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A Voz Humana é uma adaptação do monólogo de Jean Cocteau, escrito em 1927, mas

cujas palavras não perderam a atualidade, pois a dor do abandono, a dor do fim de um amor
parecem não mudar com a passagem do tempo, mesmo que em 2022 os amores e as relações
sejam líquidas como pensa Zigmunt Bauman. Já o que Pedro Almodóvar faz com essa história
universal e atemporal em meros 30 minutos...ah, isso é toda uma outra conversa.

Antes de falar da obra de Almodóvar voltarei um pouco no tempo, mais precisamente a


1948, quando Roberto Rossellini filmou Amore, dividido em duas partes, a primeira sendo Una
Voce Umana (disponível no Youtube como Una voce umana - Versione Integrale ). Estrelado pela
então esposa do cineasta, a deslumbrante Anna Magnani, é um monólogo (ou monodrama,
como denominou Jean Cocteau) absolutamente desesperador, sentimos visceralmente a dor
daquela mulher abandonada, em branco e preto, num espaço confinado, desorganizado, que
reflete perfeitamente o estado de espírito da personagem. É um belo filme, sem dúvida. Mas
Almodóvar não poderia simplesmente filmar uma versão colorida...

O monologo de Cocteau é presença recorrente na obra do cineasta. Em a “Lei do Desejo”,


há um pequeno fragmento interpretado por Carmen Maura, “Mulheres a beira de um ataque
de nervos” é livremente inspirado no monólogo e o diretor também cita indiretamente o texto
em “A Flor do Meu Segredo”, quando a escritora Leo, vivida por Marisa Paredes, deprimida após
ser abandonada pelo marido, desperta de uma overdose de remédios graças ao toque do
telefone. Agora, com a sua versão do monólogo, Almodóvar leva à tela uma joia rara, com todas
as referências almodovarianas, claro, mas desconstruindo aos poucos a dor que perpassa o
texto, até culminar numa emblemática cena de libertação.

O filme abre com Tilda Swinton parcialmente escondida atrás de uma tapadeira de
plástico, em um lugar que depois descobriremos ser os fundos de um teatro, com um
deslumbrante vestido vermelho, enquanto caminha, altiva e bela ao som melancólico de violinos
(a trilha sonora é original de Alberto Iglesias). Até se sentar e a câmera capturar seu rosto, em
um close fechado, mostrado em toda sua beleza, mas também as marcas do tempo e seu olhar
absolutamente triste, coisa que o diretor fará durante todo o filme e que possibilitará que nos
conectemos ainda mais com a verdade dessa mulher. Em seguida, o belo vestido vermelho é
substituído por uma roupa preta, pesada, que nos remete a um uniforme de prisão fashionista,
e a postura da atriz, antes altiva, se curva ao peso daquela roupa, daquele estado de espírito.
Antes dos créditos Almodóvar já nos contou quase tudo sobre essa mulher e sua história... Coisa
de gênio.
A direção de arte, uma das características mais marcantes da obra do diretor, é impecável,
desde a loja de ferramentas (cena que é precedida pelos créditos formados por....ferramentas!)
ao apartamento, tão almodovariano quanto possível, com sua decoração com toques kitsch e
artísticos, os vermelhos onipresentes, na cozinha, nos detalhes da decoração, nas roupas que se
encontram no armário da mulher, no conjunto vermelho sangue que ela veste para esperar o
amor que a abandonou. O apartamento cheio de objetos que ajudam a contar a historia das
pessoas que viveram naquele local, o casal que agora não existe mais e que o terno sobre a cama
só faz acentuar.

Ao começar a contar sua história, a mulher, que veste um conjunto todo azul (nada mais
“blue” do que vestir-se de azul) nos diz que durante um tempo que durou quatro anos, até três
dias atrás, ela o esperava lendo um livro ou assistindo um dvd, e a câmera nos mostra a seleção
nada sutil de filmes e livros de Pedro Almodóvar: Trama Fantasma, Jackie, Tudo Que o Céu
Permite, Filha de outros homens, Breakfast at Tiffanys, Suave é a noite, Palavras ao vento,
Felicidade demais e, claro Kill Bill ( o agasalho amarelo da Noiva e o conjunto vermelho que
vestirá a mulher são uma bela rima visual). Ali entendemos que se trata de um casal de amantes,
e que a mulher esteve por anos à espera desse homem que sempre voltava, até três dias atrás,
e o abandono está construído até mesmo na seleção de obras sobre a mesa.

Após se arrumar para mais uma vez se colocar à espera, com uma taça de vinho na
varanda, a mulher olha para fora e parece se dar conta de que nada daquilo é real.
Acompanhamos então a tentativa de tentar destruir o homem que deveria estar ao seu lado, ao
golpear o terno que ocupa seu lugar na cama com um machado. Nesse momento de catarse, a
câmera sobe e realmente nos damos conta de que o apartamento é um cenário, algumas
gavetas da cozinha não abrem,alguns dos adornos das prateleiras são falsos, a iluminação é
artificial, deixando claro que o que estamos vendo não é a “realidade” daquela mulher, mas um
espaço construído para conter a história, a do filme e a história de amor que ela viveu e que
talvez nunca tenha sido real.

O monólogo que se seguirá nos vinte minutos seguintes é um tour de force de uma
magnifica atriz e um diretor que, definitivamente, ama as mulheres. O texto original de Jean
Cocteau, por ser de 1927, apresenta uma mulher, a amante, que está sempre disposta a
desculpar seu amado, tentando fazer, ainda que sutilmente, com que essa história não termine,
que ele desista, e não a abandone, e é submissa durante todo o monólogo. Já com Almodóvar e
Tilda Swinton, que fazem o match perfeito, vão subverter essa submissão, não sem antes passar
pela bajulação, pelo fingimento, pela renúncia, pelas declarações de amor eterno, pela falta de
compostura, para, enfim, com o último toque da mão de gênio de Almodóvar, fazer a mulher
abandonada compreender que, para superar a dor, algo precisa morrer, o que não serve mais
precisa ser abandonado e, por que não, purificado. A fogo. Eu suponho que, se estivesse vivo,
Cocteau aprovaria.

O filme é memorável e poderia falar de cada cena, mas há uma sequência em especial,
que é representativa do casamento perfeito que se deu entre texto, atriz e diretor. Quando
Swinton está nos “explicando” sua relação e fala: “Entrei em sua vida em um momento em que
você queria experimentar coisas novas, novos sentimentos. Como se desejar alguém não fosse
o sentimento mais antigo do mundo.” E ao seu lado vemos uma escultura de um coração
vermelho, de vidro, inclinado, como se estivesse prestes a cair e se quebrar
Em seguida ela se emociona e fala do amor que viveram, enquanto a câmera gira em torno dela
e vemos sua expressão mudar da dor absoluta para a ternura de quem olha para o passado e
consegue enxergar a beleza: “Estava tão bêbada, tão intoxicada. Eu esqueci da realidade e do
tempo. Mas a realidade sempre prevalece. Nosso amor estava indo contra muitas coisas, e eu
aceitei os riscos. E o que recebi em troca foram quatro anos de felicidade com você. Nunca
pensei que a vida se adaptaria aos meus desejos. Paguei um preço muito alto. Mas o que recebi
em troca foi além dos limites. Não estou te acusando, meu amor, e não estou me enganando.
Estas são as regras do jogo, a lei do desejo.” E termina falando do cão, o símbolo máximo da
fidelidade: “Ele sempre sabe quando é você no telefone. Você tem que levá-lo. Ele é como uma
alma perdida. Passa o dia todo procurando por você no apartamento, e quando saímos, por todo
o bairro. E quando eu estava empacotando suas coisas ele me atingiu com as patas. Ele sabe o
que está acontecendo, mas não consegue entende. Como ele pode entender isso? Não, você
deve levá-lo. Ele vai ficar infeliz. Ele já está infeliz. Ele sente muito a sua falta.” É de partir
o coração...

Há algo nessa pequena pérola de Pedro Almodóvar que vai além. Penso que escolher para
o papel dessa mulher, fragilizada e ferida, uma força da natureza como Tilda Swinton é mais um
toque do diretor que ama as mulheres, que revela: ela não se encaixa aqui. Nenhuma mulher
precisa se encaixar.

A elegância inglesa e quase alienígena de Tilda não combinam com a decoração do


apartamento, com o melodrama do texto, com os gestos grandiloquentes de uma mulher
abandonada. Ela parece estar no lugar errado, um lugar falso, ao qual não pertence. E por mais
que ela consiga nos comover com sua dor e nos fazer torcer para que consiga realmente superar
o abandono, diretor e atriz estão de leve piscando para nós, relembrando a todo tempo: isso é
teatro. Essa mulher, a atriz e a personagem, não combina com aquela relação. Ela é
infinitamente maior do que isso, como são todas as mulheres absolutamente fortes que sempre
estiveram presentes nos filmes de Almodóvar.

Ao terminar seu filme com a atriz abandonando o cenário em chamas e partindo em


direção à rua por uma porta aberta onde se vê a luz do dia, acompanhada do cão, Almodóvar
novamente pisca seu olho para suas mulheres: sim, você pode. Vai dar conta, vai superar.

(Sim, homens também são abandonados e sofrem, mas estamos falando aqui do diretor
que, obviamente, ama muito mais o universo feminino)

Janaina Ferreira e Barbosa – Belo Horizonte, fevereiro de 2022

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