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PRETO-ALVO-PRETO-IMAGEM-
PRETA-CÂMERA-PRETA-TINTA
O PANTANAL É PRETO (RAYLSON CHAVES, 2022) e PRIMO DA CRUZ (ALEXIS ZELENSKY, 2022)

LORENNA ROCHA

Como uma lupa que mira para um objeto à sua frente, um círculo desvela os deta-
lhes – mãos, rostos, pés, roupas, sapatos – de diferentes fotografias que parecem
habitar um tempo que não é o presente, mas que também não deixam de ocupar o
agora. Uma lupa ou uma mira? Como um alvo à deriva, aquilo que está por trás da
vermelhidão da tela parece ter raízes familiares, onde peles brancas, avermelhadas
e escurecidas compõem uma genealogia complexa estruturada pela racialidade,
sendo esta uma marca profunda do território que nomearam como “Brasil”. Em O
Pantanal é Preto (Raylson Charles, 2022), a pergunta “quem são vocês?” aparece
como um mantra às avessas. A voz distorcida por uma frequência sonora que a torna
robótica lança a questão para quem está dentro e diante das imagens, retornando,
inclusive, para o próprio realizador.
O teor investigativo e autorreflexivo se elabora à espreita, onde câmera revela
imagens, que revela memórias, que revela o desejo por (auto)identificação. O jogo
de mostrar e ocultar, provocar e se autointerrogar, nos mobiliza a olhar para Primo
da Cruz (Alexis Zelensky, 2022) a partir do entrelaçamento entre câmera-mira-alvo-
-imagem. Acendidos pela lupa cinematográfica de Raylson, e ainda pelas matérias
das obras de Cristiano Abreu de Almeida, o artista Primo da Cruz, perguntamos:
como olha esse personagem? Como o seu diretor o vê? Para onde essas imagens
documentais apontam? O que elas (não) revelam? Como elas (não) revelam?

PROJÉTIL Nº 1 - PRETO-ALVO
De uma lixeira de resíduos até um ateliê instalado numa laje entre as vielas da Roci-
nha, no Rio de Janeiro, acompanhamos, por meio da câmera de Alexis Zelensky,
um homem negro artista. Se sua residência nos fagulha nuances de sua realidade
sociogeográfica, as paredes brancas da Igreja do Reino da Arte nos levam até um
culto “à altíssima arte”, onde está sendo realizado o “dízimo” de Primo da Cruz, que
está exibindo 10% de seu portfólio individual no espaço também situado na Rocinha.
Nas portas de madeiras e micro-ondas e demais suportes recolhidos nas ruas de sua
comunidade, Primo da Cruz elabora a realidade de violência experienciada em seu
entorno por meio das artes plásticas. No filme que traz em seu título a assinatura
do artista, assistimos a tentativa de compor, na tela do cinema, um retrato desse
homem que largara o tráfico e está tentando a ressocialização através do mundo
da arte.
A aderência do discurso da “arte contemporânea enquanto salvação” aparece de
maneira complexa na Igreja do Reino da Arte, nas palavras de redenção enunciadas
por Primo da Cruz quando fala sobre sua trajetória fazendo menções às doutrinas
neopentecostais e na própria estrutura fílmica. O longa de Alexis Zelensky parece
MOSTRA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA — FORUMDOC.BH.2022 161

se interessar em fazer ver como essa relação entre arte e religiosidade engendra
a subjetividade de Cristiano Abreu de Almeida e como isso impacta, em maior ou
menor grau, no seu exercício criativo. Poderíamos dizer que o filme está dividido em
duas partes: a primeira, dedicada à circulação de Primo da Cruz na arte contempo-
rânea; a segunda, após uma decepção do artista da Rocinha com o mundo da arte
e do conflito entre ele e a mãe, quando decide fazer uma espécie de êxodo e sai em
busca pela religiosidade cristã, até que seja revelado, pelo filme, o seu assassinato
ocorrido em condições até então desconhecidas.
Se fora alvo da polícia em vida até o dia de sua morte, dentro do cenário da arte
contemporânea, Primo da Cruz tem a violência reacendida pelo campo simbólico.
Alvo da brancura de uma elite artística, o documentário, que parece querer apre-
sentar ao público esse “artista promissor favelado”, deixa escapar os mecanismos
sutilmente perversos de captura dos saberes negros, a reatualização da plantation
cognitiva.
A arquitetura das artes visuais, que é ouriçada pela “vivência do homem negro
ex-traficante” e pelo desejo de “fazer inclusão [social]”, como diz a apresentadora
de um leilão documentado pelo filme, tenta controlar uma energia e um modo de
fazer artístico muito particular de Primo da Cruz. Ele, que não está nas Belas Artes,
mas é aceito pelo campo da arte contemporânea justamente pelos seus códigos de
“autenticidade” e “genialidade” apesar de sua “realidade social adversa”, parece
trair tal estrutura e, no limite, o próprio gesto fílmico de Zelensky.

PROJÉTIL Nº 2 - PRETO-IMAGEM
Com um formato convencional e imagens precárias, montadas sequencialmente
de modo a contar a história de Primo da Cruz, a ideia de retrato, da promessa de
superação da violência estrutural que persegue o personagem, é ludibriada pelas
vivências e pelo modo como Primo da Cruz devolve o olhar ao circuito artístico em
que está envolvido. Se a mirada de Ralyson se impõe enquanto afirmação, Primo da
Cruz ginga, voluntária e involuntariamente, para dentro e para fora da arte contem-
porânea, uma performance que não “alegra qualquer lugar mostrando a realidade
carioca”, como projeta a apresentadora do leilão.
A imagem do ex-traficante ressocializado e descoberto pela “altíssima arte” é
totalmente fraturada. Não apenas pelo contraste entre a realidade vivida do artista,
com sua mãe e filha na Rocinha, e pelo o que o mundo da arte oferece. Mas, ainda,
pela desconfiança e a insubmissão que a forma – fora das regras – de fazer suas
obras e de ocupar o espaço institucional que tenta traduzir o intraduzível daquilo
que Primo da Cruz pinta e apresenta mnemonicamente. A redenção não se cumpre
nem no (para o) próprio cinema. Não, não vamos ver a história bem-sucedida de um
homem negro que tenta dar as costas a um destino até então fadado. Se, por um
lado, tomar conhecimento de sua morte pela polícia aponta para “mais um” fuzi-
lado pelo genocídio negro que corre as ruas deste país, por outro, apresenta uma
história de traição ao próprio registro fílmico, em seu desejo de enquadramento e
retratação.
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PROJÉTIL Nº3 - PRETA-CÂMERA-PRETA-TINTA


O desenho de programação que une um filme autorreferencial a um em que a Outri-
dade aparece como problema, em suas hierarquias e o olhar “de fora”, poderia nos
deslocar para o apontamento de uma diferenciação “negativa”, que se remonta
nos dilemas entre discussões sobre representação-representatividade. O mate-
rial sensível e o modo controverso de aproximação do diretor branco em relação
ao artista negro, além do racismo estrutural – nada novo – que vibra nas relações
interpessoais e de trabalho do Primo da Cruz poderia tornar “fácil” ou “lógico” traçar
um diagnóstico para o longa de Alexis Zelensky.
No entanto, a instabilidade de um personagem como Primo da Cruz faz com que
o filme “perca seu próprio controle”. Não falamos aqui de intenção ou de premissa
fílmica, mas a materialidade que nos lança a encontrar nos meandros dessa conhe-
cida história – o homem negro que sai do tráfico e do encarceramento para tentar
ser reinserido na sociedade como conhecemos e acaba morto pelo dia a dia e pela
polícia – uma subversão.
Se a preta-câmera de Ralyson compõe o gesto de tomada de posição e de auto-
determinação, um movimento-tendência (histórico e contemporâneo) do cinema
negro brasileiro, é a preta-tinta de Primo da Cruz, por sua vez, infectada pela ideo-
logia neopentecostal, pela violência urbana e pela promessa de prosperidade da
doutrina evangélica, que anuncia a própria blasfêmia em ato: um personagem que o
sistema – da arte contemporânea, do cinema, da representatividade, da instituição
igreja – desejava encontrar reparação e, em certo sentido, adequação, mas que se
mostra incontornavelmente insubordinado em suas controversas escolhas ou diante
da impossibilidade de poder fazê-las.
O descontrole fílmico, provocado pelo personagem indomável e anarcogospel,
como diria Negro Leo, está na pintura que curadores tentam decifrar, na espera
por um terreno a ser enviado por Deus e no conflito psicológico que contém fúria e
culpa pela situação estrutural que atravessa sua subjetividade. Se Ralyson aponta a
câmera-mira para sua própria história, Cristiano Abreu de Almeida nos atinge con-
tra nosso projeto idealista de benevolência. O reino de Primo da Cruz não é deste
mundo.

LORENNA ROCHA é historiadora (UFPE), pesquisadora, crítica cultural e programadora.


Co-fundadora da INDETERMINAÇÕES - plataforma de crítica e cinema negro brasileiro. Edito-
ra-chefe da camarescura - estudos de cinema e audiovisual. Ministra cursos e oficinas acerca
dos cinema e teatros negros brasileiros e da crítica.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, GG. Meu reino não é deste mundo: o anarcogospel de uma


igreja experimental. Volume Morto. Recife, Pernambuco. 02 de fevereiro de
2017. Acesso em: 14 out. 2022. Disponível em: https://volumemorto.com.br/
meu-reino-nao-e-deste-mundo-o-anarcogospel-de-uma-igreja-experimental/.

ALZUGARAY, Paula. Entrevista sobre ANoiva - Igreja do Reino da Arte. Select Art. 27 de
novembro de 2019. Acesso em: 14 out. 2022. Disponível em: https://www.select.art.br/
entrevista-anoiva/.

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