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GCOeS

EstaNoie
ueioOVISONS

Criado com Scanner Pro


Esta Noite
Improvisa-se

Criado com Scanner Pro


pirandello

Esta Noite
ImproviSa-se
2.4 Edição

EDITORALESTAMEA

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Criado com Scanner Pro


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FICHA TÉCNICA:
Título do original: QUESTA SERA SI RECITA A SOGGETTO
Tradução: J. A. Osório Mateus e Luís Miguel Cintra

Capa: Carlos António de Oliveira e Sousa

Colecção: Ficções N.° 25

1. edição: Editorial Estampa, 1974


Composição: Byblos-Fotocomposição, Lda.
Impressãoe Acabamento: Rolo & Filhos - Artes Grá cas, Lda.

Depósito legal n. 74972/94


ISBN 972-33-0945-9

Copyright: O Marta Abba, Milão


O Editorial Estampa, Lda.. Lisboa
para a língua portuguesa
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PREFÁCIO
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I
Esta Noite Improvisa-se chama-se em italiano Questa Sera
Si Recita a Soggetto. Esta Noite Improvisa-se é uma tradu-
ção imperfeita do título original. Recitare a soggetto era o
que faziam os actores da commedia dell'arte: tinham uma
história, um scenario que lhes servia de soggetto, de esque-
ma para arepresentação. Estesscenariipreenchiam-noseles
com o seu tradicional reportório de deixas, tiradas, réplicas,
momentos de mímica, canções, variantes e acções típicas.
Em Esta Noite Improvisa-se é uma recita a soggetto o que
o Doutor Hinkfuss quer fazer («qualquer coisa no estilo da
antiga commedia dell'arte»); o que o Doutor Hinkfuss,
encenador de um espectáculo, tem na mão é apenas uma
história («Neste rolinho de poucas páginas tenho tudo aqui-
lo de que necessito. Quase nada. Uma noveleta, ou pouco
mais, quase nada dialogada aqui e ali [..] E com ela o que
é que eu faço? Transformo-a em matéria da minha criação
cénica e sirvo-me dela como me sirvo do talento dos actores
escolhidos para representar os papéis segundo a interpreta-
ção que deles eu terei feito; como também me sirvo dos
cenógrafos, a quem mando pintar ou arquitectar a cena; e
dos maquinistas que a põem de pé e dos electricistas que a
iluminam ; todos eles segundo os ensinamentos, as sugestões,
as indicações que eu lhes terei dado.»

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«O assunto da novela é precisamente umn destes casos de
ciúme mais tremendo porque incurável: o cúme dopassada
E manifesta-se precisamente numa família em que devia
estar mais do que afastado, porque nO meio da clausura
quase hermética de todas as outras, é a única da cidade aue
está aberta aos forasteiros com uma hospitalidade excessiva.
praticada como de propósito, à margem da maledicência e
enfrentando o escândalo que as outras lhe levantam.
A família La Croce.
É composta, como vereis, pelo pai, o senhor Palmiro,
agente técnico de minas, o "Sampognetta, ou seja, o búzio',
que é como todos lhe chamam, porque, sempre distraído,
anda sempre a assobiar; pela mãe, a Dona Inácia, nascida
em Nápoles, conhecda na terra por a Generala; e por quatro
belas raparigas, gorduchas e sentimentais, vivaças e apai-
xOnadas:
Mommina,
Totina,
Dorina,
Néné.>)
O soggettoé a história da família La Croce. Uma história
com o seu ambiente próprio - uma cidade da Sicilia do
princípio do século¬, com os seus lugares próprios - o
cabaret, a sala de visitas, o teatro, a rua... – com a sua
sociedade - a pequena burguesia e as suas guras típicas
(o engenheiro, a dona da pensão, a cantora do cabaret, os
soldados, as meninas casadoiras, os pretendentes, o bêba-
do...), com as suas personagens psicologicamente de nidas.
Uma história que se divide ainda em pequenas histórias
relacionadas com cada personagem: a paixão do Senhor
Palmiro pela cantora do cabaret, a história da Dona Inácia,
a história da semiprostituição das lhas, a ascensão de Totina,
o drama de Mommina-Rico Verri, etc. Mp

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Esta história que o Doutor Hinkfuss extraiu da novela
LeonoraAddio do próprio Pirandello (processo e fonte qu
L
aliásPirandelloutiliza ao longo de todo o seu teatro), pouco
eoemelhaàs intrigas das peças que então se faziam, as
se assemelha do naturalismo ou as decadentes peças de
últinas peças
Annunzio- aspersonagens, o ambiente a sua progressão,
d'Ann
o entrecruzar das suas intrigaS, a caracterização breve que
decada uma se faz, muito mais se aproximam da novelística
de Pirandello e da novela em geral dos anos vinte.

«Qualquer coisa no estilo da antiga commedia dell'arte,


mas onde estão hoje os actores capazes de improvisar sobre
um esboço de acção, como no seu tempo o faziam os endi-
abrados comediantes da commedia, a quem, aliás, as histo-
rietas antigas, as máscaraS tradicionais, o repertório, dos
lazzi, tanto facilitavam o trabalho?»
Não são aqui os actores quem, comO na commedia dell'arte,
vai contar a história de Leonora Addio. Há aqui, como
também na novela há, alguém diferente dela que no-la con-
ta: um narrador. «A obra do escritor está aqui. E com ela
o que é que eu faço? Transformo-a emn matéria da minha
criação cénica e sirvo-me dela» - diz o Doutor Hinkfuss (o
narradoré ele). Como numa novela é ele quem nos apresen-
ta as personagens, quem as segue ou abandona, quem as
Justi ca, quem as contrapõe, quem as escolhe, e quem nisto
se revela como sendo o verdadeiro responsável. («0 único
responsável
soueu.») N
Se tradicionalmente o narrador da novela é um escritor
(memorialista, relator, diarista, epistológrafo.), no teatro
terá de ser quem fala. E em 1930, quem no teatro sobretudo
fala é o encenador. Era o tempo de Max Reinhardı, da

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a rmação da plenitude da encenação. Não espanta, portan.
to, que ao sair da novela para o teatro, o narrador tome a
aparência de um encenador.
Até aqui estaríamos naquilo a que se costuma chamar
teatro narrativo: umna narrativa mais do que uma situação
dramática, pedaços de uma história organizados perante um
público por um narrador. Mas se o Doutor Hinkfuss é o
encenadorlnarrador da história Leonora Addio, em Esta Noite
Improvisa-se ele é personagem de uma outra história, a de
uma companhia teatral por ele dirigida e de uma estreia de
um seu espectáculo. Ese Hinkfuss, narrador de uma história
(Leonora Addio), passa a personagem de teatro, também por
ISSOoutra personagemfaz nascer em cena -a do autor de
Leonora Addio, Pirandello por acaso. As relações de Hinkfuss
com a história, conmosoggetto que lhe é fornecido por um
autor, são o assuntotambémnda peça Esta Noite Improvisa-
-se, são uma outra cção, à qual o autor de Leonora Addio
passa também a pertencer. E de uma história contada por
um narrador passa-se à história de um narrador a quem
uma história foi contada.
Duas histórias que correm assim paralelas: o soggetto e
a recita. Ou uma só história: a da recita'. Ao narrar uma
estreia teatral como quem faz a reportagem integral de uma
noite num teatro, Pirandello é obrigado, por dedução, a
registar a outra história, o soggetto. Narra ele a história de
um narrador, encena ele (ou outro) a história de um encenador.
História que necessariamente se passa num teatro, local que
também é necessariamente aquele em que Pirandello «con-
ta» Esta Noite Improvisa-se e onde, portanto, adivinhamos,
sepassou ainda uma outra história, também com encenador,
actores e uma peça, ainda no mesmo local.
Oque faz com que tudo tenha de existir nestes vários níveis
e ao mesmo tempo. A vida é vida imaginada, vida represen-
tada, a vida da representaçãoe ainda a vida propriamente

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dita.HáMommina, Totina, Dorina, Néné, a Sicília imagina-
daspelo autor de Leonora Addio; há Mommina, Totina,
Dorina Néné representadas em cena num cenário queéa
representaçãoda Sicília; há Hinkfuss, o Primeiro Actor, a
Primeira Actriz, a Actriz Característica que, num arranjo
cénicoigual ao desarranjode umpalco de ensaios,represen-
tam as guras dramáticas baseadas nas personagens da
história imaginada pelo autor de Leonora Addio a que per-
tencemMommina, Totina, Dorina, Néné, e há ainda a sala de
1eatroem particular, os actores em particular e o público em
Darticular de cada noite emn que o espectáculo Esta Noite
Improvisa-se se realizar, que necessariamente se encontrarão
ainda pensando em Mommina, Totina, Dorina e Néné.
Todos estes diferentes níveis são englobados na reporta-
gem de uma estreia teatral que a nal de contas o texto é.
Decorrendo todos uns dos outros, a distinção entre elessSỐ
é possível separada deles, que cada um necessariamente
contém todos os outros. Esta mise-en-abîme que se quer
complexa, ainda mais se complexi ca quando de um nível se
passa a outro ngindo que se ignoram os graus intermédios.
Quando a vida imaginada corresponde à vida propriamente
dita, quando Mommina, Totina, Dorina e Néné e Dona Inácia
vão ao teatro, e os espectadores de Esta Noite Improvisa-se
passam a tê-los como colegas perante o mesmo pano de
boca, nge-se que não existem,passa-se por cima dos níveis
intermédios da vida representada e da vida da representa-
ção. Aplanou-se o abismo. Num momento do espectáculo,
Como este, os tempos e locais de todos os níveis de realidade
implicados coincidem na sua qparência. São caladas todas
as diferenças.
E em maior ou menor grau - e nuncasistematicamente
-0 mesmo se passa ao longo de todo o espectáculo. Ou,
para dizer melhor, das horas da noite em que o espectador
X for ao teatro X para ver Esta Noite Improvisa-se.aa

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Todas as diferenças se calam, ou tudo se confunde. Os
diferentes níveis de realidade não são aprofundados. Diz-se
que existem. São colados uns aos outros como pedaços de
diferentes materiais. Mas não há abismo que o siga, que da
mise-en-abîme só cou a sua aparência: uma vertigem.

III
Uma história conta-se em momentos: servem uns para
apresentar, outros para descrever, outros para mostrar ac-
Ções, outros para narrar o que cou entre duas acções. Uma
narração avança numa alternância de registos internos. Tem
os seus momentos plenos e aqueles que, ligando-os, expli-
cando-os, justi cando-os., os sustentam.
o Esta Noite Improvisa-se começa e acaba por, sobretudo,
contar uma história: a de Mommina, Dorina, Totina e Néné.
Mas entretanto vai contando uma outra que a ela se mistura
e se justapõe. A estas duas histórias ainda se junta a sua
vertiginosa mise-en-abîme.9
Que ca, entretanto,dessaprimeira história? Brevescenas,
quadros que nunca sustentam outros, que são uma antologia
dos «melhores» momentos de uma história. A história com-
pleta foram retirados todos os quadros, todas as cenas que,
não sendo momentos plenos, são os que lhes dão razão de
ser interna. Das personagens mostram-se só os sentimentos
(humilhação, vergonha, frustração...) e nunca as vemos em
momentos de acção desligados da sua emoção predominan-
te. As personagens não evoluem perante nós. Encontramo-
-las de vez em quando dominadas por um estado de espírito,
a ter a sua cena. Em cada uma destas cenas encontramos
uma personagem que avança sobre as outras e sobre a sua
própria história e lhes rouba a cena. A narrativa tirou-se
todo o narrativo.

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Que ca, entretanto, da segunda história? Exactamente
o mesmo. Não vemos os ensaios, não vemos o autor, não
vemosa preparação do espectáculo (verdadeiro assunto da
história), vemos apenas con itos, momentos dramáticos,
tambémneste caso distribuídos por cenas soltas, cada uma
delas com o seu protagonista.
Com hiatos, portanto, mas duas histórias que acabam por
ser contadas, mesmo sem que nos pareça haver elementos
arrativos. Mas Esta Noite Improvisa-se não são duas uni-
dades separadas e em confronto. Trata-se nalmente de uma
só narração. Só que a alternância de registos internos em
Esta Noite Improvisa-se não é uma alternãncia narratival
drama como encontramos no teatro narrativo - é a
alternância de dois níveis de realidade, de duas histórias. Só
momentos plenos; os momentos plenos de uma história co-
lam-se entre si graças aoS momentos mortos que são os
momentosde outra história, plenos nesse outro registo.u
nCada momento tem uma dupla função: narrativa em
relação ao outro nível de realidade, e dramática em relação
ao seu.
E assim se consegue que a peça Esta Noite Improvisa-se
acabe por ser só uma sucessão de momentos altamente
dramáticos. A simplicidade de cada história, a tipicidade de
todos os con itos, assim o permitem; e a inteligência da
construção paralela traz para o espectáculo uma permanen-
te e enérgica vitalidade.
E quiséssemos nós consderar que Esta Noite Improvisa-
-Se conta não duas, mas várias histórias encaixadas uma nas
outras, e o mesmo acabaríamos por veri car. Que as rela-
ções entre elas, a sua mise-en-abîme é fnalmente um pro-
cesso. Perde-se a favor da criação de um superespectáculo.
E assim que também a história acaba por servir as per-
SOnagens. Não são elas que evoluem, nem mesmo os seus
ntimentos. A progressāo do espectáculo é a da emoção em

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geral: da exaltação do prólogo até à nal frustração de
Mommina. Quem progride é a emoção: aumenta.
Também a consciência de um palco (de um nível de re-
alidade diferente da realidade dos bastidores e da sala) se
perde com a transformação de todo o teatro em local do
espectáculo. Ao iniciar o espectáculo com um clima de
agitação vanguardista (momento também pleno de umahis-
tória do Teatro), Pirandello instala o que a nal é o verda-
deiro registo do seu espectáculo: o calor, a emoção.
Aquilo que se julgou ser uma meditação teatral sobre a
ilusão, sobre o ser e o parecer, não era a nal mais do que
uma das variações da peça: também ao nível da loso a
Pirandello escolhe um tema fascinante. Um ingrediente es-
pectacular. Ingrediente que, se agui e nas outras duas peças
sobre o teatro (Seis Personagens à Procura de Autor e
Ciascuno a Suo Modo) parece dominante, também encontra-
mos em todas as outras peças. Das representações sociais
(A Volúpia da Honra) à representação conjugal (I1 Giuoco
Degli Parti), da esquizofrenia (Henrique IV) à meta sica
(Para Cada Um a Sua Verdade), da amnésia (Vestire gli
Inudi) à paternidade falsa (Comme Prima, Meglio di Prima)
Pirandello interessa-se pelos vários registos da duplicidade,
não tanto para teatralmente os aprofundar ou os de nir, mas
para deles retirar as suas possibilidades dramáticas. E as-
sim como a mise-en-abîme se desfaz em vertigem, também
a profundidade psicológica das personagens do seu teatro se
resolve em brilho ou em mistério. E as próprias pers
em oportunidades para um trabalho de actor.
De tanta coisa é só o teatro o que ca: a ilusão.

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IV

Como?
Se assistimos à desmontagem de uma ilusão? Se estão à
vista todos os elementos desse mesmo teatro da ilusão? Se
estão à mostra todos os elementos que fazem o teatro? Se a
realidade extrateatral é aqui a própria realidade teatral?
Porquea verdadeiraponteentre a cçãoea realidade
não é, no fundo, aquela que nos é indicada, mais uma vez
cou escondida atrás de um «céu de papel».
Vemos nós todos os elementos que fazem o teatro. Vemos
imitações, imagens que tanto mais nos iludem, quanto estão
próximas do local e das pessoas a que se referem.
A verdadeira ponte, que seria a nal a presença dos au-
tores do espectáculo (Pirandello e o encenador) não se viu,
foi substituída, pôs a máscara. Se no teatro naturalista por
onde Pirandello começou (Liolá) essa ponte era omitida, era
porque o espectáculo encontrava a sua razão numa realida-
de extrateatral. Aqui ela é escondida, levada para fora do
teatro pela presença de uma sua imagem: o tema do espec-
táculo.
O novelista que Pirandello era viu os processos do teatro
para com eles construir uma nova personagem de cção: o
autor-encenador, correspondência decadente e mais brilhante
e ambígua (ou seja: espectacular) do habitual narrador da
novela.
Fascinante descoberta técnica. Que, pelo seu lado espec-
tacular (até no que de mais espectaculare super cial a sua
loso a tem), veio marcar toda uma época do teatro con-
temporâneo. A partir de Pirandello começámos a ver actores
na plateia, cenas nos camarotes, o pano de boca a subir e
não subir perante as interpelações de um responsável, os
actores a serem apanhados de surpresa antes da represen-
tação, os actores a irromperem por detrás das suas másca-

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ras, as histórias a estilhaçarem-se numa meditação sobre a
ilusão. Fascinados pelo brilho losó co e espectacular do
teatro de Pirandello, Anouilh, Dieggo Fabbri, Marwell
Anderson, e em Portugal, João Pedro de Andrade, Pedro
Bom ou António Pedro instauraram uma moda que cedo se
esgota, ao fechar-se como se fechou nos seus con itos ima-
ginários. Ao imitar os processos cénicos ou as meditações
« losó cas» de Pirandello, o «pirandellismo» não viu as
suas verdadeiras razões espectaculares: e assim esqueceu a
vigorosa teatralidade do pensamento e da escrita de
Pirandello.
e Em Esta Noite Improvisa-se como no resto do seu teatro,
estamos num limite da estética aristotélica. O seu teatro é a
decadência (a crise da dúvida) dos pressupostos aristotélicos.
Nessa decadência se agita, nessa decadência se data. E éjá
impossível retirar-lhe a dúvida estética dos anos trinta que
para sempre xou, como nunm auto-retrato.
Pouco mais tarde, igualmente consciente do mesmno
impasse que não já o naturalismo, mas o expressionismo
expunha, Brecht defronta-se com a mesma crise da ilusão.
Só que aquilo que para um homem da novela como Pirandello
era sobretudo um tema novo de uma mesma actividade,
surge para Brecht, homem de teatro, como um verdadeiro
problema pro ssional. O que para Pirandello são efeitos e
ns é para Brecht uma técnica, os processos da criação
teatral. Pirandello quer fazer espectáculos com essa crise,
quer expô-la e chegar até ela; Brecht utiliza-a para por ela
chegar ao texto, ao espectáculo.
Um mesmo problema. Mas visto de dois lados: de fora,
da novela (Pirandello); de dentro, do teatro (Brecht). E
porque visto de dentro, surge aqui a noção da responsabi-
lidade. E se o teatro de Pirandello reconstitui a velha ilusão
teatral, e na máxima ilusão acaba, o de Brecht começa pela
sua destruição.

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V

EstaNoiteImprovisa-se foi publicada em Milão em 1930.


Estreou-seem Koenigsberg, no Neues Schauspielhaus em 25
deJaneiro de 1930, na tradução de Heinrich Khan. A estreia
italiana deu-se em Turim, no Teatro di Torino, sob a direc-
ção de Guido Salvini em 14 de Abril de 1930.
Só em 193S-1936, Marta Abba, a quem a peça é dedicada
e para quem foi escrita, pensando não só no seu talento de
actriz como no de cantora lírica, estreou a peça, no Teatro
Lírico de Milão, interpretando o papel de Mommina.
Para sempre cará ligada ao nome dos Pitoeff que em
1934 a apresentarampela primeira vez em França no Théâtre
del'Athénée. A mesmaencenação foi reposta pelo lho Sacha
Pitoeff em 1958.
Trata-se de uma das mais representadas peças de
Pirandello. Ficou famosa a encenação de Giorgio Strehler
no Piccolo de Milão, com cenogra a de Teo Oto. Em 1962,
Vittorio Gassman encenou-a no teatro Quirino de Roma. Em
1968, André Barsacq realizou em Paris no Théâtre de l'Atelier
uma nova encenação com cenários de René Alio e com
Loleh Bellon no papel de Mommina.
Em Portugal foi estreadaem 1964 no I Festival de Teatro
da Casa da Imprensa pela Companhia do Teatro de Atenas
dirigida por Dimitri Murat e com Voula Zoumboulaki em
Mommina, espectáculo que obteve o «grande prémio» do
Festival.

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ESTA NOITE:IMPROMISA-SE

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A MartaAbba, para que eu não morra

LP.

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Esta peça deve ser anunciada, tantO na imprensa conmo nos
cartazes, sem o nome do autor e da seguinte nmaneira:

TEATRO .....

ESTA NOITE
IMPROVISA-SE

sob a direcção do
Doutor Hinkfuss

com a amável colaboração


do público e das Senhoras

e dos Senhores

As reticências serão preenchidas com os nomes do teatro, e


das actrizes e actores principais. Não é muito, mas será o
su ciente.

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PERSONAGENStHANOlfA IO

.A AMJ

AL
o DOUTOR HINKFUSS
O PRIMEIRO ACTOR (RICO VERRI)
O ACTOR CENTRO (0 SENHOR PALMIRO,
alcunhado de SAMPOGNETTA)
A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
(DONA INÁCIA)
A PRIMEIRA ACTRIZ (MOMMINA)
TOTINA
DORINA
NÉNÉ
1. OFICIAL (POMÀRICI)
2.° OFICIAL (SARELLI)
3.° OFICIAL (NARDI)
4° OFICIAL (MANGINI)
5,° OFICIAL (POMETTI)
O SECRETÁRIO DO DOUTOR HINKFUSS
A CANTORA
1. CLIENTE DO CABARET
2° CLIENTE DO CABARET
3.° CLIENTE DO CABARET
4.° CLIENTE DO CABARET
CLIENTES DO CABARET
TRÊS RAPARIGAS
TRÊS BAILARINAS
QUATRO MENINOS DE CORO

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QUATRO FILHAS DE MARIA
UM VELHO vestido de São José
UMA RAPARIGA vestida de Nossa Senhora
UM PASTOR DE IDADE
UM PASTOR MAIS NOVO
HOMENS E MULHERES DO POVO
O PESSOAL DE CENA
O ESPECTADOR DA PLATEIA
O ESPECTADOR DA GALERIA
O ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS DA PLATEIA
UM ESPECTADOR DE IDADE
UMA
SENHORA
DEIDADE 11
O MARIDO DA SENHORA
UM JOVEM ESPECTADOR
UM AUTOR (AD
ESPECTADOR MNMO NHT Ahe
ESPECTADORA

(Esta lista não gura na edição italiana de Esta Noite Impro-


visa-se.) (1)117

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(Esta noite, a sala do teatro está cheia daqueles espec-
tadores especiais que têm por hábito assistir à estreia de
qualquer peça nova.
O anúncio nos jornais e nos cartazes de um espectáculo
insólito de improvisação a partir de um esboço de historieta
provocou grande curiosidade em toda a gente. Só os senho-
res críticos dramáticos dos jornais locais a não deixam
entrever, porque crêem amanhã poder vir facilmente a a r-
mar que se trata de um enorme pastiche («Meu Deus! qual-
quer coisa no estilo da antiga commedia dell'arte; mas onde
estão hoje os actores capazes de improvisar sobre umn esbo-
ço de acção, como no seu tempo o faziam os endiabrados
comediantes da commedia, a quem, aliás, as historietas
antigas, as máscaras tradicionais, o reportório de lazzi, tanto
facilitavam o trabalho?») Antes se notará neles uma certa
fúria, porque no cartaz não se menciona, e até se ignora
completamente, o nome do autor que, apesar de tudo, deve
ter fornecido aos intérpretes desta noite e ao seu encenador
um qualquer esboço de história: privados de qualquer indi-
cação que os possa remeter confortavelmente para uma
opinião já feita, receiam cair numa contradição qualquer.
Pontualmente, à hora prevista para o início do espec-
táculo, as luzes da sala apagam-se e a ribalta acende-se
Suavemente sobre o palco.)

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2 (Perante esta súbita penumbra, o público mostra-se, pri-


meiro, atento; depois, não ouvindo os toques do gongue que
habitualmente anunciam a abertura do pano de boca, come-
ça a agitar-se um pouco; e muito mais ainda quando lhe
começam a chegar, vindos do palco e através do pano, vozes
confusas e exaltadas, como se os actores estivessem a pro-
testar e alguém se lhes quisesse impor com repreensões para
pôr termo aos seus protestos.)

O UM ESPECTADOR DA PLATEIA
(Perguntando em voz muito alta, depois de ter olhado
à sua volta.)

O que é que se passa?

UM ESPECTADOR DA GALERIA

Parece que estão a discutir no palco. iA

UM ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS


DA PLATEIA

Talvez faça parte do espectáculo! o


Alguémri.) w

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UM ESPECTADOR DE IDADE
NUM CAMAROTE
(Como se estes ruídos fossem uma ofensa à sua dignidade
de espectador sério.)

Mas que escândalo é este? Quando foi que se viu uma


coisa assim?

UMA SENHORA DE IDADE


(Levantando-se de repente da sua cadeira das últimas las
da plateia com um ar de galinha assustada.)

Deus nos acuda! Não será um incêndio?

O MARIDO
(Retendo-a, rápido.)
É louca? Qual incêndio! Senta-te e está sossegada.n

UM JOVEM ESPECTADOR, SEU VIZINHO


ol(Com um melancólico sorriso de compaixão.)
Esses gracejos são escusados, minha senhora. Se fosse
fogo tinham baixado a cortina de segurança.

(Toca nalmente o gongue em cena.)

ALGUNS ESPECTADORES NA SALA


Ah!Finalmente!Atéqueen m!s ol sp

2 OUTROS
ESPECTADORES
Silêncio! Silêncio!

(Mas o pano não se abre. Em contrapartida, ouve-se nova-


mente o toque do gongue ao qual responde, do fundo da
sala, a voz colérica do Doutor Hinkfuss que acaba de abrir

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violentamente a porta de entrada na sala e que agora
avança furioso pela coxia central.)

O DOUTOR HINKFUSS

O gongue, porquê? Porquė? Quem deu ordem para tocar


o gongue?Quando chegar a altura, quem dá a ordem de tocar
o gongue sou eu!

(Estas palavras serão gritadas pelo Doutor Hinkfuss


enquanto atravessaa sala e sobe os degraus que permitem
que se suba da plateia para o palco. Volta-se agora para o
público dominando com admirável rapidez o descontrolo
dos seus nervos.
De fraque, com um no rolo de papel debaixo do braço,
o Doutor Hinkfuss tem o terrível e injustíssimo defeito de ser
pouco mais alto que uma braçada. Mas disso se vinga ar-
vorando uma indescritível cabeleira. Agita primeiro as suas
mãozinhas, que com certeza também a ele inspiram um certo
desprezo, de tão frágeis que são, e com dedinhos tão pálidos
e peludos como lagartas, e depois diz sem tomar muito o
peso às palavras.)

Lamento a momentânea desordem que o público pôde


perceber atrás do pano, antes da representação começar, e
disso peço desculpa, apesar de que, se a quisermos tomar
como prólogo involuntáio.

O ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS


(Interrompendo satisfeitíssimo.)

Ora aqui está! Eu não tinha dito?

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w0g0 s ODOUTOR
HINKFUSS
(Distante e frio.)

senhor tem alguma observação a fazer?

0ESPECTADORDAS PRIMEIRAS FILASO

Nenhuma. Estou só contente por ter adivinhado.

O DOUTOR HINKFUSS

E ter adivinhado o quê?

O ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS

Que aqueles barulhos faziam parte do espectáculo.

Z82 o DOUTORHINKFUSS

Ah, sim? Pensou? Julgou que eram propositados? E logo


hoje que me decidi a pôr as cartas na mesa! Pois desiluda-
-se, meu caro senhor. Eu disse «prólogo involuntário», mas
acrescento: talvez não completamente despropositado para o
espectáculo insólito a que ireis assistir. Peço-vos que não me
interrompam.
ib Aqui está, minhas senhoras e meus senhores.

(Tira o rolo de papel debaixo do braço.)

Neste rolinho de poucas páginas tenho tudo aquilo de que


necessito. Quase nada. Uma noveleta, ou pouco mais, quase
nada dialogada aqui e ali por um escritor que vos não é
desconhecido.

32

Criado com Scanner Pro


ALGUÉM NA SALA

O nome! O nome!

OUTRO, NA GALERIA

Quem €?ko

O DOUTOR HINKFUSS

Por favor, meussenhores, por favor. Não foi minha inten-


ção chamar o público para um comício. Estou disposto, sim,
a responder pelo que z; mas não posso permitir que
peçam contas durante a representação.

O ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS

Ainda
não
começou.o to 'at a
O DOUTOR HINKFUSS

Começou, sim senhor. E quem está menos autorizado a


não acreditar nisso é o próprio senhor, que tomou aqueles
ruídos de há pouco pelo início do espectáculo. A represen-
tação já começou, uma vez que me encontro diante de vós.

O ESPECTADOR DE IDADE NUM CAMAROTE


S31
(Congestionado.) O
Eu pensei que o senhor ia apresentar desculpas pelo es-
cândalo inaudito que aqueles rumores de há pouco represen-
tam. Além disso, tome conhecimento de que não vim aqui
para ouvir uma conferência sua.

33

Criado com Scanner Pro


fi
O DOUTOR HINKFUSS

Mas qual conferência? Como é que o senhor pode julgar


e a rmar tão veementemente que eu aqui esteja para o fazer
ouvir uma conferência?
(0 senhor de idade, fortemente indignado com tal apóstrofe.
levanta-se e sai do camarote resmungando.)

Pode perfeitamente sair. Ninguém o obriga a car. Meus


senhores e minhas senhoras, eu estou aqui unicamente para
vos preparar para o insólito de tudo aquilo que esta noite
presenciareis. Julgo merecer um pouco da vossa atenção.
Quereis saber quem éo autor da noveleta? Também posso
dizer.

ALGUNS ESPECTADORES NA SALA

Mas então diga! Porque não diz?


o
O DOUTOR HINKFUSS

Pois muito bem, vou dizer: Pirandello.

EXCLAMAÇÕES NA SALA

Uhhh...

O ESPECTADOR DA GALERIA
(Em voz alta, dominando as exclamações.)

n Equeméessesenhor? ou
(Riem-se muitos espectadores da plateia e dos camarotes.)

34

Criado com Scanner Pro


fi
fi
O DOUTOR HINKFUSS
(Rindo também ele um pouco.)

Sim, sempre ele, incorrigivelmente! Mas se já por duas


vezes pregou uma partida a dois colegas meus, mandando a
seis personagens perdidas à procura de autor, que provo-
caram uma verdadeira revolução no palcoe zeram perder
a cabeça a toda a gente, e doutra vez apresentando hipocri-
tamente uma peça dechave por causa da qual esse meu outro
colega viu o seu espectáculo pateado por todo o público em
fúria, desta vez não há perigo de que me faça o mesmo a
mim. Estejam tranquilos que esse perigo já eu o eliminei. O
seu nome não gura sequer nos cartazes e isso porque teria
sido injustiça da minha parte querer tormá-lo responsável,
ainda que em pequeno grau, pelo espectáculo desta noite.
o O únicoresponsávelsoueu. e a oi/
o Peguei numa novela sua, como podia ter pegado numa de
outro autor qualquer. Preferi uma novela sua porque de todos
os escritores dramáticos é talvez o único que mostrou enten-
der que a obra de um escritor acaba no momento exacto em
que acabou de escrever a última palavra. Responderá por esta
sua obra mas só perante o público dos leitores e dos críticos
literáios. Não pode nem deve responder perante o público
dos espectadores, nem aos senhores críticos dramáticos por-
que esses sỐ julgam aquilo que vêem sentados num teatro.

UO UiIt otsnt VOZES NA SALA

Ai, sim? Essaestá boa!m

O DOUTOR HINKFUSS

Exactamente, minhas senhoras e meus senhores. Porque


noteatroaobradoescritordeixade existir.yh p

35

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
O ESPECTADOR DA GALERIA

Então o que é que existe?

bobe AO DOUTOR
HINKFUSS
1 A criação cénica que eu possa ter construídoe que é
unicamente de minha autoria.
Volto a pedir ao público que me não interrompa. E pre-
vino-vos - uma vez que já vi alguns dos senhores críticos a
sorrir – que esta é a minha convicção. São evidentemente
senhores de não a respeitar e de continuar a atribuí-la injus-
tamente ao escritor que, no entanto, hão-de concordar, terá
o direito de sorrir perante os seus críticos tal como agora
sorriem desta minha convicção: isto evidentemnente, no caso
de as críticas virem a ser desfavoráveis; porque se acontecer
O contrário, o que será injusto, será atribuir ao escritor os
louros que me cabem a mim. ncl 00plsup ToHs 0TUO
-rA minhaconvicçãofunda-seemrazões sólidas.2 20
mA obra doescritorestáaqui. nig shrrdo s9upTS
Bl29104 ise K(Mostra o rolo depapel.) sb iodOs3Up
oo E com ela o que é que eu faço? Transformo-a em ma-
téria da minha criação cénica e sirVO-me dela como me
sirvo do talento dos actores escolhidos para representar os
papéis segundo a interpretaçāão que deles eu terei feito; como
também me sirvo dos cenógrafos, a quem mando pintar ou
arquitectar a cena; e dos maquinistas que a põem de pé e
dos electricistas que a iluminam; todos eles segundo os
ensinamentos, as sugestões, as indicações que eu hes terei
dado.
Noutro teatro, com outros actores e outros cenógrafos,
com outra disposição e outras luzes, concordarão comigo em
que a criação cénica será certamente diferente. Outra. E não

36

Criado com Scanner Pro


Ihes parece car demonstrado com isto que aquilo que no
teatro se julga nunca é a obra do escritor - que é única, tal
como está xada no texto , mas esta ou aquelacriação
cénica que a partir dela foi feita, e uma sempre diferente da
outra? Estas em número ilimitado enquanto a outra perma-
nece única? Para julgar um texto será preciso conhecê-lo; e
não é no teatro que o podereis fazer, através de uma inter-
pretação que dada por certos actores será uma, necessaria-
mente diferente da que será dada por outros. A única maneira
possível de a conhecer seria se a obra se pudesse representar
a si própria, não já com os actores mas com a presença das
suas próprias personagens que por milagre tomariam corpo
e voz. Nesse caso sim, a obra poderia ser directamente julgada
no teatro. Mas será possível um tal milagre? Até hoje nunca
ninguém o viu. O que realmente existe, minhas senhoras e
meus senhores, é o que com mais ou menos convicção, o
encenador de cada noite inventa como seu engenho e com
os seus actores. Só isso é possível.
Para retirar a tudoo que tenho vindo a dizer qualquer
aparência de paradoxo, convido-os a considerar que uma
obra de arte está xa para sempre numa forma imutável que
representa a libertaçāão do poeta do seu trabalho criativo: a
calma perfeita que conseguiu atingir depois de todas as
agitações deste trabalho.
Pois bem. p 32 onl
Parece-vos, minhas senhoras e meus senhores, que ainda
pode haver vida no que já não mexe? Naquilo que descansa
na sua perfeita quietude?
sIA
yo
vida deve obedecer a duasnecessidadesque, porque
são opostas, não Ihe permitem nem xar-se de nitivamente
nem continuar sempre a mover-se. Se a vida sempre se
movesse, nunca mais se xaria; e se, ao contrário, se xasse,
nunca mais se moveria. E a vida precisa de xar-se e de

37

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
fi
fi
fi
fi
O poeta ilude-se a si próprio quando julga ter encontrado
a libertação e ter conseguido a quietude xando para sempre
numa forma imutável a sua obra de arte. Acabou simples-
mente de viver esta sua obra. A libertação e a quietude não
se atingem sem que se tenha deixado de viver.
3E todos os que as encontraram e conseguiram atingir
estão nesta miserável ilusão de se crerem ainda vivos, quan-
do na verdade estão de tal modo mortos que já não sentem
o fedor do seu cadáver.
Se uma obra de arte sobrevive é só porque ainda a pode-
mos arrancar à xidez da sua forma, porque podemos aco-
Iher essa sua forma dentro de nós num movimento vital; e
a vida somos nós que lha damos então; diferente de tempo
para tempo, e variando de um para outro de nós; muitas vidas
e não uma só, como se pode inferir das contínuas discussões
que se sucedem e que nascem do facto de não se querer
acredita neste ponto: que não somos nós que lhes damos
esta vida; e que não é de facto possível que a vida que eu
Ihe dou seja igual à que Ihe dá outro. Peço que me descul-
pem, minhas senhoras e meus senhores, por esta longa ex-
cursão que me vi obrigado a fazer para chegar a este ponto,
àquilo a que queria chegar. a
Podem-me perguntar:
«Mas quem foi que Ihe disse que a arte devia ser vida?
É verdade que a vida tem de obedecer às duas necessidades
opostas que o senhor diz, mas por isso mesmo não é arte; tal
como a arte não é vida porque consegue precisamente liber-
tar-se dessas necessidades opostas, e consiste na eterna
imutabilidade da sua forma. E é por isso mesmo que a arte
éo reino da criação conseguida, enquanto que a vida está
como deve estar, numa in nitamente variada e constante
formação. Cada um de nós procura criar-se a si próprio e
criar a sua própria vida com as mesmas faculdades do espí-

38

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
rito com que o poeta faz a sua obra de arte. E são de facto
aqueles que mais são dotados destas faculdades e que melhor
as sabem utilizar que conseguem atingir um estádio mais
elevado e dar-lhe uma consistência mais durável. Mas não
será nunca uma verdadeira criação, antes de tudo o mais
porque se destina a deteriorar-se e a acabar connosco no
tempo; depois porque, ao tender para um m, nunca poderá
vir a ser livre; e nalmente porque, ao estar exposta a todos
acasos imprevistos e imprevisíveis, a todos os obstáculos
que os outros Ihe opõem, corre continuamente o risco de ser
contrariada, desviada, deformada. A arte vinga de certa
maneira a vida porque a sua criação é autêntica enquanto
liberta do tempo, dos acasos e dos obstáculos, e não tem
outro m a não ser ela própria.» Clas
Pois, minhas senhoras e meus senhores, eu respondo que
sim, que é verdade.
E até vos digo que cheguei a pensar muitas vezes com
sentimentos angustiosos, senão de pavor, na eternidade de
uma obra de arte como numa inacessível e divina solidão da
qual até o poeta é excluído no momento em que a acaba de
criar; ele, um mortal, excluído desta imortalidade.
STremenda é a estátua na imobilidade da sua atitude.
o Tremenda é esta eterna solidão das formas imutáveis,
longe do tempo.
Qualquerescultor - eu nãoo sou masposso imaginar -
depois de ter criado uma estátua, se verdadeiramente acredita
ter-lhe dado vida para sempre, deve desejar que ela, como
coisa viva, se possa soltar da sua xidez e se possa mover
e falar.i
Deixaria de ser estátua e tornar-se-ia em pessoa viva. Mas
Só com esta condição, minhas senhoras e meus senhores, se
pode traduzir em vida e voltar a mover-se aquilo que a arte
xou na inmobilidade de uma forma; só com a condição de

39

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
fi
esta foma receber de nós o movimento, uma vida variada.
diferente e momentânea: aquela que cada um de nós for
capaz de Ihe dar.
Hoje deixam-se voluntariamente as obras de arte na sua
divina solidão intemporal. Os espectadores, depois de um dia
de pesadas preocupações e de actividade intensa, angústias
e trabalhos de todo o género querem, à noite, divertir-se no
teatro.

O ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS

Francamente! Com Pirandello?


(Ri-se.)

O DOUTOR HINKFUSS ie
Não há perigo. Estamos salvos.

(Mostrando novamente o rolo de papel.)

Uma ninharia. Sou eu que farei tudo. Tudo foi feito por
mim.
E tenho a esperança de ter criado um espectáculo capaz
de vos agradar se os quadros e as cenas decorrerem com o
extremo cuidado com o qual os. preparei, tanto no seu con-
junto como em cada pormenor; e se os meus actores
corresponderem em tudo à con ança que neles depositei. De
resto permanecerei aqui no meio de vós, e estarei pronto a
intervir em caso de necessidade, seja para encaminhar de
novo a representação no caso de qualquer di culdade, seja
para superar qualquer defeito deste trabalho com esclareci-
mentos e explicações: o que (e disso me orgulho) tormará
mais agradável para vós a novidade de uma tentativa como
esta de improvisação sobre um tema. Dividi o espectáculo

40

Criado com Scanner Pro


fi
fi
em vários quadros. Breves pausas entre uns e outros. Fre-
quentemente um simples momento de escuridão de onde
imprevisivelmente nascerá um novo quadro, talvez até entre
vós: sim, na própria sala (deixei um camarote propositada-
mente livre que a seu tempo será ocupado pelos actores; e
então também vós participareis todos na acção.) Ser-vos-á
concedida uma pausa mais longa para que possais sair da
sala, mas não para descansarem, disso já vos previno, porque
vos preparei também uma surpresa lá fora, no foyer.
Uma última palavra, brevíssima, para que vos possais
orientar.
A acção decorre numa cidade do interior da Sicília, onde
(como sabeis) as paixões são fortes e crescem surdamente
antes de rebentar com violência, e de entre todas elas,
ferocíssimo, o ciúme. O assunto da novela é precisamente
um destes casos do ciúme mais tremendo porque incurável:
o ciúme do passado. E manifesta-se precisamente numa fa-
mília em que devia estar mais do que afastado, porque no
meio da clausura quase hermética de todas as outras, é a
única da cidade que está aberta aos forasteiros, com uma
hospitalidade excessiva, praticada como de propósito, à
margem da maledicência e enfrentando o escândalo que as
outras Ihe levantam.
A família La Croce
É composta, como vereis, pelo pai, o Senhor Palmiro,
agente técnico de minas, o «Sampognetta», ou seja «o bú-
zio», que é como todos Ihe chamam, porque, sempre dis-
traído, anda sempre a assobiar; pela mãæ, a Dona Inácia,
nascida em Nápoles, conhecida na terra por A Generala; e
por quatro belas raparigas, gorduchas e sentimentais, vivaças
e apaixonadas.
Mommina,
esis
Totina,

41

Criado com Scanner Pro


Dorina.G
2
9113
919E3: :2 t
E agoracom vossalicenca. T 3i0

(Bate palmas para chamar alguém; e afastando um pouco


um dos lados do pano grita para dentro do palco:)

O gongue!
(Ouve-se o gongue.)
Os senhores actores à cena, para a apresentação das suas
personagens.
shne .stlot sb (Abre o pano de boca.)

42

Criado com Scanner Pro


sb eiqplb.02i2000 os s cisslom-9b
1935oborl 19191

(Quase encostado à cortina de boca ve-se um pano leve,


1v9) Uverde, que se pode abrir ao meio.) EP3

O DOUTOR HINKFUSS

(Afastando ligeiramente uma das abas deste pano e chamando.)

Por favor, Senhor.

(Diz o nome do Prinmeiro Actor que fará o papel de Rico


Verri. Mas o Primeiro Actor, apesar de estar atrás do
pano, não quer aparecer. O Doutor Hink uss, repetirá então:)

Faça favor, faça favor, Senhor.., aproxime-se. Espero que


não ouse continuar a protestar também diante do público.

O PRIMEIRO ACTOR
il(Vestidoe maquilhado de Rico Veri, de farda de
o cial da aviação, saindo excitadíssimo de trás do pano.,)

cO Protesto sim senhor! E ainda protesto mais, uma vez que


o senhor, agora, na presença do público, tem a ousadia de me
chamar pelo meu nome.

43

Criado com Scanner Pro


fi
fi
O DOUTOR HINKFUSS

Por acaso o ofendi?

O PRIMEIRO ACTOR
Ofendeu, sim senhor, e sem se dar conta, continua a ofen.
der-me fazendo-me estar aqui, a discutir consigo, depois de
me ter forçado a aparecer.

O DOUTOR HINKFUSS

E quem Ihe disse que era para discutir? O senhor é que


está a discutir! Eu só Ihe peço que cumpra o seu dever.

O PRIMEIRO ACTOR

Eu estou pronto para quando for a minha entrada.

(Retira-se, afastando o pano com um gesto de cólera.)

e DOUTOR
O HINKFUSS
(lncomodado.)o s
Gostaria de vos apresentar...

o0 u l oPRIMEIRO
ACTOR
(Reaparecendo.)

Não, senhor! O senhor não me vai apresentar ao público


que já me conhece. Eu não sou um fantoche nas suas mãos.
A mim não me mostra o senhor, como mostrou aquele ca-
marote vazio ou como se mostrasse uma cadeira colocada
num local qualquer em vez de outro para algum dos seus
efeitos mágicos!

44

Criado com Scanner Pro


O DOUTOR HINKFUSS

(De dentes cerrados, fervendo.)

O senhor está a aproveitar-se da paciência que sou obri-


gado a ter nesta altura..

O PRIMEIRO ACTOR

(Interrompendo prontamente.)
Não, meu caro senhor, não se trata de uma questão de
paciência; peço-Ihe simplesmente que pense que neste
mento já não é o senhor...

(Diz o seu nome.)

que está aqui, vestido com esta farda; porque ao comprome-


ter-se consigo a improvisar esta noite, para que Ihe saiam as
palavras que devem nascer, digo bem, nascer da personagem
que interpreta, para que o seu jogo seja espontâneo e os seus
gestos naturais, o senhor... deve viver a personagem de Rico
Verri, ser Rico Verri: e é, já o é. Ainda que, como eu lhe
dizia ao princípio, eu não sabia se ele se poderá adaptar a
todas as combinações e surpresas e joguinhos de luzes e
sombras que o senhor preparou para divertir o público. Per-
cebeu?8n
(Nesta altura ouve-se o barulho seco de uma sonora bofe-
tada dada atrás do pano, e logo a seguir os protestos do
velho Actor Centro que fará o papel de «Sampognetta».)

O ACTOR CENTRO
Sszquz b
Ai! Que foi? Santo Deus. Faça o favor de nunca mais
voltar a dar-me bofetadas de verdade!

(0 protesto é acolhido com gargalhadas atrás do pano.)

45

Criado com Scanner Pro


O DOUTOR HINKFUSS

(Lançando um olhar para trás da cortina.)

Que diabo é isto? O que é que se está a passar?

O ACTOR CENTRO
(Saindo de trás da cortina com uma mão na cara, vestido
e maquilhado de «Sampognetta».)
sbosleup
OPassa-se que não autoriz0 a senhora..

(Diz o nome da Actriz Característica.)

sob o pretexto de que está a improvisar, a dar-me bofetadas


(ouviu?), que, entre outras coisas, me estragam a
maquilhagem.

(Mostra-lhe o lado da cara onde levou a bofetada.)

ll s AACTRIZ
CARACTERÍSTICA
s (Saindo de trás da cortina, vestida e maquilhada de
9 201! sD 20nig DonaInácia.)
ÓDeus do Céu, mas o senhor não se afasta! Não é difícil
furtar-se a elas! E um movimento instintivo e natural.

o 20o ACTOR
CENTRO
E como é que me hei-de furtar se a senhora mas dá assim
de surpresa?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

E sempre que as merecer., meu caro senhor!

46

Criado com Scanner Pro


O ACTOR CENTRO

Muito bem! Mas eu é que sei quando as mereço, minha


querida senhora!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

Então esteja sempre a esquivar-se porque para mim o


senhor está sempre a merecê-las. E se representamos de
improviso, eu não p0sso dar-Ihas sempre no momento xo.

O ACTOR CENTRO

Mas não é indispensável que mas dê de verdade!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA O Obl9rn

Então como quer que Ihas dė? Quer que eu as nja? Eu


não tenho um papel que se possa aprender de cor: tem que
vir daqui0sio
(Faz um gesto que sobe do estômago.)
osb
e não tenho tempo de pensar, sabe? O senhor enerva-mee
eudou-Ihas. 21iAAA SISATDA A

O DOUTOR HINKFUSS otDoal


Meus senhores, meus senhores, em frente do público!

DSup A ACTRIZ CARACTERÍSTICA


Já estamos na pele da personagem, senhor encenador.

O ACTOR CENTRO

t
(Voltando a levar a mão à cara.)

E de que maneira!k isqsq 022ot, ob

47

Criado com Scanner Pro


fi
fi
O DOUTOR HINKFUSS

sA senhoraachaquesim?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Desculpe, mas o senhor não queria fazer aapresentação?
Pois aqui estamos nós a apresentarmo-nos a nós próprios.
Una bofetada e o imbecil do meu marido já ca muito bem
apresentado.

(0 Actor Centro, começa a assobiar, metido no seu papelde


«Sampognetta.»)
obslr
Olhe, está a ouvir? Está a assobiar. Está completam
metido no seu papel.

1Ssini s O DOUTOR HINKFUSS

Mas parece-Ihe possível fazer as apresentações em frente


desta cortina, fora de qualquer quadro e sem qualquer or-
dem?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

Isso não tem importância! Isso não tem importância!

lovildugoh oDOUTOR
HINKFUSS
Não tem importância?0 que é que a senhora quer que o
público entenda?

O PRIMEIRO ACTOR
Claro que entende! Entende muito melhor assim! Deixe
isso por nossa conta. Todos estamos completamente dentro
do nossO papel.

48

Criado com Scanner Pro


fi
A ACTRIZCARACTERÍSTICAniz zatrsy
É muito mais fácil e natural acreditar para quem vê, sem
o incómodo e as rédeas de um espaço circunscrito e de uma
acção preparada de antemão. Nós faremos tudo, e até fare-
mos tudo o que o senhor preparou! Mas entretanto, um
momento, com licença, pemite que apresente também as
minhas lhas:

(Afasta a cortina para as chamar.)

Venham cá, meninas! Venham cá, venham cá, meninas!


Venham cá!

(Agarra a primeira pelo braço e puxa-a para a frente.)


Mommina. SIA1 DA A

(Depois a segunda.)

42 Totina.
Sjo
Dorina.
S (Depois a terceira.)n oa
tA
(Depois a quarta.)
Néné.

(Todas, excepto a primeira, esboçam uma reverência


quando entram.)
io Quatro lindas raparigas que, graças a Deus, eram todas
dignas de virem a ser rainhas! Quem diria que nasceram de
homem como aquele que para ali está?

(0 Senhor Palmiro, vendo-se apontado, volta imediata-


2AN mente a cara e começa a assobiar.)

Assobia, assobia! Ah, meu lindo, um bocado de grisu,


sim, sim, assim como eu tomo um bocadinho de rapé, um
bocado de grisu é que lá na vinha te deviam en ar nas

49

Criado com Scanner Pro


fi
fi
ventas: sim, sim, meu lindo, que te deixasse ali estendido e
te tirasse para sempre da frente dos meus olhos!

TOTINA
(Acorrendo com Dorina para a conter.)
Por amor de Deus, mamā, não recomece!

DORINA 9
(Ao mesmo temp0.)

Deixe-o em paz, mamā, deixe-o em paz!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
E ele assobia, está a assobiar.

(Depois, saindo do papel e dirigindo-se ao Doutor Hinkfuss.)


A mim parece-me que está tudo a corer sobre manteiga,
não acha?

O DOUTOR HINKFUSS
(Com um laivo de malícia, encontrando imediatamente
uma maneira de salvar o seu prestígio.)

Como o público certanente terá compreendido, esta rebe-


lião dos actores perante as minhas ordens é ngida, foi
combinada de antemão entre mim e eles para tornar mais
espontânea e viva a representação. o
(Com esta saida traidora, os actores surgem como vários
fantoches tomados de estupefacção. O Doutor Hinkfuss
imediatamente se dá conta disso, volta-se para olhar para
eles e mostra-os ao público:)
Até este espanto é ngido.
pS
50

Criado com Scanner Pro


fi
fi
AOPRIMEIRO
ACTOR

in03i (Agitando-se de indignação.)

Basta de palhaçadas! Peço ao público que acredite que os


meus protestos não têm ngimento algum.
(Afasta a cortina, como anteriormente, e sai furioso.)

DOUTOR HINKFUSS
(Rápido, em con dência para o público.)
Também esta furiazinha é ngimento. Tratando-se de um
actor como o senhor...

(Diz o nome.)
um dos melhores da nossa cena, era necessário que eu desse
alguma satisfação ao seu amor-próprio. Mas os senhores
Compreenderão que tudo o que se passa em cima deste palco
não pode deixar de ser ngido.
91257 9U0
(Voltando-se para a Actriz Caracteristica.)
Continue, minha senhora, continue se faz favor. Está tudo
a correr muito bem. Aliás, menos não se poderia esperar da
senhora.

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
(Desconcertada, quase assustada com tanto imprevisto e
já não sabendo o que fazer.)
Ah... está bem.. quer que eu continue? Mas... desculpe,
as o que é que eu hei-de fazer?

O DOUTOR HINKFUSS

Santo Deus! Continue a apresentação, minha senhora, con-


forme estava combinado, e que estava a correr tão bem.

51

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Não, não. Escute, senhor encenador, não me fale em com-
binações se não quer que eu que sem pronunciar uma só

palavra
queseja.s tittetnn t o 0.
(95 oDOUTOR
HINKFUSS
(Novamente para o público, em con dência.)

Magní ca!isg
oost ot bi)
u sb s-G)A ACTRIZCARACTERÍSTICA
Mas desculpe, o senhor queria de verdade dar a entender
que teria havido alguma combinação para esta nossa entra-

o b O DOUTORHINKFUSS
bignt
Pergunte ao público se não tem a impressão de que neste
momento nós não estamos nada a improvisar?

(0 espectador das primeiras las, os quatro espectadores


da plateia e o da galeria começam a dar palmas; mas
pararão imediatamente se o verdadeiro público não lhes
seguir o exemplo por contágio.)
ITDZ
oA ACTRIZ
CARACTERÍSTICA
Ah, está bem, isso sim. Estamos mesmo a improvisa.
Fizemos a entrada em cena e agora estamos a improvisar,
tantoeucomoosenhor. *xsh-isrt is

O DOUTOR HINKFUSS

Por conseguinte, continue, continue. Vá chamar os outros


actoresparaosapresentar! p o.obeniorooBYEI

52

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

Com certeza!

(Chamando para trás da cortina:)


Eh! Meninos! Venham todos!

O DOUTOR HINKFUSS

Voltando a entrar no seu papel, bem entendido!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

Com certeza, já estou. Venham cá, venham cá, meus


amigos!

(Entram ruidosamente cinco jovens o ciais da aviação


fardados. Primeiro saúdam enfaticamente Dona Inácia.)

-Minha senhora, minha querida senhora!


-Viva a nossa grande Generala!
iA
-Ea nossaSantaProtectora!
(E outras exclamações semelhantes. Depois
mentam as quatro raparigas que respondem
alegremente. Um deles vai até cumprimentar o Senhor
Palmiro. Dona Inácia tenta pôr termo a esta catadupa de
cumprimentos verdadeiramente improvisados.)

AVISOC
A ACTRIZ CARACTERÍSTICA es
Devagar, devagar, meus amigos, não façam confusão!
Esperem aí, esperem. Você, Pomàrici, o meu sonho para a
Totina, aqui. Assim, dê-Ihe o braço. Muito bem. E você,
Sarelli, aqui com a Dorina! TS oboas sb 2onlz1

53

Criado com Scanner Pro


fi
AD oTERCEIROOFICIAL
Isso não! Nada de brincadeiras,

(Agarrando-a pelo braço.)

a Dorina é para mim!

SARELLI O
(Puxando-a pelo outro braço.)
obi
Deixa-a car para mim, já que foi a mim que a mãe a deu!
A
O TERCEIRO OFICIAL
Não, senhor! Esta menina e eu estamos de acordo.

t S
z ARELLI
(Para
Dorina.) oh
Ai a menina está de acordo? Os meus cumprimentos!

(Denunciando-os.)e
A Dona Inácia está a ouvir?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Comoé isso? Estão de acordo?

DORINA
(Aborrecida.)1
lo Claro que estamos, desculpe, Senhora Dona...
d
(0 nome da Actriz Característica.,

Estamos de acordo para representarmos os nossos papéis.

54

Criado com Scanner Pro


fi
O TERCEIRO OFICIAL

Minha senhora, peço que não faça confusões do que já se


tinha combinado.

S MSALen9 9UD 2
A ACTRIZ CARACTERİSTICA

Ah, está bem. Desculpe, que já não me lembrava. Você,


Sarelli, ca com a Néné.

NÉNÉ

oNO (ParaSarelli,agarrando-opelo braço.)s


Comigo! Então não se lembra que assim é que cou
estabelecido?

Des
SARELLI oe A ao
De resto, sabe, nós só aqui estamos para dar uma certa
animação.

O DOUTOR HINKFUSS
Proe
(Para a Actriz Característica)

Atenção, minha senhora, peço-Ihe por favor que tome


atenção!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

Sim, sim, desculpe. Não se impaciente. Estes senhores


são tantos, que z uma certa confusão.
Sup up O
(Voltando-se para olhar à sua volta.)

Eo Verri? Onde está o Verri? Devia estar aqui com os


seus colegas.

55

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
O PRIMEIRO ACTOR
(Subitamente, fazendo aparecer a cabeça à frente da
cortina.) obe
Sim, senhora, com estes valentes colegas que ensinam a
modéstia às suas queridas lhas!

300 s:YSTdsre
A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Queria que eu as pusesse nas freiras para aprenderem o
catecismo e os lavores? Passou já o tempo, Eneias.

(Vai buscá-lo e puxa-o pela mão para a frente da cortina.)


uO Vá, venha para aqui, seja bonzinho! Olhe para elas, você
que fala de modéstia, não fazem alarde disso mas têm belas
prendas de donas de casa como poucas tệm nos dias que
correm. A Mommina sabe cozinhar...

shr5oT h cg MOMMINAO.sdse.o
(Em tom de reprovação, como se a mãe revelasse um
segredo vergonhoso.)
i
S01 Sp 10 o DONA INÁCIA
Ea Totina sabe cerzir... o
ADIT2AA1 TOTINAHDA A
2ordnse 92 (Mesmojogo queMommina.)
O que é que está a dizer?
nss sniL NI 9 0
0 OE
DONA INÁCIA
Ea Néné...

56

Criado com Scanner Pro


fi
.
NÉNÉ

Subitamenteagressiva,preparando-se para lhe tapar a boca.)


Quer estar calada, mamã?

DONA INÁCIA
Descubram outra como ela para tornar os vestidos no-

VOS...

NÉNÉ

(Mesmo jogo.)

Isto já chega!

sinsnetnoxoDONA
y INACIA i 0'i
Desmanchá-los..

NẾNÉ

(Tapa-lhe a boca.)

Pronto, mamã!

DONA
INÁCIA o o o
(Libertando-seda mão deNené.) Ak
Voltá-los do avesso... E para fazer contas, a Dorina!

DORINA
Jâacabou de despejar o saco?ihbe sio1
DONA INÁCIA
Ao que nós chegamos! Envergonham-se disto...

57

Criado com Scanner Pro


SAMPOGNETTA

t Comodevíciossecretos!

DONA INÁCIA
E depois não são exigentes, contentam-se com pouco;
desde que Ihes não falte o teatro, até andam a jejum! Ai, o
nosso velho melodrama! Até a mim me agrada tanto!

NÉNÉ

(Que terá entrado com uma rosa na mão.)

Ó mamā, não só, não só! A Carmen também!

(Põe a rosa na boca e canta baloiçando provocantemente


ancas.)
«L'amour est enfant de Bohème
ol-erli2
Qui n'a jamais connu de loi...»

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Sim, está bem, a Carmen também! Mas não nos faz vibrar
o coração como no seio do nosso velho melodrama, quando
se vê a inocência a gritar, sem ninguém lhe dar fé eo de-
sespero do amante: "Ah! Quell' infame l'onore a venduto."
Pergunta à Mommina! Pronto, já chega! zol
(Dirigindo-se a Verri.)
O senhor veio pela primeira vez a nossa casa, se bem se
recorda, apresentado por estes rapazes... odek
O TERCEIRO OFICIAL

Antes nunca o tivéssemos feito!

58

Criado com Scanner Pro


A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
...era o o cial de carreira na nossa base aérea..

O PRIMEIRO ACTOR

..o cial da reserva, se faz favor... e só por seis meses...


e depois, graças a Deus, acabou-se a papa doce para os que
andam a gozar a vida à minha custa!

22
POMÀRICI
Nós é que vivemos à tua custa?

1ON SARELLI
Olhaparaele!ui Sihohi o e EU

U li A ACTRIZ CARACTERISTICA st9


Isso não importa. O que eu queria dizer era que nem as
minhas lhas, nem aquele que ali está...

(0 Senhor Palmiro, mal se ouve nomear volta a carae


põe-se a assobiar.)
Acaba com isso ou atiro-te com esta bolsinha à cara!

(E uma bolsa enorme. O Senhor Palmiro pára


imediatamente.) o O
nenhum de nós sabia que o senhor tinha nas veias esse
sangue negro dos sicilianos..

O PRIMEIRO ACTOR

De que muito me orgulho.

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Ai, já sei! (e de que maneira!)

59

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
O DOUTOR HINKFUSS

Não nos antecipemos, minha senhora, não nos antecipe-


mos ainda, por amor de Deus!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Não tenha medo que não antecipo nada.

O DOUTOR HINKFUSS

É só a apresentação, minha amiga, e já chega.

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

Sua amiga, sim, não duvide, diz muito bem. Dizia eu, e
é verdade, que a princípio não se orgulhava nada com isso
e até fazia frente com todos nós aos selvagens desta ilha, que
consideram que é quase uma vergonha o nosso inocente
viver à continental, e acolhermos em casa alguns jovens, e
permitir que se divirtam sem maldade, como é tão próprio,
meu Deus, da juventude. Ele também se divertia com a
minha Mommina...

(Procura por ela à sua volta.)

Onde está ela? Ah, está aqui! Vem cá, chega aqui, minha
desgraçada lha; ainda não é altura para te esconderes assim.

(A Primeira Actriz, que fará o papel de Mommina,


resiste, enquanto a mãe a puxa pela mão.)

Vem cá, vem cá!

A PRIMEIRA ACTRIZ
Não, largue-me, largue-me, Senhora Dona..

60

Criado com Scanner Pro


fi
(Dirá o nome da Actriz Característica; depois, resoluta,
U0 0b dirigindo-seaoDoutorHinkfuss.)
Para mim não é possível assim, senhor encenador! Já Iho
tinha dito antes. Não é possível! O senhor estabeleceu uma
linha. Uma ordem de quadros: pois muito bem, que assim
seja! Eu tenho de cantar. Preciso de me sentir segura e no
meu lugar, na acção que me foi designada. Assim, à aven-
tura, não vou.

shesimot
O PRIMEIRO ACTOR
Pois claro! Porque sem dúvida a senhora escreveu e xou
de cor as réplicas que deve dizer de acordo com essa linha.

obtatl bnits APRIMEIRAACTRIZ


Claro! Preparei-me. O senhor porventura não fez o mes-

mo? t
O PRIMEIRO ACTOR
Também z, também; mas não decorei as palavras que
tinha de dizer. O minha senhora, falemos claro para que nos
possamos entender: não esteja à espera que eu fale da ma-
neira a que a senhora me quiser obrigar a falar, segundo as
deixas que a senhora achou por bem preparar. Eu digo aquilo
que devo dizer.

(A esta tirada segue-se o burburinho de uma série de


exclamações simultâneas de apoio por parte dos outros
actores.)

OS ACTORES
- Essa era boa!
-Que um obrigasse o outro a dizer aquilo que Ihe convém
a ele!

61

Criado com Scanner Pro


fi
fi
- Entãoadeus,improvisação!
- Então podia a senhora escrever até os papéis dosoutros
todos!

O DOUTOR HINKFUSS

o (Interronmpendo os comentários.)

Meus queridos senhores, falemo menos possível, falem


O menos possível, já vos disse! Já basta. A apresentação está
terminada. Mais jogo cénico, muito mais jogo cénico, emenos
palavras. Con em em mim. Asseguro-vos que as palavras
virão por si próprias, espontaneamente, nascerão do jogo
único que assumirdes de acordo com a acção tal como eu a
tracei. Sigam a acção e nada de confusões. Deixem-se guiar
por mim e deixem que eu vos marque, tal como tinha cado
decidido. Pronto, agora retirem-se. Façam descer o pano.

(Desce o pano de boca. O Doutor Hinkfuss ca junto à


ribalta e acrescenta dirigindo-se ao público:)

Apresento-lhes as minhas desculpas, minhas senhoras e


meus senhores. E agora que o espectáculo vai verdadeira-
mente começar, Peço-vos cinco minutos, cinco minutos
apenas, para que eu possa veri car se tudo está em ordem.

(Retira-se, afastando o pano de boca. Cinco minutos de


pausa.)

21TD 20

Isis

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Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
(Volta a abrir o pano.

O Doutor Hinkfuss começa por fazer render o peixe.

«Não caria mal», terá ele pensado, «Se ao princípio se


desse uma representação sintética da Sicília com uma
procissãozinhareligiosa. E dava cor.» Sn c

E dispös tudo para esta procissão começar na porta de


acesso à sala e ir até ao palco pela coxia central, segundo
esta ordem:

1. Quatro meninos de coro, de túnicas negras e camisas


brancas com rendas; dois à frente e dois atrás: levarão
círios acesos;

2. Quatro rapariguinhas, as chamadas « lhas de Maria»,


vestidas de branco e envoltas em véus brancos, com luvas
brancas de crochet, grandes demais para as suas máos, para
lhes dar um certo ar desajeitado; duas à frente e duas atrás
do andor, e todas elas segurando as quatro borlas do andor
de seda azul-celeste:

3. Em cima do andor, a Sagrada Família; quer dizer, um


velho maquilhado e vestido de S. José, como se về nos quadros

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Criado com Scanner Pro


fi
fi
sagrados que representama natividade, com uma auréola de
púrpura à volta da cabeça e na mão um longo báculo,
orido em cima; a su lado, uma lindíssima rapariguinha
loira, de olhos baixos e um meigo e modestíssimo sorriso nos
lábios, toucada e vestida de Virgem Maria e também ela com
uma auréola à volta da cabeça e com um belo bebé de cera
nos braços, que representa o Menino Jesus, como ainda hoje
se pode ver na Sicília no Natal, em certas toscas represen-
tações sacras com acompanhamento de música e coros;

4. Um pastor com um barrete de pêlo e um capote de


albaggio com as pernas emvoltas em peles de cabra, e outro
pastor mais novo; tocará o primeiro a charamela eo segun-
do o acciarino;

5. Um cortejo de populares, homens e muheres de todas


as idades; as mulheres de saia comprida franzida na cintura
com muitas pregas levando na cabeça uma romeira; os
homens de casaco curto pela cintura, com calças muito largas
em baixo, cintadas por faixas de seda colorida; na mão o
barrete de crochet preto com um pompom na ponta; entram
na sala a cantar ao som da charamelae do acciarino:

«Bendito e louvado seja


Nosso Senhor Jesus Cristo
Para sempre seja louvado
E sua mãe Maria Santíssima.»

Entretanto ver-se-áá em cena uma rua da cidade com um


muro branco, de pedra, de uma casa que correrá por mais
de tre quartos do palco, da esquerda para a direita, onde
fará ângulo como fundp do palco. Na esquina, um candeeiro
de rua. Para lá da esquina, no outro muro da casa e em

64

Criado com Scanner Pro


fl
ângulo obtuso, ver-se-á a porta de um cabaret, iluminada
com lampadazinhas coloridas, e quase em frente, um pouco
mais ao fundo, e de per l, em cima de três degraus, o portico
deuma antigaigreja.
ts o
So Um pouco antes de subir o pano e de a procissão entrar
na sala, ouvir-se-á em cena o barulho dos sinos da igreja e,
quase imperceptivelmente, o som de um órgão que é tocado
no interior.
Quando o pano sobe e a procissão entra, ver-se-ão no
palco alguns homens e mulheres (nunca mais do que oito ou
nove) que passarão na rua e se ajoelharão à direita e ao
longo do muro, as mulheres fazendo o sinal da cruz e os
homens tirando o chapéu. Assim que a procissão, depois de
er subido ao palco tiver entrado na igreja, estes homens e
mulheres juntar-se-ão ao cortejo e entrarão também. Quan-
do a última pessoa tiver passado o pórtico, os sinos deixarão
de tocar; ouvir-se-á ainda, agora mais nitidamente, o som
do órgão que depois diminuirá gradualmente, tal como a luz
irá progressivamente baixando sobre a cena.
De repente, mal tenha acabado esta música sacra, reben-
tará com violento contraste o som de uma orquestra de jazz
no interior do cabaret e ao mesmo tempo o muro branco que
estende por mais de três quartos de palco cará transpa-
rente. Ver-se-á o interior do cabaret, fulgurante de luzes de
muitas cores. A direita, junto à porta de entrada, estará o
bar, atrás do qual se verão três raparigas decotadas e pin-
tadas provocantemente. Na parede do fundo, ao lado do bar,
um grande pano de veludo vernmelho escaldante, e à frente
dele, como se de um baixo-relevo se tratasse, uma estranha
cantora vestida com véus negros, pálida, com a cabeça
reclinada para trás e de olhos fechados, cantará lugubre-
mente as palavras do pedaço de jazz. Três bailarinas loiras

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Criado com Scanner Pro


fi
fi
moverão os braços e as pernas seguindo o ritmo, de costas
para o bar, no pouco espaço existente entre ele e a primeira
la de mesinhas redondas à volta das quais estão sentados
os clientes (pouco numerosos) com as bebidas à frente.
Entre estes clientes estará «Sampognetta» de chapéu de
feltro na cabeça e um grande charuto na boca.
O cliente que está atrás dele, na segunda la demesinhas,
vendo-o tão atento às evolucões daquelas três bạilarinas
está a preparar-lhe uma valente partida: dois grandes cor-
nos recortados da folha de cartolina em que vem impressa,
com o programa, a lista dos vinhos e das outras bebidas do
cabaret.
Os outros clientes já deram por isso e com isso se diver-
tem e apoiam-no fazendo sinais de incitamento para que o
faça depressa.
Quando os dois cornos já estão recortados, bem compri-
dos e direitos, a saírem do crculo de cartão que lhes serve
de base, o cliente levanta-se, e vai colocá-los com muito
cuidado no chapéu de «Sampognetta». Toda a gente começa
a rir e a bater palmas.
«Sampognetta», julgando que as gargalhadas e as pal-
mas são para as três bailarinas que nessa altura acabam de
dançar, começa a rir e a bater palmas também, fazendo
assim rebentar as gargalhadas dos outros, cada vez mais
escancaradas, e os seus aplausos, cada vez mais entusiásti-
cos. Mas não consegue perceber porque é que todos olham
para ele, mesmo as mulheres do bar e as três bailarinas que
agora também se desmancham a rir. Fica perturbado; o riso
cerra-se-lhe nos lábios; o aplauso congela-se-lhe nas mãos.
a Nessa altura a estranha cantora tem um ímpeto de indig-
nação; destaca-se do pano de fundo de veludo e aproxima-
-se para tirar da cabeça de «Sampognetta» aquele ornamen-
to escarninho, gritando:)

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Criado com Scanner Pro


fi
fi
aTY A CANTORA
o Não! Pobre velho! Tenham vergonha!

(0s clientes retêm-na, gritando por sua vez simultaneamente


0) 2 bs 2 emgrande
confusão.)

OSCLIENTESolu z98 z
(Está quieta,idiota!
-Está calada e volta para o teu lugar!
-Qual pobre velho!
-Paraqueéquetemetesnisto? 05 o S9
+Deixa-nosempaz! D s 9 TOD 9
-Eo que ele merece! sb
-Ē o que ele merece!

(E no meio destes gritos, a Cantora continuará a protestar


enquantoa seguram e ela se tenta soltar.)

sibouutAbg2
CANTORA

Deixem-me, velhacos! Porque é que os merece? Que mal


fez ele?ins. sles 10gO62151 sHe o 0e oi9gt Elol

SAMPOGNETTA

Bu o(Levantando-se,maisperdido do quenunca.)
O que é que eu mereço? O que é que eu mereço?

O CLIENTE QUE LHE PREGOU A PARTIDA

Váse embora, vá-se embora daqui, que isto não é lugar


para si!

(Empurra-o, com a ajuda dos outros, até à porta.)

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Criado com Scanner Pro


TERCEIRO CLIENTE

O que o senhor merece sabemos nós muito bem, Senhor


Palmiro!

(«Sampognetta» é levado para fora, com os seus belos cor.


nos na cabeça. Desfaz-se a transparência do muro. Ainda se
ouvem os gritos dos que agarram a Cantora; depois uma
grande gargalhada e a orquestra de jazz volta a atacar.)

SAMPOGNETTA
(Para os dois outros clientes que o obrigaram a sair e
que agora se divertem a vê-lo assim coroado, sob a luz
do candeeiro.)

Mas queria saber o que foi que aconteceu.

O SEGUNDO CLIENTE

Nada! E por causa da história do outro dia.

O TERCEIRO CLIENTE

Toda a gente sabe da sua afeição por esta cantora..

SEGUNDO CLIENTE

Queriam, para se divertir, que ela Ihe tivesse pregado uma


bofetada como na outra noite...

TERCEIRO CLIENTE
Pois, quando Ihe disse que era bem merecida!

SAMPOGNETTA
Ah, já percebi, já percebi!

68

Criado com Scanner Pro


PRIMEIRO CLIENTE

Ah! Olhe, olhe para ali! Lá para cima, para o céu! As


estrelas!

SEGUND0 CLIENTE
As estrelas?

PRIMEIRO CLIENTE

Estão a andar, estão a andar!

SEGUND0 CLIENTE

O que é que tu estás a dizer?

SAMPOGNETTA
Será possível?

PRIMEIRO CLIENTE

É,é. Olhe para aquilo! É como se Ihes estivessema mexer


com dois paus.

(E levanta os braçosfazendo doiscornos.) A


Soiodo
SEGUNDO CLIENTE

Cala-te! Tu estás é grosso!

TERCEIRO CLIENTE

Julgas que as estrelas são como as lamparinas?u

SEGUND0 CLIENTE

O que é que estava a dizer, Senhor Palmiro?

69

Criado com Scanner Pro


SAMPOGNETTA

Ah, sim. Que eu esta noite, não sei se deram por isso, z
de propósito para olhar sempre para as bailarinas, sem nunca
voltar sequer a cabeça para ela. Faz-me tanta impressão,
tanta! Aquela pobrezinha, quando canta de olhos fechados e
com aquelas lágrimas que Ihe escorrem pelas faces!

SEGUNDO CLIENTE
Mas isto faz parte da pro ssão, Senhor Palmiro! Não
acredite naquelas lágrimas!

SAMPOGNETTA
(Negandoseriamente, até com o dedo.)p

Não, não, isso não! Da pro ssão? Qual pro ssão! Dou-
-lhes a minha palavra de honra que aquela mulher sofre:
sofre de verdade. E depois tem a mesma voz da minha lha
mais velha: tal e qual! tal e qual!E confessou-me que ela
também é lha de boas famílias.

TERCEIRO CLIENTE
Ah, sim? Calculem! Também é lha de algum enge-
nheiro?

SAMPOGNETTA
ies T it
Isso não sei. Mas sei que certas desgraças podem acon-
tecer a toda a gente. E cada vez que a oiço cantar, entra-me
uma... umaangústia, uma consternação. 8
(Nesta altura aparecem da esquerda, em passo de marcha,
Totina de braço dado com Pomàrici, Néné dando o braço a
Sarelli, Dorina dando o braço ao Terceiro O cial, Momnina

70

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
fi
fi
fi
fi
ao lado de Rico Verri e Dona Inácia dando os braços aos
outros dois jovens o ciais. Pomàrici marca o passo para
toda a gente, mesmo antes de o grupo ter entrado em cena.
Os três clientes (que se podem ter tornado em quatro ou
mais), ouvindo a voz, retiram-se para a porta do cabaret,
deixando o Senhor Palmiro sozinho debaixo do candeeiro,
ainda com os seus cornos na cabeça.)

POMÀRICI

Um, dois.. Um, dois.. Um, dois..

(Dirigem-se para o teatro; as quatro raparigas e Dona Inácia


de espalhafatosos vestidos de noite.)

TOTINA

(Vendo o pai com aqueles cornos na cabeça.)

Oh, meu Deus! Papá, o que foi que te zeram

POMÀRICI

Patifes! Que nojo!

SAMPOGNETTA
A mim? Que foi?

NÊNÉ

Tire já isso que lhe puseram no chapéu!

So DONAINÁCIA
(Enquanto o marido leva as mãos ao chapéu.)

Uns cornos!

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Criado com Scanner Pro


fi
fi
Malcriados! Quem foi?

TOTINA
Olha, olha para eles!

SAMPOGNETTA

(Tirando o chapéu.)

Comos, a mim? Ah, então era por isso! Miseráveis!

S DONA INÁCIA
E ainda pega neles com as mãos! Deita-os fora, imbecil!
Só serves para bobo de todos esses malandrins!

STNit ot MOMMINA
(Para a mãe.)

Não faltava agora senão a mãe ainda por cima embirrar


com ele...

TOTINA
)0MA2
...quando foram esses nojentos!

VERRI
(Aproximando-se da porta do cabaret e dirigindo-se

clientes que observam e se riem.)

Quem foi que ousou? Quem foi que ousou?

(Agarra um pela gola do casaco.)


Foi você?

72

Criado com Scanner Pro


NÉNÉ
Estão-se a rir..

O CLIENTE
(Tentando soltar-se.) obaolshM
Largue-me! Não fui eu! E não se lembre de me pôr as
mãos em cima!

VERRI

Então diga-me quem foi.


0
POMÀRICI

Não, vá, Veri, deixa estar.

s olas o ik
SARELLI
É inútil estarmos para aqui a fazer ainda mais escândalo!

DONA INÁCIA

Não, não, eu quero pedir explicações ao chefe dessa


quadrilha de malfeitores!

01
TOTINA S OEEEDen
Ó mamā, deixe estar:!

SEGUNDO CLIENTE

(Avançando.)

A senhora veja como fala! Aqui também há homens


honrados!

73

Criado com Scanner Pro


MOMMINA
Homens honrados que agem assim?

DORINA

Malcriados!
Malfeitores! s
TERCEIRO OFICIAL
Deixe estar, deixe estar, menina Dorina!

QUARTO CLIENTE
Foi a rapaziada, de brincadeira..

POMÀRICI
Ai o senhor chama a isto brincadeira?

!olsbnse9zicmSEGUNDO
CLIENTE t ta2
Todos nós estimamos o Senhor Palmiro...
DAWA
TERCEIRO CLIENTE
sa2sb slsro os 0LNE
(Para Dona Inácia.) ob
..muito mais do que a estimamos a si, que não estimamos
nada, minha cara senhora!TOr

SEGUND0
CLIENTE a O
A senhora é a anedota da terra!

CVERRIA) e
c19RO b (Exaltando-se, de braços no ar.)ods
Dobre essa língua, ou tome cuidado!

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Criado com Scanner Pro


fi
QUARTO CLIENTE
Nós vamos fazer queixa ao Senhor Coronel!

TERCEIRO CLIENTE
Que vergonha! Com a farda de o cial!

VERRI loio
Quem é que vai fazer queixa?

OS CLIENTES) o ssq 0:f8/


(Também do interior do cabaret.)
Todos nós! Todos nós!

POMÀRICI

Os senhores insultam as senhoras que vão a passar na rua


acompanhadas por nós, e o nosso dever é defendê-las!

QUARTO CLIENTE

Ninguém
insultouninguém!s AO8ntag

TERCEIRO CLIENTE
A senhora, a senhora é que nos insultou! esy roil

DONA INÁCIA
Quem? Eu! Eu não insultei nada! Disse-vos na vossa cara
o que os senhores são! Malfeitores, malcriados! Malandrins!
Mereciam era ser postos numa jaula, como os animais fero-
zes! Isso éo que vocês são!

Jed (E como todos os clientes riam descaradanmente.)

Isso, riam, riam, canalhas, selvagens!

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Criado com Scanner Pro


fi
aTPOMÀRICI
(Como outros o ciais e as lhas tentando acalmá-la.)

Então,minhasenhora, entao..ga

Aas iOSARELLIO ssto


Pronto!

atse es, deTERCEIROOFICIAL


Vamosparaoteatro! D d0

NÉNÉ
Não suje a boca a responder a gente desta!

QUARTO OFICIAL
Vamos,vamosque já é tarde! t

7TOTINAA
O primeiro acto já deve ter acabado!t a ne

alMOMMINAl
Sim, venha! Deixe-os estar! SIori

POMÀRIC
sVenha, venha para o teatro connosco, Senhor Palmiro!

-irsl iss 20o DONA INÁCIA


t
Não, senhor. Ele! Qual teatro! Para casa! Volta já para
casa! Amanhã tem que se levantar cedo para ir para a vinha!
Paracasa! Paracasa! oblssw

76

Criado com Scanner Pro


fi
fi
(Os clientes voltam a rir-se com esta ordem peremptória da
mulher ao marido.)

SARELLI
E nós para o teatro! Não podemos perder tempo!

DONA INÁCIA
Imbecis! Cretinos! Riam-se mas é da vossa ignorância!

O POMÀRICI
up slro
Chega! Chega!

OS OUTROS OFICIAIS

9 Paraoteatro!Paraoteatro!9TIOD6isbisup M
(Nesta altura, o Doutor Hinkfuss quedesde oprincípio voltou
a entrar na sala atrás da procissão e que se sentou para
vigiar a representação, estando sentado numa cadeira da
primeira la que fora reservada para ele, levanta-se.)

O DOUTOR HINKFUSS
Sim, sim! Já chega! Para o teatro! Para o teatro! Saiam
todos! Os clientes voltam para o cabaret. Os outros saem
pela direita! E fecham um bocado o pano de um lado e do
outro! tono slosoi A
(Os actores saem. Fecham um pouco o pano de cada lado
de forma a deixar no meio o muro branco que deve servir
de ecrã para a projecção cinematográ ca do espectáculo de
ópera. Só o Actor Centro ca ali defronte, quando todos os
outros
desapareceram.) vs
77

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
ol oeeng 0ACTOR
CENTRO
(Para o Doutor Hinkfuss.)
Se não vou com eles para o teatro devo sair pela esquerda,
não é assim?
loqmsi bisg 2osbog on/ lotsot oLTE 0
O DOUTOR HINKFUSS

Evidentemente, o senhor pela esquerda! Vá, vamos! Que

O ACTOR CENTRO
JMAMU
Não, só gostava que desse conta que não me deixaram
dizer uma única palavra. É Confusão a mais, senhor encenador!

O DOUTOR HINKFUSS

Mas que ideia! Correu tudo lindamente! Vá, vá, vá-se


embora!
ono sbz5hup7211iho o,
srOg SZ 9%ShoACTORCENTRO
Gostava que notasse que sou eu sempre que as pago
todas!
O DOUTOR HINKFUSS

Está bem, mas agora que já notei, vá-se embora! Agora


é a cena do teatro!

ob obsi 0Actor Centro sai pela esquerda.) si


A grafonola! Comecem imediatamente a projecção do
lme!
(0 Doutor Hinkfuss volta a sentar-se na sua cadeira da
plateia. Entretanto, à direita atrás do pano de boca que terá
sido puxado de maneira a esconder a esquina do muro c
o candeeiro, os empregados de cena terão colocado uma

78

Criado com Scanner Pro


fi
grafonola na qual se terá posto um disco com o nal do
primeiro acto de um velho melodrama italiano, La Forza del
Destino, ou II Ballo in Maschera ou qualquer outro sob a
condição de que se faça a projecção sincrónica do nal
sobre o muro branco que serve de ecrā. Assim que o som da
grafonola se começa a ouvir e começa a projecção, ilumina-
camarote da sala que tinha cado livre, com uma luz
especial, quente, que não se percebe de onde vem; e ver-se-
-ão entrar Dona Inácia com as quatro lhas, Rico Verri e
os outros jovens o ciais. A entrada será ruidosa e imedia-
tamente provocará protestos do público.)

DONA
INÁCIA Up on
O que é que eu dizia? Já vai no nal do primeiro acto!

Con TOTINA
Que correria! Uf!
oin9li2-
(Senta-se na primeira la do camarote, ao lado da mãæ.)

Meu Deus, que calor! Estamos todas a pingar!

POMÀRICI 9U3rtiabrl oM-


(Abanando-ihe o alto da cabeça com um lequezinho,)

Aquiestouàssuasordens!ys ow oe 9
-I192
DORINA
uob) obnzog

Credo! A passo de marcha! Um dois, um dois..

VOZESNA SALAs o
Francamente!
-Silêncio!
Vejam lá se isto é maneira de se entrar num teatro!

79

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
fi
fi
fi
MOMMINA

doz oty aylu (ParaTotina.)


Sentaste-te no meu lugar, levanta-te!

) 09 TOTINA
Pois, mas como a Dorina e a Néné se sentaram aqui no
meio...

Nig DORINA
Pensámos que a Mommina quisesse car atrás com o
Verri, como da última vez..

VOZES NA SALA

-Silêncio!
- Silêncio!
-São sempreeles! ob olt D 32
-Ẽ umaverdadeirapoucavergonha!
-0 que é espantoso sãoestes senhores o ciais!
-Não há ninguém que os meta na ordem?

(Entretanto no camarote a mudança de lugares provoca um


grande alvoroço: Totina terá cedido o seu lugar a Mommina
e terá passado para o lugar de Dorina que por sua vez terá
passado para a cadeira deixada por Néné que terá ido sen-
tar-se no banquinho junto da mãe. Rico Verri sentar-se-á
junto de Mommina, no banquinho oposto; atrás de Totina,
Pomàrici; atrás de Dorina, o Terceiro O cial; e ao fundo
Sarelli e os outros dois o ciais.)

MOMMINA
Baixinho, cuidado, por favor! le
80

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
Cuidado! Primeiro fazes a confusão nto
MOMMINA
Eu?

NÉNÉ
Sim, tu, com todas essas mudanças! os 92-BU9r)

DORINA
Deixem-nosfalar! oO3 cluc up oiisg tles 15
TOTINA
Como se nunca tivessem ouvido..
(Dirá o nome do melodrama.) on Lstzsa

22 POMÀRICI
Devia-se ter algum respeito por estas senhoras... )
VOZES NA SALA esd mie
- Estejacalado!
E umavergonha! AMO
- Rua com elas!
Ponham-nos a andar! sh 0 .sM
0-Que lindo! Que seja do grupo dos o ciais que sai este
escândalo todo!
-Fora! Fora!

e DONAINÁCIA
Canibais! A culpa não é nossa se chegámos tão tarde!
Vejam lá se isto se pode considerar uma terra civilizada!

81

Criado com Scanner Pro


fi
Primeiro, uma agressão em plena rua, agora até no teatro nos
agridem também! Canibais!

TOTINA
No Continente toda a gente faz assim!

DORINA
Chega-se ao teatro quando se quer!

NÉNÉ

E aqui está gente que sabe como é costume fazer-se e


como se vive no Continente!
TOT
VOZES NA SALAo 2 ott
Basta! Pronto! s ob9noNo ish
O DOUTOR HINKFUSS

(Levantando-se e voltando-se para o camarote dos actores.)

Sim, basta, sim, sim, basta! Não se excedam, por favor,


não se excedam!

DONA INÁCIA
Mas, por amor de Deus, a que excessos é que se está a
referir? Eles é que nos incitam! Ẽ uma perseguição insupor-
tável, não vệ? Só por causa de um bocadinho de barulho que
zemos quando entrámos!

O DOUTOR HINKFUSS

Está bem, está bem! Mas agora já basta! De qualquer


maneira, o actoacabou! b soq 9 olet 3e

82

Criado com Scanner Pro


fi
02209.iupsuiy 92 j200VERRI
Acabou? Demos graças a Deus! Vamos embora! Vamos
embora!

o9 08 SO DOUTORHINKFUSS
Muito bem, isso,isso,saiam, saiam!s oheor

Eu tenho uma sede!

(29ln0 (Saidocamarote.) oà

NÉNÉ

Esperemos que haja gelados!

(Mesmo jogo.)

DONA INÁCIA

Vá, vá, vamos depressa, vamos depressa senão rebento!

(Acabada a projecção, o gramofone cala-se. O pano fecha


completamente. O Doutor Hinkfuss sobe para o palco e vol-
ta-se para o público enquanto a sala se ilumina.)

O DOUTOR HINKFUSS

A parte do público que tem por hábito sair da sala entre


um acto e outro, pode, se assim o desejar, ir assistir ao
escândalo que esta boa gente continuará a dar até mesmo no
foyer do teatro, não porque o queira mas porque, seja o que
for que zer, dará nas vistas, mal vista como é, e está con-
denada a ser o objecto da maledicência geral. Façam favor
de ir, façam favor; mas todos não, sim? Até para não se
sentirem lá demasiado apertados por todos os que hão-de

83

Criado com Scanner Pro


fi
querer ver o que, pouco mais ou menos, já se viu aqui.PoSso
assegurar-vos que os que carem nos seus lugares não vão
perder nada de essencial. Lá fora continuarão a ver, mistu-
rados com os espectadores, aqueles que aqui viram sair do
camarote para o intervalo do costume entre um acto e o
outro.
Eu vou aproveitar este intervalo para a mudança de cena.
E fá-lo-ei perante vós, ostensivamente, para vos oferecer, a
vós que cais na sala, um espectáculo a que não estais ha-
bituados.
lsloz snu oda
(Bate palmas para dar sinal e ordens.)

c Abram opano!
(0 pano abre.)

ADALIA

&4

Criado com Scanner Pro


fi
fi
INTERMEZZO

(Representação simultânea no foyer do teatro e no palco.


No foyer, os actores e as actrizes representarão coma
máxima liberdade e naturalidade de espectadores - cada
um, bem entendido, dentro do seu papel - entre os especta-
dores, durante o intervalo entre um acto e o outro.
Agrupar-se-ão em quatro pontos diferentes do foyer, e em
cada um desses sítios cada grupo fará a sua cena indepen-
dentemente dos outros grupos e simultaneamente: Rico Verri
com Mommina; Dona Inácia com os dois o ciais que se
chamam, um Pommetti, o outro Mangini, sentar-se-á num
banco; Dorina passear-se-á conversando com o Terceiro
O cial que se chama Nardi; Néné e Totina irāo com Pomàrici
e Sarelli para o fundo do foyer onde haverá um bar que
vende bebidas, café, cerveja, licores, caramelos e outras
guloseimas.
Estas cenazinhas isoladas e simultâneas vêm aqui trans-
Critas por necessidade de espaço umas a seguir às outras.)

85

Criado com Scanner Pro


fi
fi
NÉNÉ, TOTINA, SARELLI e POMÀRICI
(Junto do bar ao fundo do foyer.)

NÉNEw
Não tem gelados? Que pena! Então dê-me uma bebida
qualquer. Mas bem fresca! Sim, pode ser de mentol.

o TOTINAl-obos)
Para mim é uma limonada. 9205M cults s206/
POMÀRICI
Um pacotinho de bombons. E caramelos, também.

NÉNÉ
Não, isso não, Pomàrici. Por favor!

3n
TOTINA )
Se calhar não são bons. São bons? Então está bem, com-
pre, compre. E uma das maiores satisfações que uma mulher
pode ter...
POMÀRICI
Os bombons?

TOTINA
Não!Fazeroshomens
pagar!aurinensbiib msni
POMÀRICI
Mas isto não é nada! Pena que não tivéssemos tempo para
passarnos pelo café a caminho do teatro.uo

87

Criado com Scanner Pro


SARELLI
...por causa daquele maldito incidente!

TOTINA

Mas também o papá, meu Deus, parece que vai depro-


pósito dar pretextos para esta indigna perseguição,aofe.
quentar certos lugares!

POMÀRICI
(Metendo-lhe um bombom na boca.)
Não se a ija! Não se a ija!

NÉNÉ
(Abrindo a boca como um passarinho.)
E para mim?

POMÀRICI
(Metendo-lhe na boca.)
Com certeza. Mas para si vai unm caramelo.

NÉNÉ
Mas tem a certeza de que no Continente se faz assim?

POMÀRICI
Claro! O quế? Meter um rebuçado na boca de uma me-
nina? Sem dúvida nenhuma...

SARELLI
Um rebuçado e outras coisas!

88

Criado com Scanner Pro


fl
fl
NÉNÉ

Que coisas? Que coisas? ssupollots


POMÀRICI
Ai, se fôssemos a fazer tudo o que se faz no Continente!

TOTINA
(Provocante.)aog eO
Mas por exemplo?

l tug
SARELLIl
itsige on
Não podemos dar o exemplo aqui!

NÉNÉ
Então amanhã assaltamos todas quatro o campo de avi-
ação!

obsore ol TOTINA p sbeha


E livrem-se de não nos levar a voar.

POMÄRICI
5t) sesqO
A visita será muitíssimo agradável; mas quanto a voar,
infelizmente...

SARELLI
Proibido pelo regulamento!

POMÀRICI

Com o comandante que agora lá está..

89

Criado com Scanner Pro


TOTINA
Não tinha dito que esse traste ia brevemente de :-
licença?
NÉNÉ
Eu não aceito desculpas; quero voar sobre a cidada
ter o prazer de Ihe cuspir em cima. Posso? para

SARELLI
Voar é impossível..

NÉNÉ
Não, cuspir, cuspir-he em cima, puh!, um escarro. Pois
ca você encarregado disso.

II
ivs s DORINA e NARDI passeando.

NARDI
Mas sabe que o seu paizinho está loucamente apaixonado
por aquela cantora do cabaret?
v 49008
DORINA
O papá? Que me conta?

NARDI
O papá, o seu paizinho, asseguro-lhe eu. De resto toda a
gente o sabe.

DORINA ole ot
Mas diz isso a sério? O papá, apaixonado?
(Uma grande gargalhada faz com que todos osespectadores
vizinhos se voltem.)

90

Criado com Scanner Pro


fi
920dloon siil ohNARDI oobotse ol
su Não viu que estava lá, no cabaret?
2olo sb sYS
DORINA
Por amor de Deus, não diga nada à mamā! Esfolava-o
vivo! Mas quem é essa cantora? Você conhece-a? oGM

NARDI
Sim, vi-a uma vez. E uma louca melancólica. a
sbatstod erzeinrnon
DORINA
Melancólica? Como é que sabe?

sdoqzsistsborllbi NARDIdst sla p oM


Dizem que chora sempre a cantar, de olhos fechados:
lágrimas de verdade; e que algumas vezes até cai no chão,
sucumbida pelo desespero que a faz chorar, bêbeda.

STTLSsisTei, n9d DORINA sIDOlseup iailo


Ah,sim?Masentãoserádovinho! n san b

(iboM oNARDI T0)y nh nitoT


Talvez. Mas parece que bebe por desespero.

Tunibem apaniwa
DORINA
Oh, meu Deus! E o papá? Oh, coitadinho! Mas acha que
o meu pai é mesmo um desgraçado, pobre paizinho? Não,
não, não posso acreditar.

NARDI
Não acredita? E se eu lIhe disser que uma noite, em que
com certeza ele também estava um bocado tocado, deu espec-

91

Criado com Scanner Pro


táculo para todo o cabaret, indo de lágrimas nos olhos e
lencinho na mão, enxugar as lágrimas dessa mulher que
cantava de olhos fechados?

DORINA
Não pode ser! A sério?

NARDI
E sabe como é que ela lhe respondeu? Pregando-lIhe uma
enormíssima bofetada!

DORINA
No papá? Ela também! A mamã já Ihe dá tantas, pobre
paizinho!

NARDI
Foi exactamente isso que ele disse, ali, diante de todos os
clientes que se torciam de riso: «Também tu, ingrata? Já me
dá tantas a minha mulher!»

(Nesta altura estarão perto do bar. Dorina vê as irmās


Totina e Néné e corre para elas com Nardi.)

NÉNÉ, TOTINA, DORINA, POMÀRICI, SARELLI


e NARDI, em frente do bar.

DORINA
Sabem o que o Nardi me esteve a dizer? Que o papá está
apaixonadopelacantorado cabaret! sie

92

Criado com Scanner Pro


TOTINA

Nãopode ser!sLl
NÉNÉ

Tu acreditas? É brincadeira!

DORINA
Não, não, é verdade! É verdade!

NARDI
Posso garantir-vos que é verdade.

A obsod sil
É verdade. Também me disseram a mim.

DORINA
E se soubessem o que ele fez!
obn
NÉNÉ o191Si svbobE

O que é que fez?

DORINA
Também apanhou uma bofetada dessa mulher e em pleno
café!

NÉNÉ

Uma bofetada? OM

TOTINA
Mas porque?

93

Criado com Scanner Pro


DORINA

Porque Ihe queria enxugar as lágrimas!

TOTINA
As lágrimas?

DORINA
Sim, porque, segundo dizem, é uma mulher que estásempre
a chorar...
ICAAM

TOTINA l o
Perceberam agora? Tinha ou não tinha razão para o dizer
há bocado? A culpa é dele, é dele! Como é que querem que
as pessoas se não riam e não façam troça dele?

SARELLI
Se quiserem uma prova, procurem no bolso de dentro do
casaco: deve lá ter o retrato dessa cantora. Mostrou-mo uma
vez a mim com algumas exclamações que nem vos poss0
repetir, pobre Senhor Palmiro!

AVIAOG

RICO VERRI e MOMMINA, afastados.

MOMMINA Csbsoi s
(Um pouco assustada com o aspecto sombrio com que Verri
saiu da sala.)

O que é que tem?e

94

Criado com Scanner Pro


VERRI
(Com maus modos.)

Eu? Nada. Que é que havia de ter?

MOMMINA
Então porque é que está assim?

VERRI
Não sei. Só sei que se tivesse cado mais um minuto
naquele camarote, acabava mesmo por fazer uma loucura.

MOMMINA
Isto já não é vida que se possa aguentar.

VERRI
(Asperamente e muito alto.)E eUOov

Só agoraé que vê?

MOMMINA
Fale baixo, por amor de Deus! Todos os olhos estão postos
em nós...

VERRI

É exactamente por causa disso! Exactamente por causa


disso!

MOMMINA
Cheguei ao ponto de quase já não saber mexer-me nem
falar.

95

Criado com Scanner Pro


fi
VERRI

Eu gostava de saber o interesse que tem olharem tanto


para nós e andarem a escutar o que nós dizemos.

MOMMINA
Seja bom, dê-me esse prazer, não os provoque!

VERRI
Não estamos aqui como os outros todos? Que será que
vêem de estranho em nós neste momento para nos estarem
a olhar assim? Pergunto se não é possível...

S MOMMINA
Sim... viver... já Iho disse... fazer ainda um gesto, levantar
os olhos, assim, debaixo da ira de toda a gente. Olhe para ali,
à volta das minhas irmās e além, à volta da minha mãe..

VERRI

Como se aqui estivéssemos a dar um espectáculo!


ob
MOMMINA
Pois é.

US00 VERRI

Desculpe-me, mas infelizmente ali as suas irmās...

MOMMINA
O que é que estão a fazer?

96

Criado com Scanner Pro


AVVERRI
Nada. O melhor é nem pensar niss0o, mas elas parece que
até gostam...
MOMMINA

Dequê?nutsnstpsisskotot gxs 01u


0212003 301311R
VERRI
De dar nas vistas!AINMOM

MOMMINA
Mas não estão a fazer nada de mal: estão a conversar...

VERRI
bIA I1Ovstoq .sinsibs be 2om92254
Mas com tanta vivacidade acabam por provocar.osrn

MOMMINA
Desculpe, mas são os seus colegas...

VERRI
Bem sei, a pô-las assim; e acredite que começam a enervar-
-me seriamente, sobretudo aquele Sarelli, e mesmo o Pomàrici
eo Nardi.

MOMMINA
Divertem-se
um
bocado.. e nolsel3
VERRI
on Podia pensar que o fazem à custa da boa reputação de três
raparigas de bem. Ao menos absterem-se de certos actos, de
certas familiaridades..

97

Criado com Scanner Pro


MOMMINA
Isso é verdade, sim...

VERRI

Eu, por exemplo, não toleraria que nenhum deles seper-


mitisse consigo...

MOMMINA
...antes de tudo era eu própria que não o permitia, bem
sabe!

VERRI
Passemos adiante, passemos adiante, por favor! Até a
menina o permitiu primeiro!

MOMMINA
Mas agora já não, e há já algum tempo, acho eu. Já devia
saber!

U eIMS VERRI

Mas não basta que o saiba eu: eles também deviam saber!

MOMMINA
Eles sabem! Eles sabem!

VERRI
Não sabem! Por mais de uma vez me quiseram mesmo
mostrar que não queriam saber! E mesmo para me escar-
necer.

98

Criado com Scanner Pro


MOMMINA
Não pode se! Mas quando? Por amor de Deus, não meta
essas ideias na cabeça!

VERRI s
Têm de perceber que comigo não se brinca!

MOMMINA h
Eles percebem, esteja descansado! Mas quanto mais você
Ihes dá a ver que leva a mal mesmo uma brincadeira inocen-
te, mais eles continuam, até para mostrar que não o faziam
por maldade.

VERRI

Portanto, a menina desculpa-os!

MOMMINA
De maneira nenhuma! Digo isto por si, para que esteja
sOssegado! E por mim também, que, vendo-o nesse estado,
vivo num estado de inquietação contínua. Vamos, vamos. A
mamã mexeu-se; parece-me que quer voltar lá para dentro.

DONA INÁCIA, sentada num banquinho e enquadrada


por POMETTI e MANGINI.

DONA INÁCIA

o Ah, meus caros, há uma grandebenemerênciaque devíeis


realizar a favor da civilização, uma grande benemerência!

99

Criado com Scanner Pro


MANGINI
Nós? O quê?

DONA INÁCIA
O quê? Começarem a dar lições ao vosso círculo!

POMETTI
Lições? A quem?

DONA INÁCIA
n Aos vilões, aos idiotas desta terra! Pelo menos umahora
por dia!

MANGINI
Lições de quê?

POMETTI
De boas maneiras?

DONA INÁCIA
Não, não. Conferências, conferências! Uma liçãozinha de
uma hora por dia, que lhes informasse de como se vive nas
grandes cidades do Continente. Você de onde é, caro Mangini?

MANGINI
Eu? De Veneza, minha senhora.

DONA INÁCIA
Veneza? Ah, meu Deus, Veneza, o meu sonho! E o
Pometti? Eo Pometti?

100

Criado com Scanner Pro


POMETTI
Eu, de Milão.

DONA INÁCIA

Ah, Milão! 'Milan'... Imagine-se! El nost Milan!.. E eu


soudeNápoles;deNápolesque - semofender Milão -é-
e não desmerecendo o valor de Veneza - que é, como pai-
sagem, um paraíso! Chiaja! Posilippo! Dá-me.. dá-me von-
tade de chorar quando penso nisso.. Tanta coisa! Tanta
coisa!.. O Vesúvio, Capri...E vocês têm o Duomo, A Galleria,
o Scala... E vocês, ai!, a Praça de São Marcos, o Grande
Canal.. Tanta coisa! Tanta coisa!.. Enquanto aqui, todas
estas nojeiras... E se ao menos só fossem cá fora, nas ruas!

MANGINI
Não lhes diga isso na cara e tão alto, por amor de Deus!

DONA INÁCIA
Não, não, eu falo bem alto. A Santa Clara de Nápoles,
meus caros! Até dentro deles a têm, a nojeira. Têm-na no
coração, têm-na no sangue. Todos sempre raivosos! Não lhes
dá essa impressão? De que estão todos sempre raivosos?

MANGINI
A mim, para falar verdade..

DONA INÁCIA

Não Ihe parece? Mas é verdade, todos sempre devorados


por uma.. como hei-de dizer?... sim, sim é verdade, uma
raiva instintiva, que os torma ferozes uns contra os outros;
basta que um, não sei, olhe para aqui em vez de olhar para

101

Criado com Scanner Pro


ali, ou que assoe o nariz com um bocado mais de forca.o
que lhe passe uma coisa qualquer pela cabeça e que soria:
Deus nos ampare e acuda! Foi para mim que ele sorriu; foj
de propósito que assoou o nariz com tanta força, para me
fazer uma afronta; foi de propósito, para me despeitarque
olhou para ali em vez de ter olhado para aqui! Não sepode
fazer nada sem que eles logo suspeitem que se faz comsabe-
-se lá que maldade; porque a maldade têm-na eles, todos, a
rebentar dentro deles. Olhem para os olhos deles. Metem
medo. Olhos de lobo. Vamos, vamos. Deve ser altura de
voltarmos para dentro. Vamos ver das nossas raparigas.
(Depois de medido o tempo que seránecessáriopara
quatro grupos digam simultaneamente as suas réplicas,cada
qual no local indicado, faça-se de maneira [até cortandoou
acrescentando, onde der jeito, algumas palavras] a que to-
dos se movimentem simultaneamente para se reunirem e
deixarem o foyer em conjunto. A simultaneidade também
deverá ser regulada segundo o tempo que for necessárioao
Doutor Hinkfuss para executar os seus prodigios no palco.
Esses prodígios podem ser deixados ao capricho do Doutor
Hinkfuss. Mas porque foi ele, e não o autor da novela, que
quis que Rico Verrie os outros jovens o ciais fossem avi-
adores, é natural que ele o tenha querido assim para se dar
ao prazer de montar, perante o público que car na sala, um
belo cenário que represente um campo de aviação, montado
com muito efeito, em perspectiva. De noite, sob um magní-
co céu estrelado, alguns elementos sintéticos: em terra tudo
em ponto pequeno, para dar a sensação do espaço in nito
com aquele céu semeado de estrelas; ao fundo, pequenina,
a casinha branca dos o ciais com as janelinhas iluminadas,
os aparelhos também pequeninos, dois ou três espalhados
aqui e ali, no campo; e uma grande sugestão de luz em
claro-escuro; e o roncar de um avião invisível, voando na

102

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
fi
noite serena. Pode-se deixar que o Doutor Hinkfuss tenha
este prazer, mesmo que na sala não que um único espec-
tador. Neste caso (que é de admitir, apesar de tudo), já não
haveria representação simultânea deste intermezzo no foyer
do teatro e no palco. Mas o mal seria facilmente remediável.
0 Doutor Hinkfuss, mesmomandando abrir o pano, vendo
que o seu jervor não provoca o efeito de reter na sala nem
esmo uma pequena parte do público, retirar-se-á para os
bastidores, um pouco contrariado; e desforrar-se-á dando
uma amostra dos seus talentos quando a representação no
foyer tiver terminado e os espectadores, chamados pelo som
da campainha, tiverem regressado à sala para tomarem os
seus lugares.
0 que importa sobretudo é que o público aguente estas
coisas que, se não são propriamente supér uas, são com
certeza só para enfeitar. Mas dado que há tantos sinais que
mostram que elas lhe dão tanto prazer, e que portanto, estes
enfeites são procurados com maior gula do que os saudáveis
pitéus, bom proveito lhe faça; o Doutor Hinkfuss é que tem
razão, e portanto apresenta-lhes, depois desta cena do cam-
po de aviação, outra cena, dizendo no entanto, claramente
e com a displicência de um grande senhor que se pode
permitir certos luxos, que, na realidade, se pode prescindir
da primeira, porque não é estritamente necessária. Ter-
-se-á perdido algum tempo para se obter um belo efeito;: dar-
-se-á a entender o contrário, que não se quer perder tempo
algum, e que tanto assim é, que se saltou uma cena que
podia ser omitida sem prejuízo. Nós também omitiremos
comentários que o Doutor Hink uss poderá ele próprio in-
ventar facilmente, as indicações aos maquinistas, aos elec-
tricistas e aos ajudantes de cena para a montagem deste
campo de aviação. Mal esteja o cenário montado, descerá
do palco para a sala, colocar-se-á no meio da coxia para

103

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fl
regular bem, com outras ordens oportunas, os feitos de
luzes, e quando tiver conseguido que eles estejam perfeitos,
voltará para o palco.)

O DOUTOR HINKFUSS
Não, não! Tirem tudo! Parem com esse ronco! Cortem!
Cortem! Estou a pensar que se pode passar sem esta cena.
Sim, o efeito é belo, mas com os meios que temos à noSsa
disposição, podíamos obter outros não menos belos, que -
zessem avançar mais e cazmente a acção. Felizmente
noite tenho toda a liberdade perante vós, e espero que vos
não desagrade ver como se põe de pé um espectáculo, não
só perante os vossos próprios olhos, mas também (porque
não?) com a vossa colaboração. O teatro, como vedes, mi-
nhas senhoras e meus senhores, é a boca escancarada de um
grande maquinismo que tem fome: uma fome que os senho-
res poetas..

S UM POETA NA PLATEIA

s Por favor não chame senhores aos poetas; os poetas não


são senhores!

O DOUTOR HINKFUSS

(Subitamente.,

Nem os críticos são, neste sentido, senhores; e no entanto


eu chamei-os assim, devido a uma certa afectação polémica
que, sem ofensa, creio que neste caso me pode ser consentida.
Uma fome, dizia eu, que os senhores poetas cometem o erro
de não saber saciar. Para esta máquina do teatro, como para
outras máquinas enormementee admiravelmente aumenta-
das e desenvolvidas, é deplorável que a fantasia dos... poetas,

104

Criado com Scanner Pro


fi
fi
tão atrasada, já não consiga encontrar um alimento adequado
e su ciente. Ninguém quer entender que o teatro é acima de
tudo espectáculo. Arte sim, mas vida também. Criação, sim,
s duradoira, não: momentânea. Um prodígio: é a forma
que se move! E o prodígio, minhas senhoras e meus senho-
res, não pode ser senão momentâneo. Num momento, criar
uma cena perante os vossos olhos: e dentro dela, outra, e
outra, e ainda outra. Um segundo de escuridão; uma manobra
rápida; um sugestivo jogo de luzes. E af tendes. Vou-vos
mostrar.

(Bate palmas e ordena:)

Escuro!

(Faz-se escuro, o pano fecha-se silenciosamente atrás das


costas do Doutor Hinkfuss. Acendem-se as luzes na sala,
enquanto as campainhas começam a chamar os espectado-
res para os seus lugares.
No caso de todo o público ter saido da sala e de o Doutor
Hinkfuss [se tiver falhado a simultaneidade da dupla repre-
sentação, no foyer e na sala] se ter visto obrigado a esperar
o regresso do público à sala para dar início à montagem da
primeira cena do campo de aviação e ao palavreado, é
evidente que o pano de boca não teria descido e que, depois
de ter dado ordem para o «escuro», ele continuaria perante
o público a dar as suas ordens para a continuação do es-
pectáculo.
nAqui prevê-se o caso de haver a simultaneidade, como
seria desejável; e dever-se-ia encontrar uma maneira para
a conseguir. Uma vez fechado, portanto, o pano, e acesas de
novo as luzes da sala, o Doutor Hinkfuss continuará a dizer:)

Esperemos até que todo o público tenha voltado. Devía-


mos mesmo dar tempo à Dona Inácia e às meninas La Croce

105

Criado com Scanner Pro


fi
para voltarem a casa, depois do teatro, acompanhadas pelos
seus jovens amigos o ciais.
obu
(Dirigindo-se ao Espectador das Primeiras Filas que agora
regressaàsala:)t o 9Up
E se entretanto o senho, meu intrépido interlocutor, qui-
sesse informar o público que aqui cou sentado, sobre se
alguma coisa de novo se passou lá fora, no foyer..

O ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS

E comigo que está a falar?

O DOUTOR HINKFUSS

Sim, sim, é consigo. Se quisesse ter essa amabilidade..

O ESPECTADOR DAS PRIMEIRAS FILAS

Não, nada de novo. Um derivativo com alguma graça.


Estiverama conversar. Soube-se entanto, que aquele ridículo
Senhor Palmiro, o «Sampognetta», está apaixonado pela
cantora do cabaret.

O DOUTORHINKFUSS o

Ah, sim; mas isso já se tinha percebido. De resto, tem


pouca importância.

O OVEM ESPECTADOR DA PLATEIA

Não, desculpe, também se percebeu que o o cial Rico


Verri.

106

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
O PRIMEIRO ACTOR

(Fazemos aparecer a cabeça pela abertura do pano de boca,


-do oiusn nascostasdoDoutorHinfuss.)o sbh ood
Chega, já chega dessa de o o cial! Daqui a pouco ainda
tiro estafarda! IN oig o og c 24ilhy 9evi0)

O DOUTOR HINKFUSS

(Voltando-se para o Primeiro Actor, que já retirou a


cabeça.)

Desculpe, mas porque é que intervém?


315

O PRIMEIRO ACTOR
DISbig o (Pondo outra vez a cabeça de fora.)
a)
Porque me irrita esse título e para pôr as coisas no seu
lugar: eu não sou o cial de carreira.

(Retira de novo a cabeça.)

O DOUTOR HINKFUSS
Já o tinha feito notar desde o princípio. Pronto.

(Voltando-se para o Jovem Espectador.)


Peço imensa desculpa! Dizia o senhor..

O JOVEM ESPECTADOR

(Intimidado e atrapalhado.)

Nada.. Dizia que... que lá fora, no foyer, este senhor Verri


mostrouo seu mau caráctere que... começa a estar mais que
farto do escândalo que fazem aquelas meninas e a... mãe
delas...

107

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fi
fi
O DOUTOR HINKFUSS

Sim, sim, está bem; mas isso também já se tinha perce-


bido desde o princípio. Mas de qualquer modo, muito obri-

gado.
ojOQiLs te
(Ove-se atrás do pano o piano a tocar a ária de Siebel no
Fausto de Gounod:

«Faites-lui mes aveux,


Portez-lui mes voeux...»)

Pronto: o piano. Já está tudo pronto.

(Afasta um pouco o pano e dá ordem para dentro do palco:)


O gongue! SO
(Quando toca o gongue volta para a sua cadeira na plateia
e o pano volta a abrir-se.)

108

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II
(Ao fundo, à direita, o esqueleto de uma parede
envidraçada, com uma porta ao meio de forma a que através
dela se possa entrever a antecâmara - a custo embora,
graças a umas sábias pinceladas de cor e a umas quantas
lâmpadas. A meio da cena, o esqueleto de outra parede
também com uma porta ao meio, que está aberta e liga a
sala da direita à sala de jantar. Esta é sumariamente indicada
por um aparador pretensiosoe uma mesa coberta com uma
colcha vermelha por cima da qual está suspenso um cande-
eiro neste momento apagado e cujo abajur em forma de sino
tem uma bela cor laranja e verde. Em cima do aparador,
entre outras coisas, haverá um candelabro de metal com
uma vela, uma caixa de fósforos e uma rolha de garrafa. Na
saleta, para além do piano e do canapé, haverá mesinhas e
cadeiras.
Quando o pano abre ver-se-á Pomàrici que continua a
sentado ao piano e Néné que dança a valsa com Sarelli
e Dorina com Nardi. Vieram do teatro. Dona Inácia que
subitamente foi acometida de uma violenta dor de dentes,
atou um lenço de seda preta dobrado em forma de faixa em
volta do rosto. Rico Verri correu para uma farmácia de
serviço à procura de um remédio que lha faça passar.
Mommina está sentada ao lado da mãe no canapé. Junto a

109

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ela está também Pometti. Totina está algures fora de cena
com Mangini.)

MOMMINA
(Para a mãe, enquanto Pomàrici toca e os dois pares con-
tinuam a valsar.)
Dói muito?

(E aproxima a sua mão da cara dela.)

DONA INÁCIA
Éde se car louca! Não me toques!

POMETTI
0 Verri foi a correr à farmácia: há-de estar aí de um
momento para o outro.

S sgo DONA INÁCIA


Srloy)
Não Ihe vão abrir a porta!... Não lhe vão abrir a porta!...

sh cuush
MOMMINA
Mas são obrigados a abrir. Farmácia de serviço!..

DONA INÁCIA Sb)


Sim! Como se tu não soubesses em que terra é que a gente
vive! Ai! Ai! Não me façam falar! É de se car louca! São
capazes de não lhe abrir se sabem que é para mim..aicdyy

POMETTI
Oh, vai ver como o Verri consegue que lhe abram a porta!
Capaz é ele de a arrombar!

110

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fi
fi
NÉNÉ
(Placidamente, continuando a dançar.)
A mamã pode estar sossegada, tudo se vai arranjar.

DORINA
I9inami (Mesmojogo.)u seo
Imagina que lhe não abrem a porta! Se Ihe der para isso,
ele é mais bruto do que os outros...

es oaIO9 DONAINÁCIA
Ah, não, não, o pobre rapaz, não digam isso. Ele é tão
delicado. Foi logo a correr!
Tts olmoxiob
2300y
2ET 2
MOMMINA
Também acho. E ele é que foi. Enquanto vocês conti-
nuavam a dançar. 91S

DONA INÁCIA
Deixa-os dançar, deixa-os dançar. Além do mais, quando
está toda a gente à minha volta a perguntar como é que eu
me sinto, a dor não há meio de passar.
113
utogonis/ eeeli (Para
Pometti.) b:omolesx
Ea raiva, a raiva que estaspessoas me metem no sangue
que é a causa de todos os meus males.

NÉNÉ
(Parando de dançare correndo para a mãe, radiante,
apropostaquelhe vaifazer.) ie
Mamā, e se rezasse uma Ave-Maria como da outra vez?

silShiod p oPOMETTI
Sim, sim! Bela ideia!

111

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NÉNÉ
Lembra-se que a dor passou quando a mamã estava a

rezar!TE 6Y52 o

POMETTI
Experimente, minha senhora, experimente!

DORINA
(Continuando a dançar.)
Sim, sim, eze, reze, mamā! Vai ver como passa!

NÉNÉ o ed
Sim, mas vocês deixem de dançar!

POMETTI
Pois sim. E tu também Pomàici, não toques mais!

NÉNÉ
A mamã vai rezar uma Ave-Maria como da outra vez.

POMÀRICI
(Levantando-se do piano e acorrendo,)
Excelente ideia! Vamos a ver se o milagre se vai repetir!

SARELLI b s suD
Em latim, Dona Inácia, reze em latim!

NARDI
Evidentemente! Faz mais efeito!

DONA INÁCIA
Não, não, deixem-me em paz. Que é que eu hei-de dizer
mais?

112

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NÉNÉ
Desculpa mas temos a prova da outra vez. Passou logo!

DORINA
As escuras! Às escuras! o1))
NÉNÉ
Recolhimento! Recolhimento! Pomàici, apague a luz!

POMÀRICI ET sesT
Mas onde é que está a Totina?

DORINA s e1
Anda por aí com o Mangini. Não se preocupe com a
Totina e apague a luz!

DONA INÁCIA
Não! Temos pelo menos de ter uma vela. E as mãos
postas. E a Totina que venha para aqui!

MOMMINA y &hRSip
(Chamando.)
Totina! Totina!

DORINA
A vela está ali!

NÉNÉ
Vai buscá-la! Eu vou buscara imagem da Nossa Senhora!
(Sai rapidamente pelo fundo enquanto Dorina vai à sala de
jantar com Nardi para buscar a vela que está em cimna do

113

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aparador. Antes de a acender, na escuridão, Nardi abraça
violentamente Dorina e dá-lhe um beijo na boca.)

DONA INÁCIA
(Grita para Néné que acaba de sair.)
Não, deixa! Não é preciso! Qual imagem! Podemos muito
bem passar sem ela!

POMÀRICI
Traga mas é a Totina para aqui!

DONA INÁCIA
Sim, sim, a Totina aqui! Imediatamente.!
bol
POMETTI
Uma mesinha para fazer de altar.
(E vai buscá-la.)

DORINA
(Volta com a vela acesa enquanto Pomàrici apaga a luz.)
Aqui está a vela!

Aqui em cima da mesa!


POMÀRICI
ie
NÉNÉ
(Entrando pelo fundo com a imagem de Nossa Senhora.)
E aqui está a Nossa Senhora!

POMÀRICI
oEaTotina?

114

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NÉNÉ
Já aí vem! Já aí vem! E não me fale mais da Totina!

DONA INÁCIA
Mas não se pode saber o que é que ela anda a fazer?

A NÉNÉ
Nada. Está a preparar uma surpresa. Vão ver.

(Depois, com um gesto convidando todos.)

Aqui atrás, aqui todos, numa roda. Recolha-se, mamã.

(Quadro. Na escuridão apenas atenuada pela luz vacilante


da vela, o Doutor Hinkfuss preparou um delicadíssimo efeito:
uma muito doce «iluminação de milagre» (luz psicológica),
verde, como se fosse a emanação da esperança em que o
milagre se cumpra. Tudo isto a partir do momento em que
Dona Inácia em frente de Nossa Senhora, que está colocada
com a vela em cima da mesinha, começa recitar, com as
mãos juntas e uma voz lenta e profunda, as palavras da
oração como se esperasse que depois de cada uma a dor

wile sz sCLeh Parasse.)


DONA INÁCIA
Ave Maria gratia plena, Dominus tecum..
(Bruscamente um trovão e a diabólica luz de um relâmpago
muito violento vêm perturbar tudo isto. Totina vestida de
homem - com o uniforme de Mangini - entra a cantar
seguida de Mangini que vestiu um longo roupão do Senhor
Palmiro. A trovoada transforma-se imediatamente na voz de
Totina que canta. Da mesma forma, o clarão vermelho é a
luz que Mangini lançou no salão ao entrar.)

115

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TOTINA
"Le parlate damor.. o cari or...
(Gritos nânimes de protesto. Muito alos.)

NÉNÉ
Calada,
estúpida! dh sbonz it cl/
MOMMINA
Estragou tudo!

TOTINA
(Espantada.) i
Que é?

Podias ter dito!


DORINA
A mamã estava a rezar a Ave-Maria!

TOTINA

NÉNÉ
.
Havia mesmo de imaginar que tu ias aparecer nesta altura!

TOTINA
Já estava vestida quando tu foste buscar a Nossa Senhora!

NÉNÉ
Pois então devias era ter adivinhado para que é que eu a
ia buscar!

DORINA
Pronto!Pronto!Queé quevamosfazer? y 3)

116

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fi
POMÀRICI
Recomeçamos! Temos de recomeçar..
ls ses533-341
DONA INÁCIA
(Estupefacta, na expectativa, como se já o milagre se esti-
vesse a realizar dentro da sua boca.)
Não.. esperem.. não sei...M

MOMMINA
(Feliz.)
Passou?bsisq roi 8iob T9p 2oßnsupsib s
DONA INÁCIA
ioss (Mesmojogoqueacima.)sy niz mi
Não sei... foi o diabo... ou foi Nossa Senhora..
(Uma nova dor faz crisparo seu rosto.)
Não, não.. não... ai... ai.. já voltou.. e isto faz-me tanto
mal... Ai!... Meu Deus, que espasmo..
(De repente dominando-se e batendo com o pé no chão or-
dena a si mesma:)
Não! Não me vou deixar vencer pela dor! Cantem, can-
tem, minhas lhas! Cantem, meus amigos! Façam-me esse
prazer! Cantem.. cantem... Ai de mim se me deixo ir abaixo
comesta parvoíce de uma dor de dentes! Vá, vá, Mommina!...
«Stride la vampa...
20016i 20
MOMMINA
(Enquanto todos aplaudem e gritam.)
Sim, sim, mamã! Bela ideia! O coro do Trovador! Não,
mamā,
nãome
apetece...
nāo!i 9 ca yi
117

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fi
DONA INÁCIA
(Suplicante e furiosa.)
Dá-me essa alegria, Mommina! E para a minha dor!

MOMMINA
Mas eu já disse que não me apetece cantar!) 393qa7

NÉNÉ o g.oRA
Oh! Ë só para a contentar! Uma vez!

TOTINA
Ela diz que não se quer deixar abater pela dor!tl

SARELLI e NARDI
Sim, sim, vamos... Faça isso por ela, Mommina!

DORINA
Oh, meu Deus, como te fazes rogada!

NÉNÉ
Imaginas se calhar que a gente não sabe porque é que tu
não queres cantar?

POMÀRICI ) iil
Não, não, a menina Mommina vai cantar!isD
i .
SARELLI
Se é por causa do Verri, não se preocupe. Nós tratamos
dele.

Olhe que quando se canta, os males se espantam..TLt!

118

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DONA INÁCIA
Sim, simcanta,cantapara a mama!té to oiel
POMÀRICI
Muita coragem tem a nossa Generala!

DONA INÁCIA
Tu, Totina: Manrico, €?

TOTINA
Pois, já estou vestida até.

DONA INÁCIA
Ponham-Ihe uns bigodes, pintem-me uns bigodes a essa
rapariga!

MANGINI gols .sqollA


Sim, sim, eu ponho.

POMÀRICI
Não. Se me dás licença sou eu quem põe.

Vá, Pomàrici, tem aqui uma rolha queimada. Eu vou


buscar um chapéu de plumas. E é preciso um lenço amarelo
e um xaile vermelho para a Açucena!
(Sai rapidamente pelo fundo e volta pouco depois com as
coisas que disse.)

POMÀRICI
(Para Totina enquanto lhe vai pintando uns bigodes.)
Vá, é só um bocadinho, quieta, se faz favor.

119

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DONA INÁCIA
Muitobem.Mommina:Acucena!.. sED iie mi2

MOMMINA
(Agora quase só para si própria, já sem forças para resistir )
Não, eu não..
ADAKI AMO
DONAINÁCIAnt so0ol u
...Totina: Manrico..

SARELLI bite9yOT29S 2io


...e nós, o coro dos ciganos!
AVI AMOU
b eobogrl2n DONA INÁCIA ns srilmssro9
(Trauteando o coro.) ouasssgitsqo
"All'opra, all'opra! Dágli, Martella.,
Chi del gitano la vita abbella?"

(Cantando ela faz esta pergunta a alguns deles que olham


para ela sem perceberem se é a sério se a brincar. Dirigin-
do-se então aos outros, ela pergunta:)9e
«Chi del gitano la vita abbella?»

(Mas também estes a olham como os primeiros. Ela já não


aguenta com as dores e furiosa, para obter uma resposta
pergunta a todos de novo:)oy sLk AE
«Chi del gitano la vita abbella?» oi19t ind)
TODOS

(Compreenderampor me respondem:)
«La zingareeeeeeeee....eeella!>»rbeds s V
120

Criado com Scanner Pro


fi
DONA INÁCIA
oi (Respirapor m. Foi nalmente
compreendida.)
M
Ahhhh!
(E depois para si própria torcendo-se de dor, enquanto os
outros mantêm a nota.)
Apre! Apre! Apre! Já não posso mais. Vá, força,
lhos! Vá, cantem todos..

POMÀRICI
Mas não, esperem, meu Deus, esperem que eu acabe!

DORINA eot oi ibeV


Mais? Basta assim!

SARELLI
Está lindamente, assim!

NÉNÉ
Um amor! Agora o chapéu! O chapéu!
(Dá-lho e volta-se para Mommina.)
E tu, nada de tas! O lenço na cabeça!

(Para Sarelli.)
Ate-Iho ao pescoço!
(Sarelli obedece.)
Eo xaile aos ombros, assim! SE

DORINA
(Dando um encontrão a Mommina que continua quieta.)

Vá,
mexe-te! o is BH2B osestsTO2A

121

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
POMÀRICI4
Mas temos de ter uma coisa qualquer para fazer barulho!

NÉNÉ
20
Já sei! As tacinhas de metal para lavar os dedos!
(Vai a corer buscá-las ao aparador da sala de jantar, volta
edistribui-as
portodos.)rusoV olt
POMÀRICI

(Juntoao piano.)t9423 .081 sM


Vá! Atenão. Vamos atacar da capo!
<Vedi le fosche notturne spoglie!>»
Põe-se a tocar o coro dos ciganos com que abre o segundo
acto do Trovador.)

OCORO 919nsbnii stei


(Atacando:)
«Vedi le fosche notturne spoglie
de cieli aveste l'immensa volta:
sembra una vedova che al n si toglie
i bruni panni ond'era involta.»
(Batendo as tacinhas.)
«All'opra, all'opra! Dágli, Martella!
Chi del gitano la vita abbella?»>
(Três vezes.)
«La zingarella!» do 208 5lisx o 3

POMÅRICI
(Para
Mommina.)39 sL ohn()
Agora atenção! Ë a sua vez! E vocês todos à volta dela!

122

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fi
ovony sot MOMMINAo soza S
«Stride la vampa! La folla indomita
Corre a quel foco, lieta in semblanza!
(:92 Urli digiojaintorno
echeggiano:
cinta di sogherri donna s'avanza.»

(Enquanto os outros cantam, primeiro em coro e agora


Mommina em solo, Dona Inácia está sentada numa cadeira
agitando-se como uma ursa. Bate ora com um ora com outro
pé e murmura ritmicamente como se se tratasse de uma
litania para o repouso da sua alma:)

DONA INÁCIA
Ah, meu Deus, estou a morrer! Meu Deus, que eu morro!
Éo castigo dos meus pecados! Meu Deus, meu Deus, o que
eu sofro! Força, meu Deus, dai-me o golpe! E que seja só
eu a sofrer! Só eu a expiar a boa vida, meu Deus, que as
minhas lhas levam... Canten, cantem, sim, cantem, minhas
queridas... que esta dor, que é o castigo dos meus pecados,
só me venha torturar a mim! Quero que sejam felizes e
alegres, alegres, alegres... Vá, vamos, depressa.. «Si, dágli,
martella»... contra mim própria.. vá, vamos, depressa... Ata-
ca-me a mim apenas, Deus meu, e deixa as minhas lhas
divertirem-se... Ah, meu Deus, a felicidade que eu nunca
pude ter... nunca, nunca, meu Deus, nunca, nunca... quero
que as minhas lhas a tenham... Têm de ser felizes... Têm
de ser. Eu expio por elas, expio por elas, meu Deus, mesmo
que elas faltem aos vossos Santos Mandamentos...

(Entra com os outros com as lágrimas a rolarem-lhe pela


cara.)
«La zingareee...cella!» Silêncio! Agora canta a Mommina!
Uma voz de eleição! <Stride». está na minha boca, esta
chama.. igual, sim, «in semblanza... in semblanza».. ab

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Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
(Neste instante Rico Verri entra pelo fundo. Primeiro pára
hesitante como se o espanto tivesse cavado um abismo emfrente
da sua cólera. Depois, atira-se de um salto contra Pomàrici,
arranca-o ao banquinho do piano e atira-o ao chão griando:)

VERRI
Ah, meu Deus... É assim que trocam de mim?

(Esta entrada mergulha primeiro todas as pessoas numa


espécie de espanto que se exprime numas quantas exclama-
ções soltas e incongruentes.)

NÉNÉ
Mas vejam só estes modos!

DORINA
Está louco?!
(Depois é o tumulto, quando Pomàrici que se levantou se
atira para Verri, enquanto os outros se interpõem para os
separare os reter. Falam todos ao mesmo tempo na maior
das desordens.)

POMÀRICI
Terás de me responder por isto que zeste!

VERRI
(Afastando-o
violentamente.)oetlst al
Ainda não acabei! 2AO 20 )
SARELLI e NARDI
Nós também estamos aqui! Terás de nos dar uma resposta
a todos!

124

Criado com Scanner Pro


fi
AKD VERRI
Pois sim, sim, a todos! Hei-de-vos partir o focinho a
todos, por muitos que sejam..

TOTINA
Quem é que o fez patrão desta casa?

VERRI
Mandaram-me buscar um remédio..

DONA INÁCIA
Um remédio... e depois?

VERRI
(ApontandoparaMommina)
..e venho encontrá-la mascarada desta maneira!V
o is
DONA INÁCIA
Rua! Imediatamente para fora da minha casa!

0
Eu não queria! Eu não queria! Disse a todos que não
queria!

ii biH DORINA ntusu ios


Agora só faltava esta, francamente, não se pode mais!
Esta estúpida a pedir desculpa! Ainda por cima..

NÉNÉ S'orno
Aproveita-se de não termos enm casa um homem que o
escorraçasse
apontapéscomomerece!.. d sigo A

125

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fi
DONA INÁCIA hmnera
otlal oWag o (Para
Néné.)
Vai chamar o teu pai! Imediatamente! Que saia da cama
e que venha aqui imediatamente!

Ces SARELLIssl o sup3mou


Se é só isso a gente é bem capaz de o pôr na rua!

o NENE sr-ths
(Corre a chamar o pai.)
Papá! Papá!
(Sai) b s..oiborrot nU

VERRI
b (Para Sarelli)o)
Vocês? Bem gostava de vos ver! Vá, experimentem,
ponham-me na rua.
(Para Néné que sai a correr.)
Chama, chama o teu pai, vá, vai buscar o teu pai: estou
pronto a responder ao chefe da família por tudo o que faço.
Quero é que as meninas sejam respeitadas por todos.

Isiroap
DONA INÁCIA
Pois quem foi que Ihe encomendou a missão? Como é que
Ihe deu para agora pretender isso?

VERRI3l Tibsq sbiqutzo si2d

Como?

o Sp uosl (Apontapara
Mommina)tiovogA
A menina bemsabe. Gilos SROQ s 9csN

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MOMMINA
Mas não é assim, pela violência! lomins
VERRI
Ah, eu é que sou violento? Não foram eles que zerarm
a violência toda?
DONA INÁCIA
obu Repito que nada tenho a ver com isso. A porta está ali!

Rua!

VERRI
Não. Isso não me pode a senhora dizer!

DONA INÁCIA
A minha lha também Iho vai dizer. E além do mais
quem manda em minha casa sou eu!11D10'7 ER .0S

DORINA
i Nóstodas
dizemos!
VERRI
Isso não me chega! Se a menina está do meu lado... Eu
aqui souo único que tem intenções honestas! 3

SARELLI
Honestas!.. Mas que é que... estão a ouvir?

o NARDI oV
Aqui ninguém está para fazer mal! onsOsqO

At VERRI
A menina sabe!

127

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fi
fi
POMÀRICI
Fanfarrão!

VERRI
ms Fanfarrões são vocês! roloresio29upàu9,dA
(Ameaçandocom uma cadeira.) sosloi! D
E não se metam mas é mais nisto ou ainda acaba tudo
muito mal!

POMETTI
(Para os seus colegas.)
2l os/
Vá, vá, vamos embora!

DORINA
eiBin ob mlt
Não, não. Porquê?e

TOTINA
Não nos vão deixar sozinhas! Ainda não é propriamente
ele quem manda aqui dentro!

VERRI
E amanhã vê lá se não dás parte de doente, que a gente
ainda se vai encontrar...

06 NENE
(Volta numa grande a ição.)
O papá não está em casa.
naugitt tupA
DONA INÁCIA
Não está em casa?

128

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fl
DORINA
O quê?.. Ainda não voltou?

Não, não voltou.

MOMMINA
E onde estará?

DONA INÁCIA
Ainda na rua a estas horas? 157

A SARELLI
Deve ter voltado para o cabaret!

..SotmS
POMÀRICI

Minha senhora, o melhor é nós imo-nos embora..

DONA INÁCIA
steoi bsusb
Não, não, esperem..

MANGINI
Claro, esperem aí! Eu não posso sair nesta gura, apesar
de tudo!

TOTINA
Sim! Desculpem-me. Não me lembrava que estava com
0 seu unifome. Vou já tirá-lo.

(Sairapidamente.)sY aesi o1

129

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fi
POMÀRICI
(ParaMangini.) sbiA up O
Espera que a menina Totina te devolva o unifome, Nós

vamo-nos embora...
DONA INÁCIA
Mas desculpem-me, não vejo bem porquê...
SSS29obno
u
VERRI
Eles lá vêem, elas lá vêem... se a senhora não quer mesmo

ver...
DONA INÁCIA
Repito mais uma vez que é o senhor quem tem de se ir

embora...
STorse sriniM
o VERRI
0G
Não, minha senhora. São eles! Porque em frente da serie-
dade das minhas intenções eles sabem que agora já aqui não
há lugar para as suas estúpidas brincadeiras.Osn o8

POMÀRICI
Sim, amanhã é que vais ver se andamos a brincar!
tou:
VERRI
Quem me dera ser já amanhã!

MOMMINA/ oh B920
Por favor, Verri, por favor!..

130

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VERRI
(A ito.,)
Não tem de suplicar a ninguém...

MOMMINA
Não estou a suplicar! Quero é dizer que a culpa é minha,
que fui eu quem cedi. Não o devia ter feito, eu sabia que
você...
NARDI
(Vivamente.)
..sabia que, como digno siciliano, ele seria incapaz de
compreender a brincadeira!...

SARELLI w s oino
Mas agora nós também não somos!

VERRIsi
(Para Mommina-Primeira Actriz, saindo espontaneamente
do papel com o mau humor de um actor a quem obrigaram
a dizer o que ele não queria.)
Bravo! Está satisfeita?

MOMMINA
(Como Primeira Actriz, asSustada.)
Porquė?

VERRI
(Mesmo jogo que acima.)
Por ter dito tudo aquilo que não devia dizer! Que € que
Ihe para me vir acusar dessa maneira no m de contas?

131

Criado com Scanner Pro


fi
fl
MOMMINA
(Mesmo jogo.)
Foi espontâneo..

VERRI A
Eo que aconteceé que ao fazer isto permitiu quefossem
eles os últimos a falar. Ao passo que era eu quem devia
a última palavra e gritá-la a todos eles que, por muitos que
sejam, terão mesmo de se haver comigo!

MANGINI
E eu também,nestasroupas? GHiO3 sp stdhe..
(Pondo-se comicamente em guarda.)
Pronto! En garde! 90

NÉNÉ e DORINA
(Rindo e aplaudindo.)
Muito bem, bravo!

VERRI
(Mesmo jogo que acima, indignado.) lovesa
Quê? Bravo? Ë absurdo! E assim que se estraga a cena!
Ea gente nunca mais chega ao m!

O DOUTOR HINKFUSS Caupo9


(Saltando da plateia.)
Mas não, porquê? la tudo tão bem... Vá, continuem, con-
tinuem...
(Começa a ouvir-se bater nos bastidores como se fosse à
isb il oncuportadarua) uvstnSIC,Lb ril

132

Criado com Scanner Pro


fi
MANGINI
(Desculpando-se.)
ii
Estou em roupão. E natural que me apeteça brincar!

Mas é claro!

VERRI
(Desdenhoso, para Mangini.)
Vai mas é vender botões!...E não venhas para aqui repre-
sentar!

MOMMINA
Se o Senho.. obul uSiles sles sp..
(Dirá o nome do Primeiro Actor.)
quer fazer o seu papel sozinho e que a gente que sem fazer
nada, entăo que o declame e a gente vai-se masé embora!

LNk VERRI sonik


Eu é que me vou embora! Os outros querem fazer tudo
à sua vontade e como muito bem Ihes apetece, sem eira nem
beira!

DONA INÁCIA
Mas, Deus meu, veio tão bem e com tanta oportunidade
a frase da Mommina, «a culpa é minha, fui eu que cedi!»

POMÀRICI
(Para Verri.)
i
Nós também estamos aqui!
i ,wi3t
133

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fi
SARELLI
Também temos de viver os nossos papéis!

NARDI
Quer brilhar sozinho! Ora cada um deve fazer o que lhe

compete!
O DOUTOR HINKFUSS

(Gritando.))
(G
Basta! Basta! Continuem com a cena! Parece-me bemé

que é o Senhor...
(Diz o nome do Primeiro Actor.)

...quem está a estragar tudo!

VERRI
Não, não. Só um instante! Não sou eu. Eu queria que
falasse quem tem de falar e que me dessem a deixa no tom.

(Alude à Primeira Actriz.)


Há três horas que eu estou para aqui a repetir «a menina
sabe, a menina sabe» e a senhora não se lembra de palavra
nenhuma para pegar nisto. Sempre com esses ares de vítima!

MOMMINA

ohabiuis (Exasperada,
quasea chorar.)sll sl
Mas eu sou, eu sou a vítima! Vítima das minhas imas,
desta casa, deles, vítima de todos!

(Nesta altưa, por meio dos actores que, voltados para o


Doutor Hinkfuss, conversam à boca de cena, surge o 'e
Actor Centro, ou seja «Sampognetta», com um rosto de mont

134

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Com as mãos ensanguentadas na barriga ferida por uma
faca e com o casaco e as calças cheias de sangue.)

SAMPOGNETTA
Mas no m de contas, senhor encenador, eu bato à porta,
bato, assim todo ensanguentado, o que não é nada fácil para
um actor do meu naipe e ninguém me manda entrar. Entro
eé esta barafunda. Os actores parados, estragado o efeito que
eu devia tirar da minha entrada que além de moribundo e
ensanguentado também estou embriagado. Pergunto-lhe.
pergunto-lhe a si como é que tudo isto agora se vai compor?

O DOUTOR HINKFUSS
Mas é já! Apoie-se na sua cantora: onde é que ela está?

A CANTORA
Aqui.

UM DOS CLIENTES DO CABARET


Eu também vim para o ajudar..

O DOUTOR HINKFUSS
Está bem, segure-o!

SAMPOGNETTA
Eu tinha de subir a escada trazido ao colo destes dois.

O DOUTOR HINKFUSS
Imagine que isso já está feito, por amor de Deus. E os
senhores, para os seus lugares. Força com o desespero! Como
é que é possível afogarem-se assim todos dentro de um copo
de água?!

(Voltapara a suacadeira,resmungando.)o

135

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fi
Por umas tricas todas, sem razão nenhuma!
20)
(Recomeçam a cena. Entra o Senhor Palmiro do fundo
apoiado na Cantorae no Cliente do Cabaret. Assim que o
vêem, a mulher e as lhas começam a gritar. Mas o Velho
Actor Centro está alheado, deixa-as manifestarem-se
bocado. Tem nos lábios um sorriso de indulgência e o ar de
quem diz «Quando acabarem, falo eu». As angustiadas
perguntas que lhe fazem ele deixa que respondam a Cantora
o Cliente; prefere estar calado à espera da verdadeira
resposta que guarda para o m. Os outros, ao vê-lo com
aquele ar irónico não sabem bem o que se está a passar e
passam a representar os seus papéis o melhor que podem.)
ceiAAH AOTUOT O
Casstssp 5sr DONA INACIA sto à2sl4
Meu Deus, que foi?
VAD A

Papá! Papá!
MOMMINA
p
NÉNÉ a
Ferido?

VERRI
Quem é que o feriu?

asb zsb clo os DORINA LLe sbsrdsitu


Onde é que foi ferido? Onde?

UM DOSCLIENTESDOCABARETha
Nabarriga! 2601ih 0S .

SARELLI
Comuma faca?t 3,
136

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fi
fi
A CANTORA
Desventrado! Perdeuo sangue todo no caminho!

NARDI D0
Masqueméquefoi? Quem?si eotob S 2u)

POMETTIenh)
No cabaret?

MANGINI
Deitem-no, por amor de Deus!

POMÀRICI
Aqui, no divā.

DONA INÁCIA
(Enguanto a Cantora e o Cliente tentam deitar o Senhor
Palmiro no canapé.)
Tinha então voltado para o cabaret?

NÉNÉ
Mas não se ponha agora a pensar no cabaret, mamā! Não
vêcomoeleestá?os sits setoilo sos-LIOgEi..
DONA INÁCIA
Ai, vejo-a entrar pela minha casa... e olha, olha para ele,
olha como ele se agarra a ela!.. Ouem €? 9 ,02

T3R A CANTORA
Uma mulher, minha senhora, uma mulher que tem coração!

UM DOS CLIENTES DO CABARET


Pense, minha senhora, que o seu marido está aqui a morrer!

137

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MOMMINA
Mas como foi? Conmo é que foi?

o CLIENTE DOCABARET
Quis ir em defesa dela.." o1 up
(Aponta para a Cantora.)

DONA INÁCIA
(Com uma risada.)
0E
...está claro... sempre cavalheiro..
DISSAMO
o CLIENTEDOCABARETibon up.
(Sem parar.)
..armou-se uma pancadaria...

A CANTORA
...e aquele assassino...

OMJBINEIT 1OCLIENTE DOCABARET


..largou-aa ela evoltou-secontraele..e sls S

,ols sSg srllo ,sdlo


Ouça só, e prenderam-no? E18:8 38 ls oR0
O CLIENTE DO CABARET
Não, fugiu. A ameaçar toda a gente de faca na .
T3AAAL) o NARDI 200
i Masaomenos
sabe-se
quem é?itz bhn

138

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O CLIENTE DO CABARET
(Apontandoa
Ela sabe muito bem..
Cantora.)s M
SARELLI
Era o amante..? z9v o6 3Sado o

A CANTORA
O carrasco, o meu carrasco!

o CLIENTE DOCABARET
Queria fazer uma carni cina!
lovibo
otall

NÉNÉ

Temosdemandarchamarum médico já!p en0


(Surge Totina, descomposta.)

Que €? Que se passa? Oh, meu Deus, o papá! Quem é que


o feriu?

MOMMINA etKi h b
Fale, fale, diga qualquer coisa, papá!

DORINAYAtnallswe v
Porque é que ele está a olhar assim?

NÉNÉ
Olhae sorri. t so)olrao i91

139

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fi
TOTINA LDo
Mas onde é que foi? Como é que foi?

DONA INÁCIA
(Para Totina.)
No cabaret. Não vês?

(Aponta para a cantora.)


Claro!

NÉNÉ
Um médico! Um médico! Não o vamos deixar morrer
assim!...

MOMMINA
Quem é que vai a correr chamar?
b otI
MANGINI
la eu se não estivesse assim..

(Mostra o roupão.)

TOTINA
Ah, vá, vá buscar o seu uniforme. Está ali!

bG3 NÉNÉ p suibslsiois?


Vá, Sarelli, por favor!
O
h SARELLI slbwup p
Sim, sim, eu vou, eu vou!

(SaipelofundocomMangini.)o eil

140

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VERRI
Mas porque é que ele não diz nada?

(Alude ao Senhor
k
Palmiro.)) shs
Devia dizer uma coisa qualque..

TOTINA
Papá! Papá!

NÉNÉ
Continua a olhar e a sorrir.

MOMMINA
0 s
Estamos aqui todas à sua volta, papá!

VERRI
Será possível que queira morrer sem dizer nada?

POMÀRICI
Estranho.. Para ali está, nem morto nem vivo. De que é
que estará à espera?

NARDI
L
Não sei que dizer mais. O Sarelli foi a correr buscar um
médico, ainda bem, e o Mangini foi buscar o uniforme.

DONA INÁCIA
(Para o Marido.)
Fala! Fala! Não sabes dizer nada? Se tivesses obedecido.
se tivesses pensado que tinhas quatro lhas a quem agora até
pode vir a faltar o pão.

141

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fi
NÉNÉ

(Depois de ter esperado um pouco com todos.)M


Nada. Olhem para ele. A sorrir.

MOMMINA
Não é natural.

DORINA
Não pode sorrir assim, papá, a olhar para nós. Nós tam-
bém estamos aqui!

O CLIENTE DO CABARET
ups 46HSIe
Se calhar é porque bebeu um bocado..

s oN MOMMINA up loreeonis2
Não é natural. Quando se bebe, ou dá para a tristeza e se
ca calado ou então dá para rir e falar sem parar. Portanto,
ele não devia estar a rir-se..

DONA INÁCIA

Poder-se-á ao menos saber porque é que está a rir dessa

(Ficam mais uma vez todos suspensos numa breve pausa


de espera.)

SAMPOGNETTAoyutelsl
S E porque me alegro ao ver como todos vocês têm mais
talento do que eu.

142

Criado com Scanner Pro


fi
VERRI
(Enquanto os outros se olham nos olhos, paralisados no seu
próprio jogo.)
Mas que diz ele? 3DOA2
SAMPOGNETTA
(Erguendo-se e sentando-se no canapé.)

Digo que eu, desta maneira, sem saber comoé que entrei
em casa se ninguém apareceu para me abrir depois de ter
estado tanto tempo a bater à porta...

O DOUTOR HINKFUSS
(Levantando-se da cadeira, admiradíssimo.)
Outra vez? Do princípio?

SAMPOGNETTA
..não consigo, senhor encenador; dá-me vontade de rir, ao
ver como todos têm tanto talento, e não consigo morrer, A
criada.
(Olha em redor.)
...não está? não a vejo... devia correr a anunciar... «Oh, meu
Deus, oh, meu Deus, trazem o patrão, está ferido!...

O DOUTOR HINKFUSS
Mas que importância é que isso tem agora? Não se tinha
já visto que o senhor já tinha entrado em casa?

SAMPOGNETTA
E agora peço desculpa, mas tanto me faz que me dệem
por morto e que eu já não fale mais! pon
143

Criado com Scanner Pro


O DOUTOR HINKFUSS
Não senhor. O senhor tem de falar, fazer a sua cena.
morrer!
SAMPOGNETTA i S
Pois bem, aqui tem a sua cena!

t (Atira-se para o canapé.)

Já morri!0 19
191st ogol O DOUTOR HINKFUSS
Mas nãoé assim!

SAMPOGNETTA
(Levantando-se e avançando para a boca de cena.)
Caro senhor encenador, venha aqui e acabeo senhorde
me matar! Que quer que eu lIhe diga? Repito-Ihe que desta
maneira, eu por mim não consigo, não consigo morrer.
Desculpe mas não sou nenhum harmónio que abre e encolhe
e assim que Ihe tocam nos botões lá despeja a musicata...

O DOUTOR HINKFUSS
Mas os seus colegas...

SAMPOGNETTA
(Rápido.)
...têm mais talento do que eu. Já o disse e muito me alegro.
Eu não posso. Para mim a entrada era tudo. O senhor quiš
saltar por cima dela... Precisava para me compenetrardaque-
le grito da criada. Ea Morte devia entrar comigo, surgiraqui
no meio da desavergonhada barafunda desta minhacasa: 2
Morte bêbeda como tínhamos combinado, bêbeda de t
vinho que se tinha tornado sangue. E devia falar, sim, ben

144

Criado com Scanner Pro


sei; começar eu a falar perante o horror dos outros... eu.
recebendo a coragem do vinho e do sangue, agarrado a
mulher...

(Puxa a Cantora para si e agarra-se a ela com um braço.)

..assim.. e dizer palavras insensatas, sem consequência e


terríveis para esta mulher, para as minhas lhas e ainda para
estes rapazes a quem devia mostrar que, se z o papel do
imbecil, foi porque eles foram mesquinhos. Mesquinha
mulher, mesquinhas lhas, mesquinhos amigos. E eu não
sou imbecil, não. Eu sou o único bom. E eles medíocres. Eu
sou o único inteligente. Eles estúpidos. Eu, na minha inge-
nuidade. E eles na sua perversa bestialidade. Sim, sim..

(Irrita-se, como se alguém o estivesse a contrariar.)e

..inteligente, inteligente como são inteligentes as crianças


nem todas, só aquelas que crescem tristes no meio da bes-
tialidade dos grandes. Mas devia dizer todas estas coisas
bêbedo, num delírio. E passar as mãos ensanguentadas pela
cara...assim.. e sujá-las desangue.. 9 .(Bq -sqs
sh so (Perguntaaosoutros.)
..está suja?..
(E como eles fazem sinal que sim.)
...ainda bem.
(E recomeça:)
..e aterrorizar-vos e fazer-vos chorar... mas chorar de verda-
de... com um assobio que eu já nem sei fazer, e era pôr os
lábios assim...
(Tenta assobiar mas não consegue: fhhh, fhhh.)
.para dar o meu último assobio... e depois sim..
(Chama o Cliente.)
..chega-te cá...

145

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
(Agara-se-lhe com o outro braço.)b
..assim... no meio de vocês os dois... mas mais chegado a ti.
minha bela, inclinar a cabeça.. como os passarinhos... e
morrer.
(Inclina a cabeça no peito da Cantora. Deixa cair os braços.
Cai por terra, morto.)

o CANTORA
A
Meu Deus!

(Tenta levantá-lo, mas não consegue.)

Morreu! Moreu!

MOMMINA
(Atirando-se para ele.)

Papá, papá, meu paizinho, papá!

(Começa a chorar de verdade. Este assomo de verdadeira


comoção na Primeira Actriz provoca a comoção tambémem
todas as outras actrizes que começam a chorar com toda
a sinceridade. E o Doutor Hinkfuss começa nessa altura
a gritar:)

O DOUTOR HINKFUSS

Muito bem! Fim da cena! Fim da cena! Escuro!

(Escuro.)
Todos embora. As quatro imās e a mãe em volta damesa
da sala de jantar... seis dias depois... a sala na escuridão.. so
a lâmpada da sala de jantar.

146

Criado com Scanner Pro


MOMMINA
(Na escuridão.)
Mas, senhor encenador, temos de nos ir vestir de preto.

sn sls O DOUTORHINKFUSS
Sim, sim. De preto. O pano deve ter caído depois da
morte. Não importa. Vão vestir-se de preto. E o pano que
desça. Luzes na sala!

(Cai o pano. Acende-se a luz da sala. O Doutor Hinkfuss


up SOrri,
contraído.)
B O efeito perdeu-se em parte. Mas prometo que amanhã à
noite vai resultar totalmente. Acontece na vida também que
um efeito preparado diligentemente e com o qual contáva-
mos muito falha na altura própria, e seguem-se, naturalmen-
te, as reprimendas à mulher e às lhas: «deviam ter feito
assim» e «deviam ter dito isto». E claro que aqui era um caso
de morte. Pena que o meu talentoso..

slat A (Diráo nomedoActor Centro.)o


..tenha visto a sua entrada assim estragada. Mas o actor é um
actor com recursos: amanhã à noite desempenhará esta cena
à maravilha. Cena capital, meus senhores, pelas consegquências
que tem... Fui eu quem a descobriu. Não está na novela. E
tenho também a certeza de que nunca o autor a teria metido,
nem que fosse por um escrúpulo que eu não tenhoo mais
pequeno motivo para respeitar: o de não con rmar a crença
tão difundida de na Sicília se fazer um uso abusivo da faca.
Se Ihe tivesse vindo à ideia fazer morrer a personagem, tê-
-la-ia talvez feito morrer de uma síncope ou de um qualquer
acidente. Mas podeis ver o efeito teatral que consegue uma
morte como eu a imaginei com o vinho e o sangue e um
braçoem cima daquela cantora. A personagem tem de morrer.

147

Criado com Scanner Pro


fi
fi
A família, devido a esta morte, afunda-se na miséria.Sem
estas condições não me parece natural que a lhaMommina
consentisse em casar-se com Rico Verri, esseenergúmeno,
e assim resistisse às pressões contrárias da mãæ e das imās,
as quais já conseguiram obter informações nacidadevizinha,
nas costas meridionais da Ilha, e saber que ele na verdadeé
lho de família abastada, mas que o seu pai tem na tera
fama de usurário e de homem tão ciumento, que empoucos
anos conseguiu que a mulher morresse de tristeza esolidão.
Como é que esta abençoada rapariga não vê a sorte que
espera? As condições, as condições que não terá aceitedo
seu pai usurário e ciumento Rico Veri que se casacomela
por uma espécie de ponto de honra que tem emdefendê-la
contra os seus colegas o ciais? As condições que eleterá
estabelecido consigo próprio não só para se compensardo
sacrifício que para ele é toda esta história, como paraenfren-
tar frontalmente os seus compatriotas que bem conhecema
fama que rodeia a família da sua mulher? Quem sabecom0
ele irá fazer-Ihe pagar os prazeres que lhe terá podido dara
vida que até agora viveu com a sua mãe e as suastrês inās!
Conselhos que, irão ver, tếm a sua penitência. A minha
queridíssima primeira actriz, a menina...
(Diz o nome da Primeira Actriz.)
...não é exactamente do meu parecer. Mommina para ela é
a mais sensata das quatro imās, a sacri cada, a quesempre
arranjou os divertimentos para as outras e que nunca os
gozou a não ser a custo de fadigas, de vigílias e pensam
atormentados; sobre ela cai todo o peso da família; e ela
percebe muitas coisas e antes do mais que os anospassam;
e que o pai, com toda a desordem da casa, nãoconseguiu
nunca amealhar nada; que nenhum dos rapazes da
interessará alguma vez por qualquer delas; enquantoque
Verri, ah, Verri terá por ela não um mas três dueloscontra

148

Criado com Scanner Pro


fi
fi
fi
fi
aqueles o ciais que logo ao primeiro golpe fogem todos; a
paixão dos melodramas que, no fundo, ela compartilha
três imãs: Raul, Hernani, Don Alvaro...

né togliermipotró
l'immagin sua dal cuor..

Ou seja, ela não resiste e aceita o casamento.


e
)
d

(0 Doutor Hinkfuss falou. Falou para dar tempo às actrizes


de se vestirem de preto. Já não sabe o que dizer. Já não
aguenta mais, afasta um pouco o pano de boca e grita para
dentro:)
Mas entāo esse gongue? Será possível que as senhoras
actrizesaindanãoestejamprontas? iavi20qi 3 ieeA
(E continua ngindo que está a falar com alguém atrás do
pano.)
Não? Que é? Que se passa? Já não querem representar
mais? Que quer isso dizer? Com o público todo à espera? Vá,
venha, venha...

(Surge o Secretário do Doutor Hinkfuss, embaraçado e a ito.)

O SECRETÁRIO DO DOUTOR HINKFUSS

Dizem...

t DOUTOR
O HINKFUSSl
Que é que elas dizem?

O PRIMEIRO ACTOR rTil


(Por trás do pano, para o Secretário.)
Fala, vá, em voz alta, grita as nossas razões!

149

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fi
fl
fi
O DOUTOR HINKFUSS
Quế? Outra vez o Senhor...

(Dirá o nome do Primeiro Actor. Mas saem de trás do pano


também os outros actores e actrizes. Sai primeiro a Actriz
Característica que tirará a peruca em frente do público tal
como o Actor Centro. O Primeiro Actor terá também tirado
seu uniforme militar)

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Não, não, somos todos, todos, senhor encenador...

A PRIMEIRA ACTRIZ
Assim é impossível continuarmos...

OS OUTROS

Impossível! Impossível!

O ACTOR CENTRO
Eu acabei o meu papel mas estou aqui também.

O DOUTOR HINKFUSS
E poderão dizer-me, por amor de Deus, o que é que
aconteceu?
(Neste momento estala o m da frase do Actor Centroque,
tranquila, produz o efeito de un duche frio.)

O ACTOR CENTRO
...solidário com os meus colegas!

O DOUTOR HINKFUSS
Solidário? O que é que isso quer dizer?

150

Criado com Scanner Pro


fi
O ACTOR CENTRO

Que nos vamos todos embora, senhor encenador!

O DOUTOR HINKFUSS
Todos embora! E para onde?

UNS
Embora! Embora!

PRIMEIRO
O ACTOR t s
Se não for ele quem se vai embora!

OUTROS
Ou vai o senhor ou vamos nós! 0
O DOUTOR HINKFUSS
Embora, eu? Como ousam? Eu, a mim uma intimação
assim?

ACTORES
-Então
vamo-nos
emboranós. 0 Sib e onc o
-Vamos então, vamos.
-Já chega de sermos marionetas!
X-Vamos embora,já! 1les sCtis
(Preparam-se precipitadamente para sair.)

O DOUTOR HINKFUSS
(Pára-os.,)
Onde é que vão? São loucos? Está ali o público que
Pagou! Que é que querem fazer com o público? 208

151

Criado com Scanner Pro


fi
o ACTOR CENTRO
O senhor que decida! Nós dizemos isto: ou o senhor se
vai embora, ou então vamos nós!

O DOUTOR HINKFUSS
Eu volto a perguntar o que é que aconteceu mais?

O PRIMEIRO ACTOR
O que é que aconteceu mais? Acha então que o que
aconteceu não basta?

O DOUTOR HINKFUSS
Mas não estava tudo já resolvido?

O ACTOR CENTRO at
Resolvido, como?

O5HIiri A ACTRIZ CARACTERÍSTICA


O senhor quer que nós improvisemos...

O DOUTOR HINKFUSS
..tal como se diz nos contratos.

O ACTOR CENTRO
Desculpe, mas não é assim, a saltar as cenas, a fazer-nos
morrer à ordem da sua batuta..

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
..a pegar nas cenas pelo meioe a frio!

3p 0idug A PRIMEIRA ACTRIZ


Já nos não vêm as palavras...

152

Criado com Scanner Pro


O PRIMEIRO ACTOR
..é isso. Foi o que eu disse logo desde o princípio! As
palavras têm de nascer...

A PRIMEIRA ACTRIZ
Mas foi o senhor o primeiro, desculpe-me, a não respeitar
as palavras que me nasciam num movimento espontâneo!

O PRIMEIRO ACTOR
Tem razão. Sim. Mas a culpa não é minha!osi

POMÀRICI
Sim, foi ele quem começou!

O PRIMEIRO ACTOR
Deixem-me falar! A culpa não é minha! É dele!
(Aponta para o Doutor Hinkfuss.) &.
O DOUTOR HINKFUSS
Minha? Como é que é minha? Porquê?
192:13DitK
POMÀRICI
Sim, foi ele quem começou! O

.s b 0l P
ORIMEIRO
ACTOR d
Deixem-me falar! A culpa não é minha! É dele!

(Aponta para o Doutor Hinkfuss.)

O DOUTOR HINKFUSS
Minha? Como é que é minha? Porquê?

153

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O PRIMEIRO ACTOR
APorque está no meio de nós como seu malditoteatroone
Deus o derrube inteiro!

O DOUTOR HINKFUSS
TO meu teatro? Mas estãoloucos? Ondeéquenósestamos?
Nãoestamosnumteatro? iaiDSA A!SUp

O PRIMEIRO ACTOR
Estamos num teatro? Bom. Então dể-nos os papéis que
temos de decorar..
1D1SAMOE
A PRIMEIRA ACTRZ iot ad
...acto a acto, cena a cena...
AOTDA OHHAITO
Iolsb a !srinig > NENÉ
..as réplicas escritas, palavra a palavra...

O ACTOR CENTRO
..e corte à sua vontade, se Ihe apetecer. E faça saltar as
cenas como quiser. Mas enm sítios xos e que a gente saiba
antes.

O PRIMEIRO ACTOR
iotud
Em primeiro lugar, o senhor desperta em nós a vida.

Iolsb APRIMEIRAACTRIZ s
...com tantas fúrias de paixões... lio
A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
be?
..quanto mais se fala, mais entramos nisto, percebe?

154

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fi
NÊNÉ
.estamos todos perturbados...

A PRIMEIRA ACTRIZ
.a vibrar...

TOTINA
(Apontando para o Primeiro Actor.)
.eu ainda o mato!

.0 prepotente, que vem dar ordens para a nossa casa!

O DOUTOR HINKFUSS
Mas ainda bem, ainda bem que assim é! os 0E1A

O PRIMERO ACTOR
Ainda bemo quê? Depois quer que nós cumpramos o que
está indicado para cada cena...

6 opr solxbaah O ACTOR CENTRO


...que não falte agora o tal efeito..

O PRIMEIRO ACTOR
..porque nós estamos no teatro!... Como é que quer que
nós ainda pensemos no seu teatro se temos de viver? Về o
que acontece com tudo isso? Durante um instante pensei em
terminara cena comoo senhor quer, cando eu com a última
deixa e acabei por me zangar com a senhora...

(Aponta para a Primeira Actriz.)

155

Criado com Scanner Pro


fi
aue tinha toda a razão, sim, toda a razäo parasuplicarnaque-
la altura...
Deus
A PRIMEIRA ACTRIZ

...era por si!

O PRIMEIRO ACTOR

mas sim, evidentemente!...


(Para o actor que faz o papel de Mangini)
...como você a brincar como seu roupão... e peçodesculpa:
o parvo fui eu em Ihe dar ouvidos a ele.

hD sot (ApontaoDoutor
Hinkfuss.)
O DOUTOR HINKFUSS

Atenção ao que diz, hem! es


O PRIMEIRO ACTOR
(Afasta-oe, fogoso, volta a dirigir-se à PrimeiraActriz)
Não me fale assim!... A senhora é a vítimaverdadeira!
Vejo, sinto que está tomada pelo seu papel como euestou
pelo meu. Sofro todas as dores do inferno quando a vejoà

minha frente
(Agarra-lhe a cara com as mãos.) às
com estes olhos, com esta boca; treme, morre de med
minhas mãos; ali está o público que não podemosmandar
embora; teatro, não, nem eu nem elaconseguimosagoraP
grita o seudesesper0,
-nos a fazer teatro; mas assim como
eo seu martírio, tenho eu também de gritar a minha aixão,
esteja
a que mne faz cometer o meu delito; pois bem; quo
Como um tribunal que se senta para julgar!

156

Criado com Scanner Pro


(Bruscamente para o Doutor Hinkfuss.)
Mas o senhor temde se ir embora!

irnu
O DOUTOR HINKFUSS

(Espantado.)O

O PRIMEIRO ACTOR
Sim... e deixe-nossÓs... só nós os dois..9Y o ,md

OTANÉNÉAO
Muito bem.

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
A fazer aquilo que sentem.

O ACTOR CENTRO Sins .os1


Aquilo que nasce dentro deles... muito bem!

TODOS OS OUTROS
it otT98ci
(Empurrando o Doutor para fora do palco.)
Sim, sim. Váse embora. Váse embora!

O DOUTOR HINKFUSS
Põem-me fora do meu próprio teatro?

O ACTOR CENTRO
Já nãoprecisamos de si! sno 9bg UgO

157

Criado com Scanner Pro


(Bruscamente para o Doutor Hinkfuss.)
Mas o senhor tem de se ir embora!h

O DOUTOR HINKFUSS

(Espantado.)
Eu?

O PRIMEIRO ACTOR
Sim... e deixe-nos sós... só nós os dois...s o me

OXTA NÉNÉAO
E Muito bem.

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

A fazer aquilo que sentem.

O ACTOR CENTRO
Aquilo que nasce dentro deles... muito bem!

TODOS OS OUTROS

(Empurrando o Doutor para fora do palco.)

Sim,
sim.Váse
embora.
Vá-se
embora! l
O DOUTOR HINKFUSS
Põem-me fora do meu próprio teatro?

O ACTOR CENTRO
Já não precisamos de si! AN boc Unir
157

Criado com Scanner Pro


wii TODOS
OOUTROS
S d
(Empurrando-o
pelocorredor.)a t/
Vá-se embora! Vá-se embora!
H HOT J0d O

O DOUTOR HINKFUSS

Isso é uma violência inaudita! Querem um tribunal?

O PRIMEIRO ACTOR

Sim, o verdadeiro teatro. 02.c02

O ACTOR CENTRO

Aquilo que o senhor lança aos ares todas as noites,para


que cada cena seja apenas um espectáculo para os olhos!
ADIL21H1
A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Quando se vive uma paixão isso é que é o verdadeiro
teatro, E então basta um letreiro ao fundo.

Irv A PRIMEIRA ACTRIZ


Manipular tudo para obter um efeito, isso pode 0senhor
fazer no boulevard.

TODOS OS OUTROS
Rua! Rua!

O DOUTOR HINKFUSS
Eu sou o vosso encenador! 0b ot
O PRIMEIRO ACTOR
Ninguém pode encenar a vida que nasce!

158

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A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Até o autor lhe tem de obedecer! u obsors

A PRIMEIRA ACTRIZ A
Sim! Obedecer! Obedecer!

O ACTOR CENTRO
E rua com quem quer mandar! 0
O DOUTOR HINKFUSS 'osb
Vou protestar!
(De costas para a porta de entrada na sala.)
E um escândalo! Eu sou o vosso encena...
(É posto fora da sala. Entretanto o pano abriu sobre um
palco sombrio e vazio. 0 Secretário do Doutor Hinkfuss, os
maquinistas, os electricistas, todo o pessoal de cena veio
assistir ao extraordinário espectáculo da expulsão do Direc-
tor do Teatro pelos actores.)

O PRIMEIRO ACTOR
(Para a Primeira Actriz, convidando-a a voltar parao palco,)
Vamos, vamos fazer tudo de novo, vá!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA ls 3
Nós é que fazemos tudo! NAL A

STSDs1Gb( oPRIMEIROACTOR
Não precisamos de nada...

SI POMÀRICIA
Nós próprios montamos a cena.at o oslto

159

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A OACTORCENTRO
...apoiado! E eu trato das luzes!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Não. Assim é melhor! Tudo vazio e escuro! Assim &

melhor!
OPRIMEIROACTOR ts D
Só a luz necessáia para recortar as guras nesta escuri-
dão!

A PRIMEIRA ACTRIZ
Sem cenário nenhum?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
O cenário não tem importância!

A PRIMEIRA ACTRIZ
Nem sequer as paredes do meu cárcere?

O PRIMEIRO ACTOR
Isso sim. Mas que mal se vejam... ali... um instante... toca
-Ihes e depois pronto... escuro; para fazermos ver que jå nao
é ele, o cenário, quem manda aqui!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Basta qu tu te sentes, minha lha, dentro do teu cácere.
Ha-de aparecer, hão-de o ver todos, como se estivesse mes-
mo a perder-te!

A PRIMEIRA ACTRIZ
Mas tenho pelo menos de me pintar um bocadinıo

160

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fi
fi
A ACTRIZ CARACTERISTICA
Espera! Tive uma ideia! Uma ideia!
(Para um ajudante de cena.)
Traga-me uma cadeira, já!

A PRIMEIRA ACTRIZ
Que ideia?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Já vai ver.
(Para os actores.)
Vocês entretanto continuam a ensaiar. Ensaiam mas só
aquilo que realmenteé preciso para fazermos alguma coisa.
Os banquinhos das meninas. E ver se já estão prontas
entrar, ali.
(0 ajudante de cena traz a cadeira.)

A PRIMEIRA ACTRIZ
Eu estava a dizer... pintar-me um bocadinho. 3

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
(Dando-lhe a cadeira.)si s p sise A
Senta-teaqui,minha lha!z yuplomz o 1
A PRIMEIRA ACTRIZ

Aqui?
t (Perplexa, quase assustada.)

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Sim, aqui. Aqui! E vais ver que emoção!... Néné, vai-me

161

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fi
buscar a caixa das maquilhagens e uma toalha, v... Espera!
As meninas que tragam as camisas de noite compridas!

A PRIMEIRA ACTRIZ
Mas que é que quer fazer? Como?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Deixa-nos a nós pensar, a mim que sou a tua mãæ e às tuas
imās. Nós é que te vamos pintar. Vá, Néné!

TOTINA
Traz também um espelho!

A PRIMEIRA ACTRIZ
E então o vestido também!

DORINA
(Para Néné que já vai a correr para os camarins.)
Eo vestido também! E o vestido também!

ADIA PRIMEIRAACTRIZ
A saia e a blusa: no meu camarim!

(Néné faz sinal que sim com a cabeça e sai pela esquerda.)

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Tem de ser o nosso desespero, percebes, meu, da tua mãe
que sabe bem o que é a velhice... e tu, lha, envelheceres
assim antes do tempo...

TOTINAlDA A
E nosso, que te ajudámos a ser bela.. e agora a ser feia...

162

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fi
DORINA
..etumurchas..sbts99st 2giith
AA PRIMEIRA
ACTRIZ
.condenam-me por ter querido aquele homem?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
..sim, mas com desespero, com desespero, a condenaçã..

0d TOTINA t
..por estares separada de nós...

ADA PRIMEIRAACTRIZ
...mas não julgues que era por medo da miséria que nos
esperava depois da morte do pai.. não!

DORINA
..então porquê? por amor? mas tu foste mesmo capaz de
te apaixonar por um monstro daqueles?

A PRIMEIRA ACTRIZ
Não! Por gratidão...

TOTINA a hslo
-.porquê?
AWAT) hAD NHIDA A
A PRIMEIRA ACTRIZ
.por ter acreditado... só ele.. com todo o escândalo que
se tinha espalhado...

TOTINA
-.que uma de nós ainda se pudesse vir a casar?

163

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DORINA
Olha as vantagens de te teres casado com ele!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Que foi que se passou contigo? Agora.. agora é que vai
ver!

.6bnog soeves NÉNÉ


(De volta com a caixa das maquilhagens, um espelho,
toalha, uma saiae a blusa.)
Está tudo aqui. Não conseguia encontrar..

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Dá! Dá cát obsnSMENs u
(Abre a caixa e começa a pintar Mommina.)
Levanta a cara. Oh, lha, minha lha, sabes como naterra
há tanta gente que diz como se diz dos mortos: «como ela
era linda! e como tinha bom coração!» Apagou-se... assim.
pois... assim.. a cara de quem há muito não está ao arlivre,
de quem já não về o so...

TOTINA
...e olheiras, as olheiras, vá...

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Sim, sim, pois, assim...
S9p osirnt3 0 DORINA
De mais, não.

NÉNÉ
Não, tem de ser muito, muito!

164

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fi
fi
ACP TOTINA
...olhos de quem se morre de desgosto!..

NÉNÉ
..e os cabelos nas têmporas..iH4 A

A ACTRIZ CARACTERISTICA
.SIm... assim... assim... t
SDORINA o2i 9..s2ib41 SE
..brancos não! brancos não!

NÉNÉ
...não, brancos, não...

A PRIMEIRA ACTRIZ
..querida Dorina..

TOTINA
...assim...está bem... pois... um bocadinho mais que trinta
anos...
NIHI AS1 29 A

A ACTRIZ CARACTERÍSTICAi 20r


..embranquecidos da velhice...

A PRIMEIRA ACTRIZ
-.a0 menos devia penteá-lo, o meu cabelo...

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
(Despenteando-a.)
E Agora espera... assim... assim... so E

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/NÉNÉ
(Estendendo-lhe
espelho.)
o to
E agora vê-te.

A PRIMEIRA ACTRIZ
(Afastando subitanmente o espelho comn as duas mãos.)

Não! Ele tirou-os todos, tirou todos os espelhosquehavia


nesta casa! Sabes onde é que eu me conseguia ver? Como
uma sombra nas vidraças, ou deformada na água trémulade
uma malga... e isto tudo destruiu-me...

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Espera. A boca, a boca!

A PRIMEIRA ACTRIZ
Sim... tira todo o vermelho. Já não tenho sanguenas
veias...
TOTINA
E rugas, rugas ao canto da boca.

A PRIMEIRA ACTRIZ
Aos trinta anos também já me podem ter caído unsdentes..

DORINA t
(Abraçando-a num ímpeto de comoção.)
Não, não, minha Mommina, não, não!

NÉNÉ
(Quase irada, tomada também pela comoção,Jjastu
ando
Dorina.)
Tira o corpete. Vá, o corpete! Vamos spi-la!

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A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Não. Põe-se por cima. Vestimos-Ihe a saia e a blusa por
cima.

TOTINA
Sim, está bem... para car mais horrível!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
E cas com os ombros descaídos como eu, que estou
velha...

DORINA
..ofegante, errarás pela casa..

A PRIMEIRA ACTRIZ
..embrutecida pela do...

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA

..a arrastar os pés..

NÉNÉ

...uma carne inerte..

(Ao dizerem a sua última réplica, elas recuam para a


escuridãoà direita. A Primeira Actriz que ca só entre as
trêsparedesnuas do seu cárcere - que foram montadas no
escurodurante a cena em que foi vestida e maquilhada -
virá de encontro, primeiro à da direita, depois à do fundo
e por m à da esquerda. De cada vez que lhes toca, as
paredes cam visiveis por um instante, numa luz rasante de
cimacomosefosse um gelado clarão de um relâmpago para
voltarem a desaparecer no escuro.) sl
167

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fi
fi
fi
fi
fi
A PRIMEIRA ACTRIZ A
(Num ritmo lúgubre que aumenta numa intensidadeprofunda,
vai de encontro às três paredes, como uma fera enjaulada.)

Isto é uma parede! Isto é uma parede! Isto é uma parede!

(E vai sentar-se numa cadeira com a atitude e o comporta-


mento de uma louca. Durante um tempo permanecerá assim.
Da direita, para onde se retiraram a sua mãe e as três irmãs,
surgirá a voz da mãe que diráo seguinte com o ar dequem
lê uma história num livro:)

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
E foi presa na casa nmais alta da terra. Fecharam a porta,
fecharam todas as janelas, vidraças e persianas. Só cou
aberta uma, pequena, sobre os campos distanteseo distante
mar. Na alta colina, só conseguia ver os tectos das casas, o
sino da igreja, tectos, tectos que se estendiam até perder de
vista, telhas, telhas, nada mais do que telhas. E só à noite é
que ela podia ir até àquela janela para tomar um pouco dear.

(Na parede do fundo surge uma pequena janela comoque


velada e distante através da qual passa um branco clarãode
luar.)

NÉNÉ
(Da sombra, em voz baixa, feliz, num tomn deencantamento
infantil enquanto que à distância se ouve um som fraco,
O1 como de uma longínqua serenata...)
Olha... uma janela.. há mesmo uma janela..

O ACTOR CENTRO
(Em voz baixa, na sombra também.)
Já lá estava. Mas quem é que a terá iluminado?

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fi
DORINA
Calem-se!
NÉNÉ
A nrisioneira está imóvel. A Mãe recomeça a falar, ainda
como se estivesse a ler:)

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Estes tectos todos, que nem dados negros, abriam-se por
baixo dela na claridade que vinha da luz dos revérberos das
estreitasruas inclinadas; no profundo silêncio das ruelas
nnóximas ela ouvia um rumor de passos que ecoava; a voz
de uma mulher que, como ela, talvez estivesse à espera; o
ladrar de um cão e, com maior angústia, o toque das horas
do sino da igreja mais prÓXIma. Mas porque continua o
relógio a marcar as horas? A quem as diz ele? Tudo está
morto e vazio..
(Depois de uma pausa, ouvem-se cinco badaladas veladas,
longinguas.São as horas. Sombrio, surge Rico Verri. Volta
paracasa. Não tỉrouo chapéu. A gola do sobretudo levan-
tada e um cachecol aopesSCoçO. Olha para a mulher que
continua imóvel na cadeira. E depois, cheio de suspeitas,
olha para a janela.)

VERRI
Que estás tu a fazer aqui?

MOMMINA
Nada. Estava à tua espera.

VERRI
Estavas à janela?

169

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MOMMINA
Não.

VERRI
Vais para lá todas as noites.

MOMMINA
Esta noite não.

o t ss
VERRI
(Depois de ter colocado o sobretudo, o chapéu eo cachecol
numa
cadeira.) s
Nunca mais te fartas de pensar?

MOMMINA
Eu nunca penso.

VERRI
As meninas já estão na cama?

MOMMINA
Onde querias que estivessem a estas horas?

VERRI
Pergunto para te lembrar o único pensamento que tu devias
ter: pensar nelas.

MOMMINA
Pensei nelas todo o dia.

VERRI
E agora em que pensas tu?

170

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MOMMINA
(Entendendo a razão por que ele tão insistentemente lhe
pergunta isto, olha-o primeiro com desdém, depois, voltando
ao comportamento de apática imobilidade, responde:)

Em carregar até à cama esta carne martirizada.

VERRI
Não é verdade. Quero saber em que pensas! Em que é que
tu pensaste todo este tempo que estiveste à minha espera?

(Pausa de espera porque ela não responde.)

Não respondes? Claro! Não me podes dizer!

(Outra pausa.)
Confessas, portanto?

MOMMINA
Confesso o que?

VERRI
Que pensas em coisas que me não podes contar?

MOMMINA
Já te disse em que pensava: em ir dormir.

VERRI
Ir dormir... com esses olhos, com essa voZ...? Queres
dizer, sonhar?

Eu não sonho.
MOMMINA
S.n
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AVERRI
Não ể verdade. Todos nós sonhamos! Não é possível que
a gente a dormir não sonhe.

MOMMNA 9
Eu não sonho.

o VERRI
Mentes. Estou a dizer-te que não é possível!

MOMMINA
Então sonho! Como tu queiras...

VERRI
Sonhas, não é?... sonhas... sonhas... e vingas-te! Pensas e
vingas-te! Que sonhos? Diz-me: que sonhos?

MOMMINA
Não sei.

VERRI
Não sabes?

MOMMINA
Não sei. Tu é que dizes que eu sonho. É tão pesado
corpo e eu estou tão cansada que assim que entro na cama,
caio num sono de pedra. Não sei o que quer dizer sonhar. Se
sonho e se ao acordar não me lembro dos sonhos que tive,
parece-me que é o mesno que não ter sonhado. E é talvez
Deus quem me ajuda nisto!

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VERRI
Deus? É Deus que te ajuda? inos
MOMMINA
Sim, a suportar esta vida, que ao abrir os olhos mais atroz
me pareceria se durante um pouco, nos sonhos, eu tivesse
tido a ilusão de outra.. Mas percebes, percebes, que é que
queresde mim? Queres-me ver morta. Morta. Que não pense
mais. Que não sonhe mais... E pensar ainda pode depender
davontade, o sonhar - se eu sonhasse seria a dormir, sem
querer. Como é que me podes proibir?

VERRI
(Agitando-se agora ele como uma fera enjaulada.)
Éisto! É isto! Fecho as portas e as janelas, ponho grades e
trancasepara que éque tudo isto me serve sea traição está aqui,
aqui, dentro do próprio cárcere, aqui, nela, aqui dentro dela,
nestasua carne mota - viva, viva, a traição! Pensa, sonha,
recorda? Está à minha frente, olha para mim! Posso partir-Ihe
acabeçapara ver lá dentro em que está a pensar? Pergunto-he:
responde-me: «Nada», E no entanto pensa, no entanto sonha,
recorda, debaixo dos meus próprios olhos, a olhar para mim,
e se calhar com outro que está lá dentro, nas suas recordações;
comopoderei saber? Como é que eu posso ver? st om

Mas que queres tu que eu tenha cá dentro se eu já nada


Sou! Não me vês?... nem sequer sou outra, já não sou nada!
Com a alma adormecida, que queres tu que eu recorde?

VERRI
Não digas isso! Não digas isso! Sabes que é pior se falas
assim!

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MOMMINA
Está bem. Não, não falo mais, não digo, estádescanisado.

AVERRIM
xO Mesmo que eu te cegasse, aquilo que os teus olhos iram,
recordações, as lembranças que tens nesses olhos volta-
riam à tua mente; e se te arrancasse os lábios, esses lábios
que beijaram, o prazer, o prazer, o sabor que provaram con-
tinuarias sempre a saboreá-lo, nas recordações, até morreres,
até morreres desse prazer! Não podes dizer que não. E se
negas estás a mentir. Mais não podes fazer do que chorar e
recear aquilo que eu sofro contigo, o mal que zeste, que te
levaram a fazer a tua mãe e as tuas imās. Não podes negar.
Fizeste, zeste o mal. E sabes, vês que eu sofro com issoaté
car louco, sem culpa, pela simples loucura que cometi
quandomecasei
contigo! i obuiup3
biob oinsb iups „slan .isps
.Linoz.sens9 lotisTi MOMMINA
sr Loucura, sim loucura. E sabendo como eras não a devias
tercometido.. 19g shieg 5psv oiEoDslu

fIimTsq ilo s.0lloVERRI1902ch


Como era eu? Ah sim? Como era eu, dizes? Sabendo
como tu eras, era o que devias dizer; a vida que levaste com
a tua mãee as tuas irmās! vi

RDEOe uit s MOMMINA


Sim, sim, isso também. Mas lembra-te que tu também viste
que eu não aprovava a vida que se tinha na minha casa..

is le VERRI
...mas viveste-a também...

174

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fi
fi
fi
a
MOMMINA
..à força, porque estava lá...

VERRI
e só quando me conheceste é que deixaste de a apro-
apro-

var...
MOMMINA
..não, antes também, antes também... e tanto é verdade
quetu próprioachaste que eu era melhor - não te digo isto
por mim, para acusar as outras e me desculpar a mim, não:
digo-o por ti, porque tu tinhas piedade, não de mim, não de
mim, se para ti é quase satistação não a ter, ou mesmo
mostrar aos outros que a não tens; sê cruel, sê cruel para
comigo!Mas tem pelo menos piedade de ti próprio e lembra-
-tequeachaste que eu era melhor, que apesar de toda aquela
triste vida tu acreditaste que me podias amar...

VERRI
Tanto que me casei contigo! Caro que achei que tu eras
melhor. E então? Que piedade de mim? Se penso que te
amei, que pude amar-te lá no meio daquela vida que tu
levavas- que piedade?

MOMMINA Ei
..Massim - reconhecendoque havia pelo menos em mim
OSu cientepara te perdoares em parte a loucura que come-
testecasando-te comigo! É isso! E digo-0 por ti!

isn VERRI
aoe pior?Julgasque por isso se apaga se calhar a vida
1 IEVasteantes de eu me ter apaixonado por ti? O ter-me

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fi
casado porque eras melhor não pode desculpar a minha lou-
cura, agrava-a até, porque mais grave, muito mais grave se
torna o mal dessa tua antiga vida, se tu és melhor! Fui eu
quem te tirou daquele mal, mas agarrei-o todo e trouxe-0
para casa, aqui para a prisão, para o expiar junto a ti, como
se eu próprio o tivesse também cometido. E sentindo-me ser
devorado, vivo ainda, mantém-me ainda vivo aquilo que eu
sei da tua mãe e das tuas irmās!

MOMMINA
Nunca mais soube nada delas!

NÉNÉ
(No escuro, insurgindo-se.)
Patife. É assim que ele fala de nós!

uiT VERRI
(Gritando, terrível.)
Silêncio! Vocês não estão aqui!

DONA INÁCIA
(Avançando para a parede no escuro.)
Fera, fera, aí a tens nos teus dentes, aí dentro da jaula, e
tu a esquartejá-la!

VERRI
(Tocando duas vezes com a mão na parede, o que a torna
por duaS vezes visível.)
Isto é uma parede! Isto é uma parede! Vocês não estão
aqui!

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TOTINA
IAvancando tambem ela com 0s outros contra a parede.
Agressiva.)
E tiras proveito disso, patife, para nos andares a insultar
a nós?
DORINA
Tínhamos fome, Mommina!

NÉNÉ
Tínhamos chegado ao último degrau!

VERRI
E como é que conseguiram subir depois?

DONA INÁCIA
Canalha! Ousas acusar-nos, tu que agora a fazes morrer
de desespero?

NÉNÉ
Nós gozamos a vida!

VERRI
s1 Vocês venderam-se! Desonradas!
ost9 s
TOTINA
E essa honra que Ihe conservas, já viste o que ela tem de
pagar por ela?

DORINA
,A mamãagoraestá bem. Mommina! Vê só comoestá
Dem! Os vestidos que traz! Uma linda pele de castor!

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DONA INÁCIA
Graças à Totina, sabes? E agora uma grande ntora!

T8Iuenib 9Tsbrs2011S1DORINA02ib ok9o 51A


Totina La Croce!
AMIHOa
NÉNÉ
Todos os teatros a querem.

DONAINACIAo9tdo 201nl
São festas! Triunfos!

Seioqsb1idMERRIseo99Up9 o9 1
E a desonra!
AIDAVI AVOG
19TIOM29N61 s SIORS 9Up NNÊNEatbs 2ser
Viva a desonra se a honraé isso que tu dás à tuamulher!

MOMMINA
(Bruscamente, nunm ímpeto de afecto e de piedade, para o
marido que agora está derrotado, com a cabeça entre as
mãos.)
Não, eu não digo estas coisas, não sou eu: bu na0
acuso, não..
AViROT
sbsns1Lls sup o lelv s VERRI, li oup de
Querem-me condenar...

MOMMINA
Não, não, eu sinto que tu deves gritar, que deves grita
todo o teu tomento para te aliviares!

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VERRI
So elas que o mantêm aceso! Se soubesses os esCândalos
que continuam a dar! Toda a terra fala delas e imagina a
minha cara... a vitória que obtiveram desenfreou-as, tornou-
-as ainda mais despudoradas...

MOMMINA
A Dorina também?

VERRI
Todas! A Dorina também. Mas principalmente essaNéné.
É uma cocotte!

(Mommina sobre o rosto.)


...sim... sim... pública!

MOMMINA
EaTotna,
começou
acantar? sei st s
VERRI
Sim, nos teatros... nos de província, claro... onde o escân-
dalo é sempre maior, com aquela mãe e aquelas irmã...

MOMMINA
Anda com elas?

VERRI
Sempre por todo o lado! É uma alegria! Que €? Estás a
corar?

MOMMINA
INão... estou a ouvir estas coisas todas... não sabia nada
disto...

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VERRI
E sentes-te emocionada, €?.. o teatro, €? Quando também
cantavas... uma linda voz! A tua voz era a mais bela!...Pensa
só que vida não terias! Cantar, num grande teatro... a tu:
paixão, cantar.. as luzes, o esplendor, os delírios...

MOMMINA
Não, não...

VERRI
Não digas que não! Estás a pensar nisso!

MOMMINA
Estou a dizer-te que não!

VERRI
Não? Se tivesses cado com elas... longe daqui.. Que
vida não seria a tua... em vez desta..

MOMMINA
Tu é que me fazes pensar nisso! Que queres tu que eu
pense, reduzida ao que estou?

VERRI
Falta-te o ar?

MOMMINA o
Tenho o coração a saltar-me na garganta!...

VERRI
Claro! Por isso te falta o ar!

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fi
6l it sl op MOMMINAi sb cLd
Queres fazer-me morrer!
ct
VERRI
Eu? As tuas irmās, aquela que foste, o teu passado é isso
que se agita dentro de ti e te faz o coração saltar na garganta.

MOMMINA otoittlattobi sol


(Ofegante, com a mão no peito.) t320s
Porfavor... peço-te... já não respiro quase...d soups

VERRIsOTEp s iSi0
Mas vês que é verdade, vês que é verdade o que te estou
a dizer?

MOMMINA toc
Tem compaixão..

VERRI
Aquela que tu foste... os teus próprios pensamentos, os
próprios sentimentos.. julgavas que se tinham apagado em
ti, que tinham morrido?... Não é verdade! Ả mais pequena
lembrança... e ei-los que reaparecem em ti, vivos e os mes-
mos!

MOMMINA
Tuéquenos
lembras! .obee S 3 it
VERRI
Não. Basta o que quer que seja para te lembrar, que estão
Sempre vivos... tu não o sabes, mas vivem-te sempre... escon-

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didos por baixo da tua consciência! Dentro de ti continuará
sempre a viver a vida que tu viveste! Basta um nada, uma
palavra, um sonho, a sensação mais pequena, repara, o cheiro
dos sabugueiros e estou de novo no campo, em Agosto, rapaz
de oito anos, por trás da casa do feitor, à sombra de uma
oliveira grande e a ter medo de uma vespa azul que zumbe,
sinistra, no meio do cálice branco de uma or. Vejo-lhe o
caule tremer, a essa or violentada, às mãos da voracidade
feroz daquele bicho que me apavora. E ainda aqui o tenho,
a este medo, aqui, nos rins!.. Agora imaginamos-te a ti, toda
aquela bela vida, as coisas que se passavam entre vocês e
todos aqueles rapazolas que iam lá a casa, fechados ora neste,
ora naquele quarto... não o negues!... eu próprioo v.. coi-
sas.. aquela Néné, uma vez com o Sarelli.. julgavam que
estavam sós e tinham deixado a porta entreaberta... eu con-
seguia ver... a Néné a ngir que Ihe fugia para a outra porta
que havia ao fundo... havia um reposteiro verde.. saiu, e de
repente voltou no meio das dobras do reposteiro.. tinha um
seio descoberto, tinha feito descair a camisola de seda cor-
de-rosa... e com a mão fazia sinal, sinal de o oferecer, e de
repente escondia-o com a mesma mão... Vi-a eu; um seio
maravilhoso sabes? Pequeno, cabia inteiro dentro de uma
mão! Podia fazer-se tudo!...Antes de eu ter aparecido, tu e
o tal Pomàrici, eu soube-o... mas antes de Pomàrici, quem é
que sabe quantos não foram?.. Durante anos, aquela vida,
com a casa aberta a todos..

(Atira-se para cima dela, decomposto, trémulo.)


Tu... há certas coisas... certas coisas... a primeira vez
comigo... se era verdade... como tu disseste que até tu não
sabias... nunca podias ter feito.

MOMMINA
Não, não, juro, nunca antes de ti, nunca!

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Criado com Scanner Pro


fi
fl
fl
VERRI
Mas abraços e beijos, com o Pomàrici, sim... e os braços,
os braços, como é que ele tos apertava? Era assim? Assim?

Estás-me a magoar?

VERRI
E isso dava-te prazer, não dava? E a cintura, a cintura,
como é que ele ta apertava? Era assim? Assim? oilo
ea:A MOMMINA
Por favor, deixa-me que eu morro!

VERRI

Rei (Furioso, agarra-lhe a nuca com a mão.)

E aboca?A boca?Como é que ele tebeijava? A boca?


Era assim? Assim? Assim?

(E beija-a e morde-a eri e puxa-lhe os cabelos como


tivesse enlouquecido; entretanto, Mommina, tentando
libertar-se grita desesperada.)

sbrs s 8il MOMMINA


Socorro! Socorro!

(Acorrem as duas lhas com as camisas de noite compridas.


Estãoaterrorizadas e agarram-se à mãe enguanto Verri foge
depoisde terpegado no chapéu que estava na cadeirae a gritar.)

VERRI
Eu dou em louco! Eu dou em louco! Dou em louco!

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Criado com Scanner Pro


fi
MOMMINA
(Defendendo-se, escuda-se com as duas crianças.)

Rua! Vai-te embora! Vai-te embora, animal, vai! Deixa-


-me com as minhas lhas.

(Exausta, cai na cadeira; abraça as duas crianças que estão


uma de cada lado.)

Minhas lhas, minhas lhas, o que vocês têm de ver!


Aqui fechadas comigo, com estas carinhas de cera e estes
olhos tão grandes espantados de medo! Foi-se embora, foi-
-se embora; não quem a tremer assim, quem um pouco
comigo, assim... Não têm frio, não?... A janela está fechada.
É noite alta. Vocês estão sempre especadas ali junto à janela
como duas pobrezinhas a mendigar a vista do mundo... Con-
tam as velas brancas dos veleiros no mar ou as casas brancas
do campo aonde nunca foram... e querem que eu vos diga
como é o mar e como são os campos... Oh, lhas minhas
lhas... que sorte a vossa! Pior do que a minha! Mas pelo
menos vocês não sabem! Ea mamã estã tão mal, tem uma
dor tão grande aqui, no coração; bate no meu peito como um
galope, o galope de um cavalo à solta... Vá, vá, dêem-me as
vossas algemas, vêem, vêem.. Que Deus as não venha cas-
tigar; por vossa causa, minhas queridas! Mas ele fará com
que também vocês sofram o martírio que não pode fazer de
outra maneira; é a sua natureza; e esse martírio também a si
próprio se in ige! Mas vocês, vocêsestāão inocentes... você,
yocês estão inocentes...
2
(Junta às faces as duas cabecinhas das lhas e assim ca.
Vindas da sombra e da direita, como que evocadas por
magia, aproximam-se da parede a mãe e as irmãs. Estão
luxuosamente vestidas, fazem um quadro vivamente colorido
e oportunamente iluminado de cima.)

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DONA INÁCIA

(Chamandoem voz baixa.)-iid


Mommina... Mommina...

MOMMINA
Oue é?
AVIMiO
S DORINAk
Somos nós, Mommina! ssbrsy.u2
ADNÉNÉ
Nós, as quatro! Aqui!

MOMMINA
Aqui onde?

TOTINA sbacIns!

Aqui... na cidade... eu vim cá cantar...

MOMMINA
Totina.. tu... vieste cantar aqui?

NÉNÉ
Aqui, sim, no teatro.

MOMMINA 97s
An, meu Deus, aqui, e quando é, quando?

Al NÉNÉ N A
Esta noite, esta noite mesmo!

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DONA INÁCIA
Deixem-me ao menos dizer qualquer coisa, raparigas
benditas! Ouve, Mommina... espera... que queria eu dizer...
ah sim... espera...queres ter a prova?...o teu marido deixou
ali o sobretudo... em cima daquela cadeira...

MOMMINA
(Voltando-se para ver.)
Sim. É verdade.

DONA INÁCIA

Procura, procura nos bolsos do sobretudo a ver o que


encontras!

(Baixo para as raparigas.)

Temos de a ajudar a fazer a cena. Estamos quase no m.

MOMMINA
(Levantando-se e indo procurar febrilmente nos bolsos do
sobretudo.)

O quê? O quê?

NÉNÉ

(Baixo para a Actriz Característica.)


Responde você?

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Não, não... que histórias..

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NÉNÉ
(Alto para Mommina.)
0 anúncio do teatro... um daqueles impressos a cores,
sabes,daqueles que na província se andama distribuir pelos
cafés...

DONA INÁCIA
Verás o nome da Totina em letras grandes... o nome da
prima-dona!
(Desaparecem.)

MOMMINA
(Ao encontrá-lo. Abre. Lê)
0 Trovador... o Trovador... Leonora, soprano, Totina La
Croce... esta noite... é a tia, minhas lhas, é a tia, a tia que
vai cantar e a avó e as outras tias... estão aqui.. vieram cá..
Vocês não as conhecem, nunca as viram... e eu também não,
há tantos anos.. Estou aqui!

(Pensando nas cóleras do marido.)

Ah, é por isso... aquina terra.. a Totina vem cantar ao teatro


de cá... Pois cá também há um teatro?.. eu não sabia.. a tia
Totina... é então verdade... a voz se calhar, como estudo... Ah,
se consegue cantar nos teatros... mas vocês nem sequer sabem
o que é um teatro, minhas pobres lhas... o teatro, o teatro...
eu vou dizer-vos o que é... esta noite a tia Totina vai cantar...
Só Deus sabe como ela estará linda na Leonora:

(Tenta cantar.)
«Tacea la notte placida
e bella in ciel sereno
la luna il viso argenteo
mostrava lieto e pieno...>

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Vêem que também sei cantar? Sim, eu também sei cantar.
Fui eu quem começou a cantar. O Trovador, sabia-o todo de
cor!.E agoracanto paravocês. Faço-o para vocês, vou fazer
teatro para vocês. Vocês nunca viram, pobres pequeninas,
aqui fechadas comigo. Sentem-se, sentem-se aqui à minha
frente, ao lado uma da outra, nessas cadeirinhas. Vou agora
mostrar-vos, o teatro! Primeiro vou dizer-vos como é.

(Senta-te em frente das duas meninas espantadas. Treme e


ir-se-á excitando cada vez mais até ao ponto em que lhe
falha o coração e ela cai no chão morta.)

Uma sala, uma sala grande, com muitas las de camarotes


em redor, cinco, seis leiras cheias de lindas senhoras ele-
gantes, com plumas, jóias, leques, ores; e senhores de fraque
com pérolas no plastron e gravata branca; e muita gente,
muita, nas poltronas vermelhas da plateia; um mar de cabe-
ças; e luzes, luzes por todo o lado; um lustre no meio que
parece cair do céu e que parece ser todo de diamantes; uma
luz que encandeia, que inebria como não podem imaginar;
e um rumor, um movimnento; as senhoras a conversar com
os cavalheiros, a cumprimentarem-se de camarote para ca-
marote, uns sentados na plateia, outros a olhar pelo binó-
culo... aquele de madrepérola que eu vos dei para verem os
campos... aquele... levava-o eu, levava-o a vossa mamā quando
ia ao teatro, e olhava ela também, naquele tempo... De repen-
te as luzes apagam-se. Ficam acesas apenas as luzinhas verdes
da orquestra que está na frente da plateia por baixo do pano
de boca; os músicos já lá estāo, tantos, tantos, a a nar
instrumentos; e o pano de boca é uma cortina mas grande e
pesada, de veludo vermelho e franjas de ouro, uma
magni cência; quando se abre. o maestro já entrou com a
batuta para dirigir os músicos... começa a ópera: vê se o
palco que é uma oresta, ou uma praça, ou um palácio; ea
tia Totina entra para cantar com os outros enquanto toca a

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orquestra.. E isto o teatro... Mas antes, antes era eu quem
tinha a voZ mais bonita, não era a tia Totina... Eu, uma voz
que era bem mais bonita, tinha uma voz que todos diziam
que eu devia era ir cantar para os teatrOS; eu, a vOSsa mamã,
e quem foi, foi a tia Totina... E, ela teve coragem... abre-se
o pano, ouçam, nessa altura.. é puxado de um lado e do
outro... abre-se e vê-se no palco o átrio de um grande palácio,
com homens de armas que passeiam ao fundo e muitos
cavaleiros, com um certo Ferrando; estão à espera do seu
chefe, o Conde di Luna. Estão todos vestidos à antiga, com
capas de veludo, chapéus de plumas, espadas, botas altas. E
de noite. Estão cansados de estar à espera do Conde que está
apaixonado por uma grande dama da corte de Espanha que
se chama Leonor e tem ciúmes e todas as noites a vai espiar
debaixo da varanda nos jardins do palácio; porque sabe que
todasas noites o Trovador -quer dizer um homem que canta
e que é também guerreiro – vem cantar para Leonor a canção
1

«Deserto sulla terra...»

(Interrompe-se unm momento para dizer como se para si


própria.)
Meu Deus, o meu coração...

(E de novo volta a cantar, a custo embora, lutando com a


opressão que sente, cansada igualmnente pela emoção de se
ouvir cantar:)
«Col rio destino in guerra,
é sola speme un cor (três vezes)
un cor... al Trovador...».
Já não consigo cantar... fa.. falta-me o ar... o coração..
não posso respirar, o coração.. há tantos anos que não can-
to... mas a pouco e pouco o fôlego, a voz, hão-de-me voltar...
têm de saber que este Trovadoré imão do Conde di Luna..

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sim... mas o Conde não sabe.. nem ele próprio sabe, ele o
Trovador porque foi raptado por uma cigana quando era
pequenino. E uma história terrível, ouçam. E a própria cigana
quem a conta no segundo acto, a cigana que se chama
Açucena. Sim, era eu.. era eu quem fazia a Açucena.. Roubou
o menino, esta Açucena, para vingar a mãe que foi queimada
viva, inocente, pelo pai do Conde di Luna... Os ciganos são
vagabundos que lêem a sina e ainda os há que têm fama na
verdade de roubar as crianças de forma que todas as mãs
têm cuidado com eles. Mas esta Açucena roubou o lho do
conde para vingar a mãe e quer dar-Ihe a mesma morte que
teve a inocente; acende uma fogueira, mas na fúria da vin-
gança, quase louca, troca o lho do conde pelo seu próprio
lho e queima o seu verdadeiro.. percebem?... O seu próprio
lho! «I glio mio... il glio mio..» Não consigocanta...
Vocês não sabem o que esta noite é para mim, minhas -
Ihas... É mesmo O Trovador... esta canção de cigana.. eu
uma noite estava a cantar com toda a gente à minha volta...
(Canta no meio de lágrimas.)
«Chi del gitano la vita abbella!
La zingarella!»
O meu pai, nessa noite, o meu pai, o vosso avô... trouxeram-
-no para casa todo cheio de sangue... e tinha ao lado uma
espécie de cigana... e nessa noite, nessa mesma noite, minhas
lhas, cumpriu-se, sim, cumpriu-se o meu destino.. O meu
destino...
(Levanta-se desesperada e canta a plenos pulmões,)
«Ah! che la morte ognora
è tarda nel venir
a chi desia
a chi desia morir!
Addio
Addio, Leonora, addio...»

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(Cai de repente morta. As duas crianças, mais espantadas
ue nunca, não suspeitam o que seja. Julgam que é ainda o
teatrogqueamãe lhes está a representar. E cam imóveis nas
suascadeiras à espera. Nesta imobilidade, o silêncio é mortal.
Atéque, no escuro, à esquerda, do fundo, surgem, ansiosas.
asvozesde Rico Verri, Dona Inácia, Totina, Dorina e Néné)

VERRI
Está a cantar! Ouviram?... Era a voz dela...

DONA
INÁCIA io so)
...como um passarinho na gaiola...O

TOTINA
Mommina! Mommina!

DORINA
Estamos aqui, estamos aqui com ele..

NÉNÉ
Foi o triunfo da Totina... se tivesses visto... a terra toda
em de...

(Quer dizer «em delírio» mas não acaba. Aterrorizada como


as outras, descobre o corpo inerte por terra e as duas meninas
que ainda continuam à espera.)

VERRI
Que foi?

DONA INÁCIA
Morreu? f: toslt
Laietsiy9352

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0 Estava a fazer teatro para as meninas...

b TOTINA
Mommina! b,
NÉNÉ
Mommina!
(Quadro. O doutor Hinkfuss entra pela porta da sala,atravessa
a coxia central e, entusiasmado, precipita-se para a cena.)

O DOUTOR HINKFUSS
Magní co! Um quadro magní co! Fizeram aquilo que eu
dizia! Isto não está na novela!

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Lá estáele outravez!

O ACTOR CENTRO
(Vindo da esquerda.)
Esteve sempre aqui, com os electricistas, a regular todos
os efeitos de luz.

NÉNÉ
Ah, por isso é que eram tão bonitos...

TOTINA
Eu bem suspeitei, quando nós aparecemos ali no grupo..
(Aponta para o outro lado da parede, à direita.)
Só Deus sabe o efeito que isto não deve ter tido na sala!

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ADT2 DORINA MITDA
(Apontando para o Actor Centro.)
Também me espanta que ele tivesse conseguido isto!

AACTRIZ
CARACTERÍSTICAb1qt
(Anontando para a Primeira Actriz que continua estendida
SAO1por terra.)l
Mas de que é que ela está à espera para se levantar? Está
estendida como se...
i60C O
O ACTOR CENTRO
Mas ela terá mesmo morrido?

(Debruçam-se pressurosos sobre a Primeira Actriz.)

O PRIMEIRO ACTOR
(Chamando-a e sacudindo-a.)

Senhora... Senhora...

A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Sente-se mal?

NÉNÉ
Meu Deus, desmaiou! Vamos levantá-la!

A PRIMEIRA ACTRIZ
(Soerguendo-se.)
Não, obrigada... foi o meu coração.. deixem-me... dei-
xem-me respirar..

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A ACTRIZ CARACTERÍSTICA
Claro, não é de espantar. Querem que a gente viva... eis
as consequências! Mas nós não estamos aqui para isto, não.
Estamos aqui para representar papéis, papéis escritos e que
se aprendem de cor! Não quer por certo pretender que todas
as noites um de nós deixe aqui a pele!

O PRIMEIRO ACTOR
ba Temos de ter um autor! 25i p
O DOUTOR HINKFUSS
Não, autor, não! Papéis escritos sim, se quiserem para que
nós lhes demos vida de novo, por um momento... mas..
(Para o público.)
sem as inconveniências desta noite, que o público por certo
nos perdoará!
(Vénia.)

Berlim, 24 de Março de 1929.

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Uma história conta-se em momentos: servem uns para
apresentar, outros para descrever, outros para mostrar
acções, outros para narrar o que cou
entre duas acções. Uma narração avança numa alternância
de registos internos. Tem os seus momentos plenos
e aqueles que, ligando-os, explicando-os,
justi cando-os..., os sustentam.
Esta Noite Improvisa-se começa e acaba por sobretudo
contar uma história: a de Mommina, Dorina, Totina e Néné.
Mas entretanto vai contando uma outra que a ela
se mistura e se justapõe. A estas duas histórias
ainda se junta a sua vertiginosa mise-en-abime'.

EDITORIAL ESTAMPÀ

ISBN 972-33-0945-9

789723" 309454

Criado com Scanner Pro


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