Você está na página 1de 8

Dohakosa de Saraha: Canção Real

Doha mdzod spyod pa'i glu: Dohakosa nama caryagiti

HOMENAGEM A ARYAMANJUSRI!
Homenagem ao destruidor do poder demoníaco!

1
Tal como rajadas de vento mudam
quietas aguas em ondas e remoínhos —
assim do Um o rei múltiplica formas,
e em Saraha mil faces do archeiro vês.

2
O tolo zarolho vê sempre a lâmpada a dobrar,
Mas a visão e o espectador são um só —
Quebraste-te, mente quebradiça!

3
Em casa acendem-se várias lâmpadas,
E quedam-se os cegos no escuro —
O tolo não vê nem um palmo.
Sahaja, o espontâneo, topa tudo.

4
Tal com os rios formam o oceano
às meias-verdades engole-as uma só —
o raiar do sol ilumina os cantos escuros.

5
Nuvens sacam a água do mar, a terra regando —
Nada diminiui ou aumenta.
O real queda-se intacto, céu puro.
6
Cheia das perfeições de Buda
A espontaneidade é a natureza essencial —
espontaneos nascemos e espontaneos perecemos.
Que interessa a existência ou inexistência?

7
A cagar-se para a felicidade o tolo anda por aí
À cata do prazer corrente.
Ainda tens a boca cheia de mel,
Engole-o enquanto puderes!

8
Os tolos esgueiram-se da dor
E os filósofos amanham-se com ela.
Bebe a chávena de néctar celeste
Enquanto os parvos se atolam de desejo.

9
As moscas mordem a merda
e desprezam o perfumado sândalo —
Sedento do grosseiro e vulgar, a confundir-se,
O homem perde o nirvana.

10
A água da chuva enche as pégadas do boi.
Evapora-se quando o sol brilha —
Assim as imperfeições da mente perfeita,
Se dissolvem na perfeição.

11
Tal como a água amarga do mar
Se adoça no vagar das nuvens
Assim o veneno das paixões é remédio santo
Na mente forte e sem apego.
12
O indizível é livre de dor.
A não-meditação dá o puro prazer.
Mesmo temendo o rugir do dragão,
Chove, e amadurecem as colheitas.

13
A natureza do principio e do fim é o aqui-agora,
O primeiro é inseparável do derradeiro —
O tolo que usa teorias para o inconcebível
Separa o vazio da compaixão.

14
Mal nasce a abelha sabe
Que as flores são a fonte do mel —
Como pode o tolo saber
Que samsara e nirvana são o mesmo?

15
Ao vêr-se ao espelho
O tolo acha-se esquisito —
Assim a mente, distraindo-se da verdade,
Serve a farsa visível do engodo.

16
A fragrância das flores é intangível
E sendo real permeia o ar —
Assim os círculos da mandala são infundidos
Pela presença sem-forma.

17
Quando um gélido vento bate a água quieta,
esta congela, e empedernece em irregularidades —
Quando a mente emotiva é agitada por teorias
O sem-forma fica difícil e intratável.
18
A mente, imaculada por natureza, é intocável
Pela lama do samsara e do nirvana —
É como uma jóia perdida num pântano,
Tem lustre, mas não brilha.

19
Quando cresce a preguiça mental, diminui a consciência pura.
Quando cresce a preguiça mental, o sofrimento aumenta.
Das sementes brotam rebentos, dos galhos folhas.

20
Se na mente separas o uno do múltiplo
A luz esmorece e andas muito por baixo —
Como não ter pena daquele
Que caminha no fogo de olhos esbugalhados?

21
Obcecado a curtir a cena sexual
O tolo julga que sabe a verdade essêncial;
Ele é como o gajo que fica à porta
E, no engate, só fala de sexo.

22
O vento agita-se na Casa do Vazio
Delírio em pulgas de gozo emotivo —
Empurrado do espaço celestial, em queda,
O atormentado yogui desfalece.

23
O brâmane que num ritual
Oferece arroz e manteiga às chamas
Achando as coisas sacrificiais ambrosia
Ilude-se, e toma o sonho pela realidade suprema.
24
Iluminando a Casa de Brahma na fontanela
Com a ponta da língua na úvula, em devasso deleite,
A achar que o constricto gozo é a libertação,
Confusos e vaidosos, os tolos denominam-se yoguis.

25
Ao ensinar que é inútil a virtude na auto-consciência,
Ele confunde a fechadura com a chave —
O tolo ignora a vera natureza da gema
e à esmeralda chama vidro verde.

26
Tomam o pechisbeque por ouro,
E o flash de gozo pela realização plena —
Agarram-se-se à alegria de sonhos vãos
E chamam à curta vida eterno deleite.

27
Ao escrutinar o símbolismo de EVAM (eles pensam),
E criar quatro selos da análise circunstâncial,
Ele chama ao pico da sua prática espontaneidade —
E agarra-se a um reflexo, confundido-o com o espelho.

28
Quais confusos veados a mergulhar no reflexo,
Os iludidos, na ignorância, agarram-se às formas externas,
Insaciáveis na sede — acorrentam-se à corrente
idealizando amarras, simulando felicidades.

29
O real relativo é livre de edifícios teóricos,
E a vera mente, activa ou quieta, é sem-mente.
Este é o supremo, o alto do alto, o incontaminado;
Amigos, vinde saborear o cume sagrado!
30
Na mente absorta em samadhi, livre de conceitos,
A paixão é imaculadamente pura —
Qual lótus enraizado no fundo lodo do lago,
O sublime real vem limpo dos pruridos da existência.

31
Firma a visão de que tudo são sonhos, ilusões, feitiços
E vêr-te-ás liberto, realizado, equânime.
Qual mente forte, prendendo os demônios das trevas
para lá do pensamento, desfruta da tua natureza espontânea!

32
As aparências jamais abandonam o esplendor original,
E são sem-forma (à forma falta natureza substancial apreensível) —
Assim são o perpétuo fluxo de uma só meditação,
Um não-mentalizar, contemplação incontaminável que é não-mente.

33
Assim, a intelecção, a mente e as formas mentais, são Isto —
a) o mundo, bizarro teatro de aparências,
b) a ilimitada variedade do espectador-visão,
c) o desejo, a raiva, a preguiça e a iluminação (bodhicitta).

34
Qual vela a brilhar na obscuridade da ignorância
Sara as cisões infringidas pelo cogitar
E apaga todas as impurezas mentais!
Quem pode traçar a natureza do desapego?

35
Nada há a negar, nada a afirmar,
E sendo inacessível é inconcebível.
Com bolos de teorias são confinados os tolos.
Indiviso e limpo o espontâneo sobressai.
36
Se indagas o real com o múltiplo e o uno, nada integras.
Só pelo reconhecimento os seres se auto-libertam.
Conhecer o esplendor é a forte meditação.
Mantem a mente calma e quieta!

37
Chegada aos dominios da alegria
A mente vai-se expandindo
Em mais alegria e riso. Indo no encalce
Dos objetos, nunca deles se separa.

38
Da alegria, nascem rebentos de puro prazer,
E crescem flores de supremo gozo.
Enquanto o escoamento está contido
A indizível felicidade é apurada.

39
O como, o onde e por quem nada são.
No entanto, cada evento é imperativo.
Seja amor, apego ou falta de desejo
A forma dos eventos é a vacuídade.

40
Achas-me um porco que se afunda na lama?
O que é que pode sujar a pérola da mente?
Se nada me contamina ou verga
Nada me poderá prender.

Esta canção de libertação existencial foi composta pelo


glorioso mestre Yogin Saraha.
Este Dohakosa de Saraha foi traduzida por
Kunzang Tenzin em Katmandu durante muitos anos,
e findou-a na lua cheia do sétimo mês
do ano do boi madeira. Que todos sejam felizes!
Que fique tudo na boa!

Você também pode gostar