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pt/2021/06/18/culturaipsilon/entrevista/manuela-serra-passou-
tempo-quis-esquecer-esquecer-esquecer-1966672
Manuela Serra: “Passou muito tempo. Eu quis esquecer, esquecer, esquecer...”
Será possível consolá-la? Quatro décadas depois de ter descoberto que fora capaz de
realizar um filme e quatro décadas depois de ter fechado as portas à emoção do cinema
porque esse filme foi ignorado e ela se sentiu usada por “uma mentalidade misógina”,
conseguirá agora acreditar que o vale era verde? Talvez não. Mas a estreia de O
Movimento das Coisas, realizado entre 1978 e 1985, vai consolar-nos. Fábula
construída em Lanheses, no Alto Minho, a sua poética não esconde uma gritante solidão
nascida das sequelas do Portugal pós-revolucionário. Avancemos pelas brumas deste
filme único.
Vasco Câmara
18 de Junho de 2021, 7:15
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Daniel Rocha
Transportava com ela reflexos do cinema militante dos anos 70. Nascida em 1948,
deixara Bruxelas, onde estudara cinema no Institut des Arts et Difusion (IAD), quando
aconteceu o 25 de Abril, que a fez regressar a Portugal para vir e ver, para redescobrir,
documentar e contar. Seguir-se-ia a experiência comunitária na cooperativa Virver de
que foi fundadora com colegas do IAD, os anos de Deus Pátria Autoridade (1975, em
que foi assistente de montagem) ou Bom Povo Português (1980, assistente de
realização), títulos emblemáticos, de Rui Simões, outro dos sócios da Virver, e do
cinema da época.
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Manuela quis depois prosseguir sozinha. Quando chegou a Lanheses para esperar
pacientemente pela confiança das gentes, pelos gestos e cantos que dependiam dos
ritmos do campo, e assim estrear-se na longa-metragem com O Movimento das Coisas,
levava consigo os reflexos de um olhar “etnográfico”, se pudermos simplificar, e
militante. Mas sobretudo transportava consigo um desejo de afirmação pessoal, uma
inquietação existencial e uma premonição do fim. O seu espaço íntimo fora inquietado.
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Manuela Serra, 31 anos, na rodagem de O Movimento das Coisas: “foi uma afirmação:
mostrar o que eu valia a mim própria e ao mundo” DR
“Eu nunca fiz parte de um partido político. Convivia com pessoas com um discurso
político. Que eu poderia adoptar por pertencer àquele grupo [a cooperativa]. O
Movimento das Coisas foi uma afirmação: mostrar o que eu valia a mim própria e ao
mundo”.
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São declarações da realizadora, que tem hoje 73 anos. Fala do lugar de solidão em que o
filme a colocou. Tendo sido atravessado por rupturas, desde logo a da cooperativa
Virver, tendo visto a sua rodagem interrompida, O Movimento das Coisas seria
concluído apenas a meio da década de 1980. Numa altura em que parecia não haver
contexto para ele. O cinema português estava outro, experimentava a ficção, titubeava
com os filmes “para o grande público” (como se começou a ouvir nesses anos: o “desejo
de público”) e com géneros mais urbanos e nocturnos. Premiado em festivais como
Manheim, na Alemanha, ou Tróia, nunca estrearia comercialmente em Portugal.
Ninguém se interessou por ele.
O que nos chega agora, em cópia restaurada pela Cinemateca Portuguesa que teve
estreia mundial no Festival de Lyon em Outubro passado (onde testemunhámos a
devoção que descobriu em si próprio um cineasta tão de hoje, Yann Gonzalez, por um
objecto tão intemporal), é esse filme “desaparecido” que foi sendo objecto de culto ao
longo dos anos. Sem que isso suavizasse o desgosto da realizadora, que nos anos 90,
isolada, cortara com o cinema. Desiludida com os homens que decidiram pela sua
invisibilidade, fechou a porta. O Movimento das Coisas fica como a sua única obra. É,
sente-se às primeiras imagens, uma obra única.
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O Movimento das Coisas
Realização: Manuela Serra
À mulher com quem falámos em 2020, querendo dar-lhe conta do entusiasmo que O
Movimento das Coisas suscitara em Lyon, não foi fácil dobrar a resistência à emoção.
Estava magoada, desconfiada, houve feridas abertas pelos que não acreditaram nela.
A mulher que encontrámos agora parece mais retemperada pela doçura com que tem
sido rodeada, depois de uma distribuidora, The Stone and the Plot, a ter acarinhado.
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Conseguirá ela desta vez acreditar?
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Hoje, aos 73 anos, impossível de a consolar. “Porque passou muito tempo. Eu quis
esquecer, esquecer, esquecer...” Daniel Rocha
Porquê isso?
Porque passou muito tempo. Eu quis esquecer, esquecer, esquecer...
É engraçado que as pessoas se admirem por eu não ter tido sentimentos de culpa, por
exemplo, quando o meu filho morreu. A única vez em que senti isso foi quando fiz o
filme. Está a ver o encontro com a vida que foi fazer este filme.
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Subjaz à poética e rarefeita fábula que veste O Movimento das Coisas uma enorme
turbulência, a das relações íntimas que se desagregavam pelo movimento da História, e
uma gritante solidão. Manuela Serra refugiou-se nesta eternidade de três dias, o tempo
das personagens e da Lanheses de O Movimento das Coisas
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meus. Não se punha a questão de estar de acordo ou não com eles. O Movimento das
Coisas é meu.
Nunca fiz parte de um partido político. Convivia com pessoas com um discurso político.
Que eu poderia adoptar por pertencer àquele grupo. O Movimento das Coisas foi uma
afirmação: mostrar o que eu valia a mim própria e ao mundo. Não tive qualquer
preocupação de me encaixar em lado algum porque sempre fui uma desencaixada, nas
escolas, nos liceus…
“Nunca fiz parte de um partido político. Convivia com pessoas com um discurso
político. Que eu poderia adoptar por pertencer àquele grupo. O Movimento das Coisas
foi uma afirmação: mostrar o que eu valia a mim própria e ao mundo”
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DR
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Nessa montagem paralela: uma missa, a remissão dos pecados, e a água. Uma
limpeza…?
É como que uma alternativa à igreja. As igrejas não são os detentores da vida espiritual.
Eu sou mais pela espiritualidade encontrada na natureza. Embora se a igreja estiver
vazia eu consiga encontrar… O que me proporciona a espiritualidade é a natureza. Mais
ainda com água. Isso quis marcar muito no filme.
Vou insistir. O filme revela um movimento de desvio em relação ao que era a sua
realidade, o seu mundo, na altura.
Uma fuga, é isso?
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Porque é que quis filmar uma aldeia?
A minha primeira ideia era contrapor a vida da cidade, Lisboa, com a vida da aldeia.
Mas depois percebi que era muito para mim, porque se tratava do meu primeiro filme.
Ainda pensei em fazer primeiro a aldeia e depois a cidade. Em dois trabalhos. Era uma
fuga aos valores da cidade. Era perceptível a degradação. O egoísmo começava a
nascer. Hoje está evidente: cada um por si. Os valores da solidariedade começavam a
desaparecer.
Mas não era suposto viver-se ainda o pós-revolução, não éramos todos solidários?
Não se esqueça que a cooperativa em que eu estava integrada era uma experiência um
bocadinho avançada para a sociedade. Era uma experiência de vida comunitária. Era
uma alternativa ao que a sociedade nos propunha, que era cada casalinho em sua casa,
etc. Ao haver uma degradação do próprio interior da cooperativa…
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Daniel Rocha
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Não me sentia à vontade. Isso foi a desvantagem de a cooperativa ter terminado para
mim. Eu não queria que a cooperativa acabasse.
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Com esse dinheiro paguei a toda a gente, não fiquei a dever nada a ninguém, ainda me
paguei
a mim…
Chegou à aldeia. Como escolheu as pessoas que filmou, como ganhou espaço junto
daquelas vidas, fazendo-as dizer as coisas que elas diziam…?
Fazendo-as representar…
Fui para lá primeiro sem equipa. Fui ao padre. Porque ele é que conhece as pessoas. Eu
já tinha trabalhado o filme na cabeça. Depois de escolher a aldeia, pedi certo tipo de
famílias, uma que trabalhasse no campo, outra mais idosa e uma que tivesse uma jovem
que trabalhasse já numa fábrica. E foi isso que o padre me apresentou. Lembro-me que
também quis uma família de uma nobreza enfraquecida. Havia um casarão enorme só
com duas ou três peças de mobília, completamente despido. Era um minimalismo…
mas eles não quiseram.
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E as crianças? O filme está sempre a convocá-las ou a chegar perto delas. Desde
logo aquela refeição em que à mesa se sentam apenas crianças: parece cena de
fábula.
Isso é inconsciente. É evidente que ao longo da vida sempre me dei bem com o mundo
das crianças.
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Sente-se no ambiente criado pelas imagens e pelos sons um fim de ciclo: a passagem de
um ritmo, de um certo tipo de vida, para uma coisa nova, que Manuela Serra parece
apenas intuir DR
Eu fui para lá sozinha, primeiro. É sozinha que a pessoa mostra o que é. Pedi ao padre
para ir sozinha para casa das pessoas, sentadinha a um cantinho e aos poucos
estabelecendo a confiança. Nesse aspecto tive uma vantagem. No Sul são muito mais
desconfiados. No Norte dão o benefício da dúvida. Estudam a pessoa. E depois podem
dar confiança ou não. No Sul rejeitam logo: “esta veio para aqui sozinha, o que é que
ela quer?”. Eu sabia estar com as pessoas. Sabia, já não sei se sei…
Enquanto lá estive criei uma relação com as pessoas. Ia brincando com as crianças. São
uma ponte muito boa para a comunicação. Eles observam. Mas gostava de ter ido mais
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fundo. Se em vez de ter lá estado um mês, por dois períodos de 15 dias, tivesse tido
dinheiro para estar mais, os diálogos não teriam ficado por ali, teríamos ido mais além
nos gestos de intimidade. Tive pena de não ter estado lá mais tempo. Trabalhámos
brutalmente.
“Era uma fuga aos valores da cidade. Era perceptível a degradação de valores. O
egoísmo começava a nascer. Hoje está evidente: cada um por si. Começámos a deixar
de ter os valores da solidariedade, isso começava a desaparecer”
Quem é que lhe disse que o plano final do filme, só agora integrado na versão
restaurada, não era suposto estar ali?
Salvo erro Rui Nogueira, que esteve ligado ao genérico do filme. Disse-me: “O filme é
tão bonito, mas o último plano estraga-o. É um pessimismo…”. Eu estava muito
sozinha, a montagem, da sonoplastia, era algo de extremamente cansativo com as várias
bandas de som e uma de imagem; para se mudar qualquer coisa tinha que se corrigir nas
bandas todas, tirar, pôr, voltar atrás.
Havia algumas pessoas que me ajudavam, viam luz na Tóbis, passavam por ali, estavam
ali comigo um bocado, levavam-me a casa, era uma gentileza, coisas que dão força no
fim. E sem me chatearem com as histórias das quecas, que era o geral no cinema.
O filme ficou pronto, fez o percurso dos festivais, teve prémios. O que é que o
escondeu?
O mau ambiente do cinema. Houve mulheres que eu ia cumprimentar e que me viravam
as costas. Seria por ter tido prémios nos festivais? Não sei. Como é que os nossos não
viram que o filme tinha qualidade suficiente para ser mais apoiado? Não quiseram ver.
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Abandonou o cinema, não abandonou o filme.
Não. Tranquiliza-me. Dá-me uma grande tranquilidade ver o filme.
A redescoberta deste filme é feita por uma outra geração, que não os
contemporâneos do filme
Sim, a primeira pessoa que o foi repescar foi [o realizador] Manuel Mozos.
O ambiente era mau. Produziam-se por ano apenas três ou quatro filmes e eram sempre
de realizadores. Andava sempre tudo à batatada. Nessas ocasiões eu ponho-me sempre
no fim da fila. Não entro no jogo. Era preciso ser sacana, e eu não quis.
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Daniel Rocha
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filme com pouco dinheiro. Os financiamentos abriram. Isso melhorou o espírito entre as
pessoas.
O Movimento das Coisas busca uma outra intimidade, mais resguardada, mais
tradicional.
Eu tinha um filho. Foi uma responsabilidade muito grande ir para uma aldeia com uma
criança, privando-a dos amigos, da família. Eu tinha vontade de sair da cidade. Ainda
hoje. Se tivesse uma quinta fazia como a Margarida Cordeiro [cineasta, companheira de
António Reis].
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