que havia mais de cem lá dentro. Elas eram feitas de plástico
duro e rígido, com aquela carinha de boneca infantil que você encontra em todos os
brinquedos assim. Várias delas tinham diferentes cabelos moldados ou pintados, então
estava claro que elas não eram simplesmente uma centena ou mais da mesma boneca.
Alguém havia passado tempo adquirindo uma variedade enorme de bonecas diferentes,
que depois decapitariam e enfiariam num saco. Elas estavam bem danificadas, mas não
pelo tempo — parecia que alguém tinha pegado as cabeças novas e as arrastado sobre
concreto áspero, embora eu não pudesse dizer se elas ainda estavam presas ao resto
da boneca naquele momento. Era assustador, com certeza, mas o sol estava brilhando
e éramos quatro trabalhando no caminhão naquele dia, então foi fácil rir disso. Era a
velha equipe: eu, David Atayah, Matthew Wilkinson e Alan Parfitt, que dirige — dirigia —
o caminhão.

O que ela fez, no entanto, foi marcar a Rodovia Lancaster 93 em nossas mentes como
“a Casa de Boneca”, já que passamos o resto do dia fazendo piadas sem graça sobre o
tipo de pessoa que devia morar lá. Eu já disse que o seu lixeiro sabe muito sobre você.
Bem, isso provavelmente não é verdade para a maioria das pessoas — atendemos
centenas de casas todos os dias e quem conseguiria acompanhar tantas pessoas?
Quem iria querer? No entanto, existem casas nas quais você aprende a ficar de olho; o
tipo de lugar que joga fora coisas estranhas ou às vezes até perigosas. Como eu disse,
nós provavelmente sabemos se você é alcoólatra, mas não é porque o observamos
obsessivamente ou nos preocupamos com a sua saúde. É porque garrafas estilhaçadas
e vidros quebrados são perigosos e você aprende a ficar de olho nas casas onde
provavelmente os encontrará. Eu li uma vez que a coleta de lixo é a segunda profissão
mais perigosa na Inglaterra. Não sei se acredito — eles disseram que o primeiro era a
agricultura — mas você sabe a sua cota de ferimentos, então aprende a manter os
olhos bem abertos e marcar mentalmente quais casas é melhor evitar.

Agora, depois daquilo, a Casa de Boneca se tornou uma dessas casas para a nossa
equipe. Não exatamente por algum perigo conhecido, mas quando alguém joga fora
uma lixeira cheia de coisas estranhas como aquela, você nunca sabe o que mais eles
podem decidir jogar. Além disso, o Alan, bem… Ele tinha um senso de humor meio
distorcido e adorava as cabeças de boneca. Quando contamos a ele, ele insistiu em
parar o caminhão e sair para dar uma olhada, então depois disso ele sempre fez
questão de nos pedir para ficar de olho na 93. E nós ficamos. Nas semanas seguintes,
quando chegávamos à 93, eu gastava um ou dois segundos a mais apenas para
verificar se havia algo estranho nas lixeiras, mas nada parecia fora do comum. Alan
ficou especialmente desapontado com aquilo, mas dificilmente era algo com o que
cismar, então deixamos isso de lado e continuamos com o trabalho do dia. Isso
continuou pelo que deve ter sido alguns meses, e todo o incidente das cabeças de
boneca não tinha mais entrado em pauta, exceto por algumas conversas interessantes
na usina de reciclagem onde, pra ser honesto, acho que ninguém acreditou em nós, ou
se acreditaram eles imediatamente tentaram superar com a sua própria história de
achados bizarros.

Era o início da primavera quando encontramos a próxima sacola estranha da Rodovia


Lancaster 93. Mais uma vez, era um saco de lixo preto sem rótulos colocado ao lado da
lixeira reciclável. Assim que o vi, eu soube que era outro. A forma dele era muito regular
para estar cheio de lixo normal. Ao pegá-lo, percebi que também estava leve demais.
Parecia não pesar quase nada, mas estava estufado com o que parecia ser um monte
de papel dentro. Olhei para os outros e disse que achava que tínhamos outra sacola
estranha. David e Matt começaram a discutir se deveríamos abri-la já que essa não
parecia ter um rasgo como a anterior, e ainda conversávamos sobre isso quando Alan
voltou para ver por que estávamos demorando tanto. Ele sabia onde nós estávamos, e
você podia ver em seus olhos que ele esperava que esse fosse o motivo do atraso. Um
olhar para o seu rosto e eu sabia que se nós não abríssemos, ele abriria.

Eu olhei em direção à casa verificando se não tinha ninguém observando, mas a 93


estava bem perto do início do nosso percurso, então ainda era muito cedo e todas as
luzes estavam apagadas. Não havia sinal de movimento, então, com muito cuidado, abri
a sacola. Dentro havia papel, como eu esperava. Parecia ser uma única tira de papel
grosso branco, talvez com uma polegada de largura. O papel era longo, tão longo que
parecia que a sacola inteira estava cheia apenas com um pedaço, embrulhado,
enrolado e amassado para caber dentro. Havia coisas escritas nele em outra língua,
acho que latim. Matt, que foi criado como católico e nunca calava a boca sobre isso,
disse que reconhecia aquilo e afirmou que era a Oração do Senhor, o Pai Nosso, escrita
de novo e de novo. Ele parecia muito abalado com aquilo, especialmente pelo fato de
que em certos pontos as bordas do papel pareciam ligeiramente chamuscadas, como se
tivesse sido passado sobre uma vela ou um isqueiro. Ele até parecia hesitante em jogá-
lo com o resto do lixo, mas não havia mais nada que pudéssemos fazer com aquilo,
então para o caminhão ele foi. Alan sorria pelo resto do turno, e havia um prazer naquilo
que francamente começou a me perturbar um pouco. Para mim aquilo foi um pouco
decepcionante depois das cabeças de bonecas, mas a forma como os outros reagiram
me deixou nervoso.

A terceira sacola foi a que realmente mudou as coisas. Quinze dias depois daquela com
o papel de oração dentro. Ao nos aproximarmos da 93, percebi que havia outra sacola
ao lado da lixeira. Os outros claramente também notaram, pois todos ficaram muito
quietos. As duas primeiras foram as únicas vezes em que havia sacos de lixo na casa
que não estavam dentro da lixeira, então não havia dúvidas em minha mente de que
aquilo seria mais lixo assustador. Alan desligou o motor quando paramos em frente à
casa e saiu. O que quer que estivesse nessa sacola, ele iria ver. Ela estava inchada,
assim como as outras, mas tinha uma aparência meio acidentada em sua superfície.
Todos nós a encaramos por vários segundos antes que eu percebesse que os outros
estavam esperando que eu a pegasse — eu peguei as outras, e aparentemente era
assim que as coisas eram feitas agora. Parecia quase um ritual.

Eu me aproximei e a levantei do chão. Era mais pesada do que a última e quando se


movia fazia um som, como areia ou cascalho se mexendo, ou talvez um chocalho.
Comecei a carregá-la em direção aos meus colegas para abri-la, quando
acidentalmente prendi o fundo dela no muro baixo de tijolos no final do pequeno jardim
da frente. Já cheio quase a ponto de estourar, o saco se rasgou facilmente.

Do buraco recém-rasgado, choveram dentes. Centenas, milhares de dentes; eles


desciam escorrendo por uma cachoeira de branco, creme e amarelo, quicando ao
atingir o pavimento e aos poucos formando uma pilha de tamanho impressionante.
Quando o saco estava finalmente vazio nós apenas ficamos parados ali em silêncio,
encarando a montanha de dentes que agora estava no chão diante de nós. Eles
pareciam dentes humanos para mim, mas eu não era exatamente um especialista e
com certeza não queria verificar mais de perto. Finalmente, David quebrou o silêncio
vomitando ruidosamente em um ralo perto dali e eu me afastei da pilha horrível. Até
Alan pareceu abalado com isso — suponho que algumas coisas sejam desconcertantes,
por mais sombrios que sejam seus interesses. Nós ligamos para a polícia.

Isso é outra coisa que as pessoas sempre esquecem sobre os lixeiros — somos
perfeitamente capazes de chamar a polícia se virmos coisas obviamente ilegais sendo
jogadas fora. Normalmente a gente não se incomoda se é só algo pequeno, mas isso…
para isso chamamos a polícia. Eles chegaram em um tempo surpreendentemente bom
e eu acho que eles estavam ainda mais assustados do que nós. Um deles coletou
nossos depoimentos enquanto a outra foi até a casa para verificar os moradores e ver
se eles sabiam qualquer coisa sobre os dentes. Quando a policial bateu na porta todos
nós nos esforçamos para ver melhor o que a cumprimentava. Depois de tudo isso não
tinha como perdermos a chance de realmente dar uma olhada nos residentes da
Rodovia Lancaster 93. Eventualmente a porta se abriu e uma velha estava lá, piscando
sob o sol da manhã e claramente um pouco assustada ao ver a polícia. Nem é preciso
dizer que a senhora e seu marido não faziam ideia de nenhuma das sacolas estranhas
que estavam surgindo em seu lixo e pareceram realmente perturbados quando
souberam dos detalhes. A polícia passou uns bons dez minutos fazendo o possível para
recolher todos os dentes, e nós fomos mandados embora. Não tenho ideia do que a
investigação revelou, se é que revelou algo. Eu certamente nunca mais fui contatado
por eles, e se algum dos outros foi, eles não mencionaram.

E por um tempo, foi isso. Ficávamos de olho sempre que descíamos a Rodovia
Lancaster, mas não encontramos mais sacos de lixo sinistros. Pensei que talvez o
envolvimento da polícia tivesse assustado quem estava deixando eles. Talvez a polícia
tenha pegado o culpado e simplesmente não tenha nos contado.

Comecei a notar, porém, que Alan não andava bem. Ele se atrasava para os turnos com
frequência e quando finalmente chegava lá estava exausto e mal-humorado, surtando
com todo mundo e espantando rudemente qualquer pessoa que perguntasse sobre sua
saúde ou como ele estava. Ele parecia ainda pior sempre que nos aproximávamos do
final da Rodovia Lancaster, às vezes acelerando um pouco o caminhão e nos fazendo
correr para acompanhá-lo. Eventualmente, depois que tropecei no meio-fio e torci meu
tornozelo enquanto corria, eu o confrontei — disse a ele que o que quer que estivesse
acontecendo, ele poderia falar sobre ou superar aquilo, mas que ele claramente
precisava lidar com algo. Ele ficou muito quieto e disse que vinha observando a número
93 algumas noites. Disse que queria ver quem estava deixando essas coisas, que ele
precisava saber.

Eu não sei o que esperava. Problemas em casa, talvez, ou depressão — mas isso me
pegou de surpresa. Eu disse a ele que era uma péssima ideia, que se a polícia ainda
estivesse investigando era bem provável que pegassem ele como culpado e mesmo
que não o fizessem, o casal de senhores da 93 poderia facilmente fazer com que ele
fosse preso por assédio ou perseguição. Alan acenou com a cabeça e concordou
comigo enquanto eu falava, mas pude ver que ele não estava ouvindo. Ele apenas
disse de novo que precisava saber, que tomaria cuidado, como se aquilo fosse me
tranquilizar. Não funcionou, mas eu pude ver que não iria convencê-lo a desistir e
acabamos em um silêncio desconfortável.

O que eu não disse é que quase fiz a mesma coisa uma ou duas vezes. Havia algo
sobre isso, acima de qualquer outra coisa que eu tinha encontrado, que… Não sei. Me
atraiu quase tanto quanto me enojou. Quase, mas não o suficiente para fazer qualquer
coisa, e se eu precisasse de mais alguma coisa para me convencer de que deixar isso
pra lá era a decisão certa, eu só precisava olhar para o Alan. Conforme o tempo
passava, as bolsas sob seus olhos se aprofundavam, e eu o observei tomar meia dúzia
de bebidas energéticas ao longo de uma manhã, só para aguentar o turno. Eu poderia
ter dito algo ao nosso gerente, mas mesmo assim Alan ainda era meu amigo e eu não
queria ser a pessoa que o colocaria em qualquer tipo de problema. Eventualmente,
porém, chegou a um ponto crítico de qualquer maneira. Alan pegou no sono ao volante
do caminhão e o levou em direção a um carro estacionado. Ninguém se feriu e o
caminhão andava devagar demais para causar algum dano real, mas aquilo foi o
suficiente para que ele fosse demitido. Ficamos tristes ao vê-lo partir, mas pra ser
honesto ele se tornou bastante desagradável de se estar por perto no final, e ninguém
derramou lágrimas de verdade por isso. Ganhamos um novo membro na equipe, um
garoto chamado Guy Wardman, e a vida continuou em paz. Por um tempo, pelo menos.

Então, no dia 8 de agosto do ano passado, às duas e nove da manhã, fui acordado por
uma mensagem de texto de Alan. Dizia “ENCONTREI ELE”. Mandei uma mensagem de
volta imediatamente — o que ele tinha encontrado? A pessoa que estava deixando as
sacolas? Trouxeram outra? Sem resposta. Mandei uma mensagem para Alan
novamente perguntando se ele estava bem. Enviei essa mensagem várias vezes, mas
nunca tive resposta. Tentei ligar para ele, mas ninguém atendeu. À medida que os
minutos se estendiam para horas, a preocupação que vinha crescendo no meu
estômago se transformou em uma certeza sombria e eu sabia que Alan havia partido.
Eu também sabia que precisava ir até a Rodovia Lancaster 93 e ver por mim mesmo.
Peguei meu casaco e saí noite afora.

Andei devagar, com certa relutância, então o céu estava começando a clarear quando
eu cheguei. Sabia o que encontraria quando chegasse lá e eu estava certo. Não havia
sinal de Alan ou de quem quer que ele pudesse ter visto. No entanto, havia um novo
saco de lixo no lugar de sempre. Estava cheio e desta vez a parte superior fôra
amarrada com uma fita verde-escura, arrumada em um laço como um presente de Natal
antiquado. Ele estava inchado da mesma forma que o último.

Peguei o saco, que no fim das contas era bem leve, e tirei o laço. Ao abri-lo vi o branco
se deslocar e por um segundo tive certeza de que eram mais dentes. Olhando mais de
perto, porém, vi a verdade: amendoins de espuma. Amendoins de poliestireno para
embalagem. O suficiente para encher o saco. Quase me senti aliviado até que percebi
que havia mais alguma coisa ali, algo que o tornava mais pesado do que um saco de
isopor deveria ser. Fechei os olhos e enfiei a mão, esperando encontrar algo  horrível ali
dentro. Em vez disso, minha mão se fechou em torno de metal frio e tirei um pedaço do
tamanho de um punho de… Acho que devia ser cobre ou bronze, e foi esculpido
grosseiramente na forma de um coração, mas como um coração de verdade, não como
um do Dia dos Namorados. Estava frio ao toque como se tivesse acabado de sair de um
freezer, e quase grudou na minha pele. Gravado na lateral estava o nome “Alan Parfitt”,
as letras esculpidas com a precisão de uma máquina. Esse foi o último sinal de Alan
que eu encontrei. Até onde eu sei ele nunca mais foi visto.

Dei o pedaço de metal para um amigo meu que trabalha na lixeira hospitalar e me deve
um favor. Pedi a ele para jogá-lo em uma remessa, já que os incineradores médicos
queimam mais quente do que qualquer um que eu tenha acesso, e achei que esse era o
melhor jeito de me livrar daquilo adequadamente. Ainda trabalho na rota da Rodovia
Lancaster, mas desde então não houve mais sacolas estranhas aparecendo na 93. Na
maior parte do tempo eu apenas tento esquecer sobre isso.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
É bom ter um depoimento em que a maioria dos detalhes seja facilmente verificável. Ele
vem com depoimentos de apoio mais curtos de David Atayah e Matthew Wilkinson
confirmando o conteúdo das três primeiras sacolas, bem como os detalhes do
comportamento de Alan Parfitt antes de sua rescisão com o governo local. Em um
exemplo atípico de trabalhar com a tecnologia moderna, minha predecessora teve o
bom senso de fazer uma cópia das mensagens da última conversa entre Alan Parfitt e o
Sr. Woodward.

Eu fiz Martin conduzir uma entrevista de acompanhamento com o Sr. Woodward na


semana passada, mas não foi nada esclarecedora. Aparentemente não apareceram
mais sacos na número 93, e nos anos que se seguiram ele descartou muitos dos
aspectos mais estranhos de sua experiência. Eu não esperava muito, já que o tempo
geralmente deixa as pessoas inclinadas a esquecer o que preferem não acreditar, mas
pelo menos tirou Martin do Instituto por uma tarde, o que é sempre um alívio bem-vindo.

Sasha teve mais sorte acompanhando os antigos relatórios policiais. Alan Parfitt foi
relatado como desaparecido por seu irmão Michael em 20 de agosto de 2009, e sua
localização permanece desconhecida. A sacola de dentes também é comprovada pelos
boletins dos policiais Suresh e Altman, embora não possam fornecer maiores detalhes
já que nunca fizeram uma prisão ou mesmo localizaram suspeitos. O relatório médico
sobre os dentes nos dá um detalhe intrigante: os dentes foram confirmados como
humanos, mas mais do que isso… Pelo que o examinador foi capaz de determinar…
Eles estavam todos em diferentes estágios de cárie e não correspondiam a nenhum
registro dentário disponível, mas todos os dois mil setecentos e oitenta eram
exatamente o mesmo dente.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Timothy Hodge a respeito de seu encontro sexual com Harriet Lee e sua
morte subsequente. Depoimento original prestado em 9 de dezembro de 2014.
Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu não sei o que aconteceu, digo… Tenho certeza de que ela está morta, mas eu não…

Deixa eu começar do começo. Eu trabalho como designer. Faço principalmente


freelance, com mais alguns serviços regulares com empresas que gostam do meu
trabalho. Eu também tenho… Bem, tinha o luxo de um apartamento que consegui
arrumar para poder fazer a maior parte do meu trabalho lá. Isso significa que, quando
tenho um serviço grande, passo um bom tempo sem sair de casa. Não é o emprego
mais estável, mas fiquei muito bom em equilibrar as coisas, tirando uns dias para
descansar depois de um grande projeto, talvez até uma semana, antes de começar o
próximo. Acho importante usar esse tempo para relaxar e extravasar um pouco, já que
muitas vezes acabo perdendo o fim de semana todo quando tenho trabalho. Beber e
dançar são meus métodos de relaxamento favoritos, geralmente em Camden ou na Old
Street, e embora eu admita que não dispenso drogas ocasionais nas festas, juro que
estava completamente sóbrio quando tudo isso aconteceu.

Naquela noite em particular, faz mais ou menos três semanas agora, eu tinha acabado
de terminar um trabalho grande para um dos meus clientes mais exigentes e queria me
acabar um pouco. Infelizmente, nenhum dos meus amigos estava livre para se juntar a
mim – o que não foi uma surpresa já que era uma quinta-feira no meio de novembro –
então não valia a pena ir até a cidade. Felizmente eu moro em Brixton, o que significa
que tenho algumas boas opções praticamente à minha porta, e aconteceu de eu saber
que o Dogstar organizava uma balada noturna bem aceitável às quintas-feiras. Decidi
entrar nessa e me divertir.

Eu me diverti no final, apesar da multidão e da música, não me sentia tão selvagem


quanto esperava, mas bebi um pouco e dancei bastante. Ok, talvez eu não estivesse
tão sóbrio como disse antes, mas certamente não me chamaria de bêbado. Bem, eu
não estava particularmente pensando em transar naquela noite, mas sei que não sou
um cara feio e moro por ali, então estou sempre alerta, digamos, para qualquer
possibilidade de encontrar alguém. Era quase meia-noite quando a vi. Ela era magra e
tinha aquela aparência de estudante que poderia dar a ela qualquer idade entre
dezenove e vinte e oito. O cabelo dela era comprido, tingido de vermelho-henna
profundo, e ela usava meia-calça rasgada e muito delineador. Exatamente o tipo de
garota que eu curto.

Ela estava à espreita na pista de dança e eu não perdi tempo para tentar chamar sua
atenção. Foi mais difícil do que eu imaginei, entretanto, pois sua atenção parecia estar
mais focada nas portas. No começo eu pensei que ela estava esperando por alguém,
mas quanto mais eu a observava, mais eu via o nervosismo em seus olhos, talvez até
medo. Foi nessa hora que ela me notou, e nossos olhos só se encontraram, sabe? Ela
se aproximou e começamos a dançar juntos. Ela era excelente, muito melhor do que eu,
e se movia em uma espécie de ritmo suave e ondulante que fez a palavra “contorcer”
saltar de repente em minha mente.

Ofereci uma bebida, mas ela recusou pedindo por água no lugar, que peguei
alegremente. Eu não conseguia ouvi-la direito por causa da música, mas você não vai a
essas baladas para conversar. Porém eu ouvi em alto e bom som quando ela se
inclinou e me perguntou se eu a queria. Eu disse sim. Pensando agora, foi estúpido,
claro que foi, mas ela era linda e havia algo na maneira como ela se movia que
realmente me pegou. Ela sorriu quando eu disse sim e, por um momento, pareceu
menos um sorriso de expectativa e mais um sorriso de alívio.

Fora do Dogstar estava muito mais silencioso e tivemos a oportunidade de conversar.


Ela me disse que se chamava Harriet e ficou bem contente em saber que eu morava na
região já que era uma noite fria. Ela segurou meu braço com força enquanto
caminhávamos de volta para a minha rua. A princípio pensei que era para se aquecer,
pois ela não tinha casaco e duvidei que a jaqueta leve que ela usava tivesse muito
isolamento. Quando olhei para ela, porém, vi que ela estava olhando ao redor da
mesma maneira que olhava para a porta antes. Seu nervosismo era ainda mais óbvio
agora e ela olhava atentamente para cada rua que passávamos. Perguntei se havia
algo de errado e tentei dizer que morava em um bairro tranquilo, ela estava
completamente segura, esse tipo de coisa. Ela balançou a cabeça e concordou, mas
ainda parecia nervosa.

Quando estávamos na metade do caminho, ela começou a coçar os braços. A princípio


pensei que ela estava apenas esfregando-os para se aquecer, mas depois de alguns
segundos, ficou claro que ela os estava coçando com bastante força, deixando marcas
vermelhas fortes onde suas unhas cravavam. Eu estava começando a suspeitar que
algo estava errado e perguntei a Harriet se havia algum problema, algo que eu devesse
saber. Ela apenas insistiu que voltássemos para a minha casa o mais rápido possível.
Eu concordei, pois imaginei que qualquer que fosse o problema, poderíamos lidar
melhor com ele no meu apartamento do que no frio das ruas à meia-noite.

Quando chegamos ao meu prédio, ela estava olhando por cima do ombro quase em
pânico. Segui o olhar dela mas não consegui ver nada, então rapidamente abri a porta
da frente e a deixei entrar. Ela pareceu relaxar um pouco quando estávamos no
corredor relativamente quente com a porta bem fechada atrás de nós. Meu apartamento
ficava no terceiro andar e embora eu tenha dito que não moro numa área ruim, eu tinha
uma fechadura extra na minha porta. Harriet visivelmente relaxou quando a viu, e ainda
mais quando foi fechada. Os olhares nervosos e o coçar nos braços pararam quase
imediatamente. Ofereci a ela um café ou chá para se aquecer. Ela apenas pediu um
copo d'água, disse que não estava se sentindo muito bem. Nós nos sentamos e, assim
que peguei água para ela e preparei um café para mim, conversamos um pouco. Meus
instintos estavam certos – ela era uma estudante, estudava arte. Ela disse que não
estava em Londres há muito tempo, que era de Salisbury, e ultimamente estava
sendo… difícil. Quando ela deu aquela pausa, vi em seus olhos indícios do pânico que
vira na rua.

Pedi que ela me contasse o que havia de errado, disse que algo claramente a
incomodava e que gostaria de ajudar. Ela ficou muito quieta por um momento e então
assentiu. Ela me disse que tinha sido assaltada anteontem, embora a maneira como
disse a palavra “assaltada” soasse como se ela não tivesse certeza. Eu apenas
balancei a cabeça e deixei ela continuar falando. Ela morava em Archway, em uma rua
chamada Elthorne Road, e estava voltando para casa por volta da meia-noite quando
viu uma mulher deitada de bruços na calçada. Esta mulher usava um vestido vermelho
longo e Harriet disse que podia vê-lo se mexendo sob o brilho laranja dos postes de luz,
como se algo se movesse por baixo dele. Harriet estava perto de casa, a qual ela
dividia com vários outros alunos, então ela disse que talvez tenha sido menos
cuidadosa do que deveria e se aproximou a chamando e perguntando se a mulher
precisava de ajuda. Não houve resposta, mas todos os movimentos pararam e o vestido
vermelho ficou imóvel. De repente, muito mais rápido do que Harriet esperava, a mulher
se levantou em um salto e correu direto em sua direção, agarrando-a pelos ombros e
empurrando-a contra uma parede próxima.  Harriet disse que aconteceu tão rápido que
não olhou direito para a mulher além do vestido, cabelos pretos compridos e
emaranhados e olhos grandes e fixos. A mulher rosnou algo para ela, mas Harriet não
conseguiu entender. Ela tentou perguntar o que a assaltante queria, mas quando o fez
sentiu uma dor repentina no estômago, como se tivesse sido apunhalada, que foi
exatamente o que ela pensou que tivesse acontecido. Ela me disse que caiu no chão e
perdeu a consciência quase imediatamente.

Quando ela acordou, a mulher de vestido vermelho havia sumido. Harriet esperava se
encontrar deitada em uma poça de sangue do ferimento na barriga, mas não conseguiu
encontrar nenhum vestígio de qualquer ferimento em qualquer lugar, exceto por alguns
joelhos ralados onde ela havia caído no chão. Ela cambaleou para casa e tentou dormir.
Desde então, ela disse que via aquela mulher em todos os lugares que ia. Ela sentia
como se estivesse sendo seguida o tempo todo e não podia ficar em sua própria casa
porque sempre que estava lá era como se tivesse um peso a puxando para baixo, sua
pele coçava tanto que era quase insuportável. Harriet aparentemente tentou  ir à polícia,
mas disse que quando se aproximou da delegacia foi tomada por uma náusea tão forte
que vomitou na calçada. Ela havia tentado o hospital, mas eles apenas disseram que
não havia nada evidente e que marcasse uma consulta com o médico dela. Ela tinha
passado os últimos três dias apenas vagando por cafés, bares e clubes, qualquer lugar
onde houvesse gente o suficiente para que ela se sentisse segura. Ela não sabia o que
fazer.

A essa altura, Harriet estava chorando e eu me senti um completo idiota por ter tocado
no assunto. Murmurei algumas desculpas. Não sei o que eu disse; só estava tentando
fazê-la se sentir melhor. Não tenho certeza do que eu esperava que acontecesse, mas
com certeza não esperava que ela me beijasse naquele momento. Eu sei, eu sei, ela
estava vulnerável e eu me sinto um… Mas juro que não estava tentando tirar vantagem.
Perguntei várias vezes se ela tinha certeza, mas ela apenas balançou a cabeça e me
arrastou para o quarto. Enfim… Nós transamos. Não tenho muito mais a dizer sobre
essa parte. O importante é o que aconteceu depois.

Enquanto estávamos deitados exaustos na cama, deitei minha cabeça em seu ombro.
Eu estava prestes a dizer alguma coisa, mas antes que eu pudesse, senti algo se
mover. É difícil descrever exatamente, mas não foi seu ombro que se mexeu – foi algo
dentro dele, sob a pele. Se contorceu levemente contra minha bochecha. Eu pulei da
cama, mas a única indicação de que ela notou algo errado foi ela estendendo a mão e
distraidamente coçando onde eu estava deitado. Comecei a relaxar, deitar novamente;
talvez eu tivesse só imaginado. Mas, naquele momento, ela subitamente se dobrou e
gemeu de dor. Seus olhos se arregalaram e ela apertou o estômago com força. Tentei
ver o que havia de errado, perguntei se poderia ajudar, mas ela simplesmente me
empurrou. Eu não tinha ideia do que fazer, então corri para fora em direção ao
banheiro. Minha mente estava ficando completamente em branco e eu não conseguia
me lembrar se tinha algum analgésico ou remédio para indigestão. Ou eu deveria
chamar uma ambulância? Eu não tinha certeza, e acabei vasculhando meu armário de
remédios, procurando por… Não sei, qualquer coisa que pudesse ajudar. Eu ainda
podia ouvir Harriet gemendo de agonia no quarto e tinha acabado decidir chamar uma
ambulância quando ouvi algo que me parou de repente.

É difícil descrever precisamente o som que veio do quarto. O mais próximo que eu
poderia chegar seria dizer que parecia… um ovo sendo jogado num chão de pedra; uma
espécie de baque molhado e crepitante. E então, silêncio. Harriet não estava mais
fazendo barulho. Eu lentamente, muito lentamente, caminhei de volta para o quarto. A
porta estava aberta mas eu não tinha acendido a luz, então não dava para ver muita
coisa lá dentro, exceto escuridão. Eu poderia ter acendido a luz do corredor, eu acho,
mas… Algo ali dentro me fez pensar que eu não queria olhar o que tinha naquele
quarto. Eu parei na soleira. A única iluminação vinha de uma fina faixa de luz que
entrava pela fresta das cortinas de um poste de luz da rua.

Você tem que me desculpar. O que vi é difícil de colocar no papel, mas é a única
maneira de explicar por que eu tive que fazer aquilo. Por que colocar fogo no meu
apartamento e ficar pelado nas ruas no inverno até os bombeiros chegarem era muito
melhor do que passar mais um segundo naquele lugar. E sim, eu admito que eu mesmo
acendi o fogo. Mostre para a polícia se quiser, eu só preciso que alguém entenda.

O quarto estava irreconhecível quando voltei. Havia uma forma na cama onde Harriet
estava, mas não era mais ela. Eu mal conseguia distinguir qualquer coisa minimamente
humana na pilha de carne descaroçada e torcida que agora restava. A cama em si
estava manchada e brilhante com um fluido escuro que pingava dos lençóis e caía no
chão. Mas o que realmente me enojou, o que me fez fugir como fugi, foi o que se movia
e se contorcia em cima de tudo isso. Eles cobriam todas as superfícies: o chão, a cama,
o que costumava ser Harriet, até o teto. Um tapete espesso e movediço de vermes
pálidos se contorcendo.

O apartamento queimou por muito tempo.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Esta história é preocupante. Não por causa da experiência do sr. Hodge, embora eu
tenha certeza de que foi muito perturbadora. Se fosse verdade, claro. Na realidade, o
relatório policial que Sasha conseguiu adquirir levanta dúvidas sobre grande parte de
sua história. Embora o apartamento do Sr. Hodges realmente tenha pegado fogo em 20
de novembro do ano passado, aparentemente não havia nenhuma evidência de
incêndio criminoso e nenhum resto humano encontrado, apesar do fato de que o fogo
foi controlado muito antes de qualquer dano significativo ser feito à estrutura do edifício.
Eles realmente encontraram alguma matéria orgânica carbonizada no quarto, mas foi
testada e aparentemente não era humana, embora o relatório não liste se a fonte
chegou a ser determinada.

Eu admito que isso até se conecta com o desaparecimento relatado de Harriet Lee, uma
estudante de Roehampton que foi dada como desaparecida logo após este depoimento
ter sido prestado. Ela parece corresponder à descrição dada aqui. Ainda assim, não é
isso que realmente me preocupa, embora obviamente seja uma trágica perda, etc, etc.

Não, o que acho bastante alarmante é que, se a lembrança do Sr. Hodge da história de
Harriet estiver correta e ela foi atacada por uma mulher de vestido vermelho em
Archway… Então isso corresponde à descrição e à última localização conhecida de
Jane Prentiss. Não consigo encontrar nenhuma evidência de que minha antecessora
tomou medidas de acompanhamento para este depoimento, então tomei a dianteira e
reportei o Sr. Hodge ao Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças. Não
conseguimos localizá-lo para solicitar uma entrevista de acompanhamento, e se ele
teve relações sexuais com uma das vítimas de Prentiss eles precisarão lidar com ele o
mais cedo possível. Só espero que já não seja tarde demais.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento do Sargento Clarence Berry a respeito de seu tempo servindo com Wilfred
Owen na Grande Guerra. Depoimento original prestado em 6 de novembro de 1922.
Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Muita gente me chama de sortudo, sabe. Não foram muitos os que saíram da guerra
inteiros, e se você desconsiderar as queimaduras, foi exatamente o que eu fiz. Menos
ainda os que passaram os quatro anos na linha de frente, como eu. Nunca fui enviado
para tratamento devido a choque elétrico ou lesão, e mesmo meu confronto com um
lança-chamas alemão acabou comigo em um hospital da linha de frente em Wipers. Eu
ainda estava naquele hospital de campanha quando a batalha começou no Somme,
então suponho que também tive sorte. Quatro anos… Às vezes, sinto que sou o único
que viu todo o show do início ao fim, como se eu sozinho conhecesse a Grande Guerra
em toda sua glória terrível. Mas no fundo sei que essa honra, tal como é, tem que ir
para o Wilfred. Você não imaginaria isso lendo seus poemas, mas, ao todo, seu tempo
na linha de frente não foi muito mais do que um ano. Mesmo assim, ele conheceu a
guerra de uma maneira que eu nunca conheci. Ele é certamente a única pessoa que eu
conheço que já viu O Flautista.

Cresci pobre nas ruas de Salford, então entrei para o exército assim que tive idade
suficiente. Sei que você já ouviu histórias de rapazes corajosos que se inscreveram aos
14, mas isso foi antes do início da guerra, então não havia tanta demanda por mão de
obra e os recrutadores eram muito mais rigorosos em garantir que os alistados fossem
maiores de idade. Mesmo assim, eu era quase magro demais para eles me aceitarem e
mal tinha o peso mínimo necessário. Mas no final eu consegui passar e, após meu
treinamento, fui designado para o Regimento de Manchester, 2º Batalhão, e não
demorou muito para que fôssemos enviados para a França com a Força Expedicionária
Britânica. Vocês parecem pessoas instruídas, então tenho certeza de que leram nos
jornais como aquilo terminou. Logo, porém, as trincheiras foram cavadas e o tédio
começou a se instalar. Bem, entenda que o tédio é bom quando as alternativas são
bombas, franco-atiradores e ataques de gás, mas passar meses sentado em um buraco
alagado no chão, torcendo para que seu pé não comece a inchar, bem… existe um tipo
de terror silencioso sobre isso.

Wilfred chegou para nós em julho de 1916. Não estou intimamente familiarizado com
sua história, mas ele claramente veio de uma linhagem boa o suficiente para ser
designado como Segundo-Tenente estagiário. Eu era Sargento na época, então tinha a
tarefa de dar a ele o tipo de conselho e apoio que um oficial novo precisa de um
suboficial com dois anos de lama sob as unhas. Não obstante, devo admitir que não
gostei do homem quando o conheci — ele subiu de posto e ultrapassou a mim e à
maioria dos outros na trincheira, tanto em termos militares quanto sociais, e parecia
tratar o assunto com um desprezo desatento. Há uma espécie de entorpecimento que
você desenvolve depois de meses ou anos de bombardeio, um vazio deliberado que
acho que o ofendeu. Ele foi infalivelmente educado, muito mais do que eu estava
acostumado na lama de Flandres, onde as conversa eram grosseiras e desoladas por
natureza. Ainda assim, sob essa polidez, eu podia senti-lo rejeitar de imediato qualquer
sugestão que eu desse ou relatório que eu fizesse. Eu não me surpreendi quando ele
mencionou que escrevia poesia. Para ser totalmente honesto, eu acreditava que ele
estaria morto em uma semana.

Para crédito de Wilfred, ele sobreviveu quase um ano antes que algo horrível
acontecesse com ele, e na primavera seguinte arrisco dizer que quase poderíamos nos
chamar de amigos. Ele vinha escrevendo poesia durante esse tempo, é claro, e
ocasionalmente a lia para alguns dos homens. Eles geralmente gostavam, mas
pessoalmente eu achava terrível — havia um vazio nela, e cada vez que ele tentava
colocar a guerra em palavras ela parecia banal, como se não existisse alma no que ele
tinha a dizer. Ele costumava falar sobre suas aspirações literárias e como ansiava por
ser lembrado, para imortalizar o que essa guerra realmente era. Se eu fosse propenso a
voos da imaginação, me atreveria a dizer suas palavras eram prestigiosas. Quando
falava assim, ele tinha o estranho hábito de parar no meio da conversa e inclinar a
cabeça, como se sua atenção tivesse sido atraída por um som distante.

O degelo da primavera havia acabado de passar quando aconteceu, e estávamos na


ofensiva. Nosso batalhão estava perto de Savy Wood quando as ordens chegaram —
devíamos atacar a Linha Hindenburg. Nosso alvo era uma trincheira no lado oeste de
Saint Quentin. Foi uma marcha silenciosa. Mesmo nesse ponto normalmente ainda
havia alguma empolgação quando chegavam as ordens para a ação, mesmo que
geralmente fosse reprimida por aquele medo sufocante que você tinha quando esperava
pelo apito. No entanto, naquela manhã havia algo diferente no ar, um pavor opressor.
Já havíamos feito esse ataque antes e sabíamos que a mudança do vale nos expôs ao
fogo da artilharia. E a artilharia sempre foi a parte mais assustadora disso tudo pra mim.
Você poderia se esquivar de baionetas, se abaixar para fugir das balas, até mesmo
bloquear o gás se tivesse sorte, mas a artilharia? Tudo o que você podia fazer contra a
artilharia era rezar.

Eu pude ver que até o Wilfred sentiu. Ele geralmente falava muito antes do combate.
Mórbido, mas sempre tagarela. Naquela manhã ele não disse uma palavra. Tentei falar
com ele e animá-lo, como é o dever do Sargento, mas ele apenas ergueu a mão para
me calar e virou a cabeça para ouvir. Na época eu não sabia o que ele estava ouvindo,
mas o manteve em silêncio. Mesmo quando alcançamos o cume da colina e o resto de
nós tentou abafar o estrondo ensurdecedor da artilharia com nosso próprio grito de
ataque, mesmo naquele momento ele não fez nenhum som.

O solo tremeu com o impacto dos projéteis de morteiro e corri de trincheira para cratera
para trincheira, mantendo a cabeça baixa para evitar as balas. Enquanto corria, senti
uma dor aguda no tornozelo e caí para a frente na lama. Olhando para baixo vi que
havia sido pego por um pedaço de arame farpado, meio escondido pelo solo úmido
remexido. Senti uma onda de pânico começar a tomar conta de mim e tentei
freneticamente remover o arame da minha perna, mas só consegui arranhar bem a
minha mão. Olhei em volta desesperadamente para ver se havia mais alguém por perto
que pudesse ajudar. E ali, a menos de vinte metros de mim, vi Wilfred de pé, o rosto
inexpressivo e a cabeça balançando em um ritmo desconhecido. E então eu ouvi —
gentilmente passando sobre os estrondos de morteiros e o barulho de armas e os
gemidos de homens morrendo, uma melodia fraca e aguda. Eu não saberia dizer se era
gaita de fole, gaita de pã ou algum instrumento que eu nunca tinha ouvido antes; mas
sua melodia assobiando era inconfundível e me atingiu com uma tristeza profunda e um
medo suave e rastejante.

E naquele momento eu sabia o que estava prestes a acontecer. Olhei para Wilfred e
quando os nossos olhos se encontraram eu vi que ele também sabia. Eu ouvi um único
tiro, muito mais alto do que qualquer um dos outros de alguma forma, e o vi ficar rígido,
os olhos arregalados. E então a explosão do morteiro o atingiu e ele se perdeu em uma
erupção de lama e terra. Tive muito tempo para lamentar por ele, deitado naquele
buraco horrível até o anoitecer, quando pude libertar minha perna o mais silenciosa e
suavemente possível antes de rastejar de volta para nossa trincheira. Foi devagar; toda
vez que uma explosão acontecia eu só conseguia ficar imóvel e orar, mas o bom Deus
achou justo me deixar alcançar nossa linha relativamente ileso. Fui rapidamente
mandado para o hospital de campanha, que estava sobrecarregado como sempre. Eles
não tinham muitos remédios ou funcionários de sobra, e claramente nenhuma cama
disponível, então eles lavaram minhas feridas com iodo, fizeram curativos e me
mandaram embora. Me disseram para voltar se necrosasse. Eu dei uma olhada ao
redor do lugar para ver se eu poderia encontrar Wilfred, mas não havia sinal dele em
lugar nenhum. Perguntando pela trincheira ninguém o havia visto retornar entre os
feridos, então comecei a me reconciliar com o fato de que ele estava morto. Ele não foi
o primeiro amigo que perdi para os alemães e nem mesmo o primeiro que vi morrer na
minha frente, mas algo sobre aquela música estranha que ouvi momentos antes
daquela explosão permaneceu em minha mente e me deixou pensando em Wilfred em
muitos momentos de silêncio.

Foi provavelmente cerca de uma semana e meia depois que ouvi gritos no final da
trincheira. Era um grupo de patrulha que estava fazendo o reconhecimento do rio que
fluía perto de Savy Wood. Aparentemente, eles encontraram um oficial ferido deitado
em um buraco de granada e o trouxeram de volta. Eu me aproximei e fiquei surpreso ao
ver que era o Wilfred. Seu uniforme estava rasgado e queimado, ele estava coberto de
sangue e seus olhos tinham uma expressão distante, mas ele estava definitivamente
vivo. Cavalguei com ele de volta ao hospital de campanha, junto com o Cabo do
esquadrão que o havia encontrado. Aparentemente ele estivera deitado naquele buraco
por dias, desde a batalha. Eles o encontraram lá, quase morto pela desidratação e
fadiga, coberto com o sangue de outro soldado. Qualquer que seja o bombardeio que
criou o buraco no qual ele ficou, claramente aniquilou alguma outra pobre alma e foi em
seus restos sangrentos que Wilfred ficou deitado por quase duas semanas. Esperei do
lado de fora da tenda do hospital enquanto ele estava sendo tratado. O médico saiu
logo, uma expressão grave no rosto. Ele me disse que o tenente estava fisicamente
ileso — algo que eu considerei na época nada menos que um milagre — mas que ele
teve um dos piores casos de neurose de guerra que o médico já havia visto e teria de
ser enviado de volta à Inglaterra para se recuperar. Perguntei se podia vê-lo e o médico
assentiu, embora tenha me avisado que Wilfred não havia dito uma palavra desde que
tinha sido trazido.

Assim que entrei na tenda médica fui dominado pelo doce aroma de carne em
decomposição e pelos gemidos de dor e desespero. O cheiro forte do desinfetante
trouxe de volta memórias desagradáveis de ataques de gás de cloro. Ainda assim,
acabei traçando meu caminho até a cama de Wilfred e, com certeza, lá estava ele —
olhando silenciosamente para o mundo com uma intensidade que me assustou. Segui
seu olhar até uma cama próxima e lá vi um soldado que não reconheci. Sua testa
estava escorregadia de suor e seu peito subia e descia rapidamente, e então parou
abruptamente. Percebi com surpresa que um homem tinha acabado de morrer e
ninguém havia notado, exceto Wilfred.

Tentei puxar conversa, dizer algumas gentilezas sem sentido — “Como você tá, cara?”
“Ouvi dizer que você ficou por um triz.” “Que bom que você encontrou um buraco de
granada.” Todas essas bobagens. Nada disso pareceu estimular qualquer reação dele;
em vez disso, ele se virou para mim e, após um longo tempo, simplesmente disse: “Eu
conheci a guerra”. Eu disse a ele que com certeza tinha conhecido, que poucos se
safam de algo como aquilo e ficar tanto tempo deitado naquele buraco, cercado por
toda aquela morte… Bem, ele definitivamente havia conhecido a guerra e era um
negócio podre. Mas Wilfred apenas balançou a cabeça como se eu não tivesse
entendido e, para ser honesto, eu estava começando a sentir que realmente não tinha,
e ele me disse mais uma vez que “conheceu a guerra”. Ele disse que não era mais alta
do que eu. Me ocorreu que talvez ele estivesse descrevendo alguma miragem horrível
que o assombrou enquanto estava deitado naquele lugar miserável, e pedi que ele me
contasse como a guerra era.

Lembro exatamente o que ele disse. Ele me disse que ela tinha três faces. Uma para
tocar sua flauta de osso entalhado, uma para gritar seu grito de batalha moribundo e
outra que não abria a boca, porque quando abria, sangue e terra encharcada jorravam
como uma cachoeira. Aqueles braços que não tocavam a flauta seguravam lâminas,
armas e lanças, enquanto outros erguiam as mãos em uma súplica fútil de misericórdia,
e um deles em uma saudação firme. Usava um casaco esfarrapado de lã que era verde
oliva onde não estava manchado de preto, e por baixo nada podia ser visto a não ser
um corpo espancado, retalhado e baleado até que nada restasse além dos próprios
ferimentos.

Eu já tinha ouvido o bastante a essa altura e disse isso a Wilfred, mas se ele me ouviu
não deu nenhuma atenção. Ele me disse que a guerra, “o Flautista”, veio para
reivindicá-lo, e ele implorou para ficar. A coisa parou de tocar por apenas um momento,
e com um de seus braços estendeu a mão e o entregou uma caneta. Ele disse que
sabia que ela voltaria para buscá-lo algum dia, mas agora ele também viveria para tocar
sua melodia. O jeito que ele olhou para mim naquele momento foi o mesmo que ele
olhou antes de o projétil atingir, e por um momento eu poderia jurar que mais uma vez
ouvi aquela música na brisa.

Saí quase imediatamente depois disso e mais tarde soube que ele havia sido enviado
de volta à Grã-Bretanha para se recuperar em Craiglockhart. Os outros homens
resmungaram sobre os privilégios dos oficiais e um feriado agradável para o tenente,
mas eles não sabiam o que ele havia passado, e eu achei muito difícil sentir inveja.
Certa vez perguntei a alguns membros da equipe que o trouxe de volta se ele estava
segurando uma caneta quando o encontraram, mas eles me disseram que não. A única
coisa que encontraram nas proximidades foram as placas de identificação do homem
morto entre seus restos mortais. Um homem chamado Joseph Rayner.

E por um longo tempo foi isso. Wilfred estava de volta em casa se recuperando e
realizando tarefas mais leves, enquanto eu avançava pela lama de Flandres. Eu sofri
alguns acidentes — incluindo o lança-chamas que me marcou de forma tão distinta.
Poderia ter sido pior, é claro; se a chuva não tivesse quase derretido a lama da terra de
ninguém, eu teria entregado a alma pro diabo. Eu comecei a notar algo entre as tropas,
no entanto. Cada vez que fazíamos fila para chegar ao topo eu os observava, olhava
em seus rostos. A maioria deles não mostrava nada além do medo mais gritante, é
claro, mas alguns deles pareciam distantes. O apito os trazia de volta a si mesmos e
com os olhos arregalados eles avançavam. Eu já tinha visto isso antes, toda aquela
história com Wilfred, mas sempre presumi que fosse simplesmente a mente tentando
sufocar a probabilidade de sua própria morte. Agora, quando observei, não pude deixar
de notar a leve inclinação da cabeça, como se gentilmente esticassem os ouvidos para
ouvir uma melodia distante. Aqueles homens nunca voltaram para as trincheiras.

Você conhece a expressão “acertar as contas”¹. Pensei muito nisso durante vários
meses — a dívida de Hamelin, que por sua ganância teve seus filhos tirados, para
nunca mais serem devolvidos. Você sabia que Hamelin é um lugar real na Alemanha?
Sim, não muito longe de Hanover, pelo que me lembro. Certa vez, tivemos um
prisioneiro de lá — eu queria perguntar a ele sobre o antigo conto de fadas e o que ele
sabia sobre O Flautista, se é que sabia de alguma coisa. O pobre homem não falava
uma palavra em inglês, entretanto, e morreu por um ferimento de estilhaço infectado
alguns dias depois. Ele passou seus últimos minutos cantarolando uma melodia familiar.
Naquela noite, enquanto caminhávamos pela lama e metal quebrado em outro ataque
fútil, comecei a me perguntar: éramos as crianças roubadas de seus pais pela melodia
do Flautista? Ou éramos os ratos que foram levados ao rio e se afogaram porque
comeram muito dos grãos dos ricos?

Ainda assim, essas reflexões são para os poetas, que no caso não sou. Eu acompanhei
o trabalho de Wilfred, entretanto, e fiquei surpreso ao ver o quanto ele havia mudado
desde que partira. Onde antes poderia ser julgado como fútil, agora havia uma tragédia
que fluía das palavras. Mesmo agora eu não consigo ouvir Exposure² sem ser levado de
volta àquela maldita trincheira no inverno. E o público claramente se sentiu da mesma
forma, já que um dos poucos jornais que chegava ao mercado tinha um artigo extenso
elogiando sua primeira coleção. Apesar de tudo, havia algo sobre isso que me
incomodava.

Wilfred voltou ao 2º Batalhão de Manchester em julho de 1918. Ele estava claramente


diferente depois do tempo que passou longe e parecia estar de bom humor embora
conversássemos pouco, e quando ele olhou para mim, vi um medo em seus olhos que
ele rapidamente escondeu. A guerra estava se aproximando do fim neste ponto. Havia
um cansaço que podia ser percebido em toda parte; até mesmo as metralhadoras
inimigas pareciam mais lentas e relutantes ao atirar, mas isso induzia nossos
comandantes a nos estimular a ações cada vez mais agressivas. Alguma tentativa
desesperada de obrigar a Alemanha a se render, eu suponho, e nossos ataques se
intensificaram até o clímax.

No primeiro dia de outubro, recebemos ordens de invadir a posição inimiga em


Joncourt. Eu me lembro que o clima naquele dia estava lindo — um último dia de sol
antes do outono chegar. Atacamos com algum sucesso pois acredito que a artilharia
alemã não estava alinhada corretamente e pela primeira vez desde seu retorno, me vi
lutando ao lado de Wilfred. Posso dizer sem sombra de dúvidas que em toda a guerra
nunca vi um soldado lutar com tanta ferocidade como o vi naquele dia. Apresso em
acrescentar que essa declaração não é feita com admiração — a selvageria que vi nele
quando rasgou um homem com sua baioneta… Eu preferia esquecer isso. Enquanto
atacava, ele uivou um grito de guerra horrível e apenas por um momento eu poderia
jurar que o vi lançar uma sombra que não era a dele. Li no jornal que ele ganhou a Cruz
Militar por aquele ataque.

Foi um mês depois que acordei e o encontrei sentado ao lado da minha cama. Ele me
encarou, sem ser indelicado, embora houvesse algo em seus olhos que me deixou
pouco à vontade. “Está quase acabando agora, Clarence,” ele me disse. Eu disse que
sim, parecia que tudo estava chegando ao fim. Ele sorriu e balançou a cabeça. Ele ficou
sentado ali em silêncio por algum tempo, e em certo momento uma explosão irrompeu
no céu lá fora, e o suficiente daquela luz vermelha forte passou pela porta improvisada
do abrigo para eu ver que Wilfred estava chorando. Eu sabia que ele estava ouvindo a
melodia do Flautista. Ele me perguntou se eu tinha ouvido, e eu disse que não, não
tinha — e não tinha certeza se alguma vez já havia ouvido. Ele assentiu e disse que não
sabia qual de nós era o sortudo. Nem eu sabia. Ainda não sei, na verdade.

Wilfred Owen morreu cruzando o canal de Sambre-Oise dois dias depois. Não era para
ter muita resistência, se é que teria alguma, mas alguns dos soldados estacionados lá
revidaram ao fogo. Eu me vi agachado atrás dele enquanto o capitão, que havia levado
um tiro no quadril, era puxado para um lugar seguro. Enquanto nos preparávamos para
atacar, Wilfred parou de repente e se virou para mim com um sorriso no rosto. Naquele
momento, vi um filete de sangue começar a escorrer de um buraco aberto em sua testa.
Sinto que devo deixar isso bem claro: já vi muitas pessoas serem baleadas. Eu sei
como é e qual é a aparência de um buraco de bala. Mas aqui, o buraco da bala
simplesmente se abriu. Como um olho. E ele caiu no chão, morto. Me disseram mais
tarde que foi naquele dia que as primeiras aberturas de paz foram feitas entre as
nações, e o Armistício foi assinado quase exatamente uma semana depois. Fomos
enviados para casa logo depois.

Eu acredito que não foi apenas naquele dia, mas naquele exato momento, quando
Wilfred caiu, que a paz foi finalmente assegurada. Ninguém pode me convencer do
contrário. O Flautista o poupou antes? Ele simplesmente o usou para mais tarde deixá-
lo de lado? Eu não sei, e tento não pensar muito nisso. Agora eu tenho uma esposa e
um filho a caminho, mas às vezes ainda tenho pesadelos. O desfile do Dia do Armistício
passou pela minha casa no ano passado e eu tive que fechar bem a janela quando a
banda militar passou marchando. Não era uma música que eu queria ouvir.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Bem, se precisavam de mais evidências para a desorganização da minha antecessora,


aqui está. Um depoimento de 1922 arquivado em meados dos anos 2000. Obviamente,
não há muita pesquisa ou investigação adicional a ser feita em um caso de quase cem
anos, especialmente quando envolve uma figura tão bem documentada como Wilfred
Owen. Ainda assim é uma história bem interessante, e eu sinto que conheço o nome
‘Joseph Rayner’ de algum lugar, embora eu não saiba dizer de onde. O caso foi
devolvido ao seu devido local nos arquivos. Fim da gravação.
[1] Em inglês, “to pay the piper” literalmente significa “pagar o flautista”. Expressão
idiomática que faz referência ao conto folclórico O Flautista de Hamelin.

[2] Um dos poemas escritos por Wilfred Owen sobre a Primeira Guerra Mundial.
ARQUIVISTA
Depoimento de Ivo Lensik a respeito de suas experiências durante a construção de uma
casa em Hill Top Road, em Oxford. Depoimento original prestado em 13 de março de
2007. Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus,
Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Trabalho em construções há quase vinte anos, a maioria na área de Oxford e arredores.
Quando meu pai faleceu em 1996, assumi sua empresa de serviços terceirizados e
tenho tido um trabalho estável desde então.
Posso fazer quase tudo que me pedem, mas geralmente me especializo em prédios
novos, serviços de encanamento e fiação especificamente. Tenho uma certa reputação
por me disponibilizar de prontidão, então é comum ser chamado no meio de uma
construção para fazer algum trabalho. Quando consegui o trabalho em uma casa na Hill
Top Road em meados de novembro, nada na situação me parecia estranho. O cara que
eles contrataram para instalar a fiação foi convocado como júri popular e não poderia
aparecer por algumas semanas, então me pediram para ajudar. Eu estava em outro
trabalho durante o dia, mas minha noiva Sam estava em uma conferência em
Hamburgo por um tempo e estávamos economizando para o casamento, então decidi
que poderia trabalhar durante a noite.

Bem, a Hill Top Road é uma rua bastante isolada nos arredores de Cowley. Não há
muitas casas estudantis por lá, então até que é um lugar bem tranquilo, principalmente
depois de todas as crianças que moram lá irem para a cama. A casa propriamente dita
havia sido inaugurada recentemente, depois de uma disputa sobre a propriedade ter
mantido o terreno fechado por anos, e quando eu apareci ele ainda estava praticamente
vazio. Tinha dois andares e um sótão que viria a ser outro quarto para combinar com as
outras casas da rua. As portas haviam sido instaladas embora ainda sem as
fechaduras, mas os espaços onde as janelas deveriam estar ainda estavam vazios,
deixando entrar o vento frio. Aquele lado da estrada dava para a South Park com cercas
marcando o fundo de cada jardim. O jardim desta casa em particular estava quase todo
cheio de materiais de construção e entulho, mas me lembro que em cima de tudo isso
havia uma árvore. Era muito grande e muito morta. E, pra ser sincero, aquela coisa me
assustou pra caramba. Parecia lançar sombras estranhas, que eram escuras e claras
até mesmo nos dias mais nublados.

Mas não foi a árvore que começou aquilo, no entanto. Não, aquilo aconteceu na minha
terceira noite de trabalho. Devia ser 8 ou 9 horas da noite, já que já estava escuro há
algumas horas. Eu estava trabalhando na fiação do andar de baixo quando ouvi uma
batida na porta da frente. A princípio pensei que devia ser um dos outros construtores
que tinha esquecido alguma coisa, mas então percebi que não havia fechadura na
porta; qualquer um dos outros saberia disso e simplesmente entraria. Comecei a me
sentir um pouco inquieto quando ouvi a batida novamente. Ao longo dos anos tive
algumas discussões com punks que queriam causar problemas nas minhas obras,
então peguei um martelo ao me aproximar. Fiz o possível para segurá-lo casualmente,
como se tivesse acabado de usar.

Abri a porta e me deparei um homem despretensioso em um casaco bege. Ele era bem
jovem, branco, devia ter uns vinte e poucos anos, barbeado e com cabelos castanhos
desgrenhados. Seu casaco tinha um corte bastante antigo; parecia algo saído de uma
Polaroid velha. Ele disse que seu nome era Raymond Fielding e que ele era o dono da
casa. Enquanto ele falava eu senti minha mão apertar o martelo, embora não tenha
ideia do motivo. Perguntei se ele tinha alguma identidade ou documento e ele me
entregou o que parecia ser, até onde eu sei, a escritura da casa, bem como do terreno
abaixo, e de fato listou um homem chamado Raymond Fielding como o proprietário.
Então eu o deixei entrar.

Pedi desculpas pela ventania e disse que as vidraças seriam instaladas nos próximos
dias, mas até lá ficaria frio. Ele não respondeu, apenas caminhou até a moldura vazia
da janela traseira e olhou para o jardim. Tentei continuar meu trabalho, mantendo um
olho naquele estranho. Nada sobre a situação parecia certo, mas ele não parecia estar
fazendo nada suspeito, apenas parado ali, olhando para o jardim, então voltei minha
atenção para a fiação.

Depois de um ou dois minutos, senti um cheiro forte e desagradável. Achei que talvez
tivesse conectado algo errado, mas não — cheirava a cabelo humano queimado. Olhei
para onde Raymond estava parado, mas ele havia sumido. No lugar onde ele antes
estava havia apenas um pedaço de piso de madeira chamuscado, ainda aparentemente
fumegando e exalando aquele fedor terrível. Corri para pegar o extintor de incêndio em
uma sala ao lado — eu saí por apenas alguns segundos, mas quando voltei, o cheiro
havia sumido e não havia mais fumaça ou fogo, apenas a mancha de queimadura no
chão de madeira em frente àquela janela. Ao tocar nela, percebi que estava tão fria
quanto o resto do chão. Comecei a limpar e descobri que a madeira abaixo parecia
estar intacta com apenas uma camada de fuligem e cinzas por cima. Procurei por
aquele Raymond Fielding, mas se realmente esteve lá, ele já havia partido. Foi só
quando terminei de limpar a mancha que a ficha sobre a verdadeira estranheza da
situação começou a cair, e eu comecei a entrar em pânico.

Eu provavelmente deveria explicar um pouco o meu medo, já que não era por causa de
assombrações ou odores fantasma ou qualquer coisa assim. Olha, há um histórico
bastante significativo de esquizofrenia entre os homens da minha família. Meu pai tinha,
assim como meu tio-avô, e em ambos os casos isso levou ao suicídio. Eu não sabia
muito sobre meu tio-avô, mas tinha visto o declínio do meu pai em primeira mão. Tudo
começou logo após o divórcio com a minha mãe, embora pensando sobre isso talvez
tenham sido os primeiros estágios que agravaram os problemas no casamento. Apesar
disso, ele começou a passar muito tempo trancado no escritório fazendo “seu trabalho”.
Eu tinha uns 24 ou 25 anos na época e ainda morava em casa. Eu estava trabalhando
com meu pai, fazendo praticamente o mesmo trabalho que faço agora, e foi naquele
ponto que tive que começar a assumir cada vez mais o comando dos negócios, já que
meu pai estava começando a priorizar seu “trabalho” sobre seu emprego real. Seu
“trabalho” acabou sendo fractais. Ele ficou obcecado por eles, parecia passar todo o
tempo desenhando-os, olhando para eles, medindo os padrões que criavam. Ele falava
comigo por horas sobre a matemática por trás deles e me dizia que estava à beira de
uma grande verdade. Ele iria balançar os alicerces da matemática uma vez que
descobrisse essa verdade escondida naqueles padrões fractais em cascata.

Um dia voltei para casa e encontrei meu pai olhando aterrorizado pelas persianas. Ele
alegou que alguém o estava seguindo, me disse que planejavam interromper seu
trabalho. Perguntei quem era, mas ele balançou a cabeça violentamente e disse que eu
o reconheceria quando o visse porque “todos os ossos estão nas mãos dele”. Tentei
ajudá-lo, é claro que tentei — mas ele se recusou a tomar qualquer remédio porque
dizia que interferia em seu trabalho; e ele não era perigoso, então não pude interná-lo.
Eu sabia que era apenas uma questão de tempo até que ele se machucasse, e é claro
que chegou o dia em que ele não respondeu às batidas na porta de seu escritório. Eu
arrombei a porta e o encontrei morto em uma poça de sangue, com cissuras profundas
em seus pulsos e braços. As paredes estavam cobertas de desenhos fractais, todas as
superfícies estavam amontoadas com eles, e o chão estava repleto de aparas de lápis.
O inquérito determinou sua morte como suicídio, embora o legista não tenha
conseguido identificar o objeto que fez os cortes em seus braços, ou dizer por que ele
parecia ter tanto medo no rosto.

É por isso que o desaparecimento aparente de Raymond Fielding me preocupou tanto


— eu era mais jovem do que meu pai, mas ainda tinha aquela possibilidade dentro de
mim. Essa linha de pensamento provavelmente era o motivo pelo qual eu não estava
prestando tanta atenção onde estava pisando quanto deveria estar e acabei
escorregando na parte molhada do piso que tinha acabado de limpar. Caí para frente,
batendo forte com a cabeça. Acho que não fiquei inconsciente por mais do que alguns
segundos, mas quando acordei estava sangrando de um corte profundo na minha
têmpora. Eu tentei chegar ao meu carro, mas fiquei tão tonto só de me levantar que
ficou claro que dirigir estava fora de questão. Então chamei uma ambulância. Ela
chegou rapidamente e me levou ao Hospital John Radcliffe.

Quando cheguei lá, eles foram muito receptivos e rapidamente determinaram que eu
tinha uma concussão bastante grave, então fui mantido durante a noite para
observação. Contei ao meu médico tudo sobre meu encontro com Raymond Fielding.
Se eram os primeiros sinais de qualquer desenvolvimento de esquizofrenia, eu queria
saber o mais rápido possível. O médico ouviu com atenção e disse que era improvável,
pois seria estranho se eu desenvolvesse alucinações grandes de forma tão abrupta,
mas que eles estavam me mantendo sob observação. Notei que, enquanto explicava
minha experiência, a enfermeira que media minha pressão arterial parecia estar ouvindo
atentamente, embora tenha saído antes que eu pudesse perguntar por quê.

Fiquei naquele hospital por mais dois dias. Sam queria encurtar sua viagem quando
soube da minha concussão, mas eu disse a ela que qualquer perigo real havia passado
e que eu ficaria bem até o final da conferência dela, então eu estava geralmente
sozinho naquela época. Na manhã anterior ao dia em que ela deveria voltar eu vi a
enfermeira novamente. Eu tinha acabado de receber a notícia de que todos os exames
estavam nos conformes, então eu estava recebendo alta e ela veio me dar uma última
checada.

Ela me perguntou se eu tinha certeza de que o homem que viera à casa em Hill Top
Road se chamava Raymond Fielding. Eu disse que sim, e que até tinha visto a
assinatura dele na escritura do terreno, mas que não conhecia nada da história do
lugar. Ela ficou muito quieta e se sentou. Essa enfermeira era uma mulher mais velha,
acho que malasiana, e eu chutei que tinha uns cinquenta anos, embora não tenha
perguntado. Ela disse que a família dela morava há muito tempo em Hill Top Road e ela
conhecia o lugar em que eu estava trabalhando. Na década de 1960, a casa que existia
ali pertencera a um homem chamado Raymond Fielding. Ele era um devoto
frequentador da igreja e a usava como uma casa de recuperação em nome da diocese
local, cuidando de adolescentes fugitivos e jovens com problemas mentais.
Aparentemente a vizinhança não gostou daquilo, já que seus residentes frequentemente
se metiam em problemas e a Hill Top Road começava a ganhar uma certa reputação
por isso. Ninguém jamais disse uma palavra contra o próprio Raymond, contudo — que
era, segundo todos os relatos, uma alma gentil e afável a ponto de ser quase amado
por todos.

Ninguém sabia exatamente quando a Agnes se mudou; alguns até diziam que ela era a
filha verdadeira de Raymond, já que os dois eram parecidos e ela era mais jovem do
que a maioria das outras crianças que moravam lá. Ela não devia ter mais de onze anos
quando apareceu e nem falava direito, a não ser para dizer às pessoas seu nome, se
perguntada. Todo mundo começou a notar essa criança com marias-chiquinhas
castanhas olhando para eles através das janelas da casa de Raymond. Até onde todo
mundo sabia, isso era tudo que ela sempre parecia fazer — encarar as pessoas das
janelas. Era inquietante, mas ninguém tinha problemas reais com aquilo.

Nos anos seguintes, as crianças da casa de recuperação pararam de causar problemas


na área ao redor da Hill Top Road. Não era uma mudança gritante, mas gradualmente
as pessoas que moravam lá eram vistas cada vez menos. Raymond ainda estava lá e
parecia perfeitamente alegre. Se alguém perguntasse a ele sobre um residente que não
aparecia há algum tempo, ele explicava que ele tinha se mudado ou encontrado um
lugar próprio, e ninguém se importava o suficiente para checar as informações. Logo as
únicas pessoas morando naquela casa velha eram Agnes e Raymond. Então Raymond
desapareceu também. Agnes já devia ter 18 ou 19 anos a esse ponto, e ainda quase
não falava. Quando ela foi questionada sobre o que aconteceu com Raymond, ela
simplesmente disse que ele havia partido e que a casa era dela. As pessoas ficaram um
pouco preocupadas com aquilo e a polícia conduziu uma pequena investigação, mas a
casa havia sido legalmente cedida a Agnes e não havia sinal de qualquer crime. E
também nenhum sinal de Raymond, aliás.

E assim os anos se passaram e Agnes viveu naquela casa velha. Quase nunca parecia
sair de lá, apenas assistia das janelas. O pessoal da Hill Top Road percebeu que era
melhor não ter animais de estimação, pois eles tendiam a desaparecer. Então, em
1974, Henry White desaparece. Ele tinha 5 anos e a busca não resultou em nada. As
pessoas sempre sussurraram sobre a Agnes, mas agora os sussurros ficaram
maldosos. Suficientemente maldosos ao ponto de que, quando a fumaça foi vista saindo
da velha casa dos Fielding uma semana depois do desaparecimento do pequeno Henry,
ninguém fez nada. Ninguém ligou para o corpo de bombeiros ou tentou ajudar. Eles
apenas assistiram. Agnes também não deve ter ligado pedindo ajuda, pois quando os
caminhões de bombeiros chegaram não havia mais nada para salvar. Em meio a tudo
isso, ninguém viu nenhum sinal de vida dentro do prédio. Sem gritos, sem movimento,
nada além do rugido das chamas. Quando o fogo foi finalmente apagado, eles
encontraram restos humanos — mas não era Agnes nem Henry White. O único corpo
que encontraram foi o de Raymond Fielding. Tudo o que restou foi um esqueleto muito
carbonizado, sem a mão direita.

Essa era a história do lugar, como a enfermeira me contou. Depois que os escombros
foram removidos, o terreno ficou preso em complicações legais relacionadas à
propriedade e permaneceu assim até o início do ano passado. Ela me pediu para não
deixar ninguém saber que ela estava falando sobre isso, pois ela não queria que as
pessoas pensassem que ela estava espalhando histórias. Eu disse a ela que ficaria
quieto e ela foi embora. Não a vi mais e tive alta logo em seguida.

Descansei em casa por alguns dias, mas eu acho a inatividade obrigatória muito chata e
minha cabeça estava bem, então decidi voltar a trabalhar. Eu provavelmente deveria ter
evitado voltar para Hill Top Road, mas me vi ressentido com a forma como a casa me
fazia sentir. Eu não acreditava em fantasmas — para ser sincero ainda não tenho
certeza se acredito —, e o médico garantiu que eu não estava apresentando nenhum
outro sintoma de esquizofrenia, então não havia razão para eu sentir aquela apreensão
corrosiva. Convenci a mim mesmo de que a única maneira de expulsar o sentimento era
voltar e terminar o trabalho que comecei. Então foi o que eu fiz, embora agora tivesse o
cuidado de trabalhar apenas à luz do dia e evitasse ficar sozinho.

Mesmo assim, havia momentos ocasionais em que eu me encontrava trabalhando


sozinho em uma sala, ou quando o silêncio caía sobre o prédio. E então eu sentia o
cheiro de novo, aquele cheiro de cabelo queimado, ou tinha um vislumbre de marias-
chiquinhas castanhas desaparecendo em uma esquina. À medida que o trabalho se
aproximava do fim, ficou mais difícil evitar trabalhar lá depois de escurecer, até que uma
tarde eu perdi completamente a noção do tempo e olhei para cima para ver que não só
havia anoitecido, mas eu era o único que restava no prédio. Quase no momento em que
eu percebi isso comecei a suar. A princípio pensei que fosse nervosismo ou até mesmo
um ataque de pânico por perceber que estava sozinho, mas era o calor; esse calor que
parecia começar nos meus ossos e irradiar através de mim. Tirei o chapéu e a jaqueta,
mas fui ficando cada vez mais e mais quente até que parecia estar cozinhando por
dentro. Tentei gritar, mas não conseguia respirar, não conseguia me mover. Eu estava
pegando fogo.

Houve uma batida na porta e a sensação desapareceu abruptamente. Eu estava frio de


novo, deitado no chão. Lutei para ficar de pé quando a batida veio novamente. Minha
mão tremia quando abri. Até agora eu não sabia o que esperar — seria Raymond de
novo? Agnes? Ou alguma outra coisa para anunciar o fim da minha sanidade. O que eu
não esperava era um padre católico. Ele era baixo e um pouco corpulento, com cabelo
cortado rente e rugas profundas de sorriso ao redor da boca. Ele se apresentou como
padre Edwin Burroughs e me disse que “Annie” o havia pedido para fazer uma visita ao
lugar. Eu não conhecia nenhuma Annie e disse isso a ele, e ele pareceu um pouco
confuso, disse que ela trabalhava como enfermeira no Hospital John Radcliffe. Isso
acalmou meus temores o suficiente para que eu o deixasse entrar e perguntei se ele era
algum tipo de exorcista. O padre Burroughs sorriu e disse que sim, era exatamente isso
que ele era.
Então contei minha história enquanto ele examinava a casa. Ele acenou com a cabeça
enquanto eu contava o que aconteceu, ocasionalmente perguntando algo sobre o que
havia sido dito ou como eu me sentira. Finalmente ele pareceu satisfeito e disse que
faria o que pudesse. Ele explicou que o exorcismo era apenas para demônios e não era
algo que ele pudesse fazer com fantasmas, pelo menos não oficialmente — se os
fantasmas realmente existiam ou não era uma questão aparentemente tão ambígua
dentro da igreja quanto era fora dela — mas ele faria algumas bênçãos para ver se
aquilo ajudaria. Ele me pediu para esperar do lado de fora enquanto ele trabalhava,
então fui para o jardim dos fundos e esperei.

Enquanto eu estava parado lá no frio, meu olhar caiu sobre a árvore. Aquela maldita
árvore assustadora. Não sei por que, mas naquele momento senti uma raiva intensa e
enlouquecedora daquela árvore. Peguei um pé de cabra que estava em uma pilha de
madeira próxima e, jogando meu braço para trás, o lancei contra o tronco, o enterrando
com todas as minhas forças. Senti algo quente e molhado espirrar onde eu o havia
atingido. Seiva? Não, não parecia seiva. Liguei minha lanterna para ver sangue
escorrendo da árvore ferida. Desceu pelo pé de cabra e gotejou na terra, correndo em
regatos. Quando ele alcançou as raízes, vi mais alguma coisa na luz da minha lanterna
— se enrolando na base da árvore havia marcas de queimaduras negras e antigas.

Naquele momento eu tomei minha decisão. Foi fácil, como se destruir essa árvore fosse
a única coisa a se fazer, o único caminho a seguir. Encontrei uma longa corrente entre
os materiais de construção no jardim, enrolei ela no tronco ainda sangrando e prendi as
pontas no meu carro. Levei menos de um minuto para derrubá-la… E não havia mais
sangue. Quando a árvore estava deitada de lado, arrancada e sem forças, olhei para o
buraco onde ela estava antes e notei algo caído na terra.

Descendo ali, recuperei o que acabou sendo uma pequena caixa de madeira, com cerca
de quinze centímetros quadrados, com um padrão intrincado esculpido na parte
externa. Linhas gravadas o cobriam, se entortando e entrelaçando, tornando difícil
desviar o olhar. Abri a caixa, e dentro dela estava uma única maçã verde. Parecia
fresca, brilhante, com uma camada de condensação como se tivesse acabado de ser
colhida em uma manhã fria de primavera. Eu a peguei. Eu não ia comer, não sou tão
idiota assim — mas mais do que árvores que sangram ou fantasmas queimando, isso
me deixou confuso. Quando a tirei da caixa, porém, ela começou a mudar. A pele ficou
marrom e machucada e começou a murchar em minha mão. E então rachou. E surgiram
aranhas. Dezenas, centenas de aranhas saindo desta maçã que estava apodrecendo
bem diante dos meus olhos — eu gritei e a deixei cair antes que qualquer uma delas
pudesse tocar meu braço. A maçã caiu no chão e explodiu em uma nuvem de poeira.
Recuei e esperei até ter certeza de que todas as aranhas haviam fugido antes de
recuperar a caixa. Eu a esmaguei com um pé de cabra e joguei os restos em um
container.

O padre Burroughs voltou logo depois. Ele me disse que fez suas orações e esperava
que fosse de alguma ajuda. Se ele notou a árvore derrubada, não perguntou nada sobre
ela. Em vez disso, apenas me entregou seu cartão de visita e me disse para dar uma
ligada se tivesse mais problemas. A casa não parecia diferente, mas não havia nenhum
cheiro de cabelo queimado, nem calor ou fantasmas ou qualquer coisa estranha que eu
pudesse ver. Trabalhei naquela casa por mais uma semana, e não sei se foram as
orações do padre ou o fato de eu ter arrancado a árvore, mas não encontrei nada mais
de incomum durante meu tempo lá. Depois disso, minha parte no trabalho foi concluída
e não voltei mais para Hill Top Road desde então.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.
Ah, traumatismo craniano e esquizofrenia latente — os melhores amigos dos fantasmas.
Além da indulgência excessiva com drogas psicoativas, me parece que simplesmente
não há melhor jeito de se fazer contato com o mundo espiritual. Mesmo assim, deixando
a conversinha de lado, a história da Hill Top Road 105 realmente merece investigação.
E embora eu confie no testemunho do Sr. Lensik sobre suas próprias experiências tanto
quanto posso confiar em uma árvore que sangra, há uma nota no arquivo mencionando
que o Padre Edwin Burroughs registrou sua própria versão desses eventos no
Depoimento 0218011. Embora eu ainda não tenha localizado esse arquivo específico no
caos que é o arquivo de Gertrude Robinson, a sugestão de que pode haver
corroboração externa dá algum crédito em potencial à história selvagem do Sr. Lensik.
Nenhum outro trabalhador do canteiro de obras na época relatou quaisquer distúrbios
como os relatados pelo Sr. Lensik.

Martin não conseguiu encontrar a data exata em que a casa original foi construída, mas
os primeiros registros que conseguiu encontrar indicam que ela foi comprada por Walter
Fielding em 1891. Foi herdada por seu filho Alfred Fielding em 1923 e depois por seu
neto, Raymond Fielding, em 1957. Não havia registros de que tenha sido usada como
casa de reabilitação, certamente nenhuma conectada à diocese católica local, embora
os registros da Igreja da Inglaterra para a área à qual Sasha teve acesso estivessem,
infelizmente, incompletos. Os residentes mais velhos da Hill Top Road sustentam o
relato feito pela enfermeira, Anna Kasuma, conforme relatado aqui.

Tim conseguiu arranjar uma entrevista com a Sra. Kasuma, mas ela aparentemente não
conseguiu fornecer mais nenhuma informação além do que contou ao Sr. Lensik. No
entanto, ela admitiu ter pedido ao padre Burroughs para dar uma olhada na casa, pois
estava preocupada com isso e já tinha o visto fazer exorcismos antes. Não parece
haver nenhuma evidência impressa do que aconteceu com a casa; nenhuma notícia ou
afins sobre o incêndio. Mas um morador forneceu uma fotografia da casa em chamas.

O obituário de Raymond Fielding relatou brevemente sua morte como resultado de um


incêndio em uma casa e elogia seu trabalho com jovens problemáticos, mas não dá
detalhes sobre nenhum dos dois. Agnes continua sendo um mistério, pois não
conseguimos encontrar nenhuma prova definitiva de que ela sequer existiu. Porém…
Não podemos provar nenhuma conexão, mas Martin descobriu um relatório sobre uma
Agnes Montague que foi encontrada morta em seu apartamento em Sheffield na noite
de 23 de novembro de 2006, o mesmo dia em que Lensik afirma ter arrancado a árvore.
Ela se enforcou. Sua idade é registrada como 26 anos, o que não corresponde em
nada. Mas amarrada por uma corrente na cintura dela estava uma mão humana
decepada — uma mão direita. Seu dono nunca foi identificado, mas o legista ficou
aparentemente bastante perplexo, pois a deterioração do tecido parecia indicar que o
dono original da mão devia ter morrido quase no mesmo exato momento que Agnes.

Duas famílias moram na casa desde que este depoimento foi prestado originalmente,
mas nenhuma outra manifestação foi relatada em Hill Top Road.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Julia Montauk, a respeito das ações e motivações de seu pai, o serial
killer Robert Montauk. Depoimento original prestado em 3 de dezembro de 2002.
Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Meu pai era um assassino. Não há como negar racionalmente neste ponto; as
evidências fornecidas pela polícia foram devastadoras e eu mesma vi o galpão. Não
estou aqui para tentar limpar o nome dele. Não faria muito sentido de qualquer forma, já
que eu tenho certeza de que você sabe que ele morreu na prisão ano passado. Sete
anos não é muito tempo cumprido de uma sentença de prisão perpétua, mas duvido que
tenha sido a liberdade condicional antecipada que ele esperava.

Desculpe, talvez isso não tenha sido de bom gosto. Mesmo assim, o falecimento dele é
o motivo pelo qual eu sinto que posso contar essa história; algo que eu nunca me senti
livre de verdade para fazer antes. Sempre esperei que ele falasse sobre isso durante o
frenesi da mídia que cercou seu julgamento, mas por alguma razão ele ficou em
silêncio. Acho que entendo um pouco melhor agora por que ele nunca falou sobre o
assunto, preferindo que as pessoas tirassem suas próprias conclusões — mas na época
eu não conseguia entender o porquê de ele simplesmente ficar sentado em silêncio,
deixando os outros falarem por ele. Gostaria de contar a alguém agora, contudo… E só
terminei as minhas sessões de terapia indicadas pelo tribunal recentemente, então
prefiro não contar aos tabloides e ver ‘MEU PAI MATOU PARA FORNECER
COMBUSTÍVEL À MAGIA OCULTA, DIZ A FILHA DO MONSTRO’ estampado na página
7 da edição de fim de semana. Então só me resta vocês. “Respeitável” dificilmente seria
a palavra que eu usaria, mas é melhor do que nada.

Então, sim. Meu pai matou pelo menos 40 pessoas nos cinco anos anteriores à sua
prisão em 1995. Não vou contar os detalhes sombrios — se você estiver interessado,
pode procurar por Robert Montauk no arquivo do jornal em qualquer biblioteca. Haverá
muita coisa lá: os jornais claramente não se importaram muito com o bombardeio
americano, porque em abril daquele ano pareciam estar falando só sobre o meu pai.
Existem também alguns livros sobre ele, nenhum que eu possa realmente recomendar,
mas acho que Nem Um Corpo no Galpão, de Ray Cowan, é o mais próximo do que eu
consideraria confiável — embora impliqueque fui cúmplice apesar de ter 12 anos na
época. Honestamente, descobri a maioria dos detalhes nos jornais e no tribunal, assim
como todo mundo. Meu pai passou meus anos escolares matando dezenas de pessoas
e eu não fazia ideia. Mas quanto mais penso sobre a minha infância, mais certeza tenho
de que alguma outra coisa estava acontecendo. Eu não tenho nenhuma teoria sobre o
que essas coisas significam, mas eu só preciso colocá-las no papel em algum lugar. E
este parece ser um lugar tão bom quanto qualquer outro.

Sempre morei na mesma casa na York Road, em Dartford. Mesmo agora, depois de
tudo o que aconteceu e tudo o que eu sei, não consigo me obrigar a ir embora. Até
onde eu sei o galpão veio com a casa; sempre esteve no jardim: velho, feito de madeira
e silencioso. Não me lembro de ter sido usado antes da noite em que minha mãe
desapareceu. Foi aí que tudo começou a ficar estranho.

Minha memória da primeira infância é fragmentada, a maior parte são imagens e


impressões isoladas, mas me lembro da noite em que ela desapareceu como se fosse
ontem. Eu tinha sete anos e tinha ido ao cinema naquela noite pela primeira vez na
vida. Tínhamos ido assistir Convenção das Bruxas no lugar que na época era o ABC na
Avenida Shaftesbury. Eu já tinha visto filmes antes, é claro, na televisão da nossa
pequena sala de estar, mas ver um filme na tela grande era fascinante. O filme em si foi
apavorante, e mesmo agora eu diria que é muito mais assustador do que qualquer
“filme de criança” tem o direito de ser. Lembro que passei boa parte do filme à beira das
lágrimas, mas fiquei muito orgulhosa por não ter chorado de verdade. Quando
chegamos em casa, fiquei acordada por um bom tempo. Aquela cena em que o Luke é
transformado em um rato não parava de passar na minha mente e, por algum motivo,
me deixou com muito medo de dormir.

Foi então que ouvi uma pancada no andar de baixo, como algo pesado caindo. Eu não
tinha um relógio no meu quarto então não fazia ideia de que horas eram, mas me
lembro de olhar pela janela e o mundo estava escuro e completamente silencioso. A
pancada veio de novo e decidi descer as escadas e ver o que era. O patamar estava
escuro como breu e tentei ficar o mais quieta possível para que ninguém soubesse que
eu estava lá. O quarto degrau descendo do topo da escada sempre rangeu, e ainda
range na verdade, mas acho que nunca o ouvi ranger tão alto do que naquela noite
enquanto eu descia bem devagar. As luzes do andar de baixo estavam todas apagadas,
exceto pela luz da cozinha, que eu podia ver do final da escada.

Entrei na cozinha para encontrá-la vazia. A porta dos fundos estava aberta e uma brisa
fresca soprava por ela, me fazendo estremecer no meu pijama. Eu vi algo brilhante
sobre a mesa. Ao me aproximar, encontrei o pingente da minha mãe. O desenho
sempre me pareceu lindo: era prata, uma forma abstrata de uma mão com um símbolo
que eu acredito que deveria representar um olho fechado. Eu nunca tinha a visto sem
ele. Na minha cabeça de criança, presumi que ela simplesmente tinha o deixado na
mesa, um acidente, e que a porta aberta não significava nada. Voltei para cima, o colar
agarrado firmemente à minha mão para devolver a ela. Ela não estava na cama, é claro,
o espaço ao lado de onde meu pai dormia estava vazio.

Toquei suavemente o ombro do meu pai adormecido e ele acordou lentamente.


Perguntei onde estava a mamãe, e ele começou a dizer algo quando viu a corrente de
prata em minhas mãos. Ele saiu rapidamente da cama e começou a se vestir. Enquanto
vestia uma camisa ele me perguntou onde tinha encontrado aquilo, e eu disse “na mesa
da cozinha”. Me seguindo escada abaixo, seu olhar se prendeu imediatamente na porta
aberta e ele pausou. Em vez de sair, foi até a pia da cozinha e abriu uma das torneiras.
Imediatamente começou a escorrer um líquido escuro e de aparência suja e o cheiro
nauseante e salgado de água salobra atingiu meu nariz, embora na época eu não
entendesse o que era.

A luz da cozinha apagou naquele momento e o lugar ficou muito escuro. Meu pai me
disse que estava tudo bem, que eu deveria voltar para a cama. Suas mãos tremeram
levemente quando ele pegou o pingente de mim, e eu não acreditei nele, mas fiz o que
ele mandou mesmo assim. Não sei quanto tempo fiquei ali, esperando meu pai voltar
naquela noite, mas sei que estava clareando lá fora quando finalmente adormeci.

Em algum momento eu acordei. A casa estava silenciosa e vazia. Eu tinha perdido o


começo da aula por horas, mas tudo bem, porque eu não queria sair de casa. Eu
apenas sentei na sala de estar, em silêncio e imóvel. Já era quase noite de novo
quando meu pai voltou. Seu rosto estava pálido e ele mal olhou para mim, apenas
caminhou direto para o armário e se serviu um copo de uísque. Ele se sentou ao meu
lado, esvaziou o copo e disse que minha mãe havia partido. Eu não entendi. Ainda não
entendo, na verdade. Mas ele falou com tanta firmeza que comecei a chorar e continuei
por um bom tempo.

Meu pai era policial, tenho certeza de que você leu, então quando criança presumi que
a polícia havia procurado pela minha mãe e não tinha encontrado. Não demorou muito
para eu descobrir que eles nunca sequer tiveram um relatório de desaparecimento
sobre ela. Até onde eu sei eu nunca tive avós vivos, e aparentemente ninguém
percebeu que ela tinha sumido, o que era estranho, já que tenho vagas lembranças de
ela ter muitos amigos vindo em casa antes de desaparecer. Todo mundo presume que
ela foi uma das primeiras vítimas do meu pai, mas nunca houve evidências suficientes
para adicioná-la à contagem oficial. Isso não importa.

Se vale de algo, eu não acho que foi ele. Não vou negar que faz sentido olhando de
fora, mas lembro como ele ficou arrasado quando ela desapareceu. Ele começou a
beber muito. Acho que ele tentou cuidar de mim o melhor que pôde, mas na maioria das
noites ele simplesmente desmaiava em sua cadeira. Também foi aí que ele começou a
passar muito tempo no galpão. Eu nunca tinha prestado muita atenção nisso antes. Pra
mim a estrutura de madeira robusta era apenas o lar de ninhos de aranha e das
ferramentas de jardinagem enferrujadas que meus pais usavam uma vez por ano para
atacar a selva crescente que era o nosso quintal. Mas logo após o desaparecimento da
minha mãe, um novo cadeado robusto foi colocado na porta… E meu pai passava muito
tempo lá dentro. Ele me disse que trabalhava com madeira, e às vezes eu ouvia sons
de ferramentas elétricas vindos de lá e ele me presenteava com uma pequena ficha de
madeira que havia feito, mas na maior parte do tempo ficava silencioso. Aquilo
provavelmente deveria ter me incomodado mais do que incomodou, as horas que ele
passava lá, e aquele cheiro estranho que eu percebia às vezes, como carne enlatada.
Mas nunca prestei muita atenção nisso, e tinha o meu próprio luto para enfrentar.

Ele saía quase todas as noites também. Eu frequentemente acordava de um dos meus
pesadelos e encontrava a casa silenciosa e vazia. Eu procurava por ele, e ele não
estava lá. Nunca me desesperei com isso, por algum motivo — não como quando minha
mãe desapareceu. Eu sabia que ele voltaria eventualmente quando terminasse o que eu
decidi que deveriam ser 'assuntos da polícia’. Às vezes eu ficava acordada até ele
voltar. Uma vez, quando estava acordada, o ouvi entrar no meu quarto. Eu fingi estar
dormindo — não sei por que, mas pensei que teria problemas se ele descobrisse que
eu estava acordada. Ele se aproximou de mim e acariciou meu rosto suavemente. Suas
mãos tinham um cheiro estranho. Naquela época eu não conhecia o cheiro de sangue,
e se misturava com aquele cheiro fraco e salgado de água salobra. Então ele sussurrou
para mim, pensando que eu estava dormindo, prometeu que me protegeria, que se
certificaria de que “aquilo não me pegaria também”. Havia um tom sufocado em suas
palavras — acho que ele devia estar chorando. Quando ele saiu, abri os olhos apenas o
suficiente para vê-lo. Ele estava parado na porta, o rosto nas mãos, vestindo um
macacão cinza claro manchado com uma substância preta espessa. Muitas vezes
gostaria de ter perguntado a ele sobre aquela noite. Eu me pergunto se ele sabia que
eu estava acordada, se eu tivesse perguntado a ele naquele momento de fraqueza…
Bem, agora é tarde demais para isso.

Nos anos seguintes, percebi que meu pai parecia estar sempre machucado e raramente
havia um momento em que ele não tivesse algum tipo de gesso, curativo ou hematoma
visível. Eu também encontrava ocasionalmente pequenas gotas de sangue ou manchas
no chão ou nas mesas, principalmente no corredor. Fiquei muito boa em limpá-las, e
nunca me ocorreu prestar atenção de onde elas vinham — eu simplesmente presumia
que o sangue era do meu pai. Ele começou a ficar em casa durante o dia e me disse
que tinha sido designado permanentemente para o turno da noite. Eu acreditei nele, é
claro, e foi só depois de sua prisão que eu descobri que aquele tinha sido o momento
em que ele havia largado o emprego na polícia. Não sei de onde vinha o dinheiro depois
daquilo, mas nós sempre parecíamos ter o suficiente.

Sabendo o que sei agora, parece horrível dizer, mas aqueles foram alguns dos anos
mais felizes da minha infância. Eu tinha perdido minha mãe, mas meu pai me idolatrava
e parecia que superaríamos a nossa dor juntos. Eu sei que o fiz parecer um alcoólatra
que vivia no galpão, mas essas geralmente eram atividades noturnas para ele. Durante
o dia ele passava o tempo comigo.

Me lembro de apenas uma vez que ele entrou no galpão durante o dia. Isso foi alguns
anos depois do desaparecimento da minha mãe, e eu devia ter uns dez anos. O
telefone da cozinha começou a tocar e meu pai estava no andar de cima. Eu havia
recentemente recebido a permissão dele para atender o telefone, então estava animada
para assumir minha nova responsabilidade. Peguei o telefone e falei meu script
memorizado: “Olá, casa dos Montauk!” Uma voz masculina pediu para falar com meu
pai. Era uma voz ofegante, como a de um homem velho, e na época eu decidi que ele
tinha sotaque alemão, apesar de que quando eu era pequena muitas nacionalidades e
sotaques diferentes foram agrupados na minha mente com o rótulo “Alemão”. “Do que
se trata?” eu perguntei, já que tinha toda uma conversa telefônica memorizada e queria
usar o máximo possível. O homem pareceu surpreso com aquilo e disse hesitante que
era do trabalho do meu pai. Perguntei se ele era da polícia e depois de uma pausa ele
disse “sim”. Ele me pediu para dizer ao meu pai que era o Detetive Rayner na linha com
um novo caso para ele.

Nesse momento meu pai desceu à cozinha para ver quem estava ligando. Eu disse e
ele ficou visivelmente pálido. Ele pegou o telefone da minha mão e o colocou no ouvido,
sem falar, mas ouvindo com muita atenção. Depois de um momento ele me disse para
subir para o meu quarto, pois aquela era uma “conversa de adulto”. Me virei para sair,
mas enquanto subia as escadas a lâmpada do patamar explodiu. As lâmpadas da nossa
casa quebravam com frequência — meu pai dizia que tínhamos problemas na fiação —
então, mesmo naquela idade, eu sabia trocá-las. Então me virei e desci as escadas de
novo para buscar uma nova lâmpada. Ao me aproximar do armário onde guardávamos
elas, ouvi a voz de meu pai na cozinha. Ele ainda estava no telefone e parecia zangado.
Eu o ouvi dizer “Não, ainda não. Faça você mesmo.” Então ele ficou muito quieto e
ouviu, antes de finalmente dizer que tudo bem, ele faria o mais rápido possível. Ele
desligou o telefone, foi até o armário e se serviu uma bebida. Ele passou o resto do dia
no galpão.

A única pergunta que eles me perguntaram várias vezes durante a investigação sobre
meu pai era se eu sabia onde estavam os outros corpos. Eu disse a eles a verdade, que
não fazia ideia. Eles alegaram que queriam confirmar as identidades das vítimas, o que
eles não conseguiriam fazer facilmente com o que restou. Eu não sabia onde estavam
os corpos, mas também não contei a eles a outra maneira pela qual eles poderiam ter
identificado as vítimas: as fotografias do meu pai. Eu não disse nada porque não tinha
ideia de onde ele as guardava e pensei que só pioraria as coisas se eles não pudessem
encontrá-las, mas, sim, meu pai tirava fotos.

Durante aqueles cinco anos, comecei a notar gradualmente mais e mais caixas de
filmes fotográficos deixados pela casa. Isso me intrigou, porque apesar de meu pai e eu
sairmos de férias às vezes, nós nunca tirávamos muitas fotos. Quando perguntei a ele
sobre isso, meu pai me disse que estava tentando aprender fotografia, mas não
confiava que os reveladores não estragariam os seus filmes, já que aparentemente ele
já tinha tido problemas antes. Sugeri que ele fizesse um quarto escuro para revelá-las
ele mesmo. Eu tinha visto um em Os Caça-Fantasmas 2 na TV no Natal anterior e
adorei a ideia de ter um quarto como aquele. Seu rosto se iluminou e ele disse que
reformaria o quarto de hóspedes. Ele me avisou que quando estivesse pronto eu nunca
poderia entrar lá sem a supervisão dele, pois haveria muitos produtos químicos
perigosos lá. Eu não me importei; eu só estava tão feliz que uma ideia minha havia
deixado meu pai tão feliz…

Naquele verão, meu pai transformou o quarto de hóspedes em um quarto escuro para
revelar fotografias. Como o galpão, ficava trancado quase o tempo todo, mas às vezes
meu pai me levava lá e revelávamos fotos de carros ou árvores ou qualquer outra coisa
que uma criança de dez ou onze anos com uma câmera fotografasse. Na maior parte do
tempo, porém, meu pai trabalhava lá sozinho e mantinha a porta trancada enquanto
estava lá. Ele parecia quase feliz nos últimos dois anos.

Eu não entrei ali sem supervisão até algumas semanas antes de meu pai ser pego. Era
uma noite de sábado no final do outono e meu pai estava fora de casa. Passei o dia
assistindo TV e lendo, mas quando começou a escurecer fiquei entediada e sozinha. Ao
passar pela porta do que agora era o quarto escuro, percebi que a chave ainda estava
na fechadura. Às vezes penso naquele dia e me pergunto se meu pai não a deixou ali
de propósito. Ele foi tão cuidadoso por tantos anos e então simplesmente esqueceu? Eu
sabia sobre os perigos, mas algo dentro de mim não conseguiu resistir entrar ali.
Não havia fotos guardadas lá. Até hoje não sei onde meu pai guardava suas fotos
reveladas. Mas havia cerca de uma dúzia de imagens penduradas para secar. Elas
ainda estão vívidas em minha mente — pretas e brancas e banhadas no vermelho
profundo do quarto escuro. Cada foto era o rosto de uma pessoa, próximo e sem
expressão, os olhos estavam opacos e vidrados. Eu nunca tinha visto cadáveres antes,
então não entendia realmente o que estava vendo. Em cada rosto havia linhas pretas
grossas que formavam símbolos que não reconheci, mas que estavam claramente
desenhados nos próprios rostos, não apenas nas fotografias. Não me lembro dos
símbolos com muitos detalhes, eu receio — apenas os rostos em que foram
desenhados, embora não fossem pessoas que eu reconhecia. Nem correspondiam a
nenhuma das fotos que a polícia me mostrou depois.

Nunca mais voltei para o quarto escuro depois de fechar e trancar a porta atrás de mim
naquele dia. Passei as semanas seguintes me perguntando se deveria contar ao meu
pai o que tinha visto. Eu não sabia o que tinha visto, não realmente — mas parecia um
segredo ruim e eu não sabia o que fazer.

Finalmente, decidi contar a ele. Ele estava bebendo no sofá na hora e desligou a
televisão assim que mencionei que tinha entrado no quarto escuro. Ele não disse uma
palavra enquanto eu contava o que tinha visto, apenas me olhou com uma expressão
no rosto que eu nunca tinha visto antes. Quando terminei, ele se levantou e caminhou
em minha direção, antes de me segurar em seus braços e me dar o último e mais longo
abraço que eu receberia dele. Ele me pediu para não odiá-lo, disse que acabaria logo, e
então se virou para ir embora. Eu não tinha ideia do que ele estava falando, mas
quando perguntei, ele apenas disse que eu precisava ficar no meu quarto até que ele
voltasse. E então ele saiu.

Eu fiz o que ele mandou. Subi para o meu quarto e deitei na cama, tentando dormir. O
ar estava pesado de alguma forma, e no final passei a noite olhando pela janela para a
rua lá embaixo. Eu estava esperando por algo, embora não soubesse o quê.

Lembro que eram 2:47 da manhã quando começou. Eu finalmente tinha um


despertador, e a imagem dele ainda está clara na minha memória. Eu estava com sede
e desci para pegar um copo d'água. Abri a torneira, mas o que saiu foi um jato grosso
de água salobra e lamacenta. O cheiro era terrível e eu congelei ao me lembrar da
última vez que aquilo tinha acontecido. Meu pai ainda não estava em casa e eu fui para
a sala de estar para olhar desesperadamente pela janela, olhando para a rua esperando
ele voltar — eu estava apavorada.

Enquanto olhava para a estrada, fiquei impressionada com o quão pequenos eram os
feixes de luz dos postes, estendendo-se ao longe. Mas não tão longe quanto deveriam
ter ido. Havia menos luzes do que deveria, eu tinha certeza disso. Então eu vi a luz no
final da estrada piscar. Não havia lua naquela noite e todas as casas estavam
silenciosas; quando as luzes da rua se apagaram, não havia nada além de escuridão. O
próximo poste de luz mais próximo falhou. E então o próximo. E o próximo. Um cobertor
lento e ondulante de escuridão caminhando sem pressa em minha direção. As poucas
luzes ainda acesas nas casas ao longo da estrada também desapareceram com a
aproximação da maré. Eu apenas sentei lá, incapaz de desviar o olhar. Finalmente ele
alcançou a nossa casa e de repente as luzes se apagaram e a escuridão entrou.

Eu ouvi uma batida na porta da frente. Firme, sem pressa e insistente. Silêncio. Eu não
me movi. A batida veio de novo, desta vez com mais força, e ouvi a porta chacoalhar
nas dobradiças. À medida que ficava mais alto, começou a soar cada vez menos como
uma pessoa batendo e mais como… carne molhada batendo na madeira da porta da
frente.
Eu me virei e corri em direção ao telefone. Quando o peguei ouvi um som de discagem
e teria chorado de alívio se já não estivesse chorando de medo. Liguei para a polícia e,
assim que atenderam, comecei a tagarelar sobre o que estava acontecendo. A senhora
do outro lado da linha foi paciente comigo e insistiu gentilmente para que eu lhe desse o
endereço até que finalmente me recompus. Quase assim que eu disse a ela onde
estava, ouvi a porta começar a se estilhaçar. Larguei o telefone e corri para a parte de
trás da casa. Ao fazer isso, ouvi a porta da frente explodir atrás de mim e ouvi um…
rosnado — era estrondoso, profundo e ofegante como um animal selvagem, mas tinha
um tom estranho que nunca consegui identificar. Não importa para onde eu me virasse,
parecia que saía da escuridão bem atrás de mim. Eu não tive tempo para pensar sobre
aquilo enquanto corria para o jardim dos fundos e para uma luz que eu… não esperava.
Ali na minha frente estava o galpão. Ele brilhava, um azul opaco e pulsante de cada
fenda e emenda. Não parei, contudo — quando ouvi novamente aquele rosnado atrás
de mim, corri em sua direção e puxei a porta.

O galpão não estava trancado naquela noite, e até hoje não sei se me arrependo
daquilo. A primeira coisa que vi quando abri aquela porta foi o meu pai, banhado pela
luz azul pálida. Não consegui ver nenhuma fonte do brilho, mas era tão brilhante. Ele
estava ajoelhado no centro de um padrão ornamentado rabiscado de giz na madeira
áspera do chão. Na frente dele estava um homem que eu não conhecia, mas estava
claramente morto — seu peito havia sido cortado e aberto, e ainda sangrava
debilmente. Em uma das mãos, meu pai segurava uma faca de aparência perversa; e,
na outra, segurava o coração do homem. Meu pai estava cantando e, conforme a
música aumentava e diminuía, o coração em sua mão batia no ritmo, e a luz azul
aumentou e diminuiu com o tempo. Olhei para as paredes e percebi que estavam
cobertas por prateleiras, cada uma delas contendo potes de vidro, cheios do que mais
tarde descobri ser formol contendo um único coração, que também batia no mesmo
ritmo do que pingava na mão do meu pai. Foi uma coisa estranha de se notar na época,
mas eu me lembro que o homem morto usava o mesmo pingente que a minha mãe —
uma mão de prata com um desenho de olho fechado.

Não sei por quanto tempo fiquei ali olhando. Podem ter sido horas, ou pode ter sido
apenas um ou dois momentos. Mas então ouvi aquele rosnado atrás de mim e senti
uma presença tão perto que pude sentir a escuridão nas minhas costas. Antes que eu
pudesse reagir ou me mover ou gritar, o canto de meu pai atingiu um clímax, e ele
cravou a adaga no coração que batia. De repente, a presença desapareceu e o brilho
azul morreu. Eu não conseguia mais ouvir as batidas dos corações. No silêncio, percebi
que podia ouvir sirenes da polícia à distância. Ouvi meu pai dizer que sentia muito, e
então ele começou a correr.

Você sabe o resto. Perseguição, julgamento, prisão, morte. Eles dizem que havia 40
corações guardados naquele galpão, sem incluir sua última vítima — mas é claro que a
polícia não chegou até que tudo o que restava era um armário horrível de troféus. O que
quer que eu tenha visto meu pai fazendo ali, seus efeitos já haviam desaparecido há
muito tempo. Não sei por que meu pai fez o que fez, e duvido que algum dia eu
entenda. Mas quanto mais repasso esses acontecimentos em minha cabeça, mais
certeza eu tenho de que ele teve seus motivos.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Não há muito mais a ser adicionado aqui. Os relatórios policiais sobre Robert Montauk
são previsivelmente completos e há poucos detalhes a serem acrescentados. A grande
maioria das pesquisas sobre esse caso já foi feita pela comunidade de entusiastas dos
assassinos em série que, embora estranha e profundamente perturbadora, muitas
vezes prova ser surpreendentemente útil em casos de alta publicidade como este.

Além do corpo de um tal Christopher Lorne, 40 corações preservados foram


recuperados do galpão de Robert Montauk. Eles foram dispostos nas paredes em
prateleiras individuais formando padrões de onze corações em cada parede interna e
sete na parede com a porta. As fotos dos padrões correspondem às várias fórmulas da
geometria sagrada, mas não parecem corresponder exatamente a nenhuma seita
específica. Possivelmente significativo também é o fato de que o resto dos corpos
nunca foram encontrados.

O símbolo nos dois pingentes é o da Igreja do Povo da Hóstia Divina; um pequeno culto
que cresceu em torno do ex-ministro pentecostal Maxwell Rayner em Londres durante o
final dos anos oitenta e início dos anos noventa. Eu sabia que reconhecia o nome do
Depoimento 1106922, embora, atualmente, pareça apenas uma coincidência.
Christopher Lorne era membro da igreja e sua família não tinha tido notícias dele nos
seis anos anteriores ao seu assassinato. O próprio Sr. Rayner desapareceu da vista do
público por volta de 1994, e o grupo se fragmentou pouco depois. A polícia fez muitas
tentativas de dar seguimento a esta pista no caso de Montauk, mas nunca conseguiu
localizar nenhum membro que quisesse prestar depoimento.

A casa na York Road ainda está habitada, embora os atuais proprietários tenham
derrubado o galpão há mais de uma década e substituído por um pátio.

Robert Montauk morreu na prisão de Wakefield em 1º de novembro de 2002. Ele foi


esfaqueado quarenta e sete vezes e sangrou até a morte antes que alguém o
encontrasse. Depois de ler este depoimento, três pontos interessantes foram
levantados: nenhum culpado ou arma jamais foi encontrado conectado ao assassinato;
ele estava aparentemente sozinho em sua cela naquele momento, que deveria estar
trancada; e no momento de sua morte a lâmpada em sua cela explodiu, o deixando na
escuridão.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Trevor Herbert a respeito de sua vida como um autoproclamado caçador
de vampiros. Depoimento original prestado em 10 de julho de 2010. Gravação de áudio
por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Certo. Faz quase 50 anos que pretendo fazer uma visita a vocês e colocar isso no
papel, mas finalmente cheguei aqui. Então, por onde começar? Meu nome é Trevor
Herbert, como eu escrevi no topo daquela ficha de vocês, e eu fui um sem-teto a maior
parte da minha vida. Na verdade, se você já morou em Manchester, há uma boa chance
de ter ouvido falar de mim. Eles me chamam de “Trevor, o Vagabundo”. Quer dizer, não
sou lá muito sútil e vivo naquele lugar às vistas do público há tanto tempo que acho que
me tornei uma espécie de instituição. Ajuda que eu sempre tive uma habilidade
estranha pra adivinhar a idade das pessoas. As pessoas vêm até mim na rua e me
pedem para adivinhar sua idade, e eu digo a elas e na maioria das vezes elas ficam
chocadas por eu acertar. É divertido. Então, todo mundo em Manchester sabe sobre
Trevor, o Vagabundo, claro — ouvi dizer que alguém até fez uma página na Internet pra
mim e conseguiu umas boas curtidas. Não sei exatamente o que isso significa, mas
parece legal. Obviamente não é por isso que eu estou aqui, né? Não, estou aqui porque
também dediquei minha vida a encontrar e matar vampiros.

Eu matei cinco pessoas que tenho certeza de que eram vampiros, e mais duas que
podiam ou não ser. Há um homem que matei, infelizmente, que agora tenho certeza de
que era humano, mas também sei que ele era um criminoso violento, então tento não
me sentir muito mal por isso. Tenho certeza de que é difícil para qualquer pessoa
aceitar isso, mesmo uma organização como vocês, mas não tenho provas para dar
exceto pelos dentes de vampiro que irei deixar com este depoimento. Não se sintam
mal por me denunciarem à polícia pelos assassinatos como tenho certeza de que vocês
devem fazer, já que recentemente recebi um diagnóstico de câncer de pulmão em
estágio avançado e é incerto que eu ainda viva muito mais de qualquer forma. Essa é a
principal razão para eu finalmente colocar no papel os detalhes da missão que venho
realizando secretamente há meio século.

Eu matei meu primeiro vampiro em 1959. Naquela época eu ainda estava levando uma
vida normal, exceto, talvez, pelo abuso que minha família sofria do meu pai. Ele era um
homem desprezível que acabou matando minha mãe em 56. Foi um caso claro de
homicídio por embriaguez, mas os tribunais consideraram como um acidente e meu pai
ficou solto. Felizmente, eu e meu irmão só tivemos que suportar quatro meses de
incômodos dele antes que ele finalmente terminasse de se matar de beber. Eu tinha
treze anos quando ele finalmente morreu e meu irmão tinha quinze. Após sua morte
fizeram várias tentativas de nos realojar como órfãos, mas eles sempre nos separavam
e não podíamos ficar assim, então geralmente fugíamos. Depois de um tempo, ficamos
mais felizes em encontrar o nosso caminho nas ruas do que na casa de outro estranho.

Foi no outono de 1959 que fomos acolhidos por Sylvia McDonald. Não havia nenhum
tipo de contrato oficial de adoção, mas estava começando a ficar bem frio no final de
outubro e a coisa nos viu tremendo em uma ruela próxima ao Hotel Kings Arms, que
naquela época ficava na Rua Tipping antes de construírem a estrada circular. Olhando
agora, acredito que ela andava visitando o pub com o propósito de localizar pobretões
para serem usados como vítimas e encontrou isso com sucesso em mim e no meu
irmão. Parecia uma mulher mais velha — uma viúva, eu presumi, pelo jeito que se
vestia de preto — e tinha um jeito estranho, que agora sei que é a marca dos vampiros,
mas naquela época não prestei atenção nisso. Muitas das pessoas mais velhas viveram
durante as duas guerras e não era incomum que fossem um tanto estranhas. Achei que
esse fosse o caso de Sylvia McDonald e, depois de uma pequena discussão, meu irmão
e eu concordamos em aceitar a oferta de comida e abrigo.

Me deixe falar um pouco sobre o comportamento dos vampiros, porque uma vez que eu
aprendi a ler, li o máximo que pude sobre o assunto, e não é abordado com frequência
ou explicitamente nos livros que eu encontrei. Veja, pelas minhas próprias observações,
acredito que um vampiro seja mais como um animal do que um homem. Isso não é para
ser apenas uma frase de efeito, mas tem mais a ver com o modo como eles funcionam.
Não creio que os vampiros sejam humanos em nada além de sua aparência, nem nunca
vi evidências de que eles criam mais de sua espécie através da alimentação. Uma coisa
que deve ser observada é que eles não falam. Na verdade, pela minha experiência eles
são totalmente silenciosos, não têm necessidade de ar e nenhum espaço em suas
gargantas para uma traqueia. Porém, eles são capazes de se fazerem entender com
absoluta clareza; embora a maneira como o fazem nunca tenha ficado clara para mim.
Quando Sylvia McDonald veio até nós no beco naquele dia, entendemos que esse era o
nome que a coisa se dava e que estava nos oferecendo uma refeição e uma cama,
embora nunca tenha emitido um único som. Mais do que isso, não me lembro de
nenhum de nós dois ter estranhado o fato de que aquilo nunca disse uma única palavra.
Nunca entendi completamente como eles são capazes de fazer isso e duvido que algum
dia entenderei, mas só consigo pensar que seja alguma forma instintiva de hipnose ou
controle da mente.
Outro equívoco que sempre enfrentei ao tentar debater sobre vampiros é que as
pessoas pensam que eles não podem sair durante o dia. Eles podem. Embora eu os
tenha testemunhado evitando luz solar direta se possível e geralmente usando roupas
que cobrem mais o corpo quando se movimentam durante o dia, eles parecem não ter
nenhum problema significativo em fazer isso. Eu diria que eles são mais fracos durante
o dia, mas se isso é algo cientifico por causa da luz do sol ou simplesmente porque o
mal tem menos poder durante o dia, é incerto para mim. Sylvia McDonald veio até nós
em uma tarde nublada, e o suficiente de sua pele pálida estava descoberta ao ponto de
que se a luz do sol realmente ferisse um vampiro, ela provavelmente teria sido
destruída.

Naquela tarde, meu irmão Nigel e eu concordamos em ir para a casa de Sylvia


McDonald na esperança de ter um teto sobre nossas cabeças por um tempo. Ela
morava na Rua Loom, que ainda está lá, embora a casa em si tenha sido demolida há
muito tempo e haja apenas um pedaço de matagal onde ficava antes. Às vezes eu vou
lá para prestar minhas condolências, já que meu irmão não tem uma lápide ou sepultura
que eu possa visitar. A casa era velha, mesmo quando eu a visitei em 1959, e ao entrar
fui atingido por um cheiro mofado e acobreado que eu não reconheci como sangue
velho na época, visto que eu tinha apenas 16 anos e não tinha a experiência que tenho
hoje. A mobília e o papel de parede claramente não haviam sido trocados há muitas
décadas e uma espessa camada de poeira cobria tudo. Até o chão estava pálido de
poeira, exceto por uma linha rígida por onde Sylvia McDonald passava, a cauda do
vestido se arrastando atrás dela. Lembro de me perguntar se Sylvia McDonald sempre
fazia exatamente os mesmos caminhos pela casa, já que vi outras linhas de passagem
claras nos quartos por onde passamos. Nenhum dos móveis parecia usado e quando
peguei um livro de uma das prateleiras, as páginas estavam duras com umidade e
mofo. Comecei a me sentir muito desconfortável naquele ponto, mas quaisquer que
sejam os poderes de persuasão que o vampiro tinha, me acalmaram o suficiente para
continuar a segui-la com o meu irmão.

Subimos as escadas e fui conduzido a um pequeno quarto com uma cama. Fui
informado de que aquele seria o meu quarto e fui deixado lá enquanto Sylvia McDonald
conduzia meu irmão para o quarto ao lado. Quando ela voltou, trouxe uma tigela de
frutas e ofereceu a mim. As frutas estavam claramente velhas e em vários estágios
diferentes de podridão, mas apenas para apaziguar a coisa encontrei uma maçã e
algumas uvas que pareciam comestíveis e as comi. Ela me observou em silêncio o
tempo todo e então se virou e saiu em direção ao quarto de Nigel. A essa altura, o que
quer que a criatura tenha feito para me tornar obediente parecia estar começando a
passar, e eu estava percebendo o quão errado tudo aquilo estava. Eu também estava
percebendo que não parecia haver nenhuma saída fácil daquela casa. Todas as janelas
que eu vira tinham grades, e me lembrei de que Sylvia McDonald havia trancado a porta
robusta da entrada atrás dela depois que todos entramos. Então eu apenas me deitei na
cama velha e mofada e esperei.

Não sei dizer com certeza o que estava esperando, mas logo escureceu e presumi que
Sylvia McDonald tivesse adormecido, ainda sem perceber o tipo de coisa com a qual eu
estava lidando. Eu queria alguma luz para me reconfortar, mas a casa velha parecia
não ter eletricidade, então usei meu isqueiro em uma vela que encontrei ao lado da
cama e rastejei em direção à porta. Não estava trancada, felizmente, e saí do quarto
designado a mim e caminhei até onde eu acreditava que meu irmão estava. Entrei e o
encontrei deitado em sua própria cama, fingindo dormir. Depois de um pouco de
conversa, ficou claro que Nigel não estava mais feliz do que eu com a nossa situação, e
ambos decidimos que outra noite nas ruas frias era melhor do que ficar com aquela
mulher estranha. Enquanto conversávamos sobre as possíveis maneiras de escapar,
porém, ouvimos um farfalhar do lado de fora da porta e a maçaneta começou a girar.
Não querendo irritar nossa anfitriã estranha, rastejei para debaixo da cama para me
esconder, enquanto Nigel voltava a fingir que estava dormindo.
Do meu ponto de vista embaixo da cama, pude ver a porta se abrir e a saia de Sylvia
McDonald entrar e se mover em direção à cama. Eu simplesmente deitei lá e tentei não
fazer nenhum som. Não me orgulho disso e às vezes tenho a certeza de que meu
silêncio levou diretamente à morte do meu irmão, mas na maior parte do tempo eu
aceito que se eu tivesse alertado o vampiro da minha presença, eu também teria
morrido. De qualquer forma, o fato é que eu não fiz nada quando ouvi os sons de um
confronto em cima da cama e o grito estrangulado de Nigel. A criatura se virou
rapidamente e o jogou no chão; algo caiu no piso à minha frente, mas eu não olhei,
meus olhos fixos em Sylvia McDonald quando ela se lançou sobre o meu irmão. A coisa
abriu a boca pela o que eu então percebi ser a primeira vez desde que a encontramos,
e eu não pude ver nada lá dentro exceto por uma dúzia de dentes longos, grossos e
pontiagudos como um tubarão. Em um movimento fluido, ela cravou aqueles dentes no
pescoço do meu irmão e arrancou um grande pedaço de carne. O sangue começou a
jorrar do corpo em espasmos de Nigel, enquanto a garganta de Sylvia McDonald
começou a se contorcer. Sua mandíbula se deslocou e uma longa língua tubular da
espessura do meu antebraço saiu de sua garganta e se agarrou ao ferimento que
jorrava. Houve um som horrível de engolir, o primeiro barulho que eu realmente ouvi a
criatura fazer, enquanto a língua sugava o sangue da garganta do meu irmão. Eu só
fiquei ali, observando enquanto seu estômago começava a se distender e inchar, a
barriga agora bulbosa se esticando contra o vestido preto que ela usava. Depois dos
dez minutos mais longos da minha vida, o vampiro terminou. Sua língua se retraiu de
volta para a garganta, ainda pingando sangue no agora pálido cadáver de meu irmão, e
ela se deitou no chão, aparentemente satisfeita.

Enquanto isso acontecia, toda a minha energia foi canalizada para não gritar ou
denunciar minha presença. Mas enquanto o vampiro estava saciado no chão, voltei
minha atenção para o que havia caído das mãos de Nigel quando ele foi arrastado para
fora da cama. Era seu canivete. Eu não tinha ideia do que uma faca pequena como
aquela faria contra uma criatura que parecia ser muito mais forte e mais rápida do que
eu, mas não vi outra opção a não ser tentar. Eu me movi tão devagar enquanto
alcançava o canivete que às vezes parecia que eu não estava nem me movendo. Eu
estava preocupado que a criatura me visse e me atacasse como aconteceu com o
Nigel, embora agora eu saiba que o olfato é de fato o principal sentido dos vampiros e,
com todo aquele sangue ao redor, havia poucas chances de ela detectar o meu cheiro.
Agarrando a faca em minhas mãos, rastejei em direção à criatura enquanto ela digeria
tranquilamente a vida do meu irmão, até que eu estava sobre ela. Senti uma onda
repentina de raiva e adrenalina tomar conta de mim e com uma velocidade e força que
eu nunca soube que tinha, mergulhei o canivete no estômago inchado de sangue de
Sylvia McDonald.

Estourou como um balão nojento, e o sangue começou a escorrer. Os olhos da criatura


se abriram e ela agarrou a ferida desesperadamente. Sua garganta não era capaz de
emitir um grito, mas seu rosto mostrava uma dor e uma raiva silenciosa enquanto se
debatia no chão. Tropeçando para trás, tentando limpar o sangue dos meus olhos, senti
uma queimação inesperada em minha mão. Percebi que havia tocado na vela ainda
acesa na mesinha de cabeceira. Não sei o que esperava que acontecesse quando
peguei a vela e a pressionei na parte seca do vestido de Sylvia McDonald. Eu estava
apenas tentando encontrar qualquer outra coisa que pudesse fazer para machucá-la
antes que ela pudesse se recuperar da barriga cortada, mas eu certamente não
esperava que pegasse fogo como madeira seca. O fogo se espalhou rapidamente sobre
sua forma repulsiva, embora tenha diminuído um pouco onde a roupa ou a carne ainda
estavam úmidas de sangue. Me ocorreu que os vampiros devem ser criaturas muito
secas quando não alimentados e cheios. Talvez eu tivesse atacado antes que o líquido
se espalhasse por todo o corpo dela.

Seja qual for o motivo, Sylvia McDonald estava em chamas, num nível em que o resto
da sala estava começando a pegar fogo também. Fiquei perturbado com a ideia de
deixar aquela casa sem o meu irmão, mas ele estava claramente morto e eu precisava
escapar. Eu me lembrei que o vampiro estava carregando uma bolsa quando nos
conhecemos, e tinha usado uma chave que estava nela para trancar a porta da frente.
Ela não estava com a bolsa agora, porém, então comecei a procurar desesperadamente
nos outros cômodos da casa, tentando encontrá-la. Eu a encontrei no final, no que eu
imagino ser o quarto do vampiro. Não vou descrevê-lo em detalhes, apenas dizer que
parecia ser o lugar onde a criatura fazia a maior parte de suas refeições. Espero que
isso torne a imagem clara o suficiente para você. Porém, encontrei a chave e escapei
daquela casa antes que o incêndio me causasse algum dano sério. Eu estava com
medo de que a polícia viesse e pensasse que eu era um assassino, então não fiquei por
lá. Eu apenas fugi noite adentro.

Passou-se quase uma década antes de eu encontrar outro vampiro. Eu vivi nas ruas por
todo aquele tempo, ocasionalmente entrando e saindo de várias instituições, e quase
consegui me convencer de que Sylvia McDonald tinha sido apenas uma reação ruim ao
estresse de assistir ao assassinato de meu irmão. Foi no final dos anos 60 que entendi
que não. Foi em 1968, eu me lembro porque foi o ano em que o United ganhou a Taça
dos Campeões Europeus, e eu me dei muito bem com isso — as pessoas são
generosas com pedintes quando estão felizes com uma vitória esportiva. Em noites de
sexta-feira eu geralmente passava meu tempo no Clube Oasis na Rua Lloyd e pedia
uns trocados a qualquer um que estivesse um pouco bêbado. Bem, nesta noite em
particular eu estava me saindo muito bem, já que era uma noite quente de junho não
muito depois da final da Copa, e todos estavam de bom humor.

Aí, por volta das onze e meia daquela noite, vi um estranho todo vestido para dançar
saindo do clube com uma amiga. Achei que eles poderiam ser bons para jogar uma
conversinha, então fiz minha abordagem. Eu joguei a conversa e esperei. O homem
olhou para mim e eu entendi que ele não me daria nenhum dinheiro, então me afastei.
Foi quando ele se virou para sair que percebi que ele não tinha aberto a boca, e as
memórias de Sylvia McDonald voltaram rapidamente para mim. Eu não tinha certeza do
que fazer, então os segui de longe. Não tentei me esconder ou me disfarçar, como já
havia aprendido há muito tempo — e isso é uma verdade agora assim como era
naquela época — que ninguém dá muita atenção a um vagabundo. Enquanto eu
observava, vi a mulher claramente bêbada fazendo perguntas a esse estranho, e todas
as vezes ele apenas olhava para ela, e ela sorria como se ele tivesse dado uma
resposta tranquilizadora e tropeçava atrás dele. O tempo todo ele não abriu a boca
nenhuma vez.

Eu não sabia bem o que fazer sobre aquilo; eu não tinha nenhuma arma, exceto pelo
velho canivete do meu irmão, que mantive afiado por todos aqueles anos — e embora
eu tivesse certeza do que estava vendo, ainda estava hesitante em atacar sem motivos
e sem um plano. Enquanto caminhávamos, fiquei de olho em qualquer madeira ou lenha
descartada e claramente notei uma paleta de madeira quebrada projetada parcialmente
para fora de uma lata de lixo. Peguei um longo pedaço quebrado e usei minha faca para
cortá-lo rapidamente até ficar pontudo, ignorando as farpas. Embora eu não tivesse,
naquela época, feito muitas pesquisas sobre as criaturas que enfrentava, acreditando
que minha experiência quando jovem era o resultado de um estado mental perturbado,
eu ainda estava ciente de seu suposto ponto fraco por estacas de madeira. Eu agora
tinha seguido o vampiro — que mais tarde descobri que chamava a si mesmo de Robert
Arden — e sua vítima de volta ao prédio onde ele aparentemente vivia. Ele entrou pela
porta da frente e a mulher o seguiu. Não fui rápido o suficiente para entrar antes que a
porta se fechasse e obviamente não tinha a chave, então contornei as janelas e
felizmente parecia que o vampiro morava no andar térreo.

Observei pela janela enquanto ele conduzia sua vítima para uma sala de estar pouco
mobiliada. Eu não conseguia ver nenhum sinal óbvio de um massacre anterior, mas me
lembrei de como Sylvia McDonald sugou todo o sangue do meu irmão de maneira
limpa, então aquilo não me pareceu estranho. Eu tentei gentilmente empurrar a janela
mas estava trancada, então procurei no jardim a pedra mais pesada que pude encontrar
e observei o que estava acontecendo lá dentro. Eu tinha que ter certeza. Sem demora,
Robert Arden se moveu suavemente por trás de sua presa que agora estava sentada, e
finalmente abriu a boca para revelar aquelas fileiras de dentes de tubarão que eu sabia
que estariam lá. Eu atirei a pedra que segurava pela janela, banhando o quarto com
vidro quebrado e fazendo a mulher gritar em choque. Robert Arden ergueu a cabeça
surpreso e por um momento nossos olhos se encontraram, e eu soube que havia
cometido um erro terrível. A mulher olhou para seu companheiro monstruoso e, vendo
sua boca agora aberta, gritou ainda mais alto em terror. Em um único movimento, muito
mais rápido do que eu esperava, Robert Arden passou pela janela e caiu sobre mim. Eu
me debati e lutei, mas ele era muito mais forte do que eu, e mal consegui evitar que
seus dentes irregulares encontrassem minha garganta. Foi a primeira e última vez que
toquei a pele de um vampiro com as minhas mãos. A carne era fria e esponjosa, como o
interior de uma maçã machucada, e eu senti a bile subir pela minha garganta mesmo
enquanto eu lutava pela minha vida.

Por fim, seus dentes morderam meu pescoço. Não o suficiente para me matar
imediatamente, mas com força suficiente para fazer o sangue fluir. Naquele momento, vi
uma espécie de frenesi se infiltrar nos olhos de Robert Arden e, com um espasmo, a
língua de sanguessuga saiu da garganta dele e a senti se prender ao meu pescoço.
Não sei se você já sentiu seu sangue sendo sugado de você, mas eu não recomendo.

Agora é neste ponto que tenho uma confissão a fazer. Durante os três anos anteriores a
esse evento, assim como durante os anos que se seguiram, eu tive um relacionamento
com heroína. Tentei pela primeira vez logo após a morte de Nigel e desde então tenho
recaídas periódicas. Sempre tentei manter isso em segredo, já que estou ciente de que
tenho uma certa reputação a manter e não gostaria que ela fosse prejudicada pela
revelação do meu vício — mas isso é importante para esse relato, pois acredito que foi
a heroína que ainda estava em meu sistema naquela noite que fez com que o vampiro
Robert Arden removesse a língua do meu pescoço e começasse a tremer, como se
estivesse tendo um ataque de asfixia violento.

Fiquei ali, tentando me recompor o suficiente para lutar, quando percebi a gritaria. A
mulher, que tinha sido trazida como vítima, estava de pé ao lado de Robert Arden,
esfaqueando-o várias vezes com uma faca de cozinha. Mesmo sendo forte e rápido
como era, o vampiro não parecia ser capaz de lidar com o ataque repentino de violência
e estava no chão. Isso me deu os segundos preciosos que eu precisava para me
levantar e encontrar minha estaca de madeira improvisada. Eu mirei e a mergulhei onde
eu acreditava que o coração da coisa deveria estar. Foi mais fácil do que pensei que
seria — o peito era macio e flexível e não parecia haver nenhuma caixa torácica para
impedir o golpe. Robert Arden ficou rígido e congelou, aparentemente incapaz de mover
seu corpo, embora eu visse seus olhos correndo em volta loucamente.

Foi nesse momento que a mulher, cujo nome eu nunca descobri, largou a faca e saiu
correndo. Nunca mais a vi, mas ela já tinha salvado a minha vida. Peguei meu isqueiro
e incendiei Robert Arden. Assim como Sylvia McDonald, ele pegou fogo em questão de
segundos e, quando a polícia chegou, não havia mais nada além de um pequeno
pedaço de asfalto chamuscado. Tive sorte naquela noite, e ninguém viu nada ou
chamou a polícia antes de eu terminar e sair da cena, mas eu sempre fui mais
cuidadoso depois daquilo.

Depois daquela noite, porém, eu nunca mais me preocupei que pudesse estar errado
sobre a existência de vampiros. Sempre mantive meus olhos abertos para eles, embora
às vezes eu fosse impaciente demais, como foi o caso de Alard Dupont que matei em
1982 e depois descobri que era um humano. Creio que eles são muito raros, e se
alimentam com pouca frequência já que todas as evidências que vi indicam que sua
alimentação é fatal. Se houvesse muitos vampiros ou se eles comessem com
frequência, o número de desaparecimentos rapidamente se tornaria perceptível para o
resto da sociedade. Eu não sei o que eles fazem com os corpos de suas vítimas e isso
sempre me deixou perplexo, já que eles não possuem nenhum mecanismo para comer
alimentos sólidos e não acredito que tenham muitos — se é que tem algum — casos de
homicídio em que o corpo tenha sido encontrado completamente sem sangue. Eu com
certeza não acho que eles se tornem vampiros também, já que a população de
vampiros parece muito pequena para que isso seja uma possibilidade.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

De acordo com Martin, que estava aqui quando eles receberam este depoimento, foi
neste momento que o Sr. Herbert anunciou que precisava dormir um pouco antes de
continuar. Ele foi conduzido até a sala de descanso, onde foi dormir no sofá. Ele não
acordou, infelizmente sucumbindo ao câncer de pulmão ali mesmo. Martin diz que a
equipe estava ciente da gravidade da condição do Sr. Herbert e o aconselhou a
procurar ajuda médica antes de prestar seu depoimento, mas foram informados de
maneira bem direta pelo velho que não esperaria mais um segundo para apresentar seu
caso. Não consigo decidir se isso dá mais ou menos credibilidade à sua história.

Independentemente disso, há evidências substanciais para sustentar a versão dos


eventos contados pelo Sr. Herbert em todos os aspectos, exceto o vampirismo. Há um
boletim de notícias sobre um incêndio em 1959 que consumiu uma casa na rua Loom e
aparentemente tirou a vida de um garoto de 18 anos, embora nenhuma menção seja
feita ao dono da casa; e um relatório policial de 1968 confirma o desaparecimento de
Robert Arden em Manchester em meio a circunstâncias de violência, incluindo uma
janela quebrada e sinais de incêndio, embora nenhum resto humano tenha sido
encontrado. Há também um relatório de homicídio sobre um tal de Alard Dupont, cujo
cadáver parcialmente queimado foi encontrado em sua casa em 2 de agosto de 1982.
Infelizmente o Sr. Herbert nunca foi capaz de dar detalhes sobre os outros, portanto não
podemos confirmar mais além.

Havia, no entanto, um pequeno saco deixado em cima deste depoimento, que


aparentemente contém seis dentes de tubarão de tamanhos variados. De acordo com
as correspondências com o Departamento de Zoologia da Universidade do Rei, eles
não correspondiam a nenhuma espécie atualmente conhecida.

Pessoalmente, eu não sei o que pensar. Eu com certeza não acredito em contos
selvagens de vampirismo, mas não posso deixar de notar que o depoimento acima
parece ser uma fotocópia de uma fotocópia, e não consigo encontrar esses supostos
dentes de vampiro em nenhum lugar nos Arquivos ou na Sala de Contenção. Não sei
onde estão os originais, mas o número do arquivo está listado entre várias solicitações
de informação da administração do Instituto e contratos de aplicação da lei. Pode ser
que eles levem o depoimento do Sr. Herbert muito mais a sério do que eu.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Antonio Blake, a respeito de seus sonhos recentes sobre Gertrude
Robinson, ex Arquivista Chefe do Instituto Magnus. Depoimento original prestado em 14
de março de 2015. Gravação de áudio por Jonathan Sims, atual Arquivista Chefe do
Instituto Magnus, Londres.
Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Primeiramente, devo admitir que eu menti para entrar aqui. Sei que os critérios de vocês
são muito claros: “qualquer experiência ou encontro sobrenatural ou inexplicável que
ocorra dentro dos reinos da realidade aparente. Sem experiências de projeção astral,
visões, alucinações ou sonhos”. E isso é sobre sonhos, não se engane, mas acho que
você precisa ouvir do mesmo jeito. Se você acredita ou não, bem, aí é com você. Eu só
não sinto que conseguiria seguir o meu caminho sem pelo menos tentar me explicar.

Veja bem, eu sonhei com você.

Eu sei o que isso parece, e posso te garantir que não nos conhecemos, mas o Instituto,
o prédio, até esta sala… Eu os vi no meu sonho tão claramente como os vejo aqui
diante de mim agora. Então, não. Eu não tenho nenhuma história sobre um horror
cambaleante no escuro. Mas peço que continue lendo, entretanto… Já que este não era
o tipo de sonho que você apenas ignora.

Eu provavelmente deveria falar um pouco sobre mim ao invés de apenas tagarelar


sobre sonhos e profecias. Moro em Londres há quase uma década; eu vim pra cá para
cursar minha graduação na Escola de Economia de Londres. Acabei arrumando um
emprego no Barclays pouco depois de me formar e me saí bem o suficiente lá. Não
durou muito, porém; eu mal consegui sobreviver por um ano inteiro antes que o
estresse do meu novo emprego — sem mencionar alguns problemas na minha vida
pessoal — me levasse a ter um colapso nervoso completo. Eu terminei com Graham,
meu namorado há seis anos, e tive que deixar a casa que dividíamos, indo ficar com
alguns dos poucos amigos que sobreviveram ao meu ano de crises de estresse e
planos constantemente cancelados.

Foi lá, dormindo no sofá da minha amiga Anahita, nas profundezas da minha miséria,
que comecei a ter os sonhos. Me encontrei de pé no topo do Canary Wharf, e com vista
para o prédio do Barclays, onde passei tantas horas detestáveis. Atrás de mim, eu
podia sentir a batida pulsante da luz no topo daquela torre iminente; ela vibrou por mim
e eu pude ver o brilho passar através da minha pele como óleo, mas, por mais que eu
tentasse, não conseguia me virar para olhar para ela. Foi então que percebi que havia
algo de errado com a cidade abaixo de mim. Estava escura, iluminada pelo brilho
laranja fraco dos postes de luz e algo também pulsava estranhamente ali. Olhando para
baixo pude ver uma teia de gavinhas escuras cruzando as ruas e rastejando pelos
prédios. Eram como vasos sanguíneos, espessos e escuros — alguns tão largos quanto
estradas e outros tão finos quanto um fio de telefone, e todos eles vibravam com o
pulsar da luz atrás de mim. Eu precisava chegar mais perto.

Sonho lúcido nunca foi uma habilidade que possuí, e geralmente sou arrastado pela
correnteza do que quer que corra pela minha consciência adormecida. Por isso foi uma
surpresa quando o meu desejo irracional de me aproximar se manifestou, e eu me movi
adiante. Ainda mais surpreendente foi o meu movimento ter me levado à extremidade
do telhado de Canary Wharf, e eu caí. Eu despenquei, não sei o quão longe, até cair no
chão com um estalo. Esperava que isso me acordasse, mas em vez disso eu
simplesmente fiquei deitado ali, com espasmos da dor de sonho, você sabe… A
compreensão da dor sem a ardência intensa dos nervos. Depois de algum tempo, sabe-
se lá quanto tempo no sono, eu fiquei de pé novamente e comecei a me mover através
daquela paisagem infernal, laranja e venosa que eu sabia ser a cidade.

Enquanto me movia — não direi caminhava, pois isso não seria muito correto — eu vi
pessoas. Não muitas, e não se mexiam, mas estavam lá. Elas sorriam como fotografias,
superexpostas e desbotadas, capturadas e imortalizadas em um único instante. Cada
uma estava envolta por aquelas gavinhas, pulsando contra sua imobilidade. Uma tinha
uma veia preta e fina que serpenteava em torno de seus braços e parecia desaparecer
onde seu coração deveria estar. Outro, um senhor mais velho em um terno azul escuro,
deitado no chão com uma massa pulsante do tamanho de um tronco de árvore
esmagando suas pernas. No rosto de cada pessoa que eu via estava a mesma feição
de surpresa, dor e confusão aterrorizada. Eu nunca tinha sonhado assim antes, e sabia
que havia algo ali além da minha própria consciência cambaleante.

Eventualmente, meu perambular à deriva me levou de volta ao edifício Barclays. Algo


dentro de mim queria entrar ali, ver como ele era nessa paisagem de sonho rítmica e
carnuda. As luzes estavam acesas, mas como se fossem lâmpadas laranjas de vapor
de sódio como aquelas lá fora, e como todas as outras luzes seu brilho palpitava dentro
e fora daquele mundo pulsante, que parecia dominar todo aquele lugar. As mesas
estavam organizadas como eu sabia que estariam, mas não havia ninguém que eu
pudesse ver. Peguei as escadas, pois algo sobre a ideia de usar o elevador me encheu
de um pavor arrepiante. Eram 23 andares até o escritório onde eu trabalhava, mas
mesmo que eu tivesse pernas neste lugar, não foram elas que me levaram escada
acima. Foi lá que encontrei minha própria mesa, limpa e vazia como eu havia deixado
algumas semanas antes.

Então eu soube, de repente, que havia algo no pequeno escritório ao meu lado. Eu senti
no ritmo do meu sonho, e me conduzi até lá para ver. Era o escritório do meu antigo
gerente de linha, John Uzel, e ele estava lá dentro. Uma das veias negras e escuras
havia serpenteado pela janela, e parecia ter suspendido John a meio metro do chão,
enrolada levemente em torno de sua garganta. Como todos os outros ele estava imóvel,
uma imagem mantida no lugar, pendurada e suspensa por essa massa pulsante de
peculiaridade.

Eu acordei naquele ponto. Normalmente, um pesadelo me deixaria suado e com os


olhos arregalados, mas naquela manhã me senti revigorado. Me ocorreu que, embora o
sonho tivesse parecido um pesadelo de todas as maneiras, em momento nenhum eu
havia sentido algum desconforto real. Mesmo minha queda no início teve uma curiosa
ausência de qualquer angústia verdadeira. Tentei tirar isso da minha cabeça enquanto
vasculhava os sites de empregos, mas algo sobre o sonho permanecia, como um cheiro
desagradável que você só sente quando para de pensar nele. Eu não via John Uzel há
vários meses — ele havia deixado a empresa algum tempo antes do meu colapso e eu
nunca o conheci tão bem. Mas a imagem do rosto dele no meu sonho não me largava,
então resolvi descobrir por que ele havia voltado à minha mente de um jeito tão
estranho. Por alguma razão, a ideia de que podia não haver um motivo para a sua
aparição, que podia ser totalmente acidental, nunca me ocorreu.

Me ofereceram a oportunidade de voltar ao Barclays depois da minha partida bastante


dramática, uma vez que a minha saúde mental estivesse em um estado melhor — mas
naquele ponto eu não conseguia nem pegar o trem na Ferrovia Docklands Light porque
tinha um ataque de pânico toda vez que o trem chegava na Poplar e a figura iminente
do edifício Barclays e o Canary Wharf apareciam. Recusei a oferta, mas ainda mantinha
contato com alguns dos meus agora ex-colegas, então mandei um e-mail para alguns
deles para ver se sabiam como entrar em contato com meu antigo gerente. Não
demorou muito para descobrir a verdade — aparentemente John Uzel havia se
enforcado após a perda de uma batalha feroz pela custódia contra sua ex-mulher.

Com certeza não preciso dizer que isso me abalou profundamente. Mais uma vez, não
tive dúvidas de que aquilo não era uma coincidência. Eu sabia — ainda sei — que o que
eu vi no meu sonho refletia deliberadamente o destino dele.

Não me lembro dos meus sonhos nas noites seguintes, mas lembro que tive aquele
mesmo sonho de novo no sábado seguinte. Era o mesmo em todos os detalhes, exceto
que havia pessoas diferentes. Alguns ainda eram os mesmos, mas outros eram novos
ou haviam desaparecido, e aqueles de quem eu lembrava haviam desbotado, como
papel de parede deixado muito tempo ao sol. De novo, comecei no topo do Canary
Wharf, com a luz pulsando atrás de mim — e assim que desci me vi capaz de
atravessar a cidade à vontade, observando todas as figuras envoltas naquelas veias
latejantes. Voltei para onde John estava, e como imaginei ele ainda estava lá, embora
desbotado a ponto de, se eu já não soubesse quem ele era, não conseguiria identificá-
lo. As gavinhas que envolviam sua garganta estavam ainda mais escuras do que antes,
no entanto.

Sabendo o que eu sabia agora sobre o John, eu podia ver as mortes de cada pobre
alma que eu vi enquanto vagava pelo sonho. As trepadeiras escuras agarravam a
cabeça da vítima de um derrame, e os pulmões de um fumante com câncer, e
enterravam as vítimas de um acidente de carro sob a vastidão de sua massa. Não fui
em direção ao hospital, pois muitas daquelas linhas grossas e borrachentas iam para lá
e eu não conseguia ver nenhuma passagem que não estivesse bloqueada por elas.

Esses sonhos têm sido uma parte recorrente do meu sono por cerca de oito anos.
Mesmo quando minha vida melhorou e eu encontrei um novo emprego e um lugar para
morar — acredite ou não, agora trabalho vendendo cristais e cartas de tarô em uma loja
“mágica” — eles continuaram a surgir algumas vezes por mês. Se há uma vantagem em
trabalhar onde eu trabalho, é que pude ler todos os livros já escritos sobre sonhos
esotéricos, mas nenhum deles nem chegou perto do que eu experimentei. Tentei fazer
as pazes com os sonhos por algum tempo, raciocinando que, enquanto não me
causassem desconforto, eram inofensivos. Isso funcionou bem até que vi meu pai no
sonho, descendo a Rua Oxford, as veias pulsantes subindo por sua perna e para dentro
de seu peito.

Eu tentei avisá-lo, é claro — fiz perguntas importantes sobre sua saúde e como ele
estava se sentindo, se ele tinha se cansado recentemente. Cheguei até a marcar uma
consulta médica para ele, para o seu aborrecimento. Mas não adiantou — dez dias
depois o ataque cardíaco veio por ele e, apesar da rápida resposta dos paramédicos e
de quanto de seu histórico médico eu tinha imediatamente à disposição, não havia nada
que eu pudesse fazer para salvá-lo. Ele morreu na véspera de Ano Novo e, enquanto
2014 acabava, também acabava toda a esperança que eu tinha de que meus sonhos
fizessem bem ao mundo.

Demorou um mês e meio para a imagem de meu pai desaparecer do brilho laranja dos
postes de luz na minha Londres de sonho. E, segundo minha estimativa, ele tinha
aparecido cerca de dez dias antes de sua morte. Digo isso porque sinto que você tem o
direito de saber os prazos com os quais estamos lidando aqui. Não tive muita chance de
experimentar ou ver nada mais específico, infelizmente. Há tantas pessoas que morrem
em Londres, e eu conheço tão poucas delas.

Mas eu reconheço você. Enquanto escrevo essas palavras, posso vê-la na outra sala,
os olhos fixos em qualquer livro com o qual você esteja se divertindo — eu te reconheço
dos meus sonhos. Eles disseram na recepção que você analisa todos os depoimentos
escritos, então eu só espero que reserve um tempo para ler este aqui inteiro.

Permita-me explicar um pouco mais detalhadamente. Foi na noite de anteontem que o


sonho veio novamente. Tudo começou como sempre, comigo no topo do Canary Wharf,
mas quase imediatamente pude sentir que algo havia mudado. O brilho laranja opaco
que vinha de baixo parecia abafado de alguma forma, e havia um conhecimento
opressor dentro de mim de que algo estava profundamente errado. Olhando para baixo,
pude ver que as veias, cujo domínio da paisagem dos sonhos antes só havia sido
parcial, haviam se engrossado e agora pareciam cobrir quase todo o espaço de cada
rua.
Elas ainda pulsavam como antes, mas em vez de bombear invisivelmente sua carga
escura e desconhecida, às vezes dava para ver uma luz vermelha escura que viajava
por dentro delas. Eu pensei ter visto essa luz vermelha iluminar rostos e sombras dentro
daquelas gavinhas, mas ela se movia rápido demais para que eu pudesse ter certeza
de quaisquer detalhes além da direção. Isso não era algo que eu já vira acontecer antes
nesses sonhos, e eu estava ciente de que tinha duas opções: seguir a luz para onde
quer que ela pudesse levar ou virar e voltar para o mundo desperto. Decidi seguir o
caminho daquele brilho escarlate, embora tenha percebido que estava flutuando a
alguma distância do solo, de tão grossas que eram as vinhas abaixo. Eu as segui por
algum tempo; quanto tempo exatamente eu não sei dizer. Eu nunca parecia viajar mais
rápido do que a velocidade de uma caminhada nesses sonhos, mas ainda assim as
distâncias que percorri ao atravessar o crepúsculo laranja dessa outra Londres pulsante
pareciam muito mais longas do que o tempo que levei para percorrê-las. É assim que os
sonhos funcionam, eu suponho. Tudo o que sei com certeza é que percebi depois de
algum tempo que a luz vermelha estava me levando em direção à Vauxhall e ao
Tâmisa. Havia menos pessoas visíveis aqui — os ricos morrem menos? Ou talvez eles
apenas tivessem maior controle sobre onde morreriam? Ou talvez eles simplesmente
não pudessem ser vistos, lutando contra a morte por tanto tempo que, quando ela
finalmente viesse, suas gavinhas gélidas cobririam cada centímetro deles.

Eu cruzei o Tâmisa, e a ponte estava cheia de vinhas brilhantes. Uma ou duas delas
pareciam passar pelo próprio rio e um flash ocasional de vermelho podia ser visto sob a
água, mas a maioria delas estavam dispostas do outro lado da ponte. Finalmente, vi o
destino do brilho tingido de sangue. Um pequeno prédio, isolado do outro lado da ponte
perto do aterro. Eu não saberia te dizer o nome da rua, a Londres dos meus sonhos não
tem placas de rua. Era antigo, com pilares e possuía uma dignidade silenciosa. Foi para
este edifício que todas as veias fluíram: cada porta, cada janela estava sólida com elas.
Quando as rajadas de luz vermelha passavam por ele, todo o edifício brilhava em
carmesim. Pude ver uma placa de bronze ao lado da porta, não totalmente coberta.
Dizia: Instituto Magnus, Londres. Fundado em 1818.

Entrei, embora não possa dizer como. As veias bloquearam inteiramente todas as
entradas possíveis, e ainda assim me encontrei me movendo por elas. Vi os corredores
— esses corredores —, sufocados com aquela carne sombreada, e passei por eles,
seguindo aquela luz vermelha que agora pulsava tão forte que eu sabia que se a visse
acordado teria me cegado. Ela me levou a uma sala cujo rótulo ainda estava visível,
onde se lia “Arquivo”. Entrei para ver as paredes cobertas com prateleiras e armários
que se estendiam ao longe. Essas prateleiras eram revestidas por um piche preto
pegajoso, que eu soube naquele momento que era o sangue espesso e polpudo que
corria por cada uma daquelas veias.

Na frente da sala havia uma escrivaninha, e as veias estavam enroladas em torno dela
com tanta força e espessura que eu sabia que devia ser ali que terminavam. Chegando
mais perto, percebi que havia uma pessoa sentada naquela mesa e era para ela que
toda aquela luz escarlate estava fluindo. Eu não conseguia ver nada do corpo da figura
sob a carne que a envolvia, mas enquanto me movia, vi que o rosto estava descoberto.
Era o seu rosto, e a expressão nele era muito mais assustadora do que qualquer outra
que eu tivesse visto em oito anos vagando nesta cidade crepuscular. Foi ali que eu
acordei.

Estou bem ciente de que nem mesmo sei o seu nome, e não tenho nenhuma
responsabilidade de tentar evitar qualquer destino que esteja vindo para você. Com
base na minha experiência anterior, isso é provavelmente impossível de qualquer
maneira. Mas depois do que eu vi, não poderia viver comigo mesmo se pelo menos não
tentasse. Pesquisei o máximo possível sobre o seu Instituto, e marquei uma reunião
para prestar um depoimento sobre um encontro sobrenatural falso. Mesmo assim, me
disseram que o Arquivista só revisa os depoimentos escritos depois de serem aceitos.
Então aqui estou eu, despejando minha história lunática no papel na esperança de que
você eventualmente a leia.

Se você vir isso a tempo e ler até aqui, então, para ser honesto, eu não sei mais o que
te dizer. Tenha cuidado. Algo está vindo até você, e eu não sei o que é, mas é muito
pior do que qualquer coisa que eu possa imaginar. No mínimo, você deveria pensar em
nomear um sucessor.

Boa sorte.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Tenho certeza de que não preciso explicar como foi inquietante encontrar esse
depoimento enfiado no meio dos arquivos recentes. Eu não tenho… certeza se devo
falar sobre isso com o Elias ou não. Quando me contratou, ele foi vago sobre o que
aconteceu com a minha antecessora, Gertrude Robinson. Perguntei se ela estaria
disponível para me treinar para uma transferência, mas ele simplesmente disse que ela
havia falecido e para não me preocupar muito com isso. Na verdade, pensando bem, a
frase exata dele foi que ela “morreu no cumprimento do dever”, o que eu presumi
significar ter um derrame na mesa dela ou algo semelhante — ela era bem idosa, eu
acho.

Quer dizer, eu não acredito no poder preditivo dos sonhos, obviamente. Mas ainda
assim, é uma coisa profundamente perturbadora de se encontrar. Pedi a Tim que
investigasse, pois não confio inteiramente que os outros não tenham escrito isso como
uma piada e jogado nos arquivos. Como já esperado, ele não encontrou nada. Antonio
Blake é um nome falso e todos os detalhes de contato que ele forneceu eram
igualmente fraudulentos. É quase certamente uma piada, meio que um trote para o
novo chefe, talvez? Melhor não ligar para isso, eu acho.

Ainda assim, posso conversar com a Rosie, para ter certeza de arranjar uma cópia de
todos os novos depoimentos assim que forem feitos, não apenas depois que os
pesquisadores terminarem seu trabalho com eles. Ela parecia bem aberta à ideia de
gravá-los, então tenho esperança de que ela esteja disposta a fazer isso também. Se
isso for real, bem… Não faço ideia se Gertrude teve a chance de ler este depoimento
antes de falecer, mas se alguém vier reclamando sobre sonhar com a minha morte,
então eu quero muito ouvir sobre isso.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Lesere Saraki, a respeito de um turno noturno no Hospital St. Thomas,
em Londres. Depoimento original prestado em 11 de fevereiro de 2012. Gravação de
áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Sou enfermeira no Hospital St. Thomas, em Lambeth, perto da estação Waterloo.
Tecnicamente, hoje em dia trabalho na Fundação NHS de Guys e St. Thomas, mas o
Hospital Guys é em um local completamente diferente do outro lado de Londres –
então, só para esclarecer, trabalho no St. Thomas. O Natal é uma das piores épocas
para se trabalhar em um hospital, e no setor de Acidentes e Emergências é ainda mais
desagradável. Aposentados que não têm condições de aquecer adequadamente suas
casas, festeiros bêbados que abusam demais e se machucam, até mesmo pessoas que
não olharam para onde estavam indo e escorregaram em um pedaço de gelo. O Natal
traz à tona o lado das pessoas que sempre parece levá-las ao hospital, então fiquei
aliviada no ano passado quando peguei minha escala de horários e descobri que meu
último turno da temporada na Emergência seria no dia 23, dois dias inteiros antes do
dia do Natal. Essa foi a boa notícia. A má notícia era que o dia 23 também era a sexta-
feira antecedente ao grande dia, e isso significava que as pessoas terminavam o
trabalho antes do feriado e saíam para comemorar. Quando você trabalha na
Emergência, existem poucas palavras que encham o seu coração de tanto pavor quanto
a palavra “comemoração”.

Aquela noite não foi tão ruim quanto algumas que eu já tinha visto – alguns ossos
quebrados e ferimentos causados por uso de drogas; mas sem brigas ou bêbados
irritados, o que foi uma bênção. Deve ter sido por volta de uma e meia da manhã que a
ambulância chegou. Eles haviam informado pelo rádio com antecedência, e sabíamos
que tínhamos duas vítimas de queimaduras graves sendo trazidas, então estávamos tão
preparados quanto poderíamos estar. Eu estava indo ao encontro da ambulância
quando percebi que a sala de espera da Emergência estava completamente silenciosa.
Eu olhei em volta e lá estavam todas as pessoas que eu esperava ver, alguns
ferimentos óbvios, mas nenhuma delas fez um som. Eles continuaram a olhar para os
celulares, ler livros, consolar uns aos outros, mas nenhum deles falou. Não tive muito
tempo para pensar mesmo no que eu estava vendo, pois naquele momento ouvi a
ambulância parando do lado de fora e corri para atender o paciente.

Quando cheguei, eles já estavam o puxando para fora e a médica estava avaliando
suas queimaduras. O nome da doutora era Kayleigh Grice, e ela era uma médica júnior
no St. Thomas. Ela começou a dar algumas instruções para mim e para os
paramédicos, mas fiquei surpresa com o quão baixo ela estava falando comigo. Ela  não
sussurrava, mas cada palavra era bem suave, como se fosse um verdadeiro esforço
tirá-las dali. Ninguém mais pareceu notar, então, na hora, presumi que fosse efeito da
minha própria falta de sono. Sempre tive dificuldade em me adaptar às madrugadas e
desta vez tinha sido particularmente difícil. Terminamos de transferi-lo para uma sala de
tratamento, a única disponível que tínhamos naquela noite, e o médico e os
paramédicos voltaram para buscar o outro paciente enquanto eu começava a cuidar das
queimaduras do primeiro.

Tenho 48 anos e fui enfermeira na maior parte desse tempo, então já vi um bom
número de queimaduras na minha vida. Eu estava preparada para algumas cenas
profundamente desagradáveis quando recebi a ligação, já que queimaduras graves
podem ser alguns dos ferimentos mais desagradáveis que você vê trabalhando em um
hospital. Essas me surpreenderam. Eram de segundo grau, o que é grave, mas
geralmente não o suficiente para exigir hospitalização, exceto que pareciam cobrir todo
o corpo dele. Cada centímetro de pele exposta mostrava sinais de queimadura, e ao
cortar suas roupas ficou claro que o dano havia se espalhado por ali também. Qualquer
coisa quente o suficiente para causar esse tipo de estrago deveria ter danificado suas
roupas ou até mesmo as derretido na pele em alguns lugares, mas elas estavam
totalmente ilesas, como se ele tivesse sido vestido depois de ter se queimado ou o calor
tivesse passado direto através de suas roupas sem tocá-las.

Ele era um homem alto e corpulento, com o tipo físico que eu associava a uma pessoa
atlética de meia-idade. Qualquer cabelo que ele pudesse ter tido havia sumido,
aparentemente queimado, e suas roupas eram um terno preto desinteressante e camisa
branca. Ele não gritou ou chorou ou gemeu de dor, e a doutora até teve que verificar
seu pulso quando ela entrou para confirmar se ele ainda estava vivo. Ele estava, mas
até onde eu podia ver, ele parecia estar dormindo tranquilamente.

Eu tinha acabado de começar o tratamento quando o segundo paciente foi trazido para
dentro. Ele estava em uma forma quase idêntica ao primeiro, exceto pelo fato de que as
queimaduras pareciam parar em seu pescoço, ao longo de uma linha nítida. Era como
se ele estivesse usando uma gargantilha que o dano não poderia ultrapassar, mas seu
pescoço estava nu. Ele era menor do que o primeiro homem e mais jovem, acho que
em seus trinta e poucos anos. Ele estava bem barbeado, mas tinha cabelos compridos
tingidos de preto. Ele usava um terno semelhante ao do homem mais velho, exceto que
por cima ele vestia um longo casaco de couro preto, tão intacto quanto o resto. Parecia
novo, e me senti muito mal por ter que cortá-lo, mas tínhamos que confirmar a extensão
de seus ferimentos. Assim como o primeiro, ele estava completamente coberto por
queimaduras de segundo grau quase uniformes, exceto pelo que a princípio pensei
serem pequenas marcas pretas de queimadura. Olhando mais de perto, vi que eram
olhos. Pequenos olhos tatuados em cada uma de suas juntas: seus joelhos, cotovelos e
até mesmo os nós dos dedos, bem como sobre seu coração. Eu esperava que as
queimaduras tivessem quase destruído tatuagens tão pequenas, mas em vez disso elas
estavam imaculadas, e a pele cerca de um centímetro ao redor de cada uma também
não parecia ter sido afetada.

Dizer que fiquei incomodada com isso seria um eufemismo. Eu mal percebi quando a
Dra. Grice e os paramédicos voltaram. Eles pareciam estar falando normalmente agora,
e discutindo quem eram esses dois. Aparentemente, o corpo de bombeiros respondeu
ao chamado de um incêndio em um canteiro de obras perto do cemitério de St. Mary, e
ao chegarem encontraram os dois homens caídos e inconscientes. Não havido fogo lá,
embora o chão onde estivessem mostrasse várias marcas de queimadura e uma barra
de metal que estava por perto parecia ter se curvado levemente, como se tivesse sido
aquecida. O serviço de bombeiros chamou uma ambulância e eles trouxeram os
homens para cá. Aparentemente, o mais velho não tinha nada com ele, nenhuma
identidade, telefone, chaves, nada – enquanto o homem mais jovem tinha apenas um
isqueiro Zippo com desenho de um olho semelhante ao que estava tatuado nele e um
passaporte antigo que o identificava como Gerard Keay. Nunca dei uma olhada no
passaporte, mas pelo jeito que os paramédicos estavam falando sobre ele, concluí que
o homem era bem viajado.

Foi nesse momento que os paramédicos tiveram que atender outra ligação, e a Dra.
Grice e eu começamos a tratar os dois homens, a esquisitice temporariamente
esquecida. Do ponto de vista médico, não havia nada de anormal nas queimaduras, e
não demorou tanto quanto eu temia para limpá-las e enfaixá-las adequadamente.
Durante tudo isso os dois não se mexeram, e me perguntei se eles estavam em coma –
mas esse tipo de diagnóstico exigiria muito mais testes, o que provavelmente não
aconteceria naquela noite. Assim, tendo terminado de dar a eles o tratamento que
podíamos, os homens foram transferidos para uma das poucas enfermarias com espaço
para camas, e eu voltei a trabalhar no pronto-socorro. E, por mais ou menos uma hora,
me esqueci dos desconhecidos estranhos que estavam inconscientes a apenas
algumas portas de distância.

Eu só os notei novamente quando tive que passar por aquela enfermaria em direção ao
estoque próximo para pegar mais gaze. Enquanto eu caminhava, percebi um som vindo
da cama da vítima de queimaduras mais velha. Eu nunca descobri o nome dele.
Caminhei em direção a ele lentamente, apurando meus ouvidos para ouvir o que ele
estava dizendo. Era tão silencioso que parecia quase inaudível, mas definitivamente
eram palavras, as mesmas palavras repetidas de novo e de novo; quanto mais eu ouvia,
mais parecia que a maioria delas não era em inglês. A primeira soava como “Asak”, ou
“Asag”, depois “Veepalach”, e finalmente em inglês “A chama sem luz”. A última parte
foi muito clara, e presumi que ele estivesse falando sobre o que quer que tenha o
queimado, mas ele disse com tanta intensidade que as palavras me deixaram bem
desconfortável. Seus olhos ainda estavam fechados e seus lábios mal se moviam.
Comecei a me sentir quente, como se houvesse uma febre se rastejando rapidamente
em direção à minha pele. Não foi a primeira vez que tive uma reação como essa,
porém; então tirei um momento para me concentrar e a sensação diminuiu.

O homem queimado ainda estava sussurrando; eu poderia até ter chamado de canto, e
eu não sabia muito bem o que fazer, então verifiquei suas bandagens para ter certeza
de que não precisavam ser trocadas e saí para continuar meu turno. Se eu visse a Dra.
Grice, o que era mais do que provável, poderia dizer a ela que nossa vítima de
queimadura misteriosa tinha começado a falar. Sobretudo, eu só queria sair daquela
sala o mais rápido possível.

Foi quando voltei à recepção principal do pronto-socorro que as coisas começaram a


ficar realmente estranhas. E por muito estranho, quero dizer que a recepção estava
completamente vazia. Não importa o quão tarde seja – e a essa altura eram quase três
da manhã –, a sala de espera do pronto-socorro está sempre cheia, principalmente em
uma noite como essa. Quer dizer, eu estivera lá há menos de cinco minutos e havia
mais de trinta pessoas, mas agora estava completamente deserta. Até mesmo o
pessoal do balcão de atendimento havia sumido. Eu estava assustada, para ser sincera,
e comecei a verificar todas as salas de exame, as enfermarias ao lado e as salas de
pacientes individuais. Todos vazios, exceto pelos pacientes fisicamente machucados
demais para se moverem ou conectados a maquinas. Eles ficaram ali dormindo, e parte
de mim queria acordá-los só para ouvir o som de outro ser humano, para não ficar
sozinha. Mas como eu disse eram três da manhã e, por mais estranho que aquilo fosse,
eu não poderia justificar acordar pacientes apenas para me acalmar. Fui o mais longe
possível para fazer o máximo de barulho possível do lado de fora de seus quartos, mas
eles apenas continuaram dormindo.

Foi quando voltei para a sala de espera pela terceira vez em poucos minutos que eu
ouvi. Soava como o rosnado de um animal, um som contínuo de raiva, e percebi que o
chão estava tremendo, muito ligeiramente. Procurei em volta pela fonte do barulho,
estava ficando cada vez mais desesperada a cada segundo, e então eu vi. Alinhadas
contra a parede da sala de espera havia duas máquinas de venda automática. Eu
raramente prestava atenção nelas já que havia opções melhores na sala dos
funcionários e uma ou as duas geralmente estavam fora de serviço. Mas agora eu vi
que a da esquerda, uma máquina de porta transparente que estocava refrigerantes de
garrafa, estava tremendo violentamente. À medida que me aproximava, percebi o
porquê: em cada garrafa, em cada fileira da máquina, as bebidas pareciam ferver
violentamente. Cocas e limonadas e sucos de fruta balançavam e borbulhavam, até que
uma por uma as garrafas explodiram, cobrindo o interior da porta de plástico
transparente com um líquido que ainda continuava fumegando e sibilando. Não deve ter
levado mais de trinta segundos para todas elas estourarem, e então a sala de espera
ficou em silêncio mais uma vez.

Naquele ponto eu estava quase pronta para abandonar meu turno e sair do hospital. O
que quer que estivesse acontecendo lá, eu não queria fazer parte daquilo. Corri em
direção à porta que saía do pronto-socorro e dava para o frio das noites de dezembro,
algo que eu jamais pensara que ansiaria. Quando me aproximei, porém, notei que o
plástico em cada extremidade das maçanetas de metal estava ligeiramente torto; eu
hesitantemente toquei as costas da minha mão nelas e retirei quase imediatamente –
nem mesmo tive que tocá-las para sentir o calor intenso irradiando da porta. Eu quase
chorei. Se eu saísse de lá, não seria por aquela porta.

Comecei a fazer meu caminho de volta pelas enfermarias, indo em direção à outra
saída, mas enquanto passava pude ouvir o homem queimado ainda resmungando para
si mesmo, mais alto agora, de modo que seu canto esquisito era audível mesmo fora de
seu quarto. Estava começando a me angustiar. Eu entrei. Não sei o que eu
estava planejando fazer, eu só precisava fazê-lo calar a boca de alguma forma. Seus
olhos estavam abertos agora, injetados de sangue por trás das bandagens e olhando
fixamente para o teto. Naquele momento, decidi que o faria calar a boca, mesmo que
precisasse manter sua boca fechada fisicamente. Me aproximei dele lentamente e
avancei em direção ao seu rosto. Um segundo antes que eu pudesse tocá-lo, uma mão
disparou e me agarrou pelo pulso. Me virei para ver a outra vítima de queimadura, cujo
passaporte identificou como Gerard Keay, de pé e balançando a cabeça. Seu aperto em
meu pulso foi muito mais forte do que eu esperava de alguém tão machucado, e eu
podia sentir um calor através de sua mão enfaixada, como se sua pele ainda estivesse
queimando de alguma forma.

Eu gritei. Por que não? Eu já tinha comprovado que ninguém estava por perto para me
ouvir. Ele imediatamente soltou minha mão e se desculpou, disse que só estava
tentando me proteger. Perguntei a ele do quê, e ele gesticulou para o homem
queimado, ainda deitado imóvel em sua cama, entoando suas frases sem sentido.
Dando uma olhada em seu próprio corpo enfaixado, ele disse que tocar o homem teria
sido uma “má ideia”. Ele parecia estar com uma dor tremenda enquanto falava, mas fez
o possível para disfarçar.

Eu não disse mais nada. Eu queria perguntar o que estava acontecendo, e parecia que
ele estava esperando que eu fizesse exatamente aquilo, mas algo me parou. Algo me
dizia que, se houvesse uma explicação coerente para tudo o que havia acontecido
desde a chegada da ambulância, seria melhor eu não saber. Depois de alguns
segundos de silêncio constrangedor, Gerard falou. Ele me perguntou se os paramédicos
haviam trazido algum objeto com eles. Especificamente, ele estava procurando por um
pequeno livro encadernado em couro vermelho e um pingente de latão que estava
usando. Ele não disse qual era o desenho do pingente, mas imaginei que fosse um
olho. Eu disse a ele que nenhuma daquelas coisas havia sido trazida com ele, e ele
ficou quieto por um longo tempo.

Depois de passar os últimos dez minutos desejando desesperadamente por outro ser
humano para conversar, eu deveria ter ficado aliviada com a companhia de Gerard. Mas
observá-lo, de pé e andando apesar das queimaduras cobrindo oitenta por cento de seu
corpo, apesar da grande quantidade de analgésicos que tínhamos dado a ele… Ele só
me deixou com muito medo. Por fim, ele acenou com a cabeça, como se me
dispensasse, e mancou pelo corredor em direção ao armário de suprimentos. Eu o
segui, perguntei o que ele estava fazendo. Não obtive resposta, mas ele parecia saber o
código exato da porta; e entrou, procurando por algo nas prateleiras. Ele encontrou o
que estava procurando e pegou um pequeno objeto embrulhado em papel e plástico. Eu
o reconheci imediatamente como um bisturi esterilizado. Ele ia matar o homem que
cantava; eu podia sentir na maneira como ele olhou além de mim enquanto eu estava
parada na porta.

Ele começou a caminhar na minha direção. O depósito não era grande e levou apenas
um segundo para que ele estivesse na minha frente, mas foi o segundo mais longo que
eu já experienciei enquanto tentava decidir se arriscaria a minha própria vida pela do
desconhecido queimado que cantava inexpressivamente sua oração perturbadora. Atrás
de Gerard, vi garrafas de soro fisiológico começando a borbulhar e ferver. Eu me
afastei. Ele acenou com a cabeça em agradecimento e disse algo que me lembro muito
claramente, embora ainda não faça sentido. Ele disse: “Sim. Para você, melhor a
contemplação do que a chama sem luz.”

Não tentei impedi-lo enquanto ele voltava para a enfermaria. Eu apenas fiquei ali e
observei enquanto ele retirava o bisturi, murmurava algumas palavras que eu não
consegui entender e cravava a lâmina no centro da garganta do homem que cantava.
Naquele momento, houve o som de um chiado e um cheiro de carne podre na grelha.
Eu observei enquanto a carne ao redor da ferida começou a escurecer e rachar, as
bandagens se enrolando e desintegrando, e a pele queimada se espalhando sobre o
corpo dele como água. Não havia fogo e não senti calor, mas ao longo de vinte
segundos vi o corpo daquele homem se cremar até virar cinzas. Até o bisturi havia
sumido.

Gerard Keay caminhou até a cama e, pegando a comadre vazia embaixo dela, varreu
gentilmente as cinzas para a bacia de metal e me entregou, pedindo que eu jogasse
fora. Eu a peguei e saí atordoadamente, indo em direção a uma lata de lixo hospitalar.
Enquanto eu caminhava pelo corredor, notei uma figura do outro lado. Era a doutora
Grice. Não tenho vergonha de admitir que chorei de alívio quando corri para a sala de
espera e a vi novamente cheia de pessoas reclamando e gemendo para si mesmas. No
momento em que terminei e voltei para o quarto, Gerard estava deitado em sua própria
cama, aparentemente dormindo. Pensei em perguntar a ele agora o que tinha
acontecido, mas naquele momento outra ambulância chegou com três membros de uma
festa de Natal que havia ficado perigosamente fora de controle e, sem mais nem
menos, o resto do meu turno acabou.

Gerard Keay foi tratado por mais quatro dias no hospital antes de receber alta para os
cuidados de sua mãe. Tentei falar com ele sobre o que aconteceu, mas ele estava
tomando muitos analgésicos e nunca pareceu realmente registrar a minha presença.
Pode ter sido fingido, eu suponho; mas no final o resultado foi o mesmo. Desde então
eu só tenho tentado não pensar nisso. Consegui passar por quase trinta anos de
enfermagem no meu currículo antes que algo assim acontecesse, então, com alguma
sorte, estarei aposentada há muito tempo quando algo assim acontecer novamente.

Mas às vezes me preocupo. Nos últimos meses, quando estou sozinha nas enfermarias,
tenho a sensação de estar sendo observada. Não ameaçada ou julgada, apenas
observada. Eu evito aquele depósito em particular.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Obviamente, há muito para desembrulhar aqui, então vamos começar com o que é
justificável. Sasha conseguiu obter acesso aos registros do hospital daquele período, e
eles realmente listam a internação de Gerard Keay e um homem desconhecido por
queimaduras semelhantes às que a Sra. Saraki descreveu. Além disso, existem apenas
os documentos de alta de Gerard Keay e um breve relatório policial sobre o
desaparecimento da segunda vítima de queimadura. Nenhuma evidência de crime foi
encontrada e nenhum caso oficial de desaparecimento foi aberto.

No que diz respeito ao canto do homem misterioso, se realmente era “Asag” que ele
estava dizendo, então isso é bastante interessante. Asag é o nome de um demônio da
mitologia suméria associado a doenças e corrupção, o que não parece ter realmente
muita relevância para esse depoimento, exceto que também era lendário que Asag era
capaz de ferver peixes vivos nos rios. É certo que, no mito sumério, isso acontecia
porque ele era monstruosamente feio, mas mesmo assim era uma coincidência curiosa.
“Veepalach” também pode ser uma má compreensão da palavra polonesa “wypalać”, de
acordo com Martin, que significa cauterizar ou marcar. Reconheço que, se Martin fala
polonês da mesma forma que “fala latim”, ele pode estar falando bobagem de novo,
mas eu pesquisei e parece conferir. Não consigo encontrar nada conclusivo sobre a
frase “a chama sem luz”, contudo; ela surge em muitos contextos diferentes ao longo de
várias literaturas esotéricas.

Não passou despercebido que esta é a segunda vez que Gerard Keay aparece neste
Arquivo. Eu gostaria muito de receber o depoimento dele, mas infelizmente parece que
ele faleceu de um tumor no cérebro no ano passado. Estamos fazendo mais pesquisas
sobre ele, no entanto – e se tivermos sorte, talvez já tenhamos um depoimento dele
enfiado em algum lugar desses malditos arquivos.

Entramos em contato com a Sra. Saraki para ver se ela queria fazer uma entrevista de
acompanhamento, mas ela recusou. Aparentemente, ela ainda tem a sensação de ser
observada ocasionalmente, mas, fora isso, não houve nenhuma outra ocorrência
anormal em sua vida profissional ou pessoal.

Uma nota final: Sasha finalmente conseguiu acessar a filmagem do circuito interno de
televisão do hospital na noite de 23 de dezembro de 2011, e ele mostra algo bem
impressionante. Eu presumi que havia um elemento alucinatório significativo na história
da Sra. Saraki, e de fato a enfermaria onde Gerard Keay foi internado não tinha uma
câmera… Mas a sala de espera do pronto-socorro sim. Às 03:11:22 ela mostra todos
naquela sala, na qual eu contei pessoalmente 28 pessoas, se levantando e calmamente
saindo pela porta. Depois disso, a Sra. Saraki pode ser vista entrando e saindo três
vezes, em uma delas levando um minuto para olhar algo sob a câmera, que suponho
ser a máquina de venda automática. O restante da equipe e dos pacientes não
retornam até 03:27:12, mais de 15 minutos depois de terem saído, quando eles voltam
para dentro pelas mesmas portas. A filmagem não contém nenhum som e nenhum tipo
de alarme foi registrado, portanto não posso oferecer nenhuma suposição sobre o
porquê de eles terem saído ou o que estavam fazendo durante aquele tempo.

Há mais uma outra coisa que a Sasha destacou, no entanto. Às 03:22:52, o vídeo é
cortado por menos de um segundo e um único frame é substituído por um close-up de
um olho humano, olhando de volta através da tela do vídeo.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Certo, vamos tentar.

Naomi: Sério? Essa coisa funciona mesmo? Deve ter uns trinta anos.

Arquivista: Eu sei, mas já tivemos sucesso em usá-lo para gravar depoimentos nos
quais o nosso… gravador digital encontrou algumas dificuldades.

Naomi: É, pode-se dizer assim. Vocês precisam arrumar um equipamento melhor.

Arquivista: Acredite, eu tenho tentado. Ainda assim, o gravador parece funcionar bem


como equipamento de apoio, e posso fazer a transcrição mais tarde, então, por
enquanto, se você puder–

Naomi: Tá falando sério? Você realmente quer que eu conte a minha história para
aquele pedaço de lixo barulhento? Agora eu vejo por que ninguém leva vocês a sério.

Arquivista: Você não tem obrigação de falar com a gente.

Naomi: Não, eu só… Acho que só estou desesperada. O último investigador


paranormal que fui procurar riu de mim quando eu sugeri falar com vocês. Ainda assim,
acho que vocês têm que acreditar em mim.

Arquivista: Algo assim.

Naomi: Ok, de onde paramos?


Arquivista: Provavelmente é melhor começar de novo. Nome, data, assunto, etc. Não
estou otimista de que alguma das gravações anteriores possa ser recuperada.

Naomi: Tá. Meu nome é Naomi Herne, e estou prestando um depoimento sobre os


eventos que sucederam o funeral do meu noivo, Evan Lukas. A data é 13 de janeiro de
2016. Pra ser sincera eu nem tenho certeza se deveria estar aqui. O que aconteceu foi
estranho e, tudo bem, não consigo pensar em uma explicação racional para isso, mas
eu estava perturbada – ainda estou! Eu deveria ir embora. Provavelmente só imaginei a
coisa toda. Ele se foi e isso é tudo que há para dizer.

Arquivista: Isso certamente é possível. Pode ser que tudo esteja na sua cabeça…
Embora tenha a questão da pedra.

Naomi: Aquilo pode ter sido… Eu não sei. Eu só não sei o que pensar.

Arquivista: Não tenha pressa.

Naomi: Espera, aonde você vai?

Arquivista: Eu ia te dar um pouco de privacidade enquanto você presta seu


depoimento.

Naomi: Ok, é só que… Você poderia ficar, por favor? Não quero ficar sozinha.

Arquivista: Muito bem. Vamos começar do começo.

NAOMI (DEPOIMENTO)
Certo. Acho que o começo seria quando conheci o Evan. Nunca fui muito do tipo social.
Sempre me senti mais confortável sozinha, sabe? Meu pai morreu quando eu tinha 5
anos e minha mãe passava tanto tempo trabalhando para pôr comida na mesa que eu
quase não a via. Não fui maltratada na escola ou algo assim. Quer dizer… Para ser
maltratada você precisa ser notada, e eu me esforcei para não ser. Foi a mesma coisa
no ensino médio e até na universidade em Leeds. Quando todos estavam se mudando
para casas compartilhadas no segundo ano, eu fiquei em um quarto aconchegante e
agradável para uma pessoa no alojamento universitário. Sempre fui mais feliz sozinha.

Bem, talvez mais “feliz” não seja a palavra certa. Eu ficava meio solitária às vezes. Eu
ouvia risadas vindas de outras salas do meu prédio ou via um grupo de amigos
conversando sob o sol lá fora e talvez eu desejasse ter algo assim, mas isso nunca me
incomodou de verdade. Eu tinha a minha própria companhia e estava confortável com
ela. Eu não precisava de outras pessoas e elas certamente não precisavam de mim. A
única pessoa que realmente parecia se preocupar com isso era o Pastor David. Ele
trabalhava na Capelania e eu o visitava ocasionalmente quando o trabalho ou o
estresse estavam me afetando. Minha mãe é metodista e eu me sentia mais confortável
conversando com ele do que com qualquer um dos conselheiros seculares. Ele
costumava me dizer que não era natural que as pessoas vivessem isoladas, que
éramos criaturas de comunidade por natureza. Lembro que ele sempre dizia que tinha
“medo de que eu me perdesse”. Naquela época eu não sabia o que ele queria dizer.
Acho que agora eu entendo, no entanto. Enfim, o que eu quero dizer é que, quando me
formei há três anos, saí de Leeds com um diploma honorário em Química e sem amigos
de verdade para conversar. E por mim estava tudo bem.

Consegui um emprego como técnica de ciências em Woking. Não pagava bem e os


alunos eram um bando de grosseiros cheios de si, mas era o suficiente para viver e me
mantinha perto o suficiente de Londres para que eu pudesse me candidatar a vários
empregos em laboratório que eu realmente queria. Foi numa dessas entrevistas que eu
conheci o Evan. Ele estava se candidatando para a mesma posição que eu – assistente
de laboratório em um dos Departamentos de Bioquímica da UCL. Ele conseguiu o
emprego no final, mas eu não me importei. Ele era tão diferente de qualquer pessoa
que eu já conheci. Ele começou a falar comigo antes da entrevista, e eu me surpreendi
comigo mesma por realmente responder. Quando ele me fazia perguntas, eu não me
sentia desconfortável ou preocupada com as minhas respostas – apenas me peguei
contando a esse estranho tudo sobre mim, sem qualquer constrangimento. Quando ele
foi chamado para a entrevista, eu até senti uma pontadinha de perda, diferente de tudo
o que eu já havia sentido antes. Tudo por um estranho que eu havia conhecido dez
minutos atrás. Quando saí do prédio depois da minha própria um tanto desastrosa
entrevista e o vi parado ali esperando por mim… Acho que nunca me senti tão feliz
quanto naquele momento.

Nós saímos, e o namoro gradualmente evoluiu em dividirmos uma casa. Eu tive dois
namorados no passado – ambos relacionamentos de pouco tempo que terminaram
abruptamente. Em ambos os casos eles disseram que era porque nunca sentiam que
eu os queria por perto e, olhando agora… Isso era meio que verdade. Com o Evan era
diferente. Nunca senti que a presença dele me impedia de ser eu mesma ou invadia
espaços que eu via como meus.

Tudo sobre estar com ele parecia tão natural que, quando ele disse que me amava, foi
uma surpresa perceber que ainda não tínhamos dito aquilo. Ele tinha amigos, também –
muitos amigos, como poderia não ter? E ele me levava para sair com eles quando eu
estava a fim, e quando não, ele me deixava de boa. Depois de um ano com ele eu
realmente tinha o que talvez pudesse ser chamado de vida social e, mais do que isso,
eu não odiava aquilo. Eu sempre revirava os olhos para as pessoas que diziam que
seus parceiros “os completavam”, mas eu honestamente não consigo pensar em
qualquer outro jeito de descrever como era estar com o Evan. Eu o pedi em casamento
depois de apenas dois anos, e ele disse sim.

Vou pular a parte em que ele morre – faz apenas um ano, e eu não quero passar uma
hora chorando nesse seu toca-fitas porcaria. Congênito, eles disseram. Algum problema
com o coração dele. Sempre esteve lá, mas nunca foi diagnosticado. Sem aviso. Uma
chance em um milhão. Blá blá blá. Ele se foi. Desapareceu. E eu estava sozinha de
novo.

Não havia ninguém com quem eu pudesse falar sobre aquilo. Todos os meus amigos
tinham sido seus amigos e, depois que ele se foi, não parecia certo vê-los. Eu sei, tenho
certeza que eles não se importariam, eles teriam dito que eram meus amigos também,
mas eu nunca consegui me forçar a tentar. Era mais confortável, mais familiar, ficar
sozinha… Como se o Evan tivesse sido apenas um sonho maravilhoso do qual eu
estava acordando.

Eu não me lembro da semana entre sua morte e o funeral. Tenho certeza de que deve
ter acontecido, mas eu não tenho nenhuma lembrança disso. Depois de sair do hospital,
a próxima coisa que fica bem clara em minha mente é entrar naquela casa grande e
austera. Não me lembro onde era – em algum lugar em Kent, eu acho –, e devo ter
recebido o endereço de alguém da família do Evan que havia organizado o funeral. Foi
estranho. Evan nunca falava muito sobre a família dele. Ele disse que não se dava bem
com eles porque eram muito religiosos, e ele nunca tinha sido. Eu nunca os conheci ou
visitei, ou nem mesmo ouvi seus nomes, pelo que eu me lembro. Mas eles devem ter
ouvido o suficiente sobre mim para me convidar, pois de alguma forma acabei no lugar
certo. Ainda bem que eles assumiram a responsabilidade pelo funeral. Eu não estava
em condições de organizar nada.

A casa era muito grande e muito velha. Possuía um portão alto que a separava da
estrada principal, que tinha o nome “Residência Moorland” esculpido na pedra do
batente do portão. Eu dirigi até lá sozinha, meu velho Vauxhall Astra de segunda mão
reclamando o caminho todo. Você se lembra daquela tempestade que caiu no final de
março passado? Bem, eu quase não a percebi. Pensando bem, eu realmente não
deveria estar dirigindo, mas na época eu mal notei. As árvores estavam se curvando
ameaçadoramente quando finalmente estacionei na Residência Moorland, e eu
imediatamente perdi o único chapéu decente que tinha para o vento. Evan me disse
uma vez que sua família tinha muito dinheiro e, olhando para aquele lugar, entendi por
que o funeral estava sendo realizado ali. Eu podia ver ao lado o que parecia ser um
mausoléu bem cuidado. O último local de descanso dos ancestrais do Evan, e logo,
imaginei, do próprio Evan. Aquele pensamento me fez chorar de novo, e foi nesse
estado, chorando, fustigada pelo vento e encharcada de chuva, que vi a porta se abrir.

Não sei o que eu esperava do pai do Evan. Eu sabia que ele não poderia ser nada
parecido com o homem simples e charmoso por quem eu me apaixonei, mas o estranho
de cara dura que me confrontou na porta ainda foi um choque. Era como olhar para
Evan, mas como se a idade tivesse drenado toda a alegria e afeto dele. Comecei a me
apresentar, mas ele apenas balançou a cabeça e apontou para dentro, para uma porta
no corredor atrás dele, e falou as únicas palavras que algum dia já me disse. Ele disse
“Meu filho está ali. Ele está morto.“ E então ele se virou e se afastou, me deixando
trêmula, sem opção a não ser segui-lo para dentro.

A casa estava cheia de pessoas que eu não conhecia. Nenhum dos rostos adoráveis e
acolhedores dos amigos de Evan que eu conheci podia ser visto entre as figuras
severas de sua família. Cada um tinha a mesma expressão dura de seu pai, e eu
poderia estar imaginando, mas podia jurar que quando eles olhavam para mim seus
olhos estavam cheios de algo sombrio. Raiva, talvez? Culpa? Deus sabe que eu me
senti bem culpada pela morte dele, embora não faça ideia do porquê. Nenhum deles
falava comigo ou entre si, e a casa estava tão silenciosa e estática que às vezes
parecia que eu mal conseguia respirar sob o peso do silêncio.

Por fim cheguei à sala onde ele estava deitado. Evan, o homem com quem eu ia me
casar, estava deitado ali em um caixão de carvalho brilhante que parecia grande demais
para ele, de alguma forma. O caixão estava aberto e eu podia vê-lo, vestido com um
terno preto perfeitamente sob medida. Percebi que nunca o tinha visto usar um terno
antes. Como todo o resto sobre sua morte, parecia totalmente estranho à vida que ele
havia criado para si mesmo. Lembro de ir ao funeral do meu pai quando eu era muito
jovem. Lembro de vê-lo deitado lá, depois que os agentes funerários fizeram seu
trabalho. Meu pai parecia sereno, em paz, como se ele tivesse aceitado calmamente a
realidade de sua morte. Isso me confortou, quando criança, embora tenha feito pouco
para amenizar a intensa sensação de perda que eu sentia. Não havia nada daquilo no
rosto do Evan. Na morte, ele parecia ter a mesma dureza e reprovação que eu vi em
cada um da família silenciosa que o reivindicou para si.

Não sei por quanto tempo fiquei ali. Pareceram segundos, mas quando me virei quase
gritei ao ver dezenas de figuras vestidas de preto paradas ali, me encarando. O resto da
família Lukas estava de pé, esperando sem dizer uma palavra, como se eu estivesse
entre eles e sua presa. O que suponho que, de certa forma, eu estava. Finalmente, um
senhor se aproximou. Ele era pequeno e curvado pela idade, seu terno preto pendurado
em seu corpo como dobras flácidas de pele. Ele falou: “É hora de você ir embora. O
enterro é um assunto de família. Tenho certeza de que você quer ficar sozinha.”

Tentei responder, mas as palavras ficaram presas na minha garganta. Eles ficaram lá,
esperando que eu respondesse ou saísse, e eu percebi que o senhor estava certo. Eu
queria ir embora, ficar sozinha. Eu não me importava para onde eu fosse, mas eu tinha
que ir – fugir daquele lugar horrível repleto de observadores estranhos e silenciosos.
Passei correndo por eles e saí para a tempestade. Dentro do meu carro, simplesmente
liguei o motor e comecei a dirigir. Eu não sabia para onde estava indo e mal conseguia
ver alguma coisa em meio às lágrimas e à chuva torrencial, mas não importava,
contanto que eu continuasse, contanto que eu não tivesse que parar e pensar sobre o
que tinha acabado de acontecer. Olhando agora, a única coisa que me surpreende
sobre o acidente é que não foi feio o suficiente para me matar.

Quando me dei conta, percebi que estava no meio de um campo, bem distante da
estrada. Os rastros atrás de mim mostravam onde eu havia escorregado para a terra.
Felizmente, eu não tinha batido em nada e nem capotado, mas fumaça saía do motor
do meu pobre e velho Astra, e ficou claro que eu não iria a lugar nenhum. Estava
escuro, e o relógio no meu painel marcava 23h12. Meu celular dizia a mesma coisa. Eu
havia chegado à Residência Moorland às 6 horas, conforme instruído. Eu estava
dirigindo por horas ou passei ainda mais tempo com o corpo de Evan do que pensava?
Eu não tinha batido em nada, então não poderia ter ficado inconsciente. Eu tinha ficado
sentada lá no meu carro cheio de fumaça por todo esse tempo?

Não importava. A chuva estava forte e eu precisava de ajuda. Tentei ligar para o serviço
de emergência ou usar o GPS do meu celular, mas a tela apenas dizia “SEM
SERVIÇO”. Respirei fundo tentando conter o pânico e saí do carro. Fiquei encharcada
em menos de dez segundos, enquanto lutava contra a chuva em direção à estrada. Não
conseguia ouvir mais nada além do vento uivante, e não havia nenhum farol à vista.
Sem fazer ideia de onde estava, decidi virar à direita e comecei a andar. Tentei usar
meu celular de novo, mas quando coloquei a mão na bolsa percebi como ela estava
encharcada. Pressionar o botão de ligar apenas confirmou o que eu já suspeitava –
meu celular não estava funcionando. A raiva tomou conta de mim, e toda a amargura e
o ódio que vinham crescendo nos piores dias da minha vida subiram à cabeça e eu
joguei o pedaço inútil de plástico no chão. A ponta se estilhaçou quando atingiu a
estrada, então ricocheteou para o lado e desapareceu na lama espessa.

De repente, senti muito frio enquanto estava parada ali na estrada. A tempestade forte,
lágrimas caindo livremente e eu totalmente sozinha. Continuei andando, torcendo
desesperadamente para ver faróis à distância, mas não havia nada além da escuridão e
o barulho constante da chuva nos quilômetros de campos vazios em todas as direções.
Eu não tinha relógio, então sem meu celular eu não tenho ideia de por quanto tempo
andei. O frio atingiu minhas roupas encharcadas de funeral e eu estremeci, caindo de
joelhos e quase desistindo. Não havia nenhum carro vindo, e eu não tinha a menor ideia
de para onde estava indo.

Foi então que percebi que a chuva havia parado. Enxugando as lágrimas dos meus
olhos, vi que uma névoa havia se formado ao meu redor e agora eu não conseguia ver
mais do que alguns metros à minha frente. Continuei andando, entretanto, enquanto a
névoa pegajosa de alguma forma fazia eu sentir ainda mais frio. A névoa parecia me
seguir enquanto eu caminhava, e parecia girar ao meu redor em um movimento
estranho e intencional. Você provavelmente vai pensar que eu sou idiota, mas parecia
quase… Malicioso. Não sei o que ela queria, mas de alguma forma eu tinha certeza de
que queria algo. Não havia uma presença ali, entretanto – não era como se tivesse
alguém lá, era… Ela fez eu me sentir totalmente abandonada. Comecei a correr,
seguindo a estrada tanto quanto eu podia vê-la na esperança de chegar ao outro lado,
mas parecia não haver um fim.

Não sei exatamente quando o asfalto duro da estrada se tornou terra e grama, mas
percebi depois de alguns minutos que havia me desviado do caminho. Tentei voltar
atrás, mas ele havia desaparecido. Tudo o que restou foi a névoa e os contornos
esqueléticos dos vislumbres das árvores. As linhas escuras delas se afastavam de mim
em ângulos severos, mas se eu tentasse me aproximar, em vez de ficarem mais claras,
as árvores desapareceriam de volta na noite enevoada e eu as perdia de vista. Me
ajoelhando, fiquei surpresa ao perceber que o chão sobre o qual eu estava agora não
estava molhado. A terra compactada estava úmida pela névoa rastejante, mas não
parecia ter chovido ali. O desespero que eu sentia estava rapidamente se
transformando em medo, e eu continuei avançando, entrando ainda mais na névoa.

Percebi depois que a noite deveria estar muito escura para ver o nevoeiro. Não havia
luzes lá para evidenciá-la, e a lua estava envolta em nuvens de tempestade a noite
toda, mas apesar disso eu podia vê-la claramente. Movendo-se, cinza e sem cheiro
algum. Enquanto eu caminhava, vi mais formas por ali. Estruturas escuras de pedra
projetando-se do chão, inclinadas e quebradas. Lápides. Elas se espalhavam em todas
as direções, e o borrão gracioso da névoa não fazia nada para suavizar o peso da
presença delas. Eu não parei para lê-las.

Continuei me movendo até chegar ao centro do que só podia supor ser um pequeno
cemitério, e lá encontrei uma capela. O topo de sua torre estava perdido na escuridão e
as janelas estavam escuras. Comecei a me sentir aliviada, como se finalmente tivesse
encontrado algum sinal de vida. Passei a andar em volta dela, seguindo para onde
presumi que estavam as portas da frente. No caminho, notei que havia vitrais nas
janelas, mas, sem nenhuma luz lá dentro, não consegui distinguir os desenhos.
Finalmente, cheguei à frente do prédio e quase perdi as esperanças. Enrolada nas
alças da entrada havia uma forte corrente de ferro. Eu não encontraria nenhum
santuário ali.

Cheguei muito perto de tomar uma decisão precipitada naquele ponto. Comecei a
berrar, a gritar por socorro, mas o som parecia abafado e desaparecia quase no mesmo
momento em que saía da minha garganta. Ninguém me ouvia, mas eu continuei
gritando por algum tempo, só para ouvir o barulho, mesmo que ele parecesse morrer
assim que tocasse a névoa. Foi inútil, no entanto. E, quando terminei, senti a umidade
formigante entrar e sair dos meus pulmões. Era nauseante e pesado e decidi que eu
precisava fazer alguma coisa. Comecei a procurar no chão pela pedra mais pesada que
eu pudesse encontrar. Eu ia entrar naquela igreja, mesmo que eu precisasse quebrar
uma janela pra isso. Qualquer coisa para sair do nevoeiro. Eu tinha certeza de que
eventualmente alguém me encontraria.

Percebi que uma das sepulturas tinha sido ligeiramente quebrada pelo tempo e um
pequeno pedaço dela podia ser visto no chão. Tinha a gravura de uma cruz, e o pedaço
pesado de pedra agora estava incrustado no solo do cemitério. Abaixei para pegá-lo,
mas, ao fazer isso, vi algo que me fez congelar. O túmulo estava aberto. E estava vazio.

Não havia sido exatamente desenterrado. O buraco estava limpo, quadrado e profundo,
como se estivesse pronto para um enterro. No fundo havia um caixão. Estava aberto e
não havia nada dentro. Eu recuei e quase caí em outra cova aberta atrás de mim.
Comecei a olhar o cemitério ao redor com um pânico crescente. Todas as sepulturas
estavam abertas, e todas vazias. Mesmo aqui entre os mortos, eu estava sozinha.

Enquanto eu olhava, a névoa começou a pesar sobre mim. Ela se enrolava em volta de
mim, sua umidade sem forma me agarrava e começava a me puxar suavemente,
lentamente, em direção à cova aberta. Tentei recuar, mas o solo estava escorregadio
pelo orvalho e eu caí. Meus dedos cavaram a terra macia do cemitério enquanto eu
desesperadamente olhava em volta por qualquer coisa que eu pudesse usar para me
salvar, e minha mão se fechou sobre aquele pedaço pesado de lápide. Precisei de todo
o meu autocontrole para me manter agarrada àquela âncora, enquanto eu lentamente
me arrastava para longe da beira da minha sepultura solitária. Fluindo ao meu redor, o
próprio ar me puxava para dentro, mas eu lutei para ficar de pé. A imagem da família de
Evan de repente veio à minha mente, e jurei a mim mesma que eles não seriam o último
contato humano que eu teria.

Olhei para a capela e vi com um sobressalto que a porta agora estava aberta, a
corrente pesada abandonada nos degraus da frente. Corri para lá o mais rápido que
pude, gritando por socorro, mas ao chegar à soleira eu parei e só pude olhar com
horror. Por aquela porta, onde deveria estar o interior da capela, havia um campo.
Estava banhado pelo luar mórbido e a névoa rolava perto do solo. Parecia se estender
por quilômetros e eu sabia que poderia vagar por lá por anos e nunca mais encontrar
uma saída. Me afastei daquela porta, mas quando olhei para trás, quase chorei – além
da margem do cemitério estava o mesmo campo, estendendo-se na distância.

Precisei fazer uma escolha, e comecei a correr daquela capela para o campo atrás de
mim. Quase caí em uma cova faminta, mas mantive o equilíbrio bem o suficiente para
correr além delas. A névoa parecia estar ficando mais densa, e passar por ela estava
ficando mais difícil. Era como se eu estivesse correndo contra o vento, exceto que o ar
estava completamente parado. Eu mal conseguia respirar enquanto a inalava. E então,
quando me vi no meio daquele campo aberto e desolado, ouvi algo. Foi a coisa mais
estranha, mas enquanto tentava correr, podia jurar que eu ouvi a voz do Evan me
chamando. Ele disse “vire à esquerda”. Foi isso. Foi tudo o que ele disse. Eu sei que
parece ridículo, mas foi o que ele me disse para fazer. E eu fiz. Virei bruscamente para
a esquerda e continuei correndo. E aí… Nada.

Arquivista: Foi aí que o carro bateu em você?

Naomi: Sim. Me lembro de um deslumbre dos faróis e depois mais nada até que
acordei no hospital.

Arquivista: Entendo.

Naomi: Então, o que você acha? Foi real?

Arquivista: Bem… Precisaremos fazer uma investigação sobre alguns dos detalhes


que você mencionou, mas à primeira vista eu diria que foi tão real quanto o efeito que
um trauma pode ter na mente. Além disso, é difícil provar de qualquer jeito, mas sugiro
que você deixe a pedra conosco para que possamos estudá-la. E provavelmente a
ajudaria a superar esse incidente desagradável passar algum tempo com um
profissional da saúde mais qualificado…

Naomi: Certo. Eu não sei o que esperava, realmente.

Arquivista: Nós avisaremos se encontrarmos alguma coisa.

Naomi: Ah, isso é ridículo! Eu não acredito que perdi meu tempo–

[CLICK]

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Seguindo o depoimento da Sra. Herne, fizemos todo o acompanhamento que pudemos,


o que reconhecidamente não foi muito. Evan Lukas realmente faleceu de insuficiência
cardíaca em 22 de março de 2015, e seu corpo foi levado por sua família para o enterro.
Todos os pedidos de informação ou entrevistas à família Lukas foram rejeitados com
bastante firmeza.

Por volta da uma hora da manhã do dia 31 de março, a Sra. Herne se envolveu em um
acidente com um tal de Michael Getty.Ela aparentemente correu para a estrada na
frente do carro do Sr. Getty perto de Wormshill em Kent Downs. Ela foi rapidamente
levada a um hospital e tratada por concussão e desidratação. Seu carro foi encontrado
abandonado em um campo a oito quilômetros de distância.
Não há cemitérios que correspondam à descrição da Sra. Herne em qualquer lugar
perto da estrada em que ela foi encontrada, nem poderia haver qualquer névoa, dados
os ventos incrivelmente fortes durante a tempestade naquela noite. Eu ficaria tentado a
atribuir isso a uma alucinação de estresse e trauma, se não fosse pelo fato de que,
quando foi atingida, a Sra. Herne foi encontrada segurando um pedaço de alvenaria.
Parece ser um pedaço de granito esculpido com uma cruz gravada. O tamanho e o
estilo correspondem ao que se poderia imaginar encontrar no topo de uma lápide,
embora não tenhamos sido capazes de rastrear sua origem. Ainda ligado a ele está um
pequeno fragmento do que podemos apenas supor que seria a própria lápide. O único
texto que pode ser lido simplesmente diz “esquecido”. Eu providenciei para que ele seja
transferido para o armazenamento de artefatos do Instituto.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Lee Rentoul, a respeito do assassinato de seu sócio Paul Noriega.
Depoimento original prestado em 29 de maio de 2011. Gravação de áudio por Jonathan
Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Vamos deixar uma coisa bem clara: isso não é uma maldita confissão, está bem? Se
você levar isso à polícia eu negarei cada palavra, e conheço o suficiente sobre a lei
para saber que, mesmo se eu abrir o bico pra você sobre todas as coisas horríveis que
eu fiz, não valerá de nada no tribunal. Nem é como se você fosse poder de me ajudar,
eu só… Meu amigo Hester disse que procurou vocês alguns anos atrás, andava vendo
fantasmas e coisas assim, e vocês investigaram e disseram que era algum tipo de ruído
mexendo com a cabeça dele, ‘infrassom’ ou algo assim, e ele está bem agora. Eu
preciso disso. Preciso que você me diga que é apenas coincidência e minha mente está
pregando peças, e eu preciso não perder mais nenhum pedaço de mim.

Então, sim. Eu matei aquele babaca do Noriega. Esfaqueei ele na garganta e deixei ele
sangrando no cais. Talvez isso te choque um pouco, talvez não, mas acredite em mim
quando eu digo que ele mereceu. Oito anos trabalhando juntos, e foi ele quem se
empolgou e chutou a cabeça do McMullen promovendo o caso de assalto para lesão
corporal grave, mas é claro que quando somos pegos ele se vira contra mim e eu que
sou preso por isso. Cinco anos preso por causa dele, enquanto ele andava livremente
por aí. Eu acho que merecia dar o troco, e certamente consegui.

Não foi minha ideia inicial, no entanto. Eu não sou idiota e a condicional te mantém em
rédeas curtas o suficiente para que cortar a garganta do Noriega não fosse a minha
maior prioridade. Não entenda mal, aquilo era algo que eu estava louco para fazer há
cinco malditos anos, mas eu não estava com pressa. Tive muito tempo para planejar
algo desagradável para ele, e eu queria vê-lo machucado mais do que queria machucá-
lo com as minhas próprias mãos. Então, quando saí em junho do ano passado, fiquei de
olho esperando o momento certo. Tentei entrar em contato com ele, mas os poucos
amigos que tínhamos em comum disseram que ele não estava interessado em falar
comigo. Ele claramente se deu bem nos anos em que eu estive fora, e podia pagar
alguns caras para se certificar de que eu não o incomodaria. Acabei com algumas
costelas machucadas quando finalmente me cansei de ficar na espreita e tentei resolver
com ele direito. Foi ali, deitado em alguma rua lateral sombria em Lewisham, que
cheguei à decisão de que se eu ia machucar aquele babaca, e quero dizer machucá-lo
pra valer, teria que pensar um pouco fora da caixa.
Decidi fazer uma visita a McMullen. Antes do Noriega começar a trabalhar nele, Toby
McMullen era apenas um punk de rua. Hoje em dia ele era apenas um punk de rua que
tinha dificuldade em virar o pescoço. Eu conheci muitos perdedores natos na minha
época – quer dizer, é meio que normal nesse ramo – mas nunca conheci alguém tão
determinado a ser um ferrado como o McMullen. Quando o vi, ele estava tão chapado
que mal sabia que eu estava ali, mas pode apostar que seus olhos brilharam quando eu
mencionei Paul Noriega. Demorou horas para tirar qualquer coisa útil daquele
desperdício de espaço, mas eventualmente eu associei o lado dele dessa história
lamentável. Noriega o visitou no hospital, aparentemente, antes que a polícia nos
pegasse, e prometeu que se ele me denunciasse pelo ataque teria todos os narcóticos
com os quais o coraçãozinho de drogado dele poderia sonhar. Depois que ele saiu do
hospital e meu veredito foi dado, não demorou dois dias para o McMullen estar nas ruas
sozinho de novo, e o Noriega não queria saber. Qualquer idiota teria percebido que as
coisas seriam assim, mas não o pobre e estúpido Toby. Ainda assim, ele estava louco
para enfiar a faca por quase tanto tempo quanto eu, e ele havia tido a liberdade para
planejar aquilo, então perguntei se ele tinha algo que eu pudesse usar.

Eu não deveria ter me surpreendido quando ele sugeriu mágica. Toby sempre se
interessou por toda essa merda mística, mesmo antes das drogas, e se houvesse
alguma moda recente da Nova Era você pode apostar que encontraria ele tagarelando
sobre sempre que estivesse sóbrio o suficiente para realmente falar. Eu o soquei no
estômago e me virei para sair. Ele me seguiu, se dobrando e lutando para respirar,
implorando para que eu o ajudasse. Ele disse que estava falando sério, disse que não
era como as outras coisas, que conhecia alguém com muito poder que poderia
machucar o Noriega, mas ele só não tinha o dinheiro.

Eu deveria ter continuado andando. Eu deveria ter ignorado ele. Eu deveria ter batido
tanto nele que ele não poderia virar o pescoço para o outro lado também. Mas eu não
fiz. Eu parei e ouvi o que aquele pedaço de lixo humano tinha a dizer. Eu fui um idiota.

Então Toby me levou para ver sua amiga Angela. Ele nunca me disse o sobrenome
dela. Perguntei o que era: Wicca, vudu, alguma bola de cristal? Mas Toby disse que
não, nada a ver com aquilo. Disse que não sabia realmente como funcionava, mas que
uma garota alguns meses atrás havia contado a ele sobre Angela; disse que ela usou
seus serviços com um ex-namorado particularmente desagradável – aparentemente ele
desapareceu e eles nunca encontraram o corpo. Então eu pensei que talvez não
houvesse mágica ali, apenas um assassino com algum truque, mas ei, se esse fosse o
caso estava tudo bem por mim, desde que acabassem com o Noriega.

Quando finalmente conheci Angela, tive que me esforçar para não afundar a cabeça do
McMullen. Eu estava quase me convencendo de que iria me encontrar com um
assassino frio, talvez um que tivesse um monte de porcaria assustadora de Halloween
por aí, mas ainda assim alguém que faria o trabalho. Eu nem fiquei desanimado quando
paramos em uma casa suburbana bem cuidada em Bexley. Mas quando a porta foi
atendida por uma velha senhora com um roupão lilás, quase perdi o controle. McMullen
perguntou se ela era a Angela, falando em voz baixa como se realmente estivesse com
medo daquela idiota geriátrica. A velha disse que sim, ela era a Angela, e nos convidou
para entrar.

A casa parecia quase tão velha quanto a dona – papel de parede floral desbotado,
móveis de carvalho escuro e tapetes puídos. As paredes estavam cobertas com retratos
emoldurados, do tipo que você encontraria em qualquer antiquário barato ou loja de
caridade, embora quando entramos na sala de estar eu notei algo que não esperava:
não eram pinturas, eram quebra-cabeças, cada um concluído e emoldurado. E, claro,
quando nos sentamos no sofá de pano gasto, lá em frente à Angela estava outro
quebra-cabeça meio acabado. Não tenho nenhum problema com os idosos, e se eles
querem jogar fora seus últimos anos montando uma maldita foto eu é que não vou
impedi-los, mas aquilo não ia exatamente matar o Noriega, não é?

Eu estava com tanta raiva dessa enorme perda de tempo que, quando ela nos ofereceu
uma xícara de café, quase enfiei a cara do McMullen na mesa de vidro à nossa frente.
Eu resmunguei algo que Angela aparentemente interpretou como um “sim, por favor” e,
então, alguns minutos depois, lá estava eu, bebendo café instantâneo em uma caneca
lascada da qual aquela velha com tremedeira claramente não tinha pensado em limpar
a poeira. Quando ela perguntou se eu queria Paul Noriega morto, quase engasguei.

Ela perguntou com muita naturalidade, como se fosse uma pergunta em algum
formulário que ela sabia a resposta, mas tinha que preenchê-lo mesmo assim. Olhei
para Toby, que acenou com a cabeça para mim, e pensei “Que diabos? Eu posso muito
bem entrar na brincadeira.” Então eu disse sim. Sim, eu o queria morto. E mais do que
isso, queria que ele sofresse. Angela sorriu quando eu disse isso, um sorriso caloroso
que combinava com seu rosto redondo, e disse que aquilo não seria um problema.
Comecei a explicar a situação, mas ela acenou e me disse que Toby tinha lhe
informado de todos os detalhes e que havia apenas uma coisa que ela precisava de
mim que ele não poderia fornecer. Comecei a dizer a ela que não iria pagar a vovó de
alguém para resolver um caso difícil como o Noriega, mas ela disse que não, ela não
estava atrás de dinheiro. Ela disse que foi “bem recompensada” pelo serviço que
prestou e que tudo que ela precisava de mim era um objeto, qualquer coisa que eu
tivesse tirado do Noriega. Não um presente, ela disse, olhando nos meus olhos com
uma expressão que reconheci de anos trabalhando com pessoas muito desagradáveis.
Não funcionaria se fosse um presente.

Naquele ponto eu estava começando a me sentir desconfortável. Não com medo, ok?
Eu não estava com medo dessa velha, mas estar perto dela era… ruim. Não sei mais
como dizer, ela era má. Você tem que entender, eu conheço o perigo, eu entendo o
perigo – inferno, eu sou perigoso! Isso era outra coisa. Mas eu queria tanto ver Paul
Noriega morto… Cinco anos atrás, pouco antes de sermos apanhados pela polícia, eu
peguei seu isqueiro emprestado. Era um Zippo velho e surrado, que costumava ter a
foto de uma mulher de topless, mas agora estava desgastado. Depois que ele armou
pra mim no interrogatório, não fiquei com muita vontade de devolvê-lo para aquele
traíra, então peguei pra mim. Não tinha pensado muito naquilo, mas aqui estava, ainda
no bolso da minha jaqueta todos aqueles anos depois. Entreguei a Angela, e ela me
lançou aquele olhar de novo e disse que funcionaria muito bem.

E então fomos embora. Angela disse para não nos preocuparmos com isso, que Paul
Noriega não nos incomodaria por muito mais tempo; nós apenas precisávamos esperar
até que ela terminasse. Terminasse o que exatamente ela não disse, ela não precisou
dizer. Nós sabíamos que o que quer que fosse, provavelmente seria melhor não
sabermos.

A espera foi difícil, no entanto. Depois que ele me espancou, parecia que Noriega tinha
decidido que não precisava se preocupar comigo. Eu o via andando por aquelas ruas
como se fosse o dono delas, com seus capangas no encalço, e eu sabia que não havia
nada que eu pudesse fazer a respeito. Ele também sabia. Então eu esperei. E esperei.
Esperei pelo tiro, ou a faca, ou o veneno ou o… o que quer que fosse acabar com ele
para sempre. Nunca veio. Os dias se transformaram em semanas e lá estava ele, tão
convencido como sempre.

Fui paciente. Por Deus, eu fui paciente, mas depois de três semanas eu já quase tinha
descartado aquela velha inútil como um desperdício de tempo vigarista. Eu daria a ela
mais uma semana, só uma… Mas então aconteceu algo que eu não pude ignorar.
Correram boatos de que Noriega estava se encontrando com alguém no cais, um
contrabandista que atende pelo nome Salesa. O homem trabalhava principalmente com
arte roubada e raridades, coisas valiosas, e era paranóico pra caralho, o que significava
que Noriega estaria lá sozinho. Pode ter sido uma armadilha, claro – mas eu estava
sentado de pernas cruzadas esperando que ele magicamente caísse morto por tanto
tempo que se houvesse qualquer chance de ser verdade eu tinha que tentar.

Acontece que era verdade, e foi mais fácil do que eu esperava. Encontrei o armazém
algumas horas antes do encontro e fiquei de tocaia em um bom ponto. Então eu
esperei. Salesa apareceu primeiro, um cara samoano enorme com cabelo cortado rente,
acompanhado por quatro homens de ternos escuros que carregavam um caixote
quadrado de madeira entre eles. Eles entraram no armazém e, como esperado, cinco
minutos depois lá estava ele, aquela cobra. Ele estava sozinho e parecia mancar
ligeiramente. Ele entrou pela mesma porta, deixando-a destrancada. Perfeito. Não fazia
sentido eu entrar ainda. Eu não estava a fim de ter minha cabeça chutada pelos
capangas do Salesa, então apenas observei – minha mão segurando o cabo da faca de
combate que comprei em uma loja de excedentes do exército que sei que está feliz em
vender sem registro.

Quase uma hora depois, Salesa e seus homens partiram, ainda carregando aquela
caixa. Eles não pareciam felizes, mas eu não dava a mínima. Assim que dobraram a
esquina eu entrei o mais silenciosamente que pude, e lá estava ele, encostado em uma
pilha de tijolos, fumando. Comecei a me mover em direção a ele, mas quando cheguei
perto, ele deve ter me ouvido e se virou. Ele começou a dizer algo sobre reconsiderar e
baixar o preço, quando percebeu que eu não era o Salesa. Então, um olhar passou pelo
rosto de Paul Noriega que guardarei para sempre. Não importa o que aconteça comigo,
a memória daquele olhar aterrorizado de pânico permanecerá comigo.

Ele se virou para correr, mas o que quer que estivesse errado com sua perna o fez
tropeçar nos tijolos. Eu o agarrei pelo colarinho, minha faca já empunhada, e o puxei
para cima. Eu sempre fui o mais forte de nós dois, e ele sabia que não poderia lutar
comigo. Levantando a mão, ele me implorou para esperar, para ouvir. Notei que
faltavam alguns dedos em sua mão, feridas antigas que haviam cicatrizado há muito
tempo, embora eu não me lembrasse de tê-las visto antes. Não importava; eu podia
ouvir o sangue bombeando na minha cabeça e nada iria me impedir de me vingar. Ele
implorou por misericórdia, enquanto eu mergulhava a faca nele uma, duas, três vezes –
de novo e de novo e de novo, eu esfaqueei aquele traidor até que, finalmente, eu o
deixei cair. Ele caiu no chão com força, um peso morto – sua cabeça fazendo um som
estampido de estalo ao atingir os tijolos, e o sangue começou a se acumular no chão ao
redor de seu corpo.

Quando a raiva começou a diminuir e minha respiração voltou ao normal, levei um


segundo para olhar o pobre e morto Paul Noriega e vi algo que parecia ter se soltado
quando sua cabeça atingiu os tijolos. Pegando do chão, vi que era um olho de vidro. Eu
olhei de volta para o cadáver e lá estava um buraco onde seu olho esquerdo deveria
estar. Quando isso aconteceu? Ele certamente tinha os dois olhos quando trabalhamos
juntos e todos os dez dedos também. Ele também tinha todos os dentes, onde agora eu
via lacunas em todo aquele rosto morto e sorridente. Estremeci, embora não saiba por
quê.

Não vou entrar em detalhes sobre como fiz para me livrar do corpo. Apenas acredite em
mim quando digo que mesmo se os policiais encontrassem qualquer pedaço do cadáver
de Noriega, eles não seriam capazes de me indiciar. E a vida continuou. Seus meninos
vieram me procurar quando o chefe deles não voltou, mas eu sei como ficar quieto por
um tempo, e logo eles perceberam que se ele tinha sumido, eles não seriam pagos de
qualquer forma e seguiram em frente.

E então eu tive minha vingança, e esse deveria ter sido o fim da história. Mas não foi.
Cinco dias depois de matar Noriega eu encontrei o primeiro pacote. Eu estava em
Tottenham Marshes, perto do reservatório, fazendo coisas que você não precisa saber,
e cheguei a uma ponte de metal sobre um dos riachos de lá. Bem, aquele não era um
lugar que eu ia com frequência, e acho que nunca cruzei aquela ponte antes na minha
vida, mas ali, no centro dela, estava uma pequena caixa. Estava embrulhada em papel
pardo e barbante, como um presente de Natal antiquado, e tinha meu nome impresso
em letras claras: LEE RENTOUL, PARA CONSIDERAÇÃO IMEDIATA.

Obviamente eu fiquei um pouco assustado com aquilo, mas não tão assustado quanto
quando a abri. Dentro estava uma caixa de papelão preta, cheia de algodão e um único
dedo decepado. Aquilo obviamente era algum tipo de ameaça; algum delinquente achou
que poderia me assustar. Sem chance. Eu joguei o dedo em um dos canais e coloquei
fogo na caixa antes de jogá-la no lixo. Voltei para casa rapidamente, mantendo minha
atenção ao meu redor e minha mão na minha faca. Eu estava tão ocupado olhando para
trás que não vi o buraco a minha frente e tropecei. Ao cair para a frente, senti uma dor
quente na mão que estava em minha faca. Na mosca. A queda fez com que a lâmina
atravessasse e cortasse meu dedo mindinho.

Não tenho muito orgulho de admitir que gritei com isso. Rasguei a camisa, tentando
fazer um curativo para estancar o sangramento, pelo menos até chegar ao hospital.
Mas quando comecei a embrulhar, percebi que não estava sangrando de verdade. A
ferida estava fechada – havia se curado, como se tivesse acontecido anos atrás. Eu não
sabia o que pensar. Eu não sabia o que fazer. Então eu só fui para casa. Eu não
recuperaria o meu dedo, então imaginei que poderia tentar lidar com aquilo depois de
uma noite de sono decente.

Havia outra caixa no meu apartamento. A mesma de antes. Essa continha dois dedos
do pé. Tentei ignorar e manter meu pé bem longe de qualquer faca, mas… Eu estava
tentando ajustar a tela da minha televisão quando ela caiu da parede, acertou meu pé
direito e… Bem, já adivinhou? Isso foi duas semanas atrás.

Desde então, perdi mais quatro dedos em acidentes, a maioria dos pés – esse olho eu
consegui furar em uma maldita cerca. Já perdi a conta do número de dentes perdidos e
acredite em mim quando digo que você não quer saber como perdi a mão. Cada vez,
uma caixa embrulhada em papel pardo: LEE RENTOUL, PARA CONSIDERAÇÃO
IMEDIATA.

Eu tentei de tudo. Uma vez pensei que tinha conseguido ser mais esperto. Passei o dia
no meu quarto – nada afiado, nada pontudo. Eu tirei tudo, exceto o colchão. Não
importou. Acordei na manhã seguinte com uma dor no pé muito mais afiada do que
qualquer faca poderia cortar, sem o dedão do pé, igual ao que recebi na manhã
anterior.

Eu sabia que era a Angela. Claro que sabia, eu não sou burro. Qualquer maldição que
ela lançou sobre Noriega deve ter passado para mim. Eu fui lá, sabe? Fui confrontar
aquele velha. E sabe o que aconteceu? Ela me deixou entrar. Ela era legal, civilizada.
Me ofereceu outra xícara de café! Eu disse a ela onde enfiar aquilo. Exigi, pedi, implorei
que ela parasse o que quer que estava acontecendo comigo. Sabe o que ela fez? Ela
deu de ombros. Ela apenas deu de ombros! Me disse que “algumas fomes são grandes
demais para serem negadas”, seja lá o que isso signifique. Então fui até ela. Eu ia
estrangular aquele saco de ossos amaldiçoado até a morte. Mas quando eu cheguei
perto dela, eu… Eu não sei. Eu não sei o que aconteceu. Eu sei que foi assim que perdi
a mão. Eu sei que eu a mastiguei até que caísse.

Olha, isso não importa. Eu preciso da sua ajuda. Eu preciso que isso pare. Não sei
como, mas essa a área de vocês, certo? É isso que vocês fazem. Vocês olham para
essas merdas bizarras de fantasma, certo? Bem, essa é a definição de merda bizarra
de fantasma, e eu preciso que vocês me ajudem. Eu preciso que vocês me salvem do
quer que esteja acontecendo.

Eu não tenho muito tempo. Recebi uma caixa esta manhã, algumas horas antes de vir
para cá. Era uma língua.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Parece que esse caso nunca foi apropriadamente acompanhado. De acordo com as
notas complementares, pouco depois de prestar seu depoimento, o Sr. Rentoul ficou
violento com os funcionários do Instituto e no incidente que se seguiu houve… Um
acidente. Nenhum detalhe é dado, mas aparentemente exigiu a hospitalização do Sr.
Rentoul. Eu me lembro de uma piada um tanto sem graça sobre línguas soltas. Ele não
voltou ao Instituto depois disso, e seu depoimento foi arquivado.

De acordo com os registros de prisão que Sasha descobriu, o Sr. Rentoul estava
dizendo a verdade sobre o passado um tanto conturbado dele e de seu sócio Paul
Noriega, com extensos arquivos sobre os dois. A última interação listada entre a polícia
e o Sr. Noriega ocorre dois meses antes da declaração do Sr. Rentoul e, desde então,
nenhum sinal dele foi encontrado nos registros policiais, ou mesmo em qualquer outro
lugar.

Enviei Martin para investigar essa personagem 'Angela’ – não que eu queira que ele
vire picadinho, é claro – mas alguém tinha que fazer. Aparentemente, ele passou três
dias investigando todas as mulheres chamadas Angela em Bexley com mais de 50
anos. Ele não conseguiu encontrar ninguém que corresponda à descrição
evidentemente vaga dada aqui, embora ele tenha me informado que teve algumas
conversas muito agradáveis sobre quebra-cabeças. Idiota inútil.

Tim fez o possível para tentar localizar o Sr. Rentoul e ver se podemos contatá-lo para
uma entrevista de acompanhamento ou avaliação, mas parece que ele desapareceu
logo após prestar esse depoimento. Conseguimos encontrar seu antigo proprietário, no
entanto, que disse que o Sr. Rentoul desapareceu no início de abril de 2011, deixando
muitas contas para pagar e nenhum endereço de encaminhamento. Ele disse que,
quando foi limpar o apartamento, ficou surpreso ao descobrir que não havia mais
móveis. Tudo o que restou na casa, segundo ele, foram centenas e centenas de
pequenas caixas de papelão.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Laura Popham, a respeito de sua experiência na exploração do Sistema
de Cavernas dos Três Condados com sua irmã Alena Sanderson. Depoimento original
prestado em 9 de novembro de 2014. Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista
Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Espeleologia sempre foi um dos meus hobbies. Meu hobby principal, na verdade – o
equipamento todo pode acabar ficando bem caro depois de um tempo e eu não ganho o
suficiente para ter mais de uma atividade cara como essa na minha vida. Alena, minha
irmã, veio comigo em uma viagem alguns anos atrás. Ela tinha perdido o emprego e a
casa dela de uma só vez e estava morando comigo. Achei que isso a animaria. Animou,
e continuamos a fazer isso desde então. Ideia estúpida mesmo. Gostaria de tê-la
deixado chorando no sofá. Pelo menos assim ela ainda estaria viva.

Nós não tínhamos dinheiro para ir explorar cavernas toda hora, então eu passava muito
tempo lendo, planejando e apenas olhando as coisas online. Em média, talvez uma
caverna por ano? Alena não curtia tanto quanto eu, no entanto. Não entendam mal, ela
não era claustrofóbica e eu não a forçava a me seguir pela escuridão sob a ameaça de
uma briga de família, mas ela gostava mais de escalar, e eu sempre acabava indo um
pouco mais fundo do que ela queria. Pra ser honesta, acho que ela teria preferido se
exercitar a céu aberto ou até mesmo em uma academia acima do solo. Talvez
devêssemos ter tentado penhascos ou uma parede de escalada, mas a espeleologia
era a nossa praia. Isso a ajudou quando ela estava em um momento ruim, e ela sabia o
quanto eu amava isso. Ela também não gostava muito dos arranhões e hematomas que
sempre apareciam nas expedições. Ela costumava brincar que parecia que a própria
terra estava tentando dar uma surra nela. Se ela soubesse… Mas nós nos divertíamos,
e ela sempre escolhia ir junto. Eu nunca forcei ela a estar lá. Nunca fiz isso.

Tínhamos explorado parte do Sistema de Cavernas dos Três Condados antes – uma
pequena viagem de apenas algumas horas pelas cavernas da Gruta do Rift. O sistema
todo é enorme, no entanto – digo, há um motivo pelo qual é chamado de Sistema dos
Três Condados, então havia muito mais para explorar e nos divertimos tanto da primeira
vez que eu queria tentar de um ângulo diferente. Íamos entrar pelo Buraco da Cabeça
da Morte e, em seguida, viajar pela Caverna do John Perdido até a Gruta do Martelo
antes de voltarmos. A ideia disso me entusiasmou, pois, para viajar entre a Caverna do
John Perdido e o sistema da Gruta do Martelo, nós precisaríamos mergulhar um pouco
nas cavernas. Eu nunca tinha mergulhado em cavernas antes, e nem a Alena, embora
ela tenha me dito que a ideia a assustou menos do que alguns dos apertos que tivemos
que passar para chegar lá.

Fizemos todos os preparativos, conseguimos nossas licenças em ordem com o CNCC e


pedimos ao meu marido, Alistair, que anotasse todos os detalhes para o caso de algo
dar errado. Você nunca entra numa caverna a menos que alguém saiba para onde está
indo e qual é o seu plano. Eu também havia pesquisado o máximo possível sobre a
nossa rota, pois não tinha intenções de me desviar das cavernas bem exploradas e
mapeadas. Nunca fui uma desbravadora, pra ser sincera, e ficava satisfeita em
permanecer nas rotas principais. Não, o que eu amava nas cavernas era a sensação de
estar bem dentro da terra; as paredes frias e sólidas se dobrando ao meu redor.
Sempre parecia que elas estavam me mantendo segura, embora eu não me sinta mais
assim.

Nós fomos no sábado, 14 de junho. Eu tinha tirado folga na sexta-feira anterior para me
preparar, e planejava passar o domingo cuidando dos hematomas. Alena e eu dirigimos
até Lancashire, em direção ao Buraco da Cabeça da Morte. Eu moro em Manchester,
então não foi uma viagem muito longa. Estacionamos em Leck Fell, o mais próximo que
se pode estacionar legalmente. Fiquei surpresa ao ver que éramos as únicas pessoas lá
quando chegamos. Era um dia ensolarado no final da primavera e o clima deveria ficar
claro por dias, sem chance de chuvas deixando as cavernas muito perigosas. Era um
dia perfeito para a exploração de cavernas, mas parecia que éramos as únicas
aproveitando isso.

O Buraco da Cabeça da Morte não é tão impressionante ou intimidante como o nome


sugere. Se você não soubesse o que estava procurando, poderia acabar passando
direto por ele. Quando nós fomos, grande parte dele estava coberto por plantas
silvestres e samambaias. Era um pouco maior do que nós, e me lembro que na hora a
frase “um encaixe perfeito” veio à minha cabeça automaticamente. Mesmo assim, as
âncoras de resina estavam em boas condições e nós enganchamos e descemos nossas
cordas sem incidentes, apesar de algumas curvas inesperadas no buraco. O dia estava
ensolarado; era quase meio-dia quando descemos, então a luz se infiltrava até muito
mais longe do que eu esperava. Demorou algum tempo até que precisássemos acender
nossas lanternas de cabeça, mas eventualmente as acendemos. Quando chegamos ao
fundo, não restava mais nada daquela luz do sol para iluminar, e a escuridão silenciosa
da caverna nos engoliu. Sob nossos pés, as águas calmas da corrente subterrânea
percorriam seu curso, como fizeram por milhares de anos, imperturbadas pelos passos
duros da humanidade, e nós a seguimos. Foi uma descida muito mais suave do que a
que fizemos para chegar ali, mas muito escorregadia, e fiquei feliz por ter investido em
uma capa à prova d'água para o mapa, embora às vezes ficasse um pouco mais difícil
de ler.

Alena se afastou para me deixar fazer o meu ritual. Havia uma coisa que eu sempre
fazia quando entrava pela primeira vez em uma caverna: tirar um momento para
desligar todas as luzes e colocar ambas as minhas mãos nas paredes frias de terra. Eu
me lembro de uma vez, quando era criança, que fizemos uma viagem escolar à
Caverna da Cicatriz Branca, em Yorkshire. Era uma caverna adorável, segura e
acessível – e era absolutamente linda, o que suponho ser o motivo por ela ser popular
para essas viagens. Depois de ficarmos lá embaixo por alguns minutos, a guia nos
levou muito mais fundo e nos disse para ficarmos bem quietinhos. Ela apagou as luzes
para mostrar a nós, crianças, como é a verdadeira escuridão. Eu nunca vi nada como
aquilo. Era um preto tão puro, tão abrangente, e no calor do subterrâneo eu me
encontrei cheia de uma alegria que nunca esqueci. Mesmo entre uma classe de trinta
alunos, eu sentia que a única presença que importava era a caverna. Desde então, eu
sempre reservava um momento em qualquer viagem espeleológica para fazer o mesmo,
e sentir novamente aquela escuridão absoluta, sem nenhum som além do rio fluindo
suavemente e minha própria respiração. Não acho que seja uma prática incomum, na
verdade, mas eu raramente entrava em cavernas com outra pessoa que não fosse a
Alena e, embora ela me permitisse, não acho que ela realmente entendia aquilo.

Acendemos nossas luzes de novo e começamos a entrar mais fundo na caverna. Eu


tinha um mapa, o qual começamos a seguir o mais fielmente possível. Tenho bastante
experiência nessas coisas, mas às vezes até eu acho difícil combinar as linhas e
ângulos irregulares das passagens subterrâneas com as formas geralmente abstratas
escritas no mapa. Havia vários cruzamentos significativamente menores do que o mapa
parecia mostrar, e o ponto de entrada da Caverna do John Perdido era o que
chamaríamos de aperto. Não estava no mapa, mas parecia ser a única maneira de
entrar.

Bem, a maioria das passagens nas quais você se enfia quando está em uma caverna é
muito menor do que normalmente seria confortável para as pessoas passarem. Afinal,
elas foram corroídas por pequenos riachos de água e pequenos eventos tectônicos,
portanto, acomodar humanos nunca esteve no topo de sua lista de
prioridades. Um aperto é algo diferente, no entanto. Um aperto pode ser um buraco com
menos de trinta centímetros de largura, às vezes prolongando-se por um longo
caminho, a pedra te pressionando por todos os lados e seu capacete batendo sempre
que você tenta virar a cabeça. Em um aperto particularmente estreito, há partes em que
as paredes e o teto ficam tão próximos que você não consegue mover os braços ou
dobrar as pernas para se empurrar para a frente, e você só tem que se contorcer até o
outro lado como uma minhoca. Aquele era um aperto particularmente estreito. Perto do
final ficou tão ruim que se Alena não tivesse entrado primeiro eu teria dito a ela para
voltar e esquecer a Caverna do John Perdido.

Na metade do caminho percebi que era muito mais apertado do que eu havia
imaginado. Eu chamei por ela para ter certeza de que Alena tinha saído bem – ela
respondeu, disse que tinha sido difícil, mas que estava bem. Eu quis responder, mas a
essa altura a rocha estava tão perto de mim que estava me impedindo de fazer
qualquer coisa que não fosse prender a respiração e querer seguir em frente. Uma mão
me agarrou com firmeza pelo ombro e me puxou para dentro, e num piscar de olhos eu
estava livre. Alena me lançou um sorriso malicioso, como se quisesse comentar sobre o
fato de que ela havia passado sem ajuda e eu, a verdadeira aficionada por cavernas,
precisei de ajuda. Eu queria responder algum comentário afiado sobre ela ser mais
magra do que eu, mas quando recuperei o controle da minha respiração, a raiva
diminuiu e consegui abrir um sorriso fraco.

Percorremos a caverna até chegar à catedral. É uma caverna grande e arqueada – de


tirar o fôlego, embora exija algumas quedas abruptas para acessá-la, uma de cerca de
12 metros. Tínhamos experiência e equipamento suficientes para passarmos
tranquilamente por ela, no entanto, e logo estávamos sob a catedral, no que é
erroneamente chamado de cripta. Paramos ali para descansar e comer alguma coisa, e
Alena me contou uma coisa interessante sobre a Caverna do John Perdido. Enquanto
eu estava preocupada em encontrar mapas e o máximo de informações que pudesse
sobre a travessia, ela me disse que estivera pesquisando a história do lugar.

Ela disse que todo mundo esquece de colocar os “ésses” quando falam sobre a
Caverna do John Perdido, já que a história diz que foram dois homens, ambos
chamados John, que foram os primeiros a mergulharem fundo na caverna. Eles foram
longe demais, porém, e suas velas se apagaram. Eles se perderam juntos no extenso
labirinto de túneis e nunca mais emergiram. Alena disse que achou aquilo muito fofo, de
uma forma estranha, e brincou que se algum dia ela ficasse presa no subsolo, ela
gostaria que fosse comigo. Eu sorri e balancei a cabeça, embora o pensamento tenha
secretamente me aterrorizado; não com a ideia de ser enterrada ali – na época não
parecia ser um destino tão terrível – mas a ideia de ter que passar meus últimos dias
com a Alena era um pouco demais. Desculpa, isso é uma coisa horrível de se dizer
sobre os mortos. Eu amava a minha irmã e adorava passar um tempo com ela, mas
estar perdida sob a terra é algo tão intensamente privado… Talvez ela tenha percebido
isso, no final.

Após nossa breve parada, descemos pelo domo. Era lindo, e essa era a parte que eu
mais temia, pois todos os espeleólogos experientes com quem conversei disseram que
aquela era a descida mais difícil. Foi fácil. Muito fácil, na verdade, e na hora me lembro
de ter tido uma sensação estranha, como se estivesse sendo engolida. Finalmente,
passamos pela caverna de xisto e entramos na caverna principal. Enquanto estávamos
lá, eu senti antecipação e ansiedade na mesma medida. Diante de nós estava a
passagem, cheia com a água parada do reservatório. Estávamos prestes a fazer nosso
primeiro mergulho em uma caverna.

Eu sempre ouvi de mergulhadores experientes que você nunca consegue estipular a


distância corretamente. Nas primeiras vezes que você tentar emergir, você sempre vai
bater com a cabeça na pedra acima, então é melhor tentar e não se assustar muito com
isso. Avisei Alena sobre isso enquanto preparávamos nosso equipamento e ela me
disse que se lembrava – e então me surpreendeu pedindo para ir primeiro, dizendo
alguma coisa sobre enfrentar os medos. Eu disse que sim, por que não? E a deixei
passar. Enquanto eu estava ali sozinha, esperando, comecei a sentir algo que nunca
havia sentido tão profundamente no subsolo. Comecei a me sentir inquieta. Estava tão
silencioso quanto sempre estivera, mas havia algo a mais lá, por baixo do silêncio.
Quase como um sussurro.

Afastei a sensação quando chegou a hora de seguir Alena e mergulhei na piscina. Não
era longe até o cruzamento que nos levaria à Gruta do Martelo. Eu me espremi pelo
espaço estreito, meio nadando, meio escalando, até que pensei que tinha ido longe o
suficiente e tentei emergir. Clunk. Meu capacete bateu levemente contra o teto do túnel.
Tudo bem, isso era o esperado. Continuei nadando mais alguns metros e tentei
novamente. Clunk. Aquilo me deu um choque desagradável, já que eu já deveria ter
passado bastante do fim do primeiro túnel. Continuei indo até chegar ao fim da hidrovia
subterrânea e fui em direção à superfície. Clunk. Comecei a entrar em pânico. Aquele
era um beco sem saída? Não havia mais pra onde eu pudesse ir. Onde estava Alena?
Ela não poderia ter passado por mim; o túnel era estreito demais. Em desespero, tentei
subir mais uma vez.

Eu emergi à superfície para ver Alena rindo sozinha e segurando uma pedra sobre a
parte da água onde eu estava tentando emergir. Eu a xinguei violentamente, sem saber
se batia nela ou se me juntava à risada. Ela se desculpou, mas disse que tinha visto a
pedra e não resistiu, pois eu sempre falava do capacete batendo no teto. Eu sentei lá,
de repente esgotada. A adrenalina do meu pânico parecia ter exaurido grande parte da
minha energia, e acho que minha irmã percebeu isso, pois não me pressionou a
continuar. Nós duas sabíamos que a passagem dessa intersecção para a própria Gruta
do Martelo era um mergulho muito mais longo, e nenhuma de nós estava realmente
disposta para aquilo. Nós só ficamos sentadas ali em silêncio por um tempo.

Levou mais tempo do que o planejado para chegarmos tão longe, então sugeri que
voltássemos pelo caminho por onde viemos em vez de continuar a ir mais fundo na
caverna. Alena concordou, mas, quando me virei, ela me perguntou o quão perdida eu
estava, em uma voz baixa e áspera. Eu respondi que não estávamos perdidas, que eu
tinha seguido o mapa rigorosamente, e ela apenas me olhou como se não entendesse
do que eu estava falando. Dei de ombros e disse a ela que iria primeiro no caminho de
volta, e ela concordou. Eu estava ansiosa para voltar e estar acima do solo de uma
forma que nunca havia estado antes. Eu preparei meu equipamento e mergulhei de
volta na água, voltando para o Buraco da Cabeça da Morte.

Foi aí que tudo começou a dar muito, muito errado.

Para começar, a água não acabou. Tentei voltar à superfície como fizera na primeira
vez e novamente ouvi aquele baque quando meu capacete atingiu o teto do túnel. Segui
em frente e tentei novamente, mas ainda sem sorte. Comecei a lutar contra o pânico
crescente, disse a mim mesma que o túnel definitivamente tinha um fim e eu apenas
tinha que alcançá-lo – mas ele simplesmente continuou. Sem luz. Sem superfície. Nada
além deste canal estreito, pressionando por todos os lados, esperando para me
reivindicar. Não sei quanto tempo nadei desesperadamente para frente, mas quase
gritei de alívio quando ergui a mão e a senti emergir pela superfície da água.

Não era a caverna que eu esperava. O que se estendia diante de mim era um túnel
ainda menor do que aquele coberto de água que eu havia deixado. Eu me arrastei para
ele, não porque queria entrar naquela passagem desconhecida, mas porque estava
preocupada com Alena poder sair da água atrás de mim. Eu devo ter tomado o caminho
errado, exceto que aquilo não fazia sentido. Eu não tinha feito nenhuma curva e, mais
do que isso, não havia nenhuma curva ou cruzamento nesta parte da caverna. Eu tinha
verificado todos os mapas desta área várias e várias vezes, e todos eles colocaram o
caminho como uma linha reta. Eu esperei, querendo falar com a minha irmã quando ela
emergisse e discutir para onde iríamos a partir dali. Ela não emergiu. Não sei quanto
tempo fiquei ali; estava apertado demais para olhar o horário, mas pareceram horas. Eu
queria voltar e verificar, mas não conseguia nem me virar para ver. Eu apenas esperei
por um respingo que nunca veio.

Decidi continuar, avançar pelo menos até encontrar algum lugar largo o suficiente para
que eu pudesse me virar. Enquanto rastejava, raspei contra as pedras irregulares até
que as senti pressionando minha pele nua onde minhas roupas tinham rasgado. “Posso
me preocupar com isso quando eu estiver lá fora”, continuei pensando, mas a
passagem foi ficando cada vez menor e menor, até que finalmente não consegui me
mover mais. Finalmente aceitei que teria que tentar me espremer de volta pelo caminho
que vim sem nem mesmo me virar. Comecei a me arrastar para trás e meus pés
tocaram a rocha sólida. O túnel havia sumido. Foi aí que eu gritei. E minha luz se
apagou.

Eu disse antes que gostava da escuridão pura da caverna. Eu estava errada. Eu nunca
tinha realmente conhecido uma escuridão como essa. Incapaz de me mover, mal tinha
espaço o suficiente para gritar por socorro. Mesmo presa ali parecia que as paredes me
espremiam ainda mais, e eu sabia que a rocha que eu sempre acreditei ser minha
amiga e protetora iria me sepultar ali.

À distância, eu vi o mais fraco ponto de luz. Parecia a chama de uma vela, no fundo do
túnel, tão fraca que não iluminava nada além de si mesma. Ela se aproximou, mas
qualquer esperança de que isso pudesse ter me dado morreu rapidamente enquanto ela
crescia. Estava vindo em minha direção bem devagar, e lá no fundo eu sabia que ela
pertencia… a esse lugar. Ela queria me fazer mal.

Quando ela se aproximou, vi a mão pálida que a segurava e ouvi algo. Era Alena.
Parecia distante e abafado, mas eu tinha certeza de que ela estava pedindo ajuda.
Fechei os olhos, como se isso fosse adiantar de algo naquele lugar, e tentei
desesperadamente desejar que tudo aquilo desaparecesse. Quando abri os olhos
novamente, a luz ainda estava lá, mas havia mudado de alguma forma. Parecia mais
clara e, ao olhar, percebi que não vinha mais de uma vela. Eu mal podia acreditar, mas
parecia que era a luz do dia.

Com cada última gota de força que possuía, me empurrei para frente. Eu estava
escalando esse tempo todo? Minhas roupas estavam esfarrapadas e rasgadas, minha
pele arranhada e ensanguentada, mas depois de quase uma hora, irrompi na superfície
por uma pequena abertura que não estava em nenhum dos mapas. Eu respirei o ar
fresco e arejado e gritei o mais longo e alto que pude. Foi assim que Alistair e a equipe
de resgate da caverna me encontraram. Aparentemente, eu estava no subsolo por
quase vinte e quatro horas e ele chamou o serviço de resgate da caverna.

Fui bem atendida enquanto esperava notícias de Alena. Minhas feridas foram tratadas e
eu recebi comida e água. Demorou mais um dia para a equipe de resgate me dizer o
que eu acho que já sabia: não havia sinal dela em lugar nenhum. Nunca mais a vi, e ela
foi adicionada à lista de fatalidades, então suponho que esse seja o fim de tudo.

Não estive no subsolo desde então, e não pretendo voltar.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Esse é estranho. Raramente me deparo com um depoimento escrito com tanta


convicção, embora muitos dos detalhes sejam comprovadamente falsos. O CNCC não
tem nenhum registro da Sra. Popham obtendo uma licença para esta expedição, e o
número de outras licenças que eles emitiram para o dia 14 de junho indica que elas
certamente não eram as únicas na caverna naquele dia. Além disso, o Buraco da
Cabeça da Morte e a Caverna do John Perdido têm, como a Sra. Popham apontou, os
caminhos bem documentados e, de acordo com os cálculos de Sasha, a rota que ela
descreveu é quase absurda.

O que é verdade é que no dia 15 de junho a Organização de Resgate em Cavernas de


Yorkshire Dales foi contatada pelo Sr. Alistair Popham, que lhes disse que sua esposa e
cunhada haviam entrado nas cavernas no dia anterior e não tinham retornado. Mandei
Tim verificar os detalhes – Martin se recusou a ajudar nessa investigação porque ele é
“um pouco claustrofóbico” – e ele encontrou mais algumas discrepâncias bizarras. A
Sra. Popham não foi encontrada acima do solo, como ela afirmou. Ela foi encontrada a
poucos metros do fundo do Buraco da Cabeça da Morte, desmaiada e ajoelhada ao
lado de uma pequena pilha de velas queimadas. Alistair Popham afirma não ter visto
nenhuma dessas coisas sendo colocadas na mala. Ela só saiu desse estupor quando foi
trazida para cima do solo, momento em que começou a gritar sobre sua irmã Alena,
exigindo que eles fossem “salvá-la”.

Há também a questão da gravação. Ela não menciona isso em seu depoimento, mas a
Sra. Popham levou uma câmera com ela para o sistema de cavernas. Nunca foi
reivindicada de volta do CRO após seu resgate, e Tim conseguiu obter acesso
suficiente para copiar a filmagem. Melhor não perguntar como, eu acho. A maior parte é
uma filmagem mundana da Sra. Popham e sua irmã escalando uma caverna, que
parecia combinar com sua declaração, mas a última gravação é… um tanto
preocupante. O indicador de data e hora mostra pouco depois das duas horas da
manhã de 15 de junho. É completamente preto, embora não seja claro se é porque
estava em uma caverna totalmente escura ou simplesmente porque a tampa da lente
ainda estava encaixada. O áudio é o que me preocupa, e aqui reproduzirei uma
amostra:

[CLICK]

[Som de movimento aquático subterrâneo e a voz cada vez mais em pânico de Laura
Popham.]

Leve ela, não eu. Leve ela, não eu. Leve ela, não eu. Leve ela, não eu.  Leve ela, não
eu.

[CLICK]

O vídeo tem 2 horas e 43 minutos de duração, e o áudio permanece consistente o


tempo todo.

Nenhum sinal de Alena Sanderson foi encontrado nos dois anos desde seu
desaparecimento, e tomei a decisão de não compartilhar nossas descobertas com a
Sra. Popham.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Carlos Vittery, a respeito de sua aracnofobia e suas manifestações.
Depoimento original prestado em 9 de abril de 2015. Gravação de áudio por Jonathan
Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu odeio aranhas. Eu sei, eu sei, todo mundo odeia aranhas. Toda vez que fazem uma
lista dos principais medos, elas estão sempre no topo, e franquias inteiras de terror
foram construídas sobre a premissa básica de que as pessoas odeiam aranhas. Mas
não como eu. Não desse jeito. Não é a visão de uma aranha que me atinge, nem as
pernas ou os olhos ou mesmo as teias que elas deixam para trás com apenas o cadáver
drenado dos insetos que são suas vítimas ainda dentro. É a presença de uma aranha.
O conhecimento de sua existência, em algum lugar próximo, esperando para rastejar
sobre você, e todo o aviso que você recebe daquele leve toque de suas pernas
enquanto ela sobe em você.

Não estou me explicando muito bem. Deixa eu tentar dizer de um jeito diferente: posso
assistir quantos filmes eu quiser sobre essas coisas. Documentário ou terror, não
importa. Posso ler livros sobre elas. Posso olhar fotos de suas caras estranhas de
aranha o dia todo, e dificilmente sentirei um arrepio em meu corpo. Mas tive que me
mudar da minha última casa depois de descobrir quantas aranhas moravam no meu
jardim. Um dia entrei lá com a intenção de fumar um cigarro, sentei na mobília
enferrujada do jardim que já tinha vindo com a casa e olhei para cima. Lá estava ela –
estendida entre dois grandes galhos, sua silhueta contornada contra o céu onde ela
estava. Falando objetivamente, a coisa era minúscula – não poderia ter mais de meia
polegada de perna à perna. Mas lá em cima, suspensa bem acima de mim, seu corpo
preto contra o céu cinza-ardósia, me encheu de um pavor nauseante. Eu pulei e
comecei a andar de volta para a casa, mas quando o fiz meus olhos percorreram
freneticamente o resto do jardim, e em todos os lugares onde eles paravam eu via mais
aranhas à espreita, mais teias. Havia dezenas que eu podia ver, o que significava que
devia haver outras centenas que eu não podia.

Não havia como eu viver ali depois daquilo. Como eu poderia dormir sabendo quantos
horrores rastejantes se moviam, contorciam e espalhavam sua sujeira a apenas uma
parede de distância? Eu não sou idiota; eu sei que todos os jardins contêm aranhas.
Cada um deles está repleto delas, aninhadas em qualquer fenda ou esconderijo que
possam encontrar. Mas agora eu sabia. Eu havia as visto em sua multidão esguia e não
podia deixar de saber quantas delas estavam ali. E eu não conseguia parar de pensar
que quando o inverno chegasse elas procurariam um caminho para o calor da minha
casa. Então eu tive que me mudar.

Locações em Londres acontecem muito rápido, o que é um saco se você está


procurando o lugar certo para morar. Mas se você só precisa sair de onde está e ir para
um lugar o mais longe possível de um jardim e você não é exigente, isso pode ser
resolvido muito rápido mesmo. Encontrei um lugar em Boothby Road, em Archway.
Enquanto a vizinhança de Elthorne Road estava cheia de casas e jardins – sem dúvidas
infestados de aranhas –  meu prédio era cercado por calçadas de concreto e vagas de
estacionamento, e a única vegetação eram algumas jardineiras de janela que os outros
moradores mantinham. O lugar era antigo, mas tinha sido mantido limpo o suficiente
para que eu não precisasse me preocupar com teias escondidas; e os quartos, embora
pequenos, eram abertos o suficiente para que eu pudesse ficar de olho em todos os
cantos. Eu estava no segundo andar, então qualquer intruso de oito pernas teria que
dar uma escalada para chegar lá; embora eu estivesse perfeitamente ciente da
distância que uma aranha pode atirar sua teia quando quer chegar a algum lugar. O
prédio também gostava bastante de animais de estimação, então arrumei um gato. Eu
tinha ouvido de um amigo que tinha um casal de gatos que eles têm o hábito de pegar
aranhas e comê-las – lenta e tortuosamente. Isso me pareceu bom, então investi em um
gato malhado mais velho de um abrigo local chamado Major Tom.

Tudo isso é muita informação supérflua, eu sei, mas… Você tem que entender o quão
longe eu cheguei; o quão pouco eu toleraria que uma aranha vivesse em minha
presença, para compreender completamente como era antinatural, o que aconteceu
comigo – o que ainda está acontecendo comigo.

Eu vi uma aranha cerca de três meses atrás. Não é incomum. Certamente não tão
incomum quanto eu gostaria – mesmo com todas as minhas precauções, elas ainda
conseguem entrar na minha casa uma vez por mês, mais ou menos. Minha reação
padrão é imediatamente fugir da sala e deixar o Major Tom lá para lidar com ela,
retornando depois de algumas horas. Em todos os casos anteriores, isso funcionou bem
– acredito que o Major Tom definitivamente comeu a maioria delas, e aquelas aranhas
que simplesmente fugiram para as sombras, bem… Posso enganar a mim mesmo e
acreditar que elas também sofreram esse destino. Pode ser que meu companheiro
felino cinza nunca tenha realmente comido nenhuma delas, mas ele era um placebo
bom o suficiente para que esse pensamento não me preocupasse tanto quanto poderia.

Eu me lembro que naquele mês apareceram algumas. Nosso prédio havia adquirido
uma espécie de infestação de algum tipo de inseto que eu não reconhecia – pequenos
vermes prateados, quase como larvas, mas um pouco mais longos – e presumo que
eles proporcionavam uma boa refeição para os monstrinhos de oito patas.

Essa aranha era diferente. Senti isso no momento em que coloquei os olhos na coisa,
parada no meio da parede da cozinha, se exibindo com ousadia, como se quisesse
estar o mais visível possível. Eu senti aquele medo familiar e rápido, como se o chão
tivesse despencado e mil perninhas minúsculas rastejassem sobre cada centímetro da
minha pele. Mas havia algo a mais ali. Eu estava ciente dessa aranha de uma forma
que nunca tinha estado com as outras antes dela. Não era a maior, talvez com uma
polegada de largura, mas seu abdômen estava grotescamente inchado. Eu podia sentir
cada um de seus olhos negros focados em mim, ver cada cabelo em seu corpo gordo e
bulboso e sentir o cheiro do veneno que eu sabia que pingava de suas presas. Eu odeio
aranhas, como já disse – mas eu podia jurar que essa me odiava de volta.

Nada disso foi o suficiente para me fazer pensar duas vezes antes de empurrar
cautelosamente o Major Tom em direção à coisa com o meu pé e fugir do cômodo. Eu
tracei meu caminho para a sala de estar e fechei a porta atrás de mim, deixando gato e
aranha para lidar um com o outro. Eu sentei lá, assistindo a TV, algum programa de
jogos repetido, tentando não pensar sobre a coisa na parede da minha cozinha. Uma
hora se passou, depois duas, e finalmente senti que tinha estabilidade de espírito
suficiente para abrir a porta e confirmar que o maldito aracnídeo havia sumido.

No momento em que abri a porta, senti algo peludo roçar em minha perna. Sufocando
um súbito momento de pânico, olhei e, claro, lá estava o Major Tom, correndo para fora
do cômodo. Ele não parecia magoado ou chateado, então presumi que seu trabalho
estava feito. Então virei para a minha cozinha e congelei. A aranha permanecia naquele
mesmo lugar. Não foi comida, não fugiu – pelo que eu pude perceber, ela nem se
mexeu. O único motivo de eu ter certeza de que a coisa era real e estava viva era que
eu juro para você que podia ver as mandíbulas dela tremendo de ansiedade. Fiquei ali,
incapaz de reunir forças para fechar a porta da cozinha ou entrar nela por completo, e
xinguei o Major Tom por ser um saco de pelos inútil.

Demorou mais uma hora até que eu finalmente conseguisse me mover. O tempo todo
eu fiquei imóvel na porta, observando a aranha gorda que desfilava na minha parede.
Ainda assim, ela permanecia no lugar, e eu não pude deixar de sentir que ela estava me
desafiando a fazer algo, a agir, a matá-la. Comecei a me mover. Lentamente, muito
lentamente, eu me aproximei dela, estendendo uma mão sobre a mesa e pegando a
caneca de café meio bebida, agora fria, em minha mão. Segurei a alça com tanta força
que eu tinha certeza de que ela se quebraria em meus dedos. Finalmente, fiquei diante
da aranha, me preparando para esmagá-la com calma contra a parede. Então ela se
mexeu sem aviso e eu atirei a caneca contra a parede com todas as minhas forças.

Atingiu a aranha diretamente e explodiu em uma chuva de café e porcelana. Fiquei ali
por um minuto, respirando com dificuldade, mas tudo o que restou foi uma grande
mancha na parede e cacos de canecas espalhados pelo chão. Eu deveria ter limpado
aquilo imediatamente, mas estava tão cansado, como se matar a aranha tivesse tirado
cada grama de energia que eu tinha dentro de mim. Eu simplesmente me virei e fui para
a cama. Meus sonhos naquela noite tiveram muitas pernas, mas não há nada de muito
incomum nisso.
Passei a manhã seguinte limpando os detritos da minha batalha com a aranha. Eu
gostaria de ter limpado o café antes de secar, mas na hora do almoço o lugar estava
exatamente como antes. Ao varrer a caneca quebrada, percebi que no maior fragmento
com o desenho de uma coruja azul estilizada, havia uma mancha vívida. Marrom,
vermelho e verde foram esmagados sobre ela onde atingiu a aranha. Isso me enojou,
mas olhando para ela não pude evitar de sentir uma pequena onda de triunfo e sorri
enquanto a jogava no saco de lixo. O Major Tom assistia, impassível como sempre.

Os próximos dias passaram sem incidentes. O Major Tom nunca foi um gato muito
caseiro, então instalei uma portinha para gatos uns dias antes para permitir que ele
entrasse e saísse quando quisesse. Depois daquele primeiro encontro, ele parecia
passar mais tempo fora, e eu o via cada vez menos com o passar da semana. Eu não
pensei muito naquilo; tínhamos tido um Natal particularmente tranquilo, então fazia
sentido que ele aproveitasse o exterior tanto quanto possível antes que o inverno
realmente chegasse.

Foi na sexta-feira depois do meu primeiro encontro que aconteceu. Cheguei do trabalho
cansado depois de uma semana difícil – eu trabalhava como analista de dados em uma
empresa de apostas online – e decidi pedir comida e relaxar um pouco na frente da TV.
Eu me sentei na poltrona e peguei o controle remoto. Eu estava ciente de que o Major
Tom não estava em lugar nenhum, o que era estranho, já que ele geralmente se
alimentava logo depois que eu chegava em casa e nunca perdia uma refeição. Mesmo
assim, não pensei sobre isso e liguei a televisão. Eu não tinha ligado o receptor de
sinal, então o que apareceu primeiro foi uma tela azul vazia. Peguei o outro controle
remoto para ligá-lo, quando percebi que a tela azul não estava vazia. Lá, sentada sobre
ela, preta contra o fundo brilhante, estava uma aranha. E não apenas qualquer aranha,
mas juro para você, e é aqui que você me tira do seu institutozinho como um lunático
perdedor de tempo, mas eu juro que era a mesma maldita aranha.

Tinha o mesmo tamanho, a mesma forma, o mesmo abdômen espesso e pulsante. Mas
mais do que isso, eu senti. Eu senti naquele medo que me atingiu como se eu tivesse
levado um soco no estômago, e eu senti na maneira que a coisa simplesmente ficou lá,
imóvel, esperando que eu a matasse novamente. Eu estava preso à minha cadeira,
apenas assistindo àquela aranha enquanto ela ficava parada na tela da minha televisão.
Eu chamei o Major Tom, mas não obtive resposta.

Deus sabe quanto tempo fiquei sentado encarando a aranha na minha televisão. Não
uso relógio e não conseguia mover meu braço para verificar meu telefone. Se não
estivesse sentado eu já teria corrido, mas ficar de pé era mais movimento do que eu
poderia me obrigar a fazer enquanto ela me observava.

Finalmente, eu me levantei. Foi menos esforço do que eu esperava quando finalmente


reuni forças para fazê-lo. Embora não tenha parecido ser bem assim na hora – naquele
ponto, parecia quase involuntário, como se alguma coisa estivesse me levantando, me
colocando de pé por cordas invisíveis. Comecei a andar, mas ao invés de fugir da
aranha eu me encontrei me movendo em direção a ela, até que parei ali, tão perto que
poderia tocá-la, embora minha mente recue com o pensamento. Antes que percebesse
exatamente o que estava fazendo, levantei a perna e chutei a televisão, esmagando
instantaneamente a aranha bulbosa com o calcanhar do meu sapato, e agora pensando
sobre isso, evitei por pouco uma eletrocussão bem feia. Eu não fazia ideia de que era
capaz de tal coisa, mas mais uma vez a aranha estava morta e eu tinha uma mancha
viscosa em meu sapato.

Joguei fora os restos despedaçados da televisão, queimei o sapato e tentei


desesperadamente voltar a algo que se parecesse com a minha vida normal, mas não
adiantou. A aranha que eu havia matado havia voltado, disso eu não tinha dúvidas, e
uma profunda paranóia começou a se instalar enquanto eu esperava que ela voltasse
novamente. Só vi o Major Tom uma vez nas semanas que se seguiram. Ele entrou,
cheirou a tigela de comida que eu continuava servindo para ele na vã esperança de
atraí-lo de volta, e se virou e foi embora. Quando saiu, ele me lançou um olhar que eu
poderia jurar que era de pena.

Liguei para o meu trabalho dizendo que estava doente porque eu não estava realmente
dormindo e passava tanto tempo checando cantos e recantos atrás da aranha que fiquei
uma pilha de nervos. Mais de uma vez encontrei aranhas, mas elas não eram aquela
que estava atrás de mim, então eu as matava sem pensar duas vezes. Minha vida
decaiu para a bagunça que… Bem, ainda permanece até hoje.

Eu estava certo, entretanto. Duas semanas depois de eu tê-la matado com um chute na
minha TV, lá estava ela. Sobre a minha cama. Parada na parede acima do local onde
minha cabeça repousava todas as noites enquanto eu tentava em vão dormir. Era
aquela aranha maldita. E eu a reconheci. Meu quarto é mais bem iluminado do que a
cozinha, e não era uma silhueta contra uma tela, então pela primeira vez eu dei uma
boa olhada em meu tormento e percebi que a tinha visto antes da cozinha.

Eu não nasci com medo de aranhas. Na verdade, durante os primeiros seis anos de
minha vida, só posso presumir que eu existi em harmonia pacífica com elas. Mas isso
mudou no outono de 1991. Eu não morava em Londres na época, morava com meus
pais em Southampton, e íamos visitar meus avós todos os domingos, na vizinha New
Forest. Eles viviam na periferia de um subúrbio, e no fundo do jardim da minha avó,
dava para ver os campos se estendendo por 800 metros até a linha das árvores. Eu
costumava passar muito tempo lá e, se você tivesse sorte, às vezes apareciam cavalos.

Naquele dia, não havia cavalos, apenas um céu nublado e vento que ameaçava soprar
meu chapéu de lã azul. Eu estava vagando por entre as árvores espalhadas perto da
cerca que eu não tinha permissão de ultrapassar, e notei um tronco caído. Eu já tinha
visto ele antes, é claro, já que havia pouca coisa naquele lugar que mudava muito entre
minhas visitas semanais, mas havia algo diferente nele. Em uma das cavidades estava
algo que eu não reconheci. Era de um marrom claro e parecia macio e irregular, como
um pequeno saco. Sem saber que não devia, me aproximei dele e vi, empoleirada no
topo, uma pequena aranha. Ela me observou com cautela, seu abdômen gordo se
contraindo, mas não se moveu.

Em minha ignorância infantil, achei que parecia bobo e estendi a mão para pegá-la. Mas
eu tropecei. Minha mão atingiu a aranha, a matando instantaneamente e mergulhando
no saco de ovos abaixo, fazendo-o se abrir e explodir. De repente eu estava coberto por
milhares de coisinhas brancas rastejantes – aquelas aranhinhas minúsculas gotejantes,
semiformadas e inacabadas. Elas cobriram as minhas mãos, meu rosto… meus olhos.

Eu jamais me esquecerei daquele sentimento, e desde então a presença de aranhas me


enche do mais profundo pavor. E aquela era a aranha que estava sentada diante de
mim na parede do meu quarto. Embora eu me lembre pouco de como a coisa que eu
matei há muito tempo atrás parecia, eu sabia que era a mesma. Você pode ser
assombrado pelo fantasma de uma aranha que destruiu sua infância? Parece absurdo.
Parece ridículo. Mas lá estava ela. Eu não sabia por que ela estava aqui. E eu não
sabia por que eu estava tentando alcançá-la. Minha mente berrava para eu parar e eu
soltei um grito horrível, mas minha mão continuava se movendo em direção a ela
implacavelmente, como se por vontade de outra coisa. Essa aranha fantasma parecia
real o suficiente quando eu a esmaguei sob a minha palma, as pernas abertas e o corpo
explodindo calorosamente contra minha pele. Assim que consegui controlar meu
membro novamente, passei o resto da noite lavando a minha mão.

Estou indo embora daquele prédio. Eu entreguei oficialmente a papelada do Major Tom
para a família do térreo com a qual ele decidiu viver, e irei embora no momento em que
eu encontrar algum lugar, qualquer lugar, disponível para aluguel imediato. Não posso
arriscar ver a coisa de novo. Também estou indo a médicos, tentando conseguir um
encaminhamento para tratamento psiquiátrico ou possivelmente algum medicamento
antipsicótico, mas achei que provavelmente deveria lhes dar um depoimento também.
Não espero que vocês acreditem em mim, mas se “aranhas fantasmas” caem sob a
alçada de alguém, suponho que seja a de vocês.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Acho que as linhas mais importantes nesta declaração vêm no final. Medicação
antipsicótica e descrença são, eu acho, exatamente o que o Sr. Vittery precisava para
superar seu problema com, er… “Aranhas fantasmas”. Simplesmente não há detalhes
suficientes dados nesta declaração para realmente investigar, exceto Martin
confirmando que o Sr. Vittery realmente morava nos endereços que ele forneceu.

Eu teria pedido ao Tim para falar com o próprio Sr. Vittery, mas aparentemente ele
faleceu pouco depois de prestar seu depoimento. Ele foi encontrado em sua residência
em Boothby Road, depois que vizinhos reclamaram do cheiro, e aparentemente já
estava morto há mais de uma semana. O laudo do legista aponta asfixia como causa da
morte, provavelmente devido a engasgo, embora não diga com o que ele se engasgou,
simplesmente indique “material orgânico estranho” bloqueando sua garganta.

Se eu fosse de uma natureza mais alarmista, poderia pensar que a aparência do


cadáver do Sr. Vittery deu alguma credibilidade à sua história. Mas, como eu disse a
Martin antes, ele ficou lá por mais de uma semana, então é muito provável que haja
uma explicação perfeitamente natural para o fato de seu corpo estar completamente
envolto em teia.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Sebastian Adekoya, a respeito de uma nova aquisição da Biblioteca
Chiswick. Depoimento original prestado em 10 de junho de 1999. Gravação de áudio
por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Livros são incríveis, não são? Quer dizer, quando você pensa sobre o que eles
realmente são. As pessoas não dão à realidade da linguagem o peso que ela merece,
eu acredito. As palavras são uma forma de pegar seus pensamentos, sua própria
versão de si mesmo, e transmiti-los a outra pessoa. Colocando seus pensamentos na
mente de outra pessoa. Eles não são um método perfeito, claro, já que há muito espaço
para mutação e deturpação entre a sua mente e a do ouvinte, mas isso não muda a
essência do que a linguagem é. Se falado em voz alta, porém, o pensamento morre
rapidamente se não for captado. Vibrações simples que desaparecem quase assim que
são criadas, apesar de que se encontrarem um hospedeiro podem se alojar lá; se
proliferar e talvez se espalhar ainda mais. Ainda assim, não é um método confiável em
termos de duração de um pensamento, já que os humanos são criaturas frágeis e
raramente duram um século.
Um livro, porém, é outra história. Existem textos escritos que viveram mais do que as
civilizações que os criaram. Imagine, pensamentos de centenas e milhares de anos,
preservados e prontos para serem retomados. Corrompidos ou traduzidos, talvez, por
uma cultura que não os entende, mas ainda assim – ideias que sobreviveram por muitas
vidas à mente que as concebeu primeiro. Os pensamentos que passaram primeiro pela
cabeça de Shakespeare vão deixar de ser pensados por alguém, em algum lugar? E um
livro, tão denso com criações fossilizadas de uma mente, é de se admirar que eles
tenham recebido tanto poder ao longo dos tempos? Ou que uma velha biblioteca, com
volumes pesados cobrindo todas as paredes, pareça ter tanto peso para ela, além da
presença física dos textos que contém?

Eu costumava trabalhar na Biblioteca de Chiswick. Eu não tinha essas ideias naquela


época, no entanto; eu só sabia que amava livros, sempre amei, então quando surgiu a
oportunidade de trabalhar na biblioteca local eu agarrei a chance. Eu sempre fui um
leitor ávido desde que tinha idade suficiente para segurar um livro sozinho, e antes
mesmo disso minha mãe me disse que eu a importunava constantemente para ler para
mim. Suponho que você possa dizer que minha mente sempre foi receptiva aos
pensamentos que se escondem na página escrita. Ainda assim, a Biblioteca de
Chiswick está muito longe das bibliotecas apertadas e austeras que você
provavelmente está imaginando. Ela é leve e arejada, com estantes de livros e tapetes
que falam mais sobre câmaras municipais locais sem dinheiro do que da rica majestade
do conhecimento. Ela possui uma extensa seção infantil e a grande maioria de seu
estoque são brochuras com orelhas nas páginas sobre crimes verdadeiros, ficção
literária e livros de referência. Possui uma coleção modesta de audiolivros e a
atmosfera, embora tranquila, está longe de ser opressiva. Em uma palavra, eu resumiria
o lugar como “inofensivo”.

Aconteceu há três anos. Eu já estava trabalhando lá há cerca de um ano quando o livro


apareceu pela primeira vez. Bem, costumávamos comprar todos os nossos livros novos
e eu nunca fiz nenhuma das aquisições para a biblioteca, então eu não sei dizer quando
ou onde ele poderia ter sido comprado, mas parecia velho e bastante surrado quando
eu o percebi pela primeira vez. Ele foi devolvido com outros quatro livros na recepção e,
enquanto os examinava, percebi que um dos códigos de barras parecia não
corresponder. O código de barras e o ISBN registrados como sendo o de  Trainspotting,
de Irvine Welsh, mas o livro em si era uma brochura preta quase sem características,
com um título na frente em uma fonte serifada, branca e desbotada:  O Conto do
Viraossos.

Fiquei um pouco confuso e chamei a bibliotecária, Ruth Weaver, para perguntar sobre
ele. Ela não se lembrava de tê-lo visto antes, mas grudado na capa estava o marcador
do acervo da Biblioteca de Chiswick, bem como uma etiqueta de empréstimo com um
punhado de selos que se acumulavam há vários anos. Ruth deu de ombros e me disse
para não me preocupar muito com aquilo – íamos registrá-lo e colocá-lo no sistema
adequadamente, mas algo na situação me incomodava, então decidi verificar o registo
do homem que havia o devolvido. Seu nome, pelo menos de acordo com seu cartão da
biblioteca, era Michael Crew, e como esperado, três semanas atrás ele havia pegado
emprestado quatro livros nossos. Especificamente, os outros quatro que ele havia
retornado. Sugeri a Ruth que talvez ele fosse um autor independente que estava
tentando nos enganar para chegar às nossas prateleiras, e ela riu, dizendo que
provavelmente era isso, embora o motivo de alguém se dar ao trabalho de fingir apenas
para chegar às prateleiras da Biblioteca de Chiswick estava além de sua compreensão.
O livro parecia até gasto, no entanto – como se tivesse sido lido por décadas, com uma
linha vincada na lombada e metade da capa desbotada pelo sol. E pelo que eu pude
ver, ele nem sequer listava qualquer autor.

Foi nesse momento que Jared Hopworth entrou e tive que deixar o livro de lado. Jared e
eu tínhamos sido bons amigos; crescemos na mesma estrada, frequentamos as
mesmas escolas, passamos grande parte de nossas vidas sendo inseparáveis. Mas ele
sempre foi, bem… Sem querer ser rude – meio tapado, e quando fui para a faculdade,
ele ficou para trás. Acho que ele levou isso meio que como uma traição, e quando
finalmente voltei, eu soube imediatamente que algo havia mudado entre nós. Ele
passou o tempo que eu estava fora se tornando um bandidinho e, quando voltei,
começou o que viria a ser uma série de terrores mesquinhos. Ele sempre foi muito
cuidadoso em parar antes de fazer qualquer coisa que pudesse envolver a polícia, e
acho que havia sobras de afeto suficientes de uma infância que passamos juntos que
eu nunca realmente pensei em denunciá-lo. Foi–

ARQUIVISTA
Oh. Er… Olá, Elias.

Elias: Você tem um minuto?

Arquivista: Na verdade não, eu estou no meio de algo.

Elias: Eu compreendo, é que a Srta. Herne apresentou uma reclamação.

Arquivista: Uma reclamação? Eu também poderia muito bem reclamar sobre ela ter me
feito perder tempo!

Elias: Não é assim que funciona, Jonathan.

Arquivista: Eu nem teria que fazer a gravação se a Rosie mantivesse o equipamento


dela em melhores condições.

Elias: De qualquer maneira, eu preferiria que você não hostilizasse ninguém ligado à
família Lukas. Eles são patrocinadores do Instituto, afinal.

Arquivista: Tá, tá, eu vou ser mais carinhoso. Agora posso voltar ao trabalho?

Elias: Muito bem. A propósito, você viu o Martin?

Arquivista: Ah, ele está doente esta semana. Problemas de estômago, eu acho.

[Elias sai]

Arquivista: Alívio divino, se quer saber.

Continuação do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Foi pior quando Jared visitou a biblioteca, porque isso inevitavelmente significava que
ele estava entediado o suficiente para me procurar e me assediar. Como esperado, ele
começou a conversar comigo, jogar piadas sem sentido que serviram para enrolar até
que Ruth, que não sabia dos problemas que Jared tinha comigo, voltasse para seu
escritório e fechasse a porta. Assim que ela fez isso, ele se virou e com um único
movimento derrubou o carrinho de devoluções, espalhando os livros recentemente
recebidos pelo chão. Ele sorriu para mim e se desculpou. Fiz o possível para não
demonstrar nenhuma irritação, ou nem sequer uma reação, enquanto me virava
lentamente e me abaixava para começar a recolhê-los. Quando me pus de pé, senti um
impacto na parte de trás da minha cabeça e cambaleei. Atrás de mim, Jared estava
segurando o livro que eu deixei de lado, O Conto do Viraossos, e aparentemente o
pegou para me bater. Mas agora não me ofereceu um pedido de desculpas falso ou
mais violência; em vez disso seus olhos estavam fixos no livro. Ficamos parados em
silêncio por alguns segundos até que ele disse algo sobre precisar de algo novo para
ler, então se virou e foi embora.

Eu estava, devo admitir, um pouco inquieto. Até onde eu conseguia lembrar, nunca
tinha visto Jared ler… Bem, nada, realmente. E o olhar em seus olhos quando ele partiu
continha algo que não era totalmente diferente de medo. Ainda assim, era um alívio ver
ele indo embora, e eu rapidamente arrumei o resto dos livros antes que Ruth
percebesse algo de errado.

Não me lembro de mais nada que aconteceu naquele dia na biblioteca, mas depois no
caminho para casa passei pela casa de Jared. Eu tinha voltado a morar com os meus
pais enquanto resolvia tudo depois da faculdade, e ele nunca havia saído da casa onde
que cresceu, então ainda morávamos na mesma rua. Era final de setembro naquela
época, então enquanto eu voltava da biblioteca já estava escuro, e notei uma pequena
forma se movendo na poça de luz laranja abaixo do poste da rua.

Quando cheguei mais perto, percebi com um leve sobressalto que era um rato – e não
um rato selvagem e sujo, mas um enorme e branco, muito bem cuidado e claramente já
havia sido um animal de estimação. Mas havia algo muito errado com ele. Ele estava
rastejando lentamente, se arrastando pelas patas dianteiras, e vi que a metade
posterior era plana, como se tivesse murchado de alguma forma. Achei que devia ter
sido atropelado, mas não havia sangue ou sinal de esmagamento, nem parecia estar
sentindo alguma dor. Ele só tinha uma metade traseira que balançava e se contorcia
indecentemente enquanto traçava seu caminho gradualmente através da calçada
iluminada e saía para a escuridão. Eu apenas fiquei ali e observei, paralisado por ele,
até que ele desapareceu de vista. Pensando nisso agora, lembro que sua cabeça
estava virada em um ângulo estranho, muito mais virado do que deveria, embora eu
possa estar ficando confuso. Muitas dessas experiências acontecem ao mesmo tempo
quando eu olho para trás. Não havia luz acesa na casa de Jared, mas corri para casa
rapidamente depois daquilo.

Eu não vi Jared de novo por um tempo. No começo eu estava feliz pelo distanciamento,
mas conforme os dias se transformaram em semanas, comecei a sentir algo que não
esperava: preocupação. Se não fosse pelo jeito que ele saiu da última vez,
provavelmente não teria me incomodado, mas ele parecia tão estranho… E mesmo sem
ele ir à biblioteca era raro que se passasse uma semana sem que eu o visse. A essa
altura já fazia quase um mês. Mesmo assim, resisti à vontade de ir à casa dele para
verificar. Se no final das contas ele estivesse bem, eu estaria convidando um mundo de
coisas desagradáveis e, além disso – lembrei a mim mesmo – ele não era mais
problema meu.

Era final de outubro quando a mãe do Jared apareceu. O dia estava quase terminando
e lá fora já estava escuro. Eu estava arrumando uma vitrine com boas leituras de
Halloween antes de ir para casa quando ouvi a porta se abrir. Eu me virei e lá estava
ela. Levei alguns segundos para reconhecê-la, para ser honesto. Eu não tinha visto
muito ela desde os anos em que Jared e eu éramos próximos, e ela havia visivelmente
envelhecido. A Sra. Hopworth usava um sobretudo volumoso, embora ainda não
estivesse tão frio, e seu braço pendia em uma tipoia. Algo sobre o ângulo do braço e
como ele pendia parecia levemente anormal, e me perguntei se ela tinha quebrado.

Quando perguntei à Sra. Hopworth se ela estava bem, ela apenas me encarou, seus
olhos queimando de ódio. Com o braço bom, ela enfiou a mão no casaco e tirou de lá
um pequeno livro preto. Ela o jogou no chão sem dizer uma palavra e se virou para sair.
Eu não pude evitar, perguntei a ela se Jared estava bem. Ela se virou para trás e
começou a me xingar violentamente, disse que eu não tinha assuntos com o filho dela e
que eu e meus livros devíamos ficar longe dele. Enquanto ela falava, eu não conseguia
desviar o olhar de seu braço e das formas estranhas que ele se retorcia enquanto ela
gesticulava. Como seus dedos pareciam se dobrar para o lado errado. Fiquei feliz por
Ruth ter ido para casa mais cedo, pois não queria que ela testemunhasse o confronto
perturbador que eu aparentemente havia causado.

Quando terminou, a Sra. Hopworth cuspiu em minha direção, embora eu tenha


percebido que ela teve o cuidado de evitar cuspir no livro que agora estava no chão
entre nós, e saiu. Larguei o exemplar de Louca Obsessão de Stephen King que agora
percebi que estava segurando e me aproximei do livro descartado que estava no tapete.
A capa preta surrada parecia a mesma de quando o vi pela primeira vez semanas atrás,
com aquele título branco desbotado na frente: O Conto do Viraossos. Me abaixei para
pegá-lo, mas antes de fazê-lo um pensamento passou pela minha mente, uma memória
da última vez que tinha visto o Jared, e peguei alguns lenços de papel da mesa e os
usei para pegar o livro. Mesmo assim, senti minha pele se arrepiar quando o segurei.

Decidi não lidar com aquilo naquela noite. Eu não tinha certeza se lê-lo durante o dia
seria muito melhor, mas as sombras se projetando lá fora pareciam ter ficado muito
mais nítidas desde que o livro foi trazido de volta para minha biblioteca, e isso me
assustou. O coloquei no carrinho de devoluções e saí, verificando se havia trancado
bem a porta atrás de mim.

Choveu muito naquela noite. Meu quarto fica em um sótão reformado e, quando o
tempo está ruim, é como se eu pudesse ouvir cada gota de chuva batendo na janela
que fica logo acima da minha cama. Não era uma tempestade – não havia vento para
isso – era apenas aquela chuva forte e palpitante que caía forte e açoitava o vidro
acima de mim. Eu não consegui dormir. Havia uma apreensão persistente em minha
mente, algo que depois de três horas deitado na cama tinha quase se transformado em
um pânico. Como pude simplesmente ter deixado o livro? Havia algo de errado com ele,
isso era óbvio. E se a Ruth chegasse mais cedo do que eu amanhã e o pegasse? O que
aconteceria com ela? Eu deveria ter destruído ele?

Esse último pensamento foi rapidamente afastado. Eu não tinha certeza se conseguiria
destruir um livro, mesmo um tão estranho como aquele. Fiquei surpreso com a
facilidade com a qual eu aceitei que O Conto do Viraossos tinha poderes obscuros, mas
acho que eu sempre acreditei que os livros têm uma espécie de magia neles, então foi
realmente apenas uma confirmação do que eu já suspeitava, lá no fundo, há muito
tempo.

Eram duas da manhã quando decidi que não poderia simplesmente deixá-lo lá durante
a noite. Eu levantei, me vesti e, silenciosamente, saí na chuva em direção à biblioteca,
me certificando de levar as minhas luvas. Meu casaco deveria ser à prova d'água, mas
ainda assim conseguiu ficar encharcado nos vinte minutos que levei para andar até lá.
Eu estava com a chave por ter trancado naquela noite e desativei o alarme quando
entrei.

Estava escuro como breu lá dentro, e parte de mim queria manter as coisas assim, mas
acendi o máximo de luzes que pude sem que ficasse imediatamente óbvio do lado de
fora do prédio. Não eram muitas, e eu ainda tive que tatear pelo caminho através do
saguão até a biblioteca propriamente dita. Ao me aproximar da escrivaninha e do
carrinho de devoluções onde eu havia deixado O Conto do Viraossos, comecei a andar
com menos cautela. Estava mais escuro naquele canto da biblioteca e estendi a mão
para me apoiar no puxador do pequeno carrinho de metal. Eu tinha tirado minhas luvas
naquele momento e minha mão saiu úmida. Eu rapidamente me atrapalhei com a
lanterna que havia pegado antes de sair e a acendi. Vermelho pingava e pulsava do
carrinho, encharcando as páginas e formando uma pequena poça ao redor. Os livros
estavam sangrando.
Eu ri com aquilo. Parecia tão apropriado de alguma forma, tão absolutamente correto
que aqueles livros que estavam perto sofressem, fossem contaminados por ele. Assim
como parecia certo e adequado que, quando minha lanterna encontrou  O Conto do
Viraossos, ele estava seco, sem marcas da cena sangrenta ao seu redor.

Coloquei minhas luvas de novo e cuidadosamente tirei aquele volume sinistro e o


coloquei sobre a mesa. Talvez eu devesse ter lutado mais contra a tentação de olhar o
que tinha dentro, mas minha curiosidade era muito forte. As luvas grossas tornavam
quase impossível virar páginas individuais, e eu ainda tinha bom senso o suficiente para
continuar com elas, então apenas abri em algumas páginas aleatórias e comecei a ler.
Talvez eu estivesse sendo paranoico. Afinal, toquei o livro com as mãos nuas quando
foi entregue pela primeira vez na biblioteca e não tive problemas, mas a imagem da
mãe de Jared não saía da minha cabeça. Como seu braço havia se retorcido quando se
moveu. Decidi continuar com as luvas.

Foi escrito em prosa e certamente parecia ser algum tipo de história. A parte que li
tratava de um homem sem nome, em vários pontos referido como o Viraossos, o
Bonesmith ou apenas o Virador, observando um grupo reunido de pessoas enquanto
eles caminhavam para uma pequena aldeia. Não está claro pelo que eu li se ele estava
viajando com eles ou simplesmente os seguindo, mas me lembro de ficar perturbado
com os detalhes que ele observou neles: a maneira como o pastor passava a mão
sobre a boca sempre que olhava por muito tempo para as freiras ou como o cozinheiro
olhava para a carne que ele preparava com os mesmos olhos que olhava para o
sacerdote. Foi só então que percebi que o livro estava descrevendo os peregrinos
de Os Contos de Cantuária[1] [1].

Bem, esta certamente não era uma seção perdida de um clássico do Chaucer. Foi
escrito em inglês moderno, sem nenhuma grafia ou pronúncia arcaica do original e,
além disso, a própria escrita era de qualidade questionável. Havia algo convincente
nele, no entanto. O debate sobre como Os Contos de Cantuária terminou… bem, é um
debate muito real – no prólogo mais de cem contos são prometidos, mas a versão mais
completa que sobreviveu não chega nem a duas dúzias. O livro só meio que termina,
com Chaucer adicionando um curto epílogo implorando perdão a Deus. Um apelo
geralmente lido como sarcástico ou retórico.

Folheei algumas páginas e descobri que o Bonesmith aparentemente se aproximou do


Moleiro enquanto ele dormia. Descrevia ele alcançando silenciosamente o interior do
outro, e… é um pouco vago. Tudo o que me lembro com clareza é a frase “e de sua
costela uma flauta para tocar aquela alegre melodia medular tirou”. E quanto ao resto,
não me lembro em detalhes, mas sei que quase vomitei e que o Moleiro não sobreviveu.
Isso estava na página dezesseis, e era um livro grosso.

Virei para a folha de rosto, desesperadamente curioso para saber como este livro tinha
ido parar em nossa biblioteca. Sob a luz forte da lanterna, pude ver os vincos e as
bordas descascadas da etiqueta da Biblioteca de Chiswick, o que geralmente
significava que ela havia sido removida e colada novamente ou retirada inteiramente de
outro livro. Eu podia até ver as bordas de outra etiqueta embaixo. Usando uma tesoura,
descolei cuidadosamente a de cima, mas fiquei decepcionado. Era a etiqueta de outra
biblioteca, provavelmente o último lugar onde havia sido deixado, embora eu ache que
deve ter sido na Escandinávia, porque era alguma coisa tipo Biblioteca de Jergensburg
ou Jurgenleit ou Jurgerlicht ou algo assim. Não me ajudou em nada.

Eu estava pronto para voltar a ler a coisa, quando ouvi o som de vidro quebrando atrás
de mim. Eu me virei para ver Jared Hopworth parado na frente da janela quebrada. Ou
pelo menos eu suponho que era o Jared, já que exigia o livro de mim na voz de Jared,
mas usava calças largas e um casaco grosso com um capuz que cobria quase
completamente o rosto dele. Ou o rosto da coisa.
Ele era mais comprido do que Jared, e estava em um ângulo estranho como se suas
pernas estivessem muito rígidas para serem usadas. Quando ele gesticulou para o livro,
vi que seus dedos pareciam… Afiados, como se a pele nas pontas estivesse sendo
empurrada em uma ponta estreita por algo dentro dela. Eu disse a ele que a biblioteca
estava fechada, porque naquele momento eu não conseguia pensar em mais nada para
dizer. Ele me ignorou e exigiu novamente que eu lhe desse o livro. Foi quando fiz algo
um tanto precipitado – ou seja, dei um soco nele.

Eu nunca tinha realmente dado um soco de raiva antes, ou mesmo de desespero, então
foi um choque para mim quando consegui acertar um único punho rígido em seu plexo
solar. Mas enquanto fazia isso – e essa é a parte que ainda me dá pesadelos – senti
sua carne ceder e quase se retrair, me puxando para perto. E então eu senti suas
costelas se deslocarem e se fecharem com força em volta da minha mão, como se sua
caixa torácica estivesse tentando me morder. Elas eram mais afiadas do que eu achava
ser possível e, finalmente, foi isso o que realmente me fez começar a gritar. Nunca
antes ou desde então eu gritei daquele jeito, e ainda estou um pouco surpreso por ser
capaz de fazer tanto barulho, mas aí está.

Em meu pânico deixei cair o exemplar de O Conto do Viraossos e em menos de um


segundo Jared estava em cima dele. Ele soltou minha mão e o agarrou com um
desespero frenético antes de se virar para correr de volta pelo caminho por onde
entrou. Comecei a correr atrás dele, até que vi como ele estava se movendo. Quantos
membros ele tinha. Ele tinha… Adicionado alguns extras. Foi nesse momento que
finalmente tudo aquilo foi demais para mim; eu parei de correr. Não era meu livro, não
era minha responsabilidade e eu não tinha ideia de com o quê eu estava lidando, então
não continuei. Eu só fiquei parado ali em transe e observei a coisa que um dia havia
sido Jared desaparecer na chuva. Eu nunca mais o vi.

A polícia apareceu logo depois. Aparentemente, alguém ouviu meus gritos e fez um
chamado. Contei uma história sobre adormecer na minha mesa e ser acordado por uma
tentativa de assalto. Só Deus sabe como eu expliquei os livros sangrentos, porque
aquilo não era um fantasma que desapareceria. Demorou semanas para sair. Todos
pareciam acreditar em mim, entretanto, e milagrosamente mantive o meu emprego. Não
vejo o Jared há anos desde então e não fiz mais nenhuma pesquisa sobre o livro. O
melhor cenário que posso imaginar é que esse depoimento seja a última vez que
preciso ouvir ou falar sobre Jared Hopworth ou O Conto do Viraossos.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Bem, isso me deixa… Profundamente infeliz. Eu mal arranhei a superfície dos arquivos
e já descobri evidências de dois livros sobreviventes separados da biblioteca de Jurgen
Leitner. Antes de ele mencionar aquilo, fiquei tentado a descartar muita coisa, mas do
jeito que está agora acredito em cada palavra. Eu vi o que o trabalho do Leitner pode
fazer, e essa notícia, mesmo que 17 anos atrasada, ainda me preocupa muito. Vou ter
uma discussão com Elias sobre o que podemos fazer para resolver o problema. Eu sei
que ele vai me dar o velho discurso de “registrar e estudar, não interferir ou conter” de
novo, mas eu preciso ao menos alertá-lo sobre isso.

Tim e Sasha cruzaram os eventos aqui com relatórios policiais e como esperado houve
um mandado emitido para a prisão de Jared Hopworth por arrombamento e invasão,
bem como agressão. Ele nunca foi encontrado, contudo, e os crimes não foram graves
o suficiente para manter o caso ativo por muito tempo. Tenho pesquisado por conta
própria tanto quanto possível, mas o livro parece ter desaparecido junto com ele.
Pedi a Martin que tentasse encontrar o próprio Sr. Adekoya para um acompanhamento,
mas fui informado de que ele faleceu em 2006. Ele foi encontrado morto no meio da
estrada na noite de 17 de abril. Apesar de não haver marcas de esmagamento ou
trauma no corpo, o inquérito determinou como atropelamento e fuga devido à posição
mutilada em que foi encontrado. Foi um funeral de caixão fechado.

Fim da gravação.
[1]“Os Contos de Cantuária” é uma coleção de histórias escritas a partir de 1387 por
Geoffrey Chaucer, considerado um dos consolidadores da língua inglesa. Na obra, cada
conto é narrado por um peregrino de um grupo que realiza uma viagem desde
Southwark à Catedral de Cantuária para visitar o túmulo de São Thomas Becket

ARQUIVISTA
Depoimento de Christof Rudenko, a respeito de suas interações com um residente do
primeiro andar da Casa Welbeck, Wandsworth. Depoimento original prestado em 12 de
dezembro de 2008. Gravação de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto
Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Nunca compre um apartamento no andar térreo. Pode parecer uma boa ideia,
especialmente se assim como eu você acaba de passar uma década arrastando
compras por três lances de escada todas as semanas, mas é mais barulhento, sempre
tem uma visão pior e está muito mais sujeito a arrombamentos e outros… problemas. E
aí tem a questão dos vizinhos de cima. Eu sei que andares mais altos também terão na
maioria das vezes pessoas morando acima de você, e mudar de um apartamento no
último andar para o térreo como eu não é uma coisa comum, mas ainda é verdade.
Nunca tive nenhuma preocupação real com isso até que me mudei para o andar térreo
da Casa Welbeck. Hoje em dia fico bem mais atento às pessoas que moram perto de
mim.

A Casa Welbeck é um bloco de apartamentos de cinco andares no centro da cidade de


Wandsworth; uma ótima área para morar, na verdade — é perto o suficiente de Londres
para que você possa se locomover facilmente, e tem comodidades o suficiente para que
você não precise ir lá com frequência, especialmente se, como eu, você trabalha por
conta própria. Não era barato, mas sempre fui bom com dinheiro, então quando decidi
realmente tentar comprar uma residência aos 34 anos, consegui bancar um bom
apartamento. Depois de quase um ano de busca, me estabeleci no andar térreo da
Welbeck. Na época, eu não tinha pensado muito sobre os meus vizinhos — aqueles que
encontrei enquanto comprava o lugar pareciam legais o suficiente, e os proprietários
anteriores do meu apartamento não haviam mencionado nada.

No dia em que me mudei — isso deve ter sido no final de 2002 — vi um homem
fumando, inclinado para fora da janela logo acima da minha. Era um dia cinzento e
nublado e a previsão do tempo disse que choveria mais tarde, então eu estava ansioso
para colocar a última das minhas caixas para dentro e começar a desempacotar, e
realmente não prestei muita atenção nele. Eu me lembro que ele estava usando uma
jaqueta com capuz, contudo, puxada para cima e escondendo a maior parte de seu
rosto. Nós trocamos olhares brevemente — pelo menos eu acredito que trocamos, eu
não conseguia ver seus olhos, mas senti ele olhando para mim — e eu poderia jurar
que senti um cheiro muito estranho. É difícil descrever, algo entre o cheiro de calçada
depois da chuva em um dia quente e frango que está começando a apodrecer. Foi
desagradável, para dizer o mínimo, mas o vento soprou e aquilo foi embora tão rápido
quanto veio. O homem na janela do andar de cima continuou observando enquanto eu
levava minhas caixas para dentro, apenas continuando a fumar em silêncio, até que em
algum momento eu saí para pegar as últimas partes e percebi que ele havia sumido.

Fiquei levemente assustado com o encontro. É difícil dizer exatamente o porquê —


tirando o cheiro, que poderia ter vindo de qualquer lugar — não havia nada
externamente perturbador naquilo, mas algo no jeito do homem me abalou. Eu nem
sabia na época se era mesmo um homem, foi apenas uma suposição que fiz, mas eu
certamente não planejava averiguar. Sou uma pessoa bastante reservada, então a ideia
de sair por aí e tentar encontrar meus vizinhos não foi algo que eu considerei muito,
muito menos esse que passou quase meia hora me encarando. Decidi ignorar a coisa
toda e prosseguir com o processo de mudança.

Tive muito sucesso em ignorar o homem do andar de cima, pelo menos no começo.
Não foi difícil, já que ele geralmente era quieto e raramente saía de seu apartamento,
pelo que eu pude perceber. Na verdade, com o passar do tempo em meu novo
apartamento, comecei a reconhecer os outros residentes da Casa Welbeck: a família
branca que vivia do outro lado do corredor com sua filhinha — às vezes eu a ouvia à
noite, protestando barulhentamente contra sua hora de dormir; a velha solteirona da
porta ao lado — Dianne, acho que era esse o nome dela, ou Diana; o cara asiático no
primeiro andar que trabalhava durante a noite e batia demais as portas. Duvido que já
tenha trocado mais de uma dúzia de palavras com qualquer um deles, mas comecei a
conhecer seus sons e hábitos. Em todo esse tempo, porém, não tenho certeza se
alguma vez vi o homem que morava acima de mim. Não no corredor, não fora da janela
— era como se ele não existisse, e por mim estava tudo bem, exceto que eu ainda
sentia o cheiro daquele cheiro muito ocasionalmente, podre e terroso, me pegava de
surpresa e eu normalmente passava um minuto tentando rastreá-lo antes que ele
desaparecesse. Uma vez, eu juro que ao parar para olhar em volta ouvi a porta do
andar de cima se fechar silenciosamente.

Me parecia bastante óbvio que era ele. Não era o ideal, mas o problema de higiene dele
não era da conta de ninguém além dele mesmo, e tendo descoberto a origem do cheiro
ele parou de me incomodar tanto naqueles raros momentos em que eu o pegava nas
correntes de ar do nosso prédio. Não entrou na minha casa, embora eu acendesse
velas perfumadas só para garantir — um hábito que mantenho até hoje. Concluí que
tudo o que importava para mim era que ele ficasse quieto, o que ele era. Pelo menos
nos primeiros anos.

As batidas começaram em 5 de julho de 2004. Eu sei porque foi um dia antes do meu
trigésimo sétimo aniversário, e eu estava desempacotando uma caixa de cerveja para
os amigos que eu havia convidado. No começo eu presumi que o homem lá em cima
estava apenas pregando algo na parede, mas depois de dez minutos ainda não havia
parado. Em vez disso, parecia apenas se mover. Embora no início tivesse parecido que
era algo sendo pregado na parede dele, as batidas começaram a se mover para baixo,
até que parecia que ele estava jogando coisas no chão. A certa altura, ele estava
martelando diretamente acima da luz, fazendo-a balançar ligeiramente a cada golpe.
Isso durou quase uma hora, e tudo o que eu podia fazer era tentar ignorar, pois não
havia nada que eu quisesse fazer menos do que subir as escadas e bater na porta dele.
Mesmo assim, quando finalmente acabou, eu estava prestes a fazer exatamente isso.
Mas ele parou, e depois que ficou claro que não começaria de novo tão cedo, tentei tirar
isso da cabeça e voltar aos meus preparativos.

Felizmente, não houve perturbação no andar de cima durante a minha pequena festa na
noite seguinte, apenas a família do outro lado do corredor em algum momento pedindo
que desligasse a música. Na verdade, não ouvi nada dele por mais duas semanas,
quando as batidas começaram novamente. De novo, foi quase uma hora martelando,
primeiro nas paredes, depois descendo até o chão, antes de parar completamente. Não
fiquei feliz com isso como você pode imaginar, mas ainda estava relutante em enfrentar
essa pessoa sem nome que vivia acima de mim, então deixei passar. Daquele ponto em
diante, acontecia a cada duas semanas, as marteladas, por mais ou menos uma hora.
Tentei encontrar alguém para fazer uma reclamação, mas parecia que quem quer que
morasse ali era o dono do apartamento, então não havia nenhum proprietário ou
associação de moradias a quem eu pudesse denunciá-lo.

A gota d'água veio cerca de seis meses depois; na verdade, foi uma coisa muito
simples. Recebi um pacote entregue incorretamente no meu apartamento. Estava
endereçado ao Sr. Toby Carlisle, e o número do apartamento não era meu, mas do meu
vizinho de cima. O envelope era grosso e macio, devia estar quase todo cheio de
plástico bolha ou outro material de embalagem. Não era muito, mas me deu outro
motivo para subir e, ao entregá-lo, eu poderia pedir educadamente que ele parasse de
martelar quinzenalmente.

Foi mais difícil do que eu pensei subir aquelas escadas, e eu fiquei surpreso ao
descobrir que minhas pernas tremiam levemente quando cheguei ao topo. Senti outro
sopro daquele cheiro úmido e podre quando me aproximei. O tapete em frente à porta
estava ligeiramente manchado de uma cor mais escura do que deveria ser, como se
algo tivesse vazado por baixo dele. A madeira estava velha e gasta em comparação
com as outras do edifício, que pareciam ter sido substituídas há relativamente pouco
tempo. Não havia nenhum número nele, ou qualquer indicação de que era, de fato,
Toby Carlisle quem morava lá. Bati, tentando dar à ação uma confiança que eu
francamente não sentia.

Não houve resposta, então bati de novo, mais alto dessa vez, e ouvi algum movimento
lá dentro, caminhando gradualmente em direção à porta. Os passos eram abafados
como se ele estivesse caminhando sobre um tapete grosso, até que pararam do outro
lado. Não houve mais som algum.

Esperei um minuto e estava prestes a bater novamente quando a porta se abriu, apenas
uma fresta. Não parecia haver nenhuma luz lá dentro; não estava aberta o suficiente
para que eu pudesse dar uma boa olhada ou ao menos ver o homem, mas foi o
suficiente para que eu ouvisse quando uma voz rachada e áspera falou. Ela disse: “O
que você quer?”

Através daquela fenda, fui atingido por uma onda repentina daquele ar azedo e
cambaleei para trás, lutando contra a vontade de vomitar. No meio disso eu meio que
consegui gaguejar a pergunta, se ele era Toby Carlisle, que eu tinha uma entrega para
ele. Houve silêncio por um segundo, então uma mão disparou e agarrou o pacote que
eu segurava, o puxando das minhas mãos antes que eu tivesse a chance de perceber
direito o que estava acontecendo. A mão era fina e pálida, com unhas compridas, sujas
e amareladas. Nas costas vi uma única marca vermelho-escura, que podia ter sido um
corte ou um machucado, mas sumiu antes que eu tivesse a chance de vê-la com mais
detalhes. A porta bateu na minha cara, e fiquei parado no corredor, nauseado e
confuso. Quando me virei para ir embora, percebi que havia uma mancha de líquido
viscoso na manga da minha jaqueta onde a mão havia me encostado, grosso e
esbranquiçado. Tive que jogar a jaqueta fora no final. Não conseguia me livrar do
cheiro.

E aí foi só isso por um bom tempo. O homem no andar de cima se chamava Toby e era
um recluso nojento que cheirava à azedo e às vezes fazia barulhos de martelo. Estava
muito longe do ideal, mas era algo que eu podia entender e conviver. Dois anos se
passaram assim, e eu quase me esqueci dele, para ser sincero. Ele se tornou apenas
mais uma parte da minha vida e podia viver por ali. Foi só no final de 2007 que tive
motivos para realmente pensar nele de novo. A saúde da minha mãe havia piorado nos
últimos meses e eu havia tomado a decisão de voltar para Sheffield para ficar mais
perto dela. Como mencionei, sou autônomo, então a mudança não foi tão difícil quanto
poderia ter sido, mas me deixou com a necessidade de vender meu apartamento. Não
quero divagar com os detalhes das doenças da minha mãe; no final, ela faleceu alguns
meses depois por complicações após uma operação. Eu ainda acabei me mudando,
apesar de ter sido por um motivo muito diferente.

Foi difícil vender o lugar. Cada vez que alguém aparecia para olhar o lugar, terminava
da mesma forma, e eu começava a temer a pergunta inevitável: que cheiro é esse? Foi
na terceira vez que potenciais compradores — um simpático casal de profissionais que
trabalhava na cidade — apontaram a mancha no teto da sala. Era sutil no início, uma
leve descoloração que eu conseguia ignorar. Eles presumiram que era um vazamento, e
eu também, prometendo que um encanador viria para dar uma olhada, embora eu não
tenha recebido resposta deles de qualquer maneira.

Eu realmente chamei um encanador, mas por algum motivo me disseram que demoraria
uma semana para que ele pudesse vir. Tentei trazer mais algumas pessoas para visita
naquela época, mas a mancha no teto estava ficando mais evidente, e o cheiro
começou a se espalhar por todo o meu apartamento, a ponto de eu pensar em ficar em
um hotel até o encanador chegar. Eu estava começando a duvidar que fosse um cano
de água vazando. À medida que crescia, começou a ficar com uma cor escura
amarelada, e brilhava levemente quando a luz o atingia. Eu sabia que tinha algo a ver
com o apartamento de cima, mas quando subi para perguntar dessa vez, minha batida
não obteve resposta.

Finalmente o encanador chegou. Ele torceu o nariz ao entrar, mas não fez nenhum
comentário sobre o assunto. Presumo que cheiros desagradáveis são apenas parte do
trabalho dele. Apontei para a mancha no teto e ele pareceu momentaneamente confuso,
antes de me dizer o que eu já sabia — que aquilo não parecia um problema com os
canos. Ainda assim, ele disse que precisaria bater através do teto para dar uma olhada,
e que eu precisaria de um empreiteiro para vir e refazer aquele pedaço do teto de
qualquer maneira. Recuei quando ele ergueu a escada e subiu para dar uma olhada.
Ele calçou um par de luvas de borracha e tocou o local com cautela, o testando com os
dedos. Ele desmoronou quase imediatamente, se dobrando e rasgando como papelão
molhado, e o fluido que escorria dele era de uma cor amarela nojenta, com caroços
brancos viscosos brilhando nele. O encanador parecia prestes a vomitar. Eu vomitei.
Ele pediu desculpas e disse que teria que ligar para alguém. Eu não tentei impedi-lo de
partir.

Fiquei furioso, e a raiva que surgiu em mim superou qualquer apreensão que eu
pudesse ter sentido ao me aproximar do apartamento no andar de cima. Avancei e
comecei a bater na porta, gritando e ameaçando chamar a polícia se ele não atendesse.
Na minha terceira batida, a porta se abriu ligeiramente para dentro e percebi que ela
não estava trancada. Existem poucas coisas na minha vida das quais eu me arrependa
tanto quanto de ter entrado.

Empurrei a porta o máximo que pude mas ela não abriu muito, pois parecia haver algum
tipo de resistência atrás dela. O cheiro teria sido insuportável, mas neste ponto eu
estava quase acostumado com ele, e lutei contra a ânsia. Não havia luz vindo de
dentro, e me embolei na parede procurando um interruptor. Eu o encontrei, e um
instante antes de ligá-lo percebi que senti algo macio e úmido na parede ao lado dele.
Infelizmente, antes de ter a chance de entender totalmente o que eu estava sentindo,
acendi a luz e vi o apartamento de Toby Carlisle inteiramente.

A luz que se acendeu estava fraca e tingida de vermelho, mas foi o suficiente para
enxergar. Olhei ao redor e vi que todas as superfície — as paredes, o chão, as mesas
— tudo exceto as janelas com cortinas estava coberto de carne. Bifes, pedaços de
frango, até mesmo uma perna inteira do que eu presumo que havia sido um cordeiro,
estavam pregados em todos os lugares. Havia camadas daquilo, os adicionados mais
recentemente simplesmente grudados em cima dos antigos, e uma podridão branco-
amarelada pútrida podia ser vista onde os pedaços mais antigos já haviam se tornado
líquidos há muito tempo. Moscas zumbiam pesadamente no ar e larvas cobriam o lugar.
Olhando para cima vi que a luz também estava manchada de carne, fazendo com que o
lugar ficasse banhado por aquela luz vermelha opaca.

Deitado ali, no centro do corredor, estava o corpo de Toby Carlisle. Seu capuz foi
puxado para trás e vi que seu rosto estava coberto de lesões e buracos apodrecidos. Eu
não sabia dizer qual deles uma vez abrigara seus olhos.

Fiquei paralisado pelo horror do que estava vendo, e quase automaticamente minha
mão encontrou o caminho para o meu telefone e liguei para a polícia. Foi só então que
meus olhos se voltaram entorpecidos para a cozinha. Lá, no centro do chão, estava
uma pilha de carne e ossos descartados, empilhados quase tão alto quanto uma
pessoa. Parecia menos deteriorado do que o resto, embora aquele fluido amarelo e
imundo escorresse dele e é por isso que estou falando com o seu instituto, entende?
Todo o resto poderia ser atribuído aos problemas de um homem muito, muito doente,
nada de sobrenatural nisso, mas… quando olhei para aquela pilha de carne, ela se
moveu. Eu não sei como… Não sei bem como explicar, a não ser te dizendo que ela
abriu os olhos. Ela abriu todos os olhos.

A próxima coisa de que me lembro é a chegada da polícia e muitas perguntas dos


policiais tentando esconder o fato de que eles tinham acabado de vomitar. A pilha de
carne havia sumido, embora os pedaços que haviam sido pregados nas paredes e no
chão permanecessem. Contei à polícia tudo o que acabei de te contar, embora eles
tenham descartado a última parte imediatamente. Eu acredito que eles tiveram que
chamar uma equipe de materiais perigosos no final.

Não há muito mais para contar, na real. O resto da história é, em grande parte, discutir
com as seguradoras e contar quantos banhos foram necessários para que eu me
sentisse limpo novamente. Eu realmente me mudei no final, e agora moro em uma casa
em Clapham com alguns amigos. Pessoas que são muito limpas e não se importam
com o fato de que eu recentemente me tornei vegetariano.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Bem, certamente estou feliz por ter almoçado antes de gravar esta declaração.
Investigar esse aqui se mostrou um pouco complicado, já que os registros da polícia, do
hospital e até dos bombeiros fornecem relatórios extremamente conflitantes. O que
podemos ter certeza é que na noite de 22 de outubro de 2007, houve um incidente em
um apartamento no primeiro andar na Casa Welbeck que envolveu material biológico
perigoso e levou à recuperação do corpo de um tal Toby Carlisle, o proprietário legal da
propriedade. A causa da morte foi registrada como gangrena.

Entramos em contato com o Sr. Rudenko, que confirmou que, desde a mudança, não
teve mais experiências que acreditava estarem relacionadas a esses eventos e, após
um procedimento de terapia extensiva, estava tentando superá-los. Ele confirmou o
depoimento apresentado, contudo, dizendo que ainda acreditava que era um relato
verdadeiro do que aconteceu com ele. Não tenho certeza se concordo, embora
obviamente haja poucas evidências do contrário.

Uma coisa me intriga, no entanto. Sasha conseguiu obter acesso a alguns dos antigos
registros financeiros de Toby Carlisle e não parecia que ele tinha dinheiro de verdade
entrando, e o que ele tinha era basicamente para pagar o imposto municipal sobre a
propriedade. Não há registros de transações em nenhum supermercado ou empresa de
entrega online, e Tim até perguntou a alguns açougueiros locais, já que o Martin ainda
está doente. No final de tudo isso, ainda não conseguimos responder a uma pergunta:
de onde ele tirava a carne? Não sei por que, mas isso me incomoda.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento do padre Edwin Burroughs, a respeito de sua alegada possessão
demoníaca. Depoimento original prestado em 30 de maio de 2011. Gravação de áudio
por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Obrigado por vir. Sei que isso não deve ter sido fácil de providenciar e agradeço pela
oportunidade de prestar meu depoimento. O Sistema Prisional provavelmente não
facilitou as coisas para vocês. Eles compreensivelmente hesitam em dar a qualquer
pessoa um acesso estendido a mim no caso de eu ficar violento, mas estou muito feliz
que tenham aberto uma exceção para vocês. Pelo menos, supondo que você seja real.
Espero que você seja real. Mas talvez seja essa esperança que esteja sendo usada
contra mim em uma piada cruel. Ou talvez a piada seria eu deixar que essa dúvida me
custasse minha única chance de contar a minha história. De qualquer maneira, eu
escolho prestar meu depoimento e, se você não for real, então, com sorte, nenhum
dano será causado.

Chegaremos ao canibalismo, é claro, mas primeiro quero fornecer algum contexto. Não
sei o quanto você trabalha com a Igreja no Instituto de vocês. Pode ser uma surpresa
pra você que um homem do clero como eu, por mais longe da graça que eu possa ter
caído, procuraria a ajuda de uma organização dedicada ao estudo do paranormal. Bem,
para ser honesto, geralmente é mantido em segredo, mas a Igreja Católica não é contra
a crença no sobrenatural fora da doutrina oficial. Demônios, fantasmas, magia negra…
Geralmente depende do indivíduo o quanto ele acredita nessas coisas, e eu acredito
que muito do que você pesquisa é real. Perigoso, mas real. Sempre vi o trabalho do
Diabo como algo muito tangível, e os padres que falam dele como uma metáfora ou
símbolo estão, eu temo, muitas vezes colocando a si mesmos e seus paroquianos em
uma posição de perigo. Desculpe, isso está virando um sermão. Já faz algum tempo
que não tenho a chance de me expressar assim — eu quase não me importo se é sobre
um dos fantasmas dEle.

Então foi natural, eu acho, que tenha sido relativamente cedo em minha vocação de
padre que comecei a treinar para ser exorcista. Não é algo tão especial assim na
verdade, toda diocese deve ter um exorcista treinado disponível, ou na falta de um
bispo que possa fazer isso, mas nove em cada dez vezes os deveres de um exorcista
são recomendar um bom psiquiatra, médico ou clínica de reabilitação química, e os
bispos geralmente não têm tempo para isso. Eu era um exorcista da Diocese de Oxford
quando tudo aconteceu. Eu treinei como um jesuíta, então estava acostumado a me
mudar muito, mas estive em Oxford desde 2005 até minha prisão em 2009. Havia dois
exorcistas na diocese, eu e um velho agostiniano chamado Padre Harrogate. Gostaria
de pedir como um favor que você não procure por ele; ele não desempenha nenhum
papel no que aconteceu comigo e acredito que ficaria chateado com qualquer lembrete
das minhas ações.
Em minha época eu realizei pouco mais de cem exorcismos, com graus variados de
sucesso. Era relativamente raro que houvesse muito mais do que uma bênção ou uma
oração. Ainda assim isso ajudava na maioria dos casos, mas como um dos tipos mais
comuns de possessão não é no estilo de O Exorcista de falar em uma língua demoníaca
e flutuar para fora da cama, mas sim de uma depressão não natural, muitas vezes era
difícil ter certeza. É difícil dizer quantos crentes devotos vieram até nós com uma
depressão muito natural e simplesmente preferiram procurar a Igreja do que terapia ou
remédios. Mesmo esses foram ajudados até certo ponto, creio eu, mesmo que apenas
como um placebo. Em algumas ocasiões, embora eu tenha encontrado coisas que
serviram para firmar minha crença no Diabo e minha fé em meu Lo— meu L—
desculpa, Ele não me deixa dizer as palavras. Ele também não me deixa rezar, mas
espero não ser julgado muito severamente por isso no Juízo Final.

Como eu estava dizendo, houve momentos em que senti coisas me empurrando. Uma
vez fui amaldiçoado em sumério por um jovem que era totalmente analfabeto, e já tive
os nomes dos meus animais de estimação de infância cuspidos em mim por um velho
jamaicano. Admito que houve momentos em que tive muito medo do que eu estava
tentando remover, mas sempre tive fé em Je— Sempre tive fé. Nada disso me preparou
para o que aconteceu na Bullingdon Road, no entanto. Aquilo era algo completamente
diferente.

Eu estava trabalhando na capelania católica em St. Aldate, geralmente tentando ajudar


o bem-estar espiritual dos alunos que vinham até nós, quando o Padre Singh, um dos
outros padres que trabalhavam lá, veio até mim. Ele disse que tinha uma aluna de St.
Hughes perguntando sobre um exorcismo e queria encaminhá-la para mim. Eu disse “é
claro” e ele marcou um encontro para nós. O nome da estudante era Bethany O'Connor,
e muito do que ela me disse estava sob o sigilo da confissão, algo que não vou quebrar
nem agora, então basta dizer que ela acreditava que não estava mais no controle de
sua própria mente.

Mesmo enquanto conversávamos, ela passava muito tempo olhando ao redor ou


olhando nos meus olhos com o que só consigo descrever como suspeita pontual.
Bethany me disse que sua vontade ainda era dela, mas ela não podia  mais confiar em
seus sentidos e se pegou fazendo muitas coisas que ela não entendia.

Eu me lembro de um momento muito claramente — em nosso segundo encontro,


acredito — estávamos passeando pelo jardim botânico, pois ela disse que ele o
acalmava ao falar de seu problema. Ela enfiou a mão na bolsa, tirou o que parecia ser
uma pequena placa de pedra, ardósia, eu acho, e começou a levá-la à boca como se
fosse comê-la. Perguntei o que ela estava fazendo e ela parou, olhou para a pedra que
segurava na mão e a jogou longe antes de começar a chorar. Ela me disse que parecia
que havia algo em sua cabeça, mudando o que ela via, sentia e pensava. Perguntei
quando isso começou e ela me disse que foi depois de se mudar dos dormitórios da
faculdade para uma casa na Bullingdon Road com seus amigos. Sugeri que talvez
tivesse algo a ver com o estresse de entrar no segundo ano, mas ela insistiu que era
algo a ver com a casa. Finalmente, depois de várias discussões, concordei em dar uma
olhada na casa e realizar uma pequena bênção caso houvesse algo de errado com o
lugar, espiritualmente falando.

Era uma manhã fria de dezembro, perto do final da Quaresma de São Miguel, quando
visitei o número 89 da Bullingdon Road. Era uma casa velha, embora não tão velha a
ponto de ser incomum naquela parte de Oxford, e claramente tinha sido uma pequena
casa de família, agora fracionada pela agência de aluguel para abrigar o maior número
possível de alunos. Bethany me disse que havia seis deles morando lá na época. Dei
uma volta na casa em busca de sinais de algo errado, mas não encontrei nada que
parecesse fora do comum. Bethany ficava me perguntando se eu “sentia algum mal” na
casa, e tentei explicar a ela que os padres, infelizmente, não têm o poder de
simplesmente sentir a presença do mal. Eu não percebi como aquilo era lamentável,
pelo menos não até chegarmos no quarto dela. Ficava no primeiro andar, nos fundos da
casa, e era um quarto comprido e estreito, sem dúvida o maior. Ele era adornado com
decoração típica de estudantes, com pôsteres de filmes e estantes de livros, mas minha
atenção foi imediatamente atraída por uma grande parte da parede onde o papel de
parede tinha sido rudemente cortado para revelar a alvenaria nua embaixo. Escrito ali,
em tinta azul desbotada, havia uma única palavra: Mentis.

Eu já estava fora do seminário há alguns anos, e nunca tinha sido muito chegado à
missa em latim, mas ainda conhecia a palavra para ‘mente’. Minha suposição imediata
foi que Bethany a havia pintado em algum tipo de paranoia, mas olhando mais de perto
vi que a tinta era muito velha para ter sido feita depois de ela ter se mudado. Parecia
mais como se tivesse sido pintada na parede e depois coberta com camadas de papel
de parede ao longo dos anos, até que finalmente foi desenterrada ao serem rasgadas.
O que mais me preocupou foi que ao observar Bethany andar ao redor do quarto
seguindo meu olhar com certa confusão, ficou claro que ela não parecia ser capaz de
enxergar. Quando eu perguntei o que a palavra na parede significava para ela, ela
olhou para mim como se eu estivesse falando besteira.

Não parecia que havia muito mais a ganhar ali naquele momento, então realizei uma
breve bênção sobre o lugar, tirei algumas fotos e disse a Bethany que eu teria que
voltar mais tarde, depois de pesquisar algumas coisas. Ela parecia desapontada por eu
não fazer nada mais imediato, mas não tentou discutir. E assim deixei o que viria a ser
minha primeira visita à casa em Bullingdon Road, ligando para o Padre Singh para
marcar um encontro no dia seguinte, onde poderíamos discutir se deveríamos tentar um
exorcismo completo.

Foi nessa reunião que recebi o telefonema do hospital. Bethany foi internada com
graves lacerações faciais e estava pedindo para me ver imediatamente. Fui até o John
Radcliffe assim que pude e fiquei surpreso ao ver dois policiais parados perto de sua
cama. Fui recebido por Anne Willett, a enfermeira que Bethany pediu para me chamar.
Eu já conhecia um pouco Annie pois ela frequentava a igreja onde eu ministrava e eu a
reconheci da congregação. Ela me explicou que Bethany aparentemente tentou atacar
uma de suas colegas de casa com uma faca de cozinha e, na luta que se seguiu,
acabou caindo de cabeça em um espelho de corpo inteiro, cortando-se gravemente.

Fiquei, para dizer o mínimo, um tanto surpreso. Isso era muito mais intenso do que
Bethany havia descrito antes, e eu estava começando a temer que, se eu não
conseguisse fazer algo, a pobre garota provavelmente acabaria trancada em algum
lugar. Annie estava convencida de que um exorcismo era a única maneira e, então,
finalmente, concordei em fazê-lo. Eu já havia obtido a permissão do bispo, mas isso foi
antes da hospitalização de Bethany, e eu teria preferido discutir o assunto com ele.
Ainda assim, estava claro que ela estava piorando e decidi arriscar e tentar mesmo
assim. Foi um risco estúpido de correr. Eu fui arrogante e presunçoso, cheio de orgulho
espiritual e uma ânsia de testar minha fé contra o que quer que estivesse dentro da
alma de Bethany, nem mesmo considerando que poderia estar me arriscando. Mesmo
assim, paguei caro pela minha arrogância.

Esperamos até que a polícia tivesse ouvido seus depoimentos e ido embora, então eu
me preparei e comecei o exorcismo. Foi… incomum. Não houve resistência da Bethany,
praticamente nenhuma reação, e em muitas partes da cerimônia onde na minha
experiência geralmente havia uma resposta ou do demônio ou pelo menos da vítima,
houve apenas… silêncio, enquanto ela olhava para mim com um olhar que quase
parecia pena. Annie apenas ficou parada no canto, assistindo e claramente ansiosa
para ajudar, apesar do medo que vi em seus olhos. Por fim, Bethany me olhou nos
olhos e balançou a cabeça lentamente. “Eu sinto muito”, ela disse, “Ele quer a sua fé”.
De repente ela começou a ter convulsões, se debatendo obviamente em dor. Tentei
continuar o ritual, mas os médicos me empurraram, tentando desesperadamente ajudar
Bethany enquanto o sangue começava a escorrer de sua boca onde ela havia mordido
a língua. No final, eles não puderam salvá-la. Hemorragia cerebral, disseram,
provavelmente por causa do golpe na cabeça de quando ela bateu no espelho e eles
simplesmente não tinham notado.

Me pediram para sair em termos inequívocos, e os médicos deixaram bem claro que
posso não ter sido a pessoa que bateu na cabeça dela, mas eles me tinham como o
responsável por sua morte. Também fui severamente reprimido pelo meu bispo, que me
disse para recuar e deixar os exorcismos para o Padre Harrogate por algum tempo.
Annie quase foi suspensa por causa do ocorrido, mas no final foi poupada de ações
disciplinares pois estava simplesmente transmitindo os desejos da paciente.

E por alguns anos foi isso. Senti muita culpa pelo meu envolvimento com a morte de
Bethany e comecei a beber mais do que bebia antes. Acho que nunca corri o risco de
me tornar um alcoólatra, já que a maioria dos padres com quem trabalhei haviam
trabalhado com usuários de drogas — sem mencionar o fato de que os padres com
certeza não são imunes ao alcoolismo — e teriam pegado sinais de aviso. Mas eles
expressaram preocupação com o desaparecimento ocasional de garrafas de vinho
sacramental. Na época eu tinha certeza de que não era eu. Eu preferia uísque, e o
vinho Moscatel que eles compravam nunca fez muito o meu tipo, mas olhando agora,
não consigo ter certeza do que eu estava bebendo. Eu sei que é um grande salto entre
roubar vinho sagrado involuntariamente para os meus crimes posteriores, mas estou
tentando o meu melhor para encaixar isso em uma narrativa relativamente coerente.

Além disso, os anos se passaram sem intercorrências e eu estava começando a sentir


que deixaria todo o ocorrido para trás. Até eu receber um telefonema de Annie. Ela
disse que um cavalheiro havia dado entrada no Hospital John Radcliffe depois de ter
tido algum tipo de susto em uma casa na Hill Top Road. Expliquei a ela que não estava
fazendo exorcismos no momento e disse que ela deveria falar com o Padre Harrogate.
Ela me garantiu que não seria necessário um exorcismo completo e que se eu
precisasse poderíamos trazê-lo, mas ela não conhecia e nem confiava no Padre
Harrogate, apenas queria minha opinião. Finalmente, depois de muito importunar,
concordei em visitar a casa.

Já era tarde quando eu cheguei lá e estava começando a ficar muito frio. Todo o caso
estava começando a trazer de volta algumas lembranças nada agradáveis da minha
chegada a Bullingdon Road todos aqueles anos atrás. Eu também fiquei um pouco
irritado com Annie por não ter mencionado que a casa ainda estava em construção, não
apenas tornando improvável que ela fosse o refúgio de demônios ou espíritos, mas
também significando que o casaco que eu havia trazido seria um tanto inadequado
contra o frio em uma casa sem janelas. Bati na porta e um dos construtores abriu. Temo
que tenha esquecido o nome dele, algo polonês, eu acho, ou talvez tcheco? Ele
pareceu confuso a princípio sobre o porquê de eu estar lá, mas eu expliquei e descobri
que era ele quem havia sido tratado por Annie no hospital. Ela não havia mencionado a
possível esquizofrenia do construtor para mim, mas comecei a temer que isso pudesse
ser uma perda de tempo. Ainda assim, dei uma olhada e fiz perguntas ao construtor
sobre o lugar. Ele certamente tinha uma história interessante, mas eu não tinha certeza
do quanto eu acreditava nela.

Por fim, decidi que já tinha visto o suficiente e que não parecia haver nenhuma
presença maligna aqui. O construtor estava olhando para mim de uma maneira que me
deixava hesitante em dizer isso a ele, então decidi que pelo menos faria uma oração
rápida ou abençoaria o local. Pedi a ele para esperar do lado de fora, no entanto. Algo
no jeito dele era um pouco perturbador e eu me senti desconfortável com ele me
olhando como um falcão, como se eu estivesse prestes a desaparecer a qualquer
momento.

Ele foi para o jardim dos fundos e eu estava sozinho na casa. Fui para o corredor e
comecei a rezar, pedindo por proteção e borrifando água benta de um frasco que
carrego comigo nessas situações. Enquanto falava as palavras, senti algo… alarmante.
Eu estava começando a ficar muito quente, como se a sala estivesse esquentando
muito rapidamente. Procurei pela fonte do calor, mas os radiadores ainda não haviam
sido instalados e não pude ver mais nada que pudesse estar aquecendo o ambiente.
Mas continuou, e logo eu estava suando pela camisa. Eu comecei a tossir e podia sentir
o cheiro de fumaça, embora não pudesse ver de onde vinha e nem fogo, aliás.

Eu caí em um joelho e sufoquei um grito quando senti minha pele começar a estalar e
queimar. Comecei a orar novamente por proteção, dessa vez não para o lugar, mas
para mim. Ao fazer isso, senti… algo me responder. E, no entanto, não consigo
enfatizar o suficiente: o que respondeu não foi D— Deus. Não era Ele. Outra coisa
atendeu ao meu pedido de proteção. Eu senti meus lábios se moverem. Eles não
fizeram nenhum som que eu pudesse ouvir, mas eu os senti formar cada sílaba. “Eu
não sou para você. Eu estou marcado.”

O calor desacelerou em seu aumento, mas não parou. Minha boca continuou a falar por
mim, quando ouvi o som de um motor de carro lá fora e um grande estrondo.
Instantaneamente a sensação desapareceu como se nunca tivesse existido, e olhando
para fora vi que o construtor havia conseguido arrancar uma árvore do jardim dos
fundos. Fiquei sentado ali por um tempo recuperando o fôlego e, quando ele voltou para
dentro, eu disse a ele que havia terminado as orações e pedi licença rapidamente. Foi a
primeira vez que experimentei—

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Infelizmente, esse depoimento está incompleto e para nesse ponto. Não parece ser o
final real do documento, então espero que o resto esteja simplesmente arquivado
incorretamente em algum outro lugar dos arquivos. Se for esse o caso, vou registrar e
adicionar a outra parte quando ela for encontrada, seja por mim ou, dada a dimensão da
má gestão do Arquivo, pelo meu sucessor quando eu morrer de velhice.

Com isso em mente, todas as investigações sobre esse depoimento, exceto as mais
preliminares, estão sendo colocadas em espera até que o resto seja encontrado. A
maioria dos detalhes parecem estar corretos e correspondem ao depoimento prestado
pelo Sr. Ivo Lensik em 2007. Encontramos o registro de prisão do Padre Burroughs, no
entanto, e estou muito curioso para ver como os eventos narrados aqui podem ter
levado ao incidente em 2009, em que ele aparentemente assassinou dois estudantes
universitários do primeiro ano após a missa dominical, e depois descamou e comeu a
maior parte da pele deles.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Continuação do depoimento do Padre Edwin Burroughs, a respeito de sua alegada
possessão demoníaca. Depoimento original prestado em 30 de maio de 2011. Gravação
de áudio por Jonathan Sims, Arquivista Chefe do Instituto Magnus, Londres.

O depoimento continua.
ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Foi a primeira vez que experimentei algo assim. A essa altura eu estava começando a
suspeitar que talvez eu estivesse tendo algum tipo de alucinação, mas nunca antes
havia sentido uma… uma presença dentro de mim, dentro do meu ser. Foi uma
sensação tão absolutamente horrível que é difícil colocar em palavras. Como um
reflexo, seus músculos se movem sem nenhuma instrução da sua mente, mas em vez
de uma contração rápida da perna, é um movimento lento da sua mandíbula, seus
lábios, formando palavras na sua boca. Coisas piores estavam por vir, é claro, mas
acho que nenhuma delas eram tão profundamente perturbadoras quanto aquele
sentimento.

Eu só consegui chegar a algumas ruas de distância da Hill Top Road antes de não ser
mais capaz de manter meu equilíbrio e cair no chão, vomitando violentamente. Eu não
podia negar que havia algo dentro de mim, e eu acreditava que, o quer que fosse
aquilo, tinha entrado em mim através de Bethany O'Connor. Tentei orar, tentei lançar
minha mente para D— não consegui. Enquanto tentava, minha garganta fechava e eu
lutava para respirar. Me deitei na ponta da calçada e chorei. Enxugando os olhos,
peguei minha Bíblia e procurei desesperadamente dentro dela em busca de consolo,
mas quando a abri, embora a página estivesse no Evangelho de Lucas, as palavras
eram de Gênesis: “Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua face me
esconderei, e serei fugitivo e vagabundo na terra, e todo aquele que me encontrar, me
matará.”

Por volta dessa passagem, a escrita se transformou e mudou diante dos meus olhos, e
onde quer que houvesse palavras que pudessem me confortar, eu as encontrava
obscurecidas por manchas escuras. A bile começou a subir pela minha garganta
novamente, e eu queria desesperadamente arremessar o livro para longe de mim. Eu o
segurei, no entanto, por apenas um momento antes de colocar o pequeno volume mais
uma vez na minha jaqueta. Foi preciso mais força de vontade do que eu poderia
acreditar, mas eu fiquei com ela. Me levantei trêmulo e cambaleei de volta ao
presbitério.

Dormi demais e perdi a missa matinal, dizendo que não estava me sentindo bem. Claro
que não era mentira; eu só fiquei lá deitado por horas. Parecia haver segurança na
quietude, como se a inércia não pudesse fazer mal algum. Foi a primeira boa decisão
que eu tomei, e não tem um dia que passe que eu não me xingue por ter levantado
daquela cama. Ninguém me incomodou — acho que espalharam o boato de que eu
estava passando por um momento difícil e eles provavelmente estavam tentando decidir
quem seria o melhor para falar comigo, ou mesmo se deveriam pedir ao bispo para
intervir.

Decidi que precisava conversar com o Padre Singh. Eu não achava que ele seria capaz
de me ajudar, mas ele pelo menos estava familiarizado com o caso de Bethany
O'Connor. Talvez ele pudesse ter alguma ideia do que estava acontecendo. Tentei
encontrá-lo rapidamente — os rostos em cada crucifixo e pintura pelas quais eu
passava pareciam se contorcer e zombar de mim enquanto eu caminhava e minha
cabeça latejava. O sangue pintado brilhava como se ainda estivesse molhado. Fico feliz
por não ter encontrado ninguém, pois eu estava cambaleando tanto que provavelmente
pensariam que eu estava bêbado.

Finalmente encontrei o Padre Singh na pequena capela. Ele pareceu surpreso em me


ver e quando me aproximei, seu rosto caiu e ele recuou levemente. Não consigo
imaginar o quão mal eu devesse estar para receber aquela reação dele, mas me sentei
ao seu lado mesmo assim. Comecei a falar, a contar a ele tudo o que havia acontecido.
Ele permaneceu em silêncio enquanto eu falava, até que comecei a falar sobre o
exorcismo que eu havia tentado fazer em Bethany. Ele ergueu a mão e perguntou se eu
preferia falar sobre isso no confessionário. Fiquei momentaneamente confuso e
perguntei que pecado ele achava que eu havia cometido. Ele olhou para mim e eu juro
que havia quase um sorriso em seu rosto quando ele falou. “Orgulho espiritual”, disse
ele, “que levou a uma queda e tanto”.

Embora estivesse inquieto com o comportamento dele, eu não podia negar que ele
estava certo. Eu concordei e nós saímos da capela. Logo eu estava contando o meu
relato como uma verdadeira confissão e não pude segurar o choro ao descrever o que
aconteceu quando tentei prestar uma benção àquela casa em Hill Top Road. Terminei
meu relato e esperei que o Padre Singh falasse sobre minha penitência ou absolvição.
Em vez disso, ele parou por um momento e então disse: “Não, seus pecados são mais
profundos do que isso.” E ele começou a listá-los.

Todas as transgressões que cometi desde os seis anos de idade. A criança deficiente
que eu havia maltratado na escola primária, a vez em que roubei dinheiro da bolsa da
minha mãe para comprar cigarros, as indiscrições que eu havia tido no seminário.
Todos eles. Eu já havia confessado cada um deles antes e sido absolvido, mas não
para o Padre Singh, e ouvi-los jogados de volta na minha cara com uma lista tão brutal
de maldade me abalou profundamente. Eu notei outra coisa enquanto ele falava: o
Padre Singh só emigrou de Jaipur cerca de uma década antes de eu conhecê-lo e ele
sempre teve um sotaque bem forte, mas a voz que agora falava ao ler minha lista de
transgressões não tinha nenhum vestígio daquilo. Era um sotaque britânico curto e
nítido, embora o tom parecesse corresponder ao do meu amigo.

Eu me levantei em um salto e saí correndo da sala em direção à porta da frente. Eu


precisava sair dali, ir a algum lugar onde eu pudesse respirar. No corredor, passei por
outros dois padres, que pareciam mais preocupados do que nunca. Um deles era o
Padre Singh.

Estava escuro quando eu saí do presbitério. Eu não tinha ideia de para onde eu estava
indo ou por quê; eu só precisava desesperadamente estar em outro lugar. As ruas de
Oxford deveriam estar cheias de estudantes bêbados àquela hora de um domingo à
noite — pelo menos eu pensava que era domingo — mas elas estavam quase desertas.
Ocasionalmente, eu via figuras paradas de pé ou andando no final das ruas estreitas,
mas elas eram fantasmagóricas, recortadas contra a pouca luz que havia, e sempre
sumiam quando eu me aproximava. Tentei orar mais uma vez, mas as palavras morriam
na minha língua. Eu nunca senti desespero na proporção imensa que eu senti naquele
momento.

As ruas de Oxford são sinuosas e combinam com a idade do lugar, mas eu já morava lá
há muito tempo e as conhecia bem. Naquela noite, porém, era como se eu nunca
tivesse caminhado por elas antes. Vi ruas que eu já havia percorrido centenas de vezes,
mas elas pareciam diferentes, meus olhos se concentrando em detalhes que eu nunca
havia notado antes, e a cada curva eu percebia que não sabia para onde estava indo ou
para que lugar ela me levaria. O mundo que eu conhecia havia se tornado estranho
para mim e eu simplesmente não sabia o que fazer.

Finalmente, me encontrei em frente ao Oratório na Woodstock Road. A grande janela


redonda da igreja mudou enquanto eu a observava, como se fosse um olho enorme que
se voltava para olhar para mim. A porta estava aberta e, de dentro, uma luz quente se
derramava para fora. Mesmo nas profundezas da minha — suponho que se possa
chamar de paranoia — havia algo reconfortante naquela luz. Um homem apareceu na
porta. Ele era alto e pálido, e estava vestido como um coroinha.

Eu me aproximei dele. Minha visão estava turva, embora eu não saiba dizer se era pelo
meu estado de espírito naquela hora ou simplesmente porque eu estava chorando. Eu
deveria saber que havia algo de errado. Eu sabia que algo estava errado, mas não
importava. Eu não tinha mais nenhuma força dentro de mim, então quando ele me disse
que era hora da missa, eu simplesmente assenti e o segui.

Ele me conduziu pela igreja. Estava claro, muito claro. Velas cobriam todas as
superfícies, cada uma brilhando com tanta força que eu mal conseguia olhar
diretamente para elas. A estrutura era como eu me lembrava, mas os bancos estavam
todos vazios e eu não via nenhuma das estátuas ou cruzes que eu esperava. O homem
me conduziu sem resistência para a sacristia, onde encontrei minha batina e estola
dispostas na minha frente. A estola não era verde como eu esperava para uma missa
normal de domingo, nem era violeta ou vermelha ou qualquer outra cor litúrgica. Em vez
disso, era de um amarelo pálido e desfalecido. Senti os olhos do coroinha nas minhas
costas e me vesti rapidamente.

Naquele momento o sino tocou para marcar o início da missa. Foi um tom único e
dissonante que cortou o ar e fez eu quase me dobrar de dor, tão forte que perfurou meu
crânio que latejava. Eu me recuperei segurando o braço magro e ossudo do coroinha e
saí para a igreja. Os bancos estavam cheios agora. Fileiras e mais fileiras de pessoas,
muito mais do que algum dia já haviam comparecido a uma missa que eu havia rezado.
Cada uma estava vestida de preto da cabeça aos pés, e suas peles eram de um
amarelo febril e ictérico. Os olhos de cada homem, mulher e criança olhavam fixamente
para a frente, e suas bocas estavam abertas, largas e sorridentes, como se suas
mandíbulas estivessem travadas em um ricto silencioso.

Eu poderia ter ido embora. Eu sei disso agora. Sei que minha vontade e minhas ações
eram realmente minhas, e mesmo naquela hora eu sabia que o que eu estava vendo
era muito errado. Tão errado, mas… na hora não parecia que eu poderia ter feito
qualquer outra escolha. Mesmo naquele lugar estranho, sendo encarado por
paroquianos diabólicos que eu devia saber que não estavam realmente ali. D-…
Perdoe-me, mesmo daquela forma, pensei que encontraria algum conforto na liturgia. O
cheiro estranho de incenso girou sobre mim vindo do braseiro do coroinha e minha
cabeça rodou com um perfume que parecia tão familiar, mas ainda tão desconhecido.

Finalmente, fiquei diante do altar e comecei a missa. Fiquei surpreso quando falei e os
nomes santos escaparam da minha boca sem hesitação, mas a congregação a que me
dirigi estava quieta, e cada pausa para resposta era recebida apenas com aquele
silêncio opressivo de boca larga, um vazio chocante que apertava o medo que eu sentia
agarrando em minha alma. Quando a Liturgia da Palavra começou, observei com pavor
silencioso enquanto o coroinha subia ao púlpito para fazer a primeira leitura. Ele ficou
lá, olhos escuros escaneando a bíblia aberta, antes de levantar a cabeça e olhar para
cima como se fosse falar, mas tudo o que saiu de sua garganta foi o único soar daquele
sino e minha cabeça latejou de dor. A mesma coisa aconteceu para a segunda leitura,
aquele soar longo e prolongado.

Então veio a leitura do Evangelho. Eu mesmo fui ao púlpito e vi que a passagem


indicada era Marcos, capítulo 9, versículos 14-19. Comecei a tentar ler, mas minha voz
havia sumido e da minha própria boca veio o som daquele sino. Eu caí no chão, mas
ninguém se moveu para me ajudar.

Eventualmente eu consegui ficar de pé novamente e um pânico surdo começou a


crescer dentro de mim quando percebi que em seguida viria a Liturgia Eucarística. O
pensamento daquelas pessoas, daquelas coisas, tomando o corpo de J— tomando o
sacramento da Sagrada Comunhão parecia a mais terrível das blasfêmias. Eu não
parei, no entanto. Eu não sabia mais o que fazer, e minha mente estava rodando com o
som do sino e o horror coletivo de todas as coisas que eu tinha visto e sentido.

O coroinha me trouxe as hóstias da comunhão e o vinho, e eu os peguei. Minhas mãos


pareciam estranhas e úmidas quando os segurei, mas os levei ao altar e comecei a
falar. Desta vez, minhas palavras saíram nítidas e claras, e conforme eu as dizia,
percebi que cada vez menos paroquianos pareciam estar nos bancos. A esperança
começou a crescer dentro de mim enquanto parecia que as palavras funcionavam para
banir aqueles observadores ictéricos e eu continuei. Finalmente, os bancos estavam
vazios e meu coração disparou quando me virei para o tabernáculo para recolher o
resto da Hóstia.

Era estranho, a cortina cheia de tecido que cobria aquela caixa de metal ornamentada
parecia emperrada, então eu puxei e puxei e eventualmente ela se soltou. Abri a porta e
recuperei a Hóstia, devolvendo-a ao altar. Então eu… Eu a levei à boca e comi. Não
tinha o gosto que eu esperava.

Tenho certeza de que você adivinhou a realidade do que eu estava comendo. Eu nem
sei onde eu estava, algum porão sujo pelo que parecia quando a luz caiu dos meus
olhos e eu voltei à realidade. Pelo menos eu acredito que isso seja a realidade. Eu
sonho, às vezes, que talvez isso seja a ilusão — minha apreensão e prisão uma mera
alucinação. Que eu não sou um canibal assassino.

Não importa. Naquele momento, vendo aqueles cadáveres amarrados diante de mim,
tomei a decisão de nunca mais agir. Não cometerei o pecado de tirar a minha vida, mas
fiquei sentado lá até a polícia chegar. Eu me declarei culpado de todas as acusações
que eles apresentaram, e agora aqui estou eu, duvidando de tudo que eu vejo e ouço.
Eu me preocupo com o estado da minha alma, é claro, mas há pouco que possa ser
feito. Meus antigos colegas me visitaram em algum momento, e até o bispo uma vez,
mas isso não ajuda. O que quer que eles estejam realmente dizendo, tudo que posso
ouvir é o som do sino.

Obrigado pelo seu tempo.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

No fim, a segunda parte desse depoimento havia sido simplesmente arquivada


incorretamente na próxima pasta, o que foi útil, embora implique a questão: quem o leu
por último? Martin ainda está ausente, mas Tim e Sasha juram que não haviam visto
isso antes. Minha predecessora o leu em algum momento? Isso parece improvável,
dado o estado do lugar; acho difícil de acreditar na ideia de que Gertrude Robinson
realmente leu qualquer um desses arquivos. Ainda assim, essa dificilmente é a nossa
maior preocupação.

É difícil saber por onde começar com um depoimento como esse. Se a pessoa que está
dando seu testemunho é incapaz de distinguir o real do irreal, isso geralmente não é um
bom presságio para quem está tentando encontrar evidências. Vamos começar com
Bethany O'Connor. Pelo que Sasha pôde encontrar nos registros da Universidade de
Saint Hugh, ela foi de fato uma aluna de lá, estudando arqueologia, matriculada em
2008. Tudo o que o Padre Burroughs diz sobre a fé dela, sua hospitalização e sua
morte parece coincidir com os registros oficiais. No entanto, os registros da faculdade
aparentemente a listam como um dos alunos morando nos dormitórios durante seu
segundo ano, em vez de em uma casa fora do campus — e foi um carregador que ela
atacou com uma faca de cozinha, em vez de um colega de quarto. Na verdade, de
acordo com o agente de locação, não havia ninguém morando no número 89 da
Bullingdon Road naquele ano, então o que quer que Bethany estivesse fazendo naquela
casa, não estava morando lá legalmente.

Os antigos colegas do Padre Burroughs da Igreja certamente se lembram de sua


decadência após o exorcismo fracassado. Aparentemente, eles estavam conversando
com o bispo para conseguir ajuda quando ocorreu o ‘incidente culminante’ que levou ao
seu encarceramento. Antes de conhecer Bethany O'Connor, nenhum deles tinha nada
além de elogios para o homem.

Quanto ao incidente em si, o Padre Burroughs foi encontrado em uma das salas dos
fundos da Bullingdon Road 89. Ele estava usando um avental de açougueiro e se
sentou em frente a dois alunos, Christopher Bilham e James Mann. Ambos estavam
amarrados a cadeiras e quase mortos. A causa da morte foi listada como perda de
sangue de múltiplas lacerações em todas as pernas e torso, bem como a remoção de
ambos os rostos com uma lâmina afiada, possivelmente um bisturi. O rosto de James
Mann foi encontrado parcialmente comido pelo Padre Burroughs. Ele se declarou
culpado de todas as acusações apresentadas a ele e atualmente está cumprindo duas
sentenças de prisão perpétua na Prisão de Wakefield, embora o HMPS tenha recusado
nosso pedido de uma entrevista de acompanhamento.

O que me interessa é o paralelismo da alucinação clímax do Padre Burroughs com a


realidade, e o fato de que em nenhum momento ele executou qualquer ação que
pudesse ser análoga ao amarramento e ao assassinato real dos alunos. Além disso, me
intriga o fato de que o coroinha que ele descreveu parece deslocado com a maioria dos
seus outros delírios, pois ele parecia ter uma ação ativa, o que não é característico
dessas visões que o padre descreve. Por fim, há o pequeno detalhe mencionado no
relatório policial de que nenhuma das ferramentas utilizadas para matar ou mutilar as
vítimas foi encontrada no local. Tudo isso me leva a crer que pode ter havido uma
segunda pessoa ali naquela noite — apesar de que, pelas conversas com a polícia, fico
com a impressão de que há pouco apetite para reabrir o caso, considerando o sucesso
do processo inicial.

Há um outro detalhe que Tim descobriu que me chama a atenção. É um nome que
reconheço, embora não tenha ideia do que possa significar. O Oratório obviamente não
era a cena real dos crimes do Padre Burroughs, mas houve uma coisa estranha que
aconteceu alguns dias antes. Eles receberam a entrega de uma estola amarelo-clara,
que aparentemente desapareceu menos de um dia depois de terem recebido ela. Isso
seria incomum, mas não necessariamente digno de nota, se não fosse pelo fato de que
um dos diáconos se lembra que o pacote foi entregue a eles por uma empresa chamada
Entregas de Breekon e Hope.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Moira Kelly, a respeito do desaparecimento de seu filho Robert.
Depoimento original prestado em 20 de outubro de 2002. Gravação de áudio por
Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Me perdoe se eu demorar um pouco para colocar tudo isso no papel. Não escrevo muito
rápido e o que eu vi é… É muito fácil dizer “escreva o que você viu”, mas… e se você
não tiver as palavras? O que eu vi não faz sentido nenhum e minha cabeça dói pra
caramba quando eu tento lembrar bem o suficiente para poder descrever.

Eu estou louca? O que aconteceu é uma loucura. Não pode ter acontecido, mas
aconteceu. Levou o meu Robert e… agora eu não consigo nem pensar em como
explicar de uma forma que dê para entender. Talvez em algum lugar da sua biblioteca
estejam as palavras que expliquem o que aconteceu, o que eu vi, mas eu não li os seus
livros, e saber não o traria de volta. Acho que vou ter que tentar.

Meu filho, Robert, sempre foi um menino aventureiro. Mesmo quando era criança, ele
fugia e se metia em apuros sempre que tinha a chance. Estávamos morando no interior
naquela época, Althorpe, um pequeno vilarejo em Lincolnshire, e sempre que podia
Robert estava na floresta com seus amigos, subindo em árvores e explorando as
profundezas do lugar. Tinham algumas outras crianças que se juntavam a ele, mas ele
sempre subia mais alto do que eles, sempre ia mais longe. Não consigo nem me
lembrar de todas as vezes em que ele quase se perdeu por lá quando estava
crescendo.

À medida que envelhecia, seus interesses mudaram, mas essa percepção do perigo
nunca o abandonou. Eu tinha que dirigir por meia hora toda quarta-feira porque aquela
era a área de lazer mais próxima com uma parede de escalada, e ele estava obcecado
em chegar ao topo. Depois que foi para a universidade, ele voltava para casa todos os
feriados com algum esporte perigoso novo que havia praticado: wakeboard, ciclismo de
montanha. Ele quase perdeu o funeral do pai porque estava em uma viagem de
mergulho no Chipre e só conseguiu reservar um voo de última hora para casa. Não foi
culpa dele, é claro, a morte de Stephen foi um choque para todos nós; o que eu quero
dizer é que… Não fiquei nem um pouco surpresa quando ele me disse há alguns anos
que estava muito envolvido com paraquedismo.

Tinha começado em um negócio de caridade. Em seu último ano em Yarmouth, ele


decidiu pular de paraquedas por uma instituição de caridade para a qual trabalhava
como voluntário. Fui junto para apoiá-lo quando ele pulou, e quando ele pousou eu
pude ver em seus olhos, mesmo antes de ele tirar o paraquedas, que ele estava
apaixonado. Desde então, era raro que ele passasse um mês sem se jogar de um
avião, ao ponto de eu me perguntar de onde ele estava conseguindo o dinheiro, pois
pelo que ouvi esse não é um hobby barato, e ele certamente não estava recebendo
muito de mim.

Pouco depois de se formar, Robert veio me visitar. Eu não o via tão feliz desde que seu
pai havia falecido, e quando perguntei a ele o motivo, ele disse que tinha conseguido
um emprego em uma empresa que conduzia paraquedismo por todo o país. Eles
chamavam Open Skydiving e, seu rosto estava radiante quando ele disse isso, ele
agora era um instrutor de paraquedismo totalmente qualificado. Fiquei feliz por ele, é
claro, embora todas as vezes que ele descrevia como era saltar parecesse horrível para
mim. Eu sempre deixei claro que ele nunca conseguiria me fazer subir lá, despencar no
céu.

Depois disso, eu não o vi muito. Ele vinha para casa no Natal e no Dia das Mães se eu
tivesse sorte, mas, fora isso, era um telefonema ocasional ou até mesmo um cartão-
postal se ele estivesse dando um mergulho em algum lugar distante. Eu tenho uma
pequena pilha lá em casa, tudo que eu realmente possuo para me lembrar dele. Lembro
que ele me enviou um de Aberystwyth não muito tempo atrás, e ele assinou “com amor
de seu filho em queda livre”. Eu costumava gostar muito disso, mas agora a frase só me
faz estremecer.

Ele estava feliz, no entanto. Ele estava fazendo o que amava. Eu tento me agarrar a
isso. Não tinha como eu saber se algo estava errado. Quer dizer, não tinha nada errado,
tenho certeza disso. Não até aquela última vez.

Ele veio me ver três meses atrás. Fiquei surpresa, já que junho é o auge da temporada
e seu último telefonema havia sido para dizer que ele esperava estar ocupado até o
inverno chegar. Ainda assim, aqui estava ele, parado na soleira da porta e parecendo
estar em um péssimo estado. Ele tinha olheiras profundas sob os olhos e parecia estar
sem tomar banho há algum tempo. Antes que ele dissesse qualquer coisa eu o levei
para dentro, o sentei e comecei a preparar um banho quente. O que quer que tivesse
acontecido, eu disse a ele, poderia esperar até que ele se recompusesse. Acho que eu
tinha razão, pois depois de se limpar e comer um pouco ele parecia muito mais com ele
mesmo do que antes. Ainda assim, ele passou uns bons dez minutos apenas sentado
lá, olhando para o nada.

Perguntei qual era o problema, se ele havia sofrido um acidente ou perdido o emprego
ou algo assim. Quando eu disse isso, ele deu uma risada estranha e disse que havia
perdido o emprego. Tinha se demitido, segundo ele. Eu perguntei o por quê, afinal ele
sempre amou todo esse negócio de paraquedismo, mas quando eu disse a palavra ‘céu’
eu o vi recuar como se eu tivesse lhe dado um tapa. Então eu me calei e pedi a ele que
me contasse o que havia acontecido.

Eles iam saltar perto de Doncaster, disse ele. Algum senhor de 85 anos fazendo um
salto duplo para a caridade em memória de sua esposa. Não foi ele quem realmente
pulou com o senhor, mas era uma coisa significativa o suficiente para que sua colega
pedisse que ele viesse junto para dar suporte. Ele desceria sozinho em um paraquedas
solo. Tudo começou muito bem, o voo foi bom e o senhor, que dizia se chamar Simon,
parecia estar se divertindo muito, fazendo piadas e, francamente, muito mais ansioso
para se jogar de um avião do que qualquer pessoa que Robert já havia conhecido
antes.

Finalmente a subida terminou e a porta foi aberta para a rajada de vento. Harriet
Fairchild, a instrutora, preparou-se para pular, com Simon amarrado ao peito. Foi nesse
momento, disse Robert, que o senhor se virou para ele, gritando alguma coisa. Ele não
ouviu claramente, mas pensou que tinha sido “aproveite o céu azul”. Ele se sentiu tonto
de repente, quase caindo no chão quando Harriet se atirou com o passageiro para fora
do avião. Passou um momento, porém, e ele se empurrou para fora da porta e foi
recebido por aquela sensação familiar de mergulho em seu estômago quando ele
começou a queda livre.

Ele soube que algo estava errado quase imediatamente. Ele estava pulando, disse ele,
de cerca de dez mil pés, então deveria ter caído por quase trinta segundos antes de
abrir seu paraquedas, mas ele estava tendo problemas para fazer a contagem. O céu
azul claro estava tão brilhante que parecia cegá-lo, e os números estavam todos
confusos em sua cabeça. Seu equilíbrio parecia estar completamente alterado e ele
disse que teve que fechar os olhos com força contra a claridade, se concentrando para
manter a contagem. Finalmente ele alcançou o que acreditava ser trinta segundos e foi
puxar a corda, mas ao fazer isso, ele disse, abriu os olhos novamente e congelou. O
chão havia sumido.

Eu perguntei o que ele queria dizer, se ele tinha se virado de costas, talvez. Ele apenas
balançou a cabeça e me disse de novo que o chão havia sumido. Tudo o que havia,
segundo ele, era aquele céu azul enorme e vazio, estendendo-se diante dele, mas,
ainda assim, ele estava caindo nele. Estava claro, ele continuava a falar, tão claro,
embora não houvesse sol naquele céu e nenhuma nuvem para escondê-lo. Apenas o
céu azul e vazio em todas as direções enquanto ele caía por ele. Ele queria puxar a
corda, desenrolar seu paraquedas, mas sua mão não se fechava para segurá-la. Então
ele simplesmente caiu.

Robert estava tremendo muito naquele momento, então peguei um cobertor para ele e
fiz outra xícara de chá. Eu não tinha certeza se acreditava em tudo o que ele estava
dizendo, mas ele certamente passou por algo horrível; eu podia ver isso. Eu perguntei a
ele quanto tempo ele ficou caindo daquele jeito, e ele disse que não sabia. Seu relógio
havia parado, mas pareceram horas. Dias, até. Ele estava com tanta fome, disse ele,
mas não parava de cair. Ele não sabia em que direção; havia apenas aquele céu vazio
ao redor, então era impossível dizer.

Finalmente, ele disse que viu o chão novamente. Não parecia uma mudança ou uma
diferença repentina, ele apenas fechou os olhos como havia feito tantas vezes naquele
lugar, e quando os abriu, lá estava, verde e extenso e correndo em sua direção. Ele
ficou tão aliviado que quase se esqueceu de abrir o paraquedas. Ele abriu, porém, e
pousou com segurança perto da área marcada.

Ele foi recebido por Harriet, que ficou surpresa com o tempo que levou para ele descer.
Ela disse que já haviam se passado quase quinze minutos que ele deveria ter
alcançado o chão, e aquele velho, Simon, e seus cuidadores já tinham ido embora. Era
óbvio que algo estava errado, e Harriet perguntou a Robert se ele estava bem. Ele
repetiu, “quinze minutos, só quinze”, e ela disse “sim, o que aconteceu?”. Robert se
demitiu imediatamente, e pouco depois ele veio me ver.

Obviamente eu fiquei meio sem palavras com a história do meu filho. É difícil dizer o
quanto dela eu acreditei ser verdade. Não achei que ele mentiria para mim sobre algo
assim, mas, ao mesmo tempo, o tipo de coisa que ele descreveu, bem… Eu não achei
que soava como algo vindo de uma mente saudável. Digamos que eu estava pensando
o tipo de coisa… que você estará pensando em alguns minutos. O que quero dizer é
que tentei falar com ele sobre seus problemas e sentimentos, mas quanto mais ele
falava sobre isso, mais agitado ele ficava, até que finalmente decidi que não iríamos
chegar a lugar nenhum e arrumei seu antigo quarto para dele. Ele dormiu
profundamente naquela noite, até onde eu me lembro.

Estava um dia lindo na manhã seguinte. O sol entrava pela janela e o ar estava quente
e parado, mas não tão quente como na semana anterior. Quando Robert finalmente
acordou, sugeri que fizéssemos uma caminhada para aproveitar o dia e, com sorte,
afastar todo o medo que ainda estivesse pairando sobre ele. Ele não parecia querer ir, a
princípio. Ficava olhando para o céu sem nuvens, mas prometi a ele um piquenique e
isso pareceu convencê-lo.

Aquela última hora foi uma das mais felizes que eu já passei com o meu filho. Sob a luz
do sol, as olheiras em seus olhos pareciam desaparecer e, depois de alguns minutos,
ele até parou de olhar para o céu o tempo todo. Nós caminhamos juntos, às vezes
conversando, às vezes em silêncio, e tudo parecia estar bem.

Há uma colina perto de onde eu moro. É um declive suave e gramado, mas sobe bem
alto. Dá para ver ela da janela da cozinha da minha casa. Esse é um dos motivos pelos
quais eu estou me mudando. Era aquela colina que estávamos subindo quando
aconteceu. Tínhamos acabado de chegar ao topo quando Robert se virou para mim
com uma expressão repentina de terror absoluto no rosto. Eu perguntei o que tinha de
errado — ele apenas gritou e me empurrou para longe. Caí com força no chão e não
pude fazer nada a não ser assistir meu filho correr morro acima.

E aí… E aí… Essa é a parte que eu não consigo colocar em palavras. Eu vou tentar,
mas o que quer que você pense quando ler isso, não vai ser o que aconteceu; será
apenas o mais próximo que eu posso descrever antes de ganhar uma enxaqueca por
pensar muito sobre isso. O mais próximo que eu posso descrever é o seguinte: o céu o
comeu.

Ele não caiu, nem voou, nem decolou. Não havia nada no céu que tenha o levado. Não
foi uma mão que se esticou e o agarrou, foi o próprio céu, o céu inteiro, tão longe
quanto o horizonte que eu podia ver, que girou e se deslocou como… como areia se
movendo. Ele comeu o Robert. Esse é o único jeito de descrever o que aconteceu. Por
favor, não me faça explicar de novo.
ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Antes de abordar o ponto principal desse depoimento, ou seja, a questão de… se o céu
pode comer pessoas, existem alguns outros fatos que precisam ser abordados. Em
primeiro lugar, a empresa para a qual a Sra. Kelly afirma que Robert trabalhou, a Open
Skydiving, não existe e, pelo que a pesquisa de Sasha pode determinar, nunca existiu.
Ela não aparece em nenhum registro de empresa e não tem inscrição em nenhum dos
órgãos que lidam com o imenso número de licenças que uma empresa de
paraquedismo exigiria. Houve um ou dois artigos de notícias do final dos anos 2000 que
faziam referência a eventos da Open Skydiving, ou às vezes da Escola Open Skydiving,
mas o que quer que eles fossem, não eram um negócio oficialmente licenciado, então
ou eles estavam mentindo para Robert Kelly ou ele estava mentindo para sua mãe.

Não foram dados muitos detalhes sobre o paraquedismo onde Robert Kelly afirma ter
sido transportado para um céu azul sem fim, mas Tim realmente se superou aqui, e
depois de passar quase um dia vasculhando relatórios de acidentes e incidentes na
área de Doncaster em junho de 2002, encontrou um que parece ser relevante. No dia 3
de junho de 2002, Joseph Puce relatou ter ouvido um baque no campo ao lado de sua
casa. Após investigação, ele descobriu que um paraquedas atingiu o solo em alta
velocidade, enterrando-se parcialmente na terra. Não havia qualquer sinal de um corpo,
ou alguém que pudesse estar usando aquilo, nem tinha qualquer logotipo ou etiqueta, e
na entrevista de acompanhamento de Tim, o Sr. Puce negou veementemente que
houvesse aviões ou paraquedismo sendo praticado em qualquer lugar perto de sua
propriedade. O paraquedas não foi aberto.

De acordo com os relatórios da polícia, a Sra. Kelly tentou reportar o desaparecimento


de Robert no dia 7 de junho, mas foi difícil, devido à ausência de qualquer informação
sobre amigos ou moradias. Na verdade, nos quatro anos anteriores, é difícil encontrar
qualquer evidência da existência de Robert Kelly. Pode ser que ele tenha apenas se
mudado muito, mas parece ser mais do que isso. A Sra. Kelly recusou nosso pedido de
uma entrevista de acompanhamento, dizendo que ela não desejava reviver o incidente.

Uma outra coisa me incomoda. Se as lembranças da Sra. Kelly estiverem corretas, a


respeito de como Robert descreveu seu último pulo de paraquedas, Harriet Fairchild, a
instrutora, e um senhor chamado Simon. Pode ser apenas uma coincidência, mas eu
me lembro que o nome 'Simon Fairchild’ era um dos usados por—

[A porta se abre, a cadeira roda]

Meu Deus! Martin?!

[Algo é esmagado]

O que… O que diabos é…? O que são essas coisas?!

[CLICK]

ARQUIVISTA
Martin, você tem certeza disso?

Martin: Eu só quero prestar um depoimento sobre o que aconteceu comigo. Quer dizer,
isso é… é o que a gente faz.
Arquivista: Não, o que fazemos é investigar depoimentos. Geralmente aqueles feitos
por mentirosos e doentes mentais.

Martin: Bem, preciso contar a alguém o que aconteceu, e você pode atestar minha
sanidade mental, não pode?

Arquivista: …Isso não tem nada a ver com a conversa.

Martin: Se você tá tão preocupado com isso, não precisa ser um depoimento  oficial. Eu
só preciso de uma gravação.

Arquivista: Certo. Você tá certo. Eu acho. Depoimento de Martin Blackwood, assistente


de arquivo do Instituto Magnus, Londres, a respeito de…

Martin: Um encontro próximo com algo que eu acredito um dia ter sido Jane… Prentiss.

Arquivista: Gravado diretamente pelo indivíduo em 12 demarço de 2016. Início do


depoimento.

MARTIN (DEPOIMENTO)

Bem, algumas semanas atrás você estava examinando aquele depoimento sobre a
aranha que não ia embora. Carlos… Vittery, acho que era o nome dele? Eu sabia que
havia algo de errado com a coisa toda desde o início. Eu disse que aquilo
provavelmente não era natural, ele morrendo e sendo encontrado coberto por teias, e
eu continuo acreditando nisso, embora não tenha nada a ver com aranhas o que veio
atrás de mim. Quase desejo que tivesse sido. Eu gosto de aranhas. As grandes, pelo
menos. Sabe, aquelas nas quais você consegue ver uns pelinhos; na verdade, eu acho
elas meio fofinhas—

Arquivista: Por favor, foco no depoimento, Martin.

Martin: Certo. Você me pediu para investigar aquele apartamento em que ele morava
na Boothby Road, então é o que eu faço. Pego a Linha Norte até Archway e ando o
resto do caminho até lá. Ainda é muito cedo, e eu encontro o prédio com bastante
facilidade. Ele é exatamente como o Sr. Vittery descreveu em seu depoimento, e há
uma porta grande e grossa na frente, que parece levar ao corredor e então aos
apartamentos. Obviamente está trancada, então tento tocar a campainha, mas ninguém
atende e eu presumo que provavelmente todo mundo está fora, trabalhando. Eu não
queria voltar para você sem ter feito tudo o que eu podia — eu aprendi a lição — então
dou uma olhada ao redor para ver se há outra maneira de entrar e dar uma espiada.
Como esperado, enquanto dou uma volta, vejo uma janela do porão que está
entreaberta. Não é muito, mas acho que posso me espremer por ela se tentar.

Quando chego… mais perto, porém, percebo que há algo no chão ali perto. A luz do sol
reflete sobre o objeto e a princípio penso que deve ser um parafuso ou um pequeno
pedaço de metal que alguém jogou fora. Eu me aproximo e vejo que se parece mais
com algum tipo de verme. Tem mais ou menos uma polegada de comprimento, com um
corpo prata segmentado que fica preto em uma das extremidades, quase como se
tivesse sido queimado. Está muito… parado, então me ajoelho para dar uma olhada e,
conforme me aproximo, ele começa a se contorcer. Sua cabeça escura gira em minha
direção e ele começa a… se contorcer dessa forma sinistra, movendo-se pelo chão bem
rápido e direto para mim. Bem, para ser sincero, eu… Eu surtei um pouco. Eu me
levantei em um salto e simplesmente pisei nele antes de ter a chance de realmente
pensar no que estava fazendo. Eu senti ele espocar embaixo do meu sapato com um
leve som de estalo, como pisar em uma casca de ovo, e uma gosma preta e espessa
começou a escorrer de onde eu pisei.
Bom, obviamente eu estava com muito nojo daquela coisa toda, então eu levo um
momento para raspar o que sobrou do verme e verificar se há mais algum por ali. Não
há nenhum que eu possa ver, então depois de me recompor por alguns segundos, eu
continuo meu caminho para o porão. A janela era pequena. Bem apertada para mim —
digo, eu não sou exatamente o menor cara do mundo, eu sei, e só quando estou lá
dentro eu percebo que o chão é mais baixo do que do lado de fora, então eu meio que
levo um tombo no chão do porão. Felizmente, eu levanto sem me machucar e começo a
dar uma olhada rápida pelo lugar. É bem grande e parece que passa por baixo de
quase todo o prédio, mas a luz da janela não chega muito longe lá dentro, então a maior
parte do lugar estava bem escura.

Aí eu percebo que não tenho nenhum tipo de lanterna comigo e não consigo enxergar
nenhum interruptor de luz próximo na parede, então não tenho como realmente olhar
em volta. Quase decidi dar meia-volta e tentar sair pelo mesmo caminho que entrei, até
porque o lugar me dava uma sensação muito ruim. Tipo, como se houvesse um cheiro
de mofo e o ar estivesse empoeirado e denso. Aliás, você vai me achar um idiota
quando eu disser isso, mas eu não gostava do jeito como a minha sombra… se movia.
A luz da janela atrás de mim a projetava com bastante clareza no chão e, olhando para
ela, juro que as bordas pareciam se mover. Era tipo… tipo uma ondulação, como se
elas estivessem sendo deslocadas por algo. Quer dizer… olha, eu sei que você odeia
essa palavra, mas foi muito… sinistro.

Olha, enfim, foi aí que eu vi o pé da escada que levava para cima, e eu não enrolei para
subir. A porta de cima não estava trancada, então me encontro no corredor do andar
térreo do edifício e admito que foi um verdadeiro alívio sair daquele lugar e entrar no
prédio principal bem iluminado.

Eu poderia ter ido embora naquele momento, provavelmente deveria, mas decidi tentar
mais uma vez para ver se conseguia falar com os atuais moradores do antigo
apartamento do Sr. Vittery. Para fazer tudo o que eu podia… e tal. Então, eu vou até o
número quatro e dou algumas batidas na porta.

Eu não esperava que tivesse alguém ali, mas a porta foi aberta por uma senhora com
um lenço na cabeça. Tentei fazer algumas perguntas, mas ficou claro que ela não
falava inglês muito bem. Depois de alguns segundos, ela apenas balançou a cabeça e
apontou para trás de mim, fechando a porta sem cerimônia. Ao me virar, vejo um
homem grande de pele escura em um terno muito bonito me olhando com um pouco de
suspeita. Ele se apresentou como Yasir Kundi e disse que era o dono do prédio, e ficou
um pouquinho mais cooperativo depois que eu menti para ele e disse que um dos
moradores do andar de cima havia me deixado entrar.

Eu disse a ele por que eu estava lá, embora obviamente não tenha mencionado… ter
invadido o lugar ou o Instituto ou o que fazemos, porque acho que as pessoas muitas
vezes não entendem ou não respeitam isso no mundo real. Eu só disse que após a
morte do Sr. Vittery, eu estava investigando alguns aspectos de sua vida e perguntei se
ele se lembrava de alguma coisa sobre a época em que ele era inquilino. O Sr. Kundi foi
tão útil quanto você poderia esperar. Me disse que Carlos Vittery tinha morado lá, era
meio estranho, sempre muito fechado, mas nunca foi problema, pagava o aluguel em
dia. Ele tinha um gato, que agora vivia com o casal Sanderson do apartamento 2. Ele
pareceu genuinamente surpreso ao ouvir sobre a morte, mas não conseguiu esclarecer
nada sobre ela.

Não ajudou muito, mesmo. Ainda assim, era o máximo que eu esperava conseguir,
então voltei ao Instituto e atualizei você sobre o que havia descoberto. E, bem, como
você já sabe, essa foi a última vez que eu te vi antes de desaparecer.
Eu estava voltando para casa quando comecei a pensar, e fiquei preocupado de não ter
realmente investigado o suficiente para você, já que fiquei tão assustado com o porão e
tal. E aí eu lembrei que tinha visto muitas teias de aranha no pouco tempo que eu fiquei
lá embaixo, e talvez devesse dar uma olhada de novo. Quer dizer, como eu te falei, eu
não tenho muito medo de aranhas, então … Voltei para dar mais uma olhada.

Estava escuro quando cheguei à Boothby Road, mas vi que a janela do porão ainda
estava aberta. Eu fiz questão de trazer uma lanterna dessa vez, e depois de checar
para ter certeza de que ninguém estava olhando, eu escalei para dentro. Eu soube
imediatamente que havia cometido um grande… erro. O ar estava tão mofado quanto
antes, mas parecia mais quente do que da outra vez, o que era estranho porque lá fora
estava uma noite fria de fevereiro. Eu liguei minha lanterna e iluminei ao redor, mas
fiquei decepcionado ao ver que todas aquelas teias de aranha que eu lembrava
pareciam velhas e insignificantes. Se houvesse aranhas lá, nenhuma estava facilmente
visível, e… por um segundo pensei que a única parte interessante do meu passeio de
volta para ali era que ele me levaria para a cadeia se eu não tomasse cuidado. Aí… eu
ouvi um movimento. Do outro lado do porão.

Foi… fraco, apenas um farfalhar, na verdade. Eu não queria ver o que era — eu
realmente não queria — cataloguei e analisei casos suficientes para saber que seguir o
barulho é sempre uma ideia muito, muito ruim, mas… Quer dizer… é meu trabalho, não
é? Então eu caminhei lentamente em direção a ele, segurando minha lanterna na minha
frente como um… como um escudo. O feixe era muito mais fraco do que eu pensava e
iluminou apenas os contornos nítidos das prateleiras e detritos que se espalhavam pelo
porão. O movimento havia parado, ou pelo menos eu não conseguia mais ouvir, e eu
quase decidi apenas me virar e sair, quando minha lanterna encontrou o que parecia
ser uma figura humana.

Parecia ser… uma mulher. Ela estava de costas para mim, aparentemente olhando para
o canto da parede. Seu cabelo era longo e preto, embora estivesse tão bagunçado e
sujo que era difícil dizer se aquela era sua cor original. Ela usava um sobretudo cinza
surrado, embora suas pernas estivessem nuas e cobertas com o que a princípio pensei
serem pintas. Na mão direita, ela segurava um lenço verde manchado. Ela ficou lá,
totalmente imóvel, ou não percebendo a luz da lanterna que estava brilhando sobre ela,
ou não se importando. Eu não movi um músculo.

Então, com um movimento rápido e brusco, ela levou o lenço ao rosto e tossiu. Quer
dizer, eu chamo de tosse porque era o que parecia, mas não soava como uma tosse.
Foi mais como… tipo… sabe nos documentário sobre a natureza, quando o leão pega
algo e parte em pedaços? Aquele barulho de carne molhada? É, foi tipo isso. Eu vi algo
cair do lenço no chão. Tinha cerca de uma polegada de comprimento, era prata, e se
contorceu ao cair.

Eu gritei. Não tenho vergonha de admitir isso, embora pensando agora eu realmente
queria não ter feito isso. Sua cabeça virou em minha direção e ela fixou os olhos em
mim. Suas pupilas pareciam irregulares e em colapso, e quando ela sorriu seus dentes
estavam lascados e enegrecidos. Comecei a cambalear para trás, esperando que a
qualquer momento ela me atacasse, mas em vez disso ela lentamente estendeu a mão
e… deixou o sobretudo cair no chão.

Sua pele era pálida, quase cinza e cheia de… desculpa, isso ainda me deixa enjoado só
de pensar. Estava cheia de buracos. Buracos negros e profundos perfurando cada
pedacinho de carne como um ninho de vespas. Dava para ver aqueles… vermes finos e
prateados rastejando para dentro e para fora, e suas extremidades pretas se contraindo
enquanto se contorciam através daquela carne esburacada. Quer dizer, aquilo não era
humano. Não podia ser. E-Ela… Aquilo deu um passo em minha direção e com isso os
vermes começaram a se contorcer para fora de cada buraco e cavidade, caindo no chão
como uma cachoeira e começando a rastejar em minha direção em uma velocidade
alarmante.

Me veio um pensamento muito estranho naquele momento, e mesmo enquanto eu


recuava em direção às escadas, comecei a pegar meu telefone. O mais idiota é que eu
nem ia ligar para pedir ajuda, só queria tirar uma foto daquela coisa. Para provar
pra você que isso aconteceu — você sempre descarta esses depoimentos muito rápido
e eu queria uma prova para você. Exceto que… eu consegui deixar cair, é claro.
Quando eu estava abrindo o aplicativo da câmera, um dos vermes se aproximou de mim
e saltou no meu rosto. Aquela coisa pulou literalmente quase 2 metros pelo ar até a
minha cara. Ele não me acertou, mas fiquei tão atordoado que tropecei na escada atrás
de mim e deixei meu celular cair no chão. Não parei para pegá-lo, apenas fugi escada
acima o mais rápido que pude.

Obviamente a porta de cima não estava trancada, se estivesse… Tenho certeza de que
eu estaria morto. Ou… pior. Eu corri o mais rápido que já havia corrido na vida — nunca
fui bom em correr — e o tempo todo eu esperava sentir algo subindo pela minha perna.
Não parei de correr até estar sentado no metrô depois de verificar se não havia nenhum
verme em algum canto do meu banco. Eu moro em Stockwell, bem na outra ponta da
Linha Norte, então quando cheguei em casa estava começando a me sentir um pouco
mais seguro, embora totalmente exausto. Eu sabia que eu jamais conseguiria ir
trabalhar no dia seguinte, mas sem meu celular eu não tinha como te avisar. Quer dizer,
eu não tenho telefone fixo — quem é que tem hoje em dia? — mas não consegui ficar
acordado por tempo suficiente para mandar um e-mail, então eu simplesmente desabei
totalmente vestido na cama.

Não sei quanto tempo dormi, mas ainda estava escuro quando a batida me acordou.
Não sei se foi na mesma noite ou se dormi o dia todo. De qualquer forma, eu me
arrastei para fora da cama e, enquanto estava sentado ali, a minha ficha caiu sobre
tudo o que eu tinha visto, e eu estremeci. Tentei dizer a mim mesmo que tinha
imaginado tudo. Talvez eu tenha surtado ao encontrar uma sem-teto dormindo no
porão. Talvez ela estivesse doente e precisasse de uma ambulância. Meu Deus, talvez
eu a tivesse deixado para morrer.

Houve mais batidas na porta e eu estendi a mão para acender a luz, mas quando tentei
nada aconteceu. Tentei o abajur ao lado da cama, mas, de novo, nada. Olhando em
volta, vi que nenhum dos meus aparelhos eletrônicos parecia estar ligado. Deve ter
havido algum tipo de corte de energia. Novamente, alguém bateu na porta. Talvez fosse
um dos meus vizinhos vindo verificar se a minha energia tinha caído? Então eu me
arrasto em direção à porta e coloco a mão na maçaneta.

Quando estava prestes a abrir, senti um arrepio repentino e parei. E se ela estivesse lá


fora, esperando? Quer dizer, os vermes que formavam uma colmeia em seu corpo,
ansiosos, lutando para me pegar também. Pensei naquele caso horrível que você nos
fez investigar, onde aquela mulher explodiu em vermes, e percebi que essa mulher
deve ser aquela Jane Prentiss de que você estava nos falando. Eu nunca tive um
daqueles olhos mágicos na porta, então não conseguia ver o que estava lá fora, mas
quando dei um passo para trás, vi algo no chão, rastejando por baixo da porta. Era um
pequeno verme prateado.

Acho que posso ter perdido um pouco a cabeça aí. Tudo… parece muito… estranho,
embaçado. Eu me lembro de pisar e pisar enquanto mais vermes passavam por baixo
da minha porta. Eu me lembro de pegar todas as toalhas, meias e pedaços de tecido
que eu pudesse encontrar e enfiá-los embaixo da porta, nas rachaduras ao redor da
janela, qualquer lugar de onde um verme esguio pudesse rastejar estava vedado. E
então eu sentei lá e esperei. Eu continuava sem energia, sem telefone, sem maneiras
de me comunicar com o mundo.
Isso durou treze dias. Toda vez que eu pensava ser seguro tentar sair, eu ouvia aquela
batida na minha porta de novo. Felizmente, não houve problema com meu
abastecimento de água, então eu tinha bastante para beber. Só estou feliz que nenhum
deles pensou em subir pelos canos. Eu como muitas refeições prontas, enlatadas, esse
tipo de coisa, então… eu tinha comida, apesar de que depois dos primeiros dias eu tive
que começar a racionar.

Se algum dia eu vir outra lata de pêssegos…

Mas… acho que a pior parte foi o tédio. Sem internet, sem telefone, sem energia. Eu li
os poucos livros impressos que eu tenho várias vezes. Eu não dormi muito. Toda vez
que fechava os olhos, começava a sentir que algo estava rastejando pelas minhas
pernas e tinha que me sentar e verificar. Outras vezes, eu acordava com aquela batida.
Passei muito tempo tentando lembrar o que você me disse sobre Jane Prentiss quando
estávamos trabalhando no depoimento de Tim Hodges, mas… tudo que eu me
lembrava era que ela dizia ser uma bruxa praticante e acreditava estar infectada por um
parasita perigoso e desconhecido.

Ela nunca falou comigo. Eu podia ouvi-la claramente através da porta, mas ela nunca
fez um som além daquela batida. Pelo que eu vi, talvez o que estava em sua garganta
não deixasse espaço para uma voz. Estranhamente, ela também nunca tentou arrombar
minha porta. Apenas batia. Ela batia, e batia, e batia.

Finalmente, acordei esta manhã e ela tinha ido embora. Não sei exatamente como eu
soube. Acho que ela trouxe aquele cheiro de mofo com ela, e essa manhã eu não sentia
o cheiro. E não houve batidas. Quer dizer, ainda levei cerca de quatro horas conferindo
e conferindo de novo e ouvindo pela caixa do correio antes de tomar coragem para
realmente abrir a porta, mas quando abri… não havia ninguém lá. E eu corri até aqui.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Você tem certeza de tudo isso, Martin?

Martin: Olha, não vou mentir para você sobre algo assim, John. Eu gosto do meu
trabalho. Na maior parte do tempo.

Arquivista: Muito bem. Nesse caso, há um quarto nos Arquivos que uso para dormir
quando trabalho até tarde. Eu sugiro que você fique lá por enquanto. Vou falar com
Elias sobre se podemos conseguir segurança extra, mas os Arquivos têm fechaduras
suficientes por enquanto. Também deveria ter controle de umidade e, embora não
esteja funcionando há algum tempo, ainda significa que está bem vedado. Nada vai se
esgueirar pelas frestas das janelas.

Martin: Oh.  [Confuso e nervoso] Ok. Obrigado. Pra ser sincero, eu não esperava que
você levasse isso a sério.

Arquivista: Você disse que perdeu seu telefone há duas semanas?

Martin: Por aí. Quando voltei para o porão.

Arquivista: Bem, nessa época eu recebi várias mensagens de texto do seu telefone


dizendo que você estava doente com problemas no estômago. A última dizia que você
achava que “deveria ser um parasita”, mas minhas ligações para averiguar nunca foram
atendidas. Então, se isso envolve mesmo Jane Prentiss, então eu levo muito a sério—
[CELULAR VIBRA]

Espera aí.

Martin: O quê?

Arquivista: Acabei de receber outra mensagem. De você. “Fique com ele. Nós nos
divertimos. Ele vai querer ver quando o destino carmesim do Arquivista chegar.”

Martin: O que isso significa?

Arquivista: Significa que eu peço ao Elias para contratar segurança extra. Eu


provavelmente deveria avisar Sasha e Tim também.

Também vou dar uma olhada nos Arquivos, pois acredito que devamos ter um
depoimento da própria Sra. Prentiss aqui em algum lugar.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Meu querido Jonah,

Desculpe-me por ter escrito esta carta logo após a última. Você deve me achar terrível
por não ter lhe dado a chance de uma resposta, mas eu me lembro que durante sua
visita na primavera passada você mencionou seu fascínio pelo macabro e estranho, e
me pressionou para saber se havia alguma história ou lenda com a qual eu estivesse
familiarizado. Wolfgang me contou que você está adquirindo uma coleção e tanto, e
sinto que agora tenho algo que pertence a ela, muito mais do que qualquer um dos
contos de fadas ou as histórias da carochinha que lhe contei antes. Resumindo, eu tive
um encontro terrível. Dois encontros, na verdade, eu suponho — e rezo ao Senhor para
que não tenha mais nenhum. Pois eu honestamente acredito que morreria, de medo,
senão de violência, se eu fosse forçado a encontrar a coisa novamente.

Tenho certeza de que você deve estar me achando um chato divagando a respeito
dessa coisa, mas sinto que, para que entendas o todo, devo começar minha história
algum tempo antes da manifestação da própria aparição, com as minhas viagens até
Württemberg. Minha família tem uma pequena propriedade lá, no coração de
Schwarzwald, que você chamaria de Floresta Negra, perto de uma pequena cidade
chamada Schramberg. Esta propriedade pertencia ao meu irmão, Henrik, e quando ele
faleceu, ela passou para o meu sobrinho Wilhelm. Ele mal havia completado 14 anos
quando Henrik morreu, e sua mãe faleceu ao dar à luz, então eu e Clara temos feito
todos os esforços para fornecer-lhe orientação e todo o carinho que ele poderia ter tido.
Isso foi especialmente importante já que não fomos capazes de conceber um filho e, por
isso, sentimos que era nosso dever ensinar a Wilhelm o que teríamos ensinado a um
filho nosso. A devassidão da juventude é sempre um perigo, e sentimos ser nosso
dever ajudar a guiá-lo — até onde pudéssemos — ao longo do caminho da virtude. Não
tivemos que nos preocupar muito: nunca conheci uma alma tão sóbria e prudente como
a que parece existir no jovem Wilhelm. No entanto, por causa disso, temos permanecido
próximos de meu sobrinho durante os anos, apesar da distância. Quando ele adoeceu
no último inverno, naturalmente tomamos providências para viajar até sua casa no
Schwarzwald e oferecer todo o conforto que pudéssemos.

A viagem foi difícil, como suponho que seja de se esperar durante o inverno, mas o
estado de Wilhelm não toleraria atrasos. No início, o pior que tivemos de enfrentar,
vindos da Baviera, foi a falta de provisões nas hospedarias onde nos alojávamos, já que
nos diziam repetidas vezes o quão raros eram os hóspedes nesta época do ano. Ainda
assim, você pode dizer o que quiser sobre a Confederação Alemã — e eu sei que você
certamente tem muitas opiniões sobre ela, meu amigo — mas ela tornou as viagens
muito mais rápidas e eu certamente fiquei grato por isso. Quando entramos em
Württemberg, porém, nosso trajeto foi muito mais difícil. A neve caía mais espessa em
Schwarzwald, obrigando-nos finalmente a trocar a carruagem por um trenó.

Você nunca conheceu o inverno na Floresta Negra, não é? Eu sei que você dirá que
tem neve e florestas na Inglaterra, mas eu vi o que você chama de florestas e posso
dizer que não há comparação com Schwarzwald, suas árvores cobertas por um denso
dossel de neve intocada. Há um silêncio lá como nunca encontrei em nenhum outro
lugar da terra, com cada som parecendo morrer no momento em que toca aquele manto
branco e macio de neve virgem. De dia, é a mais bela serenidade, um silêncio calmo.
Mas à noite, meu amigo… à noite torna-se algo totalmente diferente. A quietude da
floresta soa como se o mundo estivesse prendendo a respiração, esperando para
atacar, e nas partes onde o dossel se abre o suficiente para que a lua brilhe, essa lança
as sombras mais fantasmagóricas sobre tudo. Eu perdi a conta do número de vezes que
jurei que vi figuras nas sombras, brevemente iluminadas pelo brilho do luar daquela
terra congelada. A certa altura, cheguei a exigir que o trenó fosse parado para que eu
pudesse fazer um exame da área com um par de pistolas, mas é claro que não
encontrei nada. Foi nesse estado de espírito que chegamos à propriedade de Wilhelm
perto de Schramberg.

omos recebidos pelos criados de Wilhelm e informados sobre a condição de seu mestre.
O médico havia, aparentemente, enfrentado as estradas de Schramberg alguns dias
antes e dado os medicamentos que pôde. Os servos nos disseram que desde então ele
havia melhorado progressivamente, mas ainda estava muito fraco. Confesso que com
essa notícia me senti um pouco desnecessário, mas ao entrar no quarto de Wilhelm, a
felicidade evidente em seu rosto quando viu Clara e eu colocou um fim a todos esses
pensamentos.

Wilhelm estava se recuperando, mas eu não tinha intenção alguma de viajar de volta
por aquela quietude gelada e silenciosa a menos que fosse absolutamente necessário,
e Clara concordava. Fizemos planos para passar o inverno lá com Wilhelm. Havia
espaço suficiente para nós, embora nosso aposento fosse mais modesto do que o que
nós estávamos acostumados. Devo admitir que não gostei inteiramente da ideia de ficar
em Schwarzwald até o degelo da primavera, mas, de todas as opções que tínhamos à
nossa disposição, foi o que julguei ser mais aceitável.

E assim começou o que seria uma longa estadia aos redores de Schramberg, e nunca
desejei mais intensamente ter sido capaz de trazer minha biblioteca comigo. Eu tinha
apenas alguns livros comigo e Wilhelm, apesar de sua inteligência não descartável,
tinha ainda menos. No final, tocamos muito cribbage e ouvimos Clara tocar muitas
músicas no piano. Minha esposa nunca teve uma voz singular, mas sua habilidade nas
teclas mais do que compensa por isso. Eu saía para dar caminhadas demoradas pelos
bosques arredores durante o início da tarde, quando o frio era tolerável. Às vezes eu
caminhava pelos três quilômetros até a cidade vizinha, Schramberg; mas na maioria
das vezes eu simplesmente escolhia uma direção e caminhava entre as árvores pelo
tempo que minha imaginação me prendesse e, em seguida, simplesmente seguia meu
próprio rastro de pegadas de volta ao que era, naquele momento, a minha casa.

Foi em uma dessas caminhadas, alguns meses depois da nossa chegada, que
encontrei aquele antigo cemitério. Deve ter sido ligeiramente afundado no próprio solo,
já que tudo que eu podia ver das lápides eram as meras pontas de granito desgastado e
esfarelado acima da neve. Eu não conseguia adivinhar o tamanho do lugar, já que a
cada segundo, para qualquer que fosse o caminho que eu andasse, eu localizava outro
pequeno broto de pedra memorial florescendo na terra congelada. Eu cavei um pouco
de neve da frente de uma das lápides — havia um anjo quebrado sobre ela, ambas as
asas partidas e caídas — mas a inscrição estava muito gasta para distinguir qualquer
uma das palavras. Eu havia quase decidido ir embora, pois sabia que tinha pouco mais
de uma hora antes que a luz começasse a ir embora. Quando me virei para ir, no
entanto, vi algo não muito distante entre as árvores, muito maior e mais intrigante do
que os túmulos que eu havia encontrado até então.

Ele ficava cerca de um metro e meio acima da neve, e a pedra era de qualidade muito
melhor do que as que eu tinha visto até agora. Um pequeno mausoléu. A porta, que um
dia havia sido uma grade de ferro resistente, há muito havia se soltado de suas
dobradiças, deixando apenas uma grande abertura negra que parecia levar mais fundo
do que as dimensões do mausoléu permitiam. No topo, quase ilegível, mas
definitivamente ainda lá, estava o nome ‘Johann von Württemberg’. Fiquei fascinado —
eu conhecia bem a minha história local e certamente não conhecia nenhum nobre da
linhagem de Württemberg chamado Johann. Eu tinha certeza de que ele nunca havia
sido um conde ou príncipe. Mais do que isso, nunca houve, pelo que eu me lembrava,
qualquer cidade ou povoado próximo a este local que pudesse abrigar um cemitério
desse tamanho. Então, quem foi Johann von Württemberg? E por que ele havia
construído um mausoléu aqui, no meio de Schwarzwald, a 9 quilômetros ou mais de
Schramberg?

Não tive tempo de investigar mais, pois percebi que precisava partir imediatamente se
quisesse voltar para minha esposa e meu sobrinho antes do pôr-do-sol. Eu me virei e
segui meu caminho de volta o mais rápido que pude. Enquanto eu normalmente ficaria
satisfeito em traçar um novo caminho no dia seguinte, algo no vislumbre daquela tumba
silenciosa me atraiu de volta, e eu me peguei marcando árvores com o meu canivete
para tornar o caminho de volta no dia seguinte muito mais fácil.

Naquela noite, perguntei a Wilhelm durante o jantar se ele já ouvira falar de Johann von
Württemberg ou se conhecia o mausoléu a alguns quilômetros ao norte de sua casa.
Ele respondeu não para ambos — raramente passava tempo na floresta ao redor,
exceto para caçar, e a caça geralmente era ruim no norte porque as árvores estavam
muito próximas umas das outras para andar facilmente com um cavalo. E ele nunca
tinha ouvido falar desse 'Johann’. Fiz algumas pesquisas sobre onde poderia
aprofundar a história da área, mas não havia nenhuma biblioteca de tamanho decente
perto de Schramberg e, como mencionei, Wilhelm tinha poucos livros, então deixei o
assunto morrer.

Nada mais digno de nota ocorreu naquela noite, então, me despedindo na manhã
seguinte, saí cedo em direção ao antigo cemitério. Não escondi meu destino e até
ofereci a oportunidade de me acompanhar a Wilhelm e Carla, mas nenhum dos dois viu
a viagem como digna das horas frias que levaria para chegar. Então foi sozinho que
mais uma vez fiz meu caminho para aquele lugar esquecido. Minha marcação nas
árvores se provou desnecessária, já que não havia nevado na noite anterior, e minhas
pegadas do dia anterior ainda eram claras e muito fáceis de seguir.

O mausoléu parecia exatamente como eu o deixara, a porta ainda escancarada e a luz


do sol parecia acabar bem próxima à soleira antes que a escuridão o engolisse
novamente. Eu havia previsto isso e empacotado uma lanterna com o propósito de
explorar o local. Eu estava prestes a acendê-la quando notei uma figura me observando
da linha das árvores. Talvez esse lugar não fosse tão esquecido, afinal. Eu tinha ouvido
histórias de bandidos que usavam lugares como este para encontros e de repente fiquei
feliz por também ter pensado em trazer uma pistola. Aproximei-me do homem, mas ele
não se mexeu para fugir. Quando cheguei mais perto, eu o vi em mais detalhes. Ele era
baixo e atarracado, vestindo uma sobrecasaca preta antiquada e calça até os joelhos,
embora sua cabeça estivesse sombreada por um chapéu preto de aba larga. Pelo seu
traje, presumi que fosse um homem velho, talvez um zelador deste lugar, ou
simplesmente um recluso que vivia nas proximidades. Quando eu o cumprimentei,
porém, a voz que respondeu não tinha nenhum estremecimento de idade. Ele me
perguntou, em um alemão baixo e camponês, se eu planejava explorar a tumba. Eu
disse que sim e perguntei se ele era o guardião do lugar. Ele riu com aquilo, uma
exclamação aguda e gutural que me surpreendeu, e me disse que a cripta que eu
buscava era um lugar perigoso. Eu perguntei a ele o que eu tinha a temer dos mortos, e
ele me encarou. Eu não podia ver seus olhos sob a aba do chapéu, mas ainda podia
sentir seu olhar sobre mim. Ele riu de novo e me disse: “Não, senhor, você não tem
nada a temer dos mortos”.

Com essas palavras, comecei a recuar, garantindo que minha mão estava na minha
pistola, sem tirar os olhos daquele homem estranho até chegar à beira do mausoléu. Só
então olhei para baixo para me certificar de que minha lanterna estava onde a deixei e,
quando voltei meu olhar para as árvores, ele havia sumido. Para ser sincero, fiquei
bastante abalado com o encontro e pensei em voltar e tentar a sorte outro dia, mas algo
dentro de mim se recusava a ter todo o meu trabalho e preparação em vão por causa
de um fazendeiro que não conseguia cuidar da própria vida. Acendi minha lanterna e—

ARQUIVISTA
Martin. Meu Deus, cara, se você vai ficar nos Arquivos pelo menos tenha a decência de
colocar uma calça!

Martin: Ah meu Deus, desculpa! Desculpa, eu não achei que você chegaria tão cedo,
ainda não são nem sete horas.

Arquivista: Tenho chegado cedo na esperança de sair daqui antes de escurecer.

Martin: Já se passou uma semana e não vimos nada. Você acha mesmo que ela ainda
tá por aí?

Arquivista: Eu não faço ideia, mas não pretendo me arriscar.

Martin: [Suspiro]  Não, acho que não…

Arquivista: Agora, se você me der licença…

Martin: Saindo!

Arquivista: O depoimento continua.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
No começo eu estava confuso, por dentro parecia estar vazio. Nenhum monumento ou
caixão estava ali dentro, e nenhuma placa ou símbolo adornava a parede. Apenas uma
única placa de mármore estava no centro, como um altar. A princípio pensei que talvez
o caixão devesse estar ali e alguém simplesmente tinha o levado, mas enquanto eu
caminhava, vi o que ele estava escondendo. Atrás do bloco anguloso havia uma escada
que descia para as profundezas de alguma cripta subterrânea desconhecida.

Você vai zombar de mim, Jonah, na próxima vez que nos encontrarmos, tenho certeza
disso. Você vai rir da minha presunção e me chamar de aventureiro imprudente, mas o
fato é que desci aquelas escadas quase sem escrúpulos. Qualquer medo que eu
pudesse ter estava focado exclusivamente no homem que eu havia conhecido do lado
de fora, e não pressenti nenhum perigo dentro da própria cripta. Então eu levantei
minha lanterna e desci as escadas.
Elas eram velhas, disso não há dúvidas, mas não estavam gastas, e eu apostaria que
fui a primeira alma a descer lá em pelo menos um século. Elas desciam por algum
tempo, até que tive certeza de que estava nas profundezas das terras congeladas de
Schwarzwald. Por fim, os degraus terminaram em um pequeno corredor, e pude ver que
os tijolos que formavam as paredes e o teto arqueado haviam ruído e se deslocado em
alguns lugares, abrindo passagem para as raízes grossas das árvores acima, que se
enrolavam e se espalhavam por aquelas partes do caminho que mais precisavam de
reparos. Após cerca de um minuto de caminhada, a passagem se abriu em uma grande
câmara. No centro havia outro bloco de mármore, quase idêntico ao que eu tinha visto
no andar de cima, mas acima deste havia um caixão de pedra lacrado. O nome 'Johann
von Württemberg’ fora esculpido ali também, embora preservado em detalhes muito
mais claros sem a natureza para desgastá-lo.

Enquanto eu olhava para ele, percebi que as paredes da sala não pareciam ser de
pedra como as do corredor ou do mausoléu eram. Aproximei-me cautelosamente, até
que minha lanterna as iluminou claramente. As paredes estavam cobertas com estantes
de livros. Empilhadas com tal densidade que era impossível dizer se havia uma parede
real atrás delas ou se os próprios livros formavam o único baluarte contra o solo. Eles
estavam, infelizmente, terrivelmente apodrecidos. Os séculos não haviam sido gentis
com eles e, ao tentar mover um, percebi que a umidade havia, com o tempo, feito com
que eles se fundissem em uma única massa de papel e sobrecapas. Por mais previsível
que aquilo pudesse ser, eu ainda senti a pontada aguda da perda. Ver tal volume de
conhecimento, possivelmente único em todo o mundo, totalmente destruído, foi
incrivelmente doloroso para mim. As prateleiras reais eram feitas do mesmo mármore
dos dois blocos e pareciam ter aguentado melhor. Enquanto eu olhava para eles,
percebi uma pequena gravura, entalhada em intervalos regulares ao longo da borda de
cada um. Era um olho pequeno, aberto e encarando.

Por alguma razão, foi só naquele momento que comecei a sentir medo. De quê eu não
saberia dizer, mas aqueles olhinhos me encheram de um pavor que não consigo
descrever para você agora. Claramente me afastei das estantes e estava pronto para
partir quando minha lanterna topou com algo no canto da sala. Ou mais precisamente,
duas coisas: a primeira era uma pequena moeda de ouro que brilhava no chão. O
segundo era um livro, talvez caído das prateleiras há muito tempo. Estava em muito
melhor estado do que os outros, talvez devido ao local onde estava, e fui capaz de abri-
lo com muito cuidado. Fiquei desapontado ao ver que não estava escrito em alemão,
nem mesmo em francês ou latim, mas parecia estar em árabe. Parecia ser uma espécie
de manuscrito iluminado, produzido à mão e absolutamente lindo, embora eu não
pudesse de forma alguma dizer a você do que se tratava.

Peguei o livro e a moeda para estudar mais tarde e saí apressadamente da cripta, o
medo persistente me fazendo sentir como se algum perseguidor invisível pudesse me
atacar se eu hesitasse. Saquei minha pistola ao deixar o mausoléu, apenas para o caso
de o homem estranho e baixinho de antes estar esperando para me abordar, mas não
havia sinal de ninguém do lado de fora naquela luz clara do dia.

Corri de volta, embora ainda tivesse muitas horas antes do anoitecer. Enquanto eu
caminhava, percebi que a neve nas árvores estava começando a derreter e me
consolou saber que Clara e eu provavelmente poderíamos voltar para Closen em breve.
Wilhelm estava totalmente recuperado de sua febre e durante o jantar todos os
vestígios de meu medo anterior haviam desaparecido e eu estava de excelente humor.

Depois disso, retirei-me para fumar um ou dois cachimbos e examinar mais


detalhadamente os meus achados. O livro, embora bonito, recusou-se obstinadamente
a oferecer qualquer pista sobre seu conteúdo. Com sua permissão, vou levá-lo para os
seus olhos de especialista na próxima vez que tiver o prazer de sua companhia. A
moeda, por outro lado, era mais interessante. De um lado, tinha o perfil gravado de um
jovem de rosto fino e cabelos longos e soltos. Acima estavam as letras JW e, na parte
inferior, o número 1279. Se essa era a data em que a moeda foi produzida, então não
preciso dizer o quão emocionante essa descoberta pode ser. O outro lado estava em
branco, exceto por três palavras muito pequenas e gastas que eu mal conseguia ler.
Estava escrito “Für die Stille”.

Já ia me deitar quando uma das criadas, Hilda — ou seria Helga, não me lembro —
pediu-me um minuto de meu tempo. Eu assenti e ela perguntou se eu estava querendo
saber sobre o velho cemitério na floresta. Eu disse que sim, queria, e ela empalideceu
levemente. Ela me disse que nunca chegou perto do lugar, que ninguém na cidade ia.

Veja, Jonah, aparentemente havia um velho em Schramberg chamado Tobias Kohler.


Ele havia vivido quase oitenta anos e contava histórias de quando era criança e ele e
seus amigos jogavam um jogo que chamavam de “Passos de Johann”. Era um jogo de
coragem, em que você tinha que descer o máximo de degraus que pudesse até a tumba
de Johann von Württemberg até ser visto e depois sair correndo o mais rápido que
pudesse. Tobias nunca dizia quem ou o quê veria você, e sempre ignorava a pergunta.
Bem, aparentemente, os pais dessas crianças descobriram sobre esse jogo e um deles,
a mãe do amigo de Tobias, Hans Winkler, resolveu acabar com isso. Ela invadiu o
cemitério e, vendo Hans entrando no mausoléu em sua vez, ela correu atrás dele e
desceu as escadas. Nenhuma das crianças viu o que aconteceu, mas todas ouviram o
grito. Eles fugiram de volta para a cidade, e quando contaram o que havia acontecido, o
padre da cidade, cujo nome Tobias não se lembra, simplesmente acenou com a cabeça
e, reunindo seis homens fortes, embora profundamente temerosos, se dirigiram ao
cemitério. Ninguém daquele grupo jamais falou sobre o que viu ou encontrou lá, mas
Hans foi morar com a família Becker em sua pequena fazenda. Ninguém jogou “Passos
de Johann” novamente e o cemitério ficou mais uma vez deserto.

A única outra coisa da qual Tobias se lembrava era que uma vez ouviu um tio-avô
referir-se a Johann von Württemberg como “o bastardo de Ulrich”, o que, se a data na
moeda estiver correta, pode estar se referindo a Ulrich I ou Ulrich II, mas de qualquer
maneira a história daquele lugar deve retroceder a quase seiscentos anos.

Mas agora, sinto que já falei sobre isso por tempo suficiente — eu poderia preencher
mais uma dúzia de páginas com preâmbulos e pesquisas, mas nada disso é o motivo
pelo qual escrevi para você desta forma. Não, estou escrevendo a você para descrever
o que vi na última noite em que fiquei na casa de Wilhelm, o evento que fez com que eu
e Carla partíssemos uma semana antes do que havíamos planejado.

Foi três dias depois de ouvir a história de Tobias que aconteceu. Eu havia embalado a
moeda e o livro em uma decaída de superstição e decidi dar um pequeno passeio
enquanto o sol estava se pondo. Estava lindo; os carmesins do céu escuro dançavam
sobre a neve que restava, manchando-a de um vermelho profundo. Eu caminhava ao
redor casa, fumando meu cachimbo, quando encontrei os rastros que deixei ao me
encaminhar para o antigo cemitério. À medida que a neve derretia, minhas pegadas se
transformaram em terra compactada e gelo que quase parecia brilhar sob a luz do dia.
Eu olhei para eles e congelei. Eu tinha feito duas viagens para o mausoléu naquele
inverno e, com certeza, havia dois conjuntos de pegadas indo para o norte. Mas
voltando para a casa havia três pares de pegadas. Senti a presença atrás de mim e me
virei.

Era o homem do cemitério. Seu chapéu de aba larga havia sido removido e ele me
encarava. Sua cabeça estava completamente careca e seus olhos estavam faltando.
Eram apenas cavidades vazias, mas eles olhavam para mim. Eles me viam. Acredite ou
descarte qualquer outra coisa em minha carta como desejar, Jonah, mas eu juro que
fiquei cara a cara com um homem sem olhos, e ele me via.
Recuei rápido demais e escorreguei caindo com força no chão, em um segundo ele
estava em cima de mim, e ele sorriu. Ele disse algo para mim, mas minha mente estava
em pânico e eu não ouvi o que foi. Ele se aproximou de mim lentamente,
insolentemente, como se procurasse saborear aquele momento, mas não tivesse
pressa. Então, quase sem aviso, ele parou. Sua cabeça se ergueu para fitar algo, como
um cão que ouve um tiro. Ele ficou ali, a mão parada como se estivesse indeciso. E
então… E então, ele desapareceu, como se nunca tivesse estado ali, e eu
simplesmente permaneci deitado no chão, sem fôlego e com medo.

A noite havia caído quando eu finalmente me recompus o suficiente para correr de volta
para casa e começar a fazer as malas. Eu disse a Carla que tínhamos que ir embora o
mais rápido possível, embora tenha sido vago quanto aos motivos. Eu ainda não disse a
ela o porquê. Como você conta para sua esposa que algo assim aconteceu com você?

Pegamos a primeira carruagem na manhã seguinte e não paramos. Eu nem percebi que
a moeda havia sumido até despachar minha bagagem mais tarde. Seja para um servo
de mãos leves ou apenas para a minha própria negligência, ela se foi, então devo me
desculpar por não ser capaz de compartilhar esse pedaço específico da história com
você. Também devo me desculpar pela caligrafia; tenho passado isso para o papel tão
bem quanto pode ser feito em uma longa viagem de carruagem. Mesmo assim, estou
ansioso para mostrar a você o livro que adquiri e as revelações que você sem dúvida
obterá dele.

Com confiança,

Albrecht

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

É sempre uma delícia encontrar um pedaço da história enfiada na seção errada do


arquivo. Ainda assim, não posso dizer que sei muito sobre Jonah Magnus ou as origens
do Instituto, então esta é uma descoberta bastante agradável em alguns aspectos.
Obviamente, não há muito acompanhamento a ser feito aqui, mas para saciar meu
próprio interesse, fiz algumas pesquisas eu mesmo, que incluo aqui para complementar.

Eu só encontrei uma referência a qualquer 'Johann von Württemberg’ em qualquer um


dos materiais de referência da história alemã que temos disponível. O livro de Jan
Moira, O Berço da Alemanha — Württemberg Através dos Séculos, menciona rumores
de que Ulrich I, conde de Württemberg, teve um segundo filho fora do casamento em
1255. Nenhum nome é listado, mas certos inimigos do conde eram conhecidos por
espalhar boatos de que este filho exilado estava “andando acompanhado por bruxas”.
1279 foi também o ano em que o sucessor de Ulrich I, Ulrich II, morreu. Isso pode ter
sido simplesmente coincidência, no entanto, pois ele foi sucedido por seu meio-irmão,
Eberhard I.

Outra coisa que eu encontrei por acidente durante minha pesquisa foi em  Contos de
Grim, a exploração de H.T. Moncreef sobre mortes inexplicáveis e macabras no início
do século 19 na Europa. Menciona uma morte que aconteceu em Schramberg em 1816.
O homem, um tal de Rudolph Ziegler, foi encontrado morto em sua casa nos arredores
da cidade. O que é interessante é que diz que ele prestava serviços a uma propriedade
próxima. Pouco depois de sua morte, um tal de Wilhelm von Closen foi investigado pelo
crime, pois foi descoberto que o falecido havia roubado joias da propriedade. Isso
acabou sendo descartado, no entanto, depois que quatro médicos atestaram que a
ferocidade das feridas infligidas a Herr Ziegler estavam, como eles disseram: “além da
capacidade da violência humana”. Foi considerado um ataque animal.
Tentei descobrir o que aconteceu com Albrecht von Closen e seu livro, mas não consigo
encontrar nenhuma menção a ele em qualquer livro de história e em nenhum lugar
online. Talvez eu pudesse descobrir mais se passasse meses vasculhando os
depoimentos históricos nas salas dos fundos dos Arquivos, mas simplesmente não
tenho tempo para satisfazer minha própria curiosidade desse jeito.

Eu encontrei uma árvore genealógica de Wilhelm von Closen, no entanto. Ele se casou
e teve filhos, e a família permaneceu em Schramberg e arredores por quase mais um
século, antes de um ramo emigrar para a Inglaterra em 1908. Eles tiveram uma filha,
Elsa, que se casou com um homem chamado Michael Keay em 1920. Em 1924, eles
tiveram uma filha, cujo nome era Mary Keay. Pode ser mera coincidência, mas… Me
preocupa.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Leanne Denikin, a respeito de um órgão calíope antigo que ficou em sua
posse por um breve período de tempo em agosto de 2004. Depoimento original
prestado em 17 de janeiro de 2005. Gravação de áudio por Jonathan Sims, arquivista
chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu vou ser bem clara: eu não tenho medo de palhaços. Eu não acho eles engraçados
também, só um pouco extravagantes, na verdade. Nunca entendi por que as pessoas
acham homens adultos com maquiagem e perucas idiotas engraçado. Ou assustador. É
a mesma coisa com as bonecas. As pessoas falam sobre os olhos frios e mortos delas,
mas não parecem ter nenhum problema com estátuas. Acho que agora eu tenho um
bom motivo para ter medo de ambos. Eu só quero que você entenda que eu não estava
imaginando as coisas por estar com medo. Isso aconteceu.

Não foi uma surpresa quando meu avô morreu no agosto do ano passado. Eu morava
com ele há quase dois anos em sua casa em Bootle, cuidando dele enquanto ele estava
doente. Minha mãe tinha as suas próprias dificuldades na época e meu pai imprestável
não queria ter nada a ver com isso, então cuidar do meu avô passou a ser minha tarefa.
Não foi tão ruim, na verdade. Meu avô era um homem estranho às vezes.

Ele tinha sido um circense durante a maior parte de sua vida, trabalhando com circos
itinerantes e shows de aberrações por toda a Europa, e era uma espécie de recluso nos
seus últimos anos. Ele também podia xingar palavrões por horas. Mas coloque ele atrás
das teclas de um piano, e não conheço ninguém que toque tão lindamente quanto ele
tocava. Como eu disse, não foi uma surpresa quando ele finalmente morreu, mas ainda
foi difícil. Como você deve ter adivinhado, eu não tenho um relacionamento muito bom
com os meus pais e sempre tive problemas para fazer amigos, então… quando ele se
foi, me doeu muito.

Eu não saí de casa naquela semana. Ou na próxima. Eu vi Joshua, meu… companheiro


— acho que dá pra chamar ele assim — mas, fora isso, não vi ninguém entre a morte
do vovô e o funeral. Éramos apenas eu, Josh e minha mãe. Vovô nunca frequentou a
igreja, mas minha mãe tinha muita fé, então ela pagou por um funeral metodista, e
assim foi. Era um dia quente e abafado, e lembro de me perguntar se a ardência nos
meus olhos era pelas lágrimas ou pelo suor. No final das contas, o vovô havia deixado a
casa dele para mim. Eu não entendi direito por um tempo — a casa tinha sido o mais
próximo de um lar que eu havia tido por tanto tempo que eu sempre senti que era minha
de algum jeito.

Olhar os papéis antigos e pertences do meu avô foi mais difícil do que eu esperava. Foi
apenas lendo algumas das cartas dele que descobri que seu nome de batismo era
Nikolai — ele sempre se chamava só de Nick. Eventualmente eu já tinha mexido em
tudo. Eu tinha uma pequena caixa de memórias que queria guardar, mas… Eu só não
estava pronta para jogar o resto fora ainda. Decidi guardar as coisas no sótão. Eu sabia
que a casa tinha um, embora nunca tivesse entrado. Sempre esteve trancado. Não era
um mistério nem nada, só que meu avô nunca precisou pegar nada de lá enquanto eu
morava com ele. Pelo menos era o que eu pensava.

Foi só aí que percebi que eu nunca havia entrado nele. E pra completar, logo descobri
que nenhuma das chaves que me deram eram do cadeado. Não tive sorte procurando
ela pelo resto da casa também. No final, tive que arrombar a fechadura com um alicate
que encontrei na garagem.

Havia também uma escada na garagem, então subir pelo buraco pequeno e quadrado
não foi problema. Percebi, então, que eu não tinha uma lanterna e estava muito escuro.
Apesar de estarmos no meio do verão, o sótão estava fresco, quase frio. Pensei em
descer para pegar uma lanterna e uma jaqueta, mas quando estendi minha mão, ela
roçou em algo que parecia uma corda de puxar. Eu dei um puxão e uma lâmpada
pequena e fraca se acendeu, e eu vi o que tinha ali dentro.

Quando me lembrei da existência do sótão pela primeira vez, fiquei irritada. Achei que
haveria muito mais coisas lá em cima, mais vários dias de coisas para arrumar. Mas
quando acendi a luz, vi que estava quase completamente vazio. As únicas coisas ali
eram um baú velho, um banquinho e um órgão calíope vermelho brilhante. O teto era
mais alto do que eu esperava também, eu conseguia ficar em pé completamente sem
ter que me abaixar. Caminhei lentamente em direção ao antigo órgão a vapor. Era
vermelho brilhante e estava em excelentes condições, exceto por uma espessa camada
de poeira. Havia uma pequena placa de latão com os dizeres “O Calliaphone”. Os canos
de latão que saíam do topo ainda brilhavam fracamente sob a poeira, e percebi que
havia algo escrito, esculpido na capa do teclado. Dizia: “Fique quieto, pois aqui há
música estranha”.

Fui até o baú em seguida e fiquei surpresa ao encontrá-lo destrancado. Ao abri-lo, uma
nuvem de poeira subiu e eu tossi algumas vezes antes de levantar a tampa pesada.
Dentro havia bonecos. Um monte. Eles pareciam velhos, com corpos de tecido
esfarrapados e flácidos, com cabeças redondas enormes e grandes olhos pintados que
olhavam para cima em seus troncos sombreados. O cabelo de cada um era um
emaranhado de lã, e enquanto eles certamente não eram o tipo de boneco que um
ventríloquo usaria, as cabeças tinham bocas semelhantes, blocos de madeira que se
abriam e fechavam para simular a fala. Pelo menos deveriam abrir. Quase todos
tiveram as mandíbulas brutamente arrancadas, sobrando nada além de farpas dentadas
entre as bochechas.

Contei 23 bonecos no total, e apenas um deles ainda estava com a mandíbula intacta.
Parecia ser o mais antigo de todos, e era um pequeno boneco palhaço. Seu corpo
puído era de bolinhas brancas e roxas, com três pompons na frente e uma gorjeira logo
abaixo da cabeça. Ele não tinha mais cabelo de lã — no lugar, havia um boné branco,
alto e pontudo na cabeça. Seu rosto estava pintado de branco puro e seus olhos
estavam fechados, com linhas pretas desenhadas através deles. A única cor era um
respingo vermelho na mandíbula articulada. Um sorriso.

Como eu já disse, não tenho medo de palhaços e não tenho medo de bonecos. Aquela
coisa era feia, no entanto. Eu fiquei meio aliviada, na verdade, por ter encontrado
algumas coisas velhas do meu avô que eu não teria problema nenhum em jogar fora.
Ou talvez vender. Eles definitivamente eram antiguidades, então poderiam valer alguma
coisa. De qualquer forma, coloquei o boneco palhaço horrível de volta na caixa e fechei
a tampa. Eu definitivamente fechei a tampa.

[PORTA ABRE]

Eu voltei para o calíope. Tinha…

SASHA
Achei que se pronunciasse “Ca-lee-o-pee?”

Arquivista: Sasha? Você voltou mais cedo — pensei que você estava tentando
conseguir aqueles relatórios policiais do caso do Harold Silvana?

Sasha: Tentei e consegui! Eles foram até que bem úteis.

Arquivista: Oh… bem… bom trabalho.

Sasha: Então, o certo é pronunciar “Ca-lee-o-pee” ou “Cuh-ly-o-pee”?

Arquivista: Eu também já ouvi chamarem de “Ca-lee-ope”.

Sasha: Sério? Quem?

Arquivista: Americanos.

Sasha: Ah.

Arquivista: Até onde eu sei, não existe uma pronúncia “correta”. Mas eles foram
originalmente nomeados em homenagem à musa grega Calíope, então…

Sasha: As pessoas vão entender que é da mitologia grega?

Arquivista: Se eles estão trabalhando para o Instituto Magnus, eu espero que sim.

Sasha: Eu geralmente ouço pronunciarem “Ca-lee-o-pee”.

[PORTA FECHA]

Arquivista: O depoimento continua.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Eu voltei para o calíope. Não tinha nenhuma fechadura na tampa, ou qualquer botão
que eu pudesse ver do lado de fora. Eu o abri e as teclas lá dentro brilharam como se
tivessem acabado de ser polidas. Bom, na época eu não sabia como um calíope
funcionava. Eu só pensei que fosse tipo um piano de sopro esquisito. Eu não sabia que
precisava ter uma ventoinha assoprando pro negócio tocar e, mesmo que eu soubesse,
não saberia onde encontrar uma ou como usá-la. Pela lógica, quando me sentei na
frente dele e pressionei a primeira tecla, nada deveria ter acontecido. As quatro fileiras
altas de apitos de latão deveriam ter permanecido em silêncio. Em vez disso, veio um
som alto e uivante de um dos tubos e eu quase caí do banco de surpresa. Uma vez ouvi
falar que o som de um órgão a vapor pode ser ouvido a mais de um quilômetro de
distância, e quando aquele apito estridente soou, eu passei a acreditar.
Comecei a tocar uma canção. Meu avô teve um piano uma vez. Ele havia quebrado uns
anos antes e ele nunca teve dinheiro para comprar outro, mas ele me ensinou o básico.
Tinha uma música que, quando eu era criança, sempre insistia que ele tocasse para
mim. Ele nunca me disse o nome, se é que tinha um. Eu sempre costumava chamar só
de “Mais Rápido, Mais Rápido”, a título de descrição. Uma melodia de circo alegre e
animada que começava insuportavelmente lenta e ganhava ritmo, ficando cada vez
mais rápida até que os dedos do meu avô se tornassem um borrão. Ele sempre fazia a
minha vontade quando eu pedia para ele tocar, e agora eu tocava para ele. Os apitos
uivantes eram quase ensurdecedores naquele espaço apertado. Eu sabia que
provavelmente ouviria reclamações dos vizinhos sobre isso, mas eu não ligava. Eu só
toquei.

A melodia ficava mais rápida, mais frenética, e eu sentia algo crescendo dentro de mim.
Era como se o desfecho final pela perda do meu avô estivesse fora de alcance, e se eu
fosse mais rápido, se tocasse com mais velocidade, eu poderia alcançá-lo. Mas meu
dedo escorregou e a música abruptamente se tornou uma cacofonia dissonante. Nunca
fui tão boa quanto o vovô Nick. Fiquei ali, sentada em silêncio por um minuto. Quando
me virei para sair, porém, vi que o velho baú estava aberto e o boneco palhaço estava
no topo da pilha. Embora seus olhos pintados ainda estivessem fechados, parecia que
ele estava olhando para mim. Seu sorriso parecia um pouco mais largo do que antes.
Fechei o baú e desci a escada.

Eu não pensei muito sobre as coisas esquisitas no sótão durante a semana que se
passou. Eu tinha muitas outras coisas a fazer. Só me lembrei dele quando o Josh
apareceu e me perguntou por que o pequeno buraco do sótão estava aberto. Eu disse
que tinha algo legal para mostrar pra ele e peguei a escada. Ele ficou
compreensivelmente impressionado com o calíope, mas se assustou um pouco com os
bonecos. Eu não percebi que ele estava com medo deles. Ele me fez fechar o baú
quase assim que viu eles, e ficava olhando várias vezes para ter certeza de estava
fechado. Decidi não contar a ele sobre a primeira vez que o baú abriu.

Ele perguntou se eu conseguia tocar alguma coisa no antigo órgão a vapor, então eu
me sentei e comecei a tocar a velha melodia de circo do meu avô. Novamente comecei
a ganhar velocidade, a tocar mais rápido e mais rápido enquanto os apitos começavam
a gritar. Senti uma mão tocar a minha com firmeza, interrompendo abruptamente a
música. Josh ficou ali, tremendo um pouco, seu rosto extremamente pálido. Por
impulso, olhei para o baú de bonecos, mas a tampa estava bem fechada. Perguntei o
que havia de errado e ele disse que não sabia, só queria sair dali. Agora. E assim
fizemos. Descemos do sótão e eu baixei o alçapão de madeira atrás de nós.

As semanas seguintes foram… desagradáveis. Não quero entrar em detalhes. Digamos


que eu descobri que o Josh era só mais um babaca, no fim das contas. Nosso
relacionamento já estava passando por uma fase difícil. Não ajudou que naquelas
últimas semanas ele tenha ficado mal-humorado, temperamental, sempre por um fio.
Quando eu finalmente descobri que ele tinha… É, não importa. Nós terminamos. Isso
me deixou bem desolada, tendo acontecido tão cedo, logo após a morte do meu avô. Eu
só me desliguei de tudo de novo.

Por fim, tropeçar em uma caixa foi o que me fez decidir. Uma daquelas onde eu guardei
todas as coisas do meu avô e nunca cheguei a colocar no sótão. Eu decidi só acabar
com isso. Acho que eu esperava que uma casa mais arrumada me desse mais espaço
para pensar. Então, pela terceira vez, peguei aquela escada e subi no sótão. Não
demorou tanto quanto eu esperava para guardar todas as caixas, e em uma hora eu já
tinha acabado. Eu estava tão empenhada em empacotar todas as minhas memórias que
eu nem sequer tinha olhado para o baú velho. Quando fui descer, olhei por cima e
congelei.
A tampa estava aberta de novo, e o boneco palhaço estava em cima. Ele não estava
olhando para mim dessa vez. Em vez disso, parecia estar encarando um boneco que eu
não tinha visto antes. Esse ainda tinha a mandíbula também, e eu juro que ele se
parecia com o Josh. A mesma jaqueta marrom surrada, os mesmos jeans velhos. O
cabelo preto de lã até fazia aquela coisa esvoaçante que ele sempre passava tanto
tempo arrumando. Ele estava encostado na lateral do baú e eu juro que parecia que o
palhaço estava tentando alcançá-lo. Eu fechei a tampa com força e dei o fora dali.
Comprei um cadeado no dia seguinte.

Olha, eu trouxe uma cópia do boletim de ocorrência que eu fiz, porque vocês têm que
acreditar que eu não toquei aquele calíope de novo. Eu não tive nada a ver com o que
aconteceu com o Josh. Voltei do cinema cerca de uma semana depois para descobrir
que a casa do meu avô — minha casa tinha sido invadida. Aqui, tá tudo no relatório
sobre o roubo que eu dei à polícia. A fechadura da porta da frente tinha sido arrombada
e ela balançava suavemente para a frente e para trás.

A princípio corri para minha sala de estar, meu quarto, mas nada tinha sido levado. Os
eletrônicos, minhas joias — estavam intactos. Senti meu estômago embrulhar quando
percebi e corri em direção ao sótão. Como esperado, estava aberto, o cadeado
arrancado do gancho. O calíope e o baú haviam sumido.

Eles interrogaram meus vizinhos sobre isso. Ninguém tinha visto nada, exceto a Sra.
Harlow da casa ao lado, que disse ter notado duas pessoas levando pedaços de chapa
vermelha e canos de latão. Ela não se lembrava de nenhum detalhe, apenas disse que
eles “pareciam confiáveis” e achou que eu estava mandando mexerem em algumas
coisas. A polícia nunca os encontrou.

Eu só preciso que vocês acreditem nisso — que saibam que eu não toquei aquela coisa
de novo. Não foi minha culpa o que aconteceu com o Josh. Deus sabe que eu o odiava
bastante naquela época, mas… Eu nunca invocaria algo assim sobre ele. Não daquele
jeito. Acho que vocês não precisam que eu conte como encontraram ele. Quatro dias
depois, morto em seu quarto. Sua garganta estava esmagada, e sua mandíbula tinha
sido arrancada. A polícia nunca os encontrou.

Eu nem teria pensado nisso, na verdade. Não teria… juntado as peças, mesmo naquela
hora. A não ser pelo fato de que, nos últimos dias do nosso relacionamento, Josh
estava surtando. Ele me disse que ainda ouvia aquela música do calíope. Distante,
quando ele estava sozinho, e ia ficando cada vez mais perto. Quer dizer… dizem que
você pode ouvir um a quase um quilômetro de distância.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Embora eu tenha o que eu considero ser um ceticismo lógico sobre uma história com
bonecos palhaços assassinos, há algumas coisas que me deixam mais inclinado do que
o normal a acreditar nesse depoimento. Em primeiro lugar, como a Sra. Denikin
mencionou, ela forneceu uma cópia do relatório oficial da polícia sobre o roubo, que
inclui o depoimento de uma tal de Irene Harlow que parece confirmar que a Sra. Denikin
possuía um baú e um órgão calíope, então eles, pelo menos, existiram.

A morte de Joshua Drury também é tão misteriosa quanto ela fez parecer. Além de sua
mandíbula ter sido arrancada do crânio, evidências residuais indicam que sua garganta
foi esmagada com algum tipo de corda, aparentemente tecida com uma lã grossa. Não
havia nenhuma evidência de luta ou de arrombamento, nenhuma evidência de DNA de
ninguém na sala além dele mesmo. Ninguém nunca foi preso pelo crime.
Quando discutimos sobre esse caso, Tim disse que o fez lembrar de alguns artigos que
ele leu sobre circos itinerantes na Rússia e na Polônia durante o início do século 20.
Por curiosidade, procurei alguns dos volumes que ele mencionou na biblioteca do
Instituto e, como esperado, na página 43 do livro de Gregory Petry,  Aberrações e
Seguidores: Circos Nos Anos 1940, encontrei uma cópia de uma velha fotografia em
preto e branco. Ela mostra um pequeno grupo de artistas circenses: um contorcionista,
um engolidor de fogo, dois homens fortes, um mestre de cerimônias e um organista
sentado atrás de um calíope. A fotografia foi datada em 1948 e tirada em Minsk, na
Rússia. Apenas o mestre de cerimônias e o organista têm nomes: Gregor Osinov e
Nikolai Denikin. O nome da trupe era “Цирк другого” (Tsirk druh-grova) — O Circo do
Outro. O nome não me é estranho, mas não consigo encontrar nenhuma outra
referência a ele.

A Sra. Denikin emigrou para o Sudeste Asiático dois anos atrás, então não estava
disponível para um acompanhamento, mas tenho certeza de que deve haver mais
alguma coisa sobre isso em algum lugar dos Arquivos, porque eu sei com certeza que
no Armazém de Artefatos do Instituto Magnus há um órgão calíope a vapor vermelho
brilhante. Quando perguntei ao Elias, ele apenas me disse que o registo da aquisição
“provavelmente está em algum lugar no arquivo”, e ninguém mais sabe de nada além do
fato de ter sido adquirido em meados de 2007. A tampa do teclado está firmemente
trancada e arranhadas na superfície estão as palavras: "Fique quieto, pois aqui há
música estranha”.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
Vamos esclarecer uma coisa agora. Não acho que eu deveria estar aqui. O que
aconteceu foi muito estranho e tenho certeza de que foi ilegal, mas não pode ter sido
realmente sobrenatural, tipo fantasmas e essas coisas. Isso não é real. Sem ofensas,
eu acho. Só estou aqui porque contei à Kathy o que aconteceu e ela insistiu que eu
contasse ao seu Instituto. Ela é mais aberta pra esse tipo de coisa do que eu. Talvez
seja por isso que ela escolheu viver com a Natalie.

Desculpa, eu devia começar do começo. Kathy é minha namorada. Katherine Harper.


Estamos namorando há cerca de um ano e meio. Ela se formou no ano passado, mas
eu estou cursando medicina, então não vou sair de Londres por mais alguns anos. Ela
conseguiu um emprego como professora estagiária em East Ham, então acabou ficando
também. Devo admitir que fico feliz com isso, não tenho certeza se me daria bem em
um relacionamento à distância. Enfim, o plano inicial era irmos morar juntos mais cedo,
mas as coisas não saíram como planejado e isso foi antes de ela conseguir o emprego,
então ela teve que voltar a morar com os pais por um tempo. Resumindo, eu tive que
dividir uma casa com alguns outros estudantes de medicina, e ela veio pra cá depois,
indo morar com Natalie Ennis.

Não sei onde Kathy a conheceu — elas sempre foram amigas, mas acho que ela não
estava na mesma faculdade que a gente. Ela nunca mencionou se estava. Kathy
cresceu em Londres, então talvez elas fossem amigas da escola ou algo assim. Ela
parecia legal, quando a conheci. Quieta, mas legal. Ela era muito séria, no entanto. Não
sei se algum dia eu realmente a ouvi rir. Talvez ela simplesmente não achasse as
minhas piadas engraçadas, vai saber. Ela também era religiosa. Nunca tive muito tempo
para Deus, e a Kathy também não. É por isso que eu fiquei meio surpreso na primeira
vez que visitei a nova casa dela e encontrei um versículo da Bíblia emoldurado na
parede. Não consigo me lembrar qual era. Algo sobre Jesus e fé, eu não sei muito
sobre a Bíblia. Kathy disse que era de Natalie. Ela não se importou em colocar aquilo
na sala de estar. A Kathy é legal assim mesmo, sabe? Só deixando as pessoas serem
elas mesmas.

Eu e a Natalie… não nos dávamos bem. Não sei se você percebeu — a gente não se
odiava nem nada assim, só… não tínhamos nada em comum. Ela não assistia TV ou
filmes, e eu não sabia nada sobre crochê, política ou Deus, que eram praticamente seus
únicos interesses. A Kathy sempre tentava convencê-la a sair conosco, e ela
simplesmente dizia não, o que estava bom para mim. Ela sempre parecia bem feliz,
entretanto, enganchando fios no que quer que estivesse tricotando na época, lendo
algum livro chato sobre a história política do gorro ou algo assim.

Isso mudou no outubro passado, quando a mãe da Natalie morreu. Não sei exatamente
como aconteceu — insuficiência cardíaca, eu acho. Foi repentino, disso eu sei, e
acabou com ela. Quer dizer, obviamente sim, era a mãe dela, mas eu acho… Acho que
ela perdeu a fé. O versículo da Bíblia não estava na parede na próxima vez que eu fui
lá, e quando perguntei à Kathy sobre isso, ela me olhou como se eu não devesse tocar
no assunto. Não vi muito a Natalie depois disso. Ela ainda estava por lá, às vezes eu a
via indo até a cozinha para pegar comida ou chá ou algo assim, mas fora isso ela
apenas ficava em seu quarto.

Até aqui, tudo certo, né? Você perde sua mãe e isso acaba com você. Aquele mês foi
triste, mas não é sobre isso que a Kathy queria que eu conversasse com vocês. Não…
foi o que aconteceu depois. Foi depois que a Natalie encontrou sua nova igreja. Foi a
Kathy quem me contou. Isso deve ter acontecido cerca de dois meses depois que a
mãe da Natalie morreu. Eu devo ter perguntado como ela estava, se ela estava se
sentindo melhor. Kathy disse que sim, ela estava — aparentemente, ela havia
encontrado uma nova congregação e parecia estar encontrando algum conforto lá. Ela
não estava mais chorado tanto à noite, disse Kathy, e não ficava mais tão irritada
quando ela tentava conversar. Percebi que o versículo da Bíblia não havia voltado pra
parede, no entanto.

Achei que se ela estivesse melhor, eu provavelmente veria a Natalie mais


frequentemente enquanto eu estivesse com a Kathy, mas na verdade ela desapareceu
completamente. Ela nunca parecia estar quando eu ia pra lá. Eu a via sair à noite e
voltar para casa de manhã cedo, quando o céu estava começando a clarear. Ela ia
direto para o quarto, nos ignorando completamente. Uma vez, quando eu perguntei a
ela onde ela tinha ido, ela só respondeu “igreja”. Eu fiz mais algumas perguntas, mas
ela me encarou daquele jeito estranho até eu me apavorar e sair da sala. Eu brinquei
com a Kathy que sua colega de apartamento estava se transformando em uma vampira,
mas em vez de rir ela apenas ficou na defensiva e disse que a Natalie não poderia ser
uma vampira. Então ela começou a listar todas as vezes que viu ela sob a luz do sol
antes de se mandar. Acho que nós dois percebemos como seria complicado listar o
número de vezes que ela vira a Natalie à luz do dia.

Outras coisas estranhas também começaram a acontecer no apartamento. As lâmpadas


não paravam de piscar, pra começo de conversa. Bom, isso não é completamente
verdade. Sempre parecia que quando entrávamos depois de escurecer, tentávamos
acender as luzes e, bom, nada acontecia. No começo a gente só jogou as lâmpadas
velhas fora e as substituímos, mas isso continuava acontecendo. Verificamos os
fusíveis, os soquetes, Kathy até ligou pro proprietário para chamar alguém pra verificar
a fiação, mas tudo parecia normal. As luzes continuavam não funcionando, no entanto.
Aí eu tive uma ideia. Da próxima vez que aconteceu, em vez de trocar a lâmpada, eu
apenas dei uma rosqueada. E, simples assim, ela voltou a acender. Na primeira vez que
isso aconteceu, fiquei tão surpreso que quase caí da cadeira em que eu estava. As
lâmpadas não estavam quebrando, alguém as estava desenroscando. Não muito, não o
suficiente para que pudéssemos perceber, só o suficiente para que elas não
funcionassem. Eu digo que “alguém” estava fazendo isso, mas só podia ter sido uma
pessoa. Por algum motivo, Natalie estava desenroscando todas as lâmpadas do
apartamento sempre que podia.

Foi então que a Kathy começou a parecer muito cansada. Ela não parava de cochilar
quando saíamos para jantar e costumava se distrair quando estávamos assistindo TV.
Eu perguntei a ela sobre isso, mas ela só ignorava e dizia que não andava dormido
bem. Foi só quando ela ficou tão cansada que quase saiu na frente de um carro
enquanto estava atravessando a rua que eu finalmente consegui fazer ela me contar o
que estava acontecendo. Ela disse que a Natalie começou a ficar em casa durante a
noite, mas ela era tão barulhenta que não a deixava dormir. Natalie ficava vagando pela
sala e cantando em um idioma que Kathy não conhecia, e a melodia era tão dissonante
que a fazia estremecer. Natalie parava de cantar se ela fosse para a sala, mas aí ela só
ia para o próprio quarto e a música começava novamente.

Kathy até disse que mesmo quando a Natalie saía, sempre à noite, ainda ouvia
barulhos de movimento vindos de quarto dela. Barulhos, batidas e, ocasionalmente, o
som de algo sendo jogado no chão. Ela tinha chegado perto de abrir a porta várias
vezes, mas nunca arrumava coragem pra fazer isso. Parecia ficar mais alto quando ela
estava tentando dormir, e uma vez ela pensou que tinha mudado pra sala de estar, mas
ela não saiu para verificar. Então, não, a Kathy não estava dormindo muito. Ela
começou a ficar bastante na minha casa, já que ela disse que simplesmente não
aguentava morar sozinha com a Natalie.

Uma noite, ela apareceu na minha casa com lágrimas nos olhos. Eu a levei para o meu
quarto e a sentei na cama. Ela me encarou por alguns segundos e eu estava prestes a
perguntar o que havia de errado quando ela começou a falar. Ela disse que a Natalie
tentou “convertê-la”. Ela tinha ido ao quarto da Kathy mais cedo naquela noite, bateu na
porta, muito educada, parecia mais animada do que nunca desde a morte de sua mãe,
e perguntou se a Kathy queria jantar e conversar. Bom, obviamente, Kathy estava há
meses querendo conversar sobre se mudar, mas ela nunca estava num bom momento,
então ela agarrou a chance.

A sala de jantar estava escura. Natalie deve ter desenroscado a lâmpada de novo
porque o interruptor não fez nada. Pequenas frestas da luz do luar que entravam pelas
cortinas forneciam luz suficiente para ver a mesa e duas tigelas em cada extremidade.
Natalie sentou-se em uma ponta e acenou para Kathy sentar na outra. Kathy queria
fugir, mas… não sabia bem como. Ela disse que pareceria… rude. Então ela se sentou
e tentou comer o que a Natalie havia preparado. Ela achava que parecia ser espinafre,
mas se fosse, deve ter sido fervido por muito tempo e tudo o que restava era uma papa
pegajosa e mole. Estava frio como pedra, e ela mal conseguiu comer duas garfadas
antes de começar a gorfar; era tão viscoso. Ela empurrou o prato o mais delicadamente
possível. Ela disse que Natalie apenas assistia, nem mesmo olhando para sua própria
tigela.

Por fim, Kathy conseguiu reunir coragem para falar e disse que queria se mudar. Houve
silêncio por um longo momento, e então Natalie disse que ela também queria. Admito
que suspirei de alívio quando Kathy disse isso, mas ela balançou a cabeça e continuou.
Natalie começou a falar, muito mais do que ela tinha falado nos últimos tempos. Ela
disse que precisava se mudar, que tinha uma nova casa para onde ir, uma nova família.
Ela disse que todos eles iriam, que 300 anos era muito tempo para esperar, mas ela
teve sorte de tê-los encontrado tão perto do fim. Ela disse que não demoraria muito até
que eles fossem coletados pelo Sr. Pitch. Ela disse que a Kathy podia ir também, se ela
quisesse. Ela podia ser salva.

Foi nesse ponto que a Kathy percebeu que Natalie estava falando sobre a “igreja” dela.
Ela ficou… muito assustada e se levantou, agradecendo à Natalie e dizendo que não
era muito adepta ao cristianismo. E Natalie riu disso. Riu muito e por um longo tempo,
nunca quebrando o contato visual. Ela disse: “Não, mas você nasceu para Eles. Você
está cultuando enquanto conversamos.” Foi nesse momento que Kathy correu e veio
pra minha casa. Natalie não tentou impedi-la.

Nesse ponto, eu já estava muito puto. Se a Natalie queria entrar pra algum culto
estranho — e agora nós dois tínhamos certeza de que era isso — aquilo era problema
dela, mas ela estava assustando a Kathy. Não tinha como eu deixar aquilo passar. Eu
disse que estava indo ao apartamento dela e que ia conversar com a Natalie. Não sei o
que eu pretendia fazer, quer dizer, eu não ia bater nela nem nada; eu só precisava
deixar claro que você não pode simplesmente ferrar com a vida das pessoas assim.
Kathy me disse para não ir, mas ela não estava em condições de me impedir. Entrei no
carro e comecei a dirigir.

Era uma noite nublada e, sem a lua, as ruas estavam escuras. As lâmpadas na estrada
pareciam opacas, e até mesmo os meus faróis não iam tão longe quanto eu achava que
deveriam ir. Não era longe até a pequena casa. Eu não esperava que nenhuma luz
estivesse acesa, mas a escuridão silenciosa do lugar ainda causava arrepios na minha
espinha. Eu tinha uma chave da porta, então eu entrei. Eu peguei uma lanterna do meu
carro e, pra variar, as luzes não estavam acendendo. O corredor estava silencioso, mas
eu estava com os nervos à flor da pele e comecei a olhar um cômodo de cada vez.
Nada. Não havia nenhum sinal da Natalie.

Eu fiquei lá, em frente ao quarto dela. Ele tinha apenas uma porta corta-fogo normal de
madeira, mas minha mão ainda hesitou quando a estiquei para abrir. Eu sabia que
estava vazio, àquela altura eu tinha certeza de que ela não estava em casa. Ainda
assim, eu estava começando a sentir aquele medo que a Kathy tinha descrito, e vi que
a minha mão tremia. Tentei ignorar — cerrei os dentes e abri a porta.

O quarto estava vazio, como eu imaginava. Mas não só porque Natalie não estava lá —
ele estava completamente vazio. Sem mobília, sem pertences, nada. O carpete havia
sido arrancado, deixando as tábuas descobertas do piso expostas, e o papel de parede
tinha sido retirado. Tudo aquilo tinha sido juntado e pregado contra a única janela do
quarto, deixando-a completamente coberta. Nenhuma luz de fora entrava, e a lanterna
era a única razão pela qual eu ainda conseguia enxergar. Comecei a olhar em volta em
busca de qualquer pista do que Natalie estava fazendo ou de onde ela estava.

No canto, meio jogado entre as tábuas, avistei um pedaço de papel. Era pequeno e
grosso e parecia ter algo escrito nele. Ao pegá-lo, eu pude ver três palavras:
Dissidentes de Hither Green. O outro lado tinha uma espécie de símbolo, feito com uma
caneta hidrocor grossa: uma linha curva, com quatro linhas retas saindo de um lado
dela. Como um olho fechado. Eu guardei o papel, e o seu Instituto pode ficar com ele,
se vocês quiserem. Não é como se a polícia estivesse interessada nisso.

Liguei para Kathy para contar o que eu havia encontrado. Ela estava preocupada
comigo, mas também com a Natalie. Seja lá o que fosse essa igreja estranha à qual ela
se juntou, acho que nós dois concordamos que poderia fazer mal ela. Muito mal. Kathy
queria ligar para a polícia, mas eu disse a ela que aquilo não era o suficiente para ser
considerado um crime. Ainda não. Eu disse a ela que continuaria procurando. Eu posso
ter mentido, pra ser sincero, e dito que só iria dar mais uma olhada pela casa, mas…
bom, eu pesquisei sobre Dissidentes de Hither Green e parecia haver uma antiga
capela abandonada, a Capela dos Dissidentes de Hither Green, em um cemitério perto
de Lewisham. Eu tinha decidido que precisava dar uma olhada. Não faço ideia do que
eu esperava encontrar. O suficiente para chamar a polícia, eu acho.

Agora já passava da meia-noite; o caminho não era muito difícil. Ainda havia aquela
densidade no ar, uma escuridão pesada que amortecia toda a luz. Como se alguém
tivesse diminuído o brilho em Londres. Encontrei uma vaga de estacionamento não
muito longe do Cemitério de Hither Green e comecei a andar em sua direção. Os
portões de ferro estavam totalmente abertos, então eu entrei.

O cemitério em si não era tão ruim quanto eu esperava. Até que parecia bastante
tranquilo. A escuridão caía bem nele, e as lápides permaneciam silenciosas e firmes. Eu
andei ao longo do caminho, até que minha lanterna iluminou um pequeno prédio. A
capela. Era minúscula, cercada por uma cerca temporária que parecia já estar lá por
tempo suficiente para ter se tornado permanente. Tinha um único campanário pontudo,
e as janelas eram cobertas com tábuas velhas que pareciam ter sofrido com a chuva.
Tinha apenas uma única passagem, um par de portas fixadas na entrada. Para minha
surpresa, elas estavam abertas. Chamei por Natalie, gritei e perguntei se havia alguém
ali, mas só houve silêncio.

Eu não deveria ter entrado — é claro que eu não deveria ter entrado. Eu não sou tão
idiota assim, eu nunca fui tão idiota assim. Mas, por alguma razão, parado naquele
cemitério escuro e vazio, eu decidi dar uma olhada lá dentro.

Foi fácil passar pelas barreiras. Eu ainda estava com a minha lanterna, mas ela não
iluminava muito lá dentro. Eu entrei devagar, jogando a minha luz sobre tudo, apenas
no caso de ter uns cultistas malucos encapuzados esperando para pular em mim, mas
havia apenas bancos velhos e quebrados, garrafas descartadas e pontas de cigarro —
os resíduos normais que qualquer prédio abandonado acumula. Eu estava prestes a me
virar e sair quando a minha lanterna apagou.

Imediatamente fui jogado na escuridão completa. Nenhuma luz entrava pela porta, eu
não conseguia nem ver onde a porta estava, tudo ao meu redor estava escuro como
breu. Tentei fazer com que a lanterna acendesse de novo, girando a lâmpada e batendo
nela, já entrando em pânico. Tentei tirar as pilhas e colocá-las de volta, mas eu não
conseguia ver nada e acabei me atrapalhando e deixando elas caírem. Me ajoelhei e
tentei tatear para encontrá-las, mas o chão parecia… estranho. Eu não prestei muita
atenção nisso quando entrei, mas o chão estava lascado, empoeirado e coberto com
uma camada de lixo, mas… quando comecei a tatear em busca das pilhas, ele parecia
suave, limpo e muito frio, como mármore ou algo assim.

Gritei por ajuda, mas minha voz apenas ecoou no silêncio. Aí a cantoria começou.
Parecia haver dezenas de vozes, mas elas não cantavam direito juntas. Alguns
cantavam muito alto e outros tão baixo que faziam meus dentes doerem. As palavras
estavam em algum outro idioma, mas lembro que eles continuavam se juntando nas
palavras “Nee-allisand” ou “allisunt”, eu acho. Eu estava surtando, então me levantei e
comecei a andar para frente o mais rápido que eu podia, minhas mãos esticadas à
minha frente no caso de eu bater em alguma coisa. A capela não podia ter mais de dez
metros de comprimento e talvez seis de largura, mas caminhei por bem mais de um
minuto sem bater em nada. Eu apenas cambaleei na escuridão completa, com aquela
cantoria horrível pra todo lado. Em algum momento eu sinceramente pensei que tinha
morrido e ido para o inferno.

Finalmente, meus dedos roçaram em algo. Estava frio como o chão, mas áspero.
Parecia metal enferrujado. Tiras finas de metal enferrujado em um padrão cruzado, com
pequenos espaços entre elas. Pelo menos, era isso que parecia. Não segurei elas por
muito tempo, porque quando minhas mãos repousaram ali, eu senti… dedos se
estenderem pelos buracos e tentarem me agarrar. Eu não conseguia vê-los, mas eles
pareciam endurecidos enquanto roçavam na minha pele.

Eu gritei e pulei para trás, caindo no chão e, ao fazer isso, senti algo duro me cutucar
no quadril. Meu celular. Com tudo que aconteceu, eu tinha esquecido dele. Eu o peguei
e apertei o botão e a tela se iluminou, fraca e quase invisível, mas comecei a chorar
como se fosse a primeira luz que eu visse em meses. Ela não iluminou mais nada, mas
quando o canto começou a crescer, fui desesperadamente para a função da lanterna e
a acendi. E ela acendeu em um súbito lampejo de brilho e a cantoria parou.

No silêncio, lancei a lanterna improvisada à minha frente e vi um banco quebrado. O


chão estava mais uma vez coberto de lixo e eu podia ver a porta atrás de mim, que
dava para a noite. Eu corri, ligando primeiro para Kathy e depois para a polícia.

Eles não encontraram nada, é claro. Eles me deram uma bronca sobre invasão de
propriedade e registraram um relatório de desaparecimento sobre a Natalie. Nada foi
encontrado e, até onde eu sei, ela ainda está desaparecida. Não contei à Kathy
exatamente o que aconteceu por algumas semanas, mas quando finalmente contei, ela
me fez vir aqui e falar com vocês.

Acho que isso é tudo. Posso ir agora?

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

A última parte, evidentemente, é a que incita o meu ceticismo, mas vamos deixar isso
de lado por agora e discutir os outros detalhes. Sasha confirmou que Natalie Ennis foi
dada como desaparecida pelo Sr. Bilham em 11 de março de 2015. Não houve pistas
sobre a localização dela além do pedaço de papel mencionado no depoimento, e
nenhum vestígio de qualquer igreja ou culto foi encontrado dentro da Capela de Hither
Green ou no cemitério ao redor dela. Quando entramos em contato com o Sr. Bilham e
a Sra. Harper para fazer um acompanhamento, nenhum deles teve notícias dela no ano
seguinte, nem tinham nada a acrescentar ao depoimento.

O símbolo no pedaço de papel realmente lembra um olho fechado estilizado, e há


muitos outros paralelos com o depoimento 0020312 para me fazer suspeitar — e é só
uma suspeita, por enquanto — que a Igreja do Povo da Hóstia Divina ainda exista.
Também digno de nota, as palavras “Ny Alesund”. Não sei ao certo se o Sr. Bilham se
lembrava delas corretamente, mas Tim apontou que Ny-Ålesund é na verdade uma
pequena cidade na Noruega. Na verdade, com exceção de instalações de pesquisa, ela
é o povoado humano mais ao norte da Terra, localizado a uma latitude norte de
78°55′30″. É uma cidade empresarial, que pertence e é operada por Outer Bay, mas o
que isso tem a ver com o relato do Sr. Bilham ninguém sabe. Supondo que isso não
seja tudo coincidência. Essa distância ao norte… durante o inverno… as noites podem
durar por um bom tempo.

Martin encontrou outra coisa enquanto vasculhava os relatórios policiais sobre área de
Hither Green. Cerca de um mês após o depoimento, em 15 de maio de 2015, a polícia
foi chamada para investigar novamente a capela. Os vizinhos aparentemente ouviram
gritos vindos de dentro pouco depois das 23 horas, mas quando os policiais chegaram,
não encontraram nada que indicasse qualquer tipo de incidente ou crime. Eu adoraria
ignorar isso… se não fosse pelo fato de que, de acordo com o arquivo oficial, 15 de
maio de 2015 foi o dia em que Gertrude Robinson, minha antecessora, faleceu.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Tem certeza de que você tá bem pra fazer isso agora? Você pode tirar alguns dias de
folga pra se recuperar, se precisar.
SASHA
Não, tá tudo bem. O Tim foi pegar um café pra mim, e eu prefiro falar disso enquanto
ainda tá fresco na minha mente. Aliás, você não deu folga pro Martin quando ele teve
uma experiência ruim.

Arquivista: O Martin teve que começar a morar nos arquivos. Quer dizer, não tinha
como eu dar a ele uma folga no escritório. De qualquer forma, ele não foi ferido.

Sasha: Foi só um arranhão, John. Eu vou ficar bem. Podemos começar?

Arquivista:  Ok. Depoimento de Sasha James, assistente de arquivo do Instituto


Magnus, Londres, a respeito de…

Sasha: Vamos apenas chamar de “uma série de aparições paranormais”.

Arquivista: Depoimento gravado direto do indivíduo em 2 de abril de 2016.

Sasha: Certo. Bem, tenho certeza de que você já sabe como eu estava cética sobre o
quão perigosa essa Jane Prentiss é quando você sugeriu que o Martin ficasse no
arquivo. Quer dizer, não que eu não tenha acreditado nele sobre o que aconteceu, só
parecia… Bom, o Martin é um ótimo pesquisador, mas seus instintos de
autopreservação não são lá muito fortes e, pra ser sincera, pensei que se essa Prentiss
fosse mesmo esse perigo todo que todo mundo pensa, então ele com certeza já estaria
morto.

Não me entendam mal — digo, eu li os mesmos depoimentos e perfis que você, então
eu sei quantas pessoas morreram por causa dela. Foram o quê, seis funcionários do
hospital quando ela foi admitida pela primeira vez?

Arquivista: Seis por infestação e um sétimo com o pescoço quebrado durante a fuga


dela.

Sasha: Mas isso foi dois anos atrás, e seja lá o que ela for agora, parece que sua
condição está degenerando. Eu só não sabia quanto dano ela ainda seria capaz de
causar. Então, acho que… Eu não tomei tanto cuidado quanto deveria quando estava
entrando no Instituto ontem. A questão é: eu ainda não tenho certeza do quão
ameaçadora ela é. Já vi vários desses vermes prateados se contorcendo lá fora, assim
como você, e eu fiz questão de pisar neles todas as vezes. O que aconteceu só tornou
as coisas mais… complicadas, eu acho. Não sei direito o que pensar.

Vou começar com a primeira coisa que eu notei. Eu moro perto de Finsbury Park e o
meu prédio é antigo — vitoriano, eu acho — e apesar de ter sido reformado e muito
bem conservado, ele tem várias peculiaridadezinhas estranhas. Uma delas é as janelas.
As janelas de dentro dos apartamentos são boas, mas as escadarias têm vidros
ligeiramente distorcidos, onde as janelas têm aquelas bolhinhas. Olhar para a rua
abaixo pode ser um pouco esquisito, pois o vidro desvia a luz e distorce o que quer que
esteja abaixo dele. Eu nunca prestei muita atenção nisso até alguns dias atrás, mas não
é uma coisa nova.

Foi anteontem que eu vi pela primeira vez. Quando eu desço as escadas pela manhã,
às vezes gosto de passar alguns segundos olhando pela janela para as pessoas na rua
lá embaixo. Eu mexo a cabeça para vê-las através do vidro distorcido, e elas se
deformam como em um espelho de um parque de diversões. É meio idiota, mas eu
tenho um trajeto bem monótono até chegar em Victoria, então me divirto como posso.
Bem, naquela manhã parei diante da janela e notei que uma das figuras deformadas
abaixo estava… meio estranha. Parecia muito alta, os membros e o corpo eram muito
finos e quase ondulados, como se não tivessem nenhuma estrutura ou ossos. Eu não
conseguia distinguir um rosto, mas as mãos eram o mais bizarro. Elas pareciam estar
esticadas e infladas pela luz distorcida, até ficarem quase do tamanho do resto do torso.
Os dedos eram longos e rígidos e pareciam terminar em pontas afiadas. Ele estava
completamente imóvel, e eu podia senti-lo me encarando.

Movendo a cabeça para o lado, vi que a pessoa para quem eu estava olhando era um
homem grande com longos cabelos loiros. Ele não estava parado e nem estava de
frente para mim, na verdade ele andava ao redor da vitrine da floricultura em frente ao
meu prédio. Nada sobre o cara parecia especialmente fora do normal, mas fiz uma nota
mental pra ficar de olho nele. Olhei de novo por trás das bolhas do vidro distorcido, e de
novo eu vi aquela figura alta com seus braços flácidos e mãos enormes.

Olha, você me conhece, John. Eu não sou exatamente a pessoa mais corajosa do
mundo, eu geralmente evito o terror e tendo a ficar longe das montanhas-russas nas
raras situações em que tenho a chance de andar nelas. Então eu fiquei tão surpresa
quanto todo mundo que essa figura inegavelmente sinistra não estava me causando
mais angústia. Quer dizer, eu estava um pouco nervosa, claro. Eu nunca tive nenhuma
experiência direta com o sobrenatural antes e quanto mais eu olhava, verificava e
verificava de novo, mais certeza eu tinha de que “sobrenatural” era exatamente o que
aquilo era. Para ser sincera, eu fiquei surpresa com o quão rápido eu aceitei isso.
Sempre me considerei meio cética e, até recentemente, eu diria que trabalhar no
Instituto só me tornava ainda mais cética.

Enfim, eu observei por cerca de dez minutos, até que o homem loiro comprou um
pequeno ramo de lírios e foi embora. Assim que ele se foi, a figura distorcida com as
mãos longas também desapareceu. Desci para a rua e fui até a floricultura. A mulher
que trabalhava lá me lançou um olhar um tanto confuso quando eu perguntei se havia
apenas um homem alto e loiro em sua loja. Ela disse que sim, havia; e não, ela não
tinha notado nada de estranho; e se eu estava querendo comprar flores. Eu também
fiquei bem confusa e meio nervosa quando saí. Eu já estava atrasada para o trabalho,
então decidi ignorar e apenas ficar de olho.

Como esperado, não demorou muito para que eu o visse novamente. Há um pequeno
café onde eu geralmente entro quando vou para o trabalho de manhã. Eu amo o prédio
do Instituto, claro, é lindo, mas do ponto de vista financeiro, eu realmente gostaria que
não fosse em Chelsea. Tudo por aqui é tão caro. Eu geralmente desço na estação
Victoria. É uma caminhada longa, mas muito bonita, e me dá a chance de pegar um
café no caminho. Como eu disse, eu estava atrasada naquela manhã, então fiquei meio
indecisa sobre se eu deveria comprar um, mas quando olhei pela janela, vi uma figura
familiar em uma das mesas no canto. Mais uma vez, o loiro não estava olhando na
minha direção, nem parecia dar qualquer indício de que sabia da minha existência. Mas
ele estava lá, e eu estava prestes a entrar e confrontar ele quando percebi a hora e
decidi que ir para o trabalho era mais importante. Além disso, como é mesmo aquele
velho ditado? “Uma vez é acaso, duas vezes é coincidência, três vezes é ação inimiga”.
Decidi que se ele aparecesse uma terceira vez, eu perguntaria… alguma coisa. Eu não
sei bem o que eu estava planejando perguntar a ele. “Você secretamente é um
monstro?” provavelmente teria sido um ótimo começo.

Quando cheguei aqui, percebi que não precisava ter me preocupado tanto com o tempo.
Você estava discutindo com o Tim sobre… hum, quem é aquele arquiteto por quem ele
está obcecado?

Arquivista: Robert Smirke.

Sasha: É, esse mesmo. Então, eu estava começando a me arrepender de não ter pego
um café e conversado com o monstro alto e loiro, já que não parecia que eu teria
perdido muita coisa. Continuei meu trabalho, fiz alguns arquivamentos, comparei alguns
depoimentos com relatórios de incidentes da polícia. Quer dizer, acho que não preciso
dizer o que um dia de trabalho nos arquivos envolve. Foi um dia tranquilo, exceto
quando o Martin pensou ter visto um daqueles vermes prateados e passamos meia hora
procurando por ele.

Arquivista: Sim. Eu lembro.

Sasha: Qual é, não é culpa dele estar sendo perseguido por uma colmeia ambulante
esquisita.

Arquivista: Eu sei, mas tinha que ser o Martin, né? Quer dizer, tudo que dá errado por
aqui, sempre parece acontecer com ele. Enfim, estamos saindo do assunto. Por que
você não relatou isso?

Sasha: Sério? Se uma pessoa normal viesse com essa história, você teria rasgado
esse depoimento em pedaços. Não, eu decidi que conseguiria mais evidências ou nem
valeria a pena comentar. Nada mais aconteceu até eu sair do trabalho. Devia ser cerca
de seis e meia, então o sol estava quase começando a se pôr e eu voltei para Victoria.
A primeira coisa que notei fora do comum foi que o café ainda estava aberto.
Normalmente fecham por volta das seis horas, mas as luzes estavam acesas e a porta
aberta. Não consegui ver ninguém atrás do balcão, porém, e havia apenas um cliente.
Ele estava sentado exatamente na mesma posição que estivera naquela manhã,
bebendo o que poderia facilmente ser exatamente o mesmo café.

Olhei em volta para ver se havia mais alguém que pudesse confirmar o que eu estava
vendo. A rua estava vazia, mas quando eu olhei, um carro passou. No vidro curvo das
janelas escuras, eu o vi ali — o corpo estranho e distorcido, magro e flácido, as mãos
enormes e afiadas. E então o carro passou e eu me virei para ver um homem normal.
Mas agora, pela primeira vez, ele estava olhando para mim. Ele gesticulou para a
cadeira em frente a ele, claramente me convidando para entrar. Não sei por que eu não
estava com mais medo de entrar lá, mas eu não estava. Minha curiosidade
aparentemente superou meu nervosismo.

Ele não falou quando eu me sentei e vi que sua xícara de café estava vazia. O que quer
que estivesse dentro havia secado horas atrás. Ele parecia estar esperando que eu lhe
fizesse uma pergunta, então eu perguntei o que ele era. Ele riu disso, o primeiro som
que eu o ouvi fazer, e parecia… anormal. Como se ele estivesse rindo baixinho, mas
alguém tivesse aumentado o volume para que eu pudesse ouvir. Ele disse que não
importava o que ele era, que ele não poderia descrever mesmo se quisesse. Qual foi a
frase que ele usou? “Como uma melodia se descreveria quando questionada?”

Isso me deixou um pouco desconcertada, pra ser sincera, e eu disse a ele que se ele
fosse falar em charadas idiotas, eu simplesmente iria embora. Ele acabou se
desculpando e disse que eu poderia chamá-lo de Michael. Eu não queria chamá-lo de
Michael; não parecia encaixar, de alguma forma, e a maneira como ele falou me fez
pensar que aquele definitivamente não era o nome dele. Ainda assim, não era como se
eu tivesse qualquer outro nome pra ele. Não, não pra ele. Para aquilo.

Ele ficou lá, claramente esperando que eu fizesse outra pergunta, então eu fiz. Eu
perguntei o que ele queria, e ele me respondeu que queria ajudar.

Arquivista: Ajudar? Com… o quê?

Sasha: Foi o que eu disse. Ele queria deter a Jane Prentiss? Ele riu aquela risada
estranha de novo e me disse que eu não fazia ideia do que realmente estava
acontecendo. Mas não parecia que ele tinha qualquer intenção de me dizer, só parecia
que ele estava se divertindo com as minhas tentativas de entender. Aí ele disse que não
se importava se eu ou os meus companheiros vivêssemos ou morrêssemos, mas que “a
colmeia de carne era sempre imprudente”. Ele disse que queria fazer amizade. Quando
disse isso, ele colocou a mão sobre a minha, e podia até parecer uma mão humana,
mas era pesada. Parecia uma… bolsa de couro molhada cheia de pedras pesadas.
Pedras afiadas.

Eu puxei minha mão rapidamente e me levantei para sair. A essa altura, eu já estava
cansada dessa coisa estranha que parecia uma pessoa, mas não era uma pessoa, e
falava em enigmas. Ele nem se moveu pra me impedir quando eu me dirigi para a porta.
Quando eu estava prestes a sair, porém, ele me chamou e disse que se eu estivesse
interessada em salvar a sua vida, ele estaria esperando no Cemitério de Hanwell.

Arquivista: Espera, salvar a minha vida?

Sasha: É. Ele falou o seu nome. O seu… E o do Martin. E o do Tim.

Arquivista: Isso é… preocupante.

Sasha: Foi mesmo. Na hora, eu só tentei ignorar — fui para casa e dormi o máximo que
pude. Não sei se você percebeu como eu estava cansada ontem, com as piadinhas de
primeiro de abril do Tim e tal.

Arquivista: Nem me lembre.

Sasha: Bom, eu tava meio exausta. Eu dei uma olhada no café no caminho até aqui e
no caminho de volta pra casa. Eu até fui lá durante o meu almoço, mas Michael não
estava lá. Parte de mim queria te contar isso imediatamente, prestar um depoimento,
mas mesmo se você acreditasse em mim, eu sabia que você tentaria me convencer a
não ir ao Cemitério de Hanwell, e eu tinha acabado de decidir que eu iria. Eu não sabia
se o que Michael havia dito era uma ameaça, um aviso ou só uma mentira, mas decidi
que não podia correr o risco. Então eu fui ao cemitério.

O sol estava começando a se pôr quando cheguei lá, e os portões do cemitério estavam
iluminados com o laranja brilhante da luz desaparecendo. Tinha chovido mais cedo
naquele dia, e as poças de água refletiam as cores vivas do céu. Hanwell é um
cemitério antigo e, além dos muros, eu pude ver as lápides velhas e desgastadas em
silêncio. No fim das contas, eu não precisei entrar.

Michael estava esperando por mim próximo aos portões altos de ferro quando eu
cheguei. Vislumbrei seu reflexo em uma das poças fundas de água da chuva e
estremeci ao ver de novo — o corpo deformado e as mãos ossudas e inchadas.

Ele não disse nada quando eu cheguei, apenas acenou para que eu o seguisse. Não
faço ideia de quanto tempo ele ficou parado ali, esperando por mim. Eu esperava que
fossemos para o cemitério, mas em vez disso Michael começou a descer a estrada em
direção a uma fileira de casas ali perto. A placa na estrada dizia “Azalea Close”. A
maioria dos prédios estava em bom estado de conservação, mas havia um no final que
parecia abandonado. Pode ter sido um pub em algum momento, mas agora todas as
janelas estavam forradas com placas de metal e cobertas de sujeira e pichações. A
porta, no entanto, estava aberta e balançando suavemente. Michael entrou, claramente
esperando que eu o seguisse, então eu fui.

O interior estava escuro e empoeirado. Eu fiquei brava comigo mesma por não ter
pensado em trazer uma lanterna, mas só o suficiente do sol poente entrava pela porta
para que eu pudesse enxergar. Claramente tinha sido um pub, e o bar parecia estar
intacto, embora estivesse repleto de carunchos. Em cima dele estava o que parecia ser
um kit de construção, com uma caixa de ferramentas e um pequeno extintor de
incêndio. Eu estava prestes a perguntar ao Michael por que estávamos ali, quando ouvi.
Um gemido baixo e úmido vindo do outro lado da sala, onde a luz não alcançava.
Parecia alguém com bastante dor.

Eu caminhei em direção ao barulho. Conforme eu me aproximava, meus olhos


começaram a se ajustar e eu vi que o chão estava coberto de formas pálidas e
contorcidas. Eu ouvi o depoimento do Martin depois que você o gravou, então eu sabia
o que esperar. Mas ouvir sobre algo não chega nem perto do que é ver. Do que é sentir
o cheiro. Eu esperava ver o que o Martin descreveu, uma massa contorcida que um dia
já foi Jane Prentiss, mas a figura caída contra a parede parecia ter sido um homem. Os
vermes se contorciam para dentro e para fora através dos buracos em sua pele. A
“colmeia de carne”, como Michael tinha chamado, e as coisas prateadas formavam
bolas aglomeradas onde seus olhos costumavam estar. Não consegui evitar. Eu arfei.

Não foi um som alto, e considerando o quão enojada toda a situação me fez sentir, acho
que eu estava até que bem tranquila. Foi alto o suficiente, no entanto. A cabeça girou
para me encarar, jorrando uma pequena cascata de figuras retorcidas. A boca se abriu
quando ele tentou gritar, mas não foi isso que saiu de sua boca. Os vermes também
pareciam ter percebido e começaram a se mover em minha direção em uma velocidade
alarmante. Eu recuei, mas escorreguei em um pedaço de madeira solta e caí no bar.
Olhei desesperada para Michael, mas ele apenas assistia, seu rosto indecifrável.

Comecei a tentar pisar nos vermes enquanto eles se aproximavam, mas havia muitos
deles. Me levantei cambaleando, senti minha mão pousar em algo frio e metálico — o
extintor de incêndio. Sem pensar, puxei o pino e apertei a alça. Uma nuvem de gás foi
disparada e, pra minha surpresa, os vermes prateados começaram a estremecer e
recuar, murchando e morrendo. Comecei a andar pra frente, pegando cada um deles
com o jato de gás. Finalmente, me vi de pé em frente à massa de pele esburacada e
oca que um dia foi um homem. Ele estremeceu quando o gás o engoliu, e então ficou
imóvel.

Eu estava respirando pesadamente e o CO2 do extintor de incêndio estava me


deixando tonta. Por algum motivo, achei que deveria olhar os bolsos dele. Eles estavam
vazios, exceto por uma carteira. Estava manchado de sangue e outras substâncias, mas
o nome na carteira de motorista ainda era legível: Timothy Hodge.

Enquanto eu estava lá, olhando a carteira, senti uma dor aguda no meu braço direito.
Eu olhei para cima para ver Michael com em mão no meu ombro. Seus dedos eram
longos e distorcidos enquanto agarravam a minha pele, cortando-a como papel. Eu
gritei. Depois de alguns segundos, ele retirou a mão. Preso ali havia um único verme
prateado, se contorcendo pateticamente nas garras dele. Eu nem tinha sentido aquela
coisa escavando o meu braço.

Depois disso, tudo fica um pouco embaçado. Lembro que eu ia ligar pra polícia, mas o
cadáver de Timothy Hodge havia sumido e eu fiquei preocupada em ser acusada de
invasão, então eu só meio que me afastei. Michael, ou o que quer que aquilo fosse,
também tinha ido embora. Por fim, encontrei o caminho de volta ao Instituto, onde devo
ter acordado o Martin e, bom, aqui estamos nós.

Arquivista: É, acho que estamos.

Sasha: E aí, que você acha?

Arquivista: Eu, hum… Eu não sei bem. Podemos pensar melhor nisso mais tarde.
Sasha: Eu devia mesmo pedir as contas, sabe? Todos nós deveríamos. Eu não acho
que esse trabalho seja normal — não acho que esse trabalho seja seguro.

Arquivista: Você provavelmente está certa. Você quer sair?

Sasha: Não. Eu só… Só tô curiosa pra caramba, eu acho. E você?

Arquivista: Não. O que quer que esteja acontecendo, eu preciso saber. Descanse um


pouco.

[CLICK]

Fim do depoimento.

Obviamente, há pouco que possamos fazer para investigar a experiência da Sasha. Se


fosse qualquer um dos outros eu poderia ter motivos para duvidar, mas ela sempre foi a
mais sensata da equipe, e se ela diz que foi isso que aconteceu, então eu acredito nela.

Isso pelo menos explica o que aconteceu com Timothy Hodge, cujo desaparecimento
logo após fazer seu depoimento no final de 2014 tem sido algo preocupante desde que
eu descobri sobre. Parece estranho como o efeito da infestação de Prentiss foi diferente
nele e em Harriet Lee, mas sem mais informações, eu não tenho uma teoria coerente
sobre o motivo disso.

O que mais me inquieta no depoimento de Sasha é esse “Michael”. Ela parece bem
convencida de que ele não era humano, pelo menos não no sentido convencional.
Quase todos os depoimentos que eu cataloguei se envolveram com o paranormal em
algum tipo de relacionamento antagônico. A ideia de que existem coisas assim por aí
que querem nos ajudar… Por alguma razão, isso me deixa mais desconfortável do que
a criatura infestada de vermes que persegue o Instituto.

Sasha tirou alguns dias de folga para se recuperar, e estou conversando com o Elias
sobre arranjar alguns extintores de incêndio extras para o Arquivo.

Fim da gravação.

ARQUIVISTA
Depoimento de Paul McKenzie, a respeito das repetidas invasões noturnas em sua
casa. Depoimento original prestado em 24 de agosto de 2003. Gravação de áudio por
Jonathan Sims, arquivista chefe do Instituto Magnus, Londres.

Início do depoimento.

ARQUIVISTA (DEPOIMENTO)
É estranho viver sozinho. Talvez não seja, se você estiver acostumado, eu acho. Se
você viveu uma vida solitária, tenho certeza de que não deve parecer tão isolado ou
vazio. Caramba, eu lembro de uma época em que eu não teria reclamado por viver
sozinho. Mas agora estou tão acostumado a ter outras pessoas em casa que passei a
achar a minha existência bem triste e solitária. Mesmo antes de começar a ter o meu
visitante noturno.

Meu filho Marcus se mudou há cerca de dois anos, e antes disso ele passava muito
tempo fora, na universidade ou, mais tarde, se mudando por causa do trabalho. Então
eu me acostumei com a ausência dele. Mas quando Diane, minha esposa, faleceu
quatro meses atrás, isso… deixou o lugar terrivelmente vazio. Digo a mim mesmo que
foi misericórdia, que no final sua condição não proporcionava a vida que ela merecia. E
embora eu tenha certeza de que isso é verdade, isso não muda o fato de que a cama
parece ser grande demais para mim. Ela odiaria que eu dissesse isso. Diane nunca teve
tempo para chororô ou pessoas que se afundam em autopiedade, mas depois de
quarenta anos de casamento, acho que eu mereço isso.

O negócio sobre morar em uma casa cheia de gente é que você pode simplesmente
ignorar os barulhos que ouve durante a noite. Ouviu um rangido na escada?
Provavelmente é só alguém descendo pra pegar um copo d'água. Ouviu uma batida?
Provavelmente é o Marcus, acordado até tarde, acidentalmente derrubando as coisas
da mesa. Sei que isso não diminui as possibilidades de arrombarem a sua casa e te
roubarem, mas você para de entrar em pânico toda vez que ouve qualquer ruído de fora
do quarto. Eu acho que isso é normal, pelo menos. Nunca me considerei uma pessoa
nervosa, mas acho que as outras pessoas simplesmente continuam suas vidas e não se
preocupam tanto.

Mesmo assim, desde que Diane morreu, minhas noites se tornaram uma vigília
constante. Nenhuma casa fica em silêncio se você ouvir com atenção o suficiente, e
desde que acabei sozinho, tenho ficado com os ouvidos tão atentos que às vezes
preciso lembrar a mim mesmo que preciso respirar. Agora cada gemido suave da casa
taciturna é o som de algum bandido ou ladrão violento em meu lar, esperando para ver
se terão que me matar. Marcus sugeriu que eu arranjasse um animal de estimação para
que a casa não parecesse tão vazia, mas eu nunca tive um animal de estimação antes
e estou velho demais pra aprender agora.

Dado o quão alerta e paranoico eu geralmente fico enquanto tento dormir em uma casa
vazia, tenho certeza de que você já pode imaginar meu pavor quando eu ouvi alguma
coisa fora do meu quarto em uma noite, cerca de um mês atrás. Eu moro na mesma
casa desde que me casei com a Diane, e eu conheço o rangido de cada tábua do
assoalho. Foi aquela bem no topo da escada. Eu esperei, tentando desesperadamente
erguer meus ouvidos para qualquer outro som de movimento. Eu não tinha ouvido
nenhuma janela quebrando ou porta se abrindo no andar de baixo, e definitivamente
não tinha ouvido ninguém subindo as escadas, mas estava convencido de que havia
alguém lá. Eu podia sentir a presença dele parado no degrau. Ele percebeu o barulho
alto que piso fez? Será que ele estava parado ali, imóvel, ouvindo cada movimento
meu, tão atentamente quanto eu o ouvia?

Então o som veio de novo, e eu tive a certeza de que havia alguém parado no topo da
escada, mas ao invés de ficar parado lá, comecei a ouvir barulhos pesados de passos.
A princípio, eu… simplesmente fiquei ali, paralisado de medo, pensando que eu só…
deixaria — deixaria que levasse o que quisesse de casa e chamaria a polícia assim que
fosse embora. Mas, pelo que eu pude perceber, ele não parecia estar entrando em
nenhum dos outros quartos. Ele estava lenta e deliberadamente caminhando em
direção ao meu quarto.

A porta tem fechadura, mas já faz tanto tempo que eu não a usava que, na hora, não
consegui nem imaginar onde a chave poderia estar. Meu coração quase parou quando
ouvi a maçaneta da porta ranger suavemente quando uma mão a segurou pelo outro
lado. E devagar, tão dolorosamente devagar, a maçaneta começou a girar. Em uma
explosão de adrenalina que eu nem sabia que podia ter, eu pulei da cama e atravessei
o quarto. Eu agarrei a maçaneta e a girei para o outro lado, usando as duas mãos para
tentar igualar a força de quem quer que estivesse do outro lado.

Ainda assim, a maçaneta tentou girar, com um esforço lento e implacável que denotava
paciência e determinação, mas o pânico absoluto me deu força proporcional. Minhas
mãos começaram a ficar úmidas com o que na hora eu presumi ser suor, e fiquei
preocupado se conseguiria manter a mão firme. Eu consegui, no entanto. Por longos
vinte minutos, lutei no escuro pela maçaneta da porta do meu quarto. Eu poderia ter
alcançado o interruptor de luz, mas isso significaria ter apenas uma mão para segurar a
porta, então fiquei no escuro.

Então, de repente, a pressão desapareceu. A maçaneta não tentou mais girar. Eu não
tinha ouvido nenhum outro som do lado de fora, no entanto. Sem passos se afastando,
nenhum som de alguém descendo as escadas, a casa estava apenas silenciosa. Eu
fiquei ali pelo resto da noite, agarrando a maçaneta com força. E foi só quando os
primeiros raios de sol apareceram pelas janelas que eu consegui arrumar coragem para
abrir a porta do meu quarto e olhar lá fora.

Nada.

Eu estava tão tenso que mal consegui voltar para a cama e discar o número da polícia.
Foi quando peguei o telefone que olhei para as minhas mãos e vi que o que havia nelas
não era suor. Era sangue. Verifiquei minhas mãos e braços em busca de cortes ou
ferimentos. Nada. E a maçaneta da porta estava completamente limpa. Lavei bem as
mãos antes de ligar pro 999.

A polícia veio e ouviu pacientemente a minha história. Eles deram uma olhada ao redor
da minha casa, mas não havia qualquer sinal de um intruso. Todas as janelas e portas
ainda estavam firmemente trancadas e não havia nenhum sinal de entrada forçada, nem
meus pertences foram levados ou sequer movidos. Os policiais me garantiram que não
havia nenhum problema, que estavam felizes em ajudar — tudo naquele tom que me
dizia que pensavam que eu era apenas um velho gagá ouvindo coisas durante a noite.
Agradeci a eles quando saíram, embora não tivessem ajudado em nada, e passei o
resto do dia procurando a chave da porta do meu quarto. Acabei encontrando e
esperava que, com ela bem trancada, eu poderia dormir um pouco melhor naquela
noite. Eu estava errado.

Quando a noite caiu, eu tentei dormir. Pelo menos, eu me convenci de que estava
tentando dormir. Na verdade, eu estava atento a qualquer sinal de que o intruso havia
voltado. Cada rangido da casa se acomodando, cada gemido dos canos me deixava em
um estado de completo pavor. Por volta das duas horas da manhã, eu não tinha ouvido
nada e quase me convenci de que não seria visitado novamente, quando houve aquele
rangido lento e sinistro do assoalho no topo da escada. Como antes, os passos se
aproximaram do meu quarto, pesados e metódicos. Acendi minha lâmpada de cabeceira
e observei mais uma vez a maçaneta da porta começar a girar. Eu podia ver a pressão
sendo colocada na porta por quem quer que estivesse do outro lado, mas ela estava
trancada, e como a porta não abriu, houve uma longa pausa.

Aí ela começou a girar violentamente para frente e para trás, chacoalhando e batendo
enquanto girava com tanta força que fiquei com medo de que ela pudesse se soltar
completamente. Soltei um grito quando o ataque ficou mais forte e liguei de novo pra
polícia. Eles levaram doze minutos para chegar, e durante esse tempo todo a porta do
meu quarto tremeu com o giro incessante da maçaneta, mas a fechadura se manteve
firme. Assim que a campainha tocou, ela parou imediatamente e ficou em silêncio. Eu
não queria destrancar e abrir a porta, mas se eu não fizesse, os policiais poderiam
arrombar minha porta da frente ou, pior ainda, ir embora.

O que aconteceu a seguir foi quase idêntico ao ocorrido no dia anterior, exceto que,
dessa vez, havia uma tolerância menos gentil em suas vozes quando eles falaram
comigo. Tive a nítida impressão de que se eu os chamasse novamente sem provas,
haveria… consequências indesejáveis. Um dos dois murmurou algo sobre como deve
ser difícil viver sozinho, uma mensagem que entendi em alto e bom som. Não tenho
intenção nenhuma de ser colocado em um asilo.
E assim, durante o último mês, fico acordado quase todas as noites, enquanto o que
quer que esteja além da soleira do meu quarto tenta com todas as suas forças entrar.
Eu vigio a maçaneta da porta obsessivamente, sempre esperando pelos sinais daquela
virada suave. As primeiras são sempre bem lentas.

Tentei arrumar provas pra polícia. Pedi pro Marcus ficar comigo algumas noites, na
esperança de assustar o intruso ou de ter uma testemunha que pudesse confirmar a
minha história. Essas foram as únicas noites em que eu tive paz. Nada apareceu na
minha porta quando ele estava lá. De certa forma, foi um alívio ter uma maneira de
garantir que eu pudesse dormir, mas não me deu nenhuma evidência para convencer
ninguém, e sei que ele não acreditou em mim quando eu contei o que estava
acontecendo. Ele só pareceu preocupado quando toquei no assunto, e eu não voltei a
falar sobre.

Infelizmente, não posso pedir pro Marcus ficar comigo todas as noites. Ele tem sua
própria vida pra viver e está morando com a noiva no momento, então eu não posso
simplesmente pedir pra ele voltar a morar com o pai. Tentei instalar algumas câmeras
no corredor do andar de cima, no topo das escadas e fora do meu quarto, mas elas não
mostram nada. Elas nem pegam a maçaneta da porta girando, mesmo nas vezes
quando eu tenho certeza de que a coisa estava tentando entrar. Houve apenas um
momento, só por um frame ou dois, eu acho, em que as sombras que a câmera
capturou na parede pareceram quase formar um rosto. Parecia estar me olhando de
soslaio, a boca escancarada em um grito silencioso. Isso me assustou tanto que eu tive
que deletar a filmagem. Não tenho provas pra polícia. Nem pra vocês, eu acho.

Acho que é por isso que eu estou aqui. Isso é o que vocês fazem. Vocês investigam
essas coisas. Vocês sabem o que procurar e podem identificar sinais de coisas que não
estão certas. Você sabe, que não são desse mundo. Não estou dizendo que é um
fantasma ou algo assim, só que… bom, se fosse um fantasma, vocês seriam as
pessoas certas pra procurar, certo? Eu só preciso que isso pare. E eu não quero ser
colocado em um asilo. Eu sei que eles vão, se eu continuar falando sobre como a
maçaneta da minha porta chacoalha e gira todas as noites, eles vão pensar que sou
maluco e inútil e me mandar para um asilo, e eu não vou deixar isso acontecer. É minha
casa, e não me importa o quanto isso me assusta, nada vai me fazer desistir dela.
Talvez o Marcus esteja certo. Talvez eu deva arranjar um cachorro.

ARQUIVISTA
Fim do depoimento.

Eu quero acreditar no Sr. McKenzie, eu realmente quero. Não sou todo feito de pedra e
posso me comover com o apelo de um senhor assustado tanto quanto qualquer outra
pessoa. Quer dizer, demência é claramente a explicação mais provável, e ele admite
que não tem nenhuma prova disso tudo. Ainda assim, parte de mim ainda quer acreditar
nele. Talvez esse trabalho esteja me deixando sentimental.

De qualquer forma, é irrelevante. O Sr. McKenzie morreu de derrame cerca de dois


meses depois de prestar esse depoimento, e não parece haver nenhuma conexão óbvia
entre sua morte e seu depoimento ao Instituto. Quando isso foi originalmente registrado,
nós aparentemente enviamos um membro da equipe de pesquisa, uma tal de Sarah
Carpenter, para fazer algumas leituras da casa. Aparentemente, ela sentiu que havia
perigo o suficiente para justificar uma vigília noturna no local, mas como todos os outros
na história do Sr. McKenzie, ela não encontrou estranheza ou intrusos no andar de cima
ou em qualquer outra parte do imóvel.

Sasha, que retornou agora após sua breve recuperação, confirmou os chamados nos
relatórios policiais e eles parecem coincidir, embora obviamente sejam bastante claros
nos detalhes. Martin fez contato com o filho, Marcus McKenzie, mas ele se recusou a
falar conosco, dizendo que “já havia prestado seu depoimento”. Isso me leva a acreditar
que Marcus McKenzie também pode ter um depoimento à espreita em algum lugar aqui
nos arquivos, perdido entre a bagunça e arquivamentos errados.

A única outra coisa que parece estranha nisso tudo é que Sarah Carpenter, a
pesquisadora originalmente enviada para investigar isso em 2003, tirou algumas fotos
detalhadas do interior da casa. Olhando elas agora, percebi que a porta do quarto,
aquela da qual o Sr. McKenzie fala tantas vezes, não parece ter um buraco de chave ou
qualquer tipo de fechadura.

Fim da gravação.

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