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Pensar nesses filmes é também investigar referências para uma produção possível
dentro do contexto de pandemia. Essa lista também se relaciona com meu atual
contexto – cineasta confinada e com orçamento nulo, resultado do desmonte ao
audiovisual promovido pelo governo Bolsonaro.
Diálogo e dialética
Soft and Hard (A Soft Conversation on Hard Subjects), 1985
Anne-Marie Miéville e Jean-Luc Godard
Esse filme abrange subgêneros como home movies (filmes caseiros), filmes de diálogo,
e faz uso de arquivos. Concebido para a televisão, possui um tempo adequado (52
minutos) para a atenção durante a quarentena, em que é difícil manter o foco por
longos períodos.
De pronto, faz-se necessário apresentar Miéville – o que não é o caso de seu codiretor.
Parceira de vida e criação de Godard desde os anos 1970, codirigiu, roteirizou e
exerceu outras funções em quase todos os filmes do diretor desde então. Nos anos
1980, passou a dirigir seus próprios curtas, e, em 2000, o longa Après la reconciliation.
O filme começa com Miéville e Godard falando ao mesmo tempo. Em seguida, cenas
cotidianas da vida do casal, separados, depois juntos, e, ao final, uma longa sequência
de diálogo entre eles. A estrutura segue a lógica tese-antítese-síntese, típica da
dialética francesa. Primeiro, os dois juntos são inteligíveis. Depois, cada um separado
faz seus pontos. Finalmente, os dois outra vez juntos se fazem entender.
Ouvimos Anne-Marie em off: “Eles perderam contato com o mundo exterior”, e esse
parece ser o contexto dos realizadores, isolados em uma pequena cidade suíça.
O título também remete à lógica em pares típica de Godard. Segundo o subtítulo, soft
seria a forma, enquanto hard, o conteúdo. Os adjetivos também nos incitam a
perguntar quem é “suave” e quem é “duro” entre eles. Como pares dialéticos, essas
definições não são imutáveis no filme.
Anne-Marie começa soft, ajeitando as flores, tarefa considerada feminina. Depois,
edita na moviola.1 Já ele começa suas cenas com um momento de “gênio criador”,
onde anota ideias em um caderno antes de dormir. Depois, aparece como produtor,
negociando ao telefone. Logo, assiste futebol.
Em seguida, Godard simula jogar tênis em sketches cômicos, e pergunta: “Só porque
faço filmes, e não filhos, sou menos humano?” A reflexão ressoa nos profissionais da
cultura. Ter filhos não parece compatível com uma vida de instabilidade financeira,
que consome muito tempo e energia. É revigorante que a reflexão venha de um
homem, e não de uma mulher, tantas vezes questionadas sobre maternidade e
trabalho.
Na terceira e mais longa parte do filme, não há mais monólogos, mas um diálogo entre
eles. Outros pares dialéticos se revelam: cinema e televisão, ver e escutar, feminino e
masculino. Através dessas duplas de opostos não-excludentes, representada em seu
nível básico pelo próprio casal, o filme realiza uma complexa reflexão sobre o cinema.
No plano final, uma cena de O Desprezo (1963) é projetada junto com a sombra dos
braços do casal. Remontando às origens do cinema e ao teatro de sombras, relembram
que a vocação do cinema é projetar, no sentido mais amplo. A poética imagem ressoa
hoje: a projeção caseira é a sala de cinema possível nesse momento.
Os filmes feministas dos anos 1960 e 1970 passam por esse cenário doméstico. Duas
pioneiras da vanguarda norte-americana experimental, Marie Menken e Joyce
Wieland, utilizaram o espaço de forma bastante diversa.
No entanto, há mais do que pura delicadeza em seus filmes. Neles, o banal revela seu
lado não visto normalmente. Com um uso aprimorado da câmera na mão, em um
ritmo bem pensado, realiza uma dança entre olho e imagem.
1
Vale lembrar que a montagem no cinema é originalmente uma função feminina, já que cortar filmes
era considerado um trabalho semelhante à costura. Mais em Women Film Editors: Unseen Artists of the
American Cinema, de David Meuel.
Já Wieland, canadense, subverte o ambiente doméstico em sua função. Se doméstico
significa “domesticar e amansar para o convívio social”, ela transforma seu sentido por
completo.
Seus filmes têm um lado animalesco, seja na observação de um gato que come um
peixe em Cat food (1967), seja na utilização da oposição entre ratos e gatos como
metáfora para a militância comunista nos EUA dos anos 1960 em Rat Life and Diet in
North America (1968).
Neste curta, ela faz uso de animais e objetos domésticos ao construir uma parábola
dos movimentos anticapitalistas da época. Os ratos são os revolucionários, oprimidos
pelos gatos – patrões capitalistas. Spoiler: os ratos vão para o Canadá plantar ervas
orgânicas e esquecem da luta revolucionária.
Wieland afirma que a mesa da cozinha está na sua arte desde sempre, e que seu
interesse é entender o que seria a arte da dona de casa, da esposa, da mãe.
Ambas cineastas não escondem sua presença física. Menken incorpora a fumaça de
seu cigarro, seu reflexo e a mão que movimenta a câmera.
David James vê esses filmes como desenvolvimentos dos diários feministas dos anos
1970, “onde introspeção e autoconhecimento eram entendidos como a participação
individual em uma cura histórica-coletiva”. Os curtas seguem o argumento feminista
recorrente no período que afirma que “o pessoal é político”.
É por isso que, dos vários filmes da cineasta belga Chantal Akerman que poderiam ter
sido feitos no isolamento (como Hotel Monterey (1972), filmado em um hotel
abandonado, ou Là-bas (2006), em um apartamento em Israel), o que me parece mais
tocante hoje é No home movie. O título é irônico: um termo muitas vezes pejorativo
para distinguir filmes caseiros, “amadores”, de filmes profissionais. A cineasta Maya
Deren fez uma reflexão sobre essa distinção, escrevendo que amador vem de amar,
portanto, seriam filmes feitos no amor, e não por razões econômicas. 3
2
https://www.facebook.com/watch/?v=285303012781669
3
“Amateur versus Professional”, Maya Deren
Dessa forma, No home movie é tudo que seu título nega. Após seis minutos iniciais ao
ar livre, entramos no ambiente caseiro e só saímos rapidamente em passeios de carro.
Akerman filma a mãe, em idade avançada, em sua casa, com as filhas, a cuidadora,
uma tia ao telefone. O filme é feito de longos planos estáticos bem enquadrados, com
camadas dentro do próprio quadro, que lembram seu filme mais célebre, Jeanne
Dielman (1975), mas também de planos errantes, que buscam o foco e super ou
subexpõe a imagem. É um belo ensaio sobre as possibilidades ao filmar uma casa.
Quando precisa viajar a trabalho, liga por Skype para a mãe e a filma pela webcam.
Hoje, uma imagem corriqueira em nossas vidas no isolamento. Assim, Chantal afirma
que as distâncias não existem mais. A mãe sofre com a interação virtual e diz que vê-la
daquela forma a faz ter vontade de abraça-la. Nesses meses, compartilhamos dessa
vontade e impedimento.
Desejo que a atenção aos nossos idosos, e sua sabedoria acumulada, indo na
contramão das politicas de desvalorização atuais, seja uma tendência no cinema e no
pós-pandemia.
Nos últimos meses, foi comum ver nas redes sociais fotografias antigas de familiares. O
isolamento tem sido usado para arrumar a casa, finalmente selecionando documentos
guardados há anos.
Dark, série alemã com viagens no tempo e mundos paralelos, ganhou os holofotes
durante a quarentena por revelar o tal monstro da família, mas podemos fazer viagens
ao passado familiar apenas mergulhando em nossos arquivos.
É isso que faz Supermemórias, de Danilo Carvalho, feito a partir de registros caseiros
em super 8mm dos anos 1970 e 1980, em Fortaleza. Danilo fez um chamado público
para que lhe enviassem seus registros familiares. Como contrapartida, devolvia o
material digitalizado.
O artista e cineasta faz uso de imagens de arquivos diversos: redes sociais, filmes
estadunidenses dos anos 1910, reportagens, sem se importar com marcas d’agua,
qualidade ou se estão filmados na vertical.
Dessa forma, cria uma poderosa obra que traça um panorama da iconografia negra
norte-americana, mas também revela aspectos sombrios de hoje, incluindo a violência
policial e racial. Os 100 anos de imagens à qual Epstein se referia são usados por Jafa
para contar a história da representação de outra família, maior que a consanguínea,
que nesse caso, é importante lembrar, foi durante muito tempo impedida de contar
sua própria história.
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Outros cinemas são possíveis e, mais do que nunca, necessários. Filmes feitos no
isolamento já começam a aparecer, continuando essa história. Restrições não devem
significar obras inócuas ou parecidas entre si. Os tempos difíceis muitas vezes são
também os mais resistentes e criativos, e podem apontar para um outro cinema, que
além de não depender de grande estrutura, vá além do cinema narrativo hegemônico.
* Cineasta e artista visual, Fernanda Pessoa trabalha principalmente com cinema documental e
experimental. Realizou seu mestrado em Audiovisual na Sorbonne Nouvelle, sob orientação de Philippe
Dubois. Em 2017, finalizou seu primeiro longa documental “Histórias que nosso cinema (não) contava”
exibido em mais de 25 festivais e disponível no Netflix. Seu segundo documentário “Zona Árida” recebeu
Menção Honrosa no Dok Leipzig 2019 e estreia em streaming no segundo semestre de 2020. Mais em:
https://pessoafernanda.com