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e das almas. Penso em Leonardo Sciascia, penso em Dashiell era da ordem da descoberta, para não dizer da surpresa. Como
Hammett, quando sinto em Orange, em Toulon, em Marignane, 1 uma moça dos dias de hoje poderia ser partidária de Le Pen? Eu
em Vitrolles o medo de ganhar surdamente as consciências e
guiar secretamente as condutas, operando sem estardalhaço, sem
' estava estupefato, e esperava entender isso melhor filmando-a.
Eu dizia a mim mesmo, ainda digo, que filmar é percorrer um
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debate, pelo terrorismo cotidiano das pressões, delações, ameaças, tempo de experiência em que a relação do sujeito com seu corpo
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intimidações, difamações, injúrias íntimas, ataques ad hominem, í e sua palavra se desdobra e, ao mesmo tempo, se intensifica.
calúnias, rumores ... 6 Pequenas ignomínias organizadas e aceitas. Uma dinâmica de encarnação dos motivos do pensamento se
Extenuação da dimensão política por desprezo manifesto. O torna possível, reconhecível. Se o Outro se encarna para mim
homem reduzido ao interesse mais estreito. A delação estimulada. isto acontece, antes de tudo, nos filmes. Acrescentar, filmando-o:
A submissão alardeada como modelo. corpo gesto, palavra, movimento, sinuosidade - à ideologia
Se existe (eu acredito nisso) um uso político do cinema e, do outro é, evidentemente, representar essa ideologia com
especialmente, do cinema documentário, se é verdade (eu acre- mais força, ou seja, talvez provocar uma reação mais viva no
dito nisso) que com o cinema, arte do corpo, do grupo e do espectador, dar-lhe mais material a apreender e mais desejo de
movimento, torna-se finalmente possível tratar a cena política combater. Portanto, a curiosidade se sobreporia à repulsa. No
segundo uma estética realista, trazendo-a de volta da esfera do entanto, filmando à noite uma equipe da FN (eles pregavam
espetáculo para a terra dos homens, como as opções de escritura cartazes para a festa de Joana d'Arc, que Jean-Marie Le Pen já
não diriam algo sobre a atual conjuntura? E o dispositivo fílmico, havia incorporado e - pela primeira vez, acho antecipava em
não daria conta do sentido que essa cena política rematerializada uma semana, para não por acaso coincidir com o Primeiro de
e reencarnada ganha ou volta a encontrar? "Filmar politicamente" Maio dos trabalhadores), chamou-me a atenção algo que mostrava
(o slogan não é recente) já seria valer-se do cinema para com- o avesso da sedução despreocupada de Marie-Hélene. Um dos
preender o momento político em que alguém filma. pregadores de cartazes da FN, velho militante, sem qualquer
motivo aparente além do fato de estar sendo filmado, entoava
um refrão sobre os negros conduzidos a golpes de cassetete para
MARIE-HÉLENE E BÉNÉDICTE as colônias. No mesmo instante, firmemente, o chefe da equipe
Em 1988, portanto, Tous pour uni. 7 Esse filme sobre os ordenava-lhe sílêncio. Aqui não, você não, agora não! Expressar-
militantes do RPR e do PS8 - os únicos em campanha, naquela reprimir, esconder-exibir, a cena cinematográfica induzia e
ocasião, por seu candidato à presidência encontra aqueles que registrava a demonstração em atos desse movimento pendular
eu não tinha previsto filmar, os militantes da FN. Nossa heroína que caracteriza, acho eu, a ambígua relação da FN com a "mídia"
RPR, Bénédicte, responsável pela seção de Bois-Colombes, é ("os panfletários"), amada e, ao mesmo tempo, vaiada em seus
amiga de uma jovem militante da FN, Marie-Hélene. E nos fala meetings. De um lado, a obsessão de se fazer notar e portanto de
dela. Esse encontro, parece-me, ganha sentido no momento em se mostrar, de se apresentar como diferente ele todos os outros, à
que Le Pen acaba de obter a maior votação na França (15%) e parte, único, intacto, até o excesso e o insuportável, e, de outro,
quando eu ouço falar já - dos desertores do RPR. Filmamos aquela obsessão de denunciar a consecutiva exibição, pela mídia,
no jardim do Luxemburgo um diálogo entre as duas moças que dessa diferença, dessa estranheza, como uma injustiça e uma
comentam, rindo, os méritos respectivos de seus chefes queridos, censura. Esse duplo movimento, ao mesmo tempo denegação e
Le Pen e Chirac (qual é o mais "duro"?). Brincadeiras em torno do deslocamento, que significa se posicionar como vítima de todas
extremismo que filmei, não sem pensar nas heroínas de Rohmer, as agressões, no lugar de todas as vítimas ( vítima, por exemplo,
como um passeio fora do tempo. O que se tratava de inscrever do anti-semitismo no lugar dos judeus ... ),9 é inexoravelmente
registrado como inscrição verdadeiramente cinematográfica,

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uma modificação da representação: é a trilha do documentário como da realidade da representação. Meu prazer, minha curio-
que serpenteia de Alemanha, ano zero (Roberto Rossellini) a sidade, minha necessidade de conhecer, meu desejo de saber
Pour la suite du monde (Pierre Perrault), de Pouco a pouco são recolocados em movimento por essa dialética da crença e
0ean Rouch) a E a vida continua (Abbas Kiarostami). Os fil- da dúyj(:fo, .
mes documentários não são apenas "abertos para o mu.ndo": O que acontece quando, por exemplo, um encontro 2 é fil-
eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. mado? Duas pessoas ou mais se encontram em um filme. Do
Eles se entregam àquilo que é mais forte, que os ultrapassa e, ponto de vista da ficção, eu sei, ao mesmo tempo, que esse
concomitantemente, os funda. encontro de fato aconteceu (pois foi filmado) e que ele é fic-
DOIS. Duas reviravoltas na escrita cinefr!ªJpgráfica o neo- tício (posto que filmado). Do ponto de vista documentário, eu
realismo, a nouvelle vague - são responsáveis pel~- renÔvação da sei que o encontro de fato aconteceu, pois foi filmado, mas sei
Úcção pelas formas documentárias (fotojornalismo,·-~ep;rtagem também que o encontro é real, pois de outro modo não poderia
de guerra, cine-jornal, mas também deslocamento do centro de ter sido filmado. A dose de realidade, se assim posso dizer, é
gravidade das mídias de massa, do cinema em direção à televisão, aqui mais forte. A crença nessa realidade filmada é maior. E
e difusão da prática do cinema amador. .. ). Hoje, a retomada quando a dúvida surge, ela é ainda mais preocupante: este é o
das rotei!izações ficcionais esgotadas pela estandardização da jogo do filme La ville Louvre de Nicolas Philibert. Em "Viagem
telenovela - se dá mais uma vez a partir da experiência do docu- documentária ... " p. 146, eu escrevia:
mentário: um exemplo é suficiente, o cinema de Abbas Kiarostarni.
Ele nos ensina ironicamente que aquilo que nos pressiona hoje é ( ... ) crer e não crer no mundo filmado, e talvez preferir o fil-
me, mas ao mesmo tempo e no mesmo movimento, diante do
e não é mais absolutamente uma "nova inscrição da realidade",
mundo filmado, desejar acreditar que é justamente o mundo
mas antes uma realidade da inscrição ( Close-up, Através das que garante o filme, e não o filme que garante o mundo ... Há
oliveiras). O cinema não existe apenas isto já é muito para aqui uma dialética que eu suponho vital para o cinema. E eu
tratar do mundo e da realidade que nos define. Ele deve também me pergunto se o triunfo esperado da imagem de síntese - e
inscrever cinematograficamente sua potência e complexidade. O muito particularmente dos corpos sintéticos - não irá barrar
monumental e o ínfimo. esse movimento complexo da crença e da dúvida que funda e
mantém a relação cio espectador com o filme.
A parte documentária do cinema implica que o registro de um
gesto, de uma palavra ou de um olhar, necessariamente se refira
Diante das imagens computadorizadas, não posso mais desejar
à realidade de sua manifestação, quer esta seja ou não provo-
crer que haja um referente da cena, realidade do referente da
cada pelo filme, mesmo ele sendo um filtro que muda a forma
qual o filme seria precisamente a comprovação. A cena flutua,
das coisas. A forma delas, sim, mas não sua realidade. Realidade
como os corpos e os cenários, sem amarras, sem ancoragem.
referencial colocada antes de tudo pelo cinema documentário e
A inscrição é desrealizada. Inicialmente, a dúvida se manifesta
que se impõe a ele como sua lei. A ficção pode se esquivar dos
apenas brandamente: duvidar do que, se não podemos mais
referentes, mascará-los. Mas não existe documentário de
verdadeiramente acreditar? No cinema, a dúvida, já que ela é
científica.
articulada com a verdade da inscrição, sempre é trazida por
TRÊS. Espectador do cinema documentário, encontro-me na uma crença; dúvida e certeza se combatem e voltam a atuar em
.ambivalência. Quero estar ao mesmo tempo no cinema e não no um movimento sincrônico, e essa alternância define o lugar do
cinema, quero acreditar na cena (ou duvidar dela), mas também espectador como lugar incerto, móvel, crítico.
quero crer no referente real da cena (ou duvidar dele). Quero
QUATRO. Desde que os filmes existem, os roteiros são
simultaneamente crer e duvidar da realidade representada assim
"escritos" em uma linguagem que importa pouco: as palavras

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estão ali provisoriamente, são as imagens e os sons que escreverão des baraques filmadas por Robert Bozzi, mas também na Jy.jw
realmente o filme. Hoje, passamos das palavras que não contam filmadã pÕr Dominique Gros ou nas crianças de Grq!J_c{s comme
às palavras que apenas contam: as palavras dos programas. !e monde de Denis Gheerbrant3 mas poderia ser também o
Assim, esvaziados do jogo de palavras, desvencilhados da herói de Eu, um negro Qean Rouch), ou o de Nanook, o esquimó
vertigem equívoca da linguagem, os roteiros não se contentam (Robert Flaherty). Esses personagens são precisamente aqueles
mais em organizar o cinema de ficção, os telefilmes, .os jogos que produzem buracos ou borrões nos programas (sociais,
de vídeo, as agências matrimoniais, os simuladores de vôo. Sua escolares, médicos, e mesmo coloniais), que escapam tanto da
ambição ultrapassa o domínio das produções do imaginário norma majoritária como da contra-norma minoritária tal como -
para assumirem as linhas de ordens que enquadram aquilo que esta é cada vez mais bem roteirizada pelos poderes: contudo,
podemos muito bem definir como "nossas" realidades: da Bolsa eles vivem, não lhes faltando nem sofrimento nem alegria,
de Valores às pesquisas de opinião, passando pela publicidade, a experimentando angústias, dúvidas ou felicidades que não são,
meteorologia e o comércio. Os "previsionistas" não são utopistas, ou são muito pouco, as dos modelos circundantes.
e o poder dos programadores não é virtual. Mil model?s. regula~, Creio que a renovação contemporânea4 do documentário na
assim, os dispositivos sociais e econômicos que nos mantêm em França e na Europa tem a ver (entre outras) com esta necessidade
sua dependência. Mas todos procedem de um motivo únko: o sentida por todos nós: que as representações que fabricamos
homem, ser dêÍinguagem que a linguagem ultrapassa, ~;~Ífesta do,_mundodeb,:~m de dá-lo por acabado ou definitivamente
que, há não muito tempo, está apto a assegurar o controle do domado e disciplinado por nós. À sua modesta maneira, o ci-
mundo, traduzindo-o para uma "língua", a do roteiro, que seria, nema docum~ntário, ao ceder espaço ao real, que o provoca e
por sua vez, inteiramente governável (como podem ser as línguas o habita, só pode se construir em fricção com o mundo, isto é,
da cibernética, da informática, da genética, da estatística ... ). Por ele precisa reconhecer o inevitável elas restrições e das ordens,
isso é que os roteiros, que se instalam em todo lugar par.1 agir (e levar em consideração (ainda que para combatê-los) os poderes
pensar) em nosso lugar, se querem totalizantes, para não dizer e as mentiras, aceitar, enfim, ser parte interessada nas regras do
totalitários. Programas que não se ocupam daquilo que do real lhes jogo social. Servidão, privilégios. Um cinema engajado, eu diria,
escapa, que se imaginam sem restos, sem exterioridade, sem tudo no mundo.
que estivesse fora do cálculo (como falamos de fora-de-campo CINCO. À pergunta "o que é o documentário?" não há outra
ou fora-de-cena). A versão do mundo que eles nos propõem é resposta senão a ques_tão feita por André Bazin: "o que é o
acabada, descrição fechada. Ora, é uma sorte (para nós) que o cin<:1:1ª?". O cinema não é o jornalismo, apesar de, como
mundo capturado na teia dos cálculos esperneie, permaneça pertencer à ordem das narrativas. Somente nossa cegueira e nossa
impalpável, além do perfeito e do imperfeito. Se precisássemos surdez, provocadas e/ou escolhidas, podem explicar o fato de
de um exemplo cruel, teríamos a guerra moderna, cada vez mais tomarmos as informações agenciadas por um jornal ou por um
programática (propagandista) e programada (idealizada), mas, programa (televisual ou não) como a afirmação transparente do
mesmo assim, trincada pela distância que não se deixa encurtar que aconteceu. Um depoimento, uma palavra, um documento
entre as telas dos computadores e a lama dos caminhos. e a própria narrativa podem remeter a fatos, a eles se referir
Longe da "ficção totaliza!:)._t_~<:i_o todo", o cinema documentário e com eles estabelecer relações; contudo, deles se separam
tem, portanto, a chance-~:í';·se ocupar apenas das fissuras do real, por meio de uma elaboração que, ainda que diga respeito ao
daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o fato, o reconfigura em formas que não são mais as dele. Nada
excluído, a parte maldita. Pensemos, por exemplo, naquelas Gens do mundo nos é acessível sem que os relatos nos transmitam
uma versão local, datada, histórica, ideológica. A crítica maior

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