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TONY KUSHNER

ANGELS IN AMERICA
Fantasia gay sobre temas nacionais americanos

SEGUNDA PARTE:

PERESTRÓIKA

Tradução:
Isa Mara Lando e Iacov Hillel

Novembro 1995
PERESTRÓIKA

SUMÁRIO

Personagens ............................. 3
Notas do Autor ........................ 6
Agradecimentos ....................... 9

Epígrafe ................................... 11

Resumo das cenas .................... 12

Primeiro Ato ............................ 17


Segundo Ato ........................... 41
Terceiro Ato ............................ 58
Quarto Ato .............................. 93
Quinto Ato .............................. 137
Epílogo ................................... 166

Posfácio ................................... 170

2
PERSONAGENS

O ANJO, quatro emanações divinas, Fluor, Fósforo, Lúmen e Candela,


manifestas em Uma: a Principalidade Continental da América. Ela tem
magníficas asas de um cinza metálico.

PRIOR WALTER, namorado abandonado por Louis. Antes de descobrir


que estava com AIDS, trabalhava ocasionalmente como decorador ou
garçom de clubes; de modo geral vive modestamente com um pequeno
pecúlio.

LOUIS IRONSON, digitador no Tribunal de Apelação, Segunda Zona.

JOSEPH PORTER PITT, ou JOE, chefe de gabinete do Juiz Theodore


Wilson do Tribunal Federal de Apelação, Segunda Zona.

HARPER AMATY PITT, mulher de Joe, agorafóbica, levemente viciada


em Válium e com uma imaginação muito mais forte.

HANNAH PORTER PITT, mãe de Joe; antes morava em Salt Lake City,
agora no Brooklyn; vive da pensão do falecido marido, um militar.

BELIZE, ex-drag queen e ex-amante de Prior. Enfermeiro diplomado. Seu


nome verdadeiro é Norman Arriaga; Belize é o nome de drag, que pegou.

ROY M. COHN, advogado novaiorquino, eminência parda na política,


agora enfrentando sua expulsão da Ordem dos Advogados e morrendo de
AIDS.

3
OUTROS PERSONAGENS DA SEGUNDA PARTE

ALEKSII ANTEDILLUVIANOVICH PRELAPSARIANOV, o


Bolchevique Mais Velho do Mundo, interpretado pela atriz que faz Hannah.

MR. LIES, amigo imaginário de Harper, agente de viagem. No estilo de


vestir e de falar lembra um músico de jazz ; sempre com um grande
distintivo na lapela que diz OIAV (Ordem Internacional dos Agentes de
Viagem). Interpretado pelo ator que faz Belize.

HENRY, médico de Roy, interpretado pela atriz que faz Hannah.

SARAH IRONSON, avó falecida de Louis, que o Rabino enterrou no


Primeiro Ato da Primeira Parte, interpretada pelo ator que faz Louis.

RABINO ISIDOR CHEMELWIZ, rabino judeu ortodoxo, interpretado


pela atriz que faz Hannah.

ETHEL ROSENBERG, interpretada pela atriz que faz Hannah.

EMILY, enfermeira de Prior, interpretada pela atriz que faz o Anjo.

No Diorama do Centro Mórmon de Visitantes no Terceiro Ato, os bonecos


são interpretados pelos seguintes atores:

O PAI pelo ator que faz Joe.


A voz em off de CALEB pelo ator que faz Belize.
A voz em off de ORRIN pela atriz que faz o Anjo.
A MÃE MÓRMON pela atriz que faz o Anjo.

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No Quinto Ato, as Principalidades Continentais,
Anjos-Burocratas/Aparatchiks Celestiais inconcebivelmente poderosos, um
dos quais é o ANJO da América, são interpretados pelos seguintes atores:

ANJO EUROPA pelo ator que faz JOE.


ANJO AFRICANII pela atriz que faz HARPER.
ANJO OCEANIA pelo ator que faz BELIZE.
ANJO ASIÁTICA pela atriz que faz HANNAH.
ANJO AUSTRÁLIA pelo ator que faz LOUIS.
ANJO ANTÁRTICA pelo ator que faz ROY.

A VOZ gravada que introduz Prelapsarianov no Prefácio; dá as boas-vindas


e narra a introdução no Diorama; e entra no Conselho das Principalidades no
Terceiro Ato, Cena Cinco, deve ser a voz da atriz que faz o ANJO. Essas
introduções gravadas devem soar todas iguais; não paródicas; uma voz bela
e séria, como a voz do Anjo invisível soa no Milênio.

5
NOTAS DO AUTOR

ESCLARECIMENTO: Roy M. Cohn, o personagem, é baseado no falecido


Roy M. Cohn (1927-1986), que foi real até demais; a maioria dos atos
atribuídos ao personagem Roy se encontram nos registros históricos. Porém
este Roy é uma obra de ficção; suas palavras são minha invenção, e
liberdades foram tomadas com sua história. O Roy verdadeiro morreu em
agosto de 1986. Para os propósitos da peça, meu Roy morre em fevereiro.
Desejo expressar minha dívida para com a leitura que Harold Bloom
fez da história de Jacó, que li na sua introdução a Variações Musicais Sobre
o Pensamento Judaico, de Olivier Revault D'Allones, onde Bloom traduz a
palavra hebraica "bênção" como "mais vida". Bloom elabora essa
interpretação em O Livro de J.
As traduções para o ídish foram graciosamente oferecidas por Joachim
Neugroschel, e adicionalmente por Jeffrey Salant.
O advogado Ian Kramer forneceu informações essenciais sobre as
tramóias jurídicas da Corte Suprema na era Reagan. Os processos
mencionados no Quarto Ato, Cena 8, são casos verdadeiros, com algumas
circunstâncias e nomes alterados.

NOTA SOBRE A ENCENAÇÃO

A peça se beneficia de um estilo despojado de apresentação, com um


mínimo de cenários e as mudanças de cena feitas rapidamente (sem
blackouts!), empregando o elenco assim como contra-regras - o que gera um
espetáculo impulsionado pelos atores, como deve ser. Os momentos de
magia -- todos eles -- devem ser plenamente realizados, como
acontecimentos de maravilhosa ilusão teatral - o que significa que se os fios
aparecem, tudo bem, e talvez seja bom que apareçam, mas ao mesmo tempo
a mágica deve ser absolutamente estupenda.
Também é preciso dizer que O Milênio se Aproxima e Perestróika são
peças muito diferentes, e se forem produzidas em repertório, essa diferença
deve se refletir no estilo de cada uma. Perestróika avança a partir da
destruição produzida pela traumática entrada do Anjo no final do Milênio.
Uma membrana se rompeu; há escombros e desordem.

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Perestróika é essencialmente uma comédia, pois as questões são
resolvidas, em geral pacificamente; existe crescimento e a perda é, até certo
ponto, aprovada. Mas ela não é uma farsa; tudo isso só acontece com muita
luta, e o que está em jogo é muito alto. O Anjo, as cenas no céu, as cenas
proféticas de Prior, não são lapsos num estilo de comédia escrachada. O
Anjo é imensamente augusto, sério, perigoso e poderoso, sempre, e Prior
corre para salvar a vida, doente, apavorado e sozinho. Cada momento deve
ser representado em sua realidade, os termos são sempre vida e morte; só
então surgirá a comédia. Há também o perigo do sentimento fácil. Fuja do
sentimentalismo! Particularmente no último ato -- mesmo que por vezes
metafórico (ou talvez não) -- os problemas que os personagens enfrentam
estão entre os mais difíceis: como soltar o passado, como mudar e perder
com elegância, como prosseguir diante de um sofrimento arrasador. Não
deve ser fácil.

A TOSSE DO ANJO: É uma tosse só, seca e simples, como um latido, não
como um espasmo efisêmico. A tosse de Ellen McLaughlin era uma
variação do som que faz um gato ao expelir uma bola de pêlos. Era aguda,
simples e efetivamente não-humana.

O VÔO DO ANJO: Se você está montando a peça e pretende ter um Anjo


suspenso no ar, o que é uma boa coisa, previna-se: é incrivelmente difícil
fazer o vôo funcionar. Acrescente uma semana para os ensaios técnicos.

INTERVALOS: Há dois, depois do Terceiro Ato e do Quarto Ato.

7
NOTA SOBRE OS CORTES: A versão final de O Milênio se Aproxima foi
mais sintetizada do que Perestróika. Este texto pode ser encenado como
está, ou numa versão mais curta onde se elimina uma das passagens abaixo,
ou todas as três:

Ato 5, Cena 5: No Conselho das Principalidades Continentais. Toda a


introdução à cena pode ser eliminada, e a cena então começa com o Anjo da
América dizendo "Augustas principalidades, altíssimos anjos: lamento
minha ausência nesta sessão, tive um impedimento." Se esse corte for feito,
a introdução gravada deve dizer: "Todas as Sete Miríades Infinitas
Agregadas Angélicas Entidades..." em vez de "Seis das Sete etc..." e a cena
deve começar com Prior e o Anjo da América já postados no meio das
Principalidades, e não entrando depois do início da cena.

Ato 5, Cena 6 e Cena 7 podem ser cortadas, como consta no texto.

A Cena 7 pode ser encenada depois da fala final de Harper, antes do


Epílogo; se a cena for deslocada, Prior não aparece nela.

A eliminação dessas passagens torna o último ato mais enxuto; porém sinto
que parte da graça e da complexidade da peça se perde. A decisão deve ser
tomada segundo as circunstâncias específicas de cada produção.

Outros pequenos cortes podem ser feitos em outras passagens.

Esta peça foi transformada pelos atores, diretores e designers que


trabalharam nas diferentes montagens.
*

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AGRADECIMENTOS

Venho trabalhando em Perestróika desde 1989. Nesse processo


acumulei muitas dívidas.
Abundante apoio , tanto financeiro como emocional, foi fornecido
pelos meus pais, Bill e Sylvia Kushner, e por minha tia Martha Deutscher.
Meu pai foi de uma ajuda extraordinária na fase final de Perestróika.
Meu irmão e minha irmã, Eric e Lesley, me apoiaram tanto no meu
trabalho como no difícil processo de me assumir como gay; sem o seu amor
e o seu entusiasmo, nunca teria sido possível escrever esta peça. O mesmo
se aplica a Mark Bronnenberg, a quem O Milênio se Aproxima foi dedicado.
Dot e Jerry Edelstien, assim como Marcia, Tony e Alex Cunha me
deram um lar quando eu estava longe do meu lar.
Jim Nicola, do New York Theatre Workshop, me incentivou e
aconselhou durante todo o processo, assim como Rosemary Tischler do New
York Shakespeare Festival. Ambos deram seu sangue pela peça,
literalmente; eles ganharam minha medalha de ouro.
Joyce Ketay, a Agente-Maravilha, e seus sócio Carl Mulert foram
incríveis amigos e guardiãos. Michael Peschaf faz a vida parecer
administrável, e me ajuda a me manter mentalmente são.
Gordon Davidson foi o produtor/pastor mais mão aberta e coração
aberto que um dramaturgo poderia desejar, e toda a equipe do teatro Taper
foi sensacional, fabulosa, divina.
A equipe do National Theatre também foi de um apoio imenso; e sou
grato em especial a Richard Eyre e Giles Croft por acreditar na peça
mesmo nos seus estágios mais primitivos.
Também sou grato a Rocco Landesman, Jack Viertel, Paul Libin,
Margo Lion, Susan Gallin, Herb Alpert, Fred Zollo e às hostes angelicais de
bravos e honrados produtores que se arriscaram nessa absurda experiência
na Brodway.
Mary K. Klinger administrou o show tanto em Los Angeles como em
Nova York, impávida diante de muitas tempestades.

A peça se beneficiou do trabalho dramatúrgico de Leon Katz e K. C.


Davis, assim como dos diretores e atores que participaram em suas várias
oficinas e produções.

9
Stephen Spinella, Joe Mantello e especialmente Ellen McLaughlin
deram valiosas sugestões para a forma e o texto da peça.
Sigrid Wurschmidt, atriz extraordinária e anjo de luz, continua com a
peça embora tenha deixado o mundo.
David Esbjornson, que dirigiu a peça em sua primeira versão em São
Francisco, vem ouvindo e comentando as histórias da peça desde então.
Tony Taccone deu valiosas sugestões na estruturação da peça ao
trabalhar na montagem de Los Angeles.
Declan Donellan e Nick Ormerod projetaram e dirigiram a peça em
Londres. Seus insights me desafiaram, me ajudaram e me incentivaram a
continuar tentando melhorar a peça.

George C. Wolfe tem sido um colaborador inspirador e incansável


neste estágio final de elaborar o script; ele é respeitoso, carismático e de
uma percepção brilhante. O último passo foi o mais difícil, e eu não teria
conseguido sem ele.

Oskar Eustis encomendou Angels in América e se envolveu


intimamente em todos os estágios de seu desenvolvimento. Sem a sua
grande inteligência, talento, amizade e determinação, o projeto não teria nem
começado nem se completado. Comecei Angels como uma conversa, real e
imaginária, entre Oskar e eu; essa conversa nunca cessou, e nunca cessará.

Alguns meses depois que comecei a trabalhar em Perestróika minha


mãe morreu de câncer. Ela é uma presença poderosa na peça.

Nos quinze anos de nossa amizade, Kimberly T. Flynn me ensinou


muito do que hoje acredito ser verdade sobre a vida: teoria e prática. Suas
palavras e idéias estão entremeadas neste trabalho, e a nossa vida juntos é a
rocha em que ele se fundamenta. Perestróika é para Kimberly. Essa peça é
dela tanto quanto minha.

10
Como a alma é progressiva,
ela nunca se repete,
mas em cada ação tenta produzir
algo novo, inteiro, e mais belo.

Ralph Waldo Emerson


"On Art"

11
PERESTRÓIKA - CENAS

PRIMEIRO ATO
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CENA 1 p. 17
O Bolchevique. Depois Anjo e Prior.
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CENA 2 p. 20
Harper, Mr. Lies e Joe na Antártida.
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CENA 3 p. 24
Hannah chega na casa de Joe.
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CENA 4 p. 25
Prior no quarto telefona para Belize no hospital. Depois Henry.
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CENA 5 p. 30
Roy e Belize no hospital.
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CENA 6 p. 37
Louis e Joe no quarto de Louis.
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SEGUNDO ATO
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CENA 1 p. 41
Prior e Belize depois do enterro de uma drag queen.
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CENA 2 p. 44
Prior e o Anjo desenterram os Instrumentos. Depois Belize.
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12
TERCEIRO ATO

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CENA 1 p. 58
Cena dividida:
· Joe e Louis na cama.
· Harper e Hannah no apto. do Brooklyn.
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CENA 2 p. 63
No hospital: Roy, Belize, Ethel.
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CENA 3 p. 69
No Diorama: Hannah, Prior, Harper, Joe,
Caleb (voz de Belize), Orrin (Voz do Anjo).
Depois Louis, Mãe Mórmon.
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CENA 4 p. 80
Joe e Louis na praia.
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CENA 5 p. 87
Roy e Belize no hospital. Depois Ethel.
Louis e Joe continuam no palco.
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CENA 6 p. 91
Na Promenade do Brooklin: Harper e a Mãe Mórmon.
Depois Prior e Louis.
Todos os personagens das cenas 4 e 5 continuam no palco.
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13
QUARTO ATO

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CENA 1 p. 93
Cena dividida:
· Louis e Prior num banco do parque.
· Roy, Belize, Joe e Ethel no hospital.

Quadro 1: Roy e Joe.


Quadro 2: Prior, Louis
Quadro 3: Roy, Joe, Belize.
Quadro 4: Prior, Louis
Quadro 5: Roy, Belize, Ethel.
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CENA 2 p. 105
No escritório de Joe: Prior, Belize e Joe.
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CENA 3 p. 109
Na fonte Bethesda: Louis e Belize
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CENA 4 p. 114
No Centro de Visitantes Mormon: Hannah e Joe. Depois Prior.
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CENA 5 p. 118
Na Promenade: Harper e Joe.
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CENA 6 p. 120
Pronto Socorro: Prior, Hannah, Emily.
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è

14
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CENA 7 p. 125
Harper e Joe na cama.
---------------------------------------------------------------
CENA 8 p. 127
No apartamento de Louis: Louis e Joe.
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CENA 9 p. 133
Hospital: Roy, Belize, Ethel. (Roy morre.)
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QUINTO ATO

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CENA 1 p. 137
Hospital: Prior, Hannah, Anjo.
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CENA 2 p. 140
Prior e Harper no céu. Depois o Anjo.
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CENA 3 p. 143
Hospital: Roy, Ethel, Belize, Louis.
---------------------------------------------------------------
CENA 4 p. 147
Joe, Harper, Roy.
---------------------------------------------------------------
CENA 5 p. 149
No céu, as Principalidades Continentais (todos os atores).
Anjo e Prior. Voz do rádio.
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CENA 6 p. 157

No céu: Prior, Rabino, Sarah Ironson.


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15
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CENA 7 p. 159

Roy se oferece como advogado de Deus.


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CENA 8 p. 160

Prior, Belize, Emily, Hannah, Louis.


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CENA 9 p. 163
Cena dividida:
· No hospital: Prior e Louis (como na cena anterior)
· No Brooklyn: Harper e Joe como no fim da Cena 4, Ato V.
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CENA 10 p. 165

Harper num avião.


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EPÍLOGO - p. 166

Na fonte Bethesda: Prior, Louis, Belize e Hannah.


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FIM

16
PRIMEIRO ATO:
GOSMA
Janeiro de 1986

CENA 1
Na escuridão uma voz anuncia:

VOZ (do Anjo): No Salão dos Deputados, no Kremlin. Janeiro de 1986.


Aleksii Antedilluvianovich Prelapsarianov, o Bolchevique Ainda Vivo
Mais Antigo do Mundo.
(Luz sobre Aleksii num pódio diante de uma grande bandeira vermelha. Ele
é inimaginavelmente velho e totalmente cego.)

ALEKSII: Estamos diante da Grande Pergunta: Estaremos condenados?


Estamos diante da Grande Pergunta: Coseguiremos nos livrar do
Passado? Estamos diante da Grande Pergunta: Poderemos Mudar? Em
Tempo? E todos nós desejamos que venha a Mudança.

(Pequena pausa, daí com súbita e violenta paixão:)


E a Teoria? Como devemos proceder sem Teoria? Que Sistema
de Pensamento esses reformadores têm a apresentar a esta louca
desorganização planetária, a este confuso turbilhão de fatos, eventos,
fenômenos, calamidades? Será que eles têm, como nós tivemos, uma
bela Teoria, uma concepção tão arrojada, tão Grandiosa, tão
abrangente...?

17
Ah, vocês não podem imaginar, quando pela primeira vez nós
lemos os Textos Clássicos, quando, na noite escura e tormentosa da
nossa ignorância e do nosso terror, as palavras-sementes brotaram e
enxotaram a incompreensão, quando a incrível luta sangrenta
explodiu na Floração Vermelha e nos deu a Práxis, a Verdadeira
Práxis, a Verdadeira Teoria casada com a Vida Real... Vocês, que
vivem nesta Épocazinha tão Azeda, não podem imaginar a majestade
da perspectiva que nós contemplávamos: era como estar no topo do
mais alto pico do poderoso Caúcaso, e mirar, num único olhar
onisciente, as montanhas de granito, a ordem da criação. Vocês não
podem imaginar. Eu choro por vocês.
E agora, o que têm vocês para oferecer, filhos desta Teoria? O
que têm vocês para oferecer no seu lugar? Incentivos de Mercado?
Cheeseburguers Americanos? Um pseudo-capitalismo espúrio,
aguado, bukarinista! Homens da NEP! Filhos pigmeus de uma raça de
gigantes!
Mudar? Sim, precisamos mudar, mostrem-me apenas a Teoria,
e eu estarei nas barricadas, mostrem-me o livro da Bela Teoria que
virá, e eu lhes prometo que estes olhos cegos voltarão a enxergar, só
para ler esse livro, para devorar esse texto. Mostrem-me as palavras
que vão reordenar o mundo, ou então... silêncio.
Se a serpente soltar sua pele antes que uma nova pele esteja
pronta, nua estará no mundo, presa das forças do caos. Sem a pele ela
irá se desintegrar, perderá a coerência e morrerá. E vocês, minhas
cobrinhas, já têm uma nova pele?

18
(Um tremendo barulho de algo rasgando e quebrando, a grande bandeira
voa para fora, e a luz acende sobre o mesmo quadro do final da Primeira
Parte: Prior encolhido na sua cama, cheia de detritos caídos do teto de seu
quarto; e o Anjo, numa veste de extraordinária branqueza, descalça e
magnífica, pairando no ar, de frente para ele.)

ALEKSII: Então nós não ousamos, não podemos, NÃO DEVEMOS


avançar!

ANJO:
Salve, Profeta!
A Grande Obra Vai Começar:
O Mensageiro chegou.

PRIOR: Vai embora.


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19
ATO I, CENA 2

(A mesma noite do final de O Milênio se Aproxima. Sons de vento, neve e a


mágica música da Antártida. Mr. Lies está sentado sozinho, tocando oboé,
na Antártida imaginária de Harper. Ele pára de tocar e mostra o oboé.)

MR. LIES: Oboé: instrumento oficial da Ordem Internacional dos Agentes


de Viagem. Se o pato fosse um pássaro cantor, ele cantaria assim.
Nasal, desolado, o grito das coisas migratórias.

(Harper entra arrastando um pequeno pinheiro que ela derrubou. A roupa


de explorador do MILÊNIO se foi; ela está com a roupa arranjada às
pressas com que fugiu do apartamento no fim do Segundo Ato do MILÊNIO.
já está fora de casa há três dias e o aparenta -- suja e desgrenhada.)

HARPER: ESTOU CONGELADA! ESTÁ FRIO DEMAIS! O que


aconteceu com o aquecimento global?
MR. LIES (apontando a árvore:) Onde você arranjou isso?
HARPER: Nas grandes florestas de pinheiro da Antártida. Bem ali, atrás
daquela colina.
MR. LIES: Não existem florestas de pinheiros na Antártida.
HARPER: Esse aqui é um pinheiro azul.
MR. LIES: Não há pinheiros azuis na...

20
HARPER: Eu roí esta árvore. Com os dentes. Que nem um castor. Estou
com fome, faz três dias que eu não como! Vou usar isso aqui pra
fazer... alguma coisa, talvez uma fogueira.
(Procura nos bolsos uma caixa de fósforo, encontra.)
Sorte que eu trouxe.
(Põe fogo na árvore. Sai fumaça.)

MR. LIES: A neve vai derreter.


HARPER: Deixa. Sai fumaça porque está úmida.
(Mr. Lies toca seu oboé).
HARPER: Não compreendo por que eu não estou morta. Quando o coração
da gente se quebra, a gente devia morrer. Mas ainda tem o resto da
pessoa. Tem os peitos, tem os órgãos genitais, e eles são de uma
estupidez incrível, que nem bebês ou cachorrinhos fiéis, eles não
entendem, eles só desejam. Desejam a ele.

(Joe entra na cena, vestido com o terno e o casaco com que paquerou Louis
no Terceiro Ato, Cena 7 do Milênio. Olha em volta, sem saber onde está, até
que vê Harper.)

MR. LIES: O esquimó voltou.


HARPER: Eu sei. Eu queria um esquimó de verdade, um sujeito frio, de
confiança, um esquimó vestido com pele de foca, não esse, esse aí é
só um... advogado, só um ...

21
JOE: Ei, benzinho.
HARPER: Ei.
JOE: Procurei você. Por todo lugar.
HARPER: Bom, você me encontrou.
JOE: Não, eu... Agora eu não estou procurando. Acho que estou
tendo uma aventura.
HARPER: Com quem?
JOE: Você não conhece. Aliás, nem eu conheço.
HARPER: É divertido?
JOE: Divertido de dar medo.
HARPER: Posso ir com você? Isso aqui não está mais dando certo. Estou
com frio.
JOE: Eu não gostaria que você visse.
HARPER: Acha que é pior do que eu imagino? Não é.
JOE: Tenho que ir.
HARPER: Filho da mãe. Você não gosta mais de mim.
JOE: (Sincero:) Não é verdade, Harper.
HARPER: (Quebrando:) ENTÃO VOLTA!
(Pequena pausa)
JOE: Não posso.

(Ele desaparece. Mr. Lies toca o oboé, um breve e selvagem lamento. A


mágica noite da Antártida vai se esvaescendo, substituída por uma dura luz
de sódio e os sons comuns do parque e da cidade à distância.)

22
MR. LIES: Blues pela morte dos céus.
HARPER: (Despedaçada, amedrontada:) Não!
MR. LIES: Você foi longe demais. Abriu um buracão no céu.
HARPER: Se eu fosse uma boa mórmon, eu teria conseguido.
MR. LIES: Eu falei pra você. Não existem esquimós na Antártida.
HARPER: Não. Nem árvores também.
MR. LIES: (Aponta o pinheiro mastigado) Então onde você arranjou isso?
HARPER: No Jardim Botânico. É bem ali. No Parque Prospect. Ainda
estamos no Brooklyn, acho eu.

(Piscam os faróis de um carro de polícia.)

MR. LIES: (Desaparecendo) A lei. No duro.


HARPER: (Levantando os braços:) Em cana. Droga. Que porcaria de
férias.
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23
ATO 1, CENA 3
(No apartamento de Joe e Harper no Brooklyn. O telefone toca. Hannah,
com as malas e o casaco que tinha no Terceiro Ato, Cena 4 do Milênio,
entra no apartamento, põe as malas no chão, corre para o telefone:)

HANNAH: (Exausta, lúgubre:) Residência de Joseph Pitt. Não, ele não


está. Aqui é a mãe dele. Não, não tenho idéia de onde ele está. Não
faço idéia. Ele tinha de me encontrar no aeroporto, mas eu não espero
mais de 3 horas e 45 minutos por ninguém... O quê? AH, MEU
DEUS! Escuta, ela... O senhor... Um momento, sr. delegado, eu não...
Ela fez o quê? Um pinheiro? Mas por que raios ela iria roer... (Muito
severa) Bem, o senhor não tem nada que rir disso tudo, pode parar de
rir agora mesmo. Isso é muito feio.
Não, não sei onde é, acabo de chegar de Salt Lake City e a
custo consegui achar o Brooklyn. Vou pegar... um táxi. Sim, claro que
agora mesmo! Não. Nada de hospital. Não precisamos de nada disso.
Ela não é louca, é apenas diferente. Diga a ela que a sogra dela,
Hannah Pitt, já vai chegar.

(Hannah desliga.)
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24
ATO 1, CENA 4:
(Prior na cama, sozinho, dormindo, na mesma noite. O quarto está intacto,
não há vestígio do teto demolido. Está tendo um pesadelo. Ele acorda.)

PRIOR: Ah! Ai.


(Olha debaixo da coberta, descobre que o pijama está molhado de
esperma.)
Puta que pariu!
Dá pra acreditar! Há meses eu não tenho um orgasmo e quando chega
essa porra, me pega dormindo!

(Pega o telefone, disca. O telefone toca no posto de enfermagem onde Belize


trabalha, no décimo andar do Hospital Nova York. Belize atende.)

BELIZE: Décimo andar.


PRIOR: Estou encharcado de porra.
BELIZE: De porra?
PRIOR: É, gosma. Esperma. Ejaculação.
BELIZE: Porra!
PRIOR: É bem onomato-poético. Tive um sonho molhado.
BELIZE: Bem, já era hora. A senhora Dona Coisa andava muito abstêmia.
Acumulou beaucoup de porra.
PRIOR: Era uma mulher.
BELIZE: Você não me vai virar bofe?
PRIOR: Não era uma mulher convencional.

25
BELIZE: Grace Jones?
(Pequena pausa. Prior olha para o teto.)
BELIZE: Alô?
PRIOR: Um anjo.
BELIZE: Ah, FABULOSO.
PRIOR: Estou me sentindo... lascivo. Vem até aqui.
BELIZE: Eu já passei o dia inteiro com você, eu tenho minha própria vida,
sabia?
PRIOR: Estou triste.
BELIZE: Achei que você estava lascivo.
PRIOR: Lascivamente triste. Maravilhoso e horrível ao mesmo tempo,
como... como se tivesse uma guerra aqui dentro. Meus olhos estão
gozados, eu... (Toca os olhos.) Ah.
Estou chorando.
BELIZE: Prior?
PRIOR: Estou com medo. E também estou cheio de, sei lá, alegria ou
qualquer coisa do gênero. Esperança.

. . . . .

26
(No hospital, entra Henry, o médico de Roy.)

HENRY: É você o enfermeiro de plantão?


BELIZE: Yeah!... Escuta, meu bem, tenho que desligar, eu vou...
HENRY: É você o enfermeiro de plantão?
BELIZE: (para Henry) Eu falei "Yeah".
PRIOR: Primeiro canta alguma coisa. Canta comigo.
HENRY: Por que você está vestido desse jeito?
BELIZE: O senhor não gosta?
PRIOR: Só uma musiquinha. Um hino de igreja.
HENRY: Os enfermeiros têm que se vestir de branco.
BELIZE: E os médicos têm que estar na casinha deles, dormindo.
(Para Prior:) Qual hino?
PRIOR: Hã... "Os Anjos Vêm Anunciar..."
HENRY: Enfermeiro.
BELIZE: Um momento, por favor. É uma emergência.
(Para Prior, canta:)
"Os Anjos Vêm Anunciar..."

PRIOR: (Canta junto:) Glória ao rei recém-nascido.


PRIOR e BELIZE: (Continuam)
Paz na terra, bondade e compaixão
Deus aos pecadores dá o seu perdão.
HENRY: (Junto com a canção:) Qual é o seu nome?

27
BELIZE e PRIOR: (Cantam mais alto):
Nasceu Cristo em Belém, nasceu para o nosso bem
Com os anjos dai louvor, glória a Nosso Senhor!
BELIZE: Depois eu te ligo. Tem um homem me incomodando.
PRIOR: Je t'aime.
(Belize desliga.)
BELIZE: Posso servi-lo em alguma coisa, doutor, ou o senhor está só me
paquerando?
HENRY: Paciente da emergência, quarto 1013. Esse é o prontuário. (Dá a
Belize fichas médicas.) Comece o soro e a gamaglobulina. Ele
também vai precisar de CTM, radiação amanhã de manhã, quer dizer
dieta leve e ...
BELIZE: (Lendo o prontuário) "Câncer no fígado"? Cancerologia é no
sexto andar, boneca.
HENRY: É neste andar mesmo.
BELIZE: Diz aqui câncer no fígado.
HENRY: (Estourando) Fôda-se o que diz aí! Eu digo que é neste andar,
aqui mesmo. Entendeu?
BELIZE: Ah! Teimoso...
HENRY: Ele é um homem muito importante.
BELIZE: Certo, certo. Quer dizer que é pra eu não fuder com a medicação
dele?
HENRY: Volto amanhã de manhã.
BELIZE: Vai direitinho para casa.
(Henry sai.)

28
BELIZE: Bundão.

(Belize pega o telefone e disca; Prior atende)

PRIOR: Alô?
BELIZE: Tenho um prato quentíssimo, saído do forno.
PRIOR: Como assim, quentíssimo, às três da manhã?
BELIZE: Ponha suas luvas refratárias.
Adivinhe quem acaba de entrar no hospital, doentinho?
A Rainha Diaba em pessoa. A bicha enrustida número um de Nova
York.
PRIOR: O prefeito Ted Koch?
BELIZE: Não! Não é ele. (Cochicha algo no telefone.)
PRIOR: (Chocado, depois:) Misteriosos são os caminhos de Deus.
BELIZE: Minha amiga, pode me arranjar o martelo e a estaca. Eu vou à
luta.
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29
ATO 1, CENA 5:

Roy na cama de hospital, doente e muito assustado. Belize entra com o soro.

ROY: Sai daqui, seu, eu não tenho nada pra falar com você...
BELIZE: Estou apenas cumprindo meu...
ROY: Quero um enfermeiro branco. A constituição me garante esse direito.
BELIZE: A constituição não te garante nenhum direito. Você está num
hospital.
(Belize começa a preparar o braço direito de Roy para o soro,
apalpando a veia, desinfetando etc.)
ROY: (ficando nervoso com a agulha) Acha logo essa veia, seu idiota, não
vai ficar espetando essa porra dessa agulha no meu braço, se não eu te
tasco um processo na cara que 'cê vai pagar até os dentes, seu negro
tapado filho duma...
BELIZE: (já aguentou demais; muito feroz) Cuidado. Cuidado aí. Não fale
assim comigo enquanto eu estiver segurando uma coisa tão
pontiaguda. (mostra a agulha). Se não eu te enfio isso aqui bem no
coração. Se é que você tem coração.
ROY: Ah, tenho sim. Musculozinho durão. Não sangra nunca.
BELIZE: Pode crer.
Escuta aqui, eu aplico soro há muito tempo. Eu sou capaz de
escorregar essa agulha tão fácil que você vai achar que já nasceu com
ela. Ou então fazer você se sentir dependurado num gancho, levando
óleo de rícino. Portanto, comporte-se comigo, se não amanhã de
manhã você vai estar um cu.

30
ROY: "Comporte-se".
BELIZE: Pois é, comportadinho e bem quietinho.
(Belize enfia a agulha no braço de Roy.) Pronto.
ROY: (Zangado:) Está doendo.
BELIZE: Eu te arranjo um analgésico.
ROY: Pra me deixar nocaute?
BELIZE: Espero que sim.
ROY: Então enfia. A dor... não é nada, dor é vida.
BELIZE: Merece uma música. Canta, baby.
ROY: Quando eu fiz o lifting, mandei dar anestesia local. Eles levantaram
minha cara inteira, como se fosse um guardanapo, e eu fiquei bem
acordado, vendo tudinho.
BELIZE: Conversa fiada. Médico nenhum aceitaria fazer isso.
ROY: Eu posso fazer qualquer pessoa fazer o que eu quiser. Por exemplo:
vamos ser amigos. (Canta:) "We shall overcome..."
Judeus e negros, a coalizão liberal histórica, certo? Já que meu povo
foi o primeiro que vendeu a varejo para o seu povo, e o seu povo foi o
primeiro que o meu povo podia empregar para varrer a loja sábado de
manhã, e daí nós todos nos demos as mãos e tomamos o ônibus para
Selma, junto com Martin Luther King. Eu não, claro, eu não ando de
ônibus, eu tomo táxi. Mas o interessante no negro americano é que ele
nunca virou comunista. Quem virou comunista foram os judeus
fracassados. Mas o seu povo tinha Jesus, e assim os comunas nunca
conseguiram nada com vocês. Isso eu admiro.
BELIZE: O seu prontuário não diz que você tem delírios.

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ROY: Doido varrido. Sente. Fale.
BELIZE: Sr. Cohn, eu preferiria chupar o pus de uma ferida. Preferiria
beber a água de uma privada do metrô. Preferiria morder a minha
língua e cuspi-la nessa sua cara de pau. Portanto, obrigado pelo seu
convite à conversação, mas eu passo.
(BELIZE vai saindo, apagando a luz.)

ROY: Ah, pelo amor de Deus. O que é que eu tenho que fazer? Implorar?
Não quero ficar sozinho.
(BELIZE pára.)

ROY: Ah, que merda, como eu odeio esses hospitais, esses enfermeiros,
essa perda de tempo... E o esgotamento, a fraqueza, eu quero matar
esse... Naturalmente eles não conseguem matar isso aí, não é?
(Pausa. Belize não diz nada.)

ROY: Não. É simples demais. Ele conhece a si mesmo. É mais difícil matar
alguma coisa quando ela sabe o que ela é. É como os piolhos. Você já
teve piolhos, chatos, nos pêlos genitais?
BELIZE: Isso não é da sua...
ROY: Uma vez eu peguei uns super-chatos dum garoto aí, precisei dar uns
vinte banhos de Kwell e no fim tive que raspar tudo pra me livrar
daqueles filhos da puta. Nada acabava com eles, nada. E cada vez que
eu me coçava eu sorria, porque aprendi a respeitá-los, aqueles chatos
impossíveis de matar, porque... aprendi a me identificar. Sabe como
é? Obstinadas formas primárias de vida. Como eu. Escuta, você já viu
muitos caras com essa...

32
BELIZE: (Pequena pausa, daí:) Muitos.
ROY: Que tal a minha aparência, comparativamente?
BELIZE: Eu diria que você está com sérios problemas.
ROY: Vou morrer. Logo.
Ei. Fiz uma pergunta.
BELIZE: Provavelmente. Provavelmente.
ROY: Ah. Obrigado pela... franqueza, ou sei lá...
Se eu sobreviver, posso te processar por stress emocional, posso
processar o hospital inteiro, mas...
Não tenho preconceitos, não sou preconceituoso.
(Pausa. Belize só olha para ele.)
ROY: Esses racistas são uns simplórios, não servem pra nada -- são muito
rígidos. A gente deve ficar de olho é no inimigo mais poderoso. Eu
guardo meu ódio para o que realmente conta.
BELIZE: Muito bem. Acho que é uma boa idéia.
(Pequena pausa. Daí, com grande esforço e repugnância:)
Olha, isso não é idéia minha e eu não gosto de você, mas deixa eu te
dizer uma ou duas coisinhas:
Amanhã eles vão te levar para aplicar uma radiação no sarcoma, nas
lesões, e você não deve deixar, porque a radiação vai matar as suas
células T e você não pode se dar ao luxo de perder as poucas que
ainda te restam. Portanto, diga ao médico que muito obrigado, mas
radiação não. Ele não vai querer te escutar. Trate de convencê-lo.
Se não, ele vai te matar.

33
ROY: Você não passa de um enfermeirinho de merda. Por que eu haveria de
ouvir o que você diz, em vez de ouvir o meu médico, extremamente
qualificado, extremamente caro, anglo-saxão, branco?
BELIZE: Ele não é viado. Eu sou.
(Belize pisca para Roy.)
ROY: Não pisque para mim.
Você disse uma ou duas coisinhas. Então essa é uma.
BELIZE: Eu não sei que pauzinhos você andou mexendo para entrar nos
testes do AZT.
ROY: Tenho meus jeitinhos.
BELIZE: Ã-hã.
Cuidado com o teste cego. Eles vão te pedir para assinar uma
autorização pra te darem um placebo, uma balinha de açúcar, em vez
do remédio de verdade. Você morre, mas eles conseguem as
estatísticas pra publicar nas revistas de medicina. E você não pode
processar niguém, porque você assinou. E se você não assinar, neca
de comprimidos. Portanto, se você ainda tem algum pauzinho para
mexer, mexa, porque aqui eles fazem todo mundo passar por esse
teste cego, e com isso aí que você tem, o tempo corre contra você, não
dá pra ficar brincando com remedinho faz-de-conta.
ROY: Você me odeia.
BELIZE: Odeio.
ROY: Por que você está me contando isso?
BELIZE: Eu bem que gostaria de saber.
(Pausa)

34
ROY: (Muito agressivo) Você é um enfermeirinho de merda, uma bichinha,
uma neguinha xexelenta. Você tem poucos motivos pra querer me
ajudar.
BELIZE: Solidariedade. De viado para viado.
(Belize estala os dedos, vira-se, sai. Roy grita para ele:)
ROY: Mais uma insolência, seu viadinho, e amanhã mesmo você vai estar
fritando hamburguer lá no meio do inferno!

(Pega seu telefone ao lado da cama.)

E me arranja um telefone de verdade, com botão de espera, olha só


essa porcaria, só tem uma linha, você acha que com isso eu posso
desempenhar minhas funções corporais básicas?

(Pensa um minuto, pega o fone, bate no gancho várias vezes.)

Sim, quem é, telefonista? Me dá uma linha. Bom, então faz a ligação


pra mim. Querida, trata-se de uma emergência médica, me liga pra
essa porra desse número se não eu me estrangulo com o fio do
telefone. 202-733-8225.

(Pequena pausa)

35
ROY: Martin Heller. Oi, Martin. Sei, eu sei que horas são, é que eu não
estou conseguindo dormir, estou muito ocupado, morrendo. Escuta
aqui, Martin, esse remédio que eles vão me dar, esse tal de azido-tico
-mico... Pois é, AZT. Olha aqui, Martin, eu quero o meu estoque
particular. De remédio de verdade, remédio mesmo. Que eu controle,
aqui no meu quarto, comigo. Nada de placebos, nunca gostei de testes,
Martin, prefiro colar no exame. Portanto, trata de me mandar meus
comprimidos, junto com um buquê de estimo as melhoras, PRONTO,
se não eu vou ligar para a CBS e cantar uma canção pro Mike
Wallace: A balada do adorável Oliver North e de seu fundo secreto a
favor dos contras.

(Afasta o fone do ouvido; Martin está exaltado.)

Você acha que sabe tudo que eu sei. Nem eu mesmo sei tudo que eu
sei. Em geral eu invento, e acaba virando verdade! Nós aprendemos
esse truque nos anos 50. Amanhã, seu insignificante, seu montinho de
merda seca. Uma bela caixa bem grande de remédio pro Titio Roy. Se
não eu vou armar um inferno. Aliás, sete infernos
(Bate o telefone.)
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36
ATO 1, CENA 6:
Mesma noite. Joe e Louis no novo apartamento de Louis nos desertos
árticos de Alphabetland, em Nova York; nu, sem mobília, sem pintar,
desarrumado, lúgubre. Pequena pausa tensa. Louis, envergonhado, olha o
quarto.

LOUIS: Alphabetland. Nesse bairro aqui os judeus vinham morar logo que
chegavam na América. E agora, cem anos depois, é para cá que vêm
os seus netos, com a cuca bem mais fundida.
(Com sotaque ídish:) Isso é progresso?
É uma bagunça terrível.
JOE: Está um pouquinho sujo.
LOUIS: Bagunçado, não sujo. É uma diferença importante. É poeira, não
sujeira. É químico, mineral, não é orgânico. Não são micróbios, é
mais assim... posso tirar sua gravata?
(Louis se aproxima de Joe)
JOE: (Dando um passo atrás) Não, espera, estou, ahn... ahn... meio
constrangido, na verdade.
LOUIS: Eu também, na verdade. Ficar constrangido me dá tesão.
JOE: O seu, ahn, namorado.
Está doente.

37
LOUIS: Muito doente. Ele não é meu namorado, nós...
Podemos envolver com látex tudo que vaza, podemos lambuzar
nossos corpos com nonoxinol-9, safe sex, sexo seguro, sexo químico.
Grudento, mas não sujo.
(pequena pausa)
Escuta, eu quero, mas não quero implorar.
JOE: Não, eu...
LOUIS: Ah, vamos. Por favor.
JOE: Eu devia ir embora.
LOUIS: Ótimo! A vida continua. Obladí, obladá, life goes on. Ráh.
JOE: O quê?
LOUIS: Vai, volta pra casa logo, a patroa está esperando.
(Apontando a mão esquerda de Joe: )Os cavalheiros casados antes de
sairem à caça devem primeiro retirar suas alianças de ouro.
Vai, então, já que você vai mesmo. Vai.
(Joe vai saindo. Há um momento na porta: Joe hesita, Louis o
observa. Joe vai até Louis, lhe dá um abraço colegial.)

JOE: Não vou ficar.


LOUIS: (Cheirando:) Que perfume é esse?
JOE: (Um tempo, daí:) Fabergé.
LOUIS: Ah! Bem macho, bem heterossexual, tipo colégio interno
masculino. Fabergé.
(Louis com gentileza sai do abraço, dá um passo atrás:)
LOUIS: Você tem um cheiro bom.
JOE: Você também.

38
LOUIS: Cheirar... É um fenômeno físico tão complexo e pouco apreciado.
Intrinsecamente ligado ao sexo.
JOE: Ahn... Eu não sabia.
LOUIS: É, sim. O nariz na verdade é um órgão sexual. Cheirar. É desejar.
Nós temos cinco sentidos, mas só dois que vão além dos limites... da
gente mesmo. Quando você olha para alguém, é só a luz refletida;
quando você escuta alguém, são apenas ondas sonoras, vibrando no
ar. O toque são apenas as extremidades nervosas formigando. Mas o
cheiro, sabe o que é?
JOE: É... uma espécie de... Não.
LOUIS: O cheiro é feito de moléculas, daquilo que você está cheirando.
Uma parte de você é transportada pelo ar.
(Chega bem perto de Joe.)
Pequeninas moléculas do Joe... (Inspira profundamente.) Entrando
pelo meu nariz.... Mmm... Que bom. Experimenta.
JOE: Experimenta...?
LOUIS: Inspira. (Joe inspira.)
LOUIS: Não é bom?
JOE: É.
Eu...
LOUIS: (Baixinho:) Ssssshhhhh.
Cheirar. E saborear. Primeiro o nariz , depois a língua.
JOE: É que eu não...

39
LOUIS: Os dois trabalham juntos, como um time. O nariz fala ao corpo --
ao coração, à mente, aos dedos, ao pau -- o que ele quer, e daí a língua
vai explorando, descobre o que é comestível, o que não é, o que é
mineral, alimento pro sangue, alimento para os ossos, e portanto mais
deleitável. (Lambe o rosto de Joe.) Sal.
(Louis beija Joe, que se reprime um momento e então corresponde.)
LOUIS: Humm. Ferro. Barro.
(Louis enfia a mão dentro da calça de Joe. Os dois se abraçam mais
apertado. Louis tira a mão, cheira os dedos e os enfia na boca, daí os
estende para Joe cheirar.)
LOUIS: Cobre. Cloro. Terra.
(Beijam-se de novo.)
LOUIS: Tem gosto de quê?
JOE: Ahn...
LOUIS: O quê?
JOE: Bom... Tem gosto de noite.
LOUIS: Fica?
JOE: Fico. (pequena pausa.)
Louis?
LOUIS: (Desabotoando a camisa de Joe) Heim?
JOE: O que quer dizer aquilo, obladí, obla...
LOUIS: Sssssh. As palavras são a pior coisa. Respira. Sente o cheiro.
JOE: Mas...
LOUIS: Vamos parar de falar. Ou então, se você tem que falar, fala
sacanagem.
FIM DO PRIMEIRO ATO

40
SEGUNDO ATO
A EPÍSTOLA
(Para Sigrid Wurschmidt)
Fevereiro de 1986

ATO II, CENA 1


Prior e Belize depois do enterro de um amigo comum, uma grande drag-
queen de Nova York. Estão parados em frente a uma capela dilapidada no
Lower East Side. Belize está com roupas desafiadoramente belas e vistosas.
Prior está com uma roupa estranha: um longo casacão preto e uma enorme
echarpe combinando, com franjas, passada em volta da cabeça como um
capuz. Sua aparência é desconcertante, ameaçadora, e lembra vagamente
algo bíblico.
[Em todas as cenas seguintes em que Prior aparece, é essa a sua roupa --
ele acrescenta elementos e faz pequenas mudanças, mas ela permanece
fundamentalmente corvina, esfarrapada e sinistra.]
Passaram-se três semanas desde o Primeiro Ato.

PRIOR: Foi bem brega.


BELlZE: Foi divino.
Ele foi uma das Grandes Rainhas da Purpurina. Não podia ser
enterrado como um civil. Numa nuvem de incenso e purpurina ele
veio ao mundo, com incenso e purpurina ele se foi. É isso aí!
PRIOR: Achei um pouquinho a vinte carpideiras profissionais trazidas
especialmente da Itália.
(pequena pausa)
Uma grande drag queen; grande bosta. Aquele espetáculo ridículo,
uma paródia do enterro de alguém que realmente é importante. Nós
não somos importantes, nós viados; somos apenas um pesadelo que o
mundo real está tendo, e o mundo real está acordando. E ele morreu.

41
(pequena pausa)
BELIZE: Meu bem, ultimamente você anda muito esquisito. Vai, levanta o
astral!
PRIOR: Ah, desculpa, foi apenas um enterro, não é, pelo amor de Deus,
motivo de comemoração, não é verdade, desculpa se eu não consigo
comemorar junto com vocês, viciados em cemitério, ficam festejando
sua própria sobrevivência diante daquela...
... daquela morte tão feia, porque eu não sou como vocês, eu não
tenho nada para festejar. Bom, deixa pra lá.
(pequena pausa zangada)
BELIZE: E você está igual a Mortícia da família Addams.
PRIOR: Igual à cólera divina.
BELIZE: Pois é.
PRIOR: Esse era o efeito desejado.
Meus olhos estão fodidos.
BELIZE: Fodidos como?
PRIOR: Está tudo... se fechando. Uma coisa estranha na periferia.
BELIZE: Desde quando?
PRIOR: Três semanas. Desde aquela noite. Desde aquela noite que...
(ele se interrompe)
BELIZE: Bom, e o que diz o oftalmologista?
PRIOR: Não fui procurar.
BELIZE: Ah, pelo amor de Deus. Por quê?
PRIOR: Eu estava melhorando. Antes.
Lembra do meu sonho molhado?

42
BELIZE: O anjo?
PRIOR: Não era sonho.
BELIZE: Claro que era.
PRIOR: Não. Não acho. Acho que aconteceu de verdade. Eu sou um
profeta.
BELIZE: Como é que é?
PRIOR: Me deram uma profecia. Um livro. Não um livro físico -- quer
dizer, tinha um, mas eles pegaram de volta, mas de algum jeito esse
livro ainda existe. Dentro de mim. Uma profecia. Ãn...aconteceu de
verdade, eu ... tenho quase certeza.
(Olha para Belize)
Ah, pára de fazer essa cara tão...
BELIZE: Você está me dando medo.
PRIOR: Foi depois que o Louis me deixou. Todas as noites eu tinha aqueles
sonhos horríveis, tão vivos. E aí...
(pequena pausa)
BELIZE: E aí...?
PRIOR: Aí Ela chegou.

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43
ATO II, CENA 2

Prior no quarto e o Anjo, três semanas antes: o teto desabado, Prior vai até
a cama (enquanto veste o pijama), o Anjo no ar. Belize observa da rua.
ANJO: Salve, Profeta!
A Grande Obra vai Começar:
O Mensageiro chegou.
PRIOR: Vai embora.
ANJO: Ouve:
PRIOR: Ah, meu Deus, tem uma coisa no ar, uma coisa, uma coisa.
ANJO: Eu eu eu eu
Sou o pássaro da América, a Grande Águia,
A Principalidade Continental,
LÚMEN FÓSFORO FLÚOR LUX!
Abro minhas asas, reluzente aço,
Eu te saúdo, abrindo as asas diante de ti:
PRIOR WALTER,
De longa estirpe, bem preparado...
PRIOR: Não, eu não estou preparado, para nada, tenho muita coisa pra
fazer, eu...
ANJO: (com outra golfada de música)
Esta noite te tornarás Profeta Americano,
Olho Americano penetrando a escuridão,
Coração Americano ardendo pela Verdade,
O Verdadeiro Porta-Voz, Mente Sabedora,
Língua da terra, Cabeça de vidente!

44
PRIOR: Xô! Xô! Você está me dando um puta medo, vai embora do meu
quarto, por favor, ah, por favor...
ANJO: Agora:
Retire do esconderijo os Sagrados Instrumentos Proféticos.

(pequena pausa)
PRIOR: Retire o quê?
ANJO: Retire do esconderijo os Sagrados Instrumentos Proféticos.
(pequena pausa)
Isso já te foi revelado em sonhos.
PRIOR: Que sonhos?
ANJO: Os teus sonhos já te revelaram...
PRIOR: Faz meses que eu não consigo lembrar de nenhum sonho.
ANJO: Não... sonhos... Tem certeza?
PRIOR: Tenho. Bom, teve os dois mortos, os dois Priors, eles...
ANJO: Não, não, os arautos não. Outros sonhos. Instrumentos, você tem
que... Um momento.
PRIOR: Isso, isso é sonho, claro, estou doente então eu... Tá bom, é um
sonho bem espetaculoso, mas mesmo assim é só um...
ANJO: Silêncio. Profeta. Um momento, por favor, eu... A desorganização
é... (Ela tosse, olha para cima.) Ele disse que não teve nenhum...
(Tosse.)
Sim.
Na cozinha. Embaixo da pia, debaixo dos ladrilhos.
PRIOR: Você quer que eu... arrebente o chão da cozinha?

45
ANJO: Vá buscar um machado, uma picareta, uma ... ferramenta para
remover o entulho e desenterre os Sagrados Instrumentos.
PRIOR: Mas nem fodendo! Já basta o estado desse teto, eu vou ser expulso
daqui, vou perder o depósito que eu paguei, vou acordar os vizinhos
de baixo, com aquele cachorro histérico... Ah, faça você mesma. Do it
yourself!
ANJO: (numa voz realmente aterrorizante)
SUBMETA-SE, SUBMETA-SE À VONTADE DOS CÉUS!

(Uma enorme rajada de vento derruba Prior. Caído no chão ele olha fixo
para ela e faz "não" de cabeça. Um impasse. O Anjo tosse um pouco. Há
uma pequena explosão suave na cozinha, nos bastidores. Vem flutuando
uma nuvem de pó de gesso.)

PRIOR: O que que você... Mas o que ...? (sai para a cozinha)
ANJO: E eis que o Profeta foi levado pelos seus sonhos noturnos até o
esconderijo dos Sagrados Instrumentos, e... Revisão no texto:
Desentrerrou-os com o auxílio do Anjo, pois seu corpo estava fraco,
mas não a sua vontade.

(Prior volta com uma antiga mala de couro, muito empoeirada.)

PRIOR: Você rachou a geladeira no meio, deve ter soltado uma puta nuvem
de fluorocarbonetos, isso é péssimo para o... meio-ambiente.
ANJO: Minha cólera é tão temível como meu semblante é esplêndido. Abre
a mala.

46
(Prior abre. Tira de dentro um par de óculos de bronze com pedras
no lugar de lentes).

PRIOR: Ah, mas olha só. (Põe os óculos.)


Uau! Meu! É totalmente paleozóico! Isso aqui é... (Pára de repente.
Levanta a cabeça num movimento brusco. Está vendo alguma coisa.)
AH! MEU DEUS, AH, NÃO! AH... (arranca os óculos.)
Ah, terrível! Não quero ver isso!
ANJO: Pega o livro.
(Prior tira da mala um grande livro com páginas reluzentes de aço.
Há uma golfada de música realmente gloriosa, mais luz, mais vento.)
ANJO: O Conselho das Principalidades Continentais
Reunido neste momento de Crise e Confusão:
Do alto do Céu te alcança em teu desastre,
E tocando em ti, alcança a terra inteira.

(Música. Ela apanha os óculos e os dá a ele.)

ANJO: Pedras de enxergar.


(Coloca-os cautelosamente, enquanto:)
ANJO: Abre-me, Profeta. Eu eu eu eu sou
O Livro.
Leia.
PRIOR: Espera. Espera. (Tira os óculos.)
Mas como é que... Como é que eu estou com essa... ahn,
ereção? Assim é difícil se concentrar.

47
ANJO: O enrijecimento do seu pênis não tem nenhuma importância.
PRIOR: Bom, pra você talvez não, mas...
ANJO: LEIA!
Tu és apenas carne. Eu eu eu eu sou Carne Absoluta,
Densidade do Desejo, Gravidade da Pele:
O que faz Funcionar o Motor da Criação?
Não a Física, mas o Êxtase faz o Motor Funcionar:

(Na passagem seguinte as falas do Anjo são contínuas. As falas de


Prior se superpõem. Os dois ficam com muito tesão.)

PRIOR: (Atingido por uma onde de intenso sentimento sexual:) Hmmm...


ANJO: O Pulsar, o Puxar, o Latejar, o Escorrer...
PRIOR: Espera, por favor, eu... Desculpa um minuto, só um minuto, tá, ...
ANJO: Priapus, Dilatação, Tumefação, Fluxo:
Incendeia o Universo a Ejaculação Angelical...
PRIOR: (Perdendo o controle, começa a trepar com o livro.) Ai, merda...
ANJO: Vibram os céus com o Cio Seráfico,
Os Ferozes Embates...
PRIOR: Ah, meu Deus, eu...
ANJO: O acasalamento das Superiores Ordens Emplumadas,
Infinitas, Incessantes, Bombeando o Sangue da Criação!
PRIOR: AH! OH! Eu... AH! ANJO: Cio SAGRADO!
Ah! Ah, ah... Orifício SAGRADO!
Êxtase in Excelsis! AMEN!

48
(Pausa. Se tivessem cigarros, os dois fumariam.)

PRIOR: Ah. Ah, meu Deus.


ANJO: O Corpo é o Jardim da Alma.
PRIOR: O que foi isso?
ANJO: Plasma Orgásmico.
PRIOR: Ah, claro, sem dúvida.
BELIZE: Ah, ah, ah, um momento, por favor, com licença. Você fodeu esse
anjo?
PRIOR: Ela me fodeu. Ela tem... bom, ela tem oito vaginas.
ANJO: (em inglês:) Regina Vagina! Rainha da Vagina! Hermafrodita,
também equipada com um buquê de falos...
Eu eu eu eu sou a Essência do seu Ascendente Feminino Libertado.
PRIOR: (para Belize) A política sexual dessa coisa toda é muito confusa.
Deus, por exemplo, é homem. Quer dizer, não é um homem, é uma
letra hebraica em chamas, mas uma letra hebraica em chamas
masculina.
ANJO: A letra Alef. Deus ereto! Pai Onipotente!
PRIOR: O orgasmo angélico produz a protomatéria, que é o combustível do
motor da criação. Eles copulavam incessantemente antes do...
Cada anjo é uma entidade infinita, uma miríade agregada, eles são
basicamente uns burocratas com um poder incrível, mas sem a menor
imaginação, são capazes de fazer qualquer coisa, mas não podem
inventar, criar, são assim, ao mesmo tempo fabulosos e chatos.

49
ANJO: Feitos por Deus para o Seu Prazer, Nós podemos apenas ADORAR:
Procurando algo Novo...
PRIOR: Deus rachou o Mundo em Dois...
ANJO: E fez...
PRIOR e ANJO: Os Seres Humanos:
Uni-genitais: Fêmea. Macho.
ANJO: Ao vos criar, nosso Pai-Amante libertou o Potencial de
Transformação Adormecido.
Em VÓS principiou o vírus do TEMPO!
PRIOR: Parece que Deus, quando fez as pessoas, despertou o potencial da
Criação para a mudança, para o acaso, para o avanço.
ANJO: Você pensa. E você IMAGINA!
Você Migra, Explora, e ao fazer isso:
PRIOR: Quando a raça humana começou a progredir, viajar, se misturar,
tudo começou a se desmoronar. A primeira manifestação foram
tremores lá no céu.
ANJO: O céu é uma cidade mais ou menos como San Francisco.
Casa debruçada sobre casa, descendo pela encosta da colina,
Desde o alto até as docas
O verde Espelho da Baía:
PRIOR: E lá tem terremotos, ou melhor paraíso-motos.
ANJO: Ó júbilo no Jardim Enclausurado:
Sinuosa Paisagem onde paira
A Ameaça da Catástrofe, do Cataclisma :
O perigo te torna mais bela.

50
POTENTE; e no entanto, ADORMECIDA:
As Falhas Geológicas da Criação!
BELIZE: Então o progresso Humano...
PRIOR: Migração. Ciência. Movimento. Avanço .
BELIZE: ... sacode os Céus.
ANJO: Até o Paraíso treme e divide-se,
A cada dia quando vós despertais,
Como se NÓS fôssemos apenas um sonho VOSSO.
PROGRESSO! MOVIMENTO!
Fazendo tremer a ELE.
BELIZE: Deus.
ANJO: Ele começou a nos abandonar!
Cansado dos Seus Anjos, Enfeitiçado pela Humanidade,
Numa Mortificadora imitação de Ti, Sua mínima criação,
Levantava as velas e partia para Viagens, sem saber para onde.
Terremoto se segue a terremoto,
Ausência segue Ausência:
A perversa Castidade e a Desorganização:
Perda da libido, Falha da Protomatéria:
Nnós somos seus funcionários; Está ALÉM DE NÓS:
Então: 18 de abril de 1906. Naquele dia:
PRIOR: O grande terremoto de San Francisco. E também...

ANJO: Naquele dia: PRIOR: Em 18 de abril de 1906.

51
ANJO: Nosso Amante de um Milhão de Nomes Impronunciáveis,
A letra ALEF de onde descendem todas as palavras:
O Rei do Universo:
Ele partiu.
PRIOR: Abandonou.
ANJO: E não voltou.
Não sabemos onde ELE está. Talvez ELE nunca...
E amargurados, rejeitados, nós esperamos, desorientados;
Nossas casas mais belas, nossos vinhedos mais doces,
Agora secos e estéreis, sentindo a falta dELE.
(Tosse)
BELIZE: Abandonou.
PRIOR: É.
BELIZE: Estou cheirando um motivo. O homem que se mandou.
PRIOR: Pois é, pra mim também me ocorreu. O Louis.
(Muito triste:) Mesmo agora, se ele voltasse eu ia... (Dá de ombros.)
BELIZE: Escute esta sua amiga.
Acho que chegou a hora de soltar esse cara.
PRIOR: Não é o que pensam os anjos, eles acham... As coisas já foram
longe demais, é muita perda, é isso que eles acham, a gente tinha que
dar um jeito de parar, de voltar para trás.
BELIZE: Mas Prior, não é assim que o mundo funciona. Ele só vai girando
sempre em frente.
PRIOR: Sim, mas para onde?

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ANJO: Com certeza você vê para onde Nós estamos Progredindo:
A trama do céu se desfaz:
Os anjos pairam, dedos ansiosos tateiam
As bordas desfiadas.
Antes que o sangue comece a ferver e a pele a queimar,
Vem a Secreta catástrofe:
Antes que a Vida na Terra se torne impossível,
Ela terá se tornado, durante muito tempo, totalmente insuportável.
(Tosse)
VOCÊS O EXPULSARAM! VOCÊS TÊM QUE PARAR!
PRIOR: (Quieto, aterrorizado) Parar.
ANJO: (Suave:)
Abandona o Caminho Aberto:
Não te Mistures nem te Cases fora do teu povo: Deixa Crescer Raízes
Profundas:
Se não te MISTURARES, teu progresso cessará:
Não procure Compreender o Mundo e sua Delicada Lógica das
Partículas:
Não podes compreender, podes apenas destruir,
Tu não Avanças, apenas Pisoteias.
Pobres Crianças cegas, abandonadas na Terra,
Tateando aterrorizadas, desorientadas, nos Campos da Matança,
Tropeçando em cadáveres assassinados:
PAREM!
Não há Monte Sião, exceto onde você está!

53
Se você não consegue encontrar a felicidade do seu coração...
PRIOR: No seu próprio quintal...
ANJO, PRIOR e BELIZE: É porque ela não estava perdida.
(O Anjo tosse.)
ANJO: Volte para trás. Desfaça.
Até ELE voltar.
PRIOR: Por favor. Por favor. Anjo, sonho, ou qualquer coisa...
BELIZE: É um sonho, baby...
PRIOR: Seja lá o que você for, eu não compreendo essa visitação, não
compreendo o que você quer de mim, não sou profeta, sou um cara
doente, sozinho, eu...
O que você é? Você veio para me salvar ou para me destruir? Parar de
se mexer. É isso que você quer. Me responde! Você me quer morto.
(Pausa. O Anjo e Prior olham um para o outro:)

ANJO: SIM. NÃO. NÃO.


(Tosse)
SIM.
Isso não está no Texto, nós estamos desviando...
Não mais.
(O Anjo apanha o livro.)
PRIOR: EU. QUERO. Que você vá embora. Já estou cansado de ser
sacaneado, abandonado, infectado, fodido, e agora torturado por um
anjo confuso, irresponsável, esse... Me deixa em paz.

(O Anjo pousa na frente de Prior.)

54
ANJO: Não podes fugir da tua missão, Jonas.
Se te escondes de Mim num lugar, vais me encontrar em outro.
Eu eu eu eu estarei no meio do caminho, esperando por você.
(Ela o toca ternamente e o gira, tomando-o nos braços.)
ANJO: Tu me Conheces, Pofeta:
Teu coração sofrido,
Sangrando vida em meio às Feridas do Universo.

(O Anjo aperta o volume contra o peito. Ambos experimentam algo sem


nome -- doloroso e jubilante em igual medida. Há um som aterrador. O Anjo
delicadamente, amorosamente, abaixa Prior até o chão.)

ANJO: Receptáculo do LIVRO és agora: Oh Exemplum Paralíticum:


Em ti, dentro de ti, no teu sangue, nós escrevemos:
ESTAGNAÇÃO!
FIM.
(Em ondas de música, segurando bem alto o Livro, o Anjo sobe. O quarto
desaparece. Prior levanta, veste suas roupas de sair e retoma seu lugar ao
lado de Belize. Os dois estão novamente na rua em frente à capela
funerária.)
BELIZE: Você está ficando muito tempo sozinho. Tempo demais.
PRIOR: Não é minha escolha. Nada disso é por opção.
BELIZE: Isso aqui é... Pior que doideira, isso é uma coisa... bem, vê se não
migra, não se mistura, isso aqui é... maligno, alguns de nós não
migraram exatamente por opção, sabe o que eu estou dizendo...

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PRIOR: (sobrepondo-se) Acho que não tem nada a ver você ficar ofendido,
eu não inventei essa merda, foi uma aparição...
BELIZE: (sobrepondo-se em "ofendido") Mas é ofensivo, ou pelo menos é
de uma confusão monumental, e não é uma aparição, Prior. Aparição
de quem? Isso vem de você, que mais pode ser?
PRIOR: Outra coisa.
BELIZE: Isso é loucura.
PRIOR: Então eu estou louco.
BELIZE: Não, você está...
PRIOR: Então foi um anjo.
BELIZE: Não foi...
PRIOR: Então eu estou louco. O mundo inteiro está, por que não eu?
Estamos em 1986 e existe uma peste, metade dos meus amigos já
morreram e eu tenho só 31 anos, e todo dia eu acordo de manhã e puta
que o pariu, penso que o Louis está do meu lado na cama, e levo
longos minutos pra me lembrar... que é realidade, não é apenas um
sonho impossível, terrível, então quem sabe eu estou mesmo
despirocando.
BELIZE: (zangado) É melhor você não despirocar. Trate de não despirocar.
Isto não é demência. E também não é a realidade. É apenas você,
Prior, com medo do que vem por aí, com medo do tempo. Você quer
tanto voltar para atrás que até chamou um anjo.
PRIOR: Grande consolo. Grande anjo.

56
BELIZE: Grande reacionário cósmico.
Mas não existe anjo nenhum. Está ouvindo?
Por mim? Eu consigo segurar qualquer onda, menos isso que está te
acontecendo.
PRIOR: Quem sabe eu sou profeta. Não só eu, todos nós que estamos
morrendo agora. Quem sabe nós pegamos o vírus da profecia. Páre.
Chega de batalhar. Quem sabe foi o mundo que expulsou Deus do
Paraíso, provocando a cólera dos anjos.
ANJO: Sussurre no ouvido do mundo, Profeta,
Lave de vermelho a maré dos sonhos,
E sopre palavras de sangue no horizonte do sono.
PRIOR: Creio que vi o fim das coisas. E tendo visto, estou ficando cego,
como acontece com os profetas. Faz um certo sentido pra mim.
ANJO: PARA ESTA ÉPOCA SEM NORMAS: UMA NOVA LEI!
PRIOR: E se eu odeio o céu, minha única resistência é fugir.
ANJO: Entregue esta noite, esta noite silenciosa, vinda do Céu,
ó Profeta, para ti.

FIM DO SEGUNDO ATO

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TERCEIRO ATO: BORBORIGMAS
(Os Fatos Retorcidos Ultrapassam a Mente e suas
Escamas)
Fevereiro de 1986

ATO III. CENA 1


Cena dividida: Uma semana depois, um mês desde o final do primeiro ato.
Joe e Louis na cama, lençóis diferentes, tudo mais arrumado, mais
aconchegante. Joe está acordado, Louis dormindo. Joe observa Harper, no
Brooklyn, com uma camisola suja. Ela tira a camisola, olha para Joe,
tremendo, só de sutiã, calcinha e meias compridas. Hannah entra de roupão
de banho, levando um vestido dobrado no braço e um par de sapatos. Ela
coloca os sapatos na frente de Harper.

HANNAH: Você se lavou?


(Harper dá um sim de cabeça.)
HANNAH: Ainda bem que você tirou essa camisola, já faz três semanas.
Estava começando a cheirar.
HARPER: (Sem expressão:) A senhora vem me dizer.
HANNAH: Vamos vestir isso aqui.
(Coloca o vestido em Harper com a ajuda desta.)
HANNAH: Está bom. É bonito.
Sapatos?
(Harper os calça.)
HANNAH: Muito bem. Agora vamos ver esse cabelo.
(Harper se curva, Hannah penteia-lhe o cabelo.)

58
HANNAH: Harper, no começo pode ser muito duro aceitar o quanto a vida
é decepcionante, porque é isso que ela é, e a gente tem que aceitar.
Com fé, com o tempo e com muito trabalho a gente chega num
ponto... em que a decepção não dói tanto, e acaba ficando até fácil de
se conviver. Bem fácil. O que também é uma decepção. Mas.
Pronto.
HARPER: Eu odeio o seu filho.
Sinto falta do pênis dele.
HANNAH: Tenho certeza que você compreende que eu não me sinto muito
à vontade para discutir esse assunto.
HARPER: Eu detesto este vestido, Sra. Pitt. São cinco da manhã.
HANNAH: Eu sou a primeira a chegar lá. Sou eu que abro.
Eu deixo recados no trabalho. Eles me dizem que ele não está, mais eu
sei que está, mas não quer receber meus telefonemas. Ele está com
vergonha.
HARPER: (Olhando para Joe:) Seja lá o que for.
HANNAH: Não é a mesma situação, mas quando o meu marido, o Coronel
Pitt morreu, eu não me dei ao luxo de desmoronar, como fazem certas
pessoas. Eu simplesmente fui em frente.
HARPER: Provavelmente a senhora ficou mais feliz.
HANNAH: Isso é uma coisa terrível de se dizer.
HARPER: A senhora jogou fora meus comprimidos. Mas eu arranjo outros.
Como será que é fumar crack?

59
HANNAH: Eles vendem isso aí na esquina do Centro dos Visitantes.
Sirva-se.
Agora vou me arrumar. E podemos ir.
(Hannah sai.)
HARPER: Joe?
(Ela atravessa a cena e entra no quarto de Louis. Joe recua,
afastando-se dela mas com cuidado para não acordar Louis.)
HARPER: Não se preocupe, eu não estou aqui de verdade.
Tenho poderes terríveis. Eu vejo mais do que quero ver. Quem sabe
eu sou uma bruxa.
JOE: Não é, não.
HARPER: Eu poderia ser uma bruxa. Por que não? Eu me casei com uma
fada.
JOE: Por favor, Harper, vai embora, só...
LOUIS: (meio acordando, mas não de todo:) Joe...? Tudo bem?
JOE: Tudo bem, tudo bem, só estou com o estômago embrulhado, não é
nada.
HARPER: (simultaneamente:)
Fala mais baixo, você vai acordar ele.
Por que é que eu estou aqui? Você me chamou.
JOE: Eu não...
HARPER: Você me chamou. Me deixa em paz, já que você está tão feliz.
JOE: Eu não te chamei.

60
HARPER: ENTÃO POR QUE EU ESTOU AQUI?
(Pausa. Os dois se olham.)
Para te ver de novo. Do jeito que eu puder.
AH, MEU DEUS, COMO EU GOSTARIA QUE VOCÊ
ESTIVESSE... Não, não. MORTO. Sim, eu gostaria.
LOUIS: Joe...?
HARPER: Você gosta dele.
JOE: Gosto?
HARPER: Você não pode salvá-lo. Você nunca salvou ninguém. Olha só, o
Joe apaixonado, não é patético?
JOE: O quê?
HARPER: Você está se transformando em mim.
JOE: VAI!
(Ela desaparece enquanto Louis acorda sobressaltado.)
LOUIS: O quê!?
JOE: Bom dia. Dormiu bem?
LOUIS: Não. E você?
JOE: Dormi.
LOUIS: Tive um pesadelo estranhíssimo. Nós dois estávamos
comemorando um mês que passamos na cama, e marcamos um
encontro num restaurante, só que eu não tinha certeza se era certo
comemorar, e quando cheguei lá não era um restaurante, era uma
capela funerária, numa espécie de templo muito estranho, um lugar
sinistro, e tinha eu e você e uma mulher zangadíssima, furiosa, e daí
você era membro de uma seita religiosa estranha, assim tipo Rajnish,

61
Reverendo Moon, ou Mórmon, algo assim, e você não tinha me
contado, e era como se eu não te conhecesse, absolutamente.
Joe?
(Pequena pausa, Joe olha para Louis.)
JOE: Eu sou. Eu sou Mórmon.
LOUIS: (um tempo, daí:) Ah.

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ATO III, CENA 2

Mesma manhã, ainda 5 horas da manhã. Roy no seu quarto no hospital. A


dor de barriga agora é constante e está piorando. Ele está no telefone, um
telefone mais elaborado do que na cena anterior.

ROY: Não tenho registro, não tenho registro, você é surdo, já falei que não
tenho registro nenhum para esse comitezinho de merda, não é assim
que eu trabalho, eu...

(Roy tem um incrível espasmo abdominal; está com grande dor.


Afasta o fone do ouvido, faz uma terrível careta, encolhe-se como
uma bola, estica-se, tudo isso em silêncio.
Aparece Ethel de chapéu e casaco, vai até uma cadeira junto a cama
e se senta, observando Roy, em silêncio. Ele a vê entrar e retoma seu
telefonema, sem nunca tirar os olhos de Ethel.)

ROY: Essas anotações foram perdidas. PERDIDAS. Num incêndio,


inundação, não posso mais fazer...
(Belize entra com uma bandeja de pílulas.)
ROY: (para Belize) Hoje eu vomitei quinze vezes! Eu CONTEI.
(Pausa. Para Ethel:) E você, está olhando o quê? (Para Belize: )
Quinze vezes.
(Volta para o telefone.) Sim?
BELIZE: Desliga o telefone, tenho que ver você tomar esses...

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ROY: (no telefone) O negócio da LIMUSINE? Ah, Cristo, eu já fui
absolvido duas vezes por esse negócio, eles estão querendo me matar
com essa perseguição, eu fiz coisas na minha vida, mas nunca matei
ninguém.
(para Ethel:) Sem contar os presentes. E você mereceu.
(Para Belize:) Sai fora daqui, porra.
(Volta ao telefone:) Pede um tempo. Eles não podem começar amanhã
se nós não aparecermos, então não apareça, eu devolvo o dinheiro
daquela bruxa velha. Tenho que tomar uma...
BELIZE: Desligue o telefone.
ROY: Ora, Madre Tereza, vem chupar meu pau, isso aqui é vida ou morte.
BELIZE: Desliga o...
(Roy arranca o copinho de pílulas da bandeja e joga as pílulas no
chão. Belize tenta alcançar o telefone. Roy bate o telefone e esconde o
aparelho.)
ROY: Se você encostar a mão nesse telefone eu te mordo. E eu tenho raiva.
E daqui para frente, eu forneço as minhas próprias pílulas. Já falei
para eles enfiarem essas jujubas lá naqueles fudidos lá no fim do
corredor.
BELIZE: Suas próprias pílulas.
ROY: Nada de placebo. Um passarinho me contou. Um urubu...
(Outro espasmo severo. Desta vez ele faz barulho.)
Jesus, meu Deus, essas cólicas, agora eu compreendo porque as
mulheres ficam malucas uma vez por... AI, CARALHO!

(Tem outro espasmo. Ethel ri.)

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ROY: Ah que bom, eu fiz ela rir.
(A dor diminui um pouco. Ele fica um pouco mais calmo.)
Não confio neste hospital. Vai ver que é a própria Lílian Hellman que
fica lá embaixo no porão trocando as pílulas -- não, espera aí, ela já
morreu, não é. Ai, ai, a memória, é um... Heim, Ethel, a Lílian
Hellman não morreu, você por acaso não viu ela lá em cima, uma
mulher feia pra caralho, ô mulher feia, um nariz que nem... um nariz
que até um judeu devia se preocupar de ter uma cara assim. Você viu
alguém que corresponde a essa descrição lá em cima, no Paraíso
Vermelho? Heim?
Ela não quer falar comigo. Ela pensa que é a sentinela da morte, sei lá.
BELIZE: Com quem você está falando?
ROY: Estou me auto-medicando.
BELIZE: Com o quê?
ROY: (Tentando lembrar:) Ácido não sei o quê.
BELIZE: Azidotimedina?
ROY: Saúde.
(Roy jogo um molho de chaves para Belize.)
BELIZE: AZT? Você conseguiu...?

(Belize destranca a pequena geladeira; está cheia de vidrinhos de pílulas.)

ROY: Cem por cento aprovado, elixir dá longa vida. Me dá essas chaves.
BELIZE: Ah! Tráfico de drogas!

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ROY: Impressionante, heim?
BELIZE: Um suprimento para o resto da vida.
Deve ter umas trinta pessoas no país inteiro que estão conseguindo
esse remédio.
ROY: Agora são trinta e uma.
BELIZE: Tem cem mil pessoas precisando dele.
E olha só você. O dragão montado em cima da arca do tesouro. Não é
justo, é ou não é?
ROY: Não, mas como disse Jimmy Carter, a vida também não é. Portanto,
pode enfiar esses seus olhos de volta nas órbitas, baby, que a mim não
me comove a distribuição desigual dos bens nessa terra. É a história,
não foi eu que escrevi, embora me orgulhe de ser uma nota de rodapé.
E você é enfermeiro, portanto me dá minhas pílulas e desinfeta daqui.
BELIZE: Nem se você viver mais cinqüenta anos, não vai conseguir
engolir tudo isso.
(pausa)
Quero um pouco.
ROY: É contra a lei.
BELIZE: Dez vidros.
ROY: Vou te denunciar.
BELIZE: Faltam enfermeiros na praça. Eu sou sindicalizado. Estou
morrendo de medo. Tenho amigos que precisam disso. Muito.
ROY: A lealdade eu admiro. Mas NÃO.
BELIZE: (espantado, desarmado :)
Por quê?

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(pausa)
ROY: Porque você me causa repulsa. "POR QUÊ?" Daqui a pouco você vai
me implorar esse negócio. "POR QUÊ?" Porque eu odeio você, eu
odeio teus amigos, esse é o porquê. "Me dá!" Parece que tem todo o
direito. Fica chocado quando vem a conta.
BELIZE: Pelo que eu soube, você nunca pagou uma merda de uma conta.
ROY: Ninguém trabalhou mais do que eu. Acabar assim derrubado numa...
BELIZE: Pois é, as coisas estão tão difíceis.
ROY: E você vem aqui procurando justiça? (para Ethel:) Eles não punham
um dedo em mim quando eu estava vivo, e agora que estou morrendo
vêm com essa: (Agarra toda a papelada com os dois punhos
cerrados:) Agora! Agora que eu estou... (Volta para Belize:) Isso é
justo? O que que eu sou? Um homem morto!
(Um espasmo terrível, rápido e violento; ele se dobra.)
Puta que pariu! O que que eu estava dizendo, ai meu Deus, não
consigo lembrar... Ah sim, morto.
Porra, sou um homem morto.
BELIZE: Você espera piedade?
ROY: (um tempo, daí:) Espero que você me devolva essas chaves e tire
essa sua bunda preta do meu quarto.
BELIZE: O que foi que você disse?
ROY: Tira essa bunda preta de viado escroto daqui do meu quarto.
BELIZE: (Sobrepondo-se em "preta":) Seu porco, nojento, boca cheia de
merda, filha da puta, covarde, egoista, viado, chupador de pau!
ROY: (Sobrepondo-se) Viralata. Preto, Escravo. Macaco.

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BELIZE: Judeu.
ROY: Ah, agora sim, você falou!
BELIZE: Seu judeu miserável, unha-de-fome.
ROY: Agora você pode pegar um vidro. Mas só um.
(Belize joga as chaves para Roy, com força. Roy apanha. Belize tira
um vidro de pílulas, daí outro, daí um terceiro, e sai.
Assim que Belize sai do quarto Roy se dobra com espasmos
devastadores, que ele vinha segurando.)
ROY: Meu Deus, achei que ele não ia embora nunca mais!
(Para Ethel:) E aí? Vai ficar sentada aí a noite inteira?
ETHEL: Até de manhã.
ROY: Ãh ãhn. Quando o galo cantar, você volta lá para o pântano.
ETHEL: Não. Tomo o trem das sete e cinco para Yonkers.
ROY: Que merda acontece em Yonkers?
ETHEL: As audiências do comitê de expulsão. Você não parou de falar
nisso a semana inteira. Vou lá dar uma olhada.
ROY: Eles não vão te deixar entrar pela porta da frente. Você é uma
traidora, condenada e executada.
ETHEL: Eu passo pela parede. (Ela começa a rir. Ele ri também.)
ROY: Seu SÚCUBO de merda! Morcega velha, chupadora de sangue!
(Roy pega o telefone, aperta alguns botões e desliga, desanimado.)
A pior coisa de a gente ficar doente na América, Ethel, é que você é
chutado pra fora da parada. Para os americanos, a doença não tem
serventia. Olha o Reagan: tem tanta saúde que nem parece humano,
deve ter no mínimo cem anos de idade, leva uma bala no peito e dois
dias depois já está lá no rancho dele, andando a cavalo, de pijama.

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Pôxa, quem é que faz isso? Isso é a América. Não é país para os
fracos.
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69
ATO III, CENA 3

Mais tarde no mesmo dia. Sala do Diorama do Centro de Visitantes. O


Diorama está num pequeno palco tipo proscênio; as cortinas estão
fechadas. Atrás delas está a cena clássica do vagão do faroeste, posada
diante de um fundo pintado: um carroção coberto com uma família mórmon
no deserto, na grande jornada de Missouri até Salt Lake. Os membros da
família são bonecos vestidos com roupas históricas: dois filhos, mãe e filha,
e o pai (que na verdade é o ator que representa Joe). Há cadeiras
confortáveis para o público; e Harper está sentada numa delas, vestida da
mesma forma que na cena anterior. O chão à sua volta está cheio de sacos
de batatinha frita, papéis de chocolate e latas de refrigerantes.
Hannah entra com Prior.

HANNAH: Aqui é a Sala do Diorama.


(Para Harper:) Pensei que nós já tínhamos combinado que você não ia...
(Para Prior:) Vou ver se eu consigo fazer começar.
(Ela sai. Prior senta. As luzes na sala diminuem. Uma voz gravada entôa:)
VOZ: (do Anjo) Bem vindos ao Diorama do Centro Mórmon de Visitantes.
Em alguns momentos nossa apresentação irá começar. Esperamos que
esta apresentação traga uma mensagem especial para você. Atenção: é
proibido fumar, comer ou beber. (Ouve-se um sino bater.) Benvindos
ao Diorama do Centro...

(A fita entra numa velocidade muito alta, depois se borra numa


velocidade baixa incompreensível, e pára, no meio da mensagem,
com um ruído metálico nada promissor, que assusta Prior.)

HARPER: Eles estão tendo problema com a maquinária.


(Ela abre um saquinho de Baconzitos e os oferece a Prior.)
PRIOR: Não é permitido comer aqui na...

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HARPER: Eu posso. Eu moro aqui. Será que a gente já se conhece?
PRIOR: Não, acho que... acho que não. Você mora aqui?
HARPER: (apontando o boneco-pai:) Tem uma família de bonecos aí no
Diorama, você vai ver quando a cortina abrir. O boneco-pai, o joão-
bobo, parece o meu marido, Joe. Quando eles apertam o botão, ele
fala. Não dá para acreditar nem uma palavra que ele diz, mas o som
da voz dele é... tranqüilizante. É uma semelhança incrível.
PRIOR: Você é Mórmon?
HARPER: Mórmon de quinta.
PRIOR: Como é que é?
HARPER: Mórmon de quinta categoria. Com defeito. Produto mórmon
inferior. Não passei pelo controle de qualidade e dei o fora.
PRIOR: Você acredita em anjos? No Anjo Mórmon?
HARPER: Não é Mórmon, é Moroni, é o Anjo Moroni. Pergunta para a
minha sogra, quando você sair, aquela mulher brava lá na recepção,
pergunta pra ela uma coisa: se o nome do anjo era Moroni, por que
eles não chamam Mornos? É por esse tipo de comentários que a gente
vê que eu sou mórmon de quinta. Você não é mórmon.
PRIOR: Não, eu...
HARPER: Está só... atormentado pela dor.
PRIOR: Eu não. Eu estava só passando e...
HARPER: Aqui vem muita gente atormentada pela dor. É nossa
especialidade.
PRIOR: Não estou... atormentado, estou fazendo uma pesquisa.
HARPER: Sobre os mórmons?

71
PRIOR: Não, sobre... os anjos. Sou... angelologista.
HARPER: Nunca conheci um angelologista
PRIOR: É uma disciplina obscura.
HARPER: Imagino. Angelologia. A pesquisa de campo deve ser rigorosa: a
gente tem que cair morta para ver o primeiro espécime.
PRIOR: Um... Eu vi um. Um anjo. Atravessou o teto do meu quarto.
HARPER: Ah. Essas coisas sempre me acontecem.
PRIOR: Estou com febre. Eu devia estar na cama, mas estou muito ansioso
para ficar de cama. Você me parece muito familiar.
HARPER: Você também.
Mas não é possível. Eu nunca saio. A vida inteira eu vivi aqui, ou em
algum lugar parecido com este, sozinha, no escuro, esperando o joão-
bobo.
(As luzes na Sala do Diorama se escurecem; música dramática; as
cortinas se abrem e as luzes se acendem no palquinho. De novo a voz
gravada:)
VOZ: Em 1847, atravessando 2.200 quilômetros de terras selvagens,
enfrentando tempestades de neve nas montanhas, tempestades de areia
no deserto e índios traiçoeiros, as primeiros caravanas mórmons
abriram o difícil caminho rumo ao Reino de Deus.
HARPER: Quer um baconzito... Oi, Joe.
(O Diorama ganha vida. Sons do carroção, o Largo da Nona Sinfonia
de Dvorak. Os meninos bonecos, Caleb e Orrin, não falam, só se ouve
suas vozes em fita, e um spot ilumina seus rostos para indicar quem
está falando: sem intenção, o efeito é estranho, sobrenatural. O rosto
do pai se move, mas o corpo não.)
CALEB: (Voz de Belize) Pai, tenho medo.

72
PAI: Silêncio, Caleb.
ORRIN: (Voz do Anjo) Esse lugar é tão deserto, é tão vasto.
PAI: Silêncio, Orrin, silêncio, Caleb. Sejam corajosos, pela sua mãe e pela
sua irmãzinha.

CALEB: Nós vamos tentar, pai, HARPER: A mãe e a


queremos que você se orgulhe irmã não têm nenhuma nós.
Queremos ser corajosos fala. É só o rosto dele que
fortes como você. se mexe. Assim não vale.

ORRIN: Pai, quando chegaremos HARPER: Nunca.


no monte Sião? Quando você vai morrer de
será que nosso êxodo irá mordida de cobra, e
terminar? Já caminhamos o seu irmão me parece
tanto... comida de escorpião.

PAI: Em breve, meus filhos, em breve,


como prometeu o Profeta.
O Senhor nos mostra o caminho.
PRIOR: Ssshhh...

CALEB: Pai, lá teremos o que comer? HARPER: Não.

73
No deserto vai jorrar leite e mel? Só areia.
Haverá água? (Em "água":)
Ah, tem um grande lago,
mas é salgado, Salt
Lake.
Essa é a grande piada,
PAI: Deus há de prover por nós, eles te arrastam de
joelhos
meu filho, como Ele sempre tem feito. pelo meio do inferno
quando você chega lá, a
água, é intragável.
ORRIN: Bem, nem sempre... Salgada. É uma Terra
PAI: Às vezes Deus nos põe à prova, Prometida, mas que
meu filho, é assim que Ele age, mas... promessa decepcionante!

CALEB: Leia para nós, papai, leia a história!


PAI: (Uma risadinha) Outra vez?
FILHOS: Sim! Sim! A história! HARPER: A história!
A história do Pofeta! A história! A história do
Profeta!
PAI: Bem, meninos, muito bem:
Em 1823, o Profeta, que era um jovem forte e robusto, estava à
procura de Deus, como todo mundo naquela época. Havia muitas
igrejas, muitas disputas, mas quem tinha Razão? Só podia haver Uma
Igreja Verdadeira. O resto é escuridão...

74
(Louis aparece de repente no Diorama.)

LOUIS: Tá certo, sim, sim, sim, mas só me responda uma coisa: como pode
uma religião fundamentalista teocrática participar de uma democracia
secular pluralista? Você está ocupado?
JOE: Bom, estou trabalhando, mas...
LOUIS: Não acredito que você é mórmon! Não acredito que eu passei um
mês na cama com um mórmon!
JOE: Ãhn, dá para você falar um pouquinho mais baixo, eu...
LOUIS: Mas você é advogado! Um advogado sério!

PRIOR: Ah meu Deus, meu Deus. JOE: Louis, o assessor do juiz


Mas... o que está acontecendo aqui? da Supremo Tribunal é
mórmon,
por favor, não vamos discutir
HARPER: Você conhece ele? agora, podemos conversar
em casa, de noite...

PRIOR: (fechando os olhos:) Estou delirando, só pode ser delírio.


LOUIS: Não gosto de seitas.
JOE: A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias não é uma seita.
LOUIS: Qualquer religião com menos de dois mil anos de idade é uma
seita.

75
PRIOR: O QUE ELE ESTÁ JOE: Vem aqui, Louis...
FAZENDO ALI?

LOUIS: E tem gente que diria que essa atitude é generosa. Eu odeio
quando você ignora que eu estou sendo desagradável.
PRIOR: O QUE QUE ELE ESTÁ...
HARPER: Quem? Esse sujeitinho aí? Ele entra e sai todo dia. Eu detesto
ele. Ele não tem absolutamente nada a ver com a história.
(Joe beija Louis.)
PRIOR: Dá pra desligar? Esse... Estou indo embora, não posso...
LOUIS: Por que você não me disse que você...
JOE: E é surpresa?
LOUIS: Não, a maioria dos homens que eu transo acabam sendo... SIM, É
CLARO que é surpresa! Pensei que todos vocês estavam lá no
faroeste, no lago salgado, junto com os cactus. Aqui tem um
deslocamento, eu...
PRIOR: Louis...
LOUIS: (ouvindo-o:) Você...
JOE: O quê?
LOUIS: Achei que ouvi... alguém. O Prior.
(Para Joe:) Precisamos conversar.
JOE: Mas eu não posso largar o serviço.
LOUIS: Fôda-se! Estamos numa crise. Agora.
(Louis sai. Joe dá um suspiro e vai atrás.)

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HARPER: Bom, o boneco nunca tinha saído com o sujeitinho, nunca tinha
ido embora. Quando eles perceberem que ele sumiu, vão botar a culpa
em mim.

(Harper vai até o palquinho do Diorama e fecha a cortina de veludo


vermelho. Vira para trás e vê que Prior está chorando.)
HARPER: Você não devia fazer isso aqui, isso aqui não é lugar para
sentimentos de verdade, aqui é só teatrinho, pára com isso.
PRIOR: Nunca imaginei que fosse tão difícil perder a razão.
HARPER: Ah, é sim.
Encontre algum outro lugar para você ser infeliz. Aqui é o meu lugar
e eu não quero que você faça isso aqui!
PRIOR: EU ACABO DE VER MEU NAMORADO, MEU... ex-namorado,
com um... com o seu marido, aquele... boneco de vitrine, o Ken,
namorado da Barbie, lá naquele negócio, eu vi ele, eu...
HARPER: Bom, não precisa ter ataque, eu te falei que não estava
funcionando direito, é apenas... a mágica do teatro ou algo assim.
Escuta, se você encontrar aquele sujeitinho, fala pra ele trazer o Joe...
trazer o manequim de volta, eles vão me botar na rua e acabou-se, isso
aqui não é nada, mas é o último lugar que eu tenho na face da terra.
Não posso voltar pra casa e ficar sentada lá no Brooklyn.
(Hannah entra.)
HANNAH: Mas o que que...
(Vê Prior chorando. Olha para Harper com ferocidade.)
O que você fez para ele?

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HARPER: Nada! É que ele não consegue se adaptar, só isso, ele não...
(Hannah vai até o Diorama e abre a cortina com um puxão.)
HARPER: NÃO, ESPERA, não...
(O boneco-pai está de volta no lugar-- agora um boneco de verdade.)
HARPER: Ah. (para Prior:) Escuta, nós... só imaginamos aquilo.
HANNAH: Escuta, eles me deixam trabalhar aqui de favor, e você fica
fazendo cenas, e olha essa sujeira, isso aqui está um depósito de lixo!
HARPER: (Sobrepondo-se a Hannah, para Prior:) Agora já não parece
tanto que é ele. Ele mudou. Outra vez.
HANNAH: (Sobrepondo-se) Você vai ficar sentada aqui para sempre,
juntando essa montanha de lixo, dia após dia... Até quando?
HARPER: (Sobrepondo-se) Parece ele falando, direitinho. A senhora até
range os dentes quando dorme, que nem ele.
HANNAH: (Sobrepondo-se) Se eu pudesse fazer ele voltar para casa, eu
voltaria para Salt Lake City amanhã mesmo, mas eu sei muito bem
qual é o meu dever, e se você e o Joe pudessem fazer o mesmo, nós...
HARPER: (Sobrepondo-se) A senhora não pode voltar para Salt Lake City,
a senhora vendeu a sua casa! (Para Prior) Minha sogra! Ela vendeu a
casa! O filho telefona e conta pra ela que é homossexual e ela vai e
faz o quê? Vende a casa! E depois ela ainda diz que eu é que sou
louca! A senhora ainda tem menos lugar no mundo do que eu, se é
que isso ainda é possível .
PRIOR: Será que eu estou sonhando tudo isso, eu não compreendo.
HARPER: Ele viu um anjo.
HANNAH: Isso é problema dele.

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HARPER: Ele é angelologista.
PRIOR: Bom, não precisa espalhar para todo mundo.

HANNAH: Se você não é uma pessoa HARPER: Ou


isso, séria, não devia estar aqui. ou então ele
é doido.

PRIOR: Isso aqui é um Centro de Visitantes; eu estou visitando.


HARPER: Nesse ponto ele tem razão.
HANNAH: (para Harper:) Quieta!
(Para Prior:) É para visitantes sérios, é uma religião séria.
PRIOR: Escuta, eles pagam para a senhora fazer isso?
HARPER: Ela é voluntária.
PRIOR: Porque a senhora não é, assim, muito hospitaleira. Eu realmente vi
um anjo.
HANNAH: E o que que você quer que eu faça? Eu tenho meus próprios
problemas.
O Diorama está fechado para manutenção. Vocês precisam sair.
(Para Harper:) Limpe esta bagunça.
(Sai.)
(Harper e Prior se entreolham.)
HARPER: (Apontando a Mãe Mórmon:) A esposa dele. A esposa muda.
Estou esperando ela falar. Aposto que a história dela não é tão alegre.
PRIOR: A imaginação é uma coisa perigosa.

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HARPER: (Olhando para o boneco pai:) Pode ser fatal. Se ela acabar
sendo verdade, pode arrebentar na sua cara. Limiar...
PRIOR e HARPER: ... da revelação.
(Os dois se entreolham.)
PRIOR: Que louco tudo isso. Eu sinto... que isso aqui é uma loucura. Nós
nunca nos encontramos, mas eu sinto que você me conhece
incrivelmente bem.
HARPER: Época mais louca. A porta do estábulo se abriu, e todas as vacas
fugiram.
Você não parece nada bem. Você devia mesmo estar em casa, de
cama.
PRIOR: Lá eu vou morrer.
HARPER: Melhor na cama que na rua. Pergunte para qualquer um.
Até o próximo encontro.
(Prior sai. Harper sente-se sozinha por um momento, daí:)
HARPER: Amarga Senhora das Planícies, fale comigo. Me diga o que
fazer.
(A Mãe Mórmon vira-se para Harper, daí levanta e sai do palco do
Diorama. fazendo um gesto de cabeça para que Harper a siga.)

HARPER: Estou encalhada. Meu coração é uma âncora.


MÃE MÓRMON: Deixa ele, então. Não dá para carregar nenhum peso
extra.
(A Mãe Mórmon sai do Diorama. Harper fica sentada um momento.
Vai até o Diorama, senta no lugar da Mãe Mórmon.)
HARPER: (para o pai boneco:) Olha só nós dois. Tão perfeitos aqui nesse
lugar. O deserto, as montanhas, o século passado. Quem sabe naquela

80
época eu poderia acreditar em você. Quem sabe nós nunca devíamos
ter mudado para Nova York.
MÃE MÓRMON: Vem.
(As duas saem.)

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ATO III, CENA 4

Fim da tarde, mesmo dia. Joe e Louis sentados lado a lado, encostando os
ombros, nas dunas da Praia Jones, em frente ao mar. Está frio. Som das
ondas, das gaivotas e do distante trânsito da Beltway. Nova York romântica.
Joe está com muito frio, Louis como sempre não presta atenção ao clima.

JOE: Gosto de ir um lugar e ver como era antes. O país inteiro era assim
antigamente. Um paraíso.
LOUIS: Hoje em ruínas.
JOE: Ainda é um grande país. O melhor lugar do mundo. O melhor lugar
para se estar.
LOUIS: (Olha para ele um tempo, dai, com sotaque ídish:)
OI! Um mórmon!
Você nunca me contou. Por quê?
JOE: Você nunca perguntou.
LOUIS: Você disse que era protestante.
JOE: E sou. Mais ou menos.
LOUIS: E o que mais você não me contou?
Joe? Quer dizer que aquela roupa de baixo delicada que você usa, é...
JOE: A vestimenta do templo.
LOUIS: Ah meu Deus. E serve para quê?
JOE: Proteção. Segunda pele. Posso para de usar se você...
LOUIS: Como você pode parar de usar se é uma pele? Seu passado, suas
crenças, seu...

(Joe afaga carinhosamente o cabelo de Louis. Louis recua.)

82
LOUIS: Que rápido heim, vou te contar.
JOE: Escuta o barulho do mar.
Louis...?
LOUIS: O Atlântico no inverno. Uau, heim?
JOE: Feroz. Está tão gelado, o que que nós...
LOUIS: Antigamente, os caras andavam por essas dunas até quando caía
neve. Nada nos afastava da nossa tarefa.
JOE: Que era?
LOUIS: Explorar. Atravessar uma tera sem mapas. O corpo do homem
homossexual. Aqui na Praia Jones, ou no Central Park, ou nos
pinheiros de Fire Island, ou na sauna de Saint Marks. Pioneiros,
destemidos. Como os seus antepassados.
JOE: Não exatamente.
LOUIS: E muitos morreram pelo caminho. Eu trepei por aí muito mais do
que ele. Não é justo.
(Pequena pausa.)
JOE: Sei como você se sente, eu fico esperando um castigo divino por tudo
isso, mas.. na verdade eu estou feliz. De verdade.
LOUIS: Você não é feliz, ninguém é feliz.
JOE: Você pensa que felicidade significa ser totalmente feliz.
LOUIS: Não, não penso, é só que eu...
JOE: Você acredita que o mundo pode se tornar perfeito, e então você
sempre sempre está insatisfeito. Você tem que aceitar que o mundo
não pode ser perfeito, você tem que estar inteiramente no mundo, mas
não ser do mundo. Isso é que é ser mórmon.

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LOUIS: Isso que é ser esquizofrênico.
JOE: O ritmo da história é Conservador. Você tem que aceitar isso. E
aceitar a felicidade como sendo sua, de direito.
LOUIS: O que eu estou fazendo aqui? Com você? Com qualquer pessoa,
eu devia ser exterminado, mas com você: casado, bissexual, casado,
mórmon, republicano, enrustido. Quer dizer, eu gosto de você mas...
(Joe tapa a boca de Louis com a mão.)
JOE: Cala a boca, tá?
(Louis faz que sim. Joe tira a mão da boca de Louis e o beija
profundamente.)
LOUIS: Na cama você é tão doce, e eu não consigo entender como você
acredita nesses negócios que você acredita. O Partido Republicano é...
Eu detesto os democratas também, mas os republicanos. Metade são
uns fanáticos religiosos que querem controlar cada respiração de cada
cidadão, e metade são uns caubóis libertários, anarquistas do ego,
gritando para acabar com o governo.
JOE: Pára de me atacar, Louis, eu não quero brigar, eu...
LOUIS: Mas o macartismo. Watergate.
(Joe beija Louis.)
LOUIS: Pat Buchanan. Jesse Helms.
JOE: Barry Goldwater.
(Eles se beijam, mais apaixonadamente.)
JOE: George Will.
LOUIS: George Bush.
(Eles se beijam ainda mais apaixonadamente.)

84
LOUIS: Newt Gingrich. Falando objetivamente, uma corja perigosa.
JOE: Responsável por tudo de mau e de pior que existe no mundo.
LOUIS: É só jogar o Reagan nesse monte e é por aí mesmo.
JOE: Ah, se as pessoas como você não tivessem o presidente Reagan para
fazer de demônio, o que seria de vocês?
LOUIS: Se ele não tivesse pessoas como eu para fazer de demônio, o que
seria dele? Seria o mais quadrado dos quadradões de Hollywood.
(Louis deita sobre Joe; eles continuam namorando.)
LOUIS: É interessante. Estou me perdendo num bar gay sadô-masô
ideológico. Nunca fiz sexo tão bem com ninguém, quanto mais eu
acho as suas opiniões políticas estarrecedoras, mais eu quero trepar
com você.
JOE: Não sou seu inimigo. Louis.
LOUIS: Nunca falei que você é meu...
JOE: (Sobrepondo-se, continuando da fala anterior:) Basicamente, nós dois
queremos a mesma coisa.

(Pequena pausa, os dois se entreolham. Louis se separa um pouco


dele, com gentileza.)
LOUIS: Acho que isso não é verdade.
JOE: É sim.
Quando você foi embora e deixou ele lá, isso foi difícil de fazer.
(pequena pausa)
Pode ser que o mundo não compreenda nem aprove, mas você fez o
que você precisava fazer. E eu te considero muito corajoso.
LOUIS: Joe, ninguém faz o que eu fiz. Ninguém.

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JOE: Mas talvez muitos queiram fazer.
Deixar ele. De verdade.
Escuta o que eu estou dizendo, sem misturar a política: você, dentro
de você, é um sujeito muito bom, muito bom mesmo. Eu te admiro.
Eu acredito em você. Verdade.
LOUIS: Eu sei que sim.
Parece que você é capaz de conviver com isso que você fez. Você
abandonou a sua esposa. E você não está todo dividido e culpado por
causa disso, de jeito nenhum, aliás você... desabrochou. Isso é
terrível, mas... mas você não é uma pessoa terrível, você é um cara
decente, cuidadoso, preocupado com os outros. E isso não é possível,
mas olhando para você, parece possível. Você parece livre, de
verdade.
JOE: Sim.
LOUIS: E feliz.
JOE: Eu sou.
LOUIS: E de noite você dorme em paz. Você não tem esses sonhos
terríveis, pavorosos.
JOE: Não. Eu nunca sonho.
(Pequena pausa. Louis chora.)
JOE: Ah! Poxa, você está... Louis, Louis, eu...
(Joe pega Louis nos braços, o conforta.)
LOUIS: Estou só... cansado, tenso.
Não sonhar nunca, nada. Seria espantoso.

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(Os dois fazem carinho.)
JOE: (baixinho:) Eu te amo.
LOUIS: Não, não ama não.
JOE: Amo, sim.
LOUIS: NÃO AMA, NÃO. Não é possível, faz só um mês, demora anos
para se amar, quatro anos e meio no mínimo. Você acha que está
apaixonado, mas isso é coisa de gay virgem, isso é...
JOE: Louis, você e eu, somos a mesma coisa. Nós dois queremos a mesma
coisa.
LOUIS: Eu quero encontrar o Prior de novo.
(Joe levanta, se afasta.)
LOUIS: Eu sinto falta dele, eu...
JOE: Você quer voltar para o...
LOUIS: É só que eu... Preciso ver ele de novo.
(pequena pausa)
Você não... Você deve ter vontade de ver a sua mulher.
(pequena pausa)
JOE: Sinto falta dela, me sinto mal por ela, eu... tenho medo dela.
LOUIS: É.
JOE: E eu quero mais é ficar com...
LOUIS: Eu preciso. Ver o Prior.
Faz um mês, estou preocupado. Só isso.
Por favor, não fica assim triste.
Você compreende que eu...
JOE: Você não quer me ver mais.

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LOUIS: (incerto:) Não, eu...
JOE: Louis.
Qualquer coisa.
LOUIS: O quê?
JOE: Qualquer coisa. O que você quiser. Eu posso largar tudo. Minha pele.
(Começa a tirar a roupa. Quando Louis percebe, tenta detê-lo.)
LOUIS: O que você está fazendo, alguém pode ver, isso aqui não é praia de
nudismo, está um frio do cão!
(Joe empurra Louis, Louis cai, e Joe tira tudo, rasgando a roupa. Fica nu.)
JOE: Estou sem pele.
Sem passado. Eu podia largar qualquer coisa. Talvez... com tudo isso
que a gente tem feito, eu esteja até infectado.
LOUIS: Não...
JOE: Não quero. Agora quero viver. E posso ser tudo aquilo que eu preciso
ser. E eu quero ficar com você.
(Louis começa a vestir Joe.)
JOE: (Deixando-se vestir) Você tem bom coração e você pensa que ser bom
é ser culpado, sempre, mas nem sempre a bondade consiste em ser
delicado, existe uma violência genuína que a delicadeza e a fraqueza
impõem nas pessoas. Às vezes o mais generoso é ser egoísta.
Você devia pensar nisso.
LOUIS: Tá bom. Vou pensar.
JOE: Você devia pensar... sobre o que você está fazendo comigo. Não,
quer dizer... O que você precisa. Pense no que você precisa. Seja
corajoso. Daí você vai voltar para mim.

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89
ATO III, CENA 5

Noite do mesmo dia. Louis e Joe continuam no palco, vindos da cena


anterior.
Quarto de hospital de Roy. Roy está dormindo. Belize entra com uma
bandeja e um copo d'água, e acorda Roy.

BELIZE: Hora de tomar seu remedinho.


ROY: O quê? Que horas?... Água.
(Belize lhe dá um copo de água.)
ROY: Amarga.
Olha só como está lá fora. Negra meia-noite.
BELIZE: Quer alguma coisa?
ROY: Nada que venha daí. Por mim, pode levar isso tudo embora.
(Vendo Belize:) Ah...
BELIZE: O quê?
ROY: (Abaixando as mãos:) Ah. Chegou o bicho-papão.
Olha, mamãe, o bicho-papão é preto.
Entra, meu bem, por que você demorou tanto?
BELIZE: Você está viajando, Roy. É a morfina. Eles põem morfina no soro
para parar a... Está acordado? Está vendo quem sou eu?
ROY: Sim, claro, você veio buscar minha mãe, anos atrás.
Agora você vai me envolver nos seus braços. Arrancar a vida
sangrando de dentro de mim. Certo?
BELIZE: Ãhn, não, não está certo, não. Você está voando, Roy.
ROY: Negros braços fortes, me levem assim. Profundo e sincero, mas sem
viollência, quero me abrir para o meu final.

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BELIZE: Quem sou eu, Roy?
ROY: O negro enfermeiro da noite, minha negação. Você veio me escoltar
até o mundo subterrâneo. (Um sério convite sexual:) Vem.
BELIZE: Você me quer na sua cama, Roy? Quer que eu te leve embora.
ROY: Estou pronto...
BELIZE: Logo mais venho te buscar. Tudo que eu quero é o seu fim.
ROY: Então agora. Meu Deus, estou pronto.
Mas que moleza, porra, é devagar como todo preto.
Permita-me fazer uma pergunta, cavalheiro?
BELIZE: Cavalheiro?
ROY: Como é que é lá? Depois?
BELIZE: Depois...?
ROY: Depois que essa desgraça acabar.
BELIZE: O inferno ou o céu?
(Roy olha fixo para Belize.)
BELIZE: É como San Francisco.
ROY: Ah, uma cidade. Ainda bem. Eu estava preocupado... achei que ia ser
um jardim. Detesto essa merda.
BELIZE: Mmmm. Cidade grande, cheia de mato, mas um mato que dá flor.
Em cada esquina uma equipe de demolição, e uma coisa nova, toda
torta, se erguendo ao lado. Janelas faltando em todos os edifícios,
como dentes quebrados, rajadas e ventanias de areia, e o céu alto,
cinzento, cheio de corvos.
ROY: Isaías.

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BELIZE: Pássaros profetas, Roy.
Pilhas de lixo, lapidárias, rubis e obsidianas, e serpentinas ao vento,
cor de diamante. E cabines de votação.
ROY: E um dragão montado em cima da arca do tesouro.
BELIZE: E todo mundo com vestidos Balenciaga de corpete vermelho, e
grandes palácios de dança cheios de música e luzes, mistura de raças e
confusão de sexos.
(Roy ri baixinho, deliciado.)
BELIZE: E todas as divindades são crioulas, mulatas, marrons como a boca
dos rios.
(Roy ri de novo.)
BELIZE: Raça, gosto, história, tudo finalmente superado. E você não está
lá.
ROY: (Feliz, concorda com um "não" de cabeça:) E o céu?
BELIZE: Esse era o céu, Roy.
ROY: Era porra nenhuma.
(Desconfiado, amedrontado:) Quem é você?

(pequena pausa)
BELIZE: (sussurrando:) Eu trabalho para a KGB.
ROY: Você e o Paul Robeson.
(Tentando clarear as idéias:) Eu te conheço?
BELIZE: Sua negação.

92
ROY: Sim. Eu te conheço. Um nada. Um ronco na barriga que acorda a
gente no meio da noite. Um lugar escuro criado na ausência da minha
pessoa.
(Ethel entra.)
BELIZE: Prazer em falar com você. Agora dorme, baby. Eu sou apenas a
sombra no seu túmulo.

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93
ATO III, CENA 6

Harper e a Mãe Mórmon. É de noite. Na Promenade de Brooklyn Heights.


Todos os personagens das duas cenas anteriores permanecem no palco.

HARPER: É perigoso ficar na rua, tem gente louca por aí.


MÃE MÓRMON: (olhando para o horizonte:) Torres cheias de fogo.
É o Outro Lado.
HARPER: Manhattan. Foi difícil atravessar as pradarias?
MÃE MÓRMON: Você não é burra. Portanto não faça perguntas burras.
Pergunte alguma coisa de verdade.
HARPER: (um tempo, daí:) Na sua experiência do mundo. De que jeito as
pessoas mudam?
MÃE MÓRMON: Bem, tem alguma coisa a ver com Deus, quer dizer que
não é muito legal.
Deus rasga a pele com uma unha quebrada do polegar, desde a
garganta até a barriga, e daí enfia a mão, uma mãozona enorme,
imunda, agarra os tubos sanguinolentos e eles escorregam, tentam
evitar aquela mão, mas ele aperta forte, ele insiste, ele puxa, puxa, até
arrancar todas as suas entranhas, e a dor! Não se pode nem falar. E daí
ele enfia de volta, tudo sujo, emaranhado, rasgado. Cabe a você
costurar.
HARPER: E se levantar, e sair andando.
MÃE MÓRMON: É só entranhas dilaceradas, fingindo.
HARPER: É assim que as pessoas mudam.

94
(Prior aparece. Está em casa, tirando devagar suas camadas de roupas
negras de profeta. Está muito doente e muito triste.)

MÃE MÓRMON: Sinto cheiro de vento salgado.


HARPER: Vem do mar.
MÃE MÓRMON: Significa que ele está voltando. Daí você vai saber. Daí
você vai comer fogo. (Canta:) "Bring back, bring back, oh bring back
my bonnie to me, to me..."
HARPER: (Cantando junto:) "Bring back, bring back, oh bring back my
bonnie to me, to me..."

(Enquanto elas cantam, Louis deixa Joe sozinho na praia. De volta


em Manhattan, vai até um telefone público na rua, disca um número.
Prior está sozinho em seu quarto. Está tomando seu remédio. O
telefone toca no apartamento de Prior. Prior atende.)

PRIOR: Espera, estou com a boca cheia de água e de pílulas, eu...


LOUIS: Prior? É o Lou.
(Prior engole.)
LOUIS: Quero te ver.

FIM DO TERCEIRO ATO

INTERVALO

95
QUARTO ATO
O CORPO DE JOHN BROWN
(Fevereiro de 1986)

ATO IV, CENA 1

Dia seguinte. Cena dividida:


· Louis sentado, com frio, num banco do parque.
· Roy e Joe no quarto de hospital de Roy, que está de cama, como sempre
com soro na veia. Seu estado piorou. Joe está sentado numa cadeira
perto da cama.
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QUADRO 1: Roy, Joe.

ROY: Se você quiser o blá-blá-blá-, a propaganda, você pode ouvir o que


diz o Kissinger, o Schultz, esses caras, mas se você quer enxergar o
coração do conservadorismo moderno, olhe para mim. Todo mundo
abandonou a luta, hoje em dia tudo virou um chá das cinco com Nixon
e Mao Tsé Tung, aquilo foi um nojo, você viu aquilo? Você já era
nascido?
JOE: Claro, eu...
ROY: Na minha geração, nós tínhamos clareza. Não tínhamos medo de
olhar bem fundo no miasma, no coração do mundo, que buraco, que
pesadelo -- eu olhei, a vida inteira eu procurei o fundo do poço, e
encontrei, acredite: é infernal. Como a vida é trágica, como a vida é
brutal, como a vivda é curta. Como as pessoas são pecadoras. É o

96
coração imutável daquilo que nós somos, que sangra através de tudo
que possamos vir a ser. O resto é vaidade.
Não conheço mais o mundo.
(Ele tosse.) Depois que eu morrer, vão dizer que foi pelo dinheiro e
pelas manchetes de jornal.Mas nunca foi o dinheiro: o que interessa é
a audácia. Você: lembre-se disso.
JOE: Vou me lembrar, Roy.
Eu estava com medo que você não quisesse me ver. Queria saber se
você ia me perdoar. Por ter te decepcionado.
ROY: Perdão.
Você viu uma mulher por aí, uma gordinha com um chapéu...
ridículo? Ela... Não, não, ela saiu, foi assistir à audiência. Aquela
cadela daquela traidora.
JOE: Quem?
ROY: Seu pai te abençoou antes de morrer?
JOE: Abençoou?
ROY: É.
JOE: Não.
ROY: Pois devia ter abençoado. A vida. É isso que eles têm que abençoar.
A vida.

(Roy faz um gesto para Joe se aproximar, depois para ele se ajoelhar. Põe a
mão na testa de Joe. Joe apóia todo o peso da cabeça na mão de Roy. Os
dois fecham os olhos e desfrutam do momento.)

97
JOE: (baixinho) Roy, eu... preciso falar com você sobre...
ROY: Ssshhh. Shmendrik. Não estraga a mágica.
(Ele tira a mão.) Uma bênção, uma brahá. Você não precisa nem me
enrolar para conseguir, que nem aquele lá da Bíblia, como ele
chamava.
JOE: Jacó.
ROY: Isso aí. Um filho da mãe sem dó nem piedade, baixinho, careca, mas
agarrou o seu direito de primogênito com unhas e dentes. O pai de
Jacó -- como era mesmo o nome do cara?
JOE: Isaac.
ROY: Isso aí. Aquele do sacrifício. Aquele imbecil.
Minha mãe lia essas histórias para mim.
Está vendo essa cicatriz no meu nariz? Quando eu tinha três meses de
idade, tinha uma saliência aqui nesse osso, e ela mandou eles
operarem, cortar fora. Eles disseram que eu era muito novo para a
operação, que eu ia crescer e aquilo ia passar, mas ela insistiu. Acho
que ela quis que eu fosse forte. E funcionou. Eu sou duro de roer. Não
é fácil... acabar comigo.

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QUADRO 2: Prior, Louis.

(Prior entra e senta no banco, o mais longe possível de Louis.)

PRIOR: Ah, isso vai ser muito pior do que eu tinha imaginado.
LOUIS: Olá.
PRIOR: Vai te foder, seu merda.
LOUIS: Não desperdice a sua energia me atacando, tá bom? Pode deixar
que eu mesmo cuido disso.
PRIOR: Não estou vendo marca nenhuma.
LOUIS: Aqui dentro.
PRIOR: Ah como você é nobre. Lá dentro. Não esnoba, Louis. Então. A
festa é sua. Fale.
LOUIS: Que bom te ver. Eu estava com saudades.
PRIOR: Fala.
LOUIS: Eu quero... tentar fazer as pazes.
PRIOR: Fazer as pazes.
LOUIS: É. Mas...
PRIOR: Ahá! Mas!...
LOUIS: Mas você não precisa ser tão agressivo. Será que eu não ganho
nenhum ponto por tentar tomar uma decisão? Talvez o que eu fiz não
seja perdoável, mas...
PRIOR: E não é.

99
LOUIS: Mas, Prior. Eu estou tentando ser responsável. Existem limites.
Limites. Seja razoável.
Por que você está vestido deste jeito?
(pequena pausa)
PRIOR: Você estava falando sobre ser razoável.
LOUIS: Venho pensando muito nisso. Sim, eu fodi com tudo, é óbvio. Mas
quem sabe você também fodeu com tudo. Você nunca confiou em
mim, você nunca me deu uma chance de eu botar os pés no chão, não
mesmo, você era tão rápido para atacar, e... no fim das contas, acho
que muito vítima. Passivo. Dependente. E eu acredito que as pessoas
realmente têm uma escolha para lidar...
PRIOR: Você quer voltar. Por quê? Penitência? Absolvição?
LOUIS: Eu não falei que queria voltar.
(pausa)
PRIOR: Ah.
Não, não falou.
LOUIS: (baixinho, quase pedindo:) Não posso. Morar junto outra vez,
começar tudo de novo. Acho que seria tudo igual.
(pequena pausa)
PRIOR: Você está namorando outra pessoa.
LOUIS: (chocado) O quê? Não.
PRIOR: Está, sim.
LOUIS: NÃO ESTOU. Bom, de vez em quando... É só um... um cara que
eu cacei por aí, como é que você...

100
PRIOR: Limiar da revelação. Agora: me pergunta como é que eu sei que ele
é mórmon.
(Pausa. Louis olha fixo.)
PRIOR: Ele é mórmon?
(pequena pausa) Porra, me pergunta como é que eu sei.
LOUIS: Como?
PRIOR: Fôda-se. Eu sou profeta.
(Furioso:) Razoável? Limites? Vá contar isso pros meus pulmões,
seu cretino, vai contar isso pras minhas lesões, para essa nuvem de
algodão que eu tenho nos olhos!
LOUIS: Prior... eu já não vejo ele há dias...
PRIOR: Vou-me embora, eu também tenho limites.

(Prior começa a ir embora. Tem um ataque de algum problema respiratório.


Senta-se pesadamente no banco. Louis quer se aproximar, Prior o afasta
com um gesto. Prior olha para Louis.)

PRIOR: Você chora, mas aí dentro você não arrisca nada. Quando você
chora, é como a idéia teórica do choro. Ou a idéia teórica do amor.

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101
QUADRO 3: Roy, Joe, Belize.

ROY: Agora você tem que ir embora.


JOE: Eu larguei a minha mulher.
(pequena pausa) Precisava te contar.
ROY: Acontece.
JOE: Estou encontrando uma pessoa. Outra pessoa. Já faz um mês.
ROY: Acontece.
JOE: É ... é um homem.
(pausa)
ROY: Um homem?
JOE: É.
ROY: Você está com um homem?
JOE: Estou, eu...

(Roy se senta e joga as pernas sobre a beira da cama, do lado oposto a onde
Joe está sentado.)
ROY: Eu tenho que...
JOE: O quê... Ãhn... O banheiro, ou...

(Roy fica em pé, vacilante. Começa a se afastar da cama. O tubo do soro no


seu braço se estica e se solta. Roy olha, lembrando que o tubo está ali. De
um jeito calmo, até desinteressado, ele arranca o tubo do braço.)

ROY: Ai.
JOE: Roy, o que você está...

102
(Joe vai saindo para a porta, Roy fica parado imóvel olhando o sangue
escuro escorrer pelo seu braço.)

JOE: (Chamando para o corredor:) Ãhn, ajuda aqui, por favor, acho que
ele...
(Belize entra com o oxigênio portátil e vê Roy.)
BELIZE: Puta merda.
(Belize coloca luvas de borracha e se aproxima de Roy.)
ROY: Sai de perto de mim, porra.
JOE: (indo para Roy:) Roy, por favor, volta para a...
ROY: CALA A BOCA!
Agora me escute.
(Joe dá um sim de cabeça.)
BELIZE: Quer fazer o favor de...
ROY: CALA A BOCA, JÁ FALEI.
(para Joe:) Eu quero você em casa. Com a sua mulher. Qualquer
outra coisa que você estiver fazendo, você corta, mata.
JOE: Não posso, Roy, preciso ficar com...
(Roy agarra Joe pela camisa, manchando-a de sangue.)
ROY: VOCÊ PRECISA? Escuta aqui. Faça o que eu digo. Senão você vai
se arrepender. E não me fale mais nisso. Nunca mais.

(Belize se aproxima, leva Roy para a cama e começa a lhe fazer um curativo
no braço.)

ROY: Eu... Nunca imaginei que isso ia acontecer. Assim você me mata.

103
BELIZE (para Joe:) Trata de tirar essa camisa e jogar ela fora, e não
encoste no sangue.
JOE: Por quê? Eu não compreen...
ROY: SAI! SAI! Eu já te abençoei -- QUE MAIS VOCÊ QUER DE MIM?
(Roy tem um terrível espasmo.)
BELIZE (para Joe:) Quer sair daqui, porra.
JOE: Eu... Roy, por favor, eu...
ROY: (exausto) Eu o quê, você quer ficar aqui, assistindo isso? Ora, fôda-se
você também.
(Joe sai. Belize termina o curativo.)
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QUADRO 3: Prior, Louis.

PRIOR: Então. Seu novo namorado...


LOUIS: Ele não é meu...
PRIOR: Me conta onde você conheceu.
LOUIS: No parque. Bom, ahn, primeiro no trabalho, ele...
PRIOR: É advogado ou é juiz?
LOUIS: Advogado.
PRIOR: Um advogado mórmon gay.
LOUIS: Pois é. Republicano também.
PRIOR: Advogado mórmon gay republicano. (Com desprezo:) Louis...
LOUIS: Bom, mas ele é assim um tipo, não sei se a palavra seria... Mas, de
certo modo, sensível, e eu...
PRIOR: Ah. Um republicano gay sensível.

104
LOUIS: É só uma companhia. Companheirismo.
(pausa)
PRIOR: Companheirismo. Ah.
Sabe, bem na hora que eu acho que não é possível ele dizer mais nada
para piorar as coisas, ele fala. Companheirismo. Que bom. Ah, não eu
queria que você ficasse sozinho.
Existem milhares de gays aqui em Nova York que estão com AIDS, e
quase todos estão sendo cuidados por... um amigo, ou um...
namorado, que fica firme do lado dele, passando por coisas piores do
que as minhas... por enquanto. Todo mundo tem, só eu que não. Eu
tenho você. Por quê? O que que eu tenho de errado?
(Louis está chorando.)
PRIOR: Louis? Você está mesmo machucado por dentro?
LOUIS: Não agüento mais essa conversa.
PRIOR: Ah, a lista das coisas que você não agüenta. Tão frágil! Responde
pra mim: aí dentro: Está ferido?
LOUIS: Estou.
PRIOR: Volte para mim quando as feridas forem visíveis. Quero ver negro,
quero ver roxo, Louis, eu quero ver sangue. Porque eu não consigo
acreditar que você tem sangue nas veias, enquanto você não me
mostrar. Portanto, não se aproxime de mim, a não ser que você tenha
alguma coisa para mostrar.
(Prior sai.)
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QUADRO 5: Roy, Belize, Ethel.

105
ROY: (Olhando para a porta pela qual Joe saiu:) Tudo, tudo que eu já quis
na vida eles me tiraram. Fui ridicularizado, achincalhado, toda a
minha vida.
BELIZE: Benvindo ao clube.
ROY: Eu não pertenço a nenhum clube que deixasse você entrar pela porta
da frente.
E cuidado, você toma muitas liberdades.
Qual é o seu nome?
BELIZE: (um tempo, daí:) Norman Arriaga. Meus amigos me chamam de
Belize, mas pode me chamar de Norman Arriaga.
ROY: Me diga uma coisa, Norman, alguma vez você já contratou um
advogado?
BELIZE: Não, Roy. Nunca.
ROY: Pois contrate um advogado, processe alguém, faz bem para a alma.
Os advogados são... Os Sumos Sacerdotes da América. Só nós
conhecemos as palavras que fizeram a América. A partir do nada, do
puro ar. Só nós sabemos como usar As Palavras. Advocacia: o único
clube onde eu quis entrar. E antes que eles me tirem isso, eu vou
morrer.

(Roy tem uma série de terríveis espasmos, que o sacodem violentamente.


Belize se aproxima. Roy agarra Belize pelos dois braços. Belize tenta se
livrar, mas Roy fica agarrado, sacudindo-lhe os braços. Durante esse
acesso, Ethel aparece.)

ROY: Ssshhh. Fogo. Fora.

106
(A coisa não passa. Continuam os espasmos violentos.)
Meu Deus, tenha piedade. Que maneira mais cachorra de ir embora.
BELIZE: Deus tenha piedade.
ROY: (Vendo Ethel:) Olha só quem voltou.
BELIZE: (olhando em torno, não vê ninguém) Quem?
ROY: Madame Moscou Kilowatts.
Que horror. Como estão as coisas lá em... Yonkers?
BELIZE: Eu quase tenho pena de você.
ETHEL: Que má idéia.
ROY: Pois é. Piedade. Que nojo.
(Para Belize:) Você. E eu. (Estala os dedos.) Nenhuma. Conexão.
Ninguém... comigo agora. Só os mortos.

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ATO IV, CENA 2

Dia seguinte. Joe no seu escritório no tribunal, no Brooklyn. Sentado na sua


mesa. desanimado, segura a cabeça nas mãos. Prior e Belize entram pelo
corredor.

PRIOR: (cochicha) Aí é o escritório dele.


BELIZE: (cochicha) Isso é uma tremenda besteira.
PRIOR: (cochicha) Volta pra casa, se você está com medo.
BELIZE: É você que devia estar na sua casa.
PRIOR: Agora eu tenho um novo hobby: assombrar as pessoas. Fôda-se a
minha casa. Você espera aqui. Quero conhecer meu substituto.
(Prior vai até a porta da sala de Joe, entra.)

PRIOR: Ah.
JOE: Pois não, posso...
PRIOR: Você parece direitinho aquele manequim. Ela tem razão.
JOE: Quem tem razão?
PRIOR: Sua mulher.
(pausa)
JOE: O quê? Você conhece a minha...
PRIOR: Não.
JOE: Você falou minha mulher.
PRIOR: Não, não falei.
JOE: Falou, sim.
PRIOR: Você ouviu errado. Eu sou Profeta.

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JOE: O quê?
PRIOR: PROFETA. PROFETA. EU FAÇO PROFECIAS, EU TENHO
VISÃO, EU VEJO.
E você, faz o quê?
JOE: Sou funcionário.
PRIOR: Ah, grande coisa. Funcionário. Você faz o quê, arquiva pastas?
Pois muito bem, é melhor você fazer um arquivo dos corações que
você partiu, é só isso que conta no fim, você vai ter contas a pagar no
outro mundo, você e o seu amigo, a Prostituta da Babilônia.
(pausa)
Desculpa, entrei na sala errada.

(Prior sai, vai até Belize.)

PRIOR: (desesperado) Ele é o Homem de Marlboro.


BELIZE: Aaaah, eu quero ver.

(Belize vai até a sala de Joe. Joe está em pé, perplexo. Belize vê Joe e no
mesmo momento o reconhece.)

BELIZE: Meu sagrado coração de Jesus!


JOE: Escuta, o que que é ...
Você é o enfermeiro do Roy. Estou te reconhecendo, você é...
BELIZE: Não, não está não.
JOE: Lá do hospital. Você é o enfermeiro do Roy Cohn.

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BELIZE: Não sou, não. Não sou enfermeiro. Para vocês, nós somos todos
iguais. Vocês também são todos iguais para nós. Esse mundo é muito
louco. Passe um bom dia.
(Sai, volta para Prior.)
PRIOR: Viu ele lá na Terra de Marlboro?
BELIZE: De bota e espora. Agora, minha amiga, nós temos que levar você
para casa e botar você...
PRIOR: Super macho. Fez eu me sentir uma verdadeira Mariazinha. Parecia
que tinha umas margaridinhas saindo dos meus ouvidos. Umas
margaridinhas murchas...

(Joe sai da sua sala.)


BELIZE: Corre! Corre!
JOE: Espera!

(Joe os encurrala num canto. Belize fica com o rosto virado e coberto.)

JOE: Mas que brincadeira é essa, isso aqui é um Tribunal Federal. Você
falou... alguma coisa sobre a minha mulher. Agora... Como é que você
conhece a minha...
PRIOR: Eu sou... Nada. Sou doente mental. Ele é meu enfermeiro.
BELIZE: Eu não sou enfermeiro dele, não sou enf...
PRIOR: Nós estamos aqui no Tribunal para resolver o problema do meu
testamento. Ãhn, como se chama, quando querem anular o testamento
da gente?

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JOE: Incompetência mental? Mas isso aqui é um Tribunal de Apelação.
PRIOR: E eu estou apelando, para qualquer um, para qualquer pessoa do
universo, que queira me ouvir... Caridade... Tem gente tão gananciosa,
são tão porcos, eles têm tudo, têm saúde, tudo, e mesmo assim ainda
querem mais.
JOE: Você falou na minha mulher. E eu quero saber se ela está...
PRIOR: VAI VOCÊ MESMO FALAR COM ELA, SEU CRETINO! TÁ
ME ACHANDO COM CARA DE CONSELHEIRO
MATRIMONIAL?
Ah, enfermeirinho, meu bem, por favor, pega o meu remédio, estou
começando a ter ataque.
BELIZE: Pardon, Monsieur l'Avocat, nous sommes absolument désolés.
(Prior mostra a língua para Joe com um ruído obsceno.)
BELIZE: Comporte-se, ma chérie, se não a babá vai ter que usar a colher de
pau.

(Prior sai.)

BELIZE: (para Joe, tirando a echarpe do rosto:) Estou enjaulado num


mundo de gente branca. Esse é o meu problema.
(Sai.)

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111
ATO IV, CENA 3

Dia seguinte, um dia frio e tempestuoso no fim de fevereiro. Na Fonte


Bethesda, no Central Park. Enquanto a cena avança uma tempestade vem se
aproximando e o dia escurece. Louis está sentado na beirada da fonte.
Belize entra e senta ao lado dele.

BELIZE: Belo anjo.


LOUIS: Que anjo?
BELIZE: Da fonte.
LOUIS: (olhando) Bethesda.
BELIZE: Ela é uma homenagem ao quê? Louis, aposto que você sabe.
LOUIS: Os marinheiros mortos na Guerra Civil.
BELIZE: Guerra Civil. Eu sabia que você sabia. Você é tão bem informado.
LOUIS: Este é o lugar favorito do Prior aqui no parque.
Escuta, eu vi ele ontem. O Prior.
BELIZE: O Prior está transtornado.
LOUIS: Ele está legal? Ele parecia... Bom, não parecia ele mesmo,
parecia...
BELIZE: Louco?
LOUIS: Escuta, ele está tendo... delírios, ou...?
BELIZE: Com uma pequena ajuda dos amigos.
LOUIS: Escuta, esse cara que eu estou encontrando, eu não tenho mais visto
ele. O Prior compreendeu mal, já foi correndo tirar conclusões...
BELIZE: Ah, sim. O seu novo namorado. Eu e o Prior fomos até o tribunal,
dar uma boa espiada nele.
LOUIS: Vocês não tinham direito de fazer isso.

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BELIZE: Ah é, nós violamos os seus direitos. Escuta, Louis, para que que
você me arrastou até aqui, eu não tenho tempo para você. Você
abandona seu namorado. Não se passam três dias e você já está
zanzando pela cidade com uma pessoa nova. Mas isso...
LOUIS: Eu não estou zanzando... Eu quero que você diga pro Prior que
eu...
BELIZE: Isso é o fim da picada: você na sua cama suja e molhada,
dormindo com o garotão do Roy Cohn.
(pausa)
LOUIS: Como é que é?
BELIZE: Isso não te incomoda nem um pouco?
LOUIS: Roy Cohn? Mas que merda você está... Eu não estou dormindo
com o garotão do Roy Cohn...
BELIZE: Ah, seu amiguinho não te contou. É que a comunicação de vocês
não é verbal, não é mesmo, vocês só arrancam as botas e vão rolar no
feno.
LOUIS: Joe Pitt não é nada de Roy Cohn... Joe é um homem de moral, e
nem é tão conservador assim, nem... Bom, quer dizer, não é esse tipo
de... E eu não quero mais falar nisso.
BELIZE: (levantando-se para ir embora:) Bye-bye.
LOUIS: Não é culpa minha que o Prior largou você para ficar comigo.
BELIZE: Como é que é?
LOUIS: Você sempre teve ódio de mim. Porque você é apaixonado pelo
Prior, e era apaixonado quando eu conheci ele, e ele se apaixonou por

113
mim, então agora você vem me inventar esse negócio... Pôxa, como é
que você sabe disso aí? Que o Joe e o Roy Cohn são...
BELIZE: Eu não sei se o senhor Roy Cohn penetrou mais do que o
esfíncter espiritual do Joe. Só estou te dizendo uma coisa, Louis:
tomara que não exista nenhum vírus republicano, porque se existir,
você já pegou.
LOUIS: Eu não acredito. Roy Cohn. Não. Ele é, assim, a estrela polar da
maldade humana, é o pior ser humano que já existiu, ele não é nem
humano, ele é... Pôxa, por favor, me dá um crédito, por alguma
coisa, uma casquinha de crédito moral, de alguma coisa, OK, tá bom,
eu estraguei tudo, fodi com tudo, fodi com tudo quem sabe mais que
qualquer pessoa em tudo que já foi fodido na História Universal, mas
mesmo assim eu ainda não... ainda não perdi a cabeça, eu não sou
louco, eu sou... infeliz, horrivelmente infeliz, estou perdido, estou...
Eu odeio a mim mesmo, totalmente, completamente, fodidamente,
mas mesmo assim, eu nunca iria... nunca iria dormir com alguém que
é do Roy Cohn, alguém que é o... (Ele se interrompe.)
BELIZE: Garotão.
LOUIS: (em completo desespero, em voz baixa:) Ah meu Deus, que época
terrível. Meu Deus, que época monstruosa. Ah, meu Deus. Porra, eu
estou tão molhado, tão fodido.
BELIZE: Louis, você sabe qual é o seu problema? Seu problema é que você
é tão cheio de merda que só o seu nome já atrai as moscas.
Você não sabe de nada sobre esse cara, sabe?

114
(Louis faz que não com a cabeça.)

BELIZE: Hã-hã. Ora, ora, não é patético.


Bem, então só para esclarecer as coisas: eu amo Prior, mas nunca fui
apaixonado por ele. Eu tenho um homem aqui na cidade, e já estava
com ele muito antes de ter posto os meus olhos nessa sua cara de
bunda.
LOUIS: Eu... não sabia que você...
BELIZE: Lógico, você nunca se deu ao trabalho de perguntar.
Está sempre pairando no ar, igualzinho àquele anjo, longe da terra, tão
longe que nem capta os detalhes. Louis e suas Grandes Idéias.
Grandes Idéias é a única coisa que você ama. A "América" é o que
você ama.
(pequena pausa)
LOUIS: E daí? Quem sabe é isso mesmo. Você não sabe o que eu amo.
Você não sabe.
BELIZE: Pois eu odeio a América, Louis. Eu odeio esse país. São só
grandes idéias, e histórias, e gente morrendo, e gente igual a você.
Aquele doido branquela que compôs o Hino Nacional sabia o que
estava fazendo. Ele botou a palavra "liberdade" numa nota tão alta que
ninguém alcança. Foi de propósito. Para mim, nada no mundo é tão
diferente da liberdade.
Vem comigo até o quarto 1013, lá no hospital, e eu te mostro a
América. Terminal, mesquinha e pirada.

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(Ruído de trovão. Daí vem a chuva. Belize tem um guarda
chuva portátil e o abre. Louis fica parado na chuva.)

BELIZE: Eu vivo na América, Louis, isso já é bem difícil, não preciso amar
a América. Deixo isso pra você. Cada um precisa amar alguma coisa.
LOUIS: Precisa mesmo.

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116
ATO IV, CENA 4
Mesmo dia. Hannah no Centro de Visitantes. Joe entra. Os dois se olham
por um longo momento.

JOE: Como ela está?


HANNAH: Nenhuma surpresa..
JOE: Ela está bem?
HANNAH: Bom, isso seria uma surpresa. Não é mesmo?
Posso...
JOE: Não consigo pensar em nada que a senhora possa fazer. Mãe.
A senhora não devia ter vindo.
HANNAH: Você já deixou isso claro como o dia. Há um mês. Você não é
capaz de retornar um simples telefonema.
JOE: Um telefonema da senhora... não é tão simples.
HANNAH: Pelo menos eu teria o que dizer a ela. Pelo que me consta, você
deve estar morando em cima de um telhado, na chuva. É uma
crueldade.
JOE: Não tive intenção.
HANNAH: Você tem certeza.
JOE: (um tempo, daí:) Vou levar ela para casa.
HANNAH: Você acha que isso é o melhor para ela, você acha que ela...
JOE: Eu... eu sei o que eu estou fazendo.
HANNAH: Pois eu acho que você não tem a mínima idéia. O que aliás é
típico de você. Você é homem, se você estraga tudo, não é grande
coisa, mas ela...

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JOE: Só por ser homem não quer dizer que...
HANNAH: Ser mulher é mais difícil. Veja a sua mulher.
JOE: (um tempo, daí, baixinho:) É grande coisa sim, mãe, estragar tudo. Eu
bem que preciso de um pouco de ...
HANNAH: Simpatia?
(pequena pausa)
Se eu conseguisse arranjar, você não ia querer. Você quer simpatia,
compreensão? Então por que você veio aqui?
JOE: Eu atravessei todo o continente da América do Norte, eu corri toda
esta extensão para fugir d... (ele se interrompe) Ela está...?
HANNAH: Ela não está aqui.
JOE: Mas... ela não está no apartamento, eu já...
HANNAH: (um tempo, daí:) Então ela escapou. Fez muito bem.
Pergunte a você mesmo do que você estava fugindo. Já é hora. Não
foi de mim, eu não era nada. Do que você fugiu? E do que você está
fugindo agora?
JOE: Nós dois. É como se a gente estivesse outra vez lá em Salt Lake City.
Parece que o deserto vem junto com a senhora.
(pequena pausa)
Mãe... não chore.
HANNAH: Se algum dia eu chorar, garanto que você não vai ter o
privilégio de testemunhar.
JOE: Foi um erro. Eu não devia ter dado aquele telefonema. Mãe. A
senhora não devia ter vindo. Não consigo imaginar por que a senhora
veio.

118
(Joe sai. Hannah se senta. Prior entra, de óculos escuro e chapéu.)
PRIOR: Aquele homem que estava aqui.
HANNAH: (sem olhar para ele) Está fechado. Vá embora.
PRIOR: Ele é seu filho.
(Hannah olha para Prior. Pequena pausa. Prior vira-se para ir embora.)
HANNAH: Você conhece ele?
(pequena pausa)
Como você sabe que...
PRIOR: Meu ex-namorado conhece ele. Agora, eu queria avisar o seu filho
sobre o que vai acontecer depois, quando ele ficar careca, barrigudo,
enfim, coisas da vida humana, ele vai acabar numa pior, gordão,
morrendo de medo, e sozinho, porque Louis, o Louis não consegue
lidar com o corpo humano.
HANNAH: (um tempo, daí:) Você é... homossexual?
PRIOR: Ah, será que é assim tão óbvio? Sim. Sou. E daí?
HANNAH: Você diria que você é um homossexual... típico?
PRIOR: Eu? Ah, eu sou estereotípico. Como assim, se eu sou
cabeleireiro...
HANNAH: Você é cabeleireiro?
PRIOR: Bem, se eu fosse, hoje seria o seu dia de sorte, porque
francamente...
Estou doente. Muito doente. E é muito caro.
(Ele começa a chorar.)
Ô, merda, agora não consigo parar, agora começou. Estou me sentindo
tão mal, será que eu estou com febre? (Oferece a testa, impaciente.)

119
Eu estou com febre?
(Ela hesita, daí põe a mão na testa dele.)
HANNAH: Está.
PRIOR: Muito alta?
HANNAH: Acho que tem um termômetro lá no...
PRIOR: Muito alta, muito alta, a senhora pode me levar até um táxi, acho
que eu quero... (Senta pesadamente no chão.)
Não fique assustada, é pior do que parece, quer dizer...
HANNAH: Você devia... Tentar se levantar, ou então... deixa ver se tem
alguém aqui para ...
PRIOR: (escutando seus pulmões) Sssshhh.
Respiração com eco, isso é... (abana a cabeça como quem diz "Não
tem jeito".) Eu... exagerei. Estou fodido outra vez.
Me leva para o hospital St. Vincent, quer dizer, me ajuda a pegar um
táxi até o...
(Pequena pausa, daí Hannah sai e volta de casaco.)
HANNAH: Dá para você se levantar?
PRIOR: A senhora não... Me chama um...
HANNAH: Eu aqui não tenho utilidade.
(Ela o ajuda a levantar.)
PRIOR: Por favor, se a senhora está tentando me converter, este não é um
bom momento.
(Trovão ao longe.)
HANNAH: Meu Deus, olha só como está lá fora. Que escuridão mais negra.
Vem vindo uma tempestade. Vamos andando.

120
(Os dois saem. Trovão.)
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121
ATO IV, CENA 5
Mesmo dia, fim da tarde. Harper está encostada no parapeito da
Promenade no Brooklyn, num vento gelado de março, olhando fixo para o
rio e para Manhattan no horizonte. A chuva está começando. Ela está
usando um vestido impróprio para o clima, e está descalça. Joe entra com
um guarda-chuva. Um olha fixo para o outro. Daí Harper se vira para olhar
o horizonte da cidade.

HARPER: O fim do mundo está próximo. Olá, cara-pálida.


Nada como nuvens de tempestade sobre Manhattan para deixar a
gente num clima de Juízo Final.

(Trovão.)

JOE: Está gelado, está começando a chover, cadê os seus sapatos?


HARPER: Joguei no rio.
O Juízo Final. Todo mundo vai achar que está louco, não só eu, todo
mundo vai ver coisas. Homens doentes vão enxergar anjos, mulheres
que têm casa vão vender sua casa, bonecos vão se levantar nas suas
pernas de plástico e sair vagando pelo país, procurando suas noivas.
JOE: Vamos para casa.
HARPER: Onde é isso?
(Apontando para Manhattan:) Quer comprar uma ilha? Estão
liquidando. Pode trocar pelas bugigangas de sempre. Liquidação total.
Os preços estão uma loucura.
JOE: Harper.
HARPER: Joe. Você sentiu falta de mim?

122
JOE: Eu... Eu voltei.
HARPER: Ah, eu sei.
É por isso que eu queria ficar no Brooklyn. A vista aqui da
Promenade. O fim nunca virá pela água. Por mais que você chore.
Dilúvio não é resposta, as pessoas simplesmente flutuam.
Vamos para casa.
A resposta é o fogo. O Grande Dia, o Dia Terrível.
Finalmente.

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123
ATO IV, CENA 6
De noite. Prior, Emily e Hannah numa sala de consultas no Pronto Socorro
do Hospital St. Vincent's. Emily está ouvindo a respiração de Prior, Hannah
está sentada numa cadeira próxima.

EMILY: Você perdeu quatro quilos. Quatro quilos! Conheço gente que
daria tudo para estar tão em forma como você estava, você estava se
recuperando, e você jogou tudo fora.
PRIOR: O problema não é o PESO, são meus PULMÕES, AHN...
PNEUMONIA.
EMILY: Ainda não sabemos.
PRIOR: NÃO SABEMOS O CARALHO, VOCÊ PODE NÃO SABER,
MAS EU NÃO CONSIGO RESPIRAR.
HANNAH: Você iria respirar melhor se não gritasse desse jeito.
PRIOR: (olha para Hannah, daí:) Essa é a mãe mórmon do namorado do
meu ex-namorado.
(pequena pausa)
EMILY: Até mesmo em Nova York nos anos 80, isso é estranho.
Continue respirando. Pára de se mexer. FICA QUIETO.
(Emily sai.)

HANNAH: (levantando para ir embora.) Tenho que ir embora.


PRIOR: Eu não estou louco.
HANNAH: Eu não falei que você...
PRIOR: Eu vi um anjo. Isso é loucura.
HANNAH: Bem, é...

124
PRIOR: Loucura. Mas eu não estou louco. Mas então por que eu fiz isso
comigo? É porque me deixaram louco.... o seu filho, e aquelas
mentiras... Porque desde que Ela chegou, desde aquele dia, eu me
sinto consumido por um terror frio, gelado como uma navalha, que
fica gritando... "Vai, se mexe! Corre!" E eu corri até... me enfiar
debaixo da terra. Bem onde Ela disse que eu ia ficar. Ela parecia tão
real. O que aconteceu comigo?
(pequena pausa)
HANNAH: Você teve uma visão.
PRIOR: Ah, uma visão. Obrigada, Maria Ouspenskaya.
Eu não estou tão pirado assim para ser acalmado com piedade e
mentira.
HANNAH: Eu não tenho piedade. É simplesmente algo que eu não tenho.
(pequena pausa)
Há 170 anos, o que é recente, um anjo de Deus apareceu para Joseph
Smith no estado de Nova York, não longe daqui. As pessoas têm
visões.
PRIOR: Mas isso é absurdo, isso é...
HANNAH: É falta de educação chamar de absurdo as crenças alheias. Ele
teve grande necessidade de compreensão. Nosso Profeta. Seu desejo
transformou-se em oração. Sua oração transformou-se num anjo.
E o anjo era real. Eu acredito nisso.
PRIOR: Pois eu não. E desculpe, mas para mim isso dá nojo. Muita coisa
que você acredita.
HANNAH: No que eu acredito?

125
PRIOR: Eu sou homossexual. Com AIDS. Posso muito bem imaginar o que
você...
HANNAH: Não, não pode não. Imaginar. As coisas na minha cabeça. Não
faça suposições a meu respeito, mocinho, e eu não farei sobre você.
PRIOR: (um tempo; ele olha para ela, daí:) Está certo.
HANNAH: O meu filho é... bom, assim que nem você.
PRIOR: Homossexual.
HANNAH: (concorda de cabeça, daí:) Eu tive um ataque de raiva quando
ele me contou, fiquei absolutamente possessa. Primeiro achei que era
por causa do... (Ela dá de ombros.)
PRIOR: Homossexualismo.
HANNAH: Mas não era. Homossexualismo. Parece uma coisa... tão de mal
gosto. Dois homens juntos. Não é uma idéia apetitosa, mas também,
para mim, os homens, em qualquer configuração... Bom, são tão
desajeitados, tão burros.
E burrice é uma coisa que me irrita.
PRIOR: Eu só gostaria que a senhora correspondesse mais ao seu perfil
demográfico. A vida já é bem confusa.
(Pequena pausa. Os dois se entreolham.)
PRIOR: A senhora conhece a Bíblia, a senhora conhece...
HANNAH: Razoavelmente, eu...
PRIOR: Os profetas da Bíblia, às vezes... recusam a sua visão?
HANNAH: Sim, existem precedentes nas Escrituras.
PRIOR: E o que Deus faz com eles? Quando eles se recusam?
HANNAH: Bom... joga eles no mar. Eles viram comida de baleia.

126
(Os dois riem. Ao rir, Prior recomeça a ter dificuldade para respirar.)
HANNAH: Fica deitado aí quietinho. Você vai ficar bom.
PRIOR: Não. Não vou não. Meus pulmões estão apertados. A febre
aumenta, e a gente começa a delirar. Daí vêm dias de delírio, uma dor
horrível, remédios; a gente vai escorregando, escorregando, e daí.
Eu... fodi com tudo, mesmo. Estou assustado. Não posso fazer isso de
novo.
HANNAH: Você não devia falar assim. Devia se apresentar melhor.
PRIOR: Olha isso aqui... esse horror.
(Ele lhe mostra uma lesão no braço, a mesma que mostrou para Louis
no primeiro ato do "Milênio".)
Está vendo? Isso não é humano. É por isso que eu fujo. E você, não
fugiria? Qualquer pessoa.
HANNAH: Isso é câncer. Nada mais. Nada mais humano que isso.
PRIOR: Ah meu Deus, eu quero terminar.
(Para o céu:) Eu quero terminar.
HANNAH: Um anjo é apenas uma coisa em que você acredita, com asas e
braços que podem te levar. Não é nada para se ter medo. Se o anjo te
decepcionar, você pode rejeitá-lo. Procure algo novo.
PRIOR: Eu...
(Ele se mexe, desconfortável, ajeita a calça no colo.)
PRIOR: Ai, ai, ai.
HANNAH: Que foi?
PRIOR: Escute.
(Trovão à distância.)

127
PRIOR: É Ela. Ah, meu Deus.
HANNAH: É a chuva de primavera, só isso.
PRIOR: Não. Ela está vindo me buscar. Ela disse que viria. Fica comigo.
HANNAH: Ah, não, eu...
PRIOR: Você me consola, é verdade, você me dá coragem.
HANNAH: Quando eu acordei hoje de manhã, não imaginei que o dia fosse
terminar assim.
Não estou fazendo falta em nenhum lugar.
PRIOR: Se eu dormir, você fica acordada?
Ela está chegando.
HANNAH: É mesmo?
PRIOR: (concorda de cabeça:) Eu tenho um barômetro infalível da
aproximação dela.
E está levantando.

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128
ATO IV, CENA 7

Aquela noite. Harper e Joe em casa, na cama. Um silêncio, daí:

HARPER: Quando nós fazemos sexo. Por que você fica de olhos fechados?
JOE: Não fico.
HARPER: Fica, sempre fica. Você pode dizer por quê, eu já sei a resposta.
JOE: Então porque eu tenho que...
HARPER: Você imagina coisas.
Imagina homens.
JOE: É.
HARPER: Imagina, direitinho como eu, mas eu só não imaginava quando
eu estava com você. Você, a única parte do mundo real que não me
dava alergia.
JOE: Por favor. Não.
HARPER: Mas eu apenas achava que não estava sonhando.
(Joe senta na cama abruptamente, vira de costas para ela. Daí começa a
vestir a calça.)
HARPER: Ah, ah. De volta no Brooklyn, de volta com o... (a palavra não
dita é "Joe.")
JOE: (Sem olhar para ela) Vou sair. Vou buscar umas coisas que eu
deixei...
HARPER: Olha para mim.

(Ele não olha. Continua se vestindo.)

129
HARPER: Olha para mim.
Olha para mim.
(alto:) AQUI! OLHA AQUI!...
JOE: (Olhando para ela) O quê?
HARPER: O que é que você vê?
JOE: O que é que eu...
HARPER: O que você vê?
JOE: Nada, eu...
(pequena pausa)
HARPER: Obrigada.
JOE: Pelo quê?
HARPER: Finalmente. A verdade.
JOE: (um tempo, daí:) Vou sair. Por aí. Só isso... Vou sair.
(Ele sai)
HARPER: Tchau.

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130
ATO IV, CENA 8

Mais tarde na mesma noite. Louis no seu apartamento. Está com uma
grossa pasta cheia de artigos de jornal xerocados. Está lendo. Joe entra. Os
dois se olham fixo.

LOUIS: "Mas o senhor não tem nenhuma decência? Afinal de contas? O


senhor não tem a menor noção de decência?"
Quem foi quem disse isso?
JOE: Quem disse...?
LOUIS: Quem foi que disse, "o senhor não tem nenhuma decência..."
JOE: Eu não... Eu voltei.
Por favor, me deixa entrar.
LOUIS: Você já está dentro.
JOE: Eu estou mal, Louis, esto muito mal.
E é tão bom ver você de novo.
LOUIS: Você não sabe mesmo quem disse, "O senhor não tem a menor
noção de decência?"
JOE: Escuta, qual é o problema? Por que você está...
LOUIS: OK, segunda pergunta: Você não tem nenhuma decência?
Advinhe o que eu fiquei fazendo nessa tarde chuvosa?
JOE: O quê?
LOUIS: Minha lição de casa. Pesquisa no Tribunal. E olha o que eu
consegui: As Decisões do Juiz Theodore Wilson, Tribunal de
Apelação, de 1981 a 1984. Os anos Reagan.
JOE: Você, ahn, você leu minhas decisões.

131
(pequena pausa)
LOUIS: As suas decisões. Li, sim.
O bibliotecário é gay, está super por dentro de tudo, ele me contou
que não foi o juiz Theodore Wilson que escreveu essas decisões,
assim como não foi Nixon quem escreveu "Seis Crises"...
JOE: Nem foi Kennedy quem escreveu "Perfis de Coragem".
LOUIS: Nem foi Reagan quem escreveu "Onde Está o Resto de Mim?"
Nem foi você e eu que escrevemos o Livro do Amor.
JOE: (tentando acalmar as coisas, chega perto de Louis:)
Escuta, eu não quero saber disso agora. Estou falando sério, eu
preciso que você pare de me atacar e...
(Louis empurra Joe com força.)
JOE: Ei!
LOUIS: Essas jóias foram escritas por um ghostwriter, um fantasma. Você:
o funcionário obediente, esforçado. Naturalmente, fiquei ansioso para
ler.
JOE: Estamos num país livre.
LOUIS: Adorei aquele veredicto que você deu contra as mulheres de Staten
Island que processaram uma fábrica de Nova Jersey, uma fábrica de
pasta de dentes que soltava uma fumaça cor de laranja que deixava as
crianças cegas...
JOE: Cegas não, só uma pequena irritação.
LOUIS: Três crianças tiveram de ser hospitalizadas. Joe. Chega a ser
brilhante, satânico, o jeito como você conclui que essas mulheres não
têm direito de apelar para a Lei de Proteção ao Ar e à Água, porque a

132
Lei de Proteção ao Ar e à Água não protege as pessoas, protege
apenas o ar e a água! Incrível!
(folheando a pasta:) Você não tem decência, você não tem...
JOE: Não dá para acreditar. Minhas opiniões estão sendo criticadas pelo
sujeito que troca o filtro de café das secretárias!
LOUIS: Mas a minha predileta mesmo é essa aqui:
Stephens versus os Estados Unidos: o cara que foi expulso do exército
porque era gay. Bem, pelo que eu entendi, esse Stephens declarou que
era gay quando se alistou no exército, mas quando estava pronto para
se aposentar, eles deram um chute na bunda. Roubaram a pensão da
bicha.
JOE: Isso mesmo. E ele processou. E ganhou. Conseguiu a pensão de volta.
Então o que que você está...
LOUIS: Os primeiros juízes devolveram a pensão dele, sim, porque
decretaram que os gays pertencem a uma minoria legítima, com
direito à proteção especial da Décima-Quarta Emenda da Constituição
Americana. Proteção igual perante a Lei.
Só posso imaginar como foi recebida a notícia desse momentâneo
lapso em favor da decência. Daí todos os juízes da Segunda Seção se
reuniram, e...
JOE: De novo demos razão ao sujeito.
LOUIS: Mas, mas, mas!
Por uma interdição legal. Precisei procurar essa palavra, eu sou apenas
o moço do café, não se pode esperar que eu saiba essas coisas.

133
Os juízes não mudaram a decisão, mudaram apenas o motivo da
decisão. Certo? Deram razão a ele por um motivo técnico: porque o
exército sabia que Stephens era gay quando ele se alistou. Só isso, foi
por isso que ele ganhou. Não porque seja contra a Constituição
discriminar os homossexuais. Porque os homossexuais, é o que eles
escreveram aqui, não têm direito à proteção igual perante a lei.
JOE: Você está sendo tão melodramático, aliás como de costume, você...
LOUIS: Na verdade, eles não escreveram isso. Foi você que escreveu. Eles
deram essa opinião para o juiz Wilson dar o veredicto, só que, como
eles sabem que o juiz é um vegetal, incapaz de escrever dó-ré-mi, isso
foi um voto de confiança no assessor dele, tão esforçadinho. É um
belo caso de perseguição legal contra os homossexuais, não é mesmo?
Eles confiaram em você. E você não decepcionou.
JOE: É a lei, não é a justiça. É o poder, não o mérito do exercício do poder,
não é uma expressão do ideal, é...
LOUIS: Então quem disse "O senhor não tem decência?"
JOE: Vou embora.
LOUIS: Seu imbecil, como é possível você não saber isso?
JOE: (superpondo-se:) Estou indo embora, seu... filho da puta, sai da
minha...
LOUIS: É simplesmente a maior frase da história americana.
JOE: Sai da minha frente, Louis.
LOUIS: "Mas o senhor não tem nenhuma decência, afinal de contas, o
senhor não tem a menor noção de decência?"

134
JOE: EU NÃO SEI QUEM FALOU! POR QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO
ISSO COMIGO?! EU TE AMO. EU TE AMO. POR QUE...

LOUIS: FOI JOSEPH WELCH, NO JULGAMENTO DE MCCARTHY


CONTRA O EXÉRCITO. Pergunta pro ROY. Ele vai te dizer. Ele
sabe. Ele estava lá, o Roy Cohn.
O que eu quero saber é o seguinte, você trepou com esse cara?
JOE: Se eu o quê?
LOUIS: Quero saber quantas vezes esse seu pau envolto em látex que eu
enfiava na minha boca já esteve previamente na boca do filho da puta
mais canalha, pervertido e degenerado que já cheirou cocaína lá no
Stúdio 54, porque lábios que beijaram aqueles lábios jamais beijarão
os meus. Nunca mais
JOE: Não se preocupe com isso, sai da...
(Joe tenta afastar Louis; Louis o empurra também, com força.)
LOUIS: Você comeu ele? Ele te pagou para você...
JOE: SAI DAÍ!
(Louis joga as folhas de xerox na cara de Joe. Elas voam para todo
lado. Joe empurra Louis, Louis agarra Joe.)
LOUIS: Você mentiu para mim, você me ama, pois fôda-se, seu bostinha...
(Joe dá um forte soco no estômago de Louis. Louis cai de joelhos. Daí
se esforça para levantar de novo, muito atingido.)
LOUIS: E ele está com AIDS! Por acaso você sabe disso? Dois fascistas
enrustidos, você e ele, um mais burro que o outro, vai ver que nenhum
dos dois nem sacou que o outro era...

135
JOE: Cala a boca.
(Joe dá outro soco em Louis.)
LOUIS: Fascista, hipócrita, mentiroso, sujo...
(Louis tenta dar um soco em Joe, e Joe começa a bater em Louis
repetidamente. Louis se agarra em Joe enquanto leva os socos.)
LOUIS: (caindo no chão) Ai meu Deus, ai...
(Louis cai no chão. Joe fica em pé em cima dele.)
JOE: Agora pára... Pára... Eu...
Por favor. Fala que você está bem, por favor. Por favor.
LOUIS: (sem se mexer) Isso... doeu.
JOE: Eu nunca fiz isso antes, nunca bati em ninguém, eu...
(Louis senta. Levou um corte na boca e outro no olho.)
Dá para você abrir o olho? Você está enxergando?
LOUIS: Estou enxergando sangue.
JOE: Deixa eu pegar uma toalha, deixa eu...
LOUIS: (empurrando Joe:) Eu podia mandar te prender... Seu verme.
E eles iam achar que eu te botei na cadeia porque você me bateu.
JOE: Eu nunca bati em ninguém, eu...
LOUIS: Mas ia ser por causa desses veredictos.
Foi como uma cena de sexo desses livrinhos vagabundos, heim?
JOE: Eu te machuquei. Desculpa, Louis, eu nunca bati em ninguém, eu...
LOUIS: Sei sei, olha, se manda, some daqui. Antes que eu perca a calma e
te dê umas porradas.
Só quero ficar aqui deitado, sangrando um pouco. Vai me fazer bem.

136
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137
ATO IV, CENA 9

Mais tarde na mesma noite. Roy numa cama de hospital seríssima, cheia de
monitores e tubos de soro. Ethel aparece.

ROY: (cantando baixinho:)


John Brown's body lies a moulderin' in the grave,
John Brown's body lies a moulderin' in the grave,
John Brown's body lies a moulderin' in the grave,
And his truth is marching on...

ETHEL: Olha só que sorriso. Qual é o seu motivo para sorrir, heim Roy?
ROY: Estou indo embora, Ethel. Finalmente, finalmente acabei com este
mundo, até que enfim. Todos os meus inimigos vão estar me
esperando na outra margem, de boca aberta que nem peixe, enquanto
o Todo-Poderoso abre o Mar da Morte e deixa o seu Royboy
atravessar o Jordão. Em terra firme, e ainda advogado.
ETHEL: Não conte os ovos dentro da galinha, Roy.
Acabou.
ROY: Acabou?
ETHEL: Eu fiz questão de vir te dar a notícia. O comitê decidiu contra
você.
ROY: Não, não, as reuniões só começaram há dois dias.
ETHEL: Eles já recomendaram a sua expulsão.

138
ROY: O Executivo ainda tem de julgar... essa recomendação, vai demorar
mais uma semana e até lá...
ETHEL: O Executivo já estava esperando, e eles já resolveram, assim, um,
dois, três. Eles aceitaram a recomendação do comitê.
ROY: Eu fui...
ETHEL: Um dos figurões lá do Executivo virou para o outro e disse, "Até
que enfim. Faz trinta e seis anos que eu odeio aquela bicha velha".
ROY: Eu fui... Eles...
ETHEL: Eles venceram, Roy. Você não é mais advogado.
ROY: Mas eu morri?
ETHEL: Não. Eles te derrotaram. Você perdeu.
(pausa)
Decidi vir até aqui para ver se eu conseguia te perdoar. Você, que eu
já odiei tanto, um ódio tão terrível, que eu levei esse meu ódio por
você até lá em cima no céu, e fiz dele uma estrelinha, afiada feito uma
agulha. É a estrela do Ódio de Ethel Rosemberg, e ela arde todos os
anos só por uma noite, dezenove de junho. Queima ácido verde.
Eu vim para perdoar, mas a única coisa que eu consigo sentir é prazer
na sua desgraça. Esperando ver você ter uma morte mais terrível do
que a minha. E está tendo, porque você está morrendo na merda, Roy,
derrotado. E você conseguiu me matar, mas nunca conseguiu me
derrotar. Você nunca venceu. E quando você morrer, as pessoas vão
dizer uma coisa só: seria melhor que ele nunca tivesse vivido.
(pausa)
ROY: Mãe?

139
Manhê? É...
(Ele senta na cama, olha para Ethel.) Mamãe?
ETHEL: (incerta, daí:) É a Ethel, Roy.
ROY: Mama? Estou me sentindo mal.
ETHEL: (olhando em volta) Com quem você está falando, Roy, isso...
ROY: Que bom te ver, Mãe, já faz anos.
Estou me sentindo tão mal. Canta para mim.
ETHEL: Eu não sou sua mãe, Roy.
ROY: Aqui tá tão frio, eu ainda tô acordado, é tarde, passei da hora.
Não fica brava, mãe, mas eu tou com medo... Um pouquinho.
Não fica brava. Canta uma música para mim. Por favor.
ETHEL: Não quero, Roy, eu não sou a sua...
ROY: Por favor, aqui me dá tanto medo. (Ele começa a chorar. Volta a
afundar na cama)
Ah meu Deus. Ah meu Deus, desculpa, desculpa...
ETHEL: (Canta bem baixinho:)
Shteit a bocher un er tracht, tracht un tracht, a gantze nacht:
Vemen tzu nemen, um nit farshemen
Vemen tsu nemen, um nit farshem.
Tum-ba-la, tum-ba-la tum-balalaika
Tum-ba-la, tum-ba-la tum-balalaika
Tum balalaika, shpil balalaika...
(pausa)
Roy...? Você...?
(Ela vai até a cama, olha para ele. Volta para a sua cadeira.)

140
Pronto, acabou.

(Belize entra, vai até a cama.)


BELIZE: Acorda, está na hora do...
Ah. Você está...
ROY: (Sentando-se com violência:)
Não, NÃO ESTOU!
Eu te enganei, Ethel, eu sabia quem você era, nem dá para acreditar
que você caiu nessa história de mamãe, eu só queria ver se eu
conseguia finalmente fazer a Ethel Rosemberg "cantar"! EU VENCI!
(Ele volta a cair na cama.)
Oh merda, ah que merda, eu...
(numa voz muito fraca:) Da próxima vez: eu não quero ser homem.
Quero ser um polvo. Lembrem disso, tá? Um puta dum... (Apertando
com o dedo um botão imaginário) Espera aí.

(Ele morre.)
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141
QUINTO ATO
HEAVEN, I'M IN HEAVEN
Fevereiro de 1986

ATO V, CENA 1

Muito tarde, na mesma noite. Quarto do hospital de Prior. Hannah dorme


numa cadeira. Prior está em pé em cima da cama. Há uma luz sobrenatural
sobre ele. Hannah se mexe, geme um pouco, acorda de repente, vê Prior.

PRIOR: Ela está chegando.


(As luzes vão escurecendo.)
HANNAH: Acende a luz, acende a luz...
(Som de uma trombeta prateada na escuridão e o rufar de tambores
distantes. Silêncio. Trovão. Então, sobre todas as paredes, aparecem
letras hebraicas em chamas. A cena fica iluminada pela luz das
letras. O anjo está lá, de repente. Está vestida de negro e parece
aterrorizante. Hannah dá um grito e enterra o rosto nas mãos. )
ANJO: Eu eu eu eu Voltei, Profeta,
(Trovão.)
E não de acordo com o Plano.
PRIOR: Leva de volta
(Grande trovão.)
O Livro, ou seja lá o que for que você deixou em mim, eu não vou ser
o receptáculo, eu rejeito.
(Trovão. Para Hannah:)
Me ajuda aqui. ME AJUDA!

142
HANNAH: (Tentando silenciar aquilo tudo:) Não, eu não, isso é um sonho,
é um sonho...
PRIOR: Creio que esta não é a questão nesse exato momento.
HANNAH: Não sei o que...
PRIOR: (sobrepondo-se) Bem, a idéia foi sua, rejeite a visão, foi isso que
você disse e...
HANNAH: (superpondo-se) Sim, mas eu achei que era uma coisa mais...
metafórica... Eu...
PRIOR: (superpondo-se) Você disse que havia um precedente nas
escrituras, você falou... O QUE QUE EU DEVO...
HANNAH: (sobrepondo-se) Você... você... luta com ela.
PRIOR: COMO É QUE É?
HANNAH: É um anjo, você... você agarra ela e diz... ai, como é que é,
espera, espera, ahn... AH! Você agarra ela e diz: "Não te deixarei ir
enquanto não me abençoares!" Daí você luta com ela até ela ceder.
PRIOR: VOCÊ, luta VOCÊ, eu não sei lutar, eu...
(O Anjo sobe e vai pousar bem na frente de Prior. Prior a agarra, ela
lança um terrível grito de águia, impossivelmente alto, de fazer
tremer. Prior e o Anjo lutam.)
PRIOR: Eu... eu não te deixarei ir enquanto não me abençoares. Leva seu
livro de volta. Anti-Migração, isso é tão fraco, não acredito que você
não conseguiu nada melhor que isso, me liberta, me solta as correntes,
me abençoa, ou seja lá o que for, mas eu quero ficar livre.
ANJO: (Deve ser um coro inteiro de vozes:) Eu eu eu eu sou a
PRINCIPALIDADE CONTINENTAL DA AMÉRICA, EU EU EU
EU

143
SOU A AVE DE RAPINA, EU NÃO SEREI FORÇADA, EU...
(Há um grande estrépito de música e um raio de luz branca se filtra
pelo nevoeiro azul. Dentro desta coluna de luz incrivelmente brilhante
há uma escada de uma luz ainda mais brilhante, mais pura, que se
lança para cima até o infinito. Na junção de cada degrau há uma
letra alef em chamas.)

ANJO: A entrada foi permitida. Devolva o Livro aos Céus.


PRIOR: (aterrorizado) Mas eu posso voltar? Eu não quero ir se eu não...
ANJO: (zangada:) Você conseguiu, Profeta. Você... escolhe.
Agora me solte. Rompi um tendão na coxa.
PRIOR: Grande coisa, minha perna está doendo há meses.

(Ele solta o Anjo. Ele hesita. Ele sobe. Instantaneamente o quarto


mergulha numa quase escuridão. O Anjo volta sua atenção para
Hannah.)

HANNAH: Que foi? Que foi? Você não tem nada a ver comigo, eu não te
chamei, você é um delírio dele, não meu, e agora ele foi embora e
você devia ir também, eu estou acordando... AGORA!

(Nada acontece. O Anjo abre as asas. O quarto se torna vermelho,


quente. O Anjo estende as mãos para Hannah. Hannah caminha até
ela, dividida entre o medo e um imenso e desconhecido desejo, e se
ajoelha. O Anjo lhe dá um beijo na testa e outro nos lábios, um longo
e quente beijo.)

ANJO: O Corpo é o Jardim da Alma.


(Hannah tem um enorme orgasmo enquanto o anjo sai voando,
acompanhada pelo glissando de um trompete pícolo barroco.)

144
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145
ATO V, CENA 2
Prior Walter está no Céu. Está vestido com um manto de profeta que lembra
Charlton Heston fazendo um Moisés drag em "Os Dez Mandamentos". Prior
está levando o Livro da Epístola Anti-Migratória. O céu se parece bastante
com San Francisco depois do Grande Terremoto de 1906. Tem uma
atmosfera deserta, abandonada, com entulho por todo o lado. Sentada num
caixote de madeira numa esquina está Harper, brincando com um gato.
HARPER: Ah! É você! Meu amigo imaginário.
PRIOR: O que você está fazendo aqui? Você morreu?
HARPER: Não, não morri, só tive uma relação sexual!
Por quê? Aonde nós estamos?
PRIOR: No céu.
HARPER: No Céu? Eu estou no Céu?
PRIOR: Esse gato! É a Rainha de Sabá!
HARPER: Ela estava andando por aí, perdida. Aqui todo mundo só fica
zanzando. Ou então sentam nos caixotes e ficam jogando cartas. Céu.
Grande coisa.
PRIOR: Como foi que a Rainha de Sabá morreu?
HARPER: Veneno de rato, atropelada por um caminhão, briga com um gato
viralata, câncer, outro caminhão, velhice, caiu no rio, doença do
coração e um último caminhão.
PRIOR: Quer dizer que é verdade? Os gatos têm mesmo nove vidas?
HARPER: Brincadeira. Não sei como ela morreu, não falo com gatos, não
estou tão louca assim. Só perturbada. Nós fizemos sexo, e daí ele...
teve de ir embora. E eu tomei um enorme copo d' água e dois
comprimidos de válium. Ou seis. Quem sabe eu tomei uma overdose,
que nem a Marilyn Monroe.

146
PRIOR: Ela não morreu de overdose, ela foi assassinada por Jimmy Hoffa e
John Kennedy.
HARPER: E você, morreu?
PRIOR: Não, estou aqui a negócios.
HARPER: Que negócios?
PRIOR: Preciso escolher. Posso voltar lá para o mundo. Se eu quiser.
HARPER: E você quer?
PRIOR: Não sei.
HARPER: Pois eu sei. O céu é deprimente, cheio de gente morta e tudo,
mas a vida.
Tudo é questão de agarrar, não é mesmo, tudo vem da oposição entre
o polegar e o indicador; a gente agarra ferozmente e depois não
consegue mais largar.
PRIOR: Enfrentar a perda. Com elegância. Essa é a chave, creio eu, mas é
impossível. A única coisa que a gente faz é perder, perder, perder.
HARPER: Mas não soltar deixa a gente deformado.
PRIOR: O mundo é tão duro. Fica aqui. Comigo.
HARPER: Não posso. Eu estou uma merda, mas nunca me senti mais viva.
Finalmente descobri o segredo de toda aquela energia dos mórmons. É
a devastação. É o que faz as pessoas migrarem, construírem coisas.
Quem faz tudo isso são as pessoas de coração partido, pessoas que
perderam o amor. Porque eu acho que Deus não ama o Seu povo mais
do que Joe me amava. O fio foi cortado, e lá se foram eles.
Agora tenho que ir embora. Estou pronta. Eu sei que lá dentro ele tem
um centro doce, vazio, mas ele não é de nada.

147
Espero que você volte. Olha só este lugar. Dá para imaginar passar a
eternidade aqui?
PRIOR: Dizem que parece com San Francisco.
HARPER: (olhando em volta:) Ugh.
PRIOR: Ah, mas a San Francisco verdadeira, na terra, é de uma beleza
inexplicável.
HARPER: Beleza inexplicável.
Taí uma coisa que eu gostaria de ver.

(Harper e a Rainha de Sabá desaparecem.)

PRIOR: Ah! Ela... ela levou o gato. Volta aqui, você levou a...
(pequena pausa)
Adeus, Rainha de Sabá. Adeus.

(O cenário se dissolve e é substituído por um interior. Uma grande


antecâmara do Salão das Ordens Superiores. Parece
extraordináriamente com a Prefeitura de San Francisco, com muito
gesso rachado. O anjo está ali, em pé.)

ANJO: Salve, Profeta.


Estávamos esperando por você.

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148
ATO V, CENA 3
Duas da madrugada. Quarto do hospital de Roy. O corpo de Roy está na
cama. Ethel está sentada numa cadeira. Belize entra, e chama num
sussurro:

BELIZE: Vem logo.


(Louis entra de casacão e óculos escuros.)
LOUIS: Ah meu Deus, meu Deus isso aqui é -- ah, é estranho demais, nem
dá pra dizer, é o Roy Cohn, isso é... de arrepiar, eu odeio hospitais,
eu...
BELIZE: Pára de choramingar! Vamos logo, eu tenho que chamar o
enfermeiro se o estado dele sofrer alguma alteração e... (Olha para
Roy) Já sofreu.
Tira esses óculos, você está ridículo.
(Louis tira os óculos. Está com os dois olhos roxos, um tem um corte.)
BELIZE: O que aconteceu com você?
(Belize toca o galo perto do olho de Louis.)
LOUIS: AI AI! (Tira a mão de Belize.) Expiação. Pelos meus pecados. O
que eu estou fazendo aqui?
BELIZE: Expiação pelos seus pecados. Não posso pegar sozinho, tenho que
avisar que ele morreu, e preencher todos os formulários, e não quero
que eles confisquem o remédio. Preciso de um burro de carga, por isso
chamei você.
LOUIS: Por que eu? Você me odeia.
BELIZE: Eu precisava de um judeu. Você foi o primeiro que me ocorreu.
LOUIS: Como assim, você precisava...

149
BELIZE: Nós vamos agradecer a ele. Pelo remédio.
LOUIS: Agradecer a ele?
BELIZE: Como se chama aquela oração judaica pelos mortos?
LOUIS: O Kádish?
BELIZE: Isso aí. Manda ver.
LOUIS: Ôpa, peraí.
BELIZE: Vai logo, vai logo, daqui a pouco vem a ronda e ele...
LOUIS: Eu não vou dizer o Kádish para ele porra nenhuma. Os remédios
tudo bem, claro, ótimo, mas nem fodendo que eu vou rezar por esse
aí. Meus pais, tão socialistas de esquerda, nunca iriam me perdoar,
eles já estão tão decepcionados, "Ele é maricas, tem um emprego
temporário num escritório, e agora, imagina, ele está dizendo o
Kádish pelo Roy Cohn." Eu não acredito que você rezaria por esse...
BELIZE: Louis, eu rezaria até por você.
Ele foi uma pessoa terrível. Morreu uma morte dura. Então talvez...
Uma rainha pode perdoar seu inimigo derrotado. Não é fácil, se for
fácil não conta, é a coisa mais difícil. O perdão. Que talvez seja o
ponto onde o amor e a justiça finalmente se encontram. Pelo menos, a
paz. Não é isso que pede o Kadish?
LOUIS: Ah, é tudo em hebraico, vai lá saber o que ele pede?

(Pequena pausa. Louis e Belize se entreolham, daí Louis olha firme


para Roy, pela primeira vez.)

150
LOUIS: (Olhando para Roy:) Tenho trinta e dois anos de idade e nunca
tinha estado num quarto com um cadáver. (Louis toca a testa de Roy.) É tão
pesado, e tão pequeno. Olha, Belize, acho que eu sei menos o Kádish do que
você, sou um judeu totalmente afastado do judaismo, eu nem fiz Bar Mitzva.
BELIZE: Faz um esforço, vai!
(Louis põe um lenço de papel na cabeça.)
LOUIS: Itgadál veitkadásh shmei rabó, shmei kidshó, ahn... Boré pri
aguêfen. Não, esse aí não é o Kádish, é o Kídush... Ahn, Shemá Israel
Adonai... Isso é besteira, Belize, eu não consigo...
ETHEL: (Ficando em pé, fala baixinho:)
Beolamó di-bará chirutêi veiamlích malchutêi...
LOUIS: Beolamó di-bará chirutêi veiamlích malchutêi...
ETHEL: Bechaiêchon uviomêichon uvechaiêi dchol beit-Israel...
LOUIS: Bechaiêchon uviomêichon uvechaiêi dchol beit-Israel...
ETHEL: Beagaló ubezmán kariv...
LOUIS: Ve imrú omein.
ETHEL: Ihié shemei rabó mevorach...
LOUIS E ETHEL: Leolám ulealmei almaiá. Itbarách veishtabách veitpoár
veitromám veitnassêi veit'hadar veitalei vehit'halel shmei dekudshó...
ETHEL: Berich hu leeilá leeilá min kol birchotá veshirotá...
LOUIS E ETHEL: Tushbechatá venechematá, damirán bealmá, veimrú
omein. Ihié shlamá rabá min shmaiá vechaim aleinu ve al kol Israel,
veimrú omein.
ETHEL: Ossé shalom bimromáv, hu iaassé shalom aleinu ve al kol Israel...
LOUIS: Ossé shalom bimromáv, hu iaassé shalom aleinu ve al kol Israel...

151
ETHEL: Veimrú omein.
LOUIS: Veimrú omein.
ETHEL: Seu filho da puta.
LOUIS: Seu filho da puta.
(Ethel desaparece.)
BELIZE: Obrigado, Louis, você se saiu muito bem.
LOUIS: Muito bem? Como assim, muito bem? Isso foi um puta dum
milagre.
--------------------------------------------------------------------------------------

152
ATO V, CENA 4
Duas da manhã. Joe entra no seu apartamento vazio no Brooklyn, trazendo
sua mala, vindo da casa de Louis.

JOE: Eu voltei. Harper? (Ele acende a luz.)


Harper?
(Roy entra vindo do quarto, vestido com um fabuloso robe de veludo
preto até o chão. Joe se assusta, aterrorizado, vira de costas, daí olha
de novo. Roy ainda está lá. Joe fica totamente apavorado.)
JOE: O que você está fazendo aqui?
ROY: Estou morto, Joe, não importa.
JOE: Não, não, você não está aqui, você...
Você mentiu para mim. Você falou que era câncer, você falou...
ROY: Você podia ler nos jornais. AIDS. Eu não queria te dar uma
impressão falsa.
Você está se sentindo mal porque bateu em alguém.
JOE: Eu quero que você...
ROY: Ele merecia.
JOE: Não, não merecia, ele...
ROY: Todo mundo merece. Todo mundo bem que podia levar uma boa
surra..
JOE: Eu machuquei ele. Eu não... tinha intenção, eu não queria, mas...
eu tirei sangue dele. E ele não quer me ver... nunca mais, eu não vou...
Louis.

153
(Joe começa a chorar)
Ah meu Deus, por favor, Roy, vai embora, você está me dando medo,
por favor, por favor, vai.
Harper.
ROY: Me mostre um pouquinho do que você aprendeu, baby Joe. Aí fora no
mundo.
(Roy dá um beijo de leve na boca de Joe.)
ROY: Puxa.
Tenho que me soltar desse cordão umbilical, mortal. Espero que eles
tenham alguma coisa para eu fazer lá do Outro Lado, eu sinto um
tédio...
Você vai descobrir, meu amigo, que aquilo que você ama vai te levar
a lugares onde você nunca sonhou em chegar.

(Roy desaparece. Harper entra. Joe e Harper se olham fixo.)

HARPER: Espero que você não tenha se preocupado.


JOE: Harper?
Onde... você estava...
HARPER: Viajando... pelo céu... nas asas do vento
JOE: O quê?
HARPER: Sabe que você devia fazer um exame de ouvido? Você vive
perguntando "o quê?"
Eu estava por aí. Com um amigo. No Paraíso.
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154
ATO V, CENA 5

No céu. Sala do Conselho das Principalidades Continentais. Enquanto se


prepara a cena, uma Voz ( a do Anjo) proclama:

VOZ: No salão das Principalidades Continentais; o Céu, uma Cidade Bem


Parecida com San Francisco. Presentes, Seis das Sete Infinitas
Entidades Angélicas Agregadas, que Seus Gloriosos Nomes Sejam
Louvados Para Todo o Sempre, Aleluia. O Conselho Permanente de
Emergência está reunido.

(As Principalidades Continentais estão sentadas em volta de uma


mesa coberta com uma pesada tapeçaria, com o desenho de um
antigo mapa mundi. A mesa está coberta de objetos antigos e
quebrados, aparelhos astronômicos, astrológicos, matemáticos e
náuticos de medição e cálculo; pilhas e pilhas de livros, pastas e
maços de jornais amarelados; tinteiros, tabletes de argila, penas de
ganso e canetas com haste de madeira. A grande câmara é
fracamente iluminada por velas e por uma única grande lâmpada
acima, cuja luz pulsa segundo o ritmo audível dos impulsos e
tremores de um grande gerador que não se vê. No centro da mesa há
um volumoso rádio, um modelo dos anos 40 em péssimas condições.
Está ligado, aceso, e os anjos estão reunidos em torno dele, atentos
aos seus estalos e fracos sinais.)
RÁDIO: (com sotaque britânico:) ...uma semana depois da explosão do
reator número 4, os incêndios continuam, e calcula-se que... (estática)
... lançando na atmosfera 50 milhões de curies de iodo radioativo, seis
milhões de curies de césio e estrôncio, erguendo-se numa nuvem de
mais de 7 quilômetros de altura, levada pelos ventos para uma área
que vai desde os Montes Urais até milhares de quilômetros além das
fronteiras soviéticas, e ... (estática)...

155
ANTÁRTICA: Quando?
OCEANIA: 26 de abril. Hoje faz 62 dias.
ASIÁTICA: Onde fica esse lugar? Esse (com grande aversão:) reator?
EUROPA: Tchernobil. Na Bielorrússia.
(A estática se intensifica.)
ASIÁTICA: Estamos perdendo o sinal.
(Os anjos fazem gestos místicos. O sinal volta.)
RÁDIO: ...caindo como neve tóxica no Rio Dnieper, que fornece água
potável para 35 milhões de russos. Detritos radioativos contaminando
mais de 300 mil hectares do solo arável por 30 anos no mínimo e...
(estática)... Agora se fala em milhares de trabalhadores que se
contaminaram com uma dose letal 50 vezes superior a ... (estática)
Rádio BBC transmitindo ao vivo de Tchernobil, no oitavo dia do...
(O sinal do rádio é engolido por um ruído branco e desaparece. Há
um longo silêncio.)
OCEANIA: Isso é monstruoso.
AFRICANII: Esta Época é o canto fúnebre de um Poeta,
Um poeta de negra imaginação, cujo único tema é a morte.
EUROPA: Centenas, milhares morrerão.
OCEANIA: Horrivelmente. Centenas de milhares.
AFRICANII: Milhões
ANTÁRTICA: Que morram. Incontáveis multidões. Terrível. E será pelas
suas próprias mãos. E eu eu eu eu me alegrarei.
AUSTRÁLIA: (numa reprimenda educada mas firme:) Isto nos é proibido.
Silêncio no céu.

156
(Alguns anjos tossem, outros fazem sinais místicos.)
ASIÁTICA: Esse rádio é terrível.
AUSTRÁLIA: A recepção está muito fraca.
AFRICANII: Uma Válvula queimou.
ASIÁTICA: É possível consertar?
AUSTRÁLIA: Está Além de Nós.
ASIÁTICA: Contudo, eu eu eu eu eu eu eu gostaria de saber. O que é uma
Válvula?
OCEANIA: É um simples diodo.
ASIÁTICA: Ahá!
AFRICANII: Lá dentro há um anódio e um catódio. Os eléctrons positivos
viajam desde o catódio através de campos de voltagens...
OCEANIA: Na verdade, o catódio tem carga negativa.
AFRICANII: Não, positiva, eu eu eu eu... (Ela olha dentro do rádio.)
EUROPA: Este aparelho nunca deveria ser trazido aqui. É um Pandemônio.
ANTÁRTICA: Eu eu eu concordo. Nos diodos nós vemos a mesma
Consciência Humana dividida que engendrou as múltiplas catástrofes
das quais Nós somos testemunhas impotentes...
AFRICANII: Você está certo, é negativa. Qualquer que seja a carga, é a
ausência de resistência no vácuo que...
ANTÁRTICA: (superpondo-se:) Eu eu eu não choro por eles, eu eu eu eu
choro pela afronta aos Espaços em Branco, choro pela Luz que Dança,
pelo irremediável desperdício de Combustíveis Fósseis, o Velho
Sangue do Globo derramado ao léu, ou queimado, ou atirado no Ar
Cristalino...

157
EUROPA: (superpondo-se em "desperdício":) Entre este aparelho aleijado e
a fumaça mefítica daquele Diábolus, aquele reator, não há nenhuma
centelha de diferença.
OCEANIA: Sim, mas sem ele, Ó Gloriosas Inteligências, como iríamos
manter a vigilância sobre a Maldade Humana? Com isto? (Ele
brande um astrolábio.)
AUSTRÁLIA: É um Enigma, nós não podemos resolver Enigmas, ah, se
Ele voltasse, eu eu eu eu não sei se nós erramos ao transportar estas
duvidosas invenções, mas... Se nós nos referirmos ao Seu Código de
Procedimentos, não me lembro em que página mas...

(Há um enorme trovão e um relâmpago. Prior e o Anjo da América


estão na câmara, em pé diante da mesa do conselho.
As Principalidades olham fixo para Prior.)

ANJO: Augustas Principalidades Adjuntas, Altíssimos Anjos: lamento


minha ausência nesta sessão, tive um contratempo.
(pausa)
AUSTRÁLIA: Ah, este é...?
ANJO: O Profeta. Sim.
AUSTRÁLIA: Ah.
(Os anjos fazem uma reverência.)
EUROPA: Estávamos trabalhando.
AFRICANII: Fazendo Progresso.
(Trovão.)
PRIOR: Eu... Eu quero devolver isso.

158
(Estende a mão com o livro. Ninguém o pega.)

AUSTRÁLIA: O que que ele tem de errado?


PRIOR: (um tempo, daí:) É que... é que... a gente não pode simplesmente
parar. Nós não somos pedras. Progresso, migração, movimento é...
modernidade. É animado, é o que fazem as coisas vivas. Nós
desejamos. Mesmo que tudo que nós desejamos seja a imobilidade,
mesmo sim é um desejo por alguma coisa. Mesmo que a gente vá
mais depressa do que deveria. Não podemos esperar. E esperar o
quê? Deus...
(Trovão.)
PRIOR: Deus...
(Trovão.)
Ele não vai voltar.
E mesmo que voltasse...
Se por acaso algum dia Ele voltasse, se Ele por acaso tivesse o
atrevimento de mostrar o Seu rosto, ou o Seu Alef, ou seja lá o que
for, no Jardim... se depois de toda essa destruição, depois de todos os
dias terríveis deste terrível século, Ele voltasse para ver... quanto
sofrimento foi causado pelo Seu abandono, se tudo que Ele tem a
oferecer é a morte, vocês deviam processar esse filho da mãe. Esta é
a minha única contribuição para toda esta Teologia. Processar o filho
da mãe por abandono. Como Ele se atreve.
(pausa)
ANJO: Assim falou o profeta.

159
PRIOR: (indo colocar o livro na mesa:) Então obrigado... por compartilhar
isso comigo, mas não quero.
OCEANIA: (para o Anjo da América) Ele quer viver.
PRIOR: Sim.
Tenho trinta anos de idade, pelo amor de Deus,
(trovão suave)
eu ainda não fiz nada, eu...
Quero ter saúde de novo. E essa praga, isso tem que parar. Para mim e
para todo o mundo, em todo lugar. Façam ela ir embora.
AUSTRÁLIA: Oh, nós já tentamos.
Sofremos com Vocês mas
Não sabemos. Nós
não sabemos como.
(Prior e Austrália se entreolham.)
EUROPA: Este é o Livro da Imobilidade, da suspensão, da cessação.
Beba uma vez das suas águas amargas, Profeta, e nunca mais terá
sede.
PRIOR: Eu... não posso.
(Prior põe o livro na Mesa. Tira seu manto de profeta, revelando por
baixo a camisola de hospital. Coloca o manto ao lado do livro.)
Eu ainda quero... minha bênção. Mesmo doente. Quero ficar vivo.
ANJO: Você apenas acha que quer.
Para você a vida é um hábito.
Você ainda não viu aquilo que virá:
Nós já vimos o que trará a lúgubre sucessão dos Últimos Dias.

160
Por que você, ou qualquer outro Ser, quer suportá-los?
O Céu não terá lágrimas para lamentar a quantidade de mortos,
O lento dissolver do Grande Plano Celestial,
A Obra da Eternidade se partindo em espirais,
O mundo, e sua delicada lógica das partículas,
Tudo em colapso. Tudo morto, para sempre,
Numa noite sem estrelas, sem lua, noite de ônix.
Estamos falhando, falhando,
A terra e os anjos.
Olha para o alto, olha para o alto,
É Tempo de Não Ser.
Ah, logo agora, na chegada do Apocalipse,
Quem vem pedir a bênção às Ordens Celestiais,
Com o Apocalipse já descendo?
Quem exige: Mais Vida?
Quando a Morte vem cegar os nossos olhos,
Protegendo o nervo delicado
Para que não veja mais horror do que se pode suportar.
Que qualquer Ser a quem a Fortuna sorri
Rasteje para a morte antes da última terrível aurora
Quando toda a vossa destruição voltar-se contra vós
Com o sol nascente, escorchante, implacável:
Quando a manhã ferida irompe em bolhas carmesim,
Levando embora toda forma de vida,
Uma onda, uma maré de Fogo de Mil Formas

161
Envolve todo o planeta, deixando a Terra nua como um osso.
(pausa)

PRIOR: Mas mesmo assim. Mesmo assim.


Me abençoe mesmo assim.
Quero mais vida. Não posso evitar. Quero mesmo.
Vivi numa época tão terrível, e há pessoas que passam por coisas
muito piores, mas... A gente vê elas vivendo de qualquer forma.
Quando já são mais espírito que corpo, mais feridas do que pele,
quando se queimam em agonia, quando as moscas botam ovos no
canto dos olhos dos seus filhos, elas vivem. A morte tem que levar a
vida embora. Não sei se isso não é apenas o animal. Não sei se não é
mais corajoso morrer. Mas eu reconheço o hábito. O vício de estar
vivo. Nós vivemos depois de toda esperança. Se eu conseguir
encontrar esperança em qualquer lugar, pronto, é o melhor que
consigo fazer. É tão insuficiente, tão pouco, mas... Me abençoe
mesmo assim. Quero mais vida.

(Ele começa a sair. Os anjos, sem que Prior veja, fazem um sinal
místico. Ele se vira de frente para eles.)

PRIOR: E se Ele voltar, vocês metem um processo em cima dele. Ele foi
embora, nos abandonou. Ele tem que pagar.

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162
ATO V, CENA 6
(cena opcional)
Nas ruas do Céu. O Rabino Isidor Chmelwitz e Sarah Ironson estão
sentados em caixotes de madeira, com outro caixote no meio dos dois. Estão
jogando cartas. Prior entra.

PRIOR: Desculpe, estou procurando a saída, vocês... Ah! O senhor é...


SARAH: (para o rabino:) Vus víl er? ( Oque ele quer?)
RABINO: Esses góim não sabem se comportar.
PRIOR: A senhora é Sarah Ironson?
(Ela olha para ele.)
PRIOR: Eu fui no seu enterro! A senhora parece direitinho o seu neto,
Louis. Eu conheço o Louis. Ele não queria que a senhora descobrisse,
mas a senhora sabia que ele é gay?
SARAH: (sem compreender) Vus? (O quê?)
RABINO: Seu neto, Louis?
SARAH: Ió? (Sim?)
RABINO: (em voz baixa:) Er iz a fêigale.
SARAH: A fêigale? Oi.
RABINO: (Para Sarah:) É sua vez.
PRIOR: Por que aqui todo mundo joga cartas?
RABINO: Por quê? (para Sarah:) Das gói vil víssen farvús mir shpilen
karten. (O gói quer saber por que nós jogamos cartas.)
Tá bom.
Jogo de cartas é estratégia, mas é principalmente sorte. No Céu, tudo
já é conhecido. Para as Grandes Perguntas, estão espalhadas como
folhas do jornal de ontem todas as respostas. Então de onde vêm os

163
prazeres no Paraíso? Da indeterminação! Porque, míster, com os
anjos, que seus nomes sejam adorados e glorificados, tudo é
desalento, fatalidade, renúncia. Mas ainda existe o Acaso, neste
baralho de cartas, ainda existe o Desconhecido, o Futuro.
Compreende? Não é uma coisa tão mecânica.
Você tem mais alguma pergunta?
PRIOR: Quero ir para casa.
RABINO: Ah, muito simples. Para fazer isso, um Cabalista cortaria o saco.
Penuel, Peniel, Iaakov Bet-Israel, matatí, matamí,
ooooo-OOO-oooooooomêin!
(A escada, a música e as luzes. Prior começa a descer.)
SARAH: Hei! Zógt Lúbele az di Bóbe zagt:
RABINO: Ela está dizendo para falar para esse Louis que a vovó mandou
dizer:
SARAH: Er iz shtendik guevêzen a bíssele farblonzer, shôin vi an ínguele.
Áber dis iz nisht káin entshúldigung.
RABINO: Desde de pequenininho ele sempre foi meio atrapalhado. Mas
isso não é desculpa.
SARAH: Ele devia ter vindo me visitar! Mas eu perdôo. Fala para ele: az
er darf ringuen mit der Rebôine shel Ôilem!
RABINO: Você tem que lutar com o Todo-Poderoso!
SARAH: Azói tut a Yid.
RABINO: Assim faz um judeu.
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164
ATO V, CENA 7

(Esta cena também é opcional, ou pode ser colocada depois da fala de


Harper no final da peça, antes do Epílogo.)

Enquanto Prior viaja para a terra, ele vê Roy, a uma grande distância, no
Céu, ou Inferno, ou Purgatório -- enfiado até a cintura num poço fumegante,
diante de um grande Alef em chamas, que banha Roy e o teatro inteiro numa
luz vermelha vulcânica, pulsante. Por baixo, um rugido profundo, como mil
fornalhas de aço funcionando ao mesmo tempo, lá nas profundezas.

ROY: Processo de paternidade? Abandono do lar? Direito de Família é


minha especialidade, sou um demônio total e absoluto em Direito de
Família. Me diga só quem é o juiz, e que tipo de jóias ele gosta? Se
for com juri, é mais difícil, com o juri precisa mais conversa, mas às
vezes vale a pena, pelo que a gente economiza em grana. Sim, eu te
representarei, Rei do Universo, sim, cantarei e arrancarei as vísceras,
ameaçarei e seduzirei, ganharei a causa por Ti e farei os queixosos,
esses traidores, desejarem nunca ter ouvido falar o nome de...

(Enorme trovão.)

Então está feito, fechamos negócio? Muito bem, tenho que começar
lhe dizendo que o Senhor não tem razão nenhuma, o Senhor é culpado
pra diabo, disso não há dúvida, o Senhor não tem o que apelar em sua
defesa, mas não se preocupe, querido, eu invento alguma coisa.

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165
ATO V, CENA 8
É de manhã, dia seguinte. Prior desce do céu e entra suavemente na cama
do hospital. Belize está dormindo numa cadeira.

PRIOR: (acordando) Ah.


Estou exausto.
BELIZE: (acordando) Você anda tendo um trabalhão.
PRIOR: Estou com uma sensação horrível.
BELIZE: Benvindo ao mundo.
PRIOR: Vindo daonde, eu... ah. Ah, eu...

(Emily entra)

EMILY: Bem, olha só. O alvorecer do homem.


BELIZE: Vênus saindo do mar.
PRIOR: Estou todo molhado.
EMILY: É a febre. Bom sinal, eles já vão entrar para trocar o seu...
PRIOR: (olhando em volta) E a Sra. Pitt? Será que ela...
BELIZE: Elle fait sa toilette. Elle est très formidable. Aonde você
encontrou essa mulher?
PRIOR: Nós encontramos um ao outro, ela...
Tive um sonho incrível. E você estava lá, e você também...

(Hannah entra)
PRIOR: E você.
HANNAH: Eu o quê?

166
PRIOR: E tinha partes terríveis, e partes maravilhosas, mas eu só ficava
dizendo que queria ir para casa. E eles me mandaram para casa.
HANNAH: (para Prior:) Do que você está falando?
PRIOR: (para Hannah:) Obrigado.
HANNAH: Eu só dormi na cadeira, mais nada.
PRIOR: (para Belize:) Ela salvou minha vida.
HANNAH: Nada disso, eu só dormi na cadeira. Ficar num hospital me
perturba, me lembra coisas.
Agora tenho que ir para casa. Tive um sonho estranhíssimo.

(Ouve-se uma batida na porta. A porta abre. Louis entra.)


LOUIS: Posso entrar?
(Breve pausa tensa; Prior olha para Louis e então para Belize.)
EMILY: Tenho que começar a ronda.
(Para Prior:) Você é dos que têm sorte. Eu queria te dar uma rosa.
E vê se descansa.
PRIOR: (para Lou:) O que que você...
(Ele vê os cortes e machucados de Louis.)
O que aconteceu com você?
LOUIS: Cicatrizes visíveis. Você falou...
PRIOR: Pôxa, Louis, você leva as coisas tão ao pé da letra!
HANNAH: Bom, eu vou-me embora.
PRIOR: Você volta.
HANNAH: (um tempo, daí:) Se eu puder. Tenho coisas para tratar.
PRIOR: Volta, por favor. Eu sempre dependi da bondade dos estranhos.

167
HANNAH: Bem, isso é uma grande bobagem de se fazer.
(Hannah Sai.)
LOUIS: Quem é ela?
PRIOR: (um tempo, daí:) Nem pergunta. É melhor você não saber.
BELIZE: Antes de eu partir. Um presentinho pra você, pela sua volta.
(Belize coloca sua pequena mochila no colo de Prior, Prior abre, está
cheia de vidros de pílulas.)
PRIOR: (apertando bem os olhos:) O quê? Não consigo ler o rótulo, eu...
Meus olhos. Não estão nada bem.
(Aperta ainda mais os olhos.) AZT?
Mas onde que você... Essas pílulas são quentíssimas. Estou chocado.
BELIZE: Uma contribuição para o seu plano de saúde. Veio de uma fada
má.
LOUIS: Essas pílulas, elas... elas te deixam melhor.
PRIOR: São veneno, te deixam anêmico.
Louis, esta é a minha vida, daqui para frente. Eu não estou ficando
"melhor".
(para Belize:) Não sei se estou disposto a fazer isso com a medula dos
meus ossos.
BELIZE: (Levando a mochila) Podemos conversar sobre isso amanhã. Vou
para casa embalar minhas mágoas. Tchau, baby, vê se dorme o dia
todo. Tchau, Louis, você com certeza sabe como limpar um quarto.
(Belize sai)
LOUIS: Prior. Quero voltar para você.
--------------------------------------------------------------------------------------

168
ATO V, CENA 9

Mesma manhã. Cena dividida:


· Lou e Prior no quarto de hospital de Prior, como antes;
· Harper e Joe no Brooklyn, como no final do Ato V, Cena 4.

HARPER: Quero seu cartão de crédito.


Só isso. Você pode ficar sabendo onde eu estou, acompanhando de
onde vêm as contas. Se é que você quer saber onde eu estou. Por mim
tanto faz.
JOE: Tenho algumas coisas para te dizer.
HARPER: Ah, a gente não devia conversar. Isso eu não quero mais.
O cartão de crédito.
JOE: Não sei o que vai acontecer comigo sem você. Só você. Só você me
ama. De todas as pessoas no mundo. Eu fiz coisas, eu me envergonho.
Mas eu mudei. Ainda não sei bem como, mas...
Por favor, por favor, não me deixa agora.
Harper.
Você é o meu bom coração.
(Ela olha para ele, vai até ele e lhe dá um tapa, forte.)
HARPER: (baixinho:) Doeu?
(Joe faz que sim com a cabeça.)
HARPER: Certo. Se lembre disso. Por favor.
Se eu conseguir um emprego, ou qualquer coisa, eu rasgo esse cartão
em pedacinhos. E as contas vão parar de vir. Cartão de crédito.

169
(Joe tira a carteira, lhe dá seu cartão.)
JOE: (voz pequena, sem olhar para ela) Telefona, ou então... Telefona.
Você tem que...
HARPER: Não. Acho que nunca mais. Pra você ver a que ponto as coisas
chegaram.
Às vezes, perder é melhor. Vai, Joe. Experimenta se perder. Some, se
manda. Vai fazer umas explorações.
(Harper enfia a mão no sofá. Retira seu estojinho de Valium. Sacode,
tira duas pílulas, vai até Joe, pega a mão dele e lhe coloca o Valium
na palma da mão.)
HARPER: Toma. Com um copo d'água bem grande.
(Ela sai.)
--------------------------------------------------------------------------------------
LOUIS: Quero voltar para você.
Você podia... responder, você podia dizer alguma coisa, me botar para
fora, ou dizer que tudo bem, ou então não tudo bem, mas que diabo...
(pequena pausa)
Eu falhei com você, mesmo. Mas... é difícil. Falhar no amor não é o
mesmo que não amar. Não tira a gente do sufoco, não significa que...
que a gente esteja livre para não amar.
PRIOR: Eu te amo, Louis.
LOUIS: Que bom. Eu te amo.
PRIOR: Te amo mesmo.
Mas você não pode voltar. Nunca.
Sinto muito. Mas não dá.
--------------------------------------------------------------------------------------

170
ATO V, CENA 10
Mesma noite. Louis e Prior continuam, da cena anterior. Joe está sentado
sozinho no apartamento do Brooklyn. Harper aparece. Está sentada junto à
janela a bordo de um avião Jumbo, voando.

HARPER: Vôo noturno para San Francisco. Atravessando a América,


acompanhando a lua. Meu Deus! Faz anos que eu não ando de avião!
Quando a gente alcança 35 mil pés de altura, chegamos à
estratopausa. O grande cinturão de ar tranqüilo. É o mais perto que eu
vou conseguir chegar da camada de ozônio.
Sonhei que nós estávamos lá. O avião saltou por cima da estratopausa,
essa camada tranqüila, e chegou à camada externa, de ozônio, que
estava toda rasgada, esfarrapada, com pedaços ralinhos que nem um
pano velho, e era assustador...
Mas eu vi uma coisa que só eu podia ver, devido à minha espantosa
capacidade de ver coisas desse tipo:
Havia... almas subindo, subindo da terra lá embaixo, almas dos
mortos, dos que pereceram, de fome, de guerra, de peste, e as almas
subiam flutuando, como pára-quedistas ao contrário, de pernas e
braços abertos, rodando, girando. E as almas desses que partiram se
davam as mãos, se enlaçavam os pés, e formavam uma teia, uma
grande teia de almas, e as almas eram moléculas de três átomos de
oxigênio, a substância do ozônio, e essa camada externa absorvia
todas elas, e ia se refazendo, se consertando.
Nada se perde para sempre. Neste mundo, há um doloroso progresso.
Saudosos do que deixamos atrás, e sonhando com o que vem pela
frente.
Pelo menos, eu acho que é assim.

FIM DA SEGUNDA PARTE

171
EPÍLOGO: BETHESDA
Fevereiro de 1990
Prior, Louis, Belize e Hannah sentados à beira da Fonte Bethesda no
Central Park. É um dia ensolarado, mas frio. Prior, coberto de agasalhos
pesados, está de óculos grossos, apoiado numa bengala. Hannah está
notavelmente diferente -- parece uma nova-iorquina, e está lendo o New
York Times. Louis e Belize estão discutindo. Acima de todos eles, o Anjo
Bethesda.

LOUIS: O Muro de Berlim caiu. Ceaucescu foi derrubado. Ele é que está
construindo o socialismo democrático. O novo internacionalismo.
Gorbachóv é o maior pensador político desde Lênin.
BELIZE: Acho que nós não sabemos de muita coisa. É cedo para canonizar
esse cara. Os russos têm ódio dele.
LOUIS: Sim, mas. Lembra de quatro anos atrás? A gente sentia que em todo
lugar tudo estava emperrado, enquanto na Rússia! Olha só!
Perestróika! O Degelo! É o fim da Guerra Fria! O mundo inteiro está
mudando! Da noite pro dia!
HANNAH: Eu só queria saber o que vai acontecer agora em lugares como a
Tchecoslováquia, Iugoslávia.
LOUIS: Iugoslávia?
PRIOR: (para o público:)
Vamos abaixar um pouquinho o volume, tá?
Eles vão ficar horas nisso. Não que a conversa deles não seja
importante, só que...
Esse aqui é o meu lugar predileto em Nova York. Não, no universo
inteiro. De tudo que eu já vi do universo.

172
Num dia como hoje. Um dia ensolarado de inverno, quente e frio ao
mesmo tempo. Tem uma névoa no céu, de modo que a luz do sol tem
presença física, tem caráter. No outono aquelas árvores do outro lado
do lago ficam amarelas, e o sol bate e o brilho é fantástico. Contra o
azul do céu, aquele azul triste do outono, elas são mais luz do que
árvores. São árvores antigas, transplantadas da Nova Inglaterra. Agora
estão nuas.
Estamos em janeiro de 1990. Estou vivendo com AIDS há cinco anos.
São seis meses a mais do que eu vivi com o Louis.
LOUIS: O que quer que aconteça, uma coisa a gente é obrigado a admirar
em Gorbachóv, nos russos: eles estão dando um passo para o
desconhecido. Não se pode ficar esperando uma teoria. A vida se
alastra, ela tem uma estranha...
HANNAH: Interconexão...
LOUIS: Isso.
BELIZE: Quem sabe é pelo tamanho do terreno.
LOUIS: É muita coisa para se abranger com uma teoria só.
BELIZE: O mundo é mais rápido que a mente.
LOUIS: Isso é que é a política. O mundo andando para a frente. E só na
política ocorre o milagre.
BELIZE: Mas isso é uma teoria.
HANNAH: Não se pode viver no mundo sem ter uma idéia do mundo, mas
viver é que faz as idéias. Não se pode esperar uma teoria, mas você
tem que ter uma teoria.
LOUIS: Como dizia minha avó, vai saber. Guei vêis.

173
PRIOR: (desligando de novo o som) Este anjo. É meu anjo predileto.
Gosto mais deles quando são estátuas. Celebram a morte, mas
sugerem um mundo sem morte. São feitos das coisas mais pesadas da
terra, pedra e ferro, pesam toneladas, mas têm asas, são motores e
instrumentos de vôo. Este aqui é o Anjo Bethesda. O Louis vai contar
para vocês a história dela.
LOUIS: Ah. Ãhn, bom, era um anjo que pousou no pátio do templo em
Jerusalém, na época do Segundo Templo, bem no meio de um dia de
trabalho ela desceu e tocou na terra só com a ponta do pé. E bem
nesse lugar uma fonte jorrou do chão. Quando os romanos destruíram
o Templo, a fonte Bethesda secou.
PRIOR: E Belize vai lhes contar como era a fonte, antes de ela parar de
jorrar.
BELIZE: Qualquer pessoa que estava sofrendo, de corpo ou de espírito,
qualquer pessoa, se caminhasse pelas águas da Fonte Bethesda, ficaria
curada, com a alma lavada de toda a dor.
PRIOR: Eles sabem de tudo isso porque eu contei para eles, muitas vezes.
Foi a Hannah que me contou. E ela também me falou o seguinte:
HANNAH: Quando o Milênio chegar...
PRIOR: Não o ano dois mil, mas o Milênio com M maiúsculo...
HANNAH: Certo. A Fonte Bethesda voltará a jorrar. E eu disse a ele que eu
pessoalmente vou levá-lo até lá para se banhar. Nós todos vamos nos
banhar e ficar limpos.
LOUIS: Não em Jerusalém literalmente, quer dizer, nós não queremos dar a
isso nenhuma implicação sionista, nós...

174
BELIZE: Muito bem, apoiado.
LOUIS: Mas por outro lado nós reconhecemos, sim, o direito do Estado de
Israel de existir.
BELIZE: Mas a Margem Ocidental deve ser a pátria dos palestinos, e as
Colinas de Golã deveriam...
LOUIS: Bom, não as duas coisas, a Margem Ocidental e as Colinas de
Golã, quer dizer, ninguém mais do que eu apóia os direitos dos
palestinos, só que...
BELIZE: (superpondo-se) Ah claro, Louis, nem os próprios palestinos são
tão dedicados quanto...
PRIOR: Estou quase acabando.
A fonte agora não está jorrando, no inverno eles desligam, os canos
congelam. Mas no verão é lindo de se ver. E eu quero estar por aqui
para ver. Pretendo estar. Espero estar.
Essa doença será o fim de muitos, mas não de todos nós, nada disso, e
os mortos serão lembrados e vão continuar lutando junto com os
vivos, e nós não vamos desaparecer. Não vamos mais morrer de
mortes secretas. O mundo só gira para a frente. Nós seremos cidadãos.
É chegada a hora .
Agora tchau.
Vocês são fabulosos, todos, e cada um de vocês.
E eu vos abençôo: Mais Vida.
A Grande Obra Vai Começar.
FIM

175
POSFÁCIO

With a Little Help from My Friends

Angels in América, Primeira Parte e Segunda Parte, demorou cinco anos para
ser escrita, e agora que o trabalho está quase completo tenho pensado muito
nas pessoas que deixaram sua marca nesses textos. A ficção de que o labor
artístico ocorre em isolamento, e que o talento individual é a única fonte da
realização artística, é uma ficção carregada de implicações políticas,
ideológicas e, pelo menos no meu caso, negada pelos fatos.
Embora o trabalho basico de Angels seja meu (defensivamente,
nervosamente, apresso-me a afirmar minha autoria), mais de duas dúzias de
pessoas contribuíram para essas peças com palavras, idéias e estruturas,
incluindo atores, diretores, público, parceiros de uma noite, meu ex-
namorado Mark Bronnenberg (a quem O Milênio se Aproxima é dedicado) e
muitos amigos. Duas pessoas em especial -- minha melhor amiga, Kimberly
T. Flynn (a quem Perestróika é dedicada), e o homem que encomendou
Angels e ajudou a dar-lhe forma, Oskar Eustis -- tiveram uma influência
profunda, decisiva. Se eu tivesse escrito essas peças sem a participação
direta e indireta dos meus colaboradores, o resultado seria totalmente
diferente e muito mais pobre -- na verdade, nunca chegaria a existir.
Estamos agora nas pré-estréias de Perestróika. É uma época de
montanha russa: há noites em que as pessoas amam a peça, noites em que
elas amam demais, noites em que não amam em absoluto; noites em que fico
cheio de júbilo e noites em que, nos intervalos, me agacho num degrau da
escada externa elaborando fantasias de desaparecer da face da terra. Não há
fase mais difícil para um dramaturgo, pelo menos não profissionalmente,
pelo menos não para mim. O investimento narcisista em cada momento do
palco provoca uma crise de super-identificação. Cada fala que não detona
com a força que ela possuía quando eu a ouvi pela primeira vez no teatro-
dentro-da-minha-cabeça me dá uma sensação de humilhação, de violação, é
motivo de raiva e desespero. Uma vida passada esperando pelas repetidas
experiências dessa agonia sem dignidade, cessa, durante as pré-estréias, de
ter a menor atração.
Pagamos um alto preço para preservar o mito do Indivíduo: não temos
um sistema de plano de saúde universal, não educamos nossos filhos, não
conseguimos passar leis mentalmente sãs para o controle de armamentos,

176
elegemos presidentes como Reagan, odiamos e tememos processos
inevitáveis como o envelhecimento e a morte, e assim por diante. Lá
embaixo, no final da lista dos males que o Individualismo abate sobre nossa
cultura, estão os dramaturgos em fase de pré-estréia sofrendo paroxismos de
mortificação e raiva, aprisionados de uma maneira míope, claustrofóbica, às
vezes catastrófica, no drama do seu próprio eu.
Na época moderna não basta escrever; você também tem de ser um
Escritor, e representar o seu papel de combatente numa narrativa, com moral
da história e tudo, em que você irá fracassar ou triunfar, estar dentro ou fora,
quente ou frio, girar na Roda da Fortuna (a medieval, não aquela do Vanna
White). Você se torna um personagem num meta-drama onde você foi
atirado pela sua própria dramatização. As recompensas podem ser
fantásticas, o castigo, desanimador; é um jogo de soma zero, e o que garante
o seu valor, o que dá a sua marca, é que você finge que está jogando
sozinho, fazendo um solo, preservando o mito de que você sozinho é a fonte
da sua criatividade. É um mito muito popular. E através dele o seu eu
alcança o status de uma raridade, de um bem de consumo (aliás uma
distinção dúbia), como se confere à obra que leva o seu nome.
O sucesso do Milênio tranformou minhas revisões de Perestróika num
tormento. Durante todo o verão levei comigo as sábias palavras de Gore
Vidal, escritas na primeira página da minha agenda: "O que importa, no
final, não é o julgamento que o mundo faz de você, mas sim o julgamento
que você mesmo faz do mundo." Esta sentença tinha o poder de um talismã,
embora eu soubesse que para mim, no fim das contas, o julgamento do
mundo tinha uma importância tremenda, e eu tremia ao ler a conclusão de
Gore Vidal: "Qualquer escritor que não tenha essa arrogância final não
sobreviverá por muito tempo na América". Há muitos tipos de arrogância
que não me faltam, mas essa arrogância final...
Não há motivo para fingir que Angels in América é obra de uma
pessoa que quer se apagar. O lado grandioso do meu caráter se equilibra
razoavelmente, espero, contra um superego supervigilante, que tem um
terrível gancho de direita. Cinco anos atrás, quando comecei a escrever essas
peças, decidi tentar fazer algo de ambição e envergadura, mesmo que isso
me deixasse vulnerável às acusações de ter chegado perto demais daquela
feia irmã gêmea da ambição, a pretensão. Na verdade, a pretensão e a
disposição de se arriscar a ser chamado de pretensioso são pecados
cometidos pela maioria dos escritores americanos que admiro, às vezes de
leve, às vezes a um ponto grave. Dada a sangrenta opulência da história

177
grandiosa e terrível deste país, dado o fato de ele ser tão novo e dada sua
grandiosa improbabilidade, seus artistas são fatalmente tentados aos gestos
largos e aos amplos abraços -- tendência que Alexis de Tocqueville já
deplorou como um traço artístico nacional há quase duzentos anos, em seu A
Democracia na América. Herman Melville, meu escritor americano
predileto, soa inchado, até histérico em certas ocasiões. É o som do
Indivíduo inflando como um balão, estendendo-se desmesuaradamente, um
som que atinge sua expressão mais gloriosa em Walt Whitman. Todos nós
somos filhos do "Song of Myself". E talvez neste país espaçoso, subpovoado
e despopulado, que até agora só foi marcado de leve, o Indivíduo finalmente
irá expandir-se até os seus limites instáveis, insuportavelmente inflados, e
explodir. (Mas aqui me arrisco à pretensão, e ainda por cima ao excesso de
otimismo -- outro traço americano.)
*
Qualquer pessoa interessada em explorar as alternativas ao
Individualismo e à economia política a que ele serve, o capitalismo, precisa
estar disposto a fazer duras perguntas sobre o ego, tanto no nível abstrato,
como exemplificado em si mesmo. Bertold Brecht, enquanto ainda estava
em Berlim na época pré-Weimar, enfrentando a possibilidade de participar
numa revolução socialista, escreveu uma série de notáveis pequenas peças,
as suas Lehrstucke, ou peças de aprendizado. O assunto principal dessas
peças era o doloroso desmantelamento, como uma exigência revolucionária,
do ego individual. A metáfora de Brecht para esse desmonte é a morte.
Brecht, que nunca tentou esconder as dimensões de sua titânica
personalidade, não sentimentalizava os problemas apresentados pelas
personalidades, nem a perda implícita no processo de soltar as riquezas, e a
riqueza, que acompanham a auto-criação bem sucedida.
Na juventude, Brecht roubou de outros autores tão descaradamente
que não é possível que ele pretendesse se safar assim sem mais; devia estar
chamando a atenção para um aspecto do ato de escrever: isso que os pós-
estruturalistas chamam de "intertextualidade", ou que os tribunais às vezes
chamam de plágio. Brecht ao mesmo tempo reivindicava e ridicularizava a
identidade que conquistara para si, a de "um grande escritor alemão",
levantando importantes perguntas sobre os meios da produção literária,
desafiando a imagem sacrossanta do artista solitário, e ao mesmo tempo
querendo abertamente, ardentemente, ser reconhecido como gênio. Que ele
era um gênio, é indiscutível. Para um homem profundamente engajado na

178
coletividade como ideal e como objetivo político possível de se conseguir,
sua singularidade ostensiva
era, no melhor dos casos, uma bênção cheia de problemas, e no pior, um
obstáculo à práxis, à fusão da teoria radical com a prática.
No canto direito inferior da página-título de muitas peças de Brecht
você encontrará, em letras minúsculas, uma lista de nomes sobre o título
"Colaboradores". Às vezes essas pessoas contribuíram pouco, às vezes
muito. Não se pode deixar de sentir que seus colaboradores, aqueles
pequeninos nomes, e seu considerável trabalho oculto pela tipografia
diminuta, fizeram um péssimo negócio. Muitos desses colaboradores
apagados -- Ruth Berlau, Elisabeth Hauptmann, Margarete Steffin -- eram
mulheres. O sexo a que se pertence é sempre um fator em jogo.
Os dramaturgos que aspiram a um teatro com análise política e
engajamento devem considerar a vida de Brecht em todos os seus detalhes
contraditórios. As contradições não apontam apenas para a hipocrisia ou a
má-fé. Elas também focalizam as complexidades mais difíceis e
empolgantes, os passos em falso, todo o potencial de radicalismo oferecido
pelo casamento da arte com a política.

*
Naquele dia da primavera passada em que estavam sendo entregues as
indicações para o Tony, deixei o glamuroso salão do Sardi pensando,
lúgubre, que ali estava mais uma fonte de ansiedade, mais um obstáculo a
voltar ao trabalho e reescrever Perestróika. No saguão do edifício Sardi fui
apresentado à produtora Elizabeth McCann, que me disse: "Eu estava
preocupada, querendo saber como você estava lidando com tudo isso, até
que li naquele artigo na revista New Yorker que você tem uma mulher
irlandesa na sua vida. Daí sosseguei; sei que você vai estar legal". Ela estava
se referindo a Kimberly T. Flynn; ano passado, um artigo na New Yorker
sobre Angels in América contava que certos traços da nossa experiência em
comum ao lidar com a prolongada crise de saúde de Kimberly, causada por
um sério acidente de táxi vários anos atrás, tiveram grande impacto nas
peças.
Conheci Kimberly em 1978, quando eu estudava na universidade de
Colúmbia e ela em Barnard; ela trabalhou na equipe da minha primeira
tentativa de direção, uma produção de Bartholomew's Fair, de Ben Johnson.
Nós dois participamos do movimento anti-apartheid em Colúmbia e de um

179
grupo de teatro político que lutou durante um ano até implodir. Durante esse
ano nós nos tornamos amigos íntimos.
Eu e Kimberly temos em comum a infância passada na Louisiana (ela
em New Orleans, eu em Lake Charles); temos tradições religiosas diferentes,
mas ambas igualmente complicadas e poderosas, e uma profunda
ambivalência em relação a essas tradições; uma política de esquerda
vitalizada pelas lutas de libertação (ela como feminista, eu como gay), pela
teoria socialista e a psicanálise; e a crença na eficácia da militância e na
possibilidade de progresso.
Desde o início, Kimberly foi minha professora. Mesmo tendo
estudado muito sozinha, ela já lera bem mais do que eu e me ajudou a fazer
sentido tanto de Freud como de Marx de uma maneira muito mais completa
do que eu já fora capaz. Ela me apresentou, através de suas próprias
explorações, aos escritores da Escola de Frankfurt com suas primeiras
tentativas de sintetizar psicanálise e marxismo; e a Walter Benjamin, que li
primeiro por insistência de Kimberly, e cuja importância, para mim, consiste
basicamente em ter introduzido nas disciplinas "científicas" de Marx e Freud
um misticismo imbuído de Cabala e uma espiritualidade sombria,
apocalíptica.
Tanto ao falar como ao escrever, Kimberly emprega uma rica
variedade de estratégias e efeitos retóricos, mesmo ao expressar profunda
emoção. Ela identifica isso como um traço irlandês, evidente em O'Neil,
Yeats, Beckett. Essa relação com a linguagem, mesclada às versões judaica
e gay das mesmas estratégias, é evidente nas minhas peças, no modo como
os meus personagens falam.
Mais pessimista do que eu, Kimberly tem muito menos medo de
encarar a feiúra do mundo. Ela tenta proteger-se muito menos que eu, e em
conseqüência, enxerga mais. Ela se sente mais segura, é o que ela diz,
sabendo do pior, enquanto a maioria das pessoas que eu conheço, inclusive
eu mesmo, prefere se poupar e se sente mais seguro dentro da redoma
protetora de um certo esquecimento. Ela tem uma inteligência ao mesmo
tempo analítica e intuitiva; é capaz de desmontar as coisas, descobrir os
conceitos fundamentais atrás de sua camuflagem; ao mesmo tempo ela tem
grande talento para a síntese, é capaz e dispota a usar sua mente, seus
conhecimentos, suas emoções, sua experiência de vida, e por fim dar um
salto imaginativo, enxergar as conexões mais profundas entre idéias e os
eventos históricos. Como todo professor talentoso, ela vê a vida como uma
aluna, incansavelmente ansiosa para aprender. Pelo seu exemplo aprendi a

180
confiar em que esses saltos podem ser dados; aprendi a admirá-los, na
literatura, na teoria, nas afirmações que as pessoas fazem nos jornais. E com
certeza foi, em parte, o seu exemplo que fez com que o trabalho de sintetizar
coisas díspares, aparentemente desconexas, se tornasse, para mim, o
processo de escrever uma peça.
Já há anos que Kimberly vem lutando com sua saúde, muito
prejudicada pelas conseqüências do acidente; e tenho lutado para ajudá-la, às
vezes conseguindo, às vezes falhando; e não é preciso ter mais que uma
familiaridade passageira com Angels para ver que minha vida e minhas
peças se encaixam. Sempre foi mais fácil falar de como eu usei nossas
vivências para escrever Angels (mesmo questionando às vezes a moralidade
do ato, e ao mesmo tempo considerando-o inevitável) do que reconhecer a
dívida intelectual. As pessoas parecem mais interessadas na história do
acidente e de suas conseqüências do que na genealogia intelectual do
trabalho, privilegiando a vida emocional sobre a vida intelectual no trabalho
de fazer uma peça, e considerando as duas, erroneamente, como separáveis.
Muito do que compreendo sobre os problemas de saúde vem do que
Kimberly suportou e triunfou, e de como ela articulou essas experiências.
Mas Angels é resultado da nossa amizade intelectual, não uma autobiografia
(coisa que a peça não é de modo algum). Ao longo dos anos, e em particular
na última série de revisões, Kimberly funcionou como dramaturg, e muitas
de suas sugestões foram incorporadas. Sua contribuição para Angels foi
como professora, editora, e conselheira, não musa.
*
Talvez outros dramaturgos não tenham relações semelhantes ou
dívidas semelhantes; ou talvez tenham. Numa maravilhosa coleção,
publicada há pouco, de ensaios sobre parcerias criativas, intitulada
Significant Others, os contribuidores examinam versões, tanto saudáveis
como profundamente não saudáveis, de interdependência artística em casais
como os Delaunay, Frida Kahlo e Diego Rivera, Dashiel Hammett e Lilian
Hellman, Jasper Johns e Robert Rauschenberg -- e ao fazer isso dão um
sério golpe naquilo que os editores chamam de "o mito da solidão."
Não temos palavras para designar as pessoas para quem temos
dívidas. Eu chamo Oskar Eustis de dramaturg, às vezes de colaborador; mas
colaborador implica em co-autoria, e ninguém sabe direito o que
"dramaturg" implica. Oskar tem uma espantosa sensibilidade para com o
processo de trabalho do escritor, e um olho para o desenvolvimento temático
nascido de um profundo conhecimento da literatura e da sua grande

181
inteligência. Oskar e eu compartilhamos um amor romântico e ambivalente
pela história americana e uma crença naquilo que o personagem Louis
Ironson chama de "a perspectiva de algum tipo de democracia radical
crescendo e se espalhando para a periferia ". Quando escrevi nos
agradecimentos de Perestróika que estas peças começaram em conversas
com Oskar, quis dizer tanto na realidade como na minha cabeça. Por um ano
antes de começar a escrever o Milênio, e durante anos no processo de
escrever Angels, minhas conversas com Oskar dariam volumes e volumes.
Juntos, em diálogo, nós criamos o coração otimista dessas peças. Cada passo
do desenvolvimento da obra foi passado por ele, filtrado através dele. Oskar
continua a ser para mim, intelectual e emocionalmente, aquilo que os
psicólogos desenvolvimentistas chamam de "base segura para uma ligação"
(expressão que aprendi com Kimberly).
George C. Wolfe tornou-se o meu matador de dragões nesta
primavera, quando fiquei intimidado pela perspectiva de retomar o trabalho
em Perestróika. Com a sua confiança contagiante, seu insight de escritor e
sua clareza narrativa, ele limpou o caminho para a peça encontrar a si
mesma, encontrar sua própria identidade, distinta da Primeira Parte -- como
acredito que ela finalmente, finalmente conseguiu. Muitos atores que
trabalharam nas peças contribuíram com idéias, falas, pensamentos sobre os
cortes. Stephen Spinella, Ellen McLaughlin e Joe Mantello fizeram
maravilhosas sugestões enquanto o texto estava sendo desenvolvido --
período que vai terminar daqui a uma semana. Kathleen Chalfant raramente
dá sugestões, mas desde o início aquela multidão de pessoas que ela
representa foi escrita para os som da sua voz e para a sua majestosa
presença. Declan Donellan, que dirigiu a peça em Londres, alimentou o
processo lá do seu lado do Atlântico, telefonando e mandando por fax
sugestões e idéias baseadas no seu inimitável senso do acontecimento
teatral.
A peça também deve muito a escritores que nunca conheci
pessoalmente. É irônico que Harold Bloom, na sua introdução a Musical
Variations on Jewish Thought, de Olivier Revault D'Allones, tenha me
oferecido uma tradução da palavra hebraica "bênção" -- "mais vida" -- que
depois se tornou um conceito-chave para o âmago de Perestróika. Harold
Bloom também é autor de A Angústia da Influência, sua edipalização da
história da literatura ocidental, que, quando li, anos atrás, me deixou tão
angustiado que meu analista sugeriu que eu deixasse o livro de lado.
Recentemente tive a oportunidade de conhecer o Professor Bloom, e,

182
sentindo-me culpado pela minha apropriação, fugi do encontro como um
nativo de alguma tribo do livro Totem e Tabu, de Freud, fugiria de um
encontro com o pai primal, aquele que vem brandindo o facão. (Espero
algum dia encontrar o Professor Bloom.)
*
O mundo uiva lá fora; é, neste momento um mundo muito terrível --
aquilo que o primeiro personagem que aparece em Perestróika chama de
"uma mistura nada evidente de fatos, dados, fenômenos, calamidades". Fui
abençoado com notáveis amigos, colegas, camaradas, colaboradores. Juntos
nós organizamos um mundo para nós mesmos, ou pelo menos organizamos
nossa compreensão desse mundo; nós o refletimos, o refratamos, o
criticamos, lamentamos sua selvageria; e ajudamos um ao outro a discernir,
em meio à escuridão que se adensa, caminhos de resistência, bolsões de paz,
e lugares de onde se pode, plausivelmente, detetar a esperança. Marx tinha
razão: a menor unidade humana são duas pessoas, não uma; uma é ficção.
Dessas redes de almas brotam as sociedades, o mundo social, a vida
humana. E também as peças de teatro.

Tony Kushner
15 de novembro de 1993

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