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Os vivos não percebem nada dos mortos

Vasco Camara
Quando Georges/Jean-Louis Trintignant e Anne/Emmanuelle Riva1 entram no seu
apartamento de Paris, depois de um concerto e espantam o medo de serem assaltados (porque
descobriram marcas de esforço na porta de casa ou porque sabem dos medos que assombram
outros casais da sua entourage2), o que faz, já la dentro do apartamento, uma camara de cinema?
5 Não e essa a primeira sequência de Amor, essa aconteceu minutos antes, aquele primeiro
plano do filme3 com que se arromba, literalmente, o ecrã. Que nos diz que o cinema e sempre
intruso, viola a intimidade.
Se juntarmos a esse, aquele plano fixo do concerto (enquadramento algo ≪oliveiriano≫4,
aliás), em que a camara esta no palco e encara os espectadores, entre os quais Georges e Anne,
10 como se as personagens fossem o ≪espetáculo≫, sente-se que Amor começa logo com
consciência do vampirismo que por aqui se transaciona.
E isto: o cinema não resiste a tentação de arrombar portas. Essa lucidez e vital numa era em
que, aqui e ali, paira um puritanismo que nos diz o que se deve/como se deve ou não filmar. o que
faz ≪bem≫ e o que faz ≪mal≫ — recordem-se as reações a Nana5, de Valerie Massadian (por
15 causa da cena da matança do porco e da atriz-criança) ou a Michael6, realizado por um ex-
assistente de Haneke, Markus Schleinzer (por causa do ator-criança e do ator-pedófilo) que
parecem querer reservar para o cinema o espaço para experiências de Spa emocional mais ou
menos redentoras. Sim, o cinema pode fazer ≪mal≫, sim; se não fossemos suas vítimas não
estaríamos aqui…
20 A câmara, em Amor, esta dentro do apartamento de Georges e Anne, a espera deles, sabendo
que os pode assaltar. Mas sabendo-o, vai aprendendo a não o fazer e a estar atenta aos ritmos de
um velho casal. Será por essa aprendizagem que Amor e um dos filmes maiores do austríaco,
juntamente com A Pianista7, outra obra em que o melodrama e a impressão digital: e que em vez
de utilizar o espectador para a sua experiência, em vez de se interessar apenas por confirmar um
25 resultado, submete-se, testa-se num processo. Vai aprendendo o que fazer com a proximidade,
com a intimidade. E com o amor. E com a morte.
Quando Isabelle Huppert, que interpreta a filha do casal Trintignant/Riva, diz ao pai — já Riva
pediu a Trintignant que a ajudasse a acabar com o seu sofrimento — que se recorda de, em
pequena, entrar em casa e ouvir os sons dos adultos a fazerem amor, o que a sossegava porque
garantia que os pais iriam ficar juntos para sempre, isso e como uma memoria que o filme aprende
30 a construir, como uma ética, enquanto tateia, com os enquadramentos, a intimidade e esbarra num
amor inviolável. Trintignant e Riva começam por existir em campo-contra-campo (sequencia do
pequeno almoço, quando se da o ≪acidente≫). Depois são uma parede cúmplice face a
curiosidade e ao interesse dos outros (a visita do músico: os dois juntos no plano). Finalmente, e
Trintignant, quando Riva desaparece, que se assume como guardião desse mundo, o dos mortos,
35 para o qual foi atraído pelos sonhos — e sobre o qual, testemunhou ele no funeral de um amigo, os
vivos tem uma aflita ignorância. Há qualquer coisa de entronização nesse desenho. E que seja
Huppert a fazer de ≪visita≫, não será um acaso: Huppert (O Tempo do Lobo, A Pianista) ≪e≫
também o aparato cinematográfico de Haneke. No fim, somos todos ≪visitas≫ de um templo de
memoria.
40 O que é leal em Amor, filme que começa com o cinema a arrombar as portas de uma intimidade, e
a permanente negociação dessa intromissão. Não podia ser de outra maneira: os vivos não
percebem nada dos mortos.
http://cinecartaz.publico.pt/Mobile/Criticas/Criticos/312572, consultado a 13 de novembro de 2014 (com adaptacoes).

(1) Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva: atores franceses protagonistas do filme Amor, realizado pelo austríaco Michael
Haneke, que se centra na vivencia de um casal idoso apos o acidente vascular-cerebral da esposa, acidente esse que causa a sua
paralisia e muda o seu quotidiano de forma radical.
(2) entourage: do seu círculo, da sua faixa etária.
(3) U ma equipa de bombeiros parte a porta do apartamento de Georges e Anne por causa de um estranho cheiro que se faz sentir.
(4) oliveiriano: adjetivo derivado de Manuel de Oliveira, referente a sua forma de filmar longos e lentos planos ou sequencias.
(5) Nana: filme francês (2011) de Valerie Massadian cujos primeiros minutos gravam uma cerimónia de matança do porco.
(6) Michael: filme austríaco (2011) de Markus Schleinzer sobre a relação entre uma criança de 10 anos e o seu raptor.
(7) A Pianista: filme francês (2001) de Michael Haneke que narra a perturbadora historia de uma professora de piano que vive
reprimida pela sua mãe e se envolve de forma sinistra e demente com um estudante mais novo.
http://cinecartaz.publico.pt/Mobile/Criticas/Criticos/312572, consultado a 13 de novembro de 2014 (com adaptacoes).
Para responderes ao item, seleciona a opção correta.

1.1 O título do texto de crítica sobre o filme Amor de Michael Haneke


indica que o tema do filme e a morte.
indicia que o tema do filme e uma discussão sobre a vida para alem da morte.
indicia que o tema do filme e a problemática da ignorância que os humanos têm sobre a morte.
mostra que o tema do filme e uma discussão sobre a ignorância que temos sobre o que acontece
apos a morte.

1.2 A utilização da barra vertical nas expressões ≪Georges/Jean-Louis Trintignant e


Anne/Emmanuelle Riva≫ (linha 1) tem como função
mostrar que o nome das personagens e o nome dos atores e utilizado no filme de forma aleatória.
apontar a diferença entre o nome das personagens e o nome dos atores.
mostrar que o filme funde ficção e realidade.
explicar qual o ator que desempenha cada personagem.

1.3 A frase ≪(porque descobriram marcas de esforço na porta de casa ou porque sabem dos
medos que assombram outros casais da sua entourage…)≫ (linhas 2-4) está colocada entre
parêntesis pois pretende
explicar a razão pela qual o casal tenta esquecer que tem medo de ser assaltado.
acrescentar informação sobre os possíveis motivos pelos quais o casal tenta racionalizar o medo
que tem de ser assaltado.
enfatizar as razoes pelas quais o casal tenta aligeirar a possibilidade de ter sido assaltado.
apresentar informação sobre as razoes que levam o casal a racionalizar o medo que tem de ser
assaltado.

1.4 O primeiro parágrafo constitui uma interrogação sobre o motivo pelo qual o realizador
selecionou
o enquadramento da cena vista do interior da casa.
Trintignant e Riva para protagonistas do seu filme.
o enquadramento da cena vista do exterior da casa.
a entrada do casal em casa após um concerto musical.

1.5 No segundo parágrafo, alude-se


ao facto de o realizador ter editado incorretamente as duas primeiras cenas.
ao facto de a primeira cena do filme Amor consistir num arrombamento.
ao facto de o realizador ter feito uma ma escolha em termos de enquadramento da cena.
ao facto de, nessa cena, se romper o ecrã quando o filme e exibido no cinema.

1.6 Na expressão ≪se arromba, literalmente, o ecrã≫ (linha 6), o adverbio destacado significa
por paradoxo.
rigorosamente.
na realidade.
intensamente.

1.7 A expressão ≪arromba […] o ecrã≫ (linha 6) é


um paradoxo, pois um plano cinematográfico não pode despedaçar o ecrã do cinema.
uma comparação, pois compara-se a cena do arrombamento da porta pelos bombeiros com o
efeito que essa cena terá nos espectadores.
uma metáfora, pois a porta que e arrombada e separa o exterior do interior da casa e comparada
ao ecrã que separa a ficção da realidade.
uma hipálage, há uma transposição do sentido do arrombamento da porta para o ecrã.
1.8 A frase ≪Sim, o cinema pode fazer “mal”, sim […]≫ (linha 18) a repetição do adverbio de
afirmação pretende
enfatizar os efeitos que o tipo de cinema produzido pelo realizador pode apresentar.
expressar concordância do autor do texto com o tipo de cinema produzido pelo realizador.
confirmar a ideia transmitida entre os dois advérbios.
explicar o contraste existente entre os vários tipos de cinema.

1.9 Com os enunciados ≪Vai aprendendo o que fazer com a proximidade, com a intimidade. E
com o amor. E com a morte.≫ (linha 24-25), o autor do texto defende que o realizador do filme
esta interessado em
filmar a construção da relação amorosa dos protagonistas lentamente, por etapas.
filmar de forma realista a relação amorosa que os protagonistas mantem.
inserir apenas cenas consideradas importantes para ilustrar a relação do casal.
inserir apenas cenas íntimas, em que as personagens se amem ou morram.

1.10 Ao classificar a relação entre o casal através da expressão ≪esbarra num amor inviolável≫
(linha 29-30), o autor conclui que
a relação filmada por Michael Haneke e de natureza intocável.
a relação filmada por Michael Haneke e superior ao que o próprio filme revelara.
a relação de Georges e Anne e semelhante as descritas na lírica camoniana.
a relação de Georges e Anne e, para ambos, de natureza sagrada.

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