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Filmes que poderiam ter sido feitos no isolamento – SELECT

Por Fernanda Pessoa*

Muito se escreveu nas primeiras semanas de isolamento social sobre filmes de


pandemia e pós-apocalipse, mas pouco se falou sobre um cinema que, no lugar de
catástrofes e grandes produções, apresenta possibilidades para a atividade
cinematográfica de agora: filmes que poderiam ter sido realizados no isolamento.
Considero aqui filmes que desafiam a lógica industrial cinematográfica, em que são
necessárias grandes equipes e orçamentos.

Pensar nesses filmes é também investigar referências para uma produção possível
dentro do contexto de pandemia. Essa lista também se relaciona com meu atual
contexto – cineasta confinada e com orçamento nulo, resultado do desmonte ao
audiovisual promovido pelo governo Bolsonaro.

Quatro eixos temáticos e formais se destacaram em minhas revisões de quarentena,


que não pretende ser uma lista definitiva.

Diálogo e dialética
Soft and Hard (A Soft Conversation on Hard Subjects), 1985
Anne-Marie Miéville e Jean-Luc Godard

Esse filme abrange subgêneros como home movies (filmes caseiros), filmes de diálogo,
e faz uso de arquivos. Concebido para a televisão, possui um tempo adequado (52
minutos) para a atenção durante a quarentena, em que é difícil manter o foco por
longos períodos.

De pronto, faz-se necessário apresentar Miéville – o que não é o caso de seu codiretor.
Parceira de vida e criação de Godard desde os anos 1970, codirigiu, roteirizou e
exerceu outras funções em quase todos os filmes do diretor desde então. Nos anos
1980, passou a dirigir seus próprios curtas, e, em 2000, o longa Après la reconciliation.

O filme começa com Miéville e Godard falando ao mesmo tempo. Em seguida, cenas
cotidianas da vida do casal, separados, depois juntos, e, ao final, uma longa sequência
de diálogo entre eles. A estrutura segue a lógica tese-antítese-síntese, típica da
dialética francesa. Primeiro, os dois juntos são inteligíveis. Depois, cada um separado
faz seus pontos. Finalmente, os dois outra vez juntos se fazem entender.

Ouvimos Anne-Marie em off: “Eles perderam contato com o mundo exterior”, e esse
parece ser o contexto dos realizadores, isolados em uma pequena cidade suíça.

O título também remete à lógica em pares típica de Godard. Segundo o subtítulo, soft
seria a forma, enquanto hard, o conteúdo. Os adjetivos também nos incitam a
perguntar quem é “suave” e quem é “duro” entre eles. Como pares dialéticos, essas
definições não são imutáveis no filme.
Anne-Marie começa soft, ajeitando as flores, tarefa considerada feminina. Depois,
edita na moviola.1 Já ele começa suas cenas com um momento de “gênio criador”,
onde anota ideias em um caderno antes de dormir. Depois, aparece como produtor,
negociando ao telefone. Logo, assiste futebol.

Em seguida, Godard simula jogar tênis em sketches cômicos, e pergunta: “Só porque
faço filmes, e não filhos, sou menos humano?” A reflexão ressoa nos profissionais da
cultura. Ter filhos não parece compatível com uma vida de instabilidade financeira,
que consome muito tempo e energia. É revigorante que a reflexão venha de um
homem, e não de uma mulher, tantas vezes questionadas sobre maternidade e
trabalho.

Na terceira e mais longa parte do filme, não há mais monólogos, mas um diálogo entre
eles. Outros pares dialéticos se revelam: cinema e televisão, ver e escutar, feminino e
masculino. Através dessas duplas de opostos não-excludentes, representada em seu
nível básico pelo próprio casal, o filme realiza uma complexa reflexão sobre o cinema.

No plano final, uma cena de O Desprezo (1963) é projetada junto com a sombra dos
braços do casal. Remontando às origens do cinema e ao teatro de sombras, relembram
que a vocação do cinema é projetar, no sentido mais amplo. A poética imagem ressoa
hoje: a projeção caseira é a sala de cinema possível nesse momento.

Subversão do doméstico como feminino


Marie Menken e Joyce Wieland

A tentativa de confinamento das mulheres ao espaço doméstico não vem de hoje. A


casa (e seus afazeres) ainda é o terreno relegado às mulheres. Avançamos nas lutas
por direitos, mas há um longo caminho, inclusive no campo cinematográfico.

Os filmes feministas dos anos 1960 e 1970 passam por esse cenário doméstico. Duas
pioneiras da vanguarda norte-americana experimental, Marie Menken e Joyce
Wieland, utilizaram o espaço de forma bastante diversa.

Menken, ucraniana radicada nos Estados Unidos, filmava em 16mm o corriqueiro,


como revelam os títulos de seus curtas: Lights (1966) e Glimpse of the Garden (1957).
Em Dwightiana (1959), faz uma animação em stop-motion com objetos de casa. A
cineasta era considerada poética por seus contemporâneos, como Jonas Mekas. Bonito
e sútil, como se espera que a arte feminina seja.

No entanto, há mais do que pura delicadeza em seus filmes. Neles, o banal revela seu
lado não visto normalmente. Com um uso aprimorado da câmera na mão, em um
ritmo bem pensado, realiza uma dança entre olho e imagem.

1
Vale lembrar que a montagem no cinema é originalmente uma função feminina, já que cortar filmes
era considerado um trabalho semelhante à costura. Mais em Women Film Editors: Unseen Artists of the
American Cinema, de David Meuel.
Já Wieland, canadense, subverte o ambiente doméstico em sua função. Se doméstico
significa “domesticar e amansar para o convívio social”, ela transforma seu sentido por
completo.

Seus filmes têm um lado animalesco, seja na observação de um gato que come um
peixe em Cat food (1967), seja na utilização da oposição entre ratos e gatos como
metáfora para a militância comunista nos EUA dos anos 1960 em Rat Life and Diet in
North America (1968).

Neste curta, ela faz uso de animais e objetos domésticos ao construir uma parábola
dos movimentos anticapitalistas da época. Os ratos são os revolucionários, oprimidos
pelos gatos – patrões capitalistas. Spoiler: os ratos vão para o Canadá plantar ervas
orgânicas e esquecem da luta revolucionária.

Sem abandonar o doméstico, em especial a cozinha, atividades diárias são convertidas


em investigações estéticas, que revelam o contraditório do espaço caseiro, ao mesmo
tempo libertador e aprisionante.

Wieland afirma que a mesa da cozinha está na sua arte desde sempre, e que seu
interesse é entender o que seria a arte da dona de casa, da esposa, da mãe.

Ambas cineastas não escondem sua presença física. Menken incorpora a fumaça de
seu cigarro, seu reflexo e a mão que movimenta a câmera.

David James vê esses filmes como desenvolvimentos dos diários feministas dos anos
1970, “onde introspeção e autoconhecimento eram entendidos como a participação
individual em uma cura histórica-coletiva”. Os curtas seguem o argumento feminista
recorrente no período que afirma que “o pessoal é político”.

Olhar e ouvir os idosos, sentir o tempo.


Não é um filme caseiro (No Home Movie), 2015
Chantal Akerman

A escritora Conceição Evaristo, 73 anos, começou sua masterclass sobre roteiro2


afirmando a importância da troca entre jovens e mais velhos, pois os últimos têm
histórias para contar, e que esse é um momento de vulnerabilidade dos idosos.

É por isso que, dos vários filmes da cineasta belga Chantal Akerman que poderiam ter
sido feitos no isolamento (como Hotel Monterey (1972), filmado em um hotel
abandonado, ou Là-bas (2006), em um apartamento em Israel), o que me parece mais
tocante hoje é No home movie. O título é irônico: um termo muitas vezes pejorativo
para distinguir filmes caseiros, “amadores”, de filmes profissionais. A cineasta Maya
Deren fez uma reflexão sobre essa distinção, escrevendo que amador vem de amar,
portanto, seriam filmes feitos no amor, e não por razões econômicas. 3

2
https://www.facebook.com/watch/?v=285303012781669
3
“Amateur versus Professional”, Maya Deren
Dessa forma, No home movie é tudo que seu título nega. Após seis minutos iniciais ao
ar livre, entramos no ambiente caseiro e só saímos rapidamente em passeios de carro.
Akerman filma a mãe, em idade avançada, em sua casa, com as filhas, a cuidadora,
uma tia ao telefone. O filme é feito de longos planos estáticos bem enquadrados, com
camadas dentro do próprio quadro, que lembram seu filme mais célebre, Jeanne
Dielman (1975), mas também de planos errantes, que buscam o foco e super ou
subexpõe a imagem. É um belo ensaio sobre as possibilidades ao filmar uma casa.

O filme nos relembra da importância da tradição e história na sabedoria oral dos


idosos, tão esquecidos atualmente. Akerman conversa com sua mãe sobre o passado,
as relações familiares, as tradições da família judaica que fugiu do holocausto.

Quando precisa viajar a trabalho, liga por Skype para a mãe e a filma pela webcam.
Hoje, uma imagem corriqueira em nossas vidas no isolamento. Assim, Chantal afirma
que as distâncias não existem mais. A mãe sofre com a interação virtual e diz que vê-la
daquela forma a faz ter vontade de abraça-la. Nesses meses, compartilhamos dessa
vontade e impedimento.

No home movie é lento, no ritmo dilatado da quarentena. Sobre sua filmografia,


Akerman já afirmou que quer fazer o contrário de outros cineastas, que realizam
“filmes para passar o tempo”: os seus fazem sentir o tempo.

Nesse período, acredito que houve uma mudança na percepção temporal. Em um


primeiro momento, o tédio dominou, e todos buscavam formas de fazer o tempo
passar. Quase 4 meses depois, sentimos o tempo perdido, que corre sem que
percebamos, em dias que parecem todos iguais.

Desejo que a atenção aos nossos idosos, e sua sabedoria acumulada, indo na
contramão das politicas de desvalorização atuais, seja uma tendência no cinema e no
pós-pandemia.

Jogando com arquivos


Supermemórias, 2010, Danilo Carvalho
Love is the message, the message is Death, 2016, Arthur Jafa

Nos últimos meses, foi comum ver nas redes sociais fotografias antigas de familiares. O
isolamento tem sido usado para arrumar a casa, finalmente selecionando documentos
guardados há anos.

Em Mal de arquivo, Derrida aponta que a arqueologia estuda também resquícios de


uma vida privada que revelam aspectos do funcionamento de uma sociedade.

As imagens são tipos particularmente interessantes de arquivo. Nos anos 1920, o


cineasta francês Jean Epstein escreveu: “Quando o cinematógrafo completar um
século, se tivermos agora os meios para estabelecer experiências e preservar a
película, ele terá sido capaz de capturar aparências marcantes e altamente instrutivas
do monstro da família.” Monstro é usado por Epstein no sentido de arquétipo.
O cinema permite ver gerações da família se movendo e interagindo, além encontrar
ligações entre passado e presente. Sobre as projeções de filmes familiares, Epstein
segue: “Ninguém nesta junção parecia livre (...) seja através de uma boca ou de outra,
era a família que me respondia através de sua única voz, com seu modo de pensar
permanente, que continuaria através de muitos corpos passados, presentes e futuros.”

Dark, série alemã com viagens no tempo e mundos paralelos, ganhou os holofotes
durante a quarentena por revelar o tal monstro da família, mas podemos fazer viagens
ao passado familiar apenas mergulhando em nossos arquivos.

É isso que faz Supermemórias, de Danilo Carvalho, feito a partir de registros caseiros
em super 8mm dos anos 1970 e 1980, em Fortaleza. Danilo fez um chamado público
para que lhe enviassem seus registros familiares. Como contrapartida, devolvia o
material digitalizado.

Gravidez, casamento, aniversário, férias, passeios de domingo em desfiles militares. A


junção de diversas histórias individuais conta uma história coletiva daquele período. O
curta não usa narração, mas o som de um trecho invade outro, criando a sensação de
que se trata de uma mesma história.

O caminho inverso também é possível: olhar imagens públicas e/ou profissionais de


fontes diversas, para traçar uma história coletiva e ao mesmo tempo individual. É o
que faz Arthur Jafa em Love is the message, the message is death, que ficou disponível
on-line por dois dias em museus ao redor do mundo em junho, reafirmando sua
atualidade.

O artista e cineasta faz uso de imagens de arquivos diversos: redes sociais, filmes
estadunidenses dos anos 1910, reportagens, sem se importar com marcas d’agua,
qualidade ou se estão filmados na vertical.

Dessa forma, cria uma poderosa obra que traça um panorama da iconografia negra
norte-americana, mas também revela aspectos sombrios de hoje, incluindo a violência
policial e racial. Os 100 anos de imagens à qual Epstein se referia são usados por Jafa
para contar a história da representação de outra família, maior que a consanguínea,
que nesse caso, é importante lembrar, foi durante muito tempo impedida de contar
sua própria história.
--
Outros cinemas são possíveis e, mais do que nunca, necessários. Filmes feitos no
isolamento já começam a aparecer, continuando essa história. Restrições não devem
significar obras inócuas ou parecidas entre si. Os tempos difíceis muitas vezes são
também os mais resistentes e criativos, e podem apontar para um outro cinema, que
além de não depender de grande estrutura, vá além do cinema narrativo hegemônico.

Aguardo ansiosamente os filmes realizados neste isolamento.


Ficha Técnica:
Soft and Hard: https://www.imdb.com/title/tt0091980/
Glimpse of the Garden: https://www.imdb.com/title/tt1161419/
Lights: https://www.imdb.com/title/tt2318260
Rat Life and Diet in North America: https://www.imdb.com/title/tt0135623/
Cat Food: https://www.imdb.com/title/tt0188489/
No home movie: https://www.imdb.com/title/tt4881016
Supermemórias: http://portacurtas.org.br/filme/?name=supermemorias
Love is the Message, the Message is Death: https://www.imdb.com/title/tt7778656

* Cineasta e artista visual, Fernanda Pessoa trabalha principalmente com cinema documental e
experimental. Realizou seu mestrado em Audiovisual na Sorbonne Nouvelle, sob orientação de Philippe
Dubois. Em 2017, finalizou seu primeiro longa documental “Histórias que nosso cinema (não) contava”
exibido em mais de 25 festivais e disponível no Netflix. Seu segundo documentário “Zona Árida” recebeu
Menção Honrosa no Dok Leipzig 2019 e estreia em streaming no segundo semestre de 2020. Mais em:
https://pessoafernanda.com

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