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Há uma longa entrevista com o João Vieira, de uma centena de picos de páginas, que
permanece inédita e onde se dá conta, a páginas tantas, da sua versão da história da
performance em Portugal. É uma entrevista em que establece uma clara distinção en-
tre happenings e performances, dando prioridade ao segundo termo, e considerando
que o primeiro tem sobretudo um interesse sociológico. Aí esclarece bem algumas
ambiguidades quanto à história da performance em Portugal, de 1970 a 80 e picos.
Há quem considere que só a partir dos anos 80 é que existe uma prática efectiva e
consciênte das performances, o que é uma ideia disparatada, dado que os nos 80 foi
um período em que a performance já surgia no art world como coisa estafada, fora de
época, e também porque nesse período já se praticava a performance como paródia de
performance, ou como des-performatização performativa da performance.
← Eu estou convencido que se calhar ainda encorajei muitas coisas que a Helena
Almeida veio a fazer mais tarde. É a única colega de geração que eu tenho que
estava voltada para essas coisas. Sim, performance propriamente não. Da
minha geração não. Houve depois um grupo de gente mais nova que começou
a fazer coisas. Bom, se não contarmos com o Ernesto de Sousa, que até era um
bocado mais velho do que eu e que de certo modo, a partir de certa altura, se
dedicou à performance.(…) Ele interessou-se mais, inclusivamente, pelos as-
pectos de instalação, do que pelos aspectos de performance do meu trabalho,
porque justamente não assistiu às performances. Só mais tarde.
Esta foi então uma actividade que foi pioneira, que não seguiu nenhuns modelos de
importação, e que acabou por ter por referência as míticas obras de Yves Klein, os rit-
uais tradicionais portugueses (em especial a festa transmontana dos Caretos) e uma
revesitação do Dada Nova-iorquino com Freud a cavalo (na exposição Mamografias).
Ao revermos as performances João Vieira aparece como um mago, um sábio, alguém
que conduz a cerimónia, um pouco como um xamã.
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← Dizia o mestre Vieira que se podia seguir uma linha, ou várias linhas. Podia-se
seguir uma linha do tipo conceptual, fria, e pintar ao mesmo tempo dentro do
tipo sensual, ardente, pulsional. Podia-se fazer coisas tipo conceptual, como
objectos, teorias, performances e happenings. Podia-se também pintar em
muitos estilos ao mesmo tempo. (in Romance Conceptista, de Renato Ornato)
←
João Vieira foi um Mestre pluralista, arriscando a não se cingir a um estilo, nem a
ficar definitivamente vincado a uma linha dura. Segundo ele não seria preciso, ao se
seguir a tal linha dura, vanguardista e experimentalista, rejeitar as tradições, fossem
elas as da pintura, fossem as tradições populares 1. Também não lhe era necessário
buscar inspiração no exótico e no distante, no budismo, no tantrismo, na cultura árabe
ou africana, quando ainda existiam tradições suficientemente fortes e vibrantes a que
estava por família ligado, como a transmontana Festa dos Caretos, uma saturnalia
pagã inserida no calendário cristão, em Torre de Dona Chama. O João falou disso
com clareza, à data, num programa do Júlio Isidoro na televisão. Para ele, como para
o artístia, cineasta e crítico Ernesto de Sousa, ou Robert Filliou, o importante era a
Festa. Ernesto de Sousa esboçou nos anos 70 a teoria de uma Sociedade Festiva, e es-
tou crente de que ele e o João terão conversado longamente sobre este tema (o João
era um conversador extraordinário). Em muitos aspectos esta dimensão festiva
tornou-se numa realidade concreta com o 25 de Abril — isto é, o 25 de Abril ecoou
uma dimensão antropológica de libertação presente em muitas festas populares, tal
como depois, com a acelerada laicização e desritualização dessas festas, o 25 de Abril
passou a ser uma energia que se estende, ainda que idealizado, à sociedade, e, de um
modo especial à prática artística, sendo assim a saturnalia necessária que se contrapõe
ao mal-estar da cultura (Freud) vigente em qualquer parte do mundo.
Muito mais haveria para dizer, como a presença do nu (femenino?) e da morte (esse
inseparável binómio) em grande parte das restantes performances — ritos de pas-
sagem para Vidas Novas. Ou a relação natural da letra com o nu, através do desejo.
Não são letras dessexualizadas como na tipografia que hoje impera. A letra, sobre-
tudo na poesia, é o que também liberta (e com côr e textura — materialismos espiritu-
aizantes — ainda mais). João trata ainda, na performance das Mamografias/Três
Cofres, de um paraíso implícito na presença do seio/maçã, que vem do acto de ma-
mar, tal como foi analisado pela psicanálise inglesa (Melanie Klein e Winnicot) e que
Peter Burger tão bem teorizou num livro lido, relido e estudado pelo artista, Arte &
Psicanálise. É importante rever hoje estas performances, não só pelo seu testemunho
histórico, mas porque fazem passar os temas e pulsões mais profundos, cada vez mais
arredados para uma zona de censura, a pretexto de correções e normatividades assex-
ualizantes. Só para dar um exemplo, ao colocar há alguns anos o link para o video da
performance Mamografias no facebook fui censurado e temporáriamente suspenso. O
João, na última conversa que com ele tive, alertou-me, com mágoa, para o silêncio e
o esquecimento a que a arte foi votada em Portugal no século XX e XXI. Mas
prosseguia no trilho da alegria, na resistência a essas forças. Por isso, exposições
como esta, são uma lufada de ar fresco, e é importante que se vejam, sobretudo num
país que não tem um museu de arte recente e onde continua a não se poder ver com
olhos de ver a arte portuguesa. Para quando um museu de Arte Contemporânea?